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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MAIS FORTE QUE O AMOR
MAIS FORTE QUE O AMOR

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

DOVER, NA CHUVA, era uma triste porta dos fundos para fugir da Inglaterra. Quando o navio de carreira deixou o porto sujo, as ruas enlameadas, os edifícios amarelos
da encosta, os rochedos de um branco encardido, tudo mergulhou igualmente num dilúvio cinzento.
Na terceira classe, o espaço limitado estava abarrotado de passageiros, e Stephen, deixando aquele ar pesado de umidade e ruidosa camaradagem, voltou para o convés
molhado e atravancado de cabos. Ficou solitário na popa, abrigando-se, o melhor que podia, atrás da lona que cobria um guincho, com os olhos na costa amorfa, os
pensamentos tão equilibrados entre a amargura e a tristeza que fixavam nele uma atitude de completa imobilidade.
Dali a pouco foi sentar-se num braço do guincho, indiferente ao balanço do navio, ao vento e aos esguichos que assobiavam junto daquela ligeira proteção; tirou do
bolso o seu bloco de esboços. Era um movimento reflexo, um grito do coração. Contudo, uma vez que o seu lápis começou a andar pelas páginas agitadas na beira pela
ventania, perdeu-se, desenhando, com grande rapidez, fases do mar agitado, ondas estranhas e pressagas, a que ele insuflava uma qualidade de vida, vendo nos seus
contornos rotos, no laço intrincado das suas cristas, selvagens rostos humanos, cabeças atormentadas e torsos retorcidos, figuras de homens e de monstros, de cabelos
escorrendo e membros contraídos, tudo perdido e arrastado pela invencível força do mar.
Foi talvez uma espécie de loucura, uma vertigem, que o deixou amolecido e exausto. Tiritava quando o vapor diminuiu a sua marcha arfante para entrar cautelosamente
nos braços do quebra-mar de Calis, e, consciente do seu rosto gotejante e roupas ensopadas, guardou o bloco no bolso com um ar furtivo. Cabos eram lançados, pranchas
de desembarque empurradas, a douane era rapidamente passada. Mas algum ligeiro acidente na linha tinha atrasado o trem para Paris, que ainda não chegara.
Stephen tiritava novamente, batendo os pés sobre a plataforma a fim de restabelecer a circulação. Embora a chuva fosse menos impiedosa em terra, o vento, enfiando-se
pela curva dos trilhos, parecia mais violento, mais cortante. A maioria dos seus companheiros de viagem estava aproveitando o atraso para um almoço à la carte no
restaurante da estação. Mas, diante de um
futuro de completa incerteza, um exame mais detido do estado das suas finanças absteve-se desse luxo. Tinha, para ser preciso, 5 libras e 6 xelins, tudo que lhe
restava das 10 libras que trazia consigo quando chegara a Stillwater.
Por fim, o trem entrou resfolegando; após várias conferências e muita gesticulação, apitos agudos, jatos de vapor, e as notas melodiosas de uma trompa, a marcha
foi invertida e o vapor esguichou novamente. Para Stephen, encolhido no canto de um compartimento ventoso, foi uma viagem miserável. Tiritava frequentemente, sabia
que tinha apanhado um resfriado, e acusava-se de ter sido um tolo.
Na Gare du Nord hesitou, e então, aceitando o risco, e não sem uma certa recordação melancólica da sua prévia entrada na cidade de coração leve, tomou o metro para
a Rue Gastei. No seu presente estado de espírito ansiava, acima de tudo, pela simplicidade e firme amizade de Peyrat. Mas o novo inquilino do apartamento, incompreensivo
e desconfiado, apareceu na porta, respondendo que não havia cartas nem recados... acreditava que Monsieur Peyrat estaria no Puy de Dome, em Auvergne, até o fim do
ano, e além disso não sabia mais nada.
Os passos seguintes de Stephen levaram-no ao estúdio de Glyn. Estava fechado. Do mesmo modo, o pavilhão dos Lamberts, com as janelas fechadas, foi uma nova decepção.
Stephen voltou para o alojamento de Chester. Embora não tivesse acertado exatamente o montante da dívida, sabia que Harry, com seus repetidos pedidos de empréstimo,
devia-lhe pelo menos umas 30 libras, soma que agora adquiria uma importância muito maior do que antes. Mas também aquele quarto estava fechado, aliás, trancado com
um cadeado. Todavia, ao descer as escadas, foi reconhecido pelo concierge e obteve dele o atual endereço de Chester, enviado num cartão-postal recebido dois dias
antes: Hotel du Lion d'Or, Netiers, Normandia.
Animado, Stephen entrou no primeiro bureau de poste e passou um telegrama, explicando a sua situação e pedindo que Chester lhe mandasse por cheque telegráfico, se
não todo, ao menos parte do dinheiro que lhe devia, aos cuidados de Adolf Bisque na Rue Castel. Quando a moça de blusa de alpaca atrás do guichê terminou, a tinta,
uma soma complicada, um processo que a ocupou durante alguns minutos, Stephen pagou e dirigiu-se para o DuvaPs, onde pediu chocolate quente e um brioche.
Depois dessa ligeira refeição, como a chuva caísse mais forte e as sarjetas transbordassem, ele decidiu encontrar, o mais depressa possível, um alojamento para a
noite. Por causa da sua conveniência, e não na esperança de encontrar conforto, ficou num hotel barato das proximidades, a Pension de
l'Ouest, diante da qual passara tantas vezes a caminho do estúdio de Glyn.
Alcançado por escadas sem passadeira, seu quarto não era mais que um estreito, cubículo, mas era seco, e a cama, embora os lençóis estivessem encardidos,
tinha uma ampla provisão de cobertores estampados de azul - aqueles cobertores grosseiros usados pelos recrutas durante as manobras do Exército e vendidos depois
pelos contratantes do governo. Após alguns tremores iniciais, aqueceu-se e dormiu pesadamente. Na realidade, ao acordar na manhã seguinte sentia-se melhor, embora
não se surpreendesse com a tosse, agora piorando. Tomou café com um pãozinho, outra vez no DuvaTs, às 11 horas, e dirigiu-se para a loja de Monsieur Bisque.
Ali o esperava uma agradável surpresa. O pasteleiro recebeu-o cordialmente, com a sua cara de lua cheia enrugada de sorrisos, e, tendo repreendido Stephen por não
o ter visitado no dia anterior, apresentou com modos de prestidigitador o telegrama de resposta de Chester. Este, embora não trouxesse dinheiro, era de natureza
a animar o seu destinatário.
DELICIADO SEU TELEGRAMA. VENHA PARA CÁ. TEMPO E HOTEL EXCELENTES. BELO LUGAR PARA PINTAR. ABRAÇOS
HARRY
A perspectiva aberta por aquele amistoso convite, a ideia de estar com uma paleta e pincéis, diante de um cavalete, na Normandia, fazia brilhar os olhos de Stephen.
Bisque tinha um guia que, embora de páginas esfarrapadas e um tanto antigas, parecia provar que o rapide Granville, o trem mais ou menos direto, já tinha partido
- às 10 horas, para ser exato, daquela manhã. Stephen decidiu adiar a viagem até o dia seguinte. Passou à tarde na loja de Napoleon Campo, onde, além de receber
o cavalete e equipamento lá depositados, comprou novos tubos de tinta e algumas telas. Pagou a metade, 50 francos, e prometeu mandar o restante quando chegasse a
Netiers.
A manhã seguinte trouxe um límpido céu azul, e Stephen saiu com os seus pertences para a estação de Montparnasse. O rapide na Plataforma 2 não estava muito cheio
e ele conseguiu, sem dificuldade, um compartimento vazio na parte dianteira do vagão. Ao partirem, não podia afirmar que se sentia bem, pois experimentava uma sensação
de abafamento, com uma pontada no lado direito. Apesar disso, depois que o trem furou o seu caminho através dos túneis e cortes murados e escuros que davam saída
da cidade, perdeu a lassidão, olhando a paisagem em desfilada: vastos campos de restolho com poças de água da chuva, flanqueados por longas fileiras de olmos - sentinelas
intermináveis; uma agulha distante, delgada, graciosa; parelhas de grandes cavalos, com corvos assistentes, arrastando o arado; velhas construções rurais, de telhas
ocres, as empenas salpicadas de anúncios - Byrrh, Cinzano, Dubonnet.
Ao meio-dia, comeu uma maçã e uma barra de chocolate. Gradualmente, a configuração do terreno havia se alterado. Lutando contra a sonolência, ele
notou as azinhagas ondulantes e pequenos pomares cercados, um bando de gansos em lenta procissão para um lago lodoso, seguido de uma menina de pernas nuas com uma
vara de aveleira, um renque de salgueiros podados cercemente, e depois uma dama idosa, de coifa branca, tangendo uma vaca pela relva da beira da estrada, parando
de quando em vez para tricotar. Até a natureza da bebida tinha mudado. Attendez, exclamavam os anúncios, buvez le cidre moissoné!
Cerca de três horas, o trem alcançou o topo de um longo aclive e entrou na pequena estação de Netiers. Apressadamente, Stephen reuniu as suas coisas e pulou do alto
estribo. Uma rápida inspeção mostrou que Harry não estava lá para recebê-lo. Raciocinando que Chester podia não ter calculado bem a hora da sua chegada, Stephen
começou a andar para a cidade, que se podia avistar mais abaixo da colina, coisa de um quilómetro. A expectativa, ao se aproximar, aumentava a sua ansiedade - passou
um muro valado com fortificações, entrou nas ruas tortuosas, de paralelepípedos, tão estreitos que as casas de pedra cinzenta, muito inclinadas, pareciam estar acima
da sua cabeça. E então, no centro da praça do mercado, em frente à fachada de terracota desbotada do antigo hotel de ville, discerniu a tabuleta dourada do Lion
d'Or.
A estalagem era maciça, solidamente confortável, de alta classe. Stephen percebeu isso de relance, ao se dirigir para o balcão de recepção situado no vão de uma
escada de carvalho.
- Sim, monsieur!
- Meu nome é Desmonde. Tenha a bondade de dizer ao Sr. Chester que acabo de chegar.
Uma pausa.
- Está perguntando por Monsieur Chester?
- Sim. Ele me espera.
O empregado, um rapaz de ombros altos e cabeça rapada, estudou Stephen por um momento e depois disse:
- Tenha a bondade de aguardar, cavalheiro.
Desapareceu por trás da cortina que fechava o fundo do bureau; então, após um breve intervalo, voltou com um homem mais velho, uma figura sólida, de pescoço grosso,
vestido com a roupa listrada da profissão.
- O senhor está procurando Monsieur Chester Harry? O tom, embora cortês, tinha uma qualidade intimidante.
- Sim, por quê? Sou amigo dele. Ele não está hospedado aqui? Uma pausa gélida.
- Ele estava residindo aqui, monsieur. Até ontem à tarde, quando apresentamos a sua conta. Desde esse momento não vimos mais o seu famoso Monsieur Chester.
Stephen olhou para o proprietário, estupefato. Pois não viera por convite expresso de Harry, gastando o seu último soldo na passagem de trem? E de súbito lhe veio
uma ideia, contundente como um golpe. Chester, mais uma vez em apuros financeiros, convidara-o a vir somente na esperança de pedir-lhe mais uma quantia emprestada.
- Se monsieur é realmente Monsieur Desmonde - o sarcasmo era cortante - eis aqui uma carta que seu amigo lhe deixou.
MEU VELHO,
Eles podem não lhe entregar esta. Se entregarem, saberá que, com muito pesar, fui obrigado, encore, a cair fora. Pensei que podíamos resolver o caso juntos - baseados
no princípio de que duas cabeças pensam melhor do que uma - mas o departamento de contabilidade daqui estava um passo à minha frente. Provavelmente vou filar minha
viagem para o Sul, ficar um tempo em Nice, tentar a sorte nas mesas: De qualquer modo, eu com certeza o verei mais cedo ou mais tarde... Sinto muitíssimo e todas
essas coisas... mas quando o diabo aperta...
Seu,
HARRY
P.S. Nenhuma mulher decente na cidade. Mas não deixe de provar a sidra local. É excelente.
Stephen amarrotou o bilhete, escrito a lápis e às pressas, entre os dedos tensos. Sabia que Chester não merecia confiança, mas agora, por baixo do encanto, da alegria,
da amizade efusiva, sentia o âmago do seu total egoísmo.
O estalajadeiro e seu empregado olhavam para ele por detrás do balcão com manifesto desprezo.
- Naturalmente monsieur compreende que não temos acomodações para o senhor nesta casa.
- Compreendo perfeitamente - disse Stephen, girando nos calcanhares e saindo para a rua.


CAPÍTULO II

ALI, SEM DINHEIRO E SOZINHO, parado na praça do mercado de uma desconhecida cidade francesa, Stephen avaliava inquietamente a sua situação. Nunca antes estivera
sem dinheiro. Sua pensão, como o amanhecer, era algo
que tinha como certo, a consequência natural da sua posição na sociedade, do seu próprio direito de nascimento. Agora, com um amargo esgar nos lábios, percebia como
era poderosa a arma que seu pai tinha usado. No entanto, a sua renitência nata mantinha-lhe o prumo. Saiu imediatamente à procura de algum abrigo.
Isso, numa cidade sempre cheia de turistas, foi menos difícil do que ele temia, e antes do entardecer ele estava instalado num quartinho do alto, no fundo de um
pátio da Rue de la Cathédrale. Ao entregar a bagagem para a senhoria, uma velha digna, que não lhe pediu pagamento adiantado por ser de apenas 12 francos por semana
o aluguel, resolveu que, houvesse o que houvesse, estaria em condições de pagar-lhe antes que se passassem muitas horas. Tinha sabedoria suficiente para reconhecer
que, naquela localidade, não poderia conseguir uma subsistência imediata com sua arte. Sim, a sua educação, o seu curso universitário e grau de bacharel deviam certamente
capacitá-lo para alguma modesta posição na qual pudesse ganhar dinheiro suficiente para se manter em pé. E até mesmo o bastante para pagar a conta de Chester ainda
lhe doía a farpa final lançada pelo proprietário da estalagem - e voltar a Paris, encontrar-se lá com Peyrat, tendo uma boa quantia, antes do inverno. Se ao menos
estivesse menos indisposto! Aquela tosse, que desde a travessia do Canal lhe abalava o peito, era um grande incómodo. Mas um ferrenho desejo de experimentar-se levou-o
novamente ao centro da cidade.
Lá chegando, fez um exame perspectivo do logradouro principal, a Rue de la Republique. As lojas, embora pequenas, tinham, em sua maioria, um aspecto de sólida prosperidade
associado a uma ativa região agrícola. Pás, garfos, foices, baldes de zinco, grades de dentes vermelhos, tudo isso e mais estava exposto nas casas de ferragem; havia
guloseimas também - deliciosos petits fours e almôndegas doces, arranjados como buquês de noiva, enfeitavam a vitrine de uma pâtisserie, ao passo que na leiteria
da esquina se via um monte amarelo de manteiga da Normandia, ladeado por dois jarros de leite cheios até a borda.
Na frente de uma papelaria, viu uma caixa de vidro com alguns anúncios e avisos escritos à mão. Leu-os cuidadosamente e depois afastou-se. Ele não podia afinar pianos
nem remendar cadeiras de palhinha, não precisava da metade de uma vila à beira dos rochedos litorâneos de Granville. Mais abaixo da rua chegou à redação de um jornal
semanal, Courier de Netiers. Lá dentro, o número em circulação podia ser lido. Mas as suas magras colunas, devotadas principalmente às fases da lua, venda de gado
e cal, cobertura de vacas e éguas, horário das marés no Mont St. Michel, nada lhe ofereciam.
E agora? Era evidente que precisava de conselho. Obedecendo a um impulso, entrou na mairie e, escolhendo um funcionário de ar simpático, sondou-o discretamente sobre
as possibilidades de emprego na cidade. O jovem,
embora surpreso com semelhante indagação, mostrou-se inteligente e bem-intencionado. Pensou muito, e depois abanou lentamente a cabeça:
- É muito difícil... numa comunidade pequena como esta, as pessoas - sorriu, em desaprovação, ajeitou os punhos de papel - ... não são amáveis com estrangeiros.
Por mais uma hora, Stephen palmilhou a cidade sem sucesso. Quando caiu a noite, voltou, cansado e desanimado, ao seu alojamento. Revistando os bolsos, contou a soma
dos seus recursos: 1 franco e 50 soldos. À vista daquelas minguadas moedas na palma da sua mão, sentiu uma onda de orgulho. Não podia, não devia render-se.
No dia seguinte, na esperança de achar um trabalho manual, deu uma volta, a pé, pelas granjas das redondezas. Ao todo, devia ter andado uma distância de 20 quilómetros.
E em vão. Não havia escassez de mão-de-obra agrícola. Em vários lugares foi tomado por um vagabundo, e soltaram os cães contra ele. Um camponês caridoso, de garfo
em punho, fazendo a provisão anual de feno, pareceu hesitar, comovido talvez pela intensidade do pedido de Stephen, mas no fim prevaleceu a sólida cabeça normanda:
- Você não é muito forte, mon petit, pequeno... oh, muito pequeno. Mas, espere. - Chamou para a cozinha. - Jeanne, traga alguma coisa de comer para este rapaz.
Uma bonita mulher, de braços nus, vermelhos, saiu da porta dos fundos com o barulho dos seus tamancos. Dali a pouco, tendo examinado Stephen, trouxe-lhe um pedação
de torta de carne e uma caneca de sidra. Enquanto ele comia esse repasto, sentado num banquinho de ordenhar, na varanda, o granjeiro e a mulher, observando juntos,
discutiam em voz baixa, enquanto um meninozinho de guarda-pó preto espiava-o curiosamente por trás das saias da mSe. Stephen estava hirto de vergonha. Oh, meu Deus,
gemia ele consigo, sou exatamente como alguém de uma gravura de Cotman... cheguei realmente a isto! Mas a torta era boa, com um molho forte e gostoso, e a bebida
ácida lhe trouxe um novo ânimo para caminhar de volta a Netiers.
Escurecia quando chegou à Rue de la Cathédrale. E agora, embora mantido o ânimo muito bem durante todo o dia, um terrível abatimento o prostrava. A mortal estranheza
daquele quartinho apertado, cheirando a madeira velha, bolor e cânfora, estalando a cada passo que dava; a sensação de estar tão completamente só, enganado por Chester,
encurralado num futuro sem esperança; a suspeita, também, de que a sua senhoria começava a olhá-lo com dubiedade - tudo isso se acumulava para derrotá-lo. Sem querer,
atirou-se na cama e, voltando o rosto para a parede caiada, chorou como uma criança.
Esse acesso durou pouco, mas infelizmente tinha provocado a tosse. A noite inteira, ela o castigou severamente, desde que, na sua ansiedade para
não perturbar a casa, suprimia os espasmos e assim aumentava a sua frequência. Por fim, perto do amanhecer, com a cabeça embaixo das cobertas, caiu no sono.
Era tarde, quase 11 horas da manhã, quando acordou - primeiro para um breve momento de descansada alegria, depois para a sombria consciência da sua entalada. Levantou-se,
vestiu-se sem fazer a barba, e foi para a cidade. A agitação do espírito comunicava uma curiosa fraqueza às suas pernas. Estava andando sem rumo ou objetivo. Subitamente,
quando começava a atravessar pela segunda vez a praça do mercado, ouviu que alguém corria atrás dele. E então sentiu uma mão no ombro. Terrivelmente sobressaltado,
voltou-se. Era o funcionário da mairie.
- Desculpe-me, monsieur. - O moço interrompeu-se para respirar. Estive olhando o senhor durante toda a minha hora de almoço. Olhe, desde que foi embora andei fazendo
algumas perguntas para o senhor. E Madame Cruchot, que juntamente com o seu marido tem a sua épicerie ali - e apontou para o outro lado da rua - tem duas filhas
pequenas que ela quer que aprendam inglês. É possível que ela se agrade do senhor. Nesse caso, vale a pena tentar.
- Muito obrigado - gaguejou Stephen, emocionado. - Muitíssimo obrigado.
O jovem funcionário sorriu.
- Boa sorte. - Pronunciou as palavras entre os dentes, cuidadosamente, em inglês, e depois, como se satisfeito com sua proeza, apertou-lhe a mão, tirou o chapéu
e ficou observando-o atravessar apressadamente a rua.
A mercearia Cruchot, ocupando uma posição de destaque na praça, com duplas vitrines de vidro plano e uma brilhante tabuleta que dizia ALIMENTATION DE RENNES, dava
toda a indicação de ser um próspero estabelecimento, negociando com um grande e tentador sortimento de alimentos. Um constante fluxo de fregueses entrava e saía
pela porta, estreitada por presuntos pendurados, redes de limões, um cacho de banana e várias cestas de verduras escolhidas. Dentro, as prateleiras estavam cheias
dos generosos produtos da terra e do mar, com salsichas e fígado de ganso, sardinhas e enchovas, toucinho, azeite de oliva, queijo, frutas em conserva, conhaques
antigos também, vinhos e licores, café, especiarias, dobradinhas, pés de porco, e vidros e garrafas dispostos em pirâmides brilhantes no chão coberto de serragem.
Entrando, Stephen estacou menos por seu próprio nervosismo do que pelo barulho e movimento, gritos de pedidos, a movimentação de dois auxiliares de paletó branco:
uma moça normanda de ombros pesados e um homem coxo de olhar aborrecido.
Todavia, em pouco sentiu-se escolhido por uma voz de timbre penetrante.
- Que deseja, m'sieur?
Presidindo de uma mesinha, controlando o lufa-lufa, parecendo a dona pela amplidão do seu busto e ousadia do olho, uma mulher de cabelos amarelos, de uns 38 anos,
com a sua figura curva e bem coberta, pele lisa, orelhas rosadas suportando pesados brincos de ouro. Usava um vestido malva da última moda provinciana - com uma
aplicação de renda no decote - vários anéis e pulseiras, e um broche de camafeu.
- Perdoe-me - falou Stephen em voz baixa, aproximando-se. - Meu nome é Desmonde. Soube que a senhora talvez precise de um tutor inglês para as suas crianças.
A verificação de que ele não era um freguês afastara o sorriso maquinal dos lábios de Madame Cruchot; seus olhos apertaram-se na fria apreciação de alguém que, no
mercado, é capaz de avaliar, por um simples cabelo o peso e a qualidade de um porco cevado. Mas a palavra tutor, que ele por sorte tinha usado, lisonjeou-lhe a vaidade,
que predominava entre as muitas e fortes características que possuía, e que aliás era o verdadeiro motivo por trás da ideia de que as suas filhas deviam aprender
o idioma inglês. Também aquele jovem que tinha diante de si parecia simpático, "refinado" e tímido o bastante para lhe trazer algum problema.
- M'sieur pode me dizer quem é?
Muito francamente, Stephen lhe disse.
- Então m'sieur é estudante da universidade de Oxford. - Um lampejo iluminou o olho azul de porcelana de Madame Cruchot, mas no interesse da barganha foi rapidamente
suprimido. Duvidosa, encolheu os ombros. - Naturalmente, temos apenas a palavra de m'sieur quanto a isso.
- Asseguro-lhe que...
- Oh, la, la... estou disposta a confiar no senhor. Mas, naturalmente, considerando a idade das minhas filhinhas, exijo o mais alto padrão de conduta e moralidade.
- Naturalmente, madame...
- Então, quando... - interrompeu-se, com uma ordem aguda, suas palavras ressoando como uma pequena salva de artilharia: - Não, não, Marie, esses ovos não, estúpida,
já estão encomendados por Madame Oulard... e, Joseph, até quando preciso dizer que tire açúcar do saco aberto? Qual o salário que pede, m'sieur?
Stephen tratou de calcular rapidamente o menor estipêndio capaz de sustentá-lo.
- Digamos, com lições diárias, 30 francos por semana?
Com um gesto de consternação, Madame Cruchot ergueu as suas mãos gordas e cheias de anéis. Depois sorriu gentilmente, mostrando-lhe um dente de ouro que era como
uma bala.
- M'sieur está brincando.
- Não, realmente... - Empurrado e acotovelado pelo redemoinho de fregueses, Stephen ficou rubro. - Estou falando sério.
- Também somos gente honesta, Monsieur Crochet e eu, m'sieur, mas longe, oh, muito longe, de ser rica. - Feriu uma nota patética. - O máximo que meu marido me autoriza
a oferecer são 20 francos.
- Mas, madame... eu tenho que viver.
Madame Cruchot sacudiu o seu chinó amarelo tristemente.
- Nós também, m'sieur.
Stephen mordeu o lábio, com raiva e orgulho no peito. O aluguel semanal do seu quarto era de 12 francos. Como diabo poderia manter-se com os oito francos que lhe
restariam depois de pagar a sua senhoria? Não, por grande que fosse a sua necessidade, não poderia submeter-se a semelhante imposição. Deu meia-volta para retirar-se.
Mas Madame Cruchot, que não queria perdê-lo e que, no intervalo, tinha-o observado de soslaio da cabeça aos pés, deteve-o com um gesto delicado.
- Talvez... - Inclinou-se para diante, falando com um ar solícito. Talvez se servíssemos aqui o almoço para m'sieur, isso ajudasse um pouco a situação. Uma refeição
boa e substancial.
Apanhado desse modo, Stephen hesitou. Profundamente humilhado, não podia erguer os olhos.
- Muito bem... aceito - murmurou ele.
- Ótimo. Nosso negócio está fechado. Começará amanhã. Não esqueça que exigirei instrução da mais alta classe. E, sem dúvida, no futuro, m'sieur não esquecerá de
barbear-se.
Stephen inclinou a cabeça. Não podia falar. Contudo, a despeito da sua humilhação, por ignominiosa que fosse a sua situação, só podia experimentar uma sensação de
alívio. Com 20 francos e um almoço diário, estava salvo, ao menos por enquanto.
Ao sair da mercearia, ouviu a voz de Madame Cruchot proclamando em altos brados para as regiões do mundo:
- Marie-Louise, Victorine... Sua bondosa mamã acaba de contratar um tutor inglês.


CAPÍTULO III

AGORA, NA ABAFANTE MONOTONIA de uma cidadezinha provinciana, começava para Stephen uma estranha existência. Todas as manhãs, era acordado pelo sino da catedral,
que badalava três vezes, pesadamente, na Consagração das sete horas, afugentando as pombas, quebrando o silêncio eclesiástico da praça vazia. Uma vez vestido, descia
descuidadamente a escada - pelo menos podia sair de casa sem medo de encontrar a sua senhoria. Atravessando a praça para o Café des Ouvriers, que ficava a curta
distância do jardim de muros altos do convento, encontrava sempre as mesmas mulheres pias, vestidas de preto, e algumas freiras, aos pares, emergindo - flutuantes,
parecia, sobre as largas abas das suas toucas - da igreja. O café, assinalado por um ramo murcho na ombreira da porta, não era um lugar especialmente reputado, não
mais do que a cozinha de pedra de uma casa baixa mobiliada com uma mesa tosca e alguns bancos de madeira. Ali, por cinco soldos, tomava o desjejum habitual da casa:
uma xícara de café preto cheio de borra, lavado por um golinho de vinho branco num copo grosso com um dedo, uma espantosa combinação em seu poder restaurativo. Às
vezes havia um jornal da noite passada, Intelligence de Rennes, que o mantinha ocupado por meia hora. Podia conversar um pouco com Mie, a fille de comptoir de olhos
negros, quieta, que atendia o bar primitivo com discrição e que aparentemente tinha outras funções e obrigações, ou com outro cliente, talvez um mascate, um carregador
da estação, ou um entregador de carvão.
Pontualmente às 11 horas, apresentava-se na casa dos Cruchots, situada atrás da mercearia, e se dirigia a uma porta na parede lateral. Ali, na latada contígua a
uma pequena área fechada de relva, ou, nos dias de chuva, na sala abundantemente enfeitada a que Madame se referia como o "salon", Stephen dava sua atenção às menininhas
Cruchot; Victorine, de onze anos, e Marie-Louise, que tinha apenas nove.
Não eram, de um modo geral, crianças desagradáveis, um tanto estragadas por mimos, mas com toda atração da sua tenra idade. Às vezes, eram mesmo muito meigas à sua
maneira, especialmente a mais nova, uma coisinha bonita de cachos castanhos e faces de maçã". Stephen não as achou difícil de levar e logo ficou gostando delas.
Contudo, já os atributos herdados começavam
a se manifestar - sabiam o preço de tudo, calculavam como matemática, podiam recitar fluentemente aforismos morais sobre a virtude da economia. Cada uma tinha o
seu cofrezinho de metal, com a forma da Torre Eiffel, para depositarem as suas economias, e traziam a chave presa, com a medalha de um santo, a uma fita azul no
pescoço. Às vezes, repetiam, muito inocentemente, observações que tinham ouvido.
- Monsieur Stephen - ele insistia em que o chamassem pelo seu nome de batismo - mamã disse a papá que o senhor deve ser muito pobre.
- Bem, Victorine, devo confessar que ela estava certa.
- Mas papá disse que pelo menos o senhor não era um beberrão.
- bom... papá é meu amigo.
- Ah, sim, Monsieur Stephen. Porque ele também disse que, embora o senhor com certeza tenha feito alguma coisa errada na sua terra, sendo obrigado a fugir, não deve
ter sido um crime sério.
Stephen riu-se, um tanto secamente.
- Vamos... já é tempo de começarem a leitura.
Tão rápido tinha sido o progresso das suas ágeis inteligências, que ele acabara por trazer Alice no País das Maravilhas, e o interesse delas pela história tornava
possíveis até as palavras mais difíceis.
Embora, à maneira de um proprietário, ocasionalmente enfiasse a cabeça na porta, Monsieur Gruchot não vinha muito às lições. Era um homem de estatura média, com
modos inquietos, olhos cor de café, vivos, com os cantos injetados de amarelo, e um bigode preto, cheio, de pontas reviradas, que usava polainas e, dentro ou fora
de casa, exceto no sagrado recinto do "salon", um brilhante chapéu de palha reto. O seu lugar, naturalmente, era na loja, mas passava dois dias por semana fazendo
compras no mercado da vizinha cidade de Rennes, de onde, aliás, ele e sua mulher tinham vindo originalmente. Ligado a Madame Cruchot por uma ostensiva felicidade,
pelos dois lindos penhores da sua afeição, e acima de tudo pelo seu apaixonado desejo de ganho, Albert Cruchot tinha, contudo, em certos momentos, um certo ar, como
se as proporções físicas da sua esposa, seu riso agudo e voz penetrante fossem uma opressão maior do que um homem do seu porte pudesse razoavelmente aguentar. Ele
não encolhia exatamente, porém seus pés empolainados se moviam inquietos e a sua pupila café-au-lait bruxuleava num brilho de impaciência.
Na verdade, por trás do seu sorriso, dos seus modos amáveis e do brilho especioso do seu dente de ouro, Madame Cruchot era uma tirana. Todos os dias ela vinha verificar
"por si mesma" o andamento da lição, sentando-se rígida, numa postura de supervisão, os olhos sem compreensão mas alerta, indo de Stephen para as crianças, perturbando-as,
fazendo que cometessem erros.
- O senhor compreende, m'sieur... desejo que elas não só leiam mas falem coloquialmente... e recitem poesias... como fazemos em sociedade.
Atendendo às suas repetidas exigências, Stephen ensinou as crianças as duas primeiras estrofes de A uma Cotovia. Então, no dia indicado para mostrar o progresso
das suas pupilas, madame apareceu com três amigas íntimas, esposas de lojistas preeminentes, membros da haute bourgeoisie de Netiers, que se aboletaram expectantes
nas cadeiras douradas do salão.
Marie-Louise, escolhida para a primeira prova, foi colocada sozinha na falsa ilha de Aubusson.
- Salve, ó tu, espírito jovial... - começou ela; depois parou, olhou em torno e suprimiu um risinho.
- Comece de novo, Marie-Louise - disse Stephen bondosamente.
- Sabe, ó tu, espírito jovial... - Novamente a criança se interrompeu, piscou, torceu a cinta e olhou timidamente para a mãe.
- Continue - disse Madame Cruchot numa voz estranha. Marie-Louise lançou um olhar súplice para o seu professor. Um leve
suor começava surgir na testa de Stephen. Num tom de lisonja, que o desagradava, disse:
- Vamos, minha querida. Salve, ó tu, espírito jovial...
Um breve silêncio, durante o qual Madame Cruchot pareceu ter virado pedra: depois, sem aviso, levantou-se e deu um tapa na cara da menina. Imediatamente Marie-Louise
debulhou-se em pranto. No momento de consternação que se seguiu, olhares indignados foram lançados para Stephen, a criança soluçante, agora agarrada ao seio materno,
foi confortada com um bombom, e ouviu-se a voz de Mane gritando lá da loja:
- Venha depressa, madame... o fígado está chegando do matadouro. Na confusão que acompanhou a retirada de Madame Cruchot, Stephen ficou desamparado, prevendo com
sardónico fatalismo a possibilidade da sua demissão. Contudo, quando a mãe reapareceu, Marie-Louise correu através da sala, pegou a mão dele e despejou instantaneamente
a poesia, que recitou por inteiro, de um só fôlego. Victorine, para não ficar atrás, seguiu-a, por sua conta, com um perfeito desempenho.
Imediatamente o aspecto da reunião mudou, houve gritinhos de aclamação, sorrisos e acenos de cabeça foram dispensados a Stephen. Madame Cruchot resplandecia de perdoável
triunfo. Na verdade, depois de acompanhar as senhoras até a porta, voltou para Stephen com uma disposição de curiosa indulgência. Em vez da costumeira fina fatia
de presunto, deu-lhe no almoço um prato quente de carne ensopada, guarnecida de rabanetes e cebolas de Bordéus. Sentando-se diante da mesa da copa, observou:
- Afinal de contas, as coisas correram bem.
- Sim - disse Stephen sem levantar os olhos. - No começo, foi apenas o medo do palco.
Por um momento, ela continuou a vê-lo comer.
- Minhas amigas ficaram muito satisfeitas com o senhor - disse ela de repente. - Madame Oulard... a esposa do nosso primeiro pharmacien, uma senhora de certa posição
na cidade, embora naturalmente não possa pagar um tutor para as suas crianças, considera-o très sympathique... um perfeito cavalheiro.
- Sou muito grato por sua boa opinião.
- Acha que ela é uma mulher bonita?
- Deus do céu, não - disse Stephen com um ar ausente. - Eu mal a notei.
Madame Cruchot afagou as suas pastas de cabelo amarelo e, esticando o corpete, bateu nas suas firmes ancas com um gesto significativo.
- Deixe-me servir-lhe mais ensopado.
Nos dias que se seguiram, a qualidade e aliás a quantidade da refeição do meio-dia do tutor inglês melhoraram misteriosamente, e de várias outras maneiras a dona
da casa continuou a sua atitude diferente, e até se poderia dizer, o seu favor. Era uma mudança afortunada para Stephen, em quem a falta de alimentação adequada
e aquela tosse que não o deixava tinham causado considerável dano físico. Começou a sentir-se mais forte, novas correntes de vida movendo-se lentamente nas suas
veias, e um dia, de repente, sentiu, pela primeira vez desde que chegara a Netiers, um vivo desejo de pintar.
O impulso era irresistível, e ao deixar a mercearia apanhou um bloco de papel da Índia e alguns bastões de giz colorido. Quando a lição estava quase terminada, pôs
as duas crianças a ler no mesmo livro, juntas, na latada, e então, com o anseio de uma paixão contida, com linhas ligeiras, firmes e felizes, fez um pastel das suas
cabeças. A coisa foi feita rapidamente, tão veemente era a inspiração - em questão de menos de meia hora. Nunca tinha executado algo tão vívido, tão fresco na sua
composição impressionista. Até ele, que sempre subestimava o seu trabalho, estava comovido, sobressaltado, e excitado por aquela coisa adorável que tinha ganho vida,
misteriosamente, vinda do nada, ao seu toque.
Estava com a cabeça inclinada apontando para o fundo com um creiom amarelo, quando ouviu um som atrás dele: Madame Cruchot, por cima do seu ombro, estava olhando
para o pastel.
- Foi o senhor quem fez isso, m'sieur?
A sua expressão de pasmada incredulidade provocou-lhe um sorriso.
- Gosta?
Talvez ela não compreendesse plenamente a pintura. Mas via nela as suas duas crianças, belamente sugeridas em poucas linhas, umas poucas sombras de cor pura e brilhante.
Não entendia nada de arte. Contudo, o seu astuto instinto comercial tornou-a de imediato - ainda que subconscientemente, advertida de que ali estava algo raro e
delicado, algo da mais alta qualidade. Cobiçou-a
imediatamente. Mas além disso experimentou um singular afluxo dos seus sentimentos por aquele jovem inglês desconhecido, aquela emoção que começara quando, no dia
da recitação, o nevoeiro da sua indiferença se dissipara e ela o vira, através da tagarelice das suas amigas, como realmente era, um homem jovem muito atraente,
com a figura franzina e rosto sensível, os olhos negros e a delicada palidez. As menininhas ainda estavam soletrando no seu livro. Ela passou por trás do sofá e
sentou-se ao lado de Stephen.
- Não percebi - disse ela num cochicho confidencial - que m'sieur era um verdadeiro artista.
- Mas eu lhe disse quando a senhora me empregou.
A referência àquela primeira entrevista, quando ela o tratara tão rispidamente, provocou-lhe um rubor profundo até o seu queixo redondo e sólido e a coluna muscular
do pescoço.
- Ah - disse ela - não fiz muito caso do que me disse naquela ocasião. Eu não tinha o prazer de conhecer m'sieur como conheço agora... após estas semanas de agradável
intimidade, quando tem ensinado às minhas filhas, participado comigo da minha casa, e sempre com a polidez e reserva que só vem da verdadeira distinção. M'sieur
Stephen... - era a primeira vez que ela se dirigia a ele pelo nome, e o fazia com um frémito que endurecia a pele dos seus sólidos seios... - mesmo que não tivesse
me dito nada, eu saberia, por esta pintura, que o senhor tem grande talento.
Suas palavras de mau gosto eram embaraçosas, mas ele disse, gentilmente:
- Talvez queira ficar com ela...
A sugestão, com as suas implicações de compra, levou-a a recuar ligeiramente, mas só por um instante. Respondeu, séria:
- Quero sim, M'sieur Stephen, e vou falar a esse respeito com meu marido esta noite. Naturalmente, é possível que ele diga que o trabalho foi feito na hora da aula,
pelo que o senhor já estava pago, e nesse caso...
- Minha cara Madame Cruchot - interpôs apressadamente Stephen - a senhora absolutamente não me entendeu. Ofereço-lhe a pintura de presente.
Os olhos dela brilharam, não de cupidez agora, mas de uma emoção mais suave e confusa. Suprimiu um suspiro, olhou para ele com uma expressão terna, dizendo:
- Obrigada, M'sieur Stephen. Garanto-lhe que não se arrependerá.
A singularidade de estar sentada tão junto dele punha-lhe a cabeça a girar, uma sensação bem diferente da que lhe dava a proximidade de Cruchot. Mas as menininhas
começavam a exigir atenção, e ela ficou com medo de comprometer-se mais. Com um olhar de soslaio, rápido mas intenso, no qual tentava, em vão, mostrar o seu coração,
que batia rapidamente, levantou-se, disse-lhe au revoir, e voltou para a mercearia.


CAPÍTULO IV

APÓS SEMANAS DE aNIMADA APATIA, Stephen achou que podia pintar novamente. Era como despertar para uma nova vida na qual ele se descobria possuído de uma capacidade
maior, de uma visão mais penetrante do que antes. A cidadezinha, com seus insípidos habitantes, até aqui um deserto de esterilidade, transfigurou-se de repente numa
palpitante fonte de inspiração. Pintou o hotel de ville; a praça de armas do quartel; os telhados da cidade, vistos da sua janela, estranhamente pitorescos; uma
bela composição em cinza e negro das irmãs do convento voltando da missa na chuva, embaixo dos seus guarda-chuvas. As telas que tinha trazido de Napoleon Campo foram
uma a uma transformadas, pregadas no canto do quarto do sótão.
Havia cartas também, de Peyrat e Glyn, para alegrá-lo. Jerome propunha-se continuar em Puy de Dome no inverno e Glyn voltaria a Londres para uma breve estada no
outono. Ambos instavam para que fosse juntar-se a eles. Mas era claro que ele não iria. Estava pintando aqui, e feliz. Nesse estado de ressurreição, a lição diária
para as meninas Cruchot perdeu seu aspecto normal de necessidade. Na verdade, muitas vezes era penoso para Stephen pôr de lado os seus pincéis e correr à mercearia,
justamente quando a luz era a melhor. E embora, na linguagem do estabelecimento, ele continuasse tendo um valor, a sua mente não estava inteiramente no ensino, nem
após a aula era motivado por outro pensamento que não o ir-se dali.
Por causa da sua distração, continuou mais ou menos esquecido das mudanças, sempre crescentes, na atitude de Madame Cruchot para com ele. O vasto melhoramento na
cozinha era, sem dúvida, evidente, mas ele creditava-o à gratidão da proprietária pelo presente do quadro. A esta também atribuía os outros sinais de atenção que
lhe eram dispensados. Tornara-se agora costume de madame presidir o seu almoço e impor-lhe a sua hospitalidade. Na verdade, a sua dedicação foi além.
- M'sieur Stephen - ponderou ela um dia, com uma nota de solicitude. - estou preocupada com o seu conforto. O senhor pode não ser bem-visto em casa de Madame Clouet.
- Mas sou - contrariou ele. - Ela é uma alma muito decente.
- Mas é um quarto tão pobre.
- Conhece-o? - surpreendeu-se ele.
- Bem - disse ela enrubescendo. - Passei pela casa muitas vezes... no meu caminho para a igreja, naturalmente. Se ao menos alguém de gosto acrescentasse umas poucas
coisas... e as arranjasse, ficaria muito mais agradável para o senhor.
- Não, realmente - sorriu ele. - Agrada-me como está... despido e arejado.
- Mas não é bom para o senhor - insistiu ela. - Não posso deixar de notar que a sua tosse ainda o incomoda.
- Oh, não é nada... foi só esta manhã.
- Meu caro M'sieur Stephen. - Olhou-o com terna censura. - Não me contrarie em tudo. Se não posso melhorar o seu quarto, deixe-me ao menos restaurar a sua saúde.
No dia seguinte, para seu embaraço, um frasco de sirop pectoral do estabelecimento de Monsieur Oulard estava na mesa ao lado do seu prato, e madame, medindo uma
colherada, administrou-lhe a dose com ambas as mãos. Victorine e Marie-Louise divertiram-se vendo o seu professor ter que engolir remédio à força. E, no fim, Stephen
também riu.
Quando as crianças correram para brincar no jardim, Madame Cruchot, após um olhar demorado, soltou um suspiro:
- Naturalmente... uma coisa posso ver muito bem. O senhor encontrou na cidade alguma moça insignificante que o atrai.
- O quê! Em Netiers?
- Por que não? Não vai todos os dias ao Café des Ouvriers, e aquela Julie Grosette... eles por lá não têm grandes escrúpulos, posso lhe garantir...
Na verdade, ela conhecia todos os falatórios, mexericos e pequenas intrigas da cidadezinha. Mas o olhar atónito de Stephen era tamanho, que ela parou de falar. Forçou
um risinho.
- Não me olhe assim, meu amigo. Só estou pensando no seu bem-estar. E afinal de contas, embora eu seja uma boa mulher, também sou uma mulher do mundo. Então não
tem ninguém?
- Não - disse ele brevemente.
O olhar de expectativa, de ciúme, desapareceu dos seus olhos e foi substituído por um ar de coqueteria.
- Diga-me se gosta do meu vestido.
Colocou-se ligeiramente de quadril, exibindo o seu novo vestido, de um verde um tanto agressivo, com trancelins amarelos embaixo, que davam um efeito de juventude.
E o cabelo, recém-lavado, fora ondulado com um brilho mais metálico. Madame tinha apego aos vestidos, era uma cliente regular das galleries de Rennes, e ultimamente
exibia para Stephen as suas mais elaboradas toilettes, que, ai!, ele nunca parecia notar. Era essa indiferença que aumentava
os seus anseios, essa completa inconsciência de que ela era uma mulher, e talvez ele fosse assim com qualquer mulher, de uma inocência comparável à do jovem cura
que uma vez servira na paróquia e que ela admirava à distância, sonhando com ele todas as noites ao lado do merceeiro, que, com a carne aplacada pelo seu insensível
traseiro, roncava musicalmente. Mas isso não tinha sido nada, o mero sopro das asas de uma borboleta ao lado deste desejo que agora lhe corria nas veias, fazendo-a
arder de vontade de apertar Stephen nos braços e cobri-lo de beijos.
Ela estava cega para a comédia da sua situação: uma mulher de quase
40 anos, metida de corpo e alma nas atribulações de um negócio banal, de punhos fechados, uma tirana que passava a vida, de voz estrídula e metálica, pondo areia
no açúcar, água na sidra, extorquindo o último soldo das palmas renitentes de um camponês - ela, entre todas as mulheres, sendo amaciada, liquefeita por aquela devastadora
paixão por um rapazinho que talvez pudesse ter sido seu filho. Perdeu o interesse nas suas crianças, nas suas amigas, na busca da riqueza. O marido tornou-se-lhe
odioso. Os seus maneirismos burgueses, a maneira de comer, de soltar ventosidades baixinho após a sua cerveja, despertavam nela uma tempestade de ódio.
- Je te défends de passer le gaz en bas! - gritava ela, encolerizada.
E com tudo isso o seu próprio refinamento aumentava. Banhava-se com mais frequência, usava um perfume mais forte, chupava pastilhas para perfumar o hálito, mudava
a rroupa branca mais seguidamente. Se não pudesse tê-lo, sentia que deixaria de viver.
Subitamente veio uma resposta às suas preces mudas, uma ideia de brilho surpreendente. Como é que ela não tinha pensado nisso antes? Quando Stephen entrou nesse
dia, ela o interceptou no corredor.
- Meu amigo - disse ela alegremente. - Tenho uma boa notícia para o senhor, em suma, uma incumbência. Monsieur Cruchot insiste em que o senhor deve pintar-me.
Desconcertado, Stephen olhou para ela em silêncio.
- Sim - acenou ela. - Cruchot está cheio de entusiasmo. Não falou em outra coisa ontem à noite... De corpo inteiro... a óleo.
- Mas, madame. - Stephen franziu o cenho hesitante, procurando uma desculpa. - Eu... eu não pinto retratos... estou trabalhando em outro tema...
Ela sorriu para ele tranquilizadoramente.
- Não se preocupe, mon petit, farei com que seja pago. Na terça-feira, então, começamos. Está combinado.
Antes que ele pudesse terminar, ela bateu-lhe no braço, com um olhar arqueado, e saiu depressa da sala.
Terça-feira era meio feriado para os comerciantes. Como sempre, a loja
fechava ao meio-dia e tudo ficava tranquilo. Contudo, no momento em que entrou, Stephen sentiu, nos postigos fechados, uma calma sobrenatural. Madame Cruchot recebeu-o
na porta.
- Nada de lição hoje - anunciou ela efusivamente. - As meninas foram para o campo com Marie.
Ao admiti-lo na loja, explicou que a empregada fazia uma visita por mês aos seus pais em St. Vallé, e que, às vezes, como grande favor, ela lhe permitia que levasse
as crianças.
- E naturalmente - acrescentou sem cerimónia - meu marido está em Rennes, no mercado. Não seremos perturbados.
Novamente o silêncio incomum perturbou-o; nenhum rumor na adega, onde Joseph, o auxiliar, passava duas horas cuidando do estoque. Na casa, a não ser eles, não havia
ninguém. Mas foi a mesa, na sala de almoço, posta para dois, com toalha engomada e os melhores talheres, adornada com um vaso de rosas vermelhas, que o pôs em guarda.
- Se não se incomoda, almoçaremos juntos. Será muito mais conveniente.
Falando voluvelmente, naquela mesma maneira descuidada, trouxe da copa um poulet de Bresse assado, com cogumelos e salada, um paté de Estrasburgo, pêssegos em calda,
e uma garrafa de champanhe. Somente depois de abarrotar o seu prato, permitiu-se olhar para ele.
- Estamos bem aconchegados aqui. Não é agradável almoçarmos tête-à-tête? Sabe, deve comer antes de trabalhar. - Lançou-lhe um olhar pudico. Deixe-me servir-rlhe
o champanhe. É o melhor que vendemos. Cinco francos a garrafa.
Ele sentia-se confuso, desconcertado e inquieto. Mas no seu estado empobrecido, tinha para com a comida uma espécie de oportunismo. Comeu o que foi posto diante
dele, certo de que não estava em posição de recusar, mas foi se tornando cada vez mais consciente daqueles olhares lânguidos que pousavam nele. Do seu busto também,
que subia com esforço cada vez que ela respirava com esforço, fazendo os seios pularem e o queixo afundar no pescoço, parecendo aproximar-se mais dele a cada respiração.
Ao contrário do seu costume habitual, ela não estava comendo, servindo-se, com um ar de refinamento, apenas de uma asa de frango, e agora já partindo para o segundo
copo de vinho. Seus olhinhos redondos brilhavam como bolinhas de gude. Sentia um forte impulso para estender o braço por sobre a mesa e apertar-lhe a mão. Ele nunca
adivinharia que delicados favores ela estava preparada para lhe oferecer? Quanto menos ele entendia, mais a seduzia.
- Meu amigo - exclamou ela - não pode fazer uma ideia do que tem sido a minha vida nestes últimos 15 anos aqui em Netiers.
- Infelizmente não a conheço há tanto tempo.
- Não - refletiu ela, e numa voz sumida: - Contudo, devo ao senhor o fato de ter descoberto o vazio da minha existência.
- Isso seria um mísero retorno, madame... se fosse verdade.
- É verdade. - Como ele nada dissesse, ela moveu a cabeça enfaticamente. - Sim, ao senhor, meu amigo, que me abriu os olhos para novos horizontes, com os quais antes
eu nem sonhava. Monsieur Cruchot, embora sem excessiva ternura ou delicadeza, é um homem digno. E naturalmente eu sou uma mulher virtuosa. Mas há momentos em que
a solidão me invade o coração, quando tenho necessidade de um confidente. Ah, meu amigo - suspirou ela
- quando o coração pede, quem é que pode negar? É errado procurar a realização... uma vez que seja discreta?
Sentado em silêncio, constrangido, uma rude explicação para aquele comportamento atravessou-lhe de fato o espíriro. Mas despediu-a como absurda. Contudo, sentia-se
obrigado a começar o trabalho sem demora e executá-lo o mais depressa possível. Empurrou o prato.
- E agora, madame, se lhe for agradável, podemos começar. Pensei que seria melhor fazer um esboço preliminar. A senhora posará para mim? No salão?
Ela olhou para ele e tomou um fôlego convulsivo.
- Não - replicou numa voz indistinta. - Lá em cima a luz é melhor. Levantou-se da mesa e dirigiu-se para a porta. - Eu me apronto logo. Termine o seu vinho. E depois
suba.
Ele nunca tinha estado antes no andar de cima. Após esperar cinco minutos, encaminhou-se para a escada. Estava frouxamente iluminada, e os degraus, cobertos de tapete
fino, estalavam aos seus pés. O cheiro dos queijos, postos a amadurecer no armário do corredor encheu o ar. Ao chegar à porta, encontrou-a aberta. Imaginou que dava
acesso à sala de estar, mas antes que pudesse bater, ela o chamou:
- Entre, mon ami.
Ele entrou.
Madame Cruchot estava junto à cama dupla, pedindo a sua aprovação. Tinha tirado o vestido e usava um penhoar, que, numa pose vulgar, com uma das mãos no quadril,
ela mantinha meio aberto, revelando os calções listrados, com um babado de renda pesada, que caía abaixo dos seus joelhos grossos, e uma camisola cor-de-rosa umedecida
por uma mancha de perfume que acabara de pôr, enrugada pelo espartilho.
Um suor frio inundou Stephen. Suas pupilas ardiam com cada detalhe do ostentoso mas desmazelado dormitório, o tapete ornado e as cortinas com colgadura, a cómoda
manchada, o utensílio de louça embaixo da cama, e até a camisa de dormir de Cruchot enfiada às pressas embaixo de um travesseiro. Empalideceu. Interpretando mal
os seus olhos dilatados, ela agitou a cabeça,
fingindo tremer, e então, com uma terrível coqueteria, veio para ele. Era demais. Ele recuou com uma expressão de repulsa, furioso consigo por ter caído em tal situação,
que, embora participasse dos elementos da farsa era abjetamente humilhante. Sem uma palavra, voltou-se e precipitou-se para fora do quarto.
Nessa noite, sentado no seu sótão, ouviu fortes pancadas na porta da frente, seguidas de passos pesados na escada, e logo Monsieur Cruchot invadia o seu quarto.
O merceeiro, ainda vestindo o seu melhor terno, encontrava-se num estado de cólera fabricada.
- Como se atreve a fazer propostas amorosas a minha esposa... miserável insignificante... no instante em que dou as costas? Tenho a intenção de ir diretamente à
polícia. Sempre pensei que você era uma cobrinha inglesa. Mas morder a mão que o sustenta... uma mulher de coração puro... uma mãe! Que ultraje... uma atrocidade!
Jamais torne a mostrar o seu focinho no meu estabelecimento. Mas, além disso, deve haver uma compensação... por danos... no mínimo uma pintura.
Stephen sabia que Cruchot não gostava dele, no entanto era evidente que aquela exibição era instigada pela esposa, o marido era o mensageiro da mulher despeitada.
E com uma onda de amargura, como Cruchot continuasse a ameaçá-lo, Stephen arrancou uma página do bloco que estava na mesa dele e entregou-a ao merceeiro. Era um
esboço que ele acabara de fazer de memória de madame, obesa e afetada, de calções, no quarto de dormir.
Monsieur Cruchot, silenciado pelo gesto inesperado, olhou para o desenho fatal. Sua face tornou-se lívida. Ia rasgá-lo, mas, com a esperteza nativa, considerou-o
novamente, enrolou-o cuidadosamente e colocou-o dentro do chapéu. Depois, com um olhar furtivo, voltou-se e foi embora.


CAPÍTULO V

NA MANHÃ SEGUINTE, Stephen fez a sua mochila, amarrou as suas telas num canudo e, pondo a carga ao ombro, partiu de Netiers a pé. Seu objetivo era Fougères, situada
na route nacional, a 30 quilómetros de distância, e às cinco horas da tarde, após uma sufocante caminhada através dos campos, alcançou, a cidade, erguida em ambos
os lados de uma colina cortada pela estrada principal
para Paris. Lá, encontrou um restaurante barato que lhe pareceu um ponto de parada para caminhoneiros. O garçom, ao qual pediu ajuda, tinha certeza de que surgiria
uma oportunidade, e na verdade, justamente antes das nove, parou um camion da Compagnie Atlantique com um reboque e dele desceram dois homens de macacão e entraram
no bar. Poucos minutos depois, o garçom fez um sinal, houve apresentações, explicações transitórias e um geral aperto de mãos - tudo arranjado. As coisas de Stephen
foram colocadas embaixo do assento e eles partiram.
A noite chegou quente e serena. Rodaram através de aldeias adormecidas, cidades desertas onde brilhavam apenas umas poucas luzes, passando Vire, Argentan, Dreux.
O ar quente assobiava ao lado deles, os paralelepípedos estrondejando embaixo, a lua mergulhou por trás das alamedas nevoentas de álamos. Finalmente, quando rompeu
o amanhecer pálido e escorrido, atravessaram o Sena em Neully, entraram em Paris pela Pote Neully e pararam no mercado Les Halles. Lá, Stephen agradeceu aos seus
dois amigos e deixou-os.
A cidade, ainda não acordada de todo, tinha um ar cinzento e triste, mas quando atravessou a Ponte Nova, Stephen respirou fundamente o ar úmido. Estava de volta
a Paris. Depois de Netiers sentia-se mais forte, acima de tudo cheio de uma firme determinação de demonstrar o seu talento ao mundo.
Quando o mont-de-piété da Rue Madrigal abriu as portas, ele estava à espera do lado de fora. Entrando, empenhou o relógio - um presente do pai no dia do seu vigésimo
primeiro aniversário - pelo qual recebeu 180 francos. A seguir, após uma demorada procura, achou uma acomodação numa rua lateral próxima da Place St. Séverin, um
bairro frequentado por artistas como último recurso. Era um quarteirão pobre e um quarto ainda mais pobre, escassamente mobiliado e terrivelmente sujo - somente
10 francos por semana. Imediatamente se pôs ao trabalho e, pedindo emprestados uma vassoura e um balde, limpou o cómodo. Até lavou as paredes, a fim de que parecessem
recomendáveis, embora ainda permanecessem algumas manchas de insetos.
Passava das duas; sem pensar em comida, escolheu quatro das suas pinturas e dirigiu-se rapidamente pelos quais à loja de Napoleon Campo. O vendedor de tintas estava
sentado no seu caixote costumeiro atrás do balcão, balançando as pernas curtas, usando uma jaqueta azul de piloto e boné amarelo de tricô, com as orelhas gretadas
de fora, o rosto púrpura com a barba por fazer, mãos cruzadas sobre a barriga. Saudou Stephen amavelmente, como se o tivesse visto na véspera.
- Bem, Monsieur l'Abbé, que posso fazer pelo senhor?
- Antes de tudo, deixe-me liquidar o que lhe devo.
- Obrigado, o senhor é um homem honesto.
Recebeu os 50 francos que Stephen lhe deu e enfiou-os numa velha bolsa de couro.
- E agora, Monsieur Campo, quero uma tela bem larga, 2,00 x 0,80cm.
- Ora! Tem um trabalho tão grande assim em vista? Naturalmente pode pagar?
- Em dinheiro não, monsieur. Com estes.
- Endoideceu, Abbé? Deus do céu, meu porão está abarrotado de pinturas, refugo impróprio até para a lata de lixo, que recebi por ter um coração bondoso.
- Nem tudo é lixo, Campo. Você recebeu pinturas de Pissarro, e Boudin, e Degas.
- Você é um Degas, meu pequeno Abbé?
- Um dia, talvez.
- Meu Deus, é sempre o mesmo conto de fadas. Então a sua tela especialmente grande é para pendurar no Salon, com multidões diante dela. Terá fama e fortuna da noite
para o dia. Bah!
- Então aceite 20 francos por conta e estas pinturas como penhor do restante.
Os insignificantes olhinhos azuis de Napoleon procuraram o rosto pálido e sério diante dele. Tantos, tantos rostos tinham passado por sua loja nos últimos 30 anos,
que afogavam a sua memória. Era um homem fleumático, que não se comovia facilmente, e a idade o tinha tornado ainda mais impassível. Mas ocasionalmente, embora isso
fosse raro, havia nos modos e no aspecto de algum aspirante necessitado, como agora nas curiosas feições daquele inglesinho, um tipo de intensidade que o impressionava.
Hesitou, depois desceu do seu assento e começou a remexer nas prateleiras. Quando a tela que Stephen queria - um fino linho de grão fino - estava em cima do balcão,
houve uma pausa.
- Disse 20 francos?
- Sim, Monsieur Campo. Stephen contou as moedas.
Napoleon Campo tomou uma pitada de rapé, limpando meditativamente o nariz carnudo com o punho da sua jaqueta de piloto.
- E agora, naturalmente, vai passar fome.
Houve outra pausa. Subitamente Campo empurrou as moedas que estavam em cima do balcão.
- Devolva estas à sua caixa de coleta, Abbé. E me dê os seus miseráveis borrões.
Surpreso, Stephen entregou-lhe as suas pinturas. Sem ao menos uma olhada por alto, Napoleon colocou-as embaixo do balcão.
- Mas. . . não quer vê-las?... São... as melhores que eu fiz.
- Não julgo pinturas e sim gente - replicou Campo rispidamente. bom dia, monsieur. E boa sorte.
Stephen voltou ao seu quarto com a tela às três horas, e sem demora saiu imediatamente para a loja de bicicleta da Rue de Bièvre. Até agora as coisas tinham ido
bem, mas ao se aproximar do estabelecimento de Berthelot sentiu-se nervoso e inseguro de si mesmo, embora cheio de uma viva expectativa que fazia o seu coração bater
depressa. Muitas vezes, durante os últimos meses, tinha pensado em Emmy; a recordação daqueles momentos na escuridão do corredor estreito lhe vinha de tempos em
tempos sem aviso, ainda que com uma esquisita inconsistência.
Encontrou-a no pátio atrás da oficina, curvada sobre uma bicicleta niquelada, reforçada e pintada de vermelho e ouro. Vê-la outra vez deu-lhe uma sensação de calor
por dentro. Ela ergueu os olhos quando ele apareceu, aceitou a sua saudação sem surpresa e continuou a acertar os rolamentos. O pulso dele ainda estava absurdamente
desigual; contudo, desde as suas excursões juntos, sabia muito bem que ela abafava qualquer mostra de afeição.
- É uma linda máquina - disse ele após alguns momentos.
- É minha. Vou usá-la em breve. - Endireitou-se, atirou uma mecha de cabelo para trás. - Então está na cidade de novo?
- Desde esta manhã.
- Quer alugar uma?
Ele abanou a cabeça.
- Tenho coisas mais importantes para fazer.
Houve uma pausa. Ela sempre fora um tanto curiosa a respeito dele, e agora, como ele pretendia, o seu interesse tinha aumentado.
- Está metido em quê?
Ele respirou rápido.
- Já ouviu falar do Prix de Luxembourg, Emmy? É uma competição aberta a todos os que nunca estiveram no Salon. Pretendo arriscar. - Depois, como se ela se voltasse
indiferente, acrescentou: - Foi por isso que voltei. Quero que você pose para mim.
- Quer dizer... - interrompeu-se, olhando para ele - ... fazer o meu retrato?
- Isso mesmo. - Procurou falar num tom casual. - Você nunca foi pintada, foi?
- Não, apesar de que já devia ter sido há muito tempo, considerando quem sou.
- Então, esta é a sua oportunidade. Pode ser muito bom para você. Os melhores trabalhos serão exibidos no Orangerie. Você certamente seria reconhecida.
Ele podia ver que a sua vaidade estava lisonjeada, mas ela hesitava, olhando-o de cima a baixo como que calculando a sua capacidade.
- Você pode mesmo pintar? Quero dizer, poderia fazer um bom retrato?
- Pode contar comigo. Porei tudo o que tenho nessa pintura.
- Sim, suponho que poria, para o seu próprio bem. - Uma ideia lhe ocorreu. - Mas eu vou excursionar no mês que vem.
- Até lá há tempo suficiente. Se você vier todos os dias durante três semanas, posso pintar os detalhes depois que você for.
Novamente podia ver que ela debatia as possibilidades.
- Bem - disse ela, por fim, na sua maneira desgraciosa. - Não me importo. Acho que não vou perder nada.
Ele reprimiu uma exclamação de satisfação e alívio - não somente tinha querido pintá-la desde o começo, mas ela seria perfeita para o assunto que naquelas últimas
e poucas horas havia se apoderado dele. Rapidamente, deu-lhe o seu novo endereço, pediu-lhe que estivesse lá às 10 da manhã seguinte, usando o seu suéter preto e
a saia pregueada, e despediu-se antes que ela pudesse mudar de ideia.
Vagabundeando pela avenida, sentia-se excitado pelo que tinha realizado nesse dia. Só então se lembrou que não comia desde que dividira um sanduíche com o motorista
do camion na noite passada. A fome o atacou como um tapa. Mergulhou numa épicerie, onde comprou um pão comprido e uma tranche de salsicha. Não conseguia ficar quieto.
Andando pela rua escurecida diante do Jardin des Plantes, mordia alternadamente o pão estalante e o suculento patê embutido no seu branco envoltório de toucinho.
Como era gostoso. Sentia-se feliz, livre, e estranhamente exaltado.


CAPÍTULO VI

No DIA SEGUINTE, ele estava pronto e esperando impacientemente, a tela preparada, quando ela chegou, com uns 20 minutos de atraso.
- Aí está você! - exclamou ele. - Pensei que não viesse mais.
Ela não respondeu, mas da porta olhou em torno para o quartinho miserável com as pranchas nuas, uma cadeira de bambu quebrada e uma cama sobre roletes, afundada
no meio.
- Você está quebrado, não?
- Mais ou menos.
- Você tem topete. Trazer-me para um trou destes. Nem ao menos tem onde pendurar as minhas coisas.
Ele corou, mas forçou um sorriso.
- Admito que não seja o Elysée, mas nío é mau lugar para pintar. Dê-me uma chance e eu prometo que não se arrependerá.
Ela baixou o lábio numa espécie de careta, mas, com um dar de ombros, entrou e deixou que ele lhe tirasse o casaco e a postasse diante da janela.
A luz era boa, e, cheio de um súbito hausto de força, ele começou a tracejar a composição que agora o obcecava. Como as regras do concurso exigiam uma pintura "clássica",
seu tema seria alegórico, embora moderno na composição, e o assunto era: Circe e Seus Amantes. Poderia a sua absurda aventura com Madame Cruchot, trabalhando no
fundo do seu inconsciente, inflamar uma centelha que incendiasse essa estranha visão? Símbolos e imagens enchiam a tela da sua vista, cativando os sentidos. Na sua
imaginação, o prazer lutava com a virtude, e a luxúria se revelava na forma dos seios à espreita. Tudo ainda era uma miragem; no entanto, nos íntimos e misteriosos
recessos da sua alma, sentia a força para fazer aquele sonho existir.
Embora pudesse ter continuado o dia inteiro, ao meio-dia, advertido pela expressão da moça, Stephen lhe disse que talvez fosse o bastante para aquele dia. Imediatamente,
ela atravessou o quarto e examinou a tela, onde, usando carvão, ele já tinha feito seu esboço, de corpo inteiro e bem definido. As sobrancelhas ergueram-se e o olhar
amuado deixou o seu rosto quando ela se viu ocupando o centro da tela, de pernas separadas, mãos plantadas nos quadris, uma atitude que era toda sua. Não disse nada
enquanto permitia que ele a ajudasse a vestir o casaco, mas na porta se voltou e acenou a cabeça.
- À mesma hora, amanhã.
Durante a tarde, enquanto a luz durou, ele trabalhou no plano de fundo. E no dia seguinte, e nos que se seguiram, continuou, nem sempre de ânimo elevado, mas com
um propósito que o transportara através de momentânea melancolia para novos transes. Ao mesmo tempo, à medida que prosseguiam as sessões e ele entrava em contato
mais íntimo com Emmy, não mais podia ficar cego ao aprofundamento dos seus sentimentos por ela. A cada dia, terminada a sessão, dava consigo a sentir falta dela,
mais e mais. Na ausência de Peyrat e Glyn, estava sozinho. Mas isso explicaria o seu constante desejo pela companhia dela? Zangado consigo mesmo, lembrou o quanto
não gostara dela no seu primeiro encontro, e como ela às vezes o irritava com a sua grosseria e falta de educação. Quando ela estava de mau humor e ele tentava conversar
com ela, as suas respostas eram monossilábicas, e quando lhe dizia que descansasse, ela continuava a ignorá-lo, deitava-se de barriga na cama, acendia um Caporal
e mergulhava numa revista esportiva amarrotada. Percebeu que ela não tinha atenção para com ele e que somente a vaidade a trazia regularmente ao seu quarto. Uma
dúzia de vezes por dia ela ia observar a marcha do trabalho, e embora nunca o elogiasse, congratulava-se consigo mesma.
- Estou saindo bem, não é?
A lenda da Odisseia, da filha de Helios e da ninfa do oceano Perse, que ele explicou para ela, mexeu-lhe com a fantasia. A ideia de que tivesse o poder de transformar
seres humanos em formas animais provocou-lhe um sorriso.
- Bem feito, pra eles aprenderem.
Essa vulgaridade estremeceu-o. E contudo não era inibidora. Que haveria naquela moça para provocar o seu premente interesse? Procurou descobrir. Que sabia realmente
dela? Muito pouco, exceto que era comum, dura e insignificante - uma pequena nulidade, desinteligente, sem imaginação, completamente empedernida. Não sabia nada
de arte, não tinha interesse pelo seu trabalho, e se entediava quando ele falava. Mas a sua figura era esquisita - não estava reproduzindo cada linha sutil dos seus
membros fortes e esbeltos, o ventre chato e os seios firmes? - e acima de tudo ela era pequena. Embora pudesse admirar na tela a carne voluptuosa das mulheres de
Rubens, o seu gosto sempre fora por uma perfeição menos arredondada. E ela possuía essa nitidez física, uma figura que ele sempre comparava à Maja de Goya. Contudo,
ninguém poderia chamá-la de bela. Tinha um encanto travesso, mas os seus lábios eram finos, as narinas um tanto puxadas, e a sua expressão, quando não alerta e vigilante,
era quase carrancuda. Curioso é que, todas as suas imperfeições eram aparentes para ele. Contudo, não afetavam em nada aquela estranha emoção que, a despeito de
todos os seus esforços para suprimi-la, crescia nele.
Desejava estar ao lado dela e sentia-se inquieto e nervoso quando ela se retirava. Desordenadamente afetado pelos seus humores variáveis, respondia a eles de uma
maneira que o fazia desprezar a si mesmo. Em raras ocasiões, quando ela se mostrava agradável, o seu coração se animava. Às vezes, nessa disposição tagarela, ela
fazia perguntas sobre o único assunto que, entre todos os outros ligados a ele, parecia interessá-la.
- É verdade que os seus pais têm uma grande proprieté em Sussex, com muitos acres de boa terra?
- Não muitos - sorriu ele. - Se Glyn lhe disse isso, exagerou.
- E você ia ser um padrezinho... até que eles o tiraram do seminário.
- Você sabe que eu saí por minha vontade.
- Para viver num quarto como este? - perguntou, incrédula.
Encolheu os ombros, mas sem desprezo - lisonja que o gratificou. Essa afabilidade, embora não causasse alívio, era um agradável contraste com a mortificante indiferença
com que ela geralmente recebia as suas tentativas para agradá-la. E enquanto ela posava, indolente como um gato, ele começou a contar-lhe, sem parar de pintar, histórias
sobre Stillwater que achava pudesse entretê-la e diverti-la. Quando finalmente esgotou o repertório, ela refletiu por alguns momentos, e então declarou:
- É certo que vivi com, isto é - corrigiu-se - entre artistas toda a minha vida. Eu própria sou uma artista. Compreendo que se abandone alguma coisa pela arte, quando
isso não é nada. Mas você está numa categoria diferente. E abandonar a sua bonne proprieté, que você poderia herdar... - fez pausa e encolheu os ombros - ... foi
imbécile.
- Não completamente - sorriu ele - ou eu não a teria encontrado. Veio-lhe uma súbita onda de anseio. Deteve-se, não ousando olhar para
ela.
- Você não percebe, Emmy?... que estou gostando terrivelmente de você?
Ela riu-se brevemente e levantou um dedo avisador,
- Nada disso, Abbé. Isso não faz parte do nosso acordo.
Derrotado, retomou o trabalho. E por toda a noite sentiu a dor da rejeição. Se ao menos pudesse sair com ela à noite - ela, que apreciava diversões vulgares - achava
que podia conquistar sua simpatia. Mas sua falta de recursos o impedia. Vivia com pouco mais de meio franco por dia, subsistindo com um pão ou uma maçã até às seis
horas, quando tomava sua solitária refeição no café mais barato das redondezas.
Certa tarde, quando suas sessões de pose já estavam terminando, ela chegou, mais atrasada do que de costume. Aparentava ótimo humor. Usava um fichu amarelo novo
com uma curta jaqueta vermelha ataviada de rendas, e seu cabelo estava recém-lavado.
- Você está muito bem - cumprimentou Stephen. - Eu quase desisti de esperá-la.
- Tenho um encontro com Peroz. O escritório dele fica bem longe... no Boulevard Jules Ferry. Mas consegui o contrato que eu queria.
- Ótimo - sorriu ele, sem mencionar que a sua partida o deprimia. Quando parte?
- A 14 de outubro. Houve um adiamento de duas semanas.
- vou sentir a sua falta, Emmy. - E inclinando-se para ela: - Mais do que você pensa.
Ela riu de novo e ele notou que os seus dentes eram agudos e regulares, com espaços definidos entre eles. Então, com vivacidade, acentuando as suas observações,
ela começou a descrever como conseguira o melhor de Peroz ao estabelecerem os termos do seu contrato.
- Dizem que ele tem bom coração - concluiu ela. - Acho que ele é apenas um gobeur... um mole.
Sabendo que a sua conversa geralmente a aborrecia, Stephen encorajou-a a continuar falando sobre si mesma. Então, como não houvesse mais luz, guardou os seus pincéis.
- Deixe-me andar com você - disse ele. - Está uma bela noite.
- Muito bem, se quiser - concordou ela, dando de ombros.
Quando ela apanhou as suas coisas, eles desceram a escada e dali a pouco chegaram ao Boulevard Gavranche, onde uma escuridão quente lançava um halo em torno das
lâmpadas da rua, envolvendo a cidade muda em misteriosa beleza. Casais passavam lentamente, de braço dado, nas calçadas tranquilas a noite parecia feita para os
namorados. Numa rua lateral perto do rio, passaram por um café, onde com a música de um acordeom, havia gente dançando sob uma pérgula, com lanternas chinesas penduradas
nos ramos dos plátanos. A cena estava cheia de luz e alegria, e Stephen podia sentir os olhares interrogativos de Emmy lançados para ele.
- Gostaria de dançar?
Tomado por um demorado embaraço, consciente da sua inépcia, ele abanou a cabeça.
- Eu não seria muito bom nisso.
Era verdade. Ela encolheu os ombros.
- Você não é bom em muita coisa, não é? - disse ela.
Chegaram às sombras dos quais. O Sena fluía em silêncio, uma corrente lisa e verde, sob o vão baixo da Pont de l'Alma. Como se estivesse entediada pelo seu silêncio,
ela caminhava um pouco adiante, começando a trautear a canção tocada pelo acordeom no cabaré.
- Espere, Emmy. - Ele se chegou para o abrigo de um arco. Ela o Olhou de lado, por sobre o ombro.
- Que é que tem na cabeça, Abbé?
- Você não vê... o quanto significa para mim?
Pôs um braço em torno dela, atraindo-a para si. Durante uns poucos momentos, insensível como o poste de iluminação, ela deixou que ele a abraçasse, e depois, com
um movimento brusco de impaciência, empurrou-o.
- Você não entende nada disso.
Havia desprezo na sua voz.
Ferido e humilhado, fraco de emoção frustrada, sentindo a verdade da observação, ele a seguiu para a rua. Caminharam para a Rue de Bièvre. Diante da loja de bicicletas,
ela olhou para ele como se nada tivesse acontecido.
- Posso ir amanhã de manhã?
- Não - disse ele amargamente. - Não será necessário. Voltou-se, furioso com ela e enojado consigo mesmo.
- Não se esqueça - gritou ela. - Quero ver o quadro quando estiver terminado.
Ele a odiava por sua dureza, sua falta de generosidade comum - ela sequer tivera pena dele. Disse a si mesmo que nunca mais tornaria a vê-la.
Na manhã seguinte, quando acordou de uma noite inquieta, lançou-se apaixonadamente na contemplação do quadro. Até agora, só a figura central
tinha tomado forma, havia ainda o tema a ser desenvolvido. O tempo se tornara úmido e sombrio, a luz era pouca, o seu estúdio improvisado varrido por correntes de
ar, mas nenhuma dificuldade parecia tão grande que ele não pudesse vencer. Na sua busca de realismo, ia todas as tardes ao Jardim Zoológico; depois, voltando para
o seu quarto, transferia as abjetas criaturas para a tela, com algo da sua própria tristeza e sujeição. No fim dessa semana, o seu dinheiro acabou - procurando uma
moeda para comprar o seu petit pain, não pôde achar um único soldo. Sem se abater, continuou a pintar o dia todo com uma espécie de fúria.
Na manhã seguinte, sentiu-se fraco e tonto, mas ainda assim forçou-se a prosseguir no trabalho. Quando chegou a tarde, porém, um raio de razão se infiltrou pelas
névoas que agora obscureciam o seu cérebro. Percebeu que se não comesse para viver, simplesmente isso, nunca terminaria a Circe - a menos que pudesse achar algum
meio de sustento. Sentado na beira da cama, refletiu por um instante e depois foi ao canto onde estavam as suas pinturas de Netiers, selecionando três que eram especialmente
brilhantes e coloridas. Eram boas, satisfaziam-no, davam-lhe confiança. Embrulhou-as em papel pardo e, com o rolo debaixo do braço, saiu para atravessar o Sena ao
longo dos Champs Elysées para o Faubourg Saint Honoré. Era um ato de coragem. Contudo, o tempo para meias medidas tinha passado. Estava resolvido a oferecer o seu
trabalho ao melhor negociante de arte da França.
Na esquina da Avenue Marigny, um logradouro principalmente ocupado por pequenos edifícios de apartamentos e suntuosas lojas de haute couture, deteve-se diante de
uma rica mas comedida fachada de pilares paládicos e pedra branca talhada. Depois, retesando-se decididamente, passou pela porta veneziana dourada e entrou num vestíbulo
calçado de mármore, com painéis de jacarandá e colgaduras de veludo vermelho, onde se achou diante de um jovem de paletó com abas abertas, sentado atrás de uma escrivaninha
Luís XVI laqueada e com ouropel. Através do cortinado lá atrás, via-se um amplo salão, igualmente esplêndido, embelezado por grandes buques de lírios em vasos de
alabastro e cheio de quadros belamente iluminados, diante dos quais gente elegante se movia, e misturava, consultando os seus catálogos, conversando em voz baixa.
- O senhor tem convite para o vernissage, monsieur?
Stephen devolveu o olhar do jovem maneiroso, que, por baixo do seu sorriso profissional, examinava-o com extrema cautela.
- Não. Eu ignorava que havia uma exibição. Vim para ver Monsieur Tessier.
- Qual o assunto, monsieur?lis
- Pessoal.
O sorriso, de inefável polidez, não vacilou.
- Receio que Monsieur Tessier não se encontre na casa. Contudo, se quiser tomar uma cadeira, irei verificar.
Quando Stephen sentou-se, o jovem levantou-se graciosamente e deslizou para dentro. Mas quase ao mesmo tempo uma porta lateral se abriu e três pessoas entraram na
sobreloja - uma mulher, muito elegante, de preto, carregando uma miniatura de poodle, enfitado e fantasticamente frisado; seu acompanhante, um homem idoso, entediado
e distinto, impecavelmente vestido, dos sapatos marrons ao chapéu; e Tessier, que Stephen reconheceu imediatamente, uma figura cortês, de rosto moreno, barbeado,
com o lábio inferior saliente e olhos de bistre. O marchand estava falando, sensatamente com reservada animação e movimentos comedidos das mãos.
- Asseguro-lhe que é uma perfeita gema. A mais fina que me chegou em vários anos.
- É linda - disse a dama.
- Mas o preço! - interpelou o seu companheiro um tanto soturno.
- Já lhe disse, cavalheiro. Por 100 mil, é inquestionavelmente um preço de ocasião. Mas se não o deseja para o senhor, tem somente que me dizer. Virtualmente, tenho
compromisso com outro cliente.
Houve uma pausa, um toque na manga do acompanhante, um murmúrio de conversação íntima, e então:
- Pode considerar a pintura vendida.
Uma inclinação de cabeça, não obsequiosa, mas gravemente aprovando semelhante bom gosto, foi a única resposta de Tessier. Contudo, não os levou até a porta, e quando
se voltou, parecendo meditativo, de cabeça baixa, mãos cruzadas atrás das costas, Stephen foi ao seu encontro.
- Monsieur Tessier, peço-lhe que me desculpe pela intrusão. Poderá dar-me cinco minutos apenas do seu tempo?
O negociante ergueu os olhos vivamente, perturbado nos seus pensamentos, certamente relacionados com cálculos e seu olho empapuçado, com a imediata percepção de
algo encontrado com desagrado em ocasiões anteriores, apreciou a figura maltrapilha que tinha diante de si, dos sapatos enlameados e encharcados ao embrulho malfeito
que trazia debaixo do braço.
- Não - murmurou ele. - Agora não. Como vê, estou inteiramente ocupado.
- Mas monsieur - insistiu Stephen, abalado mas com determinação. - Só lhe peço que veja o meu trabalho. Será demais um artista solicitar-lhe isso?
- Então o senhor é um artista? - O lábio de Tessier reentrou. - Felicito-o. Sabe que cada semana sou assediado, atacado e importunado por pessoas que se intitulam
génios e imaginam que eu desmaiarei num êxtase quando contemplar os seus execráveis esforços? Mas nunca tinha encontrado um com o atrevimento de me procurar aqui,
no auge da minha exibição de outono.
- Lamento perturbá-lo... mas o assunto é um tanto urgente.
- Urgente para mim... ou para o senhor?
- Para ambos. - Stephen engoliu convulsivamente. Na sua agitação, falou sem controle. - O senhor acaba de vender um Millet por uma soma considerável. Perdoe-me,
não pude deixar de ouvir. Dê-me uma oportunidade e eu lhe mostrarei um trabalho tão fino como qualquer coisa vinda de Barbizon.
Tessier relanceou os olhos para Stephen, notou a sua aparência perturbada, a dilatação dos seus olhos.
- Por favor - disse ele de maneira fatigada, abandonando o argumento.
- Mais uma vez, rogo-lhe.
Afastou-se para um lado, entrou no salão e um instante depois perdia-se de vista. Stephen, que tinha começado, com pressa nervosa, a desfazer o embrulho, ficou por
um momento muito pálido; depois, com uma expressão estranha, andou para a porta. Ao chegar à rua, o barbante, mal amarrado, desatou-se e as três telas caíram na
calçada molhada e escorregaram para a sarjeta.
Apanhou-as com cuidado, com uma ternura quase ridícula. O simples ato de abaixar-se fez-lhe a cabeça dar voltas. Mas teimosamente, com uma intensidade quase fanática,
disse a si mesmo que não seria derrotado. Havia outros negociantes de quadros em Paris, menos arrogantes, certamente mais acessíveis do que esse intolerável Tessier.
Vagarosamente, caminhou, através do tráfego, para a Rue de la Boétie.
Duas horas depois, molhado e ainda atrapalhado pelos três quadros, estava de volta à Place St. Séverin, tão exausto que mal pôde subir para o seu quarto. Na verdade,
na metade da escada sentou-se num degrau para recobrar o fôlego. Ao fazê-lo, a porta junto ao patamar abriu-se e apareceu, vestido para sair, de tamancos, camisa
sem colarinho e um sobretudo surrado, um homem de cerca de 30 anos, alto e moreno, com uma pele descorada e olhos fundos de semita. Ao descer, quase tropeçou em
Stephen, recuou e estudou-o com um sorriso amargo, peculiar.
- Não teve sorte? - exclamou.
- Não.
- Tentou com quem?
- A maioria deles... de Tessier para baixo.
- Salamon?
- Não me lembro.
- Ele não é mau. Mas nenhum deles está comprando agora.
- Tive uma oferta. Duzentos francos para falsificar um Breughel.
- E você aceitou?
- Não.
- Ah, a vida tem seus pequenos vexames. - E depois de uma pausa: - Como se chama?
- Stephen Desmonde.
- Chamo-me Amédée Modigliani. Venha tomar um drinque.
Dirigiu o caminho de volta ao patamar e abriu a porta do seu quarto. O seu apartamento era quase idêntico ao de Stephen, mas talvez mais sórdido. Num canto, ao lado
da cama por fazer, havia uma pilha suja de garrafas vazias, e no centro um cavalete com uma pintura quase terminada, um nu reclinado.
- Gosta? - Servindo dois Pernods de uma garrafa que tirara do armário, Modigliani inclinou a cabeça para a tela.
- Sim - disse Stephen após um momento.
Havia na pintura um estilo pessoal, marcado por seus esforços numa linha arabesca, algo de monumental e puro.
- bom - disse Modigliani, passando-lhe o copo - mas esse quadro porá o comissário de polícia atrás de mim. Ele já proclamou que os meus nus são escandalosos.
O absinto, fortalecendo Stephen, clareando o seu cérebro, evocou uma nota de recordação.
- Você não exibiu nos Indépendants? Le Joueur de Violoncello?
O outro fez um gesto afirmativo.
- Não era o meu melhor trabalho. Mas foi vendido. Agora eles não comprarão nada. Na verdade, se não fosse o meu talento para plongeur no Hotel Monarque, eu teria
sido gentil com os meus críticos e deixado de existir.
- Um plongeur? - Stephen não compreendia.
- Sim, gostaria de experimentar o trabalho? vou para lá agora. É um emprego fascinante. Um leve sorriso, saturnino, apareceu nas suas feições impassíveis, cor de
oliva. - E eles sempre apreciam um empregado novo.
- Tentarei qualquer coisa.
Saíram juntos e começaram a andar em direção à Etoile. O Grand Monarque, um dos famosos hotéis parisienses, era uma imensa construção palacial no estilo Terceiro
Império, ocupando um quarteirão inteiro, logo depois dos Grands Boulevards. Imponente e digno, um tanto fora de moda, com degraus de mármore, tapetes vermelhos,
as vastas salas públicas com lustres cintilantes, um bando de atendentes esvoaçando atrás das portas de metal polido, como sentinelas, para receber os embaixadores,
dignitários estrangeiros e príncipes nativos, que estavam entre os seus visitantes, dava uma sensação de opulenta magnificência. Modigliani, contudo, quando chegaram
ao pórtico central, não tentou uma entrada, mas guiou o caminho em torno de um canto escuro e por uma passagem que dava para as dependências dos fundos, flanqueada
por uma bateria de latas de lixo amassadas; um lance de escadas admitiu-os no subsolo.
Era menos um subsolo do que uma imensa adega subterrânea, com o teto úmido e pingando, atravessada por uma confusão de tubos de ferro, de paredes
escamadas, pegajosas de bolor, o chão de pedra-britada com água de despejos até os tornozelos, tudo fracamente iluminado por umas poucas lâmpadas elétricas nuas,
cheio de vapor, barulho e uma confusão babélica de vozes. Ali, numa comprida calha, uma fila de homens, arrebanhados, parecia, na ralé de Paris, estava febrilmente
lavando pratos que uma turma de ajudantes de cozinha continuava trazendo apressadamente, embraçadas, das cozinhas contíguas. Agora, pensou Stephen, após acomodar
os olhos àquela visão de pesadelo, sei o que significa um plongeur.
Entrementes, Amédée tinha se aproximado do contremaître, que, com um olhar indiferente para Stephen, entregou-lhe um disco de metal com um número estampado e marcou
o tempo a giz, diante desse mesmo número, numa ardósia que pendia do seu cubículo, ao lado de um aviso que advertia que se alguém fosse apanhado tirando porções
de alimento seria sumariamente processado.
E agora, imitando seu companheiro, Stephen tirou a sua jaqueta e, tomando lugar na fila, começou a lavar os pratos do jantar empilhados na pia. Não era trabalho
fácil, curvado sobre a calha baixa, e não havia interrupção. O odor da água espumosa nunca mudava, o mau cheiro da graxa e restos de comida era nauseante. Periodicamente,
a pasta de restos entupia o ralo e tinha que ser retirada com a mão. Era estranho, durante esse processo, ouvir um leve sopro de música polida vindo da orquestra
no pátio de palmeiras lá em cima.
Cerca das 11 horas, o ritmo diminuiu, e antes da meia-noite houve uma parada definitiva, que indicava que as damas e cavalheiros lá de cima tinham Sido alimentados.
Amédée, que durante todo o tempo não pronunciara uma única palavra, pôs o seu casaco, acendeu um cigarro e, com um movimento da cabeça, chamou Stephen para a porta,
onde o contramestre, após uma olhadela na pedra do tempo, pagou a cada um 2 francos e 50.
Lá fora, ainda em silêncio, ele caminhou de ombros caídos pelas ruas escuras e, cinco minutos depois, guiou o caminho para um bistro que ficava aberto a noite toda.
Ali, enquanto Amédée bebia vários Pernods, Stephen consumiu um pratarrão de pot-au-feu, grosso de boas verduras e pedaços de carne de carneiro. Era a sua primeira
refeição satisfatória em muitos dias, e sentiu-se melhor.
- Não quer alguma coisa? - perguntou ele.
- Isto é carne e pão para mim. - Amédée olhava com dura indiferença para o fluido esverdeado e opalescente do seu copo, que segurava com os dedos manchados de nicotina.
- Tem sido a minha dieta há muito tempo.
Sentado no café deserto, as luzes amortecidas, a mesa de bilhar lá atrás, protegida para a noite, o garçom solitário, semi-adormecido, com o seu guardanapo sobre
a cabeça, atrás do balcão, Amédée revelou alguma coisa de si mesmo em frases lacónicas.
Nascido na Itália, provinha de uma família de judeus italianos, estudara, a despeito das interrupções causadas por doenças, em Florença, e na Academia de Veneza.
Nos últimos sete anos, inspirado pelos primitivos e pela arte negra, tinha trabalhado em Paris, às vezes com o seu amigo Picasso, e ocasionalmente com Gris. Não
tinha vendido praticamente nada.
- Assim é que agora - concluiu ele, com o seu sorriso sombrio mas inquieto - me vê enfraquecido pela pobreza, pelo excesso de álcool, e pelo uso de drogas nocivas.
Sozinho, a não ser por uma moça que teve a desgraça de me conhecer. Despido de qualquer reputação. - Emborcou o resto da bebida e levantou-se. - Mas alegre pelo
fato de que jamais aviltei a minha arte.
Disse boa-noite, sem ênfase, na escada que levava aos seus aposentos.
Por breve que tivesse sido, aquele estranho encontro foi providencial para Stephen. Agora, aguentando todas as noites cinco horas de trabalho suado nos porões fumegantes
do Grand Monarque, podia sobreviver e, o que lhe parecia mais importante, continuar a trabalhar com toda a sua força na Circe.
Finalmente, cerca de três semanas depois, numa tarde seca e fria, terminava o trabalho. Lá estava ela, naquela atitude familiar de descuidada insolência, indiferente
mas aliciante, com seu rosto pálido e olhos enigmáticos, aquela moderna filha de Helios, tendo como fundo não o palácio de Aiaia, mas a rua de um bairro miserável
de Paris onde se agrupavam os seus amantes vencidos, mudados e degradados na forma de bestas, e que, domados e abatidos, olhavam para ela com um desejo servil, como
se ainda estivessem sedentos por suas carícias.
Exaurido por esse esforço final, Stephen foi incapaz de avaliar sua obra, que tomara uma forma fantástica por força de uma compulsão a que ele não pudera resistir.
Sabia apenas que nada mais podia acrescentar, e, em um espasmo de impaciência nervosa, embrulhou o quadro no mesmo papel pardo amassado que já usara antes e o levou
para o Institut des Arts Graphiques, na Place Redon. Lá, um funcionário idoso tomou o seu nome e anotou meticulosamente todos os detalhes em um livro; depois, constatando
que a tela não tinha moldura, relutou em aceitá-la.
- O senhor vê, monsieur, a especificação é de montage.
- Não notei.
- Mas é evidente. Olhe, monsieur, todas as outras peças estão corretamente montadas.
Stephen, relanceando os olhos por uma comprida galeria com dezenas de pinturas, sentiu uma súbita apatia. De uma maneira ou de outra, não se importava.
- Não posso comprar uma moldura. Aceite como está ou não aceite.
- Isso é muito irregular, monsieur. Mas, se quiser, deixe-a.
De volta ao seu sótão, sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, tomado
por uma letargia de pós-criação. E agora... que faria? Impossível continuar no Monarque - sua alma revoltava-se com essa ideia - contudo estava à beira da indigência.
Tirante as roupas que usava, o equipamento de pintura, e 15 soldos, não possuía nada de valor material. Tudo mais tinha empenhado. Levantou-se e olhou no armário.
Continha a metade de um pão, duro como pedra, e uma fatia de queijo. Lá embaixo, Amédée estava ausente há três dias, submerso numa das farras em que periodicamente
sucumbia, e da qual emergiria, entontecido, em alguma remota região da cidade. Atrás da divisão de madeira, o casal da porta ao lado tinha começado uma briga, gritando
um para o outro. Crianças brincando, discutindo, aumentavam a barulheira. Apesar da janela aberta, o quarto estava abafado pelo ar viciado da cidade, e nos lambris
rachados começava a usual procissão noturna de baratas.
Tudo isso, bastante difícil de aguentar, não era nada porém comparado com a insuportável sensação de solidão e privação que lhe torturava o peito. Não mais amortecido
pelo analgésico do trabalho, o seu desejo de que Emmy voltasse era mais forte do que antes. Ao contrário de Ulisses, nSo tinha uma erva mágica para proteger-se contra
o seu encanto. Culpava-se por não a ter convidado para ver o quadro. No dia seguinte ela tinha partido, indo para o sul com a troupe de Peroz - não a veria antes
de pelo menos seis meses, se é que tornaria a vê-la. Lembrando-se da enfatuação que Madame Cruchot tivera por ele, tremeu com a peça que o destino lhe tinha pregado
- agora era ele quem assumia o ridículo papel.
Não tinha nada em que se ocupar, nem ao menos um livro para ler; sentia-se inteiramente mole para se aventurar às ruas. Quando anoiteceu, deitou-se na cama, mas
não pôde dormir. O dia seguinte era terça-feira, e surgiu com um suave e límpido amanhecer. Ele se levantou e se vestiu. A ideia dos veículos do circo partindo naquela
tarde para o campo aberto e a ensolarada Côte d'Azur atormentava-o novamente. De repente, sem quê nem por quê, veio-lhe uma ideia. Por um momento, ficou imóvel,
parado no meio do soalho. Seria capaz disso? Ao menos poderia tentar. Apanhando o chapéu, saiu rapidamente do quarto e tomou, trémulo, a direção do Boulevard Jules Ferry.


CAPÍTULO VII

NUMA EXTENSÃO DE TERRENO COMUM, logo após os taludes de Angeres, naquela tarde de sol muito brilhante para o fim de outubro, o Circo Peroz armou
a sua cidade de lona vermelho vivo. As barracas de espetáculos secundários já estavam em ação, uma musiquinha vinha do carrossel das crianças, e os aboyers começavam
as suas exortações aos poucos espectadores presentes.
No seu stand, no fim de uma linha de barracas, vestido com uma blusa azul, boina, uma frouxa gravata preta, vestuário composto para sugerir às mentes rústicas a
altura da arte parisiense, Stephen respirava longamente o ar do campo, aromatizado com a fumaça de lenha, cascas de laranja, serragem fresca, tanino, e o cheiro
dos cavalos. A seu lado aprumava-se um cavalete enfeitado com uma tabuleta que o exaltava como Grand Maître des Academies de Londres et Paris, e prometia uma semelhança
exata, feita à mão, de perfil ou de frente, em carvão de primeira qualidade, por apenas cinco francos, em cores ricas e permanentes por sete francos e cinquenta,
cortesia e serviço iguais aos dispensados às cabeças coroadas da Europa, satisfação assegurada.
Ouviu-se o relincho de um garanhão, o agudo clangor de uma corneta e o grunhido fraco de uma leoa velha. Com a sua tosse praticamente desaparecida, Stephen experimentava
uma súbita recuperação do seu bem-estar físico. Não lamentava o impulso que o levara a Peroz três semanas antes.
- Aproxime-se, aproxime-se, cavalheiro. Vamos, senhor, convença mademoiselle a ter o seu lindo rosto pintado. Não seja modesto. Deixe um retrato para os seus netos.
Um casal de campônios, de braço dado, vestido com as suas roupas domingueiras, hesitava à sua frente, e então corando, a moça tomou coragem e aproximou-se. Não era
bonita, mas ele, em poucos e rápidos traços, esboçou a sua figura na folha que estava no cavalete, deu relevo à sua coifa de renda fina, aos bordados à mão dos seus
punhos, e, ensinado pela experiência, não esqueceu o broche de camafeu, um óbvio tesouro de família, que ela usava no corpete.
Enquanto isso, uma pequena multidão se juntava, ouvindo-se murmúrios de aprovação pelo retrato terminado, e logo ele estava trabalhando bastante. Para ele, não era
mais que um processo mecânico executado sem pensar; contudo, divertia-se em dar a alguns dos seus retratos uma individualidade irónica, detendo-se no detalhe de
uma feição particular, um olho bovino, uma orelha grande, um nariz bulboso, como acontecia às vezes nas noites de sábado, quando um cliente era ofensivo, desenhando
com malícia uma caricatura que, as mais das vezes, provocava o riso dos outros.
Às seis horas, a multidão diminuía, como sempre, antes da função principal do circo, e apanhando a sua tabuleta e tirando a blusa e gravata, Stephen entrava por
um labirinto de cordas e lonas para um pequeno recinto atrás da barraca contígua. Ali, acocorado diante de um vivo braseiro, um homenzinho enrugado, de perneiras
gretadas e culotes sujos de veludo cotelê, estava cozinhando o jantar. De pernas tortas, cabelo cortado rente, tinha feições nítidas,
castigadas pelo tempo, exceto o nariz, que era chato e quebrado. Seus olhos eram miúdos como contas, parados, e o fulgor do braseiro lhes dava calor.
- Que temos esta noite, Jo-jo?
- O de sempre. - Jo-jo olhou para cima. - Mas também um pouco de salsicha de carne de porco fresca, de Angers, que achei na Tur Toussaint. É uma das duas especialidades
desta cidade.
- E a outra?
- Cointreau, naturalmente, mon brave. É feito aqui.
As salsichas, respingando numa frigideira, pareciam cheias de promessas. promissoras. Jo-jo, que na sua mocidade tinha sido jóquei, depois vendedor de barbadas,
depois cavalariço, e depois bookmaker, e que finalmente tinha sido aconselhado a sair de Longchamps, era um cavador perito. Conhecia todas as tramóias da França.
Ninguém gostava mais de regatear no mercado ou de pegar uma galinha extraviada de uma granja à beira da estrada.
- Gostei destas duas noites aqui. - Stephen deu lugar no braseiro para o coador de folha do café. - Amanhã estamos de folga até as três. Pretendo dar uma olhada
no rio.
- O Loire é um bom rio - disse Jo-jo com um ar de quem sabe das coisas. - Fundo bom de areia, com muito peixe bom. Vou deixar umas iscas de noite e ver se temos
sorte. De fato, todo o país é bom para nós - Tours, Bolis, e especialmente Nevers. O vinho é um tanto fraco, mas a bóia é de primeira, e as mulheres... essas putas
da Touraine, grandes atrás e na frente... - Assobiou e revirou os olhos.
Enquanto ele falava, a aba da barraca se abriu e entrou um homem de aspecto estranho, com calças de xadrez e suéter caqui de gola rulê. Era alto e franzino, tão
dolorosamente magro que parecia um esqueleto, e o rosto e mãos - únicas partes visíveis do seu corpo - estavam cobertos por uma espessa crosta de escamas cor de
cobre. Era Jean-Baptiste, que participava de um dos mais pobres caminhões com Stephen e Jo-jo. Manso, taciturno e melancólico, era um caso extremo de psoríase crónica,
uma doença da pele, indolor mas incurável, sendo exibido aos curiosos como o Crocodilo Humano, produto da união de um sáurio feroz e de uma nadadora do Rio Amazonas,
com o que ganhava uma modesta subsistência.
- Teve uma tarde boa, Croc? - perguntou Stephen.
- Não muito - respondeu Baptiste sombriamente. - Nem um íntimo.
Essa era a parte mais proveitosa da técnica de Croc em descobrir-se lentamente, das extremidades para baixo; quando chegava ao umbigo, fazia uma pausa e, deixando
seus olhos correrem pela plateia, exclamava dramaticamente, com uma espécie de sedução macabra:
- Para revelações mais íntimas, estou à disposição na tenda dos fundos. Ingresso especial para essas revelações privadas, apenas cinco francos.
Quando a comida ficou pronta, sentaram-se em volta do braseiro - uma grande caneca de sopa fumegante, seguida pelas salsichas, duras mas suculentas, temperadas com
ervas do campo, um molho com pedaços de pão fresco cortados com uma faca dobradiça. Somente depois que se juntara à troupe, Stephen aprendeu a saborear os aumentos
comidos ao ar livre. Depois houve café, quente, forte e arenoso, servido na caneca de sopa. Então Jo-jo enrolou um cigarro e, com o ar de um mágico, tirou do bolso
dos quadris uma garrafa do límpido licor da região.
- Que tal um gole de vinho do altar, Abbé?
O apelido tinha seguido Stephen de Paris - ele não se importava. Passaram a garrafa de mão em mão, bebendo o claro e ardente licor sem copos. Jo-jo enrolava-o na
língua.
- Você pode confiar nele. Feito com as melhores laranjas de Valença.
- Uma vez me aconselharam a nunca comer frutas. Outra vez me disseram que não comesse outra coisa - disse Baptiste, que gostava de falar no assunto da sua doença.
- Ao todo consultei 19 médicos. Cada um deles mais tolo do que o outro.
- Então tome outra dose do meu remédio.
- Ah, isto é que é remédio para mim!
- Você não pode se queixar, Croc. Não tem uma existência rica e interessante? Você experimenta as delícias de viajar. Em suma, você é famoso.
- É fora de dúvida que muitas pessoas têm viajado 50 quilómetros para
me ver.
- E não tem um grande sucesso com as damas?
- Tenho mesmo. Exerço um certo fascínio sobre elas.
Diante desta séria admissão, Jo-jo soltou uma risada. Depois, apagando o cigarro, levantou-se para ver os cavalos.
Era a vez de Stephen lavar as panelas. Quando terminou, ao lusco-fusco, as luzes produzidas pelo gerador brilhavam como vaga-lumes sobre a feira. Olhando, sentia
todos os seus sentidos despertados. Não tinha visto Emmy todo o dia. Mas ela não gostava de ser perturbada antes do espetáculo, e o povo já convergia para a grande
tenda. Guardou o cavalete e o resto da tralha numa caixa, debaixo do seu beliche no caminhão, vestiu as suas roupas comuns e caminhava para a entrada dos fundos
do picadeiro. De acordo com o seu contrato, era seu dever acompanhar os membros de terra da companhia, que indicavam aos espectadores os seus lugares, vendiam programas,
sorvetes, citronade, e aquela marca de nugá feita especialmente em Paris para o Circo Peroz.
Parecia a Stephen uma excelente "casa" - o circo tinha uma reputação merecidamente popular através das províncias, e, com bom tempo, a mercadoria dos stands era
em geral totalmente vendida. Esta noite, fila após fila de rostos expectantes e rosados se ergueram da serragem do picadeiro. Subitamente,
na sua alta plataforma, vestido de vermelho e dourado, quando a charanga atacava uma grande marcha, o mestre do picadeiro, o próprio Peroz, apareceu de cartola,
alamares brancos e capa escarlate, dirigindo um cortejo de póneis que entraram na arena a meio-galope, atirando as crinas para os lados, e o espetáculo começou.
Embora, a esse tempo, conhecesse os números de cor, acocorado junto à grade do corredor da entrada dos artistas, com um bloco de esboços no joelho, Stephen acompanhava
cada fase, cada movimento do espetáculo com absorvido interesse, notando, vezes e mais vezes, os ritmos da coordenação muscular, o jogo de luzes e tons das cores
no vasto caleidoscópio cintilante, e mesmo as reações individuais, às vezes cómicas e bizarras, das pessoas da plateia.
Era fascinante, aquele novo mundo que ele havia descoberto, com os seus soberbos cavalos de alta escola, montanhosos elefantes e sinuosos leões de olhos amarelos,
seus acrobatas às cambalhotas, jograis prestidigitadores, funâmbulos da corda bamba sob os seus pára-sóis de papel. Observando, Stephen pensava na famosa peça de
circo de Manet, Lola no Arame, e na sua atual disposição melhorada sentia que podia desenhar aquele campo com igual riqueza. Desenho, sem dúvida, haveria, mas acima
de tudo a cor seria o instrumento da sua expressão. Via na sua paleta as cores puras, os ultramarinos, ocres e vermelhões, via como podia humanizá-lo sem reduzir
a sua intensidade. Criaria um novo mundo, um mundo que só ele percebia, um mundo somente para ele. Curvado no seu canto, desenhava e desenhava. Este era o seu verdadeiro
trabalho; os retratos que pintava de dia não eram mais que um meio de vida, e na pasta em sua caixa fechada já tinha dezenas de estudos que usaria numa formidável
composição.
Após o intervalo, davam entrada os artistas mais importantes - a troupe Dorando, de trapezistas; Chico, o engolidor de espadas; Max e Montz, os palhaços famosos.
A seguir, um soalho de madeira era rapidamente montado no centro do picadeiro e ouvia-se a fanfarra que conhecia tão bem, e que sempre fazia o seu coração bater.
Então, embaixo, via Emmy pedalando, usando uma blusa de cetim branco, calções brancos e compridas botas brancas. Ao chegar ao assoalhado, começava a executar, à
luz da bicicleta niquelada, uma série de evoluções que deixavam o espectador tonto, circulando e recuando e avançando, sempre no pequeno espaço, mudando de posição,
até que dirigia de cabeça para baixo segura no guidom, finalmente desmontando em movimento e fazendo complexas configurações numa roda só.
Talvez essas manobras fossem menos difíceis do que pareciam, mas o culto da bicicleta, uma paixão nacional que anualmente chegava ao auge nas agitadas semanas devotadas
ao Tour de France, tornava-a popular junto ao público. Uma tempestade de aplausos reboava embaixo da grande cúpula, seguida por um silêncio enquanto Emmy caminhava
para uma curiosa estrutura na
extremidade do picadeiro. Era um elevado escorregador, uma estreita fita de metal pintada de vermelho, branco e azul, que descia que descia quase verticalmente do
teto da tenda e terminava numa curva que subia bruscamente.
Alterando o seu ritmo, a banda exagerava a expectativa, enquanto Emmy, subindo lentamente por uma escada de corda, alcançava a minúscula plataforma do topo. Lá,
entrevista nas últimas espirais de fumaça, ela desenganchava uma bicicleta mais pesada das travas que a sustinham e segurava-a, testava o quadro, espichava os membros,
passava giz nas mãos, montava na máquina sobre a plataforma e, por um longo momento, parecia estar suspensa, quase flutuando na névoa de vapor. Os metais, que tinham
gradativamente diminuído para um profético murmúrio, vinham agora novamente à vida, apoiados por um estaccato de tambores que rufavam e reverberavam cada vez mais
alto. Era o instante que fazia Stephen desejar fechar os olhos. Jo-jo lhe dissera que, havendo perícia e coragem, o perigo era limitado; a estria branca do centro,
na qual as rodas deviam andar precisamente, tinha menos de 15 centímetros de largura, e depois da chuva, ou quando a umidade era grande, a superfície escorregadia,
apesar de enxugada, era traiçoeira. Contudo, não havia tempo para pensar - numa tempestade final de som, Emmy soltou-se, caiu parecendo uma pluma, projetou-se para
cima na curva e pousou na plataforma de madeira com uma velocidade que a carregava para fora da tenda como um raio.
No meio dos aplausos, embora não pudesse sair, Stephen escapou e rodeou para a barraca onde os artistas se vestiam. Teve que esperar 15 minutos até que ela saísse,
e imediatamente sentiu que ela não estava de humor muito amável.
- Então? - perguntou ela.
- Você esteve ótima... notável - afirmou ele.
- A pista estava molhada - um orvalho pesado - e esses fripons preguiçosos não enxugaram nem a metade. Então não sabem que é suicídio deslizar numa pista úmida?
Eu quase não desci. - Em várias ocasiões, por causa disso, tinha cancelado o número - de fato, tinha um acordo com Peroz que lhe permitia tomar essa resolução. Mas
a queixa deixou-lhe a voz. - Mas esta noite eu queria mesmo.
- Por quê?
Ela não pareceu ouvi-lo. Então, indiferente, respondeu:
- Por causa daqueles militares.
- Soldados?
- Não, estúpido, oficiais, naturalmente. Havia aqui uma escola de cadetes do primeiro ano. Não viu o grupo na frente da tribune?
- Acho que não.
- Uma turma elegante, isso era, nas suas túnicas. Eu gosto de uniforme.
E eles estavam querendo que eu os visse. Não que eu notasse, naturalmente. - A sua expressão amuada afastou-se um pouco. - Eu fiz um extra para eles.
Ele mordeu o lábio, procurando abafar o ciúme que ela tinha tanta capacidade de despertar nele. Após o calor sufocante da tenda, o ar era leve e fresco.
- Vamos caminhar até os muros da cidade... lá é muito bonito.
- Não. Não estou com disposição.
- Mas está uma noite tão linda. Olhe, a lua acaba de sair.
- E eu vou entrar.
- Não vi você o dia todo.
Nenhum músculo do seu rosto Se moveu.
- Já me viu agora.
- Apenas um momento. Venha.
- Já não lhe disse que fico cansada depois do meu número? A tensão é muito violenta. Pra você, tudo muito bem, vendendo programas e nugá lá embaixo.
Ele viu que era inútil insistir mais. Escondeu estoicamente o seu desapontamento. Chegaram ao caminhão que ela partilhava com Madame Armande, a mulher que cuidava
do vestuário da troupe. Ele tinha pensado nela o dia inteiro, sentia-se faminto por sua companhia, por um sinal da sua afeição. E ela estava ali, a sua figura ao
luar, rija, sedutora; queria agarrá-la e beijar à força o seu rosto pálido e indiferente, a sua boca ligeiramente entreaberta. Mas não fez nada disso, limitando-Se
a dizer:
- Não se esqueça de amanhã. Venho buscá-la às 10.
Viu-a subir as escadas a correr e desaparecer no caminhão.
Ao voltar, a função tinha terminado e a multidão se despejava pela saída da grande tenda, falando, gesticulando, rindo. Todos pareciam felizes, satisfeitos com a
vida e consigo próprios, ao voltarem aos seus lugares comuns e confortáveis. Stephen perdeu aquela sua primeira disposição alegre. Inquieto e perturbado, não podia
voltar ao seu canto, enfrentar as caçoadas de Jo-jo e os roncos de Baptiste. Saiu para as muralhas sozinho.


CAPÍTULO VIII

NA MANHÃ SEGUINTE, trazida por uma alvorada mansa e cinzenta, ela o surpreendeu e alegrou por sua pontualidade. Estava quase pronta quando ele chegou,
e pouco depois estavam nos seus vélos, rumando para o Loire, no belo contorno de Angeres, com as suas muralhas romanas, a Catedral de St. Maurice com suas agulhas
e as arcarias da préfecture atrás deles. Como sempre, ela imprimia um ritmo muito veloz, curvada sobre o guidom, as pernas movimentando-se como pistons, com o firme
propósito de deixá-lo para trás. A bicicleta dele, comprada barato com o seu primeiro pagamento semanal, era um modelo antigo; contudo, o ar fresco e a comida do
campo tinham-no robustecido. Embora lhe custasse um esforço contínuo ladeira acima, mantinha o seu lugar pouco atrás do ombro dela.
Atravessaram, dali a pouco, um arvoredo à esquerda e imediatamente se descortinou todo o esplendor do vale - o rio grande e largo brilhando na luz plácida, movendo-se
preguiçoso entre as ribanceiras e sobre baixios de areia dourada, passando por altos tufos de vimeiros, barcos de fundo chato atracados e ilhotas verdes. Na estrada
serpenteante, pesada pela areia, diminuíram a velocidade. Por trás de uma cortina de faias, Stephen avistou as torres pontudas e a fachada musguenta de um antigo
castelo. A beleza da região era inebriante para o seu espírito. Soerguido, olhou para a sua companheira, fez como se fosse falar, mas, depois, sabiamente, absteve-se.
Por volta do meio-dia, chegaram a um staminet à beira do rio, onde, acima da porta, um peixe monstruoso, enredado em algas, nadava numa caixa de vidro. Primeiro,
Stephen tinha proposto um piquenique, mas isso tinha pouca atração para Emmy, que sempre preferia parar em algum café provavelmente freqüentado pela confraria esportiva,
onde, numa atmosfera de camaradagem, havia livre companheirismo, vivas conversas em gíria e a música de um acordeom. A estalagem, todavia, embora possuísse um considerável
encanto, estava vazia de clientes - um fato que não desagradou Stephen, que sofria com a admiração demasiado franca que a sua companheira gostava de provocar. Atravessaram
o soalho de pedra limpo com areia, sentaram-se à mesa esfregada com escova e sabão junto a uma janela, da qual pendia um banco, e, após consultarem a proprietária,
escolheram um prato de peixe local que ela recomendara muito. Este chegou pouco depois, numa enorme travessa de madeira, um fritto de minúsculas espadilhas do Loire,
cada uma não maior do que um filhote de arenque, cozidas tão secas que se quebravam ao toque do garfo. Com eles vieram pommes frites e uma jarra de Bière Navarin,
preferida por Emmy.
- Isto é bom - disse Stephen, olhando por cima da mesa.
- Não é mau.
- Gostaria de pedir uma garrafa de vinho para mim - disse ele em tom de pedido.
- Eu gosto desta cerveja. Faz-me lembrar de Paris.
- Num dia como este?
- Em qualquer dia Paris me basta.
- Ainda assim... você não se importa de estar aqui não é?
- Podia ser pior.
Emmy não era afeita a superlativos, mas neste momento estava de excelente humor, e dali a pouco pôs-se a rir.
- Você não adivinha o que eu recebi esta manhã. Flores. Rosas. E um billet-doux de um dos oficiais.
- Ah, sim? - A sua expressão tornou-se ligeiramente rígida.
- Aqui está. Monograma gravado e tudo. Com outra risada, apalpou o bolso e tirou um bilhete cor-de-rosa amarrotado. - Dê uma olhada.
Ele não tinha vontade de ler o bilhete, mas também não queria ofendê-la. Passou rapidamente os olhos, notando o duplo sentido das frases polidas que a convidavam
a ir tomar um aperitivo na Terrasse e depois jantar no Le Vert d'Eau. Devolveu-o sem comentário.
- Ele é capitão, parece. Acho que o vi no grupo de ontem à noite. Alto e bonito, de bigode.
- Você vai? - perguntou ele, mascarando os seus sentimentos com um tom inexpressivo.
A fria ironia da sua maneira atravessou a sua auto-estima. Ela raramente corava, agora uma leve cor apareceu por baixo da sua pele branco-azulada.
- Quem é que você pensa que eu sou? Conheço essas guarnições da cidade e o que se pode arranjar com elas. Pra mim não, obrigada.
Stephen ficou silencioso. Embora se desprezasse por isso, e em vão tentasse combatê-lo, de tempos em tempos o ciúme lhe vinha num impulso dominador. A simples ideia
de que ela pudesse sair sozinha com aquele oficial desconhecido causava-lhe um sofrimento penoso. Contudo, ela declarara categoricamente que iria ignorar o convite;
assim, obrigando-se a ser razoável, forçou um sorriso conciliatório.
- Vamos descer até o rio. - Quando brigavam, era sempre ele quem procurava fazer as pazes.
Pagou a conta, e desceram à beira da água. O sol, geralmente quente para aquela época do ano, tinha esmaecido e, lançando reflexos da água que faziam fechar os olhos,
envolveu-os num banho de luz. Ele amava o sol - sol e água eram os deuses gémeos que poderia adorar. E enquanto ela acendia um Caporal e, com os olhos fechados,
relaxava numa postura cómoda na sombra de um salgueiro, ele sentou-se na claridade aberta e começou a desenhá-la. Já tinha feito dezenas de desenhos, nos quais se
refletia não apenas a intensidade do seu sentimento por ela, mas também a complexa interação de angústia, desejo e, por vezes, quase ódio que o compunha.
Não estava cego àquela forma de egoísmo, crueldade e vaidade, que em outra pessoa teria provocado o seu desprezo. Sabia que ela apenas o tolerava
- talvez porque a sua mentalidade gaulesa se detivesse nas possibilidades da grande proprieté, mas principalmente, e disso tinha certeza, porque o seu evidente desejo
a lisonjeava, dava-lhe uma sensação de poder apreciada por sua natureza. Ela lhe trazia mais sofrimento que felicidade. Contudo, nada podia fazer. Desejava-a com
uma necessidade física que, não sendo por ela satisfeita, aumentava de dia para dia.
Dali a pouco, erguendo os olhos do bloco, viu que ela estava dormindo. Deixou escapar, involuntariamente, um suspiro nervoso e irritante. Soltando o seu bloco e
creions, aproximou-se mais da margem, e então, num impulso, tirou a roupa e mergulhou no rio. Sabia, pelas excursões anteriores, que ela não gostava daquilo - tinha
uma aversão felina pela água fria - mas para ele o choque daquelas águas vindas de fontes era uma revigorante delícia.
Quando voltou, ela estava em pé, sacudindo o capim do cabelo cheio e curto.
- Você sabe deixar os outros sozinhos.
- Pensei que estivesse dormindo.
- Que horas são?
- Ainda é cedo - disse ele, aproximando-se e enlaçando-a pela cintura.
- Ainda temos mais uma hora.
- Oh, deixe-me! - Inclinou-se para trás e empurrou-lhe o peito com as mãos. - Você está molhado.
- Mas Emmy...
- Não, não. Não devemos chegar atrasados. Você não vai querer perder o seu emprego. É tão agradável e conveniente para você, não é?
- Sim, claro - respondeu ele com voz tensa. Ela já estava voltando para a estalagem e Stephen a acompanhou.
Aquele raro interesse pelo seu bem-estar intrigava-o. E não se dissipou pela sua disposição animada, quando voltavam a Augers. Em voz alta, ela ia cantando trechos
da última canção do teatro de variedades:
Les jolis soirs dans les jardins de l'Alhambra Ou donc sont les belles?
Que l'amour appelle?...
Et le rendez-vous, de l'amour très fou.
E seguindo seu hábito quando estava alegre, deixava os habitantes locais de boca aberta, com uma exibição de ciclismo difícil ao passarem rapidamente pelas aldeias
ribeiras.
Ainda não eram três horas quando chegaram ao circo, e poucas pessoas estavam diante dele. Stephen trocou de roupa e armou o seu cavalete. Trabalhou toda a tarde,
de um modo ausente, sorumbático, com as linhas da testa
cada vez mais fundas. Embora lutasse contra a ideia de que ela abreviara a excursão a fim de ir ao encontro na Terrasse, essa ideia só fazia aumentar. O crepúsculo
não lhe trouxe nenhum alívio, e durante o jantar mal trocou uma palavra com Jo-jo e Croc.
Por fim, levantou-se bruscamente e foi para o outro lado do campo, onde estava o caminhão de Emmy. Madame Armande estava sentada nos degraus, com um balde entre
os joelhos gordos, lavando meias. Em certa época, ela fizera parte de um número de trapézio, mas quebrara o quadril numa queda e desde então caminhava coxeando.
Agora, aos 50 anos, pesada e sem formas, de pernas hidrópicas e papada, era conhecida como a mexeriqueira da companhia Jo-jo, que cuspia ao ouvir o nome dela, dizia
que durante o recesso de inverno ela gerenciava um estabelecimento de reputação duvidosa no porto do Havre.
- Boa noite - disse Stephen, tentando manter a voz calma. - Emmy está?
Madame Armande mediu-o de esguelha com os seus olhos miudinhos.
- Mas Abbé, você sabe muito bem que ela não vê ninguém antes do espetáculo.
- É só um instante.
Ela abanou a cabeça encaixada num lenço estampado com bolinhas.
- Eu não me atrevo a perturbá-la.
- Então... - Hesitou, ansioso por acreditar nela. - Está descansando?
- A mulher levantou os braços.
- E que mais? Nom de Dieu, acha que sou mentirosa?
A sua indignação era real ou fingida? Ele queria entrar no caminhão, mas a mulher e o balde bloqueavam a entrada. Não devia tornar-se completamente ridículo. Forçou-se
a fazer algumas observações convencionais, e voltou para a escuridão.
O povo chegava aos bandos, a função começava, risadas estrepitosas e aplausos enchiam a grande tenda. Ela estava atrasada. Seria por simples coincidência? Não podia
ter certeza. Procurou tranquilizar-se. Quando ela finalmente apareceu, a impressão, conforme sua fantasia superexcitada, foi de que estava mais aparatosa, mais espetacularmente
viva do que o usual. Gritos prolongados de "bravo!" vinham da tribune quando ela deixou o picadeiro.
Depois disso, na confusão de arrancar as estacas, não pôde vê-la. Melancolicamente, juntou-se a Jo-jo e Croc na tarefa de desmontar os stands. Trabalhando sem atenção,
cortou a mão num gancho de ferro. Não se importou. Um vento frio começava a fustigar o campo. O gerador foi desligado, as luzes elétricas se apagaram. Em toda a
volta, à luz de fogachos vermelhos, entre gritos e imprecações, homens trabalhavam como demónios, desencravando pontaletes, puxando cordas, lutando com grandes abas
de lona. Como sempre
acontecia na primeira hora de movimentação, os animais estavam nervosos, soltando em todos os tons, nas suas jaulas móveis, sinistros uivos de protesto. Os engenhos
de tração, pulsando e roncando, com os volantes girando, aumentavam o tumulto. Para Stephen, parecia que a cena vinha diretamente das gravuras do Inferno de Doré,
e que ele também estava sofrendo as torturas das almas danadas.


CAPÍTULO IX

DE ANGERS, O Circo PEROZ deslocou-se para Tours, depois para Blois, e então para Bourges e Nevers. O tempo se mantinha bom, o negócio prosperava, o velho Peroz usava
o seu chapéu num ângulo elegante. Após uma estada de três dias em Dijon, viraram para o sul e chegaram a Côte d'Or, detendo-se uma noite nas velhas cidades muradas,
com portões de acesso estendidas entre vinhedos, ao longo do vale do Ouche.
A princípio, Stephen era olhado com reserva pela companhia. Mas como a "retirada" semanal dos seus retratos era satisfatória, e uma percentagem fixa dessa soma ia
para o tronc, do qual todos os artistas participavam quando era distribuído em Nice, ele começou a ganhar importância. Além disso, as suas maneiras agradáveis e
disposição tranquila logo o puseram em termos amistosos com a maioria da troupe.
Formavam um painel humano. Fernand, o domador de leões que passeava destemido na jaula circular de ferro das feras, como um hussardo no seu uniforme azul e prateado,
com uma manga dramaticamente rasgada em pedaços, era o mais tímido dos homens, sofrendo agudamente de dispepsia nervosa e sendo mimado com uma dieta de leite por
sua devotada esposa. Os próprios leões eram inofensivos como vacas, na maior parte muito velhos, os machos castrados rugiam somente porque queriam o seu jantar,
e todo o aparato de cercar a jaula de auxiliares com ferros em brasa era pura encenação.
"Não tivemos um acidente em 20 anos", observava complacentemente Peroz no boletim que antecipava ao jornal local da próxima cidade do circuito.
ESCAPOU POR UM TRIZ NO CIRCO PEROZ
LEOA ATACADA DE LOUCURA
Fernand gravemente machucado
Max e Montz, ambos anões, eram os dois palhaços principais, um par internacionalmente famoso, cujo número maior era chamado "O Rapto", um esquete no qual Max, ataviado
em rendas grotescamente fora de moda, desempenhava o papel de noiva velhota. A rotina, executada num antigo automóvel Panhard que enguiçava e se recusava a funcionar,
caindo finalmente aos pedaços, era ruidosamente cómica. Max, com o seu beicinho de criança, fazia a platéia morrer de rir. Contudo, fora do picadeiro mostrava uma
melancolia mais profunda que a de Hamlet, tendo confiado a Stephen que a paixão de toda a sua vida era o violino.
Com tais incoerências diante de si, Stephen ficou menos surpreso ao descobrir que o equilibrista japonês era um adepto da Ciência Cristã, que Nina D'Amora, que cavalgava
em pêlo, era alérgica a cavalos e em consequência sofria cronicamente de asma, ao passo que Philippe, que todas as noites corria riscos espetaculares no trapézio
alto, passava a maior parte do seu tempo de folga tricotando meias.
Por formar um grupo com Jo-jo e Croc, Stephen via-os mais do que aos outros. Jean Baptiste, por baixo da sua aparente apatia, era um homem sensível e inteligente
- Stephen fez dele vários esboços notáveis, em pé na sua plataforma, diante da multidão boquiaberta. Fora bem educado no lycée de Rouen, e chegara a assumir uma
posição com boas perspectivas numa excelente firma, La Nationale. Então lhe viera aquela afecção incurável, transformando-o gradualmente de um ser normal em um monstro
medonho - um irremediável desenvolvimento - e levando-o ao desespero final de um show secundário no Circo Peroz.
Mas era a Jo-jo que Stephen dispensava uma particular atenção. O ex-jóquei era um rematado patife que roubava em qualquer oportunidade, trapaceava pelo interior
e embebedava-se até cair e ficar no chão estuporado, "curando" a bebedeira. Contudo, na sua duplicidade havia uma qualidade curiosamente humana de que se gabava:
jamais em sua vida ter deixado um amigo sem ajuda. Às vezes, de noite, depois de ter visto Emmy, quando vinha ao camion adaptado onde ele e os outros dois moravam,
Stephen surpreendia Jo-jo com o olhar peculiarmente fixo nele - menos por simpatia, uma emoção que Jo-jo era incapaz de sentir, do que por uma espécie de cínica
compreensão, levemente tingida de escárnio.
- Saiu com a sua garota?
- Parece, não?
- Divertiram-se?
Stephen não respondia.
Em várias ocasiões, o ex-jóquei parecia querer tratar do assunto, mas em vez disso encolhia os ombros e voltava-se para Jean Baptiste, iniciando com ele uma discussão
que tornava intencionalmente grosseira, como agora:
- Qual é a sua opinião sobre as mulheres, Croc?
- Considero-as com tolerante desprezo.
- Você fala como um marido.
- Sim... já fui casado. Minha esposa agora opera a passage à niveau em Croiset, no Chemin de Fer du Nord. A minha mais cara esperança é que um dia o expresso de
Paris, correndo 90 quilómetros por hora, atinja-a numa parte vulnerável.
- De minha parte, apesar de nunca ter me casado, gosto de mulheres. Mas só para dormir com elas. Para o resto, são piores que uma gonorréia.
- Mas a gente consegue isso dormindo com elas.
- Não com as minhas mulheres. Nunca escolho putas. Somente boas e honestas esposas camponesas que encontro no mercado e estão à procura de alguma ligeira variedade.
- Ah, variedade! Essa é a verdadeira palavra - à qual devo muito do meu último sucesso.
- Você, escamado?!
- Mas certamente. Tenho feito muitas conquistas com meus íntimos através da curiosidade. Mulheres entediadas com o leito matrimonial fazem qualquer coisa por uma
novidade. Li uma vez que um assassino condenado à guilhotina pode escolher dezenas de mulheres.
- Sacré bleu! Embora mereça, você não vai perder essa cabeça feia.
- Não. Mas exerço a mesma atração. Refletindo sobre a força da cauda do crocodilo, as mulheres acreditam que sou dotado de um formidável poder fálico.
- Mas você as decepciona, farceur.
- Isso só aconteceu uma vez, Jo-jo. Era uma gorda, solteirona, sem ligações, que durante meses me seguia na esperança de que os nossos repetidos enlaces produzissem
um jacaré. Infelizmente a criança nasceu normal.
Uma gargalhada profana encheu o caminhão, mas Stephen não participou dela. Sabia que o diálogo era dirigido a ele, não por qualquer intenção maldosa, mas como um
remédio administrado à vítima de uma febre renitente. Contudo, a sua doença já progredira tanto, que parecia incurável, intensificada pelos humores e incoerências
de Emmy. Às vezes ela o tratava bem, sentava-se nos degraus do caminhão, lisonjeada por suas atenções, cheia de sua própria importância, balançando os pés nus ao
sol. E conquanto não fosse pródiga com os seus favores, vez por outra, quando passeavam juntos no escuro, deixava que ele a beijasse antes de se afastar rapidamente.
Em vão ele dizia consigo mesmo que, numa natureza tão carente de profundidade, jamais despertaria uma paixão correspondente. Voltejava em torno dela como um marimbondo
em torno de uma nectarina, mas sem penetrar uma única vez na carne macia do fruto.
Numa tarde chuvosa, quando tinham deixado o agradável distrito do Saône pelo território estéril do Pays de Dombres, foram até uma pequena e dispersa comunidade de
Moulin-les-Drages. O seu destino inicial era St. Etienne, mas o trator principal quebrou na estrada, detendo uma longa fila de carros rebocados, e uma vez que o
conserto demoraria pelo menos 24 horas, era forçoso fazer um alto. Peroz, muito aborrecido por perder uma data importante, resolveu, após considerável debate, oferecer
um espetáculo em Les Drages e assim diminuir um pouco o seu prejuízo.
Mas tendo começado com má sorte, o dia continuou de mal a pior. Cartazes não tinham sido previamente afixados; a cidade, investigada, mostrou ser mesquinha e pobre,
sendo a única indústria uma olaria decadente. E a chuva aumentava continuamente. Quando chegou a noite, não havia mais de 100 pessoas na tenda gotejante.
Honrando a tradição Peroz, a maior parte dos artistas apresentou os seus números em bom estilo, voltando depois para a grande estufa da sala de estar. Emmy, contudo,
foi menos afortunada. Duas vezes, durante as suas evoluções preliminares, as rodas derraparam e ela foi atirada no chão molhado. Como resultado, cortou a parte principal
do seu número e saiu do picadeiro pedalando com a cabeça no ar. A primeira queda provocara risadas na plateia aborrecida; a segunda, uma positiva zombaria, seguida
de uma vaia com miados de gato.
Quando Stephen a viu depois, fora da tenda, ela ainda estava pálida com o vexame. Ele sabia que não devia falar, e por isso saiu com ela pela estrada em direção
ao acampamento, cerca de um quilómetro e meio distante, onde os carros estavam estacionados. Para piorar as coisas, não tinham andado muito quando desabou um forte
aguaceiro, forçando-os a se abrigar num celeiro ao lado de um campo aberto de restolho.
Quando seus olhos se habituaram à escuridão, Stephen olhou em torno, observando que o lugar estava cheio de palha. Rompeu o silêncio.
- Aqui pelo menos está seco. - E acrescentou: - Estou contente porque não apresentou hoje a parte final. Aquela gente não merecia.
- Que quer dizer?
- Bem... - Corou ligeiramente. - Eram gente um tanto antipática.
- Não notei. Eu sempre domino a minha plateia.
- Então por que não desceu?
- Porque a pista estava ensopada. Você não entende que na chuva isso é suicídio? - Num ataque de mau humor, seus olhos cintilaram para ele. Quem é você para ficar
aí me criticando? Sabe lá os riscos que eu corro todas as noites, enquanto você fica sentado lá atrás, rabiscando numa folha de papel, com menos coragem do que um
piolho? Eu desço ou não desço exatamente quando resolvo. E não vou quebrar o pescoço por nenhum padrezinho.
Ele a encarou por um momento, agora tão pálido quanto ela; depois, furioso, agarrou-a subitamente pela cintura.
- Não me fale assim!
- Largue-me.
- Só se me pedir desculpa.
- Fiche-toi le camp.
No próximo instante estavam lutando. Cego de raiva, recordando todos os insultos e desfeitas que ela acumulara nele, resolvido a vencê-la fisicamente, fechando ambos
os braços em torno dela como um lutador, tentou levá-la ao chão. Mas ela lutava como um gato selvagem, torcendo-se e revolvendo-se na palha fofa, malhando-o com
os cotovelos. Ela era mais forte do que ele julgava, com músculos curtos e poderosos de felina agilidade. Começou a respirar pesadamente, sentindo a pressão do seu
corpo contra ele. Retesando cada músculo, ele resistia. Rolaram por aqui e ali, sem decisão, até que ela, encolhendo a perna por trás dele, atirou-o longe com uma
rápida distensão.
- Está vendo? - disse ela. - Que isso lhe sirva de lição.
Ele se levantou devagar. Estava menos escuro do que antes; através da
clarabóia do celeiro, a lua era visível correndo entre as nuvens. Com um esforço, ainda tentando recuperar o fôlego, forçou-se a olhar para ela e viu, com confusa
surpresa, que ela não havia levantado; estava deitada de costas sobre a palha, com o vestido ainda desarranjado pela luta, observando-o através dos olhos apertados
com uma curiosa expressão especulativa, excitada, mas, ainda vagamente zombeteira. No seu rosto, geralmente de uma palidez fria, havia uma orla de cor, nos seus
lábios pálidos um sorriso ligeiramente mau. Por um momento, sustentou o olhar dele; depois, colocando ambos os braços embaixo da cabeça, numa atitude menos de sedução
que de expectativa, fez um movimento impaciente.
- Então, estúpido... que está esperando?
O convite que ele tanto havia procurado era inconfundível, contudo tão descarado, tão despido da menor semelhança de afeição, que ele não podia se mover. Petrificado
e repelido, mirava-a, e, girando, saiu do celeiro sem uma palavra.
- Molenga! - gritou-lhe ela. - Espèce de crétin.
Ele caminhou talvez uns 30 metros antes que o desejo lhe surgisse novamente, mais desesperado do que antes. Pouco se importava, queria-a, e haveria de possuí-la
de qualquer maneira. Virou-se e voltou.
- Emmy... - Estava fraco, encolhido de desejo por ela. Mas agora ela estava fria e dura como uma pedra.
- Vá para o inferno - disse ela outra vez zangada. - Agora espere outra oportunidade.
A expressão dos seus olhos dizia-lhe que era inútil insistir. Novamente
saiu do celeiro. Sem saber aonde ia, caminhava direto para a frente, com os olhos contraídos e os lábios apertados. Naquelas últimas semanas, vitimado por seu desejo
insaciável, reduzido a uma perpétua atitude de propiciação, já tinha sido bem humilhado. Mas agora, ferido em sua sensibilidade, sentia-se no mais baixo nível de
abjeção. Não podia, não devia submeter-se a isso.
Seus pensamentos não tomaram uma forma coerente até chegar de volta ao acampamento do circo. Uma vez que o motor enguiçado não seria reparado antes da manhã seguinte,
nada tinha sido desmontado, e no campo enlameado a grande tenda se erguia deserta e vazia. Alguma coisa buliu dentro dele. A luz brilhando através da abertura do
topo do dossel banhava o picadeiro com uma luz espectral, mostrava a pista inclinada, que não fora desmontada, brilhando de umidade. Um estranho impulso, um senso
de dever para consigo mesmo, lentamente foi tomando forma no seu espírito atormentado. Olhando para cima, viu que o equipamento ainda estava no lugar. Incapaz de
reprimir um arrepio, dirigiu-se para a escada de corda, seus pés deixando pegadas na serragem molhada. Segurou a corda e começou a subir vagarosamente. Momentaneamente
uma vertigem paralisou-o. O vento naquela altura tinha mais força, fazendo a pista oscilar, e o grande toldo, panejando e agitando-se, aumentava a sua impressão
de insegurança. Ele compeliu os seus músculos rígidos ação. Olhando para cima e usando uma mão, desenganchou a bicicleta da trava e, ainda seguro firmemente ao mastro
com o outro braço, alinhou as rodas. Montou trémulo na máquina e forçou-se a olhar para baixo.
O picadeiro, lá embaixo, era impossivelmente pequeno, um distante disco amarelo. A pista na qual ele estava pousado não tinha mais substância que uma simples fita.
Outro violento tremor lhe percorreu o corpo. Continuava seguro, podia voltar atrás. O medo petrificava-o. Lutou com ele. O que quer que acontecesse, tinha que descer.
Respirou fundo, firmou a sua posição na bicicleta, curvou-se para diante. Ao fazer isso, teve a vaga consciência de um grito, de uma figura encurtada e escura que
acenava lá de baixo. Se pretendia avisar, era demasiado tarde. Focando o olhar na lista branca central, com um supremo esforço da vontade, soltou a mão que o segurava.
Veio uma fração de segundo de voo, uma descida incrível, um empuxão para cima que o catapultou para o ar, e no mesmo instante, com um salto ruidoso, estava embaixo,
atirado com tremenda velocidade para fora do campo, estatelado na lama mole da vala que o margeava.
Por um momento lá ficou, imóvel, surpreso por estar vivo. Até que ouviu alguém correr para ele.
- Nom de Dieu... Está querendo se matar? - Era Jo-jo, desta vez em considerável estado de agitação.
- Não - disse Stephen, levantando-se tonto. - Mas acho que vou ficar enjoado.
- Seu filho da puta maluco. Que bicho lhe mordeu?
- Precisava de um pouco de exercício.
- Você está louco. Quando vi você lá em cima, pensei que estava liquidado.
- E que diferença isso teria feito?
Jo-jo encarou-o.
- Pelo amor de Deus, venha tomar um drinque.
- Muito bem - disse Stephen, e acrescentou: - Não comente isso com ninguém.
Foram até o café da aldeia. Depois de um bom copo de Calvados, a mão de Stephen parou de tremer. Lá ficou bebendo com Jo-jo, quase em silêncio, até que o lugar fechou.
O conhaque pesava-lhe na cabeça, fazendo-o sentir-se embotado e entorpecido. Mas na verdade não tinha realizado nada. A dor no coração ainda estava lá.


CAPÍTULO X

DUAS SEMANAS SE PASSARAM. Estavam em Nice. A cidade, iniciada pelos terraços de mimosas de La Burnette, era maior do que Stephen imaginava. A Promenade de Anglais,
a cintilante orla marítima, com os seus canteiros formais e hotéis ostentosos, dava uma desagradável nota pretensiosa. Mas o terreno do circo ficava bem para o interior,
na direção de Cimiez, atrás da Place Carabacel, cercado de ruas estreitas com feiras ao ar livre e pequenas barraquinhas de frutas, verduras e uma profusão de flores,
uma rede de coloridas e ruidosas passagens que tinham o encanto íntimo de Paris acrescido do calor do Sul.
- Nada mau, hein? - disse Jo-jo, expandindo o seu magro peito embaixo do colete rasgado.
- Gosta daqui?
- Muito. E você também vai gostar. - Fez um gesto abrangente. - Há muito interesse para um artista na Carabacel.
Em outro momento teria sido um entretenimento para Stephen explorar aquele bairro. Agora, tenso e inquieto, sentia que não poderia trabalhar. Mas obrigou-se a tal
com o seu bloco Ingres e fez alguns estudos dos nicenses - uma velha de touca branca vendendo alcachofras, um homem do campo
com uma rede de galinhas vivas, trabalhadores tapando um buraco na estrada. Contudo, o seu coração não estava naquilo, e ao calor do meio-dia voltou para o acampamento
a fim de descansar um pouco antes de começar o trabalho na sua barraca.
Na tarde seguinte, diante do seu cavalete na feira, completava o seu último retrato da sessão quando notou que havia um espectador atrás dele, ligeiramente inclinado
sobre uma bengala de rotim. Algo na sua postura despertou-lhe um eco na memória. Voltou-se.
- Chester!
- Como está, meu velho? - Harry rompeu no seu riso contagiante, descalçou uma luva de couro lavável e estendeu-lhe a mão. - Soube que você tinha entrado para o Peroz.
Mas por que diabo está com essa fantasia?
- Faz parte do trabalho.
- Claro, uma maneira de atrair os nativos. Mas não o faz sentir-se com cara de tolo?
- Ora, estou acostumado. Espere, que já estarei com você.
Enquanto Stephen dava rapidamente os toques finais no retrato, Chester tirou uma cigarreira e acendeu um cigarro. Espremido num traje de linho branco, sapatos marrons
e um chapéu panamá, tinha um ar abastado. Calças bem vincadas, camisa de tussor de seda, exibia uma elegante gravata-borboleta. O rosto estava bem queimado.
- Não posso acreditar que você esteja aqui. Embora tivesse dito que ia para Nice. Você parece estar bem.
- Estou em ótima forma, obrigado.
- Suponho que teve alguma sorte nas mesas.
- Para dizer o mínimo, tive. - O sorriso de Chester escureceu. - Eu estava nas últimas e apostei os 50 francos que me restavam no duplo zero. Por quê? Porque sabia
que teria menos que zero se perdesse. Deu o duplo zero. Deixei tudo. Por quê? Só Deus sabe. E deu o duplo zero outra vez. Meu Deus, você nunca viu semelhante pilha
de grandes e lindas fichas quadradas vermelhas em sua vida. Fui apanhá-la. Não pude. Alguma coisa dentro de mim dizia sorte pela terceira vez. Quando a roda girou,
quase morri. O duplo zero deu de novo. E desta vez recolhi tudo rapidamente e fui trocar no guichê do caixa. No dia seguinte mudei-me do prejuízo para Villefranche,
um pequeno apartamento. Desde então estou vivendo como um lorde. - Tomou o braço de Stephen. - Agora fale-me de você. Como vai o trabalho?
- Assim-assim.
- Vamos vê-lo.
Stephen guiou-o até o seu caminhão, apanhou algumas telas e inclinou-as, uma depois da outra, contra a calota da roda, enquanto Harry, com uma expressão profissional,
estudava cada uma a seu turno.
- Bem - declarou ele afinal. - Você pode ter algo aí, mas não compreendi bem o que é. Perspectiva? As suas pinceladas não são muito rudes?
- São intencionalmente rudes... para dar uma impressão de vida.
- Esses cavalos não são particularmente reais.
Harry apontou com a sua bengala para uma composição a têmpera de cavalos correndo como loucos numa tempestade.
- Não estou procurando expressar o óbvio.
- Obviamente não. Contudo... gosto que um cavalo se pareça com um cavalo.
- E quando você vê um homem montado nele, então tem certeza disse Stephen secamente, e empilhou as telas, percebendo que Chester não tinha a menor ideia do que ele
buscava. - Você ainda está pintando?
- Oh, naturalmente. Quando tenho tempo. Estou fazendo uma vista geral da Promenade. Às vezes saio com Lambert. Ele e Elise estão aqui. Ele pegou uma viúva americana
rica no Ambassadeurs e está dando expediente inteiro com ela.
Enquanto ele falava, soaram passos, e por trás da lona do caminhão apareceu Emmy. Quando se dirigia para Stephen, recuou de súbito, tendo notado a presença de Chester.
Uma expressão curiosa lhe assomou ao rosto.
- Que é que está fazendo aqui?
- Eu geralmente apareço quando menos se espera.
- Como um cêntimo falso?
- Desta vez como uma bela nota de mil francos - respondeu Chester amavelmente, sem se deixar diminuir. - Sentiu a minha falta?
- A privação foi insuportável.
- Não seja rude com o tio Harry. Você sabe que os seus nervos são fracos. - Consultou o relógio. - Tenho que partir. Devo estar no Negresco às seis. Mas quero que
vocês venham almoçar amanhã no meu apartamento Rue des Lilas, 11-B - ao largo do Boulevard General Leclerc. Os Lamberts também estarão lá. Os dois estão livres?
Ótimo. São apenas uns poucos quilómetros pela Corniche, o bonde passa na minha porta.
Sorrindo e acenando com a bengala, chamou um fiacre no fim do acampamento, saltou nele, reclinou-se no encosto acolchoado e mandou tocar a galope. Emmy acompanhou-o
com olhos ressentidos.
- Voyou metido a sebo. Mandando a gente tomar o bonde enquanto ele vai de carruagem.
- Não devemos invejá-lo. Ele também já teve os seus maus momentos.
- Não acredito que ele tenha acertado um coup. Deve estar vivendo com alguma velha.
- Não mesmo. Chester é o tipo de sujeito com sorte para ganhar uma bolada. Além disso, só se interessa por moças bonitas.
- Um dia ele vai ver o que é bom. - Mostrou os seus dentinhos agudos.
- Sale type. Nunca fui com a cara dele.
- Então você não irá lá amanhã...
- Claro que irei. Não seja tão fou. Faremos com que ele se arrependa da sua pretensão.
Ele a olhou perplexo. Obviamente detestava Chester. Por que, então, aceitar o seu convite? Talvez quisesse ver os Lamberts. Jamais soube o que ela tinha em mente.
No dia seguinte, quando veio ao seu encontro, ela usava um vestidinho amarelo de musselina bordada e uma fita da mesma cor em volta do cabelo cheio e curto. Deu-lhe
um pequeno sorriso com os lábios apertados.
- Podemos pegar um fiacre?
- Isso mesmo. Nada de bonde para nós.
Ela escolheu a mais elegante vitória da fila. Sentou-se confortavelmente.
- Como estou?
- Maravilhosa.
- Eu precisava de um vestido novo. Comprei este hoje de manhã na Galerie Mondial.
- É encantador - disse ele. - E assenta-lhe perfeitamente.
- Gosto de mostrar a essa gente que não sou uma coisa embaixo dos pés deles. Chester especialmente. Ele é muito cheio de si.
- Talvez, mas não é um mau sujeito. Acho-o apenas um pouco mimado. É bonito demais.
- Acha-o atraente?
- Acho que muita mulher tola já tem caído pelos seus belos olhos azuis e cabelos crespos.
Ela lançou-lhe um penetrante olhar de soslaio.
- Pelo menos eu não sou uma delas.
- Não - sorriu Stephen. - Estou um tanto aliviado por você detestá-lo. Rodaram pela Avenue Raspail, um largo logradouro sombreado de catalpas, ao longo do Boulevard
Carnot, e depois pela curva da baía para Beaulieu. O céu estava azul, uma brisa de deliciosa fragrância soprava das colinas. Ele apertou-lhe a mão, feliz - ela se
deixou segurar por um momento. Ultimamente, as atenções que ele tinha para com ela, os pequenos presentes que continuamente lhe dava, as restrições que por um esforço
de vontade impunha a si mesmo pareciam estar causando alguma impressão nela.
- Você está sendo gentil comigo - murmurou ela.
Essa ligeira observação tornou-o ridiculamente feliz. Talvez, por fim, ela pudesse aprender a amá-lo.
Dali a pouco rodavam por Villefranche. O apartamento de Chester, na Rue des Lilas, uma rua em ângulo reto com a avenida, integrava uma série de
suítes que abriam sob um balcão comum em torno de um pátio, atendidas por um pequeno hotel, o Hotel des Lilas. Um pequeno chafariz cercado de cactos gorgolejava
no centro do pátio, e tubos verdes de oleandros floridos decoravam a varanda. O lugar parecia limpo, agradável e discreto - exatamente a espécie de pied-à-terre
que Chester, com a sua inclinação para se tratar bem, acharia sem o menor esforço.
Foram os primeiros a chegar, e Harry recebeu-os efusivamente.
- Bem-vindos ao castelo ancestral. Não é grande, mas tem história.
- Má, sem dúvida - disse Emmy.
Chester riu. Vestia calças de flanela branca e um blazer azul com botões de metal amarelo. Seu farto cabelo castanho, recém-ondulado, tinha uma listra de cor mais
clara na testa.
- Se é isso o que você pensa, não posso deixá-la mentir.
Enquanto ele levou Emmy ao dormitório para deixar a sua echarpe e luvas, Stephen relanceou os olhos em torno da pequena sala de estar. Era mobiliada convencionalmente,
mas nas paredes havia duas aquarelas emolduradas que reconheceu como sendo trabalho de Lambert. Examinou-as de perto - uma era um arranjo de ervilhas-de-cheiro num
vaso Ming, a outra um bando de cegonhas paradas num lago nevoento - e ao olhá-las imaginava como jamais poderia ele ter apreciado semelhante beleza. Belamente executadas,
com uma delicadeza quase feminina, eram contudo vazias e insípidas, despidas de toda vitalidade ou intenção. Podiam ter sido feitas por uma hábil professora de arte
de uma escola superior para moças. Faziam-no avaliar que longa estrada tinha percorrido desde aqueles primeiros dias em Paris. Se a jornada fora áspera, pelo menos
lhe tinha ensinado em que consistia realmente uma obra de arte.
- Boas, não? - Chester tinha voltado com Emmy. - Lambert, num gesto muito decente, me emprestou as duas. O preço está nas costas. Há sempre uma chance de que os
meus visitantes queiram comprá-las.
Trouxe uma garrafa de Dubonnet e serviu três copos, depois passando uma bandeja de camarões frescos.
- Posso tentá-la, mademoiselle Rouquet de la baie.
- Você mesmo os apanhou?
- Claro. Levantei-me antes do desjejum.
Rearranjando o cabelo, ela olhou para ele, mas pela primeira vez com menos animosidade.
- Que grande mentiroso!
Harry riu-se gostosamente.
- Também sou muito bom nisso.
A campainha tocou e os Lamberts entraram. Pareciam pouco mudados, embora Philip estivesse mais gordo, mais lânguido nas suas maneiras. Usava
um terno cinza com um cravo azul na lapela e trazia pendurada no indicador uma caixinha de pâtisserie amarrada com uma fita.
- Trouxe-lhe alguns bolinhos do Henri, Chester. Acompanharão o café. Naturalmente, você está lembrado da minha gulodice, Desmonde. - Espichou-se comodamente no divã
e delicadamente aproximou as suas finas narinas da flor que tinha na lapela. Elise, que vestia o inevitável verde, e cujo sorriso parecia um tanto mais fixo do que
antes, estava conversando com Emmy.
- Agora, conte-me tudo como um bom menino.
Stephen começou um relato a seu respeito, mas antes que fosse muito longe viu que Lambert não estava prestando atenção, e interrompeu-se.
- Você sabe, Desmonde - disse Philip num tom ligeiro e divertido eu desejaria, pelo seu próprio bem, que você não se tivesse metido nessas coisas pesadas. Você não
pode atacar a arte com uma picareta. Por que suar como um britador de pedras? Faça como eu e use um pouco de delicadeza, um pouco de habilidade. Eu nunca trabalhei
demais, e no entanto clientes não me faltam. E eu vendo. Admito que tenho talento, e isso torna as coisas mais fáceis para mim.
Stephen ficou silencioso. Podia muito bem adivinhar a facilidade de Lambert. Mas o anúncio de Chester, dizendo que o almoço estava servido, salvou-o da resposta.
A refeição fornecida pelo hotel lá de baixo era esplêndida, servida por um jovem garçom que, para apresentar uma comida tão quente, devia ter executado estranhas
proezas de agilidade nas escadas. Uma lagosta cozida à moda da terra, seguida de um risotto de frango, e depois um queijo soufflé; antes, Harry, com o toque de um
perito, tinha feito saltar a rolha de uma garrafa de Veuve Cliquot. Quanto mais alegre a mesa, porém, mais Stephen se sentia completamente alheio a ela. Em certa
época tinha apreciado aquela sociedade, mas agora, apesar do enorme esforço para se coadunar com ela, fracassava tristemente. Que lhe tinha acontecido para que se
sentasse ali, mudo, com a consciência mortal de que não mais pertencia a ela? Emmy, bebendo mais champanhe do que devia, exibia tolas personificações de Max e Monx
que faziam Chester, agora mais ruidoso do que nunca, estourar de riso. Lambert, a quem Stephen tinha antes admirado, parecia-lhe agora exatamente como Glyn o via
- um poseur e diletante, um amador fracamente dotado. Perfeitamente amaneirado, bem-educado, garantido por sua pequena renda regular, recusando-se a ser perturbado
ou excitado, flutuava a esmo, nunca se exercendo a sério, tocando de leve o creme da vida. Cultivando mulheres, arranjava clientes que lhe encomendavam retratos
ou que pagavam bons preços por seus leques e aquarelas. Elise, com o seu sorriso fixo e perfil nítido, mostrava sinais dessa existência. Sua aparência começava a
murchar e as rugas a juntar-se embaixo dos seus
olhos verdes e pestanudos; contudo, embora a sua capacidade de lisonjeá-lo já estivesse um tanto gasta, a sua inexaurível devoção fazia dela, cada vez mais, uma
parceira complacente naquele jogo de blefe artístico, cujo mero pensamento levava Stephen a remexer-se mais inquieto na cadeira.
Depois do café e bolinhos, dos quais Philip, desculpando-se com uma delicada alusão literária ao jovem com as bombas de creme de Stevenson, comeu cinco, sentaram-se
na sacada. Continuando a monopolizar a conversação, descreveu, com irónica meticulosidade, as deficiências faciais e sociais da mulher idosa que retratava atualmente.
- De fato - concluiu ele aereamente - não se poderia esperar mais da viúva de um enlatador de carne de porco de Chicago.
- Imagino que o cheque dela foi bom.
- Bem... naturalmente.
Embora tentasse livrar-se da sua apatia, Stephen via o tempo passar com interminável lentidão. Por fim, cerca de três horas, aproveitando um intervalo na conversação,
olhou para Emmy.
- Acho que temos de ir agora.
- Oh, tolice - protestou Chester. - A tarde ainda é jovem. Vocês não podem nos deixar agora, de modo nenhum.
- Se eu não for chegarei tarde no meu emprego.
- Então por que você não fica, Emmy? - sorriu Harry afavelmente. Houve uma pausa. Stephen notou sua hesitação, mas ela logo sacudiu
bruscamente a cabeça.
- Não. Eu vou agora.
Despediram-se, o porteiro lá embaixo conseguiu-lhes um fiacre. Ao dobrarem a esquina, fora da vista do hotel, Stephen inclinou-se para ela.
- Foi bondade da sua parte vir comigo. Gostei disso.
- E eu não gosto de me tornar fácil.
Não era a resposta que ele esperava; no entanto, animado pela recente mostra de sua consideração, chegou-se mais perto, sob a coberta do avental da carruagem, e
procurou-lhe a mão.
- Não - disse ela, empurrando-o irritada. - Não está vendo como me sinto?
E ao voltar-se surpreso, ela, com franqueza vulgar, deu uma desculpa que, se fosse verdade, teria talvez causado a sua prematura partida.


CAPÍTULO XI

APÓS O TUMULTO E EXCITAÇÃO das viagens através das estradas do país, muitos membros do Circo Peroz acharam agradável estabelecer os seus alojamentos de inverno na
Côte d'Azur. Ali era a sua base; muitos tinham relações em Nice, Toulouse e Marselha, e com mais tempo disponível, poderiam visitá-las. Embora o negócio continuasse
firme, o programa tinha sido reduzido para cinco espetáculos por semana, e após a grande noite de domingo, segunda e terça-feira, ficavam livres.
Os amigos de Stephen já haviam Se acomodado à nova rotina. Max reiniciara as suas lições de violino e podia ser visto, todas as tardes, com a caixa preta em forma
de pêra debaixo do braço, partindo no trote miudinho forçado por suas diminutas pernas. Croc, por outro lado, passava a maior parte do seu tempo na Bibliothèque
Nationale, curvado sobre grossos volumes, expondo na volta, a Stephen e Jo-jo, uma nova versão de Schopenhauer, ao passo que Fernand, parecendo gasto e sonhador,
ia todas as manhãs, de braço dado com a esposa, a um homeopata de Cimiez para a irrigação diária prescrita para o seu flux intestinal. Mais prático, Jo-jo tinha
achado uma ocupação subsidiária nas cavalariças do Negresco, onde, a pretexto de lavar as carruagens, passava a maior parte do tempo tagarelando com cocheiros e
motoristas, levando um livrinho sobre as corridas locais e comentando sarcasticamente, com o canto da sua boca de ratoeira, os visitantes que entravam e saíam do
hotel.
Stephen, por sua vez, tinha começado o desenho preliminar para uma pintura na qual pretendia utilizar os estudos individuais feitos na grande tenda, a que pretendia
chamar Grcus. Esse arranjo complexo, um agrupamento de inumeráveis figuras com as suas cores combinadas e contrastantes, era difícil e, desde que ele não tinha estúdio
nem tela suficientemente grandes, propunha-se seguir o precedente dos antigos mestres e construir a sua composição, primeiro que tudo, numa escala menor e menos
rigorosa. A ideia lhe surgiu à medida que progredia, e ele começou a sentir que semelhante material, recolhido em semanas de paciente observação, devia dar um magnífico
resultado.
Desde o dia do almoço no Hotel des Lilas, o barómetro dos humores de Emmy tinha lentamente chegado a "bom tempo". Após esse evento, não tinham
mais visto Chester ou os Lamberts, e parecia que essa ligação estava finalmente rompida.
No fundo do espírito de Stephen, talvez por uma observação de Glyn, sempre havia a ideia de uma afeição entre Chester e Emmy. Era-lhe gratificante o fato de que
Emmy tivesse aceito a brusca interrupção de sua amizade com tão pouco interesse. Ela, como os outros, tinha voltado a sua atenção para Nice. A irmã de Madame Armande,
que morava nos arredores, logo após o subúrbio de St. Roch, tinha uma pequena chapelaria dedicada principalmente à produção e venda de chapéus de palha de carnaval.
Emmy, como muitas moças francesas, tinha talento para os trabalhos de agulha, e todas as tardes tomava modestamente o bonde para ganhar algum dinheirinho na oficina
do Chapeau de Paille. Como resultado, Stephen via-a menos do que o usual. Contudo, experimentava um certo conforto íntimo com esse aspecto inesperadamente sossegado
da sua natureza. Tal atividade, no entanto, devia ser terrivelmente monótona, e ele disse para si mesmo que devia procurar quebrar essa monotonia. No Clarion de
Nice, descobriu que uma companhia lírica, cumprindo um contrato no Casino Municipal, faria uma representação de La Bohême na segunda-feira seguinte. Esse romance
ultrapassado da vida de estudante em Paris talvez a entretivesse, e no seu encontro seguinte ele falou no assunto.
- Você quer ir ao teatro na segunda?
- Teatro? - Pareceu ligeiramente perturbada. - Você não está ocupado com a sua pintura?
- Não de noite, com certeza.
- Bem... se você quiser.
- bom. vou comprar as entradas hoje.
Andou todo o caminho até o Casino e comprou duas cadeiras no grand circle, e então, sabendo o quanto ela gostava de "uma noite fora", reservou uma mesa no restaurante
para a ceia nessa mesma noite. Começou a esperar o evento com aquela antecipação que tão dolorosamente o afetava sempre que pensava em ficar a sós com ela.
Segunda-feira chegou. Quando terminou a sua sessão na barraca, banhou-se com água da bacia no lado de fora do seu alojamento e vestiu o seu terno e uma camisa limpa
que lavara na véspera. Justamente quando se aprontou, ouviu passos atrás dele. Voltou-se e viu uma expressão de pesar nos olhos de Emmy.
- Que houve?
- Não posso ir com você esta noite.
- Não pode?
- A irmã de Madame Armande está de cama, com l agrippe. Tenho que ficar com ela.
- Madame Armande pode fazer isso.
- Sim, mas há pedidos de urgência para atender.
- Talvez...
- Não. Tenho obrigação de ir.
Houve uma longa pausa.
- Bem... suponho que não tenha jeito.
Ficou terrivelmente abatido, mas não se importava em mostrá-lo.
- Você deve convidar alguém. Não desperdice as entradas.
- Ora, para o diabo os bilhetes! Que importam eles?
- Sinto muito. - Deu-lhe um tapinha condoído.
- Outra noite, quem sabe.
Aquele ar de interesse preocupado diminuiu a sua decepção. Todavia, ao vê-la apressar-se, indo em seguida despejar lentamente a água cheia de espuma de sabão da
bacia, a sua tristeza era tão grande, que Jo-jo, que acabava de voltar, descansando com os cotovelos no degrau, tendo testemunhado a recente cena, veio fazer perguntas.
- Como vai a coisa? - Falava sem tirar a palha que tinha entre os dentes.
- Muito bem.
- Você está todo emperequetado.
- Estou vestido, se é isso que quer dizer.
- Aonde ia?
- Ao teatro. Venha comigo. É La Bohême.
- Variedades?
- Não, ópera.
- Ópera? Ah, não. Mas vamos tomar um drinque no Mas Provençal. Atravessaram a praça em direção a um café das proximidades. Era um lugar reles mas agradável, com
compridos bancos e mesas na calçada. No interior obscuro, um piano mecânico estava tocando, e o pessoal se achava sentado em mangas de camisa. Jo-jo acenou para
alguns operários que, a caminho de casa, tinham parado para uma caneca de cerveja.
- Qual é o seu veneno, Abbé?
- Qualquer coisa... Vermute.
- Vermute Quelle blague. Você vai tomar é um conhaque. - Pediu em voz alta um Pernod e um conhaque.
As bebidas foram trazidas por uma raparigona de braços nus, vermelhos, e seios redondos, cheios debaixo da blusa, como cocos.
- Aí está uma garota para você. - com mão prática, Jo-jo filtrou o Pernod através de um torrão de açúcar, e tomou um gole confortante do líquido opalescente. - O
nome é Suzie. E não é poule. Por que não experimenta a sorte? Essas mulheres grandalhonas gostam de homens pequenos.
- Ora, vá pró inferno!
Jo-jo riu brevemente.
- Isso é melhor. O problema com você, Abbé, é que nunca se entrega.
- Que quer dizer?
- Sacré bleu! Você pode se desamarrar um pouco. Então nlo fiquei sabendo que você tem tutano - aquela noite... quando desceu na pista? Voando com todo o seu corpo.
Fique alegre, embebede-se e divirta-se.
- Já tentei isso. Comigo não dá resultado.
- Há um chá dançante todas as noites no Negresco. De muita classe. Pode ser interessante.
Havia uma intenção esquisita na voz de Jo-jo, mas Stephen simplesmente abanou a cabeça.
Jo-jo abriu os braços resignado. E depois disse:
- Que aconteceu com a beleza da bicicleta?
- Teve que ficar com a irmã de Madame Armande.
- Armande tem irmã? Haverá duas cadelas iguais neste mundo infeliz?
- Ela tem uma chapelaria em Lunel, atrás de St. Roch. E está doente.
- Uma obra de caridade - fez Jo-jo, baixando a cabeça. - Uma segunda Mademoiselle Nightingale.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual ele continuou a olhar para Stephen com um satírico aperto nos lábios. Uma vez, pareceu que ia falar, mas em vez disso encolheu
ligeiramente os ombros, pediu novas bebidas com um gesto, e começou a falar sobre as corridas do dia seguinte.
Às sete horas, deixaram o café; Jo-jo foi dar água e comida aos seus árabes, e Stephen ficou só. Sentia-se melhor, aquecido e mais alegre depois de três conhaques,
mas ainda assim tinha pouca disposição para ir sozinho ao Casino. A noite era deliciosamente linda - e seria uma pena gastá-la num teatro abafado. De repente lhe
veio uma ideia, Lunel não ficava muito longe, apenas uma viagem de bonde de 20 cêntimos. Por que não dar um pulo até a oficina de Madame Armande e, mesmo que fosse
obrigado a esperar até que ela terminasse o seu trabalho, voltar com Emmy? Com sorte, poderiam até chegar a tempo para o jantar.
A perspectiva apressou os seus passos e ele atravessou o Boulevard Risso para a Place Pigalle, onde, sem dificuldade, achou um bonde para a zona norte. A viagem
foi lenta, e mais longa do que ele supunha, mas não eram oito horas e ainda havia luz quando ele chegou ao seu destino. Lunel, como cidade, era surpreendentemente
pequena e pouco desenvolvida, o terreno plano quase todo ocupado por hortas, pouco mais que uma coleção de casinhas novas de estuque margeando uma única rua não
calçada. Stephen subiu e desceu duas vezes essa rua sem encontrar o Chapeau de Paille. Na verdade, as poucas lojas que lá havia em nada se pareciam com uma fábrica
de chapéus. Intrigado e confundido, Stephen ficou um momento parado, enquanto rajadas de vento
levantavam poeira em toda parte, e então foi à agência do correio, que, funcionando na mesma casa de uma épicerie, ainda estava aberta. Ali, em resposta às suas
indagações, ficou sabendo que não havia modista, e positivamente nenhuma fábrica de chapéus, em Lunel.
Com uma expressão curiosa na face, sentado no canto de um bonde quase vazio, Stephen voltou para Nice. O veículo sacolejante deixou-o meio tonto. Teria cometido
um engano estúpido por ouvir mal o nome do lugar que ela lhe tinha dito? Não, estava certo de que ela dissera Lunel, não uma, mas diversas vezes. Não o teria despistado,
inventando aquela desculpa à última hora? Isso também era impossível - ela vinha visitando a irmã de Madame Armande diariamente nos últimos 15 dias. Sua expressão,
se havia, tornou-se ainda mais fixa. Estava bem escuro quando chegou a Carabacel. Tudo tranquilo e deserto no acampamento. Teve um impulso de ir ao seu alojamento
e ver se ela tinha regressado, mas o orgulho e uma sensação de cansaço físico o contiveram. Já tinha se tornado suficientemente ridículo sem fazer uma cena àquela
hora. Entrou no seu caminhão, deitou-se no beliche e fechou os olhos. Tiraria tudo a limpo com ela de manhã.


CAPÍTULO XII

No DIA SEGUINTE, embora acordasse cedo, não a viu até as 11 horas, quando ela apareceu nos degraus do vagão de chinelos e um penhoar de algodão azul e branco. Sentou-se
no primeiro degrau, segurando uma xícara de café. Ele foi até ela.
- bom dia... Como deixou a sua doente?
- Oh, bem melhor.
- Chamou o médico?
- Naturalmente.
- Espero que não tenha sido nada sério.
Ela tomou um gole de café.
- Eu lhe disse que era uma gripe.
- Mas isso não é contagioso? - disse solícito. - Você deve se cuidar.
- Eu me cuido.
- Estou falando sério... venta muito em Lunel. E o bonde demora muito a chegar.
Ela olhou para ele em silêncio sobre a beira da xícara.
- Que é que você sabe de Lunel?
- Estive lá ontem à noite.
Ela o olhou desconfiada, e deu uma risada.
- Não brinque comigo. Você foi ao teatro.
- Não, eu fui a Lunel.
- Por quê?
- Pensei que podia comprar um chapéu. Infelizmente, não pude achar nenhuma chapelaria.
- Aonde é que você quer chegar.
- E também não encontrei nenhuma irmã de Madame Armande.
- Quem diabo você pensa que é, metendo o nariz nos assuntos dos outros? Saindo para me espionar. Seu rato sujo.
- Pelo menos não sou mentiroso.
- E quem é que mentiu? Falei a verdade. Se eu quisesse, poderia ter levado você lá. Onde você andou zanzando ontem à noite, não sei. Mas o lugar existe sim. Além
do mais - ajuntou ela com um toque final - a irmã de madame é viúva; o nome dela não é Armande. E agora talvez você vá cantar noutra freguesia e me deixe tomar o
meu café em paz.
Com o coração batendo como um martelo, Stephen olhou para ela com um misto de raiva e desespero. Sentia que ela estava mentindo - quando a ocasião exigia, ela podia
ser escorregadia como uma enguia. Mas a sua própria veemência era suspeita. Contudo, era até possível que falasse a verdade. Queria com toda a sua alma acreditar
nela. Sempre pronto a imputar a falta a si próprio, ponderou que aquele terrível aperto que sentia no coração poderia tê-lo levado a julgá-la mal. O desejo de reconciliação
apoderou-se dele e o enfraqueceu.
- Eu esperava tanto a nossa noite juntos.. . - murmurou ele.
- Isso não é desculpa.
- Seja como for, vamos esquecer isso.
- Só se me pedir desculpas por ter me chamado de mentirosa. Pede?
Ele hesitou, mordendo nervosamente os lábios, de olhos baixos. Seu orgulho impedia-o de aceitar aquela humilhação por parte dela. Mas a necessidade que tinha dela
tornava-o abjeto.
- Está bem... se quiser. Sinto tê-la ofendido - disse ele, extraindo à força as palavras que o faziam sentir-se desprezível.
Passou o resto do dia dilacerado pela indecisão, desejando estar com ela. Serviu-lhe de algum consolo observar que ela não saíra do acampamento. À noite, retirou-se
para o seu alojamento imediatamente depois do espetáculo. Mas sabia que não poderia continuar daquele modo, isso era impossível; de uma maneira ou outra, precisava
certificar-se.
No dia seguinte, após o almoço, quando ela saiu para a Place Pigalle, ele a seguiu. Ao saber de casos semelhantes, sempre desprezara o marido desconfiado ou o amante
ciumento que espionava a mulher que lhe causava suspeitas. Agora não podia evitá-lo. Mas ele não era nenhum especialista no assunto e, no seu esforço para não ser
visto, perdeu a sua presa no terminal da Pigalle. Contudo, vira que ela tinha tomado um bonde na direção do passeio público, e como outro estava no ponto, embarcou
nele. Em 15 minutos estava diante da costa. Procurou Emmy apressadamente em torno, andou até a esplanada e voltou, contornando o Casino, mas não viu nenhum sinal
dela. Então, como estava indeciso, de repente se lembrou do jeito de Jo-jo ao falar no chá dançante do Negresco. Embora a possibilidade parecesse remota, atravessou
a rua, entrou nos jardins do Musée Masséna e olhou por cima das grades de pontas douradas, através da Rue Rivoli, para o terraço coberto do hotel. Ao lado, sob um
toldo estendido do saguão até uma pequena plataforma com mesas de chá, uma orquestra, escondida entre as palmeiras, executava uma marcha que alguns casais dançavam.
A princípio, pensou que ela não estava lá. Então, por trás do biombo da folhagem, outra parelha saiu para a pista. A moça sorria quando, com um gesto prático, estendeu
os braços para o companheiro, que a enlaçou pela cintura. Deslizaram juntos - Chester e Emmy.
Imóvel, com a face estranhamente inexpressiva, Stephen ficou a olhá-los, observando como se moviam graciosamente. Seus passos combinavam perfeitamente. Quando a
música parou, permaneceram de pé, juntos, e quando o bis começou, prosseguiram sozinhos. Tão perfeita era a sua exibição, que os deixaram monopolizar a pista, e
quando afinal foram sentar-se, receberam um murmúrio polido de aplausos.
Stephen arrancou-se dali, caminhou lentamente para o passeio público e sentou-se num banco do qual podia ver a entrada do hotel. A dor no seu coração era quase insuportável.
Apertava os olhos ao pensar em como ela o havia enganado. Como ela e Chester deviam ter rido juntos com a invenção da chapelaria fictícia, e a sua crença inteiramente
falsa de que ela estava modesta, industriosamente trabalhando com a agulha, quando durante todo o tempo tinha estado com Harry. Madame Armande era inquestionavelmente
outra parceira daquela peça burlesca e tinha sem dúvida espalhado a notícia entre os membros da companhia. Certamente Jo-jo sabia que ele estava sendo um grandíssimo
tolo, embora, por pena, nada tivesse dito.
No entanto, tudo isso não era nada diante da angústia e da amarga fome da alma que agora o possuíam. Maior ainda que a sua raiva e mortificação, era aquela frenética
intensificação dos ciúmes e do desejo. Através da mágoa e da humilhação, ainda a queria; através do ódio, ainda tinha necessidade dela. E sentado ali, com a cabeça
entre as mãos, procurara achar desculpas para racionalizar
a conduta de Emmy. Afinal de contas, ela estava apenas dançando com Harry, e isso decerto não era um crime. Conhecem-se muitos parceiros de dança que não sentem
nada um pelo outro e estão unidos por não mais que um prazer puramente impessoal pela arte.
A música continuou a tocar intermitentemente até as seis horas, e quando a pista esvaziou, ele viu os músicos saírem com os seus instrumentos. Seguiu-se um demorado
intervalo. Com toda a certeza, Harry e Emmy tinha ido ao bar - imaginava-os muito juntos nos bancos altos, Harry à vontade e descansando, na maior intimidade com
o barman.
Demoraram tanto a reaparecer que ele começou a temer que tivessem deixado o hotel por outra saída. Mas, por fim, já quase noite, filas de luzes coloridas se acenderam
na frente e eles apareceram, descendo os largos degraus do pórtico, e se dirigindo para o passeio. Falando junto, animadamente, passaram tão perto que ele poderia
tê-los chamado. Mas manteve os lábios apertados, e quando já estavam uns 30 metros adiante, levantou-se, quase automaticamente, e seguiu-os.
Não foram muito longe. A uma pequena distância do Casino, deixaram o passeio público, tomaram a rua lateral do Marche aux Fleurs, na Cidade Velha, e entraram num
pequeno restaurante - a Brasserie Lutétia. Jantar para dois, pensou Stephen sombriamente, e teve um impulso hesitante, doentio, de entrar e sentar-se na mesa deles
- em vez disso, abotoou a gola do paletó e postou-se na sombra de um portal.
Não muitas pessoas entravam na brasserie - era um desses lugares sossegados, onde se podia ter completa intimidade. Uma vez, um garçom saiu à porta, olhou para cima
e para baixo, como se esperasse fregueses, e entrou novamente. Um gato passou de mansinho pela calçada. Do portal, sobre os telhados no fim da rua, Stephen podia
distinguir a massa escura das montanhas e altos pontinhos de luz que talvez fossem estrelas.
Teve que esperar até depois das nove, antes que eles emergissem. Somente a grande premência da sua necessidade de descobrir a verdade ajudou-o a manter-se naquela
triste e degradante vigília. E o momento se aproximava - um tremor o percorreu ao vê-los em pé sob as luzes da marquise. Com certeza, Chester estava para se despedir,
ou então ia levá-la de volta à Place Pigalle.
Estavam agora falando com o garçom, o mesmo que vira sair com eles, e Harry disse alguma coisa que os fez rir. Um fiacre chegou ruidoso, chamado da fila na praça,
lá embaixo, uma gorjeta foi dada, Emmy e Chester entraram. Rapidamente, ao se afastarem, Stephen andou até a praça, saltou noutra carruagem e disse ao cocheiro que
os seguisse.
Rodaram pelo Mercado das Flores deserto, entraram num labirinto de ruas antigas e viraram para a costa; então, com o coração encolhido, Stephen
viu que eles se dirigiam diretamente para Villefranche. Logo estavam lá. No fim da Rue des Lilas, Stephen mandou o cocheiro parar e pagou a corrida. Mais adiante,
na rua tranquila, viu o outro veículo parar. Ambos os seus ocupantes desceram, desaparecendo no pátio. Agora as duas carruagens tinham sumido, e ele ficara só na
rua deserta. Instintivamente olhou para o relógio - o mostrador luminoso indicava 10:30. Lentamente, andou para o Hotel des Lilas e ergueu os olhos para a sacada
do apartamento de Chester. A luz de um quarto estava acesa, e ele o identificou como o dormitório, podendo ver duas figuras se moverem por trás da cortina amarela.
A luz permaneceu por mais alguns minutos, e depois se apagou.
Quanto tempo ficou ali, olhando tristemente para o apartamento escuro, Stephen não poderia dizer. Por fim, deu as costas e afastou-se.


CAPÍTULO XIII

VOLTOU À PLACE CARABACEL antes da meia-noite. Através da dor surda que sentia na testa, sabia que deveria ir embora. Metodicamente, sem perturbar Jo-jo e Croc, ambos
adormecidos, reuniu os seus pertences na mochila. Amarrando as telas juntas, prendeu-as nas costas e, com um último olhar para os seus companheiros, saiu na sua
bicicleta. Dirigiu-se para o norte, pedalando velozmente na estrada plana que levava a St. Agustin, com a vaga intenção de pegar a route nationale que finalmente
o levaria a Auvergne. Sentia necessidade de estar com Peyrat - devia ter feito aquilo semanas antes. Mas sobretudo era premido pelo desejo de escapar, de obliterar
da memória aquelas últimas e intoleráveis semanas.
Quase pela manhã, desmontou, estendeu-se num espaço da charneca à beira da estrada e fechou os olhos. Não pôde dormir, mas, tendo descansado até que o sol despontara,
pôs-se novamente em marcha. E agora via pela sinalização que não estava na grande route, mas numa estrada secundária que corria entre as gargantas rochosas do Var
e subia serpeando para Touet e Colmars. Todavia, não quis desandar caminho. Todo o dia e no seguinte trabalhou nos pedais, mais do que a sua força lhe permitia,
no esforço para esquecer. Em Entrevaux, entrou erradamente numa estrada secundária, mais inclinada, que coleava para as montanhas através de um pinheiral. A pavimentação
era má, o progresso ali era mais difícil, havia um opressivo fragor de água se despejando
à medida que a torrente estrondeava sobre o seu leito de pedregulhos; contudo, o estranho medo de voltar mantinha-o tocando para a frente, comendo às pressas quando
podia, dormindo no chão nu, atrás de montes de feno, em estábulos desertos, com a sua capa dobrada como travesseiro. Uma aversão mórbida a qualquer contato humano
afastava-o das mais humildes estalagens.
O tempo piorara, e entre as colinas era úmido e nevoento. Na manhã de domingo, chegou a Annot, uma cidadezinha agrícola construída num planalto, com um vento frio
soprando dos Alpes. Sabia que era domingo pelo repicar dos sinos da igreja e pelo desfile de habitantes sérios, vestidos de preto, que olhavam para ele com desconfiança.
Doente de fadiga e esgotado como estava, essa hostilidade todavia o atingiu, e embora tivesse uma desesperada necessidade de tomar um café quente e pensasse em se
deter ali, não o fez, baixando a cabeça sobre o guidom e pedalando para fora da cidade. A chuva começou a cair. Ele foi obrigado a descansar. Ao desmontar, quase
caiu da sua máquina. Acocorado debaixo de uma cerca gotejante, comendo os restos de comida fria que tinha comprado na noite anterior, sentia-se inteiramente sem
lar, sem um lugar ou abrigo, irreal e desligado como um fantasma.
A chuva não parou, mas ele continuou, agora mais devagar do que antes e com uma falta de fôlego que o obrigava a desmontar nos aclives mais fortes. Seu nariz começou
a sangrar intermitentemente, e embora atribuísse o fato à altitude e lhe desse pouca atenção, era uma sensação esquisita o sangue a refluir quente sobre a sua garganta.
Cerca do meio-dia, começou a sentir-se extremamente indisposto, e, através do entorpecimento que o oprimia, penetrou-lhe um raio de razão. Nunca chegaria a Auvergne
daquela maneira, era loucura continuar; devia procurar uma estrada de ferro ou algum centro próximo sem demora. Desdobrando o seu mapa em grande escala, e protegendo-se
com a sua capa gotejante, viu que, atalhando para oeste, por Barréme, podia alcançar o entroncamento de Digne, não mais que 35 quilómetros além. Digne talvez não
fosse grande, mas ficava numa planície, o que lhe permitiria escapar destas montanhas impossíveis.
Tomou pelo atalho. Era escabroso, mais difícil do que antes, coberto de um cascalho áspero que fazia os seus pneus saltarem e derraparem. Tinha menos força do que
antes nos aclives, e com o esforço adicional seu nariz recomeçou a sangrar. O céu lá adiante era baixo e encoberto, a chuva aumentava rapidamente, e dali a pouco
um dilúvio desabou sobre ele. Ensopado, na escuridão que descia rapidamente, alarmou-se, acendeu com dificuldade a sua pequena lanterna de carbureto e novamente
consultou o mapa.
Não tinha examinado a folha por mais de um minuto, quando um gemido se lhe escapou. Oh, Deus... que tolo... que idiota cego e insensato. Acompanhando com o dedo,
viu que estava no caminho errado. Lá atrás, em
St. André, a curva devia ter sido para a esquerda, não para a direita. E agora examinou o sinal, route acidentés, fort montée, isolée - encontrava-se num beco sem
saída que levava direto acima, ao Col d'Allos.
Um ataque de nervos, quase de pânico, sacudiu-o. Aproximou mais o mapa. Devia haver alguma espécie de aldeia na vizinhança. Então, com alívio, decifrou o nome de
St. Jérõme. Era aparentemente um povoado, mas por sorte estava cercado por uma Cruz de Lorena vermelha, indicando a presença de uma hospedaria arrolada pelo Touring
Club da França como oferecendo acomodações para ciclistas e onde ao menos poderia achar abrigo para a noite. Se não estava completamente perdido, devia alcançá-la
em uma hora.
Pedalou, curvado, contra o vento. O gosto de sal na sua boca aumentou, e passando o lenço nos lábios sentiu que estavam inchados e flácidos. Suas pernas não mais
lhe pertenciam, um martelo batia na sua cabeça, mas quando sentiu que não podia avançar mais, viu tremeluzir, no socavão adiante, um grupo de luzes.
Ficaram mais próximas: uma grande construção cercada por casas menores tomava formas indistintamente, lá embaixo. Completamente esgotado, deixou a sua bicicleta
rodar e subiu aos tropeções a trilha para a primeira casa
- parecia a choupana de um trabalhador. Suas batidas permaneceram sem resposta por um interminável intervalo, e então a porta foi aberta por uma criancinha que ficou
olhando para ele e depois voltou-se e correu. Ele entrou num corredor, ouvindo vozes numa peça dos fundos da casa. Respirava irregularmente, e embora estivesse ensopado,
morria de sede. Devem receber-me, pensou, vou adoecer... aliás, já estou desgraçadamente doente.
Um trabalhador de camisa azul dirigiu-se para ele, seguido de uma mulher com uma lâmpada Argand e, atrás dela, a criança. Ele viu os seus rostos sobressaltados através
do nevoeiro que passava.
- Sinto muito. - com terrível dificuldade, como se do fundo de um poço, pronunciava as palavras. - Perdi o caminho. Podem me receber?
- Mas monsieur...
- Por favor... posso me sentar?... uma bebida.
Antes que ele pudesse falar outra vez, o homem chegou mais perto, sacudindo excitadamente o braço.
- Não aqui - disse. - O senhor deve continuar.
- Deixe-me ficar. - Novamente o terrível problema da articulação. Não posso continuar.
- Não, não... mais adiante.. . não aqui.
O homem segurou-o pelo ombro e levou-o para fora da casa. Julgando que estava sendo enxotado para a estrada, incapaz de resistir ou sequer protestar, tomado de uma
desesperança final, sentiu uma ardência nos olhos, e então, ao chegarem ao portão, percebeu que o homem não o tinha soltado,
mas o ajudava, amparando-o por um corredor rua abaixo. Na verdade, ao avançarem, ele murmurou algumas palavras de encorajamento:
- Está vendo? Não é longe... estamos quase lá.
No fim, alcançaram a grande construção. Havia árvores de espessa folhagem em ambos os lados. O homem puxou a corda de uma sineta e, após um momento, abriu-se uma
grade na porta tacheada. Seguiu-se uma breve conversação e depois ele foi admitido num pequeno saguão caiado, com um chão de pedra nua e bancos lustrosos junto às
paredes.
À beira do colapso, Stephen olhou em torno, tonto. Tudo estava fora de foco. Todas as linhas do saguão corriam juntas e depois se afastavam, como círculos num lago.
Até o porteiro que o deixara entrar parecia fantasticamente indistinto, vestido num paletó comprido e com capuz que lhe dava um aspecto de mulher. Outro homem, ou
mulher, tinha aparecido. Então, imediatamente, todas as linhas se dissolveram. O trabalhador da choupana, voltando-se para esse recém-chegado, retirou atabalhoadamente
o braço que o amparava. Stephen caiu de rosto para baixo, com o embrulho de telas molhadas ainda amarrado às costas.


CAPÍTULO XIV

O SOL DA MANHÃ, incidindo na única e funda janela à cabeceira da tarimba armada sobre cavaletes, acordou-o. Ele deixou-se ficar passivamente, o olhar percorrendo
os poucos objetos da pequena ermida da qual, durante as últimas três semanas, tinha se tornado íntimo e familiar - a solitária cadeira de assento empalhado, o armário
provençal, o genuflexório de madeira num canto, o crucifixo preto na parede branca. Especulativamente, examinou a sua mão, levantando-a contra a luz, achando os
dedos ainda brancos, mas talvez menos translúcidos do que na véspera. Esse era um teste que ele fazia todas as manhãs. Passos leves, rangendo no corredor coberto
de areia, fizeram que ele, sem querer, movesse o corpo e voltasse a cabeça. Estava olhando para a porta quando ela se abriu e o enfermeiro entrou, trazendo o seu
desjejum numa bandeja.
- Como dormiu?
- Muito bem.
- A nossa cantoria não o perturbou?
- Não, agora já estou acostumado.
- bom - disse Dom Arthaud, depondo a bandeja.
Tirou um termómetro dos recessos do seu hábito branco, sacudiu-o e, com um sorriso, colocou-o entre os lábios de Stephen. - Isto não é mais necessário. Mas como
você vai se levantar hoje, queremos ter certeza.
Era um homem de uns 50 anos, de estatura média, vigoroso, ombros quadrados, com uma cara grande e agradável, ligeiramente azulada em torno do queixo, e inteligente,
de olhos castanhos com óculos, a cabeça raspada e tonsurada; usava sandálias de tiras nos pés nus. Ao cabo de um minuto, retirou o termómetro, leu-o e, com um aceno
tranquilizador, puxou a cadeira com a bandeja para junto da cama.
- Não esqueça o seu remédio.
Depois de tomar, com um canudinho de vidro, o líquido escuro de sabor metálico, Stephen começou o seu desjejum - uma caneca de café au lait, manteiga fresca numa
tigela de barro, pão cortado em fatias e frutas. O café com leite estava quente, cheirando a chicória. Depois de molhar o pão na caneca, Stephen olhou compungido
para o que estava em pé - ele nunca sentava-se na extremidade da cama.
- Por que não come comigo? Aqui há mais do que suficiente para dois.
- De modo nenhum. Fazemos a nossa refeição ao meio-dia.
- Mas... isto está muito gostoso.
O enfermeiro sorriu alegremente.
- Sim... a nossa comida é perfeitamente horrível. Mas estamos habituados a ela. E depois, não estivemos doentes.
Stephen apanhou outra fatia de pão.
- Isso é que eu estava querendo lhe perguntar. Que foi exatamente que eu tive? O senhor nunca disse.
- Você teve uma inflamação dos pulmões... por exposição à intempérie. Além disso, fez um esforço demasiado grande. Como resultado, teve a complicação de uma hemorragia.
Muito grave.
- Pensei que o sangue fosse do nariz.
- Não, era dos pulmões. - Fez uma pausa, olhando por cima dos óculos de aros metálicos. - Já teve algo parecido antes?
Stephen refletiu um momento, depois abanou a cabeça.
- Tive um resfriado há alguns meses. Bronquite, imagino. Mas podia ter sido por causa disso.
O enfermeiro baixou os olhos.
- Eu não poderia responder. Não sou médico.
- Mas o senhor me salvou desta muito bem.
- Com a ajuda de Deus.
- E muita habilidade. Não acredito que o senhor não seja qualificado.
- Estudei medicina em Lions com o Professor Rolland. No último ano, assim como você foi chamado para ser um pintor, recebi o chamado para ser um monge.
- Muito afortunadamente para mim.
Dom Arthaud inclinou a cabeça, e então, quando Stephen terminou, apanhou a bandeja. Na porta, fez uma pausa.
- Não se levante ainda. Esta manhã, o Reverendo Prior vem visitá-lo. Quando ele saiu, Stephen recostou-se, com as mãos cruzadas atrás da cabeça. Ainda se sentia
atrozmente fraco. Contudo, quase já não tinha tosse e nem sentia mais aquela pontada aguda do lado. Como era bom o sol no seu rosto - a atividade da convalescença
começava. Não se preocupava com a sua situação. A persistência do enfermeiro em tirar-lhe a temperatura de manhã e à noite não era palpavelmente mais do que uma
rotina. Na verdade, imaginava, calmamente, se a sua doença, com aquele estranho depauperamento, não teria sido peculiarmente oportuno. Já ouvira falar de sangria
como remédio para a febre. Pelo menos sentia-se curado daquelas dores cruciantes que tão intoleravelmente o atormentavam.
Olhando para trás, admirava-se de que, durante todos aqueles meses, tivesse permanecido naquele estado de tamanha sujeição, aniquilado por uma única palavra, arrastando-se
pelo favor de Emmy. A simples ideia daquilo fazia-o estremecer. Rejubilava-se em ser ele mesmo outra vez, e jurou que jamais se submeteria a semelhante escravidão
- na verdade, foi mais longe, e fez um voto solene de que no futuro nenhuma mulher participaria da sua vida. Somente o seu trabalho o interessaria agora, e a ele
se aplicaria com rigorosa autodisciplina.
Às 11 horas chegou o seu visitante. O Prior, uma figura alta e imponente, na sua vestimenta branca encapuzada, sentou-se tranquilamente na cadeira e estudou Stephen
com grave reflexão.
- Então, afinal vai sair da sua cama, meu filho. Alegro-me.
- E eu estou agradecido - murmurou Stephen. - Foi sorte minha encontrar a sua cruz no meu mapa.
- É verdade que temos uma cruz. Mas não figuramos no mapa - disse o Prior com um leve sorriso. - Aquela marca é para uma hospedaria de ciclistas no vale vizinho.
Você se extraviou no caminho, meu filho. Ou, desde que a Providência o trouxe aqui, poderíamos dizer que o achou?
Uma esquisita inflexão na voz do Prior trouxe uma ligeira cor ao rosto pálido de Stephen. Teria deixado escapar alguma coisa a seu respeito nos primeiros dias da
doença?
- De qualquer maneira - respondeu ele - já era tempo de eu ficar bom. Dei-lhe um grande trabalho. Os senhores devem estar querendo se livrar de mim.
- Ao contrário, você é muito bem-vindo aqui. Sofreu um grande abalo, e Dom Arthaud acha que antes de várias semanas não estará apto para viajar.
- Mas... receio que não possa pagar.
- Nós lhe pedimos o seu dinheiro, meu filho? Aliás, quem o esperaria de um artista que luta? Fique conosco por uns tempos. Sente-se ao sol no jardim. Quando estiver
mais forte, a vida terá um aspecto diferente. Será capaz de enfrentar melhor o mundo.
O Prior pousou delicadamente a mão no braço de Stephen, e então levantou-se e saiu.
Stephen teve que se esforçar para reprimir as lágrimas dos olhos. Levantou-se. Suas roupas, lavadas e cuidadosamente dobradas, estavam no armário, com os seus outros
pertences. O dinheiro, cerca de 30 francos, achava-se numa pilha precisa ao lado do seu relógio, que estava funcionando; ele adivinhou que lhe tinham dado corda
todos os dias. Depois de se vestir, deixou o quarto e andou ao longo de um corredor estranho, lajeado de pedra, que o levou ao jardim, nos fundos.
Não era um recinto grande, umas poucas trilhas em torno de roseiras separadas, que levavam a uma gruta com uma estátua no fundo. Um muro de andebol quebrava o contorno
da cerca em volta. Além, alguns campos. Por suas conversações com Dom Arthaud, Stephen soubera que, graças à doação de uma pequena casa de campo, a comunidade, devotada
à instrução de cerca de 20 noviços, tinha sido recentemente estabelecida e estava crescendo unicamente devido aos esforços dos próprios monges, que haviam construído
com as suas mãos a pequena capela contígua à antiga mansão. Podia vê-la agora, branca e um tanto grosseira, aprumando-se contra o céu lanoso.
Após ter andado pelas trilhas, foi obrigado a descansar num dos bancos que flanqueavam a quadra de andebol. Um velho, com o hábito castanho de irmão leigo, estava
ordenhando uma vaca no pasto. Dali a pouco, começou um ofício na capela, e o cantochão, carregado pela brisa suave, era mais do que ele podia suportar. Levantou-se
e arrastou-se para o seu quarto.
Lá, encontrou uma carta, colocada bem à vista no peitoril da janela. Uma semana antes, sentindo-se terrivelmente só, soerguera-se no travesseiro e garatujara umas
linhas ao morador do nº 15 da Rue Castel, pedindo-lhe que remetesse qualquer correspondência que chegasse para ele àquele endereço. Este era, presumivelmente, o
resultado. Rasgou o envelope. Era de Stillwater, uma breve nota escrita havia dois meses.
CARO STEPHEN
Não sei se esta lhe chegará às mãos. Se chegar, é para informá-lo da morte de Lady Broughton, em outubro. Isso não foi inesperado. Algumas semanas antes, o noivado
de Claire e Geoffrey fora anunciado. Vão casar-se muito em breve. Não há outras notícias de importância para lhe dar, a não ser que papai
continua muito triste com a sua ausência. Suplico-lhe que volte e aceite suas responsabilidades como filho obediente.
Sua, Caroline.
Ainda com a carta na mão, Stephen sentou na cama. Em outros tempos, aquela notícia de casa não o teria afetado tão profundamente. Sabia da doença de Lady Broughton,
e seu amor por Claire nunca tinha sido mais que uma afeição fraternal. Contudo, aqui, neste ambiente estranho e remoto, abatido pela doença, a morte de uma e o próximo
casamento de outra - com Geoffrey, entre todos os homens! - parecia aumentar a sua sensação de exílio, cortá-lo mais fundamente de toda aquela vida agradável que
normalmente ainda seria sua. O tom da carta de Caroline, breve, cheio de calada amargura e implícitas censuras pelo que poderia ter sido, fazia-o mais do que nunca
sentir-se uma criatura à parte, cuja própria natureza o punha em conflito com a família, a pátria e a sociedade.
Com o decorrer das semanas, ele ficava mais forte. A região em torno, coberta de pinheiros baixos, sem beleza e sem qualidade, dava-lhe pouco incentivo para sair
do recinto. Fez amizade com os dois filhos de Pierre, o trabalhador da choupana que o trouxera ao mosteiro, levava-os encarapitados no selim da sua bicicleta. Ajudava
o velho Irmão Ludovic na horta, jogava andebol com os noviços na hora do recreio. Eram um alegre grupo de jovens, recrutados principalmente em boas casas burguesas
em Garonde e nas cidades vizinhas. Talvez por ele ser um estranho, e de uma raça diferente, eles se davam ao trabalho de lhe dedicar pequenas atenções matizadas
de um espírito de proselitismo que, embora o deixasse insensível, comovia-o e divertia-o. Seus corações estavam naquela nova pequena comunidade, e quando não mergulhados
em oração, entregavam-se sem poupar-se ao duro trabalho manual nos seus esforços para melhorá-la.
Um dia, no jogo de andebol, fizeram-lhe uma observação, meio rindo, meio sérios.
- Monsieur Desmonde... Uma vez que o senhor é um artista, por que não pinta um belo quadro para a nossa igreja?
Stephen, com a atenção presa, olhou para o proponente.
- E por que não? - respondeu com um ar sério.
A ideia, que não lhe ocorrera, pareceu-lhe um admirável meio de expressar a sua gratidão, de dar alguma retribuição tangível pela bondade que tinha recebido. Além
disso, a vadiagem forçada começara a pesar-lhe.
Nessa mesma tarde, conversou com seu amigo Dom Arthaud, que recebeu a sugestão calorosamente e prometeu falar com o Prior. A princípio, o Prior hesitou. A capela,
embora reconhecidamente inacabada por dentro,
era o produto de um prolongado e árduo esforço e cara ao seu coração. Seria sensato colocar aquela prezada e duramente ganha possessão nas mãos de um pintor desconhecido,
cujas poucas telas, embora estranhamente compulsivas, não davam indicação de competência ortodoxa? No fim, a fé, que era o sustentáculo da sua existência, moveu-o
a uma decisão. Mandou chamar Stephen.
- Diga-me, meu filho, o que pretende fazer.
- Gostaria de pintar um afresco acima do altar, na parede de fundo da abside.
- Tema religioso?
- Naturalmente. Pensei na Transfiguração. Iluminaria toda a capela.
- Você está certo de que poderia produzir algo que aprovássemos?
- Eu tentaria. Não tenho tintas nem pincéis bastante largos. O senhor teria que arranjá-los para mim. Teria que confiar em mim. Se o fizer, prometo dar o melhor
de mim.
Na manhã seguinte, dois dos padres partiram para Garonde, voltando à tarde com vários pacotes embrulhados em papel pardo. Nesse meio tempo, os noviços tinham armado
um andaime atrás do altar. Cedo, no dia seguinte, com aquele alvoroço que sempre sentia ao começar um novo trabalho, Stephen pegou o seu pincel.
Contudo, o seu estado de espírito era muito insólito. De corpo relaxado, não de todo livre da lassidão da convalescença, parecia banhado de um fofo langor. Suas
emoções ainda eram instáveis, a umidade lhe vinha prontamente aos olhos. O ambiente da capela, a entonação dos monges, a sensação de estar separado do mundo induziam
nele emoções inteiramente alheias à sua natureza. Embora não dispusesse de modelos, o trabalho tomou corpo com uma surpreendente facilidade, para quem estava acostumado
a um esforço sobrehumano nas primeiras horas de criação. Já tinha esboçado a figura central do Senhor, vestido de trajes brancos, radiante com uma nuvem de luz,
e começava a traçar as feições de Moisés e Elias.
Ao progredir com tamanha facilidade, experimentou esquisitos momentos de desconfiança, imaginando-se, em vez de projetar as suas próprias ideias, não estaria reproduzindo
inconscientemente uma compósita de primitivos pintores religiosos. Aplicadas em têmpera, as suas cores, usualmente tão duras, eram macias e lisas, suas formas pareciam
perturbadoramente convencionais. No entanto, contra essas dúvidas, crescia a aprovação da comunidade.
No começo, fora olhado com ansiedade, talvez até com desconfiança. Mas logo isso deu lugar a uma franca admiração. Às vezes, ao voltar-se no andaime para limpar
os pincéis, observava nos olhos de algum noviço que tinha vindo ostensivamente para rezar, mas na verdade para incorrer no pecado da distração, um olhar de perfeito
transe. Aquilo não era suficientemente tranquilizador? E, afinal de contas, ele não se comprometera a agradar?
O afresco, ocupando todo o espaço acima dos retábulos, ficou terminado em três semanas, e quando o andaime foi retirado, toda a comunidade reunida olhava-o com aclamação.
- Meu filho - disse o Prior a Stephen - agora sei que a sua vinda aqui foi providencial. Deu-nos um memento da sua estada que durará muito além da existência de
todos nós. Agora somos nós quem lhe devemos muito. - E continuou: - Amanhã celebraremos a Missa Solene para consagrar a sua obra. Embora não seja membro da nossa
fé, espero que nos agrade com a sua presença.
Na manhã seguinte, o altar estava enfeitado de flores, chamejante de velas. O Superior, em paramentos brancos, assistido por Dom Arthaud, cantou a Missa, enquanto
o coro entoava as respostas. Para Stephen, sentado na galeria, a pintura, brilhando à luz dos círios, tornada mística por uma nuvem de incenso, parecia uma esplêndida
realização. Nunca antes tivera tamanho sucesso.
Um repasto especial foi servido após a cerimónia, com um vinho da região de tal vigor que Stephen deu um passeio à aldeia para clarear a cabeça.
À tarde, quando voltava, Dom Arthaud o recebeu à porta com uma curiosa expressão.
- Há um visitante que deseja vê-lo. Um cavalheiro que diz ter vindo para levá-lo de volta a Paris.
Stephen entrou no seu quarto. Lá, reclinado na cama, usando chapéu e paletó, e soprando furiosamente no seu cachimbo, estava Peyrat. Pulou imediatamente quando Stephen
entrou e beijou-o em ambas as faces.
- Que é que andou fazendo? Não uma, mas uma dúzia de vezes procurei alcançá-lo. Agora, por casualidade, consegui o seu endereço na Rue Chancel. Por que está enterrado
aqui?
- Estive pintando - sorriu Stephen, ainda vibrando com a inesperada presença de Peyrat.
- Sorte ingrata - disse Peyrat, com fingida braveza. - Enquanto eu esperava, me arrastaram para a igreja. Que coisa terrível essa que você fez, cher ami. Oh, que
miserável cópia de del Sarto. Que terrível refundição de Luini. Embora eles gostem e vão se ajoelhar diante daquela pintura durante séculos, é indesculpavelmente
chocante, e para você, especialmente neste momento, uma desgraça.
- Por que neste momento? - perguntou Stephen, um tanto desconcertado.
- Por causa do anúncio feito no mês passado, e que me fez caçá-lo por toda a França.
- Que diabo está querendo dizer?
- Um anúncio - continuou Peyrat imperturbável, rolando as palavras
na língua como se gostasse do seu sabor - que lhe colocava uma medalha no peito, 1.500 francos no bolso e ainda nos permitirá, espero, fazer uma viagem juntos à
Espanha.
Subitamente atirou os braços em torno de Stephen e mais uma vez o abraçou.
- Não se importe com a sua doença, ou aquele medonho Moisés e Elias. A sua Circe ganhou o Prix de Luxembourg.


CONTINUA

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

DOVER, NA CHUVA, era uma triste porta dos fundos para fugir da Inglaterra. Quando o navio de carreira deixou o porto sujo, as ruas enlameadas, os edifícios amarelos
da encosta, os rochedos de um branco encardido, tudo mergulhou igualmente num dilúvio cinzento.
Na terceira classe, o espaço limitado estava abarrotado de passageiros, e Stephen, deixando aquele ar pesado de umidade e ruidosa camaradagem, voltou para o convés
molhado e atravancado de cabos. Ficou solitário na popa, abrigando-se, o melhor que podia, atrás da lona que cobria um guincho, com os olhos na costa amorfa, os
pensamentos tão equilibrados entre a amargura e a tristeza que fixavam nele uma atitude de completa imobilidade.
Dali a pouco foi sentar-se num braço do guincho, indiferente ao balanço do navio, ao vento e aos esguichos que assobiavam junto daquela ligeira proteção; tirou do
bolso o seu bloco de esboços. Era um movimento reflexo, um grito do coração. Contudo, uma vez que o seu lápis começou a andar pelas páginas agitadas na beira pela
ventania, perdeu-se, desenhando, com grande rapidez, fases do mar agitado, ondas estranhas e pressagas, a que ele insuflava uma qualidade de vida, vendo nos seus
contornos rotos, no laço intrincado das suas cristas, selvagens rostos humanos, cabeças atormentadas e torsos retorcidos, figuras de homens e de monstros, de cabelos
escorrendo e membros contraídos, tudo perdido e arrastado pela invencível força do mar.
Foi talvez uma espécie de loucura, uma vertigem, que o deixou amolecido e exausto. Tiritava quando o vapor diminuiu a sua marcha arfante para entrar cautelosamente
nos braços do quebra-mar de Calis, e, consciente do seu rosto gotejante e roupas ensopadas, guardou o bloco no bolso com um ar furtivo. Cabos eram lançados, pranchas
de desembarque empurradas, a douane era rapidamente passada. Mas algum ligeiro acidente na linha tinha atrasado o trem para Paris, que ainda não chegara.
Stephen tiritava novamente, batendo os pés sobre a plataforma a fim de restabelecer a circulação. Embora a chuva fosse menos impiedosa em terra, o vento, enfiando-se
pela curva dos trilhos, parecia mais violento, mais cortante. A maioria dos seus companheiros de viagem estava aproveitando o atraso para um almoço à la carte no
restaurante da estação. Mas, diante de um
futuro de completa incerteza, um exame mais detido do estado das suas finanças absteve-se desse luxo. Tinha, para ser preciso, 5 libras e 6 xelins, tudo que lhe
restava das 10 libras que trazia consigo quando chegara a Stillwater.
Por fim, o trem entrou resfolegando; após várias conferências e muita gesticulação, apitos agudos, jatos de vapor, e as notas melodiosas de uma trompa, a marcha
foi invertida e o vapor esguichou novamente. Para Stephen, encolhido no canto de um compartimento ventoso, foi uma viagem miserável. Tiritava frequentemente, sabia
que tinha apanhado um resfriado, e acusava-se de ter sido um tolo.
Na Gare du Nord hesitou, e então, aceitando o risco, e não sem uma certa recordação melancólica da sua prévia entrada na cidade de coração leve, tomou o metro para
a Rue Gastei. No seu presente estado de espírito ansiava, acima de tudo, pela simplicidade e firme amizade de Peyrat. Mas o novo inquilino do apartamento, incompreensivo
e desconfiado, apareceu na porta, respondendo que não havia cartas nem recados... acreditava que Monsieur Peyrat estaria no Puy de Dome, em Auvergne, até o fim do
ano, e além disso não sabia mais nada.
Os passos seguintes de Stephen levaram-no ao estúdio de Glyn. Estava fechado. Do mesmo modo, o pavilhão dos Lamberts, com as janelas fechadas, foi uma nova decepção.
Stephen voltou para o alojamento de Chester. Embora não tivesse acertado exatamente o montante da dívida, sabia que Harry, com seus repetidos pedidos de empréstimo,
devia-lhe pelo menos umas 30 libras, soma que agora adquiria uma importância muito maior do que antes. Mas também aquele quarto estava fechado, aliás, trancado com
um cadeado. Todavia, ao descer as escadas, foi reconhecido pelo concierge e obteve dele o atual endereço de Chester, enviado num cartão-postal recebido dois dias
antes: Hotel du Lion d'Or, Netiers, Normandia.
Animado, Stephen entrou no primeiro bureau de poste e passou um telegrama, explicando a sua situação e pedindo que Chester lhe mandasse por cheque telegráfico, se
não todo, ao menos parte do dinheiro que lhe devia, aos cuidados de Adolf Bisque na Rue Castel. Quando a moça de blusa de alpaca atrás do guichê terminou, a tinta,
uma soma complicada, um processo que a ocupou durante alguns minutos, Stephen pagou e dirigiu-se para o DuvaPs, onde pediu chocolate quente e um brioche.
Depois dessa ligeira refeição, como a chuva caísse mais forte e as sarjetas transbordassem, ele decidiu encontrar, o mais depressa possível, um alojamento para a
noite. Por causa da sua conveniência, e não na esperança de encontrar conforto, ficou num hotel barato das proximidades, a Pension de
l'Ouest, diante da qual passara tantas vezes a caminho do estúdio de Glyn.
Alcançado por escadas sem passadeira, seu quarto não era mais que um estreito, cubículo, mas era seco, e a cama, embora os lençóis estivessem encardidos,
tinha uma ampla provisão de cobertores estampados de azul - aqueles cobertores grosseiros usados pelos recrutas durante as manobras do Exército e vendidos depois
pelos contratantes do governo. Após alguns tremores iniciais, aqueceu-se e dormiu pesadamente. Na realidade, ao acordar na manhã seguinte sentia-se melhor, embora
não se surpreendesse com a tosse, agora piorando. Tomou café com um pãozinho, outra vez no DuvaTs, às 11 horas, e dirigiu-se para a loja de Monsieur Bisque.
Ali o esperava uma agradável surpresa. O pasteleiro recebeu-o cordialmente, com a sua cara de lua cheia enrugada de sorrisos, e, tendo repreendido Stephen por não
o ter visitado no dia anterior, apresentou com modos de prestidigitador o telegrama de resposta de Chester. Este, embora não trouxesse dinheiro, era de natureza
a animar o seu destinatário.
DELICIADO SEU TELEGRAMA. VENHA PARA CÁ. TEMPO E HOTEL EXCELENTES. BELO LUGAR PARA PINTAR. ABRAÇOS
HARRY
A perspectiva aberta por aquele amistoso convite, a ideia de estar com uma paleta e pincéis, diante de um cavalete, na Normandia, fazia brilhar os olhos de Stephen.
Bisque tinha um guia que, embora de páginas esfarrapadas e um tanto antigas, parecia provar que o rapide Granville, o trem mais ou menos direto, já tinha partido
- às 10 horas, para ser exato, daquela manhã. Stephen decidiu adiar a viagem até o dia seguinte. Passou à tarde na loja de Napoleon Campo, onde, além de receber
o cavalete e equipamento lá depositados, comprou novos tubos de tinta e algumas telas. Pagou a metade, 50 francos, e prometeu mandar o restante quando chegasse a
Netiers.
A manhã seguinte trouxe um límpido céu azul, e Stephen saiu com os seus pertences para a estação de Montparnasse. O rapide na Plataforma 2 não estava muito cheio
e ele conseguiu, sem dificuldade, um compartimento vazio na parte dianteira do vagão. Ao partirem, não podia afirmar que se sentia bem, pois experimentava uma sensação
de abafamento, com uma pontada no lado direito. Apesar disso, depois que o trem furou o seu caminho através dos túneis e cortes murados e escuros que davam saída
da cidade, perdeu a lassidão, olhando a paisagem em desfilada: vastos campos de restolho com poças de água da chuva, flanqueados por longas fileiras de olmos - sentinelas
intermináveis; uma agulha distante, delgada, graciosa; parelhas de grandes cavalos, com corvos assistentes, arrastando o arado; velhas construções rurais, de telhas
ocres, as empenas salpicadas de anúncios - Byrrh, Cinzano, Dubonnet.
Ao meio-dia, comeu uma maçã e uma barra de chocolate. Gradualmente, a configuração do terreno havia se alterado. Lutando contra a sonolência, ele
notou as azinhagas ondulantes e pequenos pomares cercados, um bando de gansos em lenta procissão para um lago lodoso, seguido de uma menina de pernas nuas com uma
vara de aveleira, um renque de salgueiros podados cercemente, e depois uma dama idosa, de coifa branca, tangendo uma vaca pela relva da beira da estrada, parando
de quando em vez para tricotar. Até a natureza da bebida tinha mudado. Attendez, exclamavam os anúncios, buvez le cidre moissoné!
Cerca de três horas, o trem alcançou o topo de um longo aclive e entrou na pequena estação de Netiers. Apressadamente, Stephen reuniu as suas coisas e pulou do alto
estribo. Uma rápida inspeção mostrou que Harry não estava lá para recebê-lo. Raciocinando que Chester podia não ter calculado bem a hora da sua chegada, Stephen
começou a andar para a cidade, que se podia avistar mais abaixo da colina, coisa de um quilómetro. A expectativa, ao se aproximar, aumentava a sua ansiedade - passou
um muro valado com fortificações, entrou nas ruas tortuosas, de paralelepípedos, tão estreitos que as casas de pedra cinzenta, muito inclinadas, pareciam estar acima
da sua cabeça. E então, no centro da praça do mercado, em frente à fachada de terracota desbotada do antigo hotel de ville, discerniu a tabuleta dourada do Lion
d'Or.
A estalagem era maciça, solidamente confortável, de alta classe. Stephen percebeu isso de relance, ao se dirigir para o balcão de recepção situado no vão de uma
escada de carvalho.
- Sim, monsieur!
- Meu nome é Desmonde. Tenha a bondade de dizer ao Sr. Chester que acabo de chegar.
Uma pausa.
- Está perguntando por Monsieur Chester?
- Sim. Ele me espera.
O empregado, um rapaz de ombros altos e cabeça rapada, estudou Stephen por um momento e depois disse:
- Tenha a bondade de aguardar, cavalheiro.
Desapareceu por trás da cortina que fechava o fundo do bureau; então, após um breve intervalo, voltou com um homem mais velho, uma figura sólida, de pescoço grosso,
vestido com a roupa listrada da profissão.
- O senhor está procurando Monsieur Chester Harry? O tom, embora cortês, tinha uma qualidade intimidante.
- Sim, por quê? Sou amigo dele. Ele não está hospedado aqui? Uma pausa gélida.
- Ele estava residindo aqui, monsieur. Até ontem à tarde, quando apresentamos a sua conta. Desde esse momento não vimos mais o seu famoso Monsieur Chester.
Stephen olhou para o proprietário, estupefato. Pois não viera por convite expresso de Harry, gastando o seu último soldo na passagem de trem? E de súbito lhe veio
uma ideia, contundente como um golpe. Chester, mais uma vez em apuros financeiros, convidara-o a vir somente na esperança de pedir-lhe mais uma quantia emprestada.
- Se monsieur é realmente Monsieur Desmonde - o sarcasmo era cortante - eis aqui uma carta que seu amigo lhe deixou.
MEU VELHO,
Eles podem não lhe entregar esta. Se entregarem, saberá que, com muito pesar, fui obrigado, encore, a cair fora. Pensei que podíamos resolver o caso juntos - baseados
no princípio de que duas cabeças pensam melhor do que uma - mas o departamento de contabilidade daqui estava um passo à minha frente. Provavelmente vou filar minha
viagem para o Sul, ficar um tempo em Nice, tentar a sorte nas mesas: De qualquer modo, eu com certeza o verei mais cedo ou mais tarde... Sinto muitíssimo e todas
essas coisas... mas quando o diabo aperta...
Seu,
HARRY
P.S. Nenhuma mulher decente na cidade. Mas não deixe de provar a sidra local. É excelente.
Stephen amarrotou o bilhete, escrito a lápis e às pressas, entre os dedos tensos. Sabia que Chester não merecia confiança, mas agora, por baixo do encanto, da alegria,
da amizade efusiva, sentia o âmago do seu total egoísmo.
O estalajadeiro e seu empregado olhavam para ele por detrás do balcão com manifesto desprezo.
- Naturalmente monsieur compreende que não temos acomodações para o senhor nesta casa.
- Compreendo perfeitamente - disse Stephen, girando nos calcanhares e saindo para a rua.


CAPÍTULO II

ALI, SEM DINHEIRO E SOZINHO, parado na praça do mercado de uma desconhecida cidade francesa, Stephen avaliava inquietamente a sua situação. Nunca antes estivera
sem dinheiro. Sua pensão, como o amanhecer, era algo
que tinha como certo, a consequência natural da sua posição na sociedade, do seu próprio direito de nascimento. Agora, com um amargo esgar nos lábios, percebia como
era poderosa a arma que seu pai tinha usado. No entanto, a sua renitência nata mantinha-lhe o prumo. Saiu imediatamente à procura de algum abrigo.
Isso, numa cidade sempre cheia de turistas, foi menos difícil do que ele temia, e antes do entardecer ele estava instalado num quartinho do alto, no fundo de um
pátio da Rue de la Cathédrale. Ao entregar a bagagem para a senhoria, uma velha digna, que não lhe pediu pagamento adiantado por ser de apenas 12 francos por semana
o aluguel, resolveu que, houvesse o que houvesse, estaria em condições de pagar-lhe antes que se passassem muitas horas. Tinha sabedoria suficiente para reconhecer
que, naquela localidade, não poderia conseguir uma subsistência imediata com sua arte. Sim, a sua educação, o seu curso universitário e grau de bacharel deviam certamente
capacitá-lo para alguma modesta posição na qual pudesse ganhar dinheiro suficiente para se manter em pé. E até mesmo o bastante para pagar a conta de Chester ainda
lhe doía a farpa final lançada pelo proprietário da estalagem - e voltar a Paris, encontrar-se lá com Peyrat, tendo uma boa quantia, antes do inverno. Se ao menos
estivesse menos indisposto! Aquela tosse, que desde a travessia do Canal lhe abalava o peito, era um grande incómodo. Mas um ferrenho desejo de experimentar-se levou-o
novamente ao centro da cidade.
Lá chegando, fez um exame perspectivo do logradouro principal, a Rue de la Republique. As lojas, embora pequenas, tinham, em sua maioria, um aspecto de sólida prosperidade
associado a uma ativa região agrícola. Pás, garfos, foices, baldes de zinco, grades de dentes vermelhos, tudo isso e mais estava exposto nas casas de ferragem; havia
guloseimas também - deliciosos petits fours e almôndegas doces, arranjados como buquês de noiva, enfeitavam a vitrine de uma pâtisserie, ao passo que na leiteria
da esquina se via um monte amarelo de manteiga da Normandia, ladeado por dois jarros de leite cheios até a borda.
Na frente de uma papelaria, viu uma caixa de vidro com alguns anúncios e avisos escritos à mão. Leu-os cuidadosamente e depois afastou-se. Ele não podia afinar pianos
nem remendar cadeiras de palhinha, não precisava da metade de uma vila à beira dos rochedos litorâneos de Granville. Mais abaixo da rua chegou à redação de um jornal
semanal, Courier de Netiers. Lá dentro, o número em circulação podia ser lido. Mas as suas magras colunas, devotadas principalmente às fases da lua, venda de gado
e cal, cobertura de vacas e éguas, horário das marés no Mont St. Michel, nada lhe ofereciam.
E agora? Era evidente que precisava de conselho. Obedecendo a um impulso, entrou na mairie e, escolhendo um funcionário de ar simpático, sondou-o discretamente sobre
as possibilidades de emprego na cidade. O jovem,
embora surpreso com semelhante indagação, mostrou-se inteligente e bem-intencionado. Pensou muito, e depois abanou lentamente a cabeça:
- É muito difícil... numa comunidade pequena como esta, as pessoas - sorriu, em desaprovação, ajeitou os punhos de papel - ... não são amáveis com estrangeiros.
Por mais uma hora, Stephen palmilhou a cidade sem sucesso. Quando caiu a noite, voltou, cansado e desanimado, ao seu alojamento. Revistando os bolsos, contou a soma
dos seus recursos: 1 franco e 50 soldos. À vista daquelas minguadas moedas na palma da sua mão, sentiu uma onda de orgulho. Não podia, não devia render-se.
No dia seguinte, na esperança de achar um trabalho manual, deu uma volta, a pé, pelas granjas das redondezas. Ao todo, devia ter andado uma distância de 20 quilómetros.
E em vão. Não havia escassez de mão-de-obra agrícola. Em vários lugares foi tomado por um vagabundo, e soltaram os cães contra ele. Um camponês caridoso, de garfo
em punho, fazendo a provisão anual de feno, pareceu hesitar, comovido talvez pela intensidade do pedido de Stephen, mas no fim prevaleceu a sólida cabeça normanda:
- Você não é muito forte, mon petit, pequeno... oh, muito pequeno. Mas, espere. - Chamou para a cozinha. - Jeanne, traga alguma coisa de comer para este rapaz.
Uma bonita mulher, de braços nus, vermelhos, saiu da porta dos fundos com o barulho dos seus tamancos. Dali a pouco, tendo examinado Stephen, trouxe-lhe um pedação
de torta de carne e uma caneca de sidra. Enquanto ele comia esse repasto, sentado num banquinho de ordenhar, na varanda, o granjeiro e a mulher, observando juntos,
discutiam em voz baixa, enquanto um meninozinho de guarda-pó preto espiava-o curiosamente por trás das saias da mSe. Stephen estava hirto de vergonha. Oh, meu Deus,
gemia ele consigo, sou exatamente como alguém de uma gravura de Cotman... cheguei realmente a isto! Mas a torta era boa, com um molho forte e gostoso, e a bebida
ácida lhe trouxe um novo ânimo para caminhar de volta a Netiers.
Escurecia quando chegou à Rue de la Cathédrale. E agora, embora mantido o ânimo muito bem durante todo o dia, um terrível abatimento o prostrava. A mortal estranheza
daquele quartinho apertado, cheirando a madeira velha, bolor e cânfora, estalando a cada passo que dava; a sensação de estar tão completamente só, enganado por Chester,
encurralado num futuro sem esperança; a suspeita, também, de que a sua senhoria começava a olhá-lo com dubiedade - tudo isso se acumulava para derrotá-lo. Sem querer,
atirou-se na cama e, voltando o rosto para a parede caiada, chorou como uma criança.
Esse acesso durou pouco, mas infelizmente tinha provocado a tosse. A noite inteira, ela o castigou severamente, desde que, na sua ansiedade para
não perturbar a casa, suprimia os espasmos e assim aumentava a sua frequência. Por fim, perto do amanhecer, com a cabeça embaixo das cobertas, caiu no sono.
Era tarde, quase 11 horas da manhã, quando acordou - primeiro para um breve momento de descansada alegria, depois para a sombria consciência da sua entalada. Levantou-se,
vestiu-se sem fazer a barba, e foi para a cidade. A agitação do espírito comunicava uma curiosa fraqueza às suas pernas. Estava andando sem rumo ou objetivo. Subitamente,
quando começava a atravessar pela segunda vez a praça do mercado, ouviu que alguém corria atrás dele. E então sentiu uma mão no ombro. Terrivelmente sobressaltado,
voltou-se. Era o funcionário da mairie.
- Desculpe-me, monsieur. - O moço interrompeu-se para respirar. Estive olhando o senhor durante toda a minha hora de almoço. Olhe, desde que foi embora andei fazendo
algumas perguntas para o senhor. E Madame Cruchot, que juntamente com o seu marido tem a sua épicerie ali - e apontou para o outro lado da rua - tem duas filhas
pequenas que ela quer que aprendam inglês. É possível que ela se agrade do senhor. Nesse caso, vale a pena tentar.
- Muito obrigado - gaguejou Stephen, emocionado. - Muitíssimo obrigado.
O jovem funcionário sorriu.
- Boa sorte. - Pronunciou as palavras entre os dentes, cuidadosamente, em inglês, e depois, como se satisfeito com sua proeza, apertou-lhe a mão, tirou o chapéu
e ficou observando-o atravessar apressadamente a rua.
A mercearia Cruchot, ocupando uma posição de destaque na praça, com duplas vitrines de vidro plano e uma brilhante tabuleta que dizia ALIMENTATION DE RENNES, dava
toda a indicação de ser um próspero estabelecimento, negociando com um grande e tentador sortimento de alimentos. Um constante fluxo de fregueses entrava e saía
pela porta, estreitada por presuntos pendurados, redes de limões, um cacho de banana e várias cestas de verduras escolhidas. Dentro, as prateleiras estavam cheias
dos generosos produtos da terra e do mar, com salsichas e fígado de ganso, sardinhas e enchovas, toucinho, azeite de oliva, queijo, frutas em conserva, conhaques
antigos também, vinhos e licores, café, especiarias, dobradinhas, pés de porco, e vidros e garrafas dispostos em pirâmides brilhantes no chão coberto de serragem.
Entrando, Stephen estacou menos por seu próprio nervosismo do que pelo barulho e movimento, gritos de pedidos, a movimentação de dois auxiliares de paletó branco:
uma moça normanda de ombros pesados e um homem coxo de olhar aborrecido.
Todavia, em pouco sentiu-se escolhido por uma voz de timbre penetrante.
- Que deseja, m'sieur?
Presidindo de uma mesinha, controlando o lufa-lufa, parecendo a dona pela amplidão do seu busto e ousadia do olho, uma mulher de cabelos amarelos, de uns 38 anos,
com a sua figura curva e bem coberta, pele lisa, orelhas rosadas suportando pesados brincos de ouro. Usava um vestido malva da última moda provinciana - com uma
aplicação de renda no decote - vários anéis e pulseiras, e um broche de camafeu.
- Perdoe-me - falou Stephen em voz baixa, aproximando-se. - Meu nome é Desmonde. Soube que a senhora talvez precise de um tutor inglês para as suas crianças.
A verificação de que ele não era um freguês afastara o sorriso maquinal dos lábios de Madame Cruchot; seus olhos apertaram-se na fria apreciação de alguém que, no
mercado, é capaz de avaliar, por um simples cabelo o peso e a qualidade de um porco cevado. Mas a palavra tutor, que ele por sorte tinha usado, lisonjeou-lhe a vaidade,
que predominava entre as muitas e fortes características que possuía, e que aliás era o verdadeiro motivo por trás da ideia de que as suas filhas deviam aprender
o idioma inglês. Também aquele jovem que tinha diante de si parecia simpático, "refinado" e tímido o bastante para lhe trazer algum problema.
- M'sieur pode me dizer quem é?
Muito francamente, Stephen lhe disse.
- Então m'sieur é estudante da universidade de Oxford. - Um lampejo iluminou o olho azul de porcelana de Madame Cruchot, mas no interesse da barganha foi rapidamente
suprimido. Duvidosa, encolheu os ombros. - Naturalmente, temos apenas a palavra de m'sieur quanto a isso.
- Asseguro-lhe que...
- Oh, la, la... estou disposta a confiar no senhor. Mas, naturalmente, considerando a idade das minhas filhinhas, exijo o mais alto padrão de conduta e moralidade.
- Naturalmente, madame...
- Então, quando... - interrompeu-se, com uma ordem aguda, suas palavras ressoando como uma pequena salva de artilharia: - Não, não, Marie, esses ovos não, estúpida,
já estão encomendados por Madame Oulard... e, Joseph, até quando preciso dizer que tire açúcar do saco aberto? Qual o salário que pede, m'sieur?
Stephen tratou de calcular rapidamente o menor estipêndio capaz de sustentá-lo.
- Digamos, com lições diárias, 30 francos por semana?
Com um gesto de consternação, Madame Cruchot ergueu as suas mãos gordas e cheias de anéis. Depois sorriu gentilmente, mostrando-lhe um dente de ouro que era como
uma bala.
- M'sieur está brincando.
- Não, realmente... - Empurrado e acotovelado pelo redemoinho de fregueses, Stephen ficou rubro. - Estou falando sério.
- Também somos gente honesta, Monsieur Crochet e eu, m'sieur, mas longe, oh, muito longe, de ser rica. - Feriu uma nota patética. - O máximo que meu marido me autoriza
a oferecer são 20 francos.
- Mas, madame... eu tenho que viver.
Madame Cruchot sacudiu o seu chinó amarelo tristemente.
- Nós também, m'sieur.
Stephen mordeu o lábio, com raiva e orgulho no peito. O aluguel semanal do seu quarto era de 12 francos. Como diabo poderia manter-se com os oito francos que lhe
restariam depois de pagar a sua senhoria? Não, por grande que fosse a sua necessidade, não poderia submeter-se a semelhante imposição. Deu meia-volta para retirar-se.
Mas Madame Cruchot, que não queria perdê-lo e que, no intervalo, tinha-o observado de soslaio da cabeça aos pés, deteve-o com um gesto delicado.
- Talvez... - Inclinou-se para diante, falando com um ar solícito. Talvez se servíssemos aqui o almoço para m'sieur, isso ajudasse um pouco a situação. Uma refeição
boa e substancial.
Apanhado desse modo, Stephen hesitou. Profundamente humilhado, não podia erguer os olhos.
- Muito bem... aceito - murmurou ele.
- Ótimo. Nosso negócio está fechado. Começará amanhã. Não esqueça que exigirei instrução da mais alta classe. E, sem dúvida, no futuro, m'sieur não esquecerá de
barbear-se.
Stephen inclinou a cabeça. Não podia falar. Contudo, a despeito da sua humilhação, por ignominiosa que fosse a sua situação, só podia experimentar uma sensação de
alívio. Com 20 francos e um almoço diário, estava salvo, ao menos por enquanto.
Ao sair da mercearia, ouviu a voz de Madame Cruchot proclamando em altos brados para as regiões do mundo:
- Marie-Louise, Victorine... Sua bondosa mamã acaba de contratar um tutor inglês.


CAPÍTULO III

AGORA, NA ABAFANTE MONOTONIA de uma cidadezinha provinciana, começava para Stephen uma estranha existência. Todas as manhãs, era acordado pelo sino da catedral,
que badalava três vezes, pesadamente, na Consagração das sete horas, afugentando as pombas, quebrando o silêncio eclesiástico da praça vazia. Uma vez vestido, descia
descuidadamente a escada - pelo menos podia sair de casa sem medo de encontrar a sua senhoria. Atravessando a praça para o Café des Ouvriers, que ficava a curta
distância do jardim de muros altos do convento, encontrava sempre as mesmas mulheres pias, vestidas de preto, e algumas freiras, aos pares, emergindo - flutuantes,
parecia, sobre as largas abas das suas toucas - da igreja. O café, assinalado por um ramo murcho na ombreira da porta, não era um lugar especialmente reputado, não
mais do que a cozinha de pedra de uma casa baixa mobiliada com uma mesa tosca e alguns bancos de madeira. Ali, por cinco soldos, tomava o desjejum habitual da casa:
uma xícara de café preto cheio de borra, lavado por um golinho de vinho branco num copo grosso com um dedo, uma espantosa combinação em seu poder restaurativo. Às
vezes havia um jornal da noite passada, Intelligence de Rennes, que o mantinha ocupado por meia hora. Podia conversar um pouco com Mie, a fille de comptoir de olhos
negros, quieta, que atendia o bar primitivo com discrição e que aparentemente tinha outras funções e obrigações, ou com outro cliente, talvez um mascate, um carregador
da estação, ou um entregador de carvão.
Pontualmente às 11 horas, apresentava-se na casa dos Cruchots, situada atrás da mercearia, e se dirigia a uma porta na parede lateral. Ali, na latada contígua a
uma pequena área fechada de relva, ou, nos dias de chuva, na sala abundantemente enfeitada a que Madame se referia como o "salon", Stephen dava sua atenção às menininhas
Cruchot; Victorine, de onze anos, e Marie-Louise, que tinha apenas nove.
Não eram, de um modo geral, crianças desagradáveis, um tanto estragadas por mimos, mas com toda atração da sua tenra idade. Às vezes, eram mesmo muito meigas à sua
maneira, especialmente a mais nova, uma coisinha bonita de cachos castanhos e faces de maçã". Stephen não as achou difícil de levar e logo ficou gostando delas.
Contudo, já os atributos herdados começavam
a se manifestar - sabiam o preço de tudo, calculavam como matemática, podiam recitar fluentemente aforismos morais sobre a virtude da economia. Cada uma tinha o
seu cofrezinho de metal, com a forma da Torre Eiffel, para depositarem as suas economias, e traziam a chave presa, com a medalha de um santo, a uma fita azul no
pescoço. Às vezes, repetiam, muito inocentemente, observações que tinham ouvido.
- Monsieur Stephen - ele insistia em que o chamassem pelo seu nome de batismo - mamã disse a papá que o senhor deve ser muito pobre.
- Bem, Victorine, devo confessar que ela estava certa.
- Mas papá disse que pelo menos o senhor não era um beberrão.
- bom... papá é meu amigo.
- Ah, sim, Monsieur Stephen. Porque ele também disse que, embora o senhor com certeza tenha feito alguma coisa errada na sua terra, sendo obrigado a fugir, não deve
ter sido um crime sério.
Stephen riu-se, um tanto secamente.
- Vamos... já é tempo de começarem a leitura.
Tão rápido tinha sido o progresso das suas ágeis inteligências, que ele acabara por trazer Alice no País das Maravilhas, e o interesse delas pela história tornava
possíveis até as palavras mais difíceis.
Embora, à maneira de um proprietário, ocasionalmente enfiasse a cabeça na porta, Monsieur Gruchot não vinha muito às lições. Era um homem de estatura média, com
modos inquietos, olhos cor de café, vivos, com os cantos injetados de amarelo, e um bigode preto, cheio, de pontas reviradas, que usava polainas e, dentro ou fora
de casa, exceto no sagrado recinto do "salon", um brilhante chapéu de palha reto. O seu lugar, naturalmente, era na loja, mas passava dois dias por semana fazendo
compras no mercado da vizinha cidade de Rennes, de onde, aliás, ele e sua mulher tinham vindo originalmente. Ligado a Madame Cruchot por uma ostensiva felicidade,
pelos dois lindos penhores da sua afeição, e acima de tudo pelo seu apaixonado desejo de ganho, Albert Cruchot tinha, contudo, em certos momentos, um certo ar, como
se as proporções físicas da sua esposa, seu riso agudo e voz penetrante fossem uma opressão maior do que um homem do seu porte pudesse razoavelmente aguentar. Ele
não encolhia exatamente, porém seus pés empolainados se moviam inquietos e a sua pupila café-au-lait bruxuleava num brilho de impaciência.
Na verdade, por trás do seu sorriso, dos seus modos amáveis e do brilho especioso do seu dente de ouro, Madame Cruchot era uma tirana. Todos os dias ela vinha verificar
"por si mesma" o andamento da lição, sentando-se rígida, numa postura de supervisão, os olhos sem compreensão mas alerta, indo de Stephen para as crianças, perturbando-as,
fazendo que cometessem erros.
- O senhor compreende, m'sieur... desejo que elas não só leiam mas falem coloquialmente... e recitem poesias... como fazemos em sociedade.
Atendendo às suas repetidas exigências, Stephen ensinou as crianças as duas primeiras estrofes de A uma Cotovia. Então, no dia indicado para mostrar o progresso
das suas pupilas, madame apareceu com três amigas íntimas, esposas de lojistas preeminentes, membros da haute bourgeoisie de Netiers, que se aboletaram expectantes
nas cadeiras douradas do salão.
Marie-Louise, escolhida para a primeira prova, foi colocada sozinha na falsa ilha de Aubusson.
- Salve, ó tu, espírito jovial... - começou ela; depois parou, olhou em torno e suprimiu um risinho.
- Comece de novo, Marie-Louise - disse Stephen bondosamente.
- Sabe, ó tu, espírito jovial... - Novamente a criança se interrompeu, piscou, torceu a cinta e olhou timidamente para a mãe.
- Continue - disse Madame Cruchot numa voz estranha. Marie-Louise lançou um olhar súplice para o seu professor. Um leve
suor começava surgir na testa de Stephen. Num tom de lisonja, que o desagradava, disse:
- Vamos, minha querida. Salve, ó tu, espírito jovial...
Um breve silêncio, durante o qual Madame Cruchot pareceu ter virado pedra: depois, sem aviso, levantou-se e deu um tapa na cara da menina. Imediatamente Marie-Louise
debulhou-se em pranto. No momento de consternação que se seguiu, olhares indignados foram lançados para Stephen, a criança soluçante, agora agarrada ao seio materno,
foi confortada com um bombom, e ouviu-se a voz de Mane gritando lá da loja:
- Venha depressa, madame... o fígado está chegando do matadouro. Na confusão que acompanhou a retirada de Madame Cruchot, Stephen ficou desamparado, prevendo com
sardónico fatalismo a possibilidade da sua demissão. Contudo, quando a mãe reapareceu, Marie-Louise correu através da sala, pegou a mão dele e despejou instantaneamente
a poesia, que recitou por inteiro, de um só fôlego. Victorine, para não ficar atrás, seguiu-a, por sua conta, com um perfeito desempenho.
Imediatamente o aspecto da reunião mudou, houve gritinhos de aclamação, sorrisos e acenos de cabeça foram dispensados a Stephen. Madame Cruchot resplandecia de perdoável
triunfo. Na verdade, depois de acompanhar as senhoras até a porta, voltou para Stephen com uma disposição de curiosa indulgência. Em vez da costumeira fina fatia
de presunto, deu-lhe no almoço um prato quente de carne ensopada, guarnecida de rabanetes e cebolas de Bordéus. Sentando-se diante da mesa da copa, observou:
- Afinal de contas, as coisas correram bem.
- Sim - disse Stephen sem levantar os olhos. - No começo, foi apenas o medo do palco.
Por um momento, ela continuou a vê-lo comer.
- Minhas amigas ficaram muito satisfeitas com o senhor - disse ela de repente. - Madame Oulard... a esposa do nosso primeiro pharmacien, uma senhora de certa posição
na cidade, embora naturalmente não possa pagar um tutor para as suas crianças, considera-o très sympathique... um perfeito cavalheiro.
- Sou muito grato por sua boa opinião.
- Acha que ela é uma mulher bonita?
- Deus do céu, não - disse Stephen com um ar ausente. - Eu mal a notei.
Madame Cruchot afagou as suas pastas de cabelo amarelo e, esticando o corpete, bateu nas suas firmes ancas com um gesto significativo.
- Deixe-me servir-lhe mais ensopado.
Nos dias que se seguiram, a qualidade e aliás a quantidade da refeição do meio-dia do tutor inglês melhoraram misteriosamente, e de várias outras maneiras a dona
da casa continuou a sua atitude diferente, e até se poderia dizer, o seu favor. Era uma mudança afortunada para Stephen, em quem a falta de alimentação adequada
e aquela tosse que não o deixava tinham causado considerável dano físico. Começou a sentir-se mais forte, novas correntes de vida movendo-se lentamente nas suas
veias, e um dia, de repente, sentiu, pela primeira vez desde que chegara a Netiers, um vivo desejo de pintar.
O impulso era irresistível, e ao deixar a mercearia apanhou um bloco de papel da Índia e alguns bastões de giz colorido. Quando a lição estava quase terminada, pôs
as duas crianças a ler no mesmo livro, juntas, na latada, e então, com o anseio de uma paixão contida, com linhas ligeiras, firmes e felizes, fez um pastel das suas
cabeças. A coisa foi feita rapidamente, tão veemente era a inspiração - em questão de menos de meia hora. Nunca tinha executado algo tão vívido, tão fresco na sua
composição impressionista. Até ele, que sempre subestimava o seu trabalho, estava comovido, sobressaltado, e excitado por aquela coisa adorável que tinha ganho vida,
misteriosamente, vinda do nada, ao seu toque.
Estava com a cabeça inclinada apontando para o fundo com um creiom amarelo, quando ouviu um som atrás dele: Madame Cruchot, por cima do seu ombro, estava olhando
para o pastel.
- Foi o senhor quem fez isso, m'sieur?
A sua expressão de pasmada incredulidade provocou-lhe um sorriso.
- Gosta?
Talvez ela não compreendesse plenamente a pintura. Mas via nela as suas duas crianças, belamente sugeridas em poucas linhas, umas poucas sombras de cor pura e brilhante.
Não entendia nada de arte. Contudo, o seu astuto instinto comercial tornou-a de imediato - ainda que subconscientemente, advertida de que ali estava algo raro e
delicado, algo da mais alta qualidade. Cobiçou-a
imediatamente. Mas além disso experimentou um singular afluxo dos seus sentimentos por aquele jovem inglês desconhecido, aquela emoção que começara quando, no dia
da recitação, o nevoeiro da sua indiferença se dissipara e ela o vira, através da tagarelice das suas amigas, como realmente era, um homem jovem muito atraente,
com a figura franzina e rosto sensível, os olhos negros e a delicada palidez. As menininhas ainda estavam soletrando no seu livro. Ela passou por trás do sofá e
sentou-se ao lado de Stephen.
- Não percebi - disse ela num cochicho confidencial - que m'sieur era um verdadeiro artista.
- Mas eu lhe disse quando a senhora me empregou.
A referência àquela primeira entrevista, quando ela o tratara tão rispidamente, provocou-lhe um rubor profundo até o seu queixo redondo e sólido e a coluna muscular
do pescoço.
- Ah - disse ela - não fiz muito caso do que me disse naquela ocasião. Eu não tinha o prazer de conhecer m'sieur como conheço agora... após estas semanas de agradável
intimidade, quando tem ensinado às minhas filhas, participado comigo da minha casa, e sempre com a polidez e reserva que só vem da verdadeira distinção. M'sieur
Stephen... - era a primeira vez que ela se dirigia a ele pelo nome, e o fazia com um frémito que endurecia a pele dos seus sólidos seios... - mesmo que não tivesse
me dito nada, eu saberia, por esta pintura, que o senhor tem grande talento.
Suas palavras de mau gosto eram embaraçosas, mas ele disse, gentilmente:
- Talvez queira ficar com ela...
A sugestão, com as suas implicações de compra, levou-a a recuar ligeiramente, mas só por um instante. Respondeu, séria:
- Quero sim, M'sieur Stephen, e vou falar a esse respeito com meu marido esta noite. Naturalmente, é possível que ele diga que o trabalho foi feito na hora da aula,
pelo que o senhor já estava pago, e nesse caso...
- Minha cara Madame Cruchot - interpôs apressadamente Stephen - a senhora absolutamente não me entendeu. Ofereço-lhe a pintura de presente.
Os olhos dela brilharam, não de cupidez agora, mas de uma emoção mais suave e confusa. Suprimiu um suspiro, olhou para ele com uma expressão terna, dizendo:
- Obrigada, M'sieur Stephen. Garanto-lhe que não se arrependerá.
A singularidade de estar sentada tão junto dele punha-lhe a cabeça a girar, uma sensação bem diferente da que lhe dava a proximidade de Cruchot. Mas as menininhas
começavam a exigir atenção, e ela ficou com medo de comprometer-se mais. Com um olhar de soslaio, rápido mas intenso, no qual tentava, em vão, mostrar o seu coração,
que batia rapidamente, levantou-se, disse-lhe au revoir, e voltou para a mercearia.


CAPÍTULO IV

APÓS SEMANAS DE aNIMADA APATIA, Stephen achou que podia pintar novamente. Era como despertar para uma nova vida na qual ele se descobria possuído de uma capacidade
maior, de uma visão mais penetrante do que antes. A cidadezinha, com seus insípidos habitantes, até aqui um deserto de esterilidade, transfigurou-se de repente numa
palpitante fonte de inspiração. Pintou o hotel de ville; a praça de armas do quartel; os telhados da cidade, vistos da sua janela, estranhamente pitorescos; uma
bela composição em cinza e negro das irmãs do convento voltando da missa na chuva, embaixo dos seus guarda-chuvas. As telas que tinha trazido de Napoleon Campo foram
uma a uma transformadas, pregadas no canto do quarto do sótão.
Havia cartas também, de Peyrat e Glyn, para alegrá-lo. Jerome propunha-se continuar em Puy de Dome no inverno e Glyn voltaria a Londres para uma breve estada no
outono. Ambos instavam para que fosse juntar-se a eles. Mas era claro que ele não iria. Estava pintando aqui, e feliz. Nesse estado de ressurreição, a lição diária
para as meninas Cruchot perdeu seu aspecto normal de necessidade. Na verdade, muitas vezes era penoso para Stephen pôr de lado os seus pincéis e correr à mercearia,
justamente quando a luz era a melhor. E embora, na linguagem do estabelecimento, ele continuasse tendo um valor, a sua mente não estava inteiramente no ensino, nem
após a aula era motivado por outro pensamento que não o ir-se dali.
Por causa da sua distração, continuou mais ou menos esquecido das mudanças, sempre crescentes, na atitude de Madame Cruchot para com ele. O vasto melhoramento na
cozinha era, sem dúvida, evidente, mas ele creditava-o à gratidão da proprietária pelo presente do quadro. A esta também atribuía os outros sinais de atenção que
lhe eram dispensados. Tornara-se agora costume de madame presidir o seu almoço e impor-lhe a sua hospitalidade. Na verdade, a sua dedicação foi além.
- M'sieur Stephen - ponderou ela um dia, com uma nota de solicitude. - estou preocupada com o seu conforto. O senhor pode não ser bem-visto em casa de Madame Clouet.
- Mas sou - contrariou ele. - Ela é uma alma muito decente.
- Mas é um quarto tão pobre.
- Conhece-o? - surpreendeu-se ele.
- Bem - disse ela enrubescendo. - Passei pela casa muitas vezes... no meu caminho para a igreja, naturalmente. Se ao menos alguém de gosto acrescentasse umas poucas
coisas... e as arranjasse, ficaria muito mais agradável para o senhor.
- Não, realmente - sorriu ele. - Agrada-me como está... despido e arejado.
- Mas não é bom para o senhor - insistiu ela. - Não posso deixar de notar que a sua tosse ainda o incomoda.
- Oh, não é nada... foi só esta manhã.
- Meu caro M'sieur Stephen. - Olhou-o com terna censura. - Não me contrarie em tudo. Se não posso melhorar o seu quarto, deixe-me ao menos restaurar a sua saúde.
No dia seguinte, para seu embaraço, um frasco de sirop pectoral do estabelecimento de Monsieur Oulard estava na mesa ao lado do seu prato, e madame, medindo uma
colherada, administrou-lhe a dose com ambas as mãos. Victorine e Marie-Louise divertiram-se vendo o seu professor ter que engolir remédio à força. E, no fim, Stephen
também riu.
Quando as crianças correram para brincar no jardim, Madame Cruchot, após um olhar demorado, soltou um suspiro:
- Naturalmente... uma coisa posso ver muito bem. O senhor encontrou na cidade alguma moça insignificante que o atrai.
- O quê! Em Netiers?
- Por que não? Não vai todos os dias ao Café des Ouvriers, e aquela Julie Grosette... eles por lá não têm grandes escrúpulos, posso lhe garantir...
Na verdade, ela conhecia todos os falatórios, mexericos e pequenas intrigas da cidadezinha. Mas o olhar atónito de Stephen era tamanho, que ela parou de falar. Forçou
um risinho.
- Não me olhe assim, meu amigo. Só estou pensando no seu bem-estar. E afinal de contas, embora eu seja uma boa mulher, também sou uma mulher do mundo. Então não
tem ninguém?
- Não - disse ele brevemente.
O olhar de expectativa, de ciúme, desapareceu dos seus olhos e foi substituído por um ar de coqueteria.
- Diga-me se gosta do meu vestido.
Colocou-se ligeiramente de quadril, exibindo o seu novo vestido, de um verde um tanto agressivo, com trancelins amarelos embaixo, que davam um efeito de juventude.
E o cabelo, recém-lavado, fora ondulado com um brilho mais metálico. Madame tinha apego aos vestidos, era uma cliente regular das galleries de Rennes, e ultimamente
exibia para Stephen as suas mais elaboradas toilettes, que, ai!, ele nunca parecia notar. Era essa indiferença que aumentava
os seus anseios, essa completa inconsciência de que ela era uma mulher, e talvez ele fosse assim com qualquer mulher, de uma inocência comparável à do jovem cura
que uma vez servira na paróquia e que ela admirava à distância, sonhando com ele todas as noites ao lado do merceeiro, que, com a carne aplacada pelo seu insensível
traseiro, roncava musicalmente. Mas isso não tinha sido nada, o mero sopro das asas de uma borboleta ao lado deste desejo que agora lhe corria nas veias, fazendo-a
arder de vontade de apertar Stephen nos braços e cobri-lo de beijos.
Ela estava cega para a comédia da sua situação: uma mulher de quase
40 anos, metida de corpo e alma nas atribulações de um negócio banal, de punhos fechados, uma tirana que passava a vida, de voz estrídula e metálica, pondo areia
no açúcar, água na sidra, extorquindo o último soldo das palmas renitentes de um camponês - ela, entre todas as mulheres, sendo amaciada, liquefeita por aquela devastadora
paixão por um rapazinho que talvez pudesse ter sido seu filho. Perdeu o interesse nas suas crianças, nas suas amigas, na busca da riqueza. O marido tornou-se-lhe
odioso. Os seus maneirismos burgueses, a maneira de comer, de soltar ventosidades baixinho após a sua cerveja, despertavam nela uma tempestade de ódio.
- Je te défends de passer le gaz en bas! - gritava ela, encolerizada.
E com tudo isso o seu próprio refinamento aumentava. Banhava-se com mais frequência, usava um perfume mais forte, chupava pastilhas para perfumar o hálito, mudava
a rroupa branca mais seguidamente. Se não pudesse tê-lo, sentia que deixaria de viver.
Subitamente veio uma resposta às suas preces mudas, uma ideia de brilho surpreendente. Como é que ela não tinha pensado nisso antes? Quando Stephen entrou nesse
dia, ela o interceptou no corredor.
- Meu amigo - disse ela alegremente. - Tenho uma boa notícia para o senhor, em suma, uma incumbência. Monsieur Cruchot insiste em que o senhor deve pintar-me.
Desconcertado, Stephen olhou para ela em silêncio.
- Sim - acenou ela. - Cruchot está cheio de entusiasmo. Não falou em outra coisa ontem à noite... De corpo inteiro... a óleo.
- Mas, madame. - Stephen franziu o cenho hesitante, procurando uma desculpa. - Eu... eu não pinto retratos... estou trabalhando em outro tema...
Ela sorriu para ele tranquilizadoramente.
- Não se preocupe, mon petit, farei com que seja pago. Na terça-feira, então, começamos. Está combinado.
Antes que ele pudesse terminar, ela bateu-lhe no braço, com um olhar arqueado, e saiu depressa da sala.
Terça-feira era meio feriado para os comerciantes. Como sempre, a loja
fechava ao meio-dia e tudo ficava tranquilo. Contudo, no momento em que entrou, Stephen sentiu, nos postigos fechados, uma calma sobrenatural. Madame Cruchot recebeu-o
na porta.
- Nada de lição hoje - anunciou ela efusivamente. - As meninas foram para o campo com Marie.
Ao admiti-lo na loja, explicou que a empregada fazia uma visita por mês aos seus pais em St. Vallé, e que, às vezes, como grande favor, ela lhe permitia que levasse
as crianças.
- E naturalmente - acrescentou sem cerimónia - meu marido está em Rennes, no mercado. Não seremos perturbados.
Novamente o silêncio incomum perturbou-o; nenhum rumor na adega, onde Joseph, o auxiliar, passava duas horas cuidando do estoque. Na casa, a não ser eles, não havia
ninguém. Mas foi a mesa, na sala de almoço, posta para dois, com toalha engomada e os melhores talheres, adornada com um vaso de rosas vermelhas, que o pôs em guarda.
- Se não se incomoda, almoçaremos juntos. Será muito mais conveniente.
Falando voluvelmente, naquela mesma maneira descuidada, trouxe da copa um poulet de Bresse assado, com cogumelos e salada, um paté de Estrasburgo, pêssegos em calda,
e uma garrafa de champanhe. Somente depois de abarrotar o seu prato, permitiu-se olhar para ele.
- Estamos bem aconchegados aqui. Não é agradável almoçarmos tête-à-tête? Sabe, deve comer antes de trabalhar. - Lançou-lhe um olhar pudico. Deixe-me servir-rlhe
o champanhe. É o melhor que vendemos. Cinco francos a garrafa.
Ele sentia-se confuso, desconcertado e inquieto. Mas no seu estado empobrecido, tinha para com a comida uma espécie de oportunismo. Comeu o que foi posto diante
dele, certo de que não estava em posição de recusar, mas foi se tornando cada vez mais consciente daqueles olhares lânguidos que pousavam nele. Do seu busto também,
que subia com esforço cada vez que ela respirava com esforço, fazendo os seios pularem e o queixo afundar no pescoço, parecendo aproximar-se mais dele a cada respiração.
Ao contrário do seu costume habitual, ela não estava comendo, servindo-se, com um ar de refinamento, apenas de uma asa de frango, e agora já partindo para o segundo
copo de vinho. Seus olhinhos redondos brilhavam como bolinhas de gude. Sentia um forte impulso para estender o braço por sobre a mesa e apertar-lhe a mão. Ele nunca
adivinharia que delicados favores ela estava preparada para lhe oferecer? Quanto menos ele entendia, mais a seduzia.
- Meu amigo - exclamou ela - não pode fazer uma ideia do que tem sido a minha vida nestes últimos 15 anos aqui em Netiers.
- Infelizmente não a conheço há tanto tempo.
- Não - refletiu ela, e numa voz sumida: - Contudo, devo ao senhor o fato de ter descoberto o vazio da minha existência.
- Isso seria um mísero retorno, madame... se fosse verdade.
- É verdade. - Como ele nada dissesse, ela moveu a cabeça enfaticamente. - Sim, ao senhor, meu amigo, que me abriu os olhos para novos horizontes, com os quais antes
eu nem sonhava. Monsieur Cruchot, embora sem excessiva ternura ou delicadeza, é um homem digno. E naturalmente eu sou uma mulher virtuosa. Mas há momentos em que
a solidão me invade o coração, quando tenho necessidade de um confidente. Ah, meu amigo - suspirou ela
- quando o coração pede, quem é que pode negar? É errado procurar a realização... uma vez que seja discreta?
Sentado em silêncio, constrangido, uma rude explicação para aquele comportamento atravessou-lhe de fato o espíriro. Mas despediu-a como absurda. Contudo, sentia-se
obrigado a começar o trabalho sem demora e executá-lo o mais depressa possível. Empurrou o prato.
- E agora, madame, se lhe for agradável, podemos começar. Pensei que seria melhor fazer um esboço preliminar. A senhora posará para mim? No salão?
Ela olhou para ele e tomou um fôlego convulsivo.
- Não - replicou numa voz indistinta. - Lá em cima a luz é melhor. Levantou-se da mesa e dirigiu-se para a porta. - Eu me apronto logo. Termine o seu vinho. E depois
suba.
Ele nunca tinha estado antes no andar de cima. Após esperar cinco minutos, encaminhou-se para a escada. Estava frouxamente iluminada, e os degraus, cobertos de tapete
fino, estalavam aos seus pés. O cheiro dos queijos, postos a amadurecer no armário do corredor encheu o ar. Ao chegar à porta, encontrou-a aberta. Imaginou que dava
acesso à sala de estar, mas antes que pudesse bater, ela o chamou:
- Entre, mon ami.
Ele entrou.
Madame Cruchot estava junto à cama dupla, pedindo a sua aprovação. Tinha tirado o vestido e usava um penhoar, que, numa pose vulgar, com uma das mãos no quadril,
ela mantinha meio aberto, revelando os calções listrados, com um babado de renda pesada, que caía abaixo dos seus joelhos grossos, e uma camisola cor-de-rosa umedecida
por uma mancha de perfume que acabara de pôr, enrugada pelo espartilho.
Um suor frio inundou Stephen. Suas pupilas ardiam com cada detalhe do ostentoso mas desmazelado dormitório, o tapete ornado e as cortinas com colgadura, a cómoda
manchada, o utensílio de louça embaixo da cama, e até a camisa de dormir de Cruchot enfiada às pressas embaixo de um travesseiro. Empalideceu. Interpretando mal
os seus olhos dilatados, ela agitou a cabeça,
fingindo tremer, e então, com uma terrível coqueteria, veio para ele. Era demais. Ele recuou com uma expressão de repulsa, furioso consigo por ter caído em tal situação,
que, embora participasse dos elementos da farsa era abjetamente humilhante. Sem uma palavra, voltou-se e precipitou-se para fora do quarto.
Nessa noite, sentado no seu sótão, ouviu fortes pancadas na porta da frente, seguidas de passos pesados na escada, e logo Monsieur Cruchot invadia o seu quarto.
O merceeiro, ainda vestindo o seu melhor terno, encontrava-se num estado de cólera fabricada.
- Como se atreve a fazer propostas amorosas a minha esposa... miserável insignificante... no instante em que dou as costas? Tenho a intenção de ir diretamente à
polícia. Sempre pensei que você era uma cobrinha inglesa. Mas morder a mão que o sustenta... uma mulher de coração puro... uma mãe! Que ultraje... uma atrocidade!
Jamais torne a mostrar o seu focinho no meu estabelecimento. Mas, além disso, deve haver uma compensação... por danos... no mínimo uma pintura.
Stephen sabia que Cruchot não gostava dele, no entanto era evidente que aquela exibição era instigada pela esposa, o marido era o mensageiro da mulher despeitada.
E com uma onda de amargura, como Cruchot continuasse a ameaçá-lo, Stephen arrancou uma página do bloco que estava na mesa dele e entregou-a ao merceeiro. Era um
esboço que ele acabara de fazer de memória de madame, obesa e afetada, de calções, no quarto de dormir.
Monsieur Cruchot, silenciado pelo gesto inesperado, olhou para o desenho fatal. Sua face tornou-se lívida. Ia rasgá-lo, mas, com a esperteza nativa, considerou-o
novamente, enrolou-o cuidadosamente e colocou-o dentro do chapéu. Depois, com um olhar furtivo, voltou-se e foi embora.


CAPÍTULO V

NA MANHÃ SEGUINTE, Stephen fez a sua mochila, amarrou as suas telas num canudo e, pondo a carga ao ombro, partiu de Netiers a pé. Seu objetivo era Fougères, situada
na route nacional, a 30 quilómetros de distância, e às cinco horas da tarde, após uma sufocante caminhada através dos campos, alcançou, a cidade, erguida em ambos
os lados de uma colina cortada pela estrada principal
para Paris. Lá, encontrou um restaurante barato que lhe pareceu um ponto de parada para caminhoneiros. O garçom, ao qual pediu ajuda, tinha certeza de que surgiria
uma oportunidade, e na verdade, justamente antes das nove, parou um camion da Compagnie Atlantique com um reboque e dele desceram dois homens de macacão e entraram
no bar. Poucos minutos depois, o garçom fez um sinal, houve apresentações, explicações transitórias e um geral aperto de mãos - tudo arranjado. As coisas de Stephen
foram colocadas embaixo do assento e eles partiram.
A noite chegou quente e serena. Rodaram através de aldeias adormecidas, cidades desertas onde brilhavam apenas umas poucas luzes, passando Vire, Argentan, Dreux.
O ar quente assobiava ao lado deles, os paralelepípedos estrondejando embaixo, a lua mergulhou por trás das alamedas nevoentas de álamos. Finalmente, quando rompeu
o amanhecer pálido e escorrido, atravessaram o Sena em Neully, entraram em Paris pela Pote Neully e pararam no mercado Les Halles. Lá, Stephen agradeceu aos seus
dois amigos e deixou-os.
A cidade, ainda não acordada de todo, tinha um ar cinzento e triste, mas quando atravessou a Ponte Nova, Stephen respirou fundamente o ar úmido. Estava de volta
a Paris. Depois de Netiers sentia-se mais forte, acima de tudo cheio de uma firme determinação de demonstrar o seu talento ao mundo.
Quando o mont-de-piété da Rue Madrigal abriu as portas, ele estava à espera do lado de fora. Entrando, empenhou o relógio - um presente do pai no dia do seu vigésimo
primeiro aniversário - pelo qual recebeu 180 francos. A seguir, após uma demorada procura, achou uma acomodação numa rua lateral próxima da Place St. Séverin, um
bairro frequentado por artistas como último recurso. Era um quarteirão pobre e um quarto ainda mais pobre, escassamente mobiliado e terrivelmente sujo - somente
10 francos por semana. Imediatamente se pôs ao trabalho e, pedindo emprestados uma vassoura e um balde, limpou o cómodo. Até lavou as paredes, a fim de que parecessem
recomendáveis, embora ainda permanecessem algumas manchas de insetos.
Passava das duas; sem pensar em comida, escolheu quatro das suas pinturas e dirigiu-se rapidamente pelos quais à loja de Napoleon Campo. O vendedor de tintas estava
sentado no seu caixote costumeiro atrás do balcão, balançando as pernas curtas, usando uma jaqueta azul de piloto e boné amarelo de tricô, com as orelhas gretadas
de fora, o rosto púrpura com a barba por fazer, mãos cruzadas sobre a barriga. Saudou Stephen amavelmente, como se o tivesse visto na véspera.
- Bem, Monsieur l'Abbé, que posso fazer pelo senhor?
- Antes de tudo, deixe-me liquidar o que lhe devo.
- Obrigado, o senhor é um homem honesto.
Recebeu os 50 francos que Stephen lhe deu e enfiou-os numa velha bolsa de couro.
- E agora, Monsieur Campo, quero uma tela bem larga, 2,00 x 0,80cm.
- Ora! Tem um trabalho tão grande assim em vista? Naturalmente pode pagar?
- Em dinheiro não, monsieur. Com estes.
- Endoideceu, Abbé? Deus do céu, meu porão está abarrotado de pinturas, refugo impróprio até para a lata de lixo, que recebi por ter um coração bondoso.
- Nem tudo é lixo, Campo. Você recebeu pinturas de Pissarro, e Boudin, e Degas.
- Você é um Degas, meu pequeno Abbé?
- Um dia, talvez.
- Meu Deus, é sempre o mesmo conto de fadas. Então a sua tela especialmente grande é para pendurar no Salon, com multidões diante dela. Terá fama e fortuna da noite
para o dia. Bah!
- Então aceite 20 francos por conta e estas pinturas como penhor do restante.
Os insignificantes olhinhos azuis de Napoleon procuraram o rosto pálido e sério diante dele. Tantos, tantos rostos tinham passado por sua loja nos últimos 30 anos,
que afogavam a sua memória. Era um homem fleumático, que não se comovia facilmente, e a idade o tinha tornado ainda mais impassível. Mas ocasionalmente, embora isso
fosse raro, havia nos modos e no aspecto de algum aspirante necessitado, como agora nas curiosas feições daquele inglesinho, um tipo de intensidade que o impressionava.
Hesitou, depois desceu do seu assento e começou a remexer nas prateleiras. Quando a tela que Stephen queria - um fino linho de grão fino - estava em cima do balcão,
houve uma pausa.
- Disse 20 francos?
- Sim, Monsieur Campo. Stephen contou as moedas.
Napoleon Campo tomou uma pitada de rapé, limpando meditativamente o nariz carnudo com o punho da sua jaqueta de piloto.
- E agora, naturalmente, vai passar fome.
Houve outra pausa. Subitamente Campo empurrou as moedas que estavam em cima do balcão.
- Devolva estas à sua caixa de coleta, Abbé. E me dê os seus miseráveis borrões.
Surpreso, Stephen entregou-lhe as suas pinturas. Sem ao menos uma olhada por alto, Napoleon colocou-as embaixo do balcão.
- Mas. . . não quer vê-las?... São... as melhores que eu fiz.
- Não julgo pinturas e sim gente - replicou Campo rispidamente. bom dia, monsieur. E boa sorte.
Stephen voltou ao seu quarto com a tela às três horas, e sem demora saiu imediatamente para a loja de bicicleta da Rue de Bièvre. Até agora as coisas tinham ido
bem, mas ao se aproximar do estabelecimento de Berthelot sentiu-se nervoso e inseguro de si mesmo, embora cheio de uma viva expectativa que fazia o seu coração bater
depressa. Muitas vezes, durante os últimos meses, tinha pensado em Emmy; a recordação daqueles momentos na escuridão do corredor estreito lhe vinha de tempos em
tempos sem aviso, ainda que com uma esquisita inconsistência.
Encontrou-a no pátio atrás da oficina, curvada sobre uma bicicleta niquelada, reforçada e pintada de vermelho e ouro. Vê-la outra vez deu-lhe uma sensação de calor
por dentro. Ela ergueu os olhos quando ele apareceu, aceitou a sua saudação sem surpresa e continuou a acertar os rolamentos. O pulso dele ainda estava absurdamente
desigual; contudo, desde as suas excursões juntos, sabia muito bem que ela abafava qualquer mostra de afeição.
- É uma linda máquina - disse ele após alguns momentos.
- É minha. Vou usá-la em breve. - Endireitou-se, atirou uma mecha de cabelo para trás. - Então está na cidade de novo?
- Desde esta manhã.
- Quer alugar uma?
Ele abanou a cabeça.
- Tenho coisas mais importantes para fazer.
Houve uma pausa. Ela sempre fora um tanto curiosa a respeito dele, e agora, como ele pretendia, o seu interesse tinha aumentado.
- Está metido em quê?
Ele respirou rápido.
- Já ouviu falar do Prix de Luxembourg, Emmy? É uma competição aberta a todos os que nunca estiveram no Salon. Pretendo arriscar. - Depois, como se ela se voltasse
indiferente, acrescentou: - Foi por isso que voltei. Quero que você pose para mim.
- Quer dizer... - interrompeu-se, olhando para ele - ... fazer o meu retrato?
- Isso mesmo. - Procurou falar num tom casual. - Você nunca foi pintada, foi?
- Não, apesar de que já devia ter sido há muito tempo, considerando quem sou.
- Então, esta é a sua oportunidade. Pode ser muito bom para você. Os melhores trabalhos serão exibidos no Orangerie. Você certamente seria reconhecida.
Ele podia ver que a sua vaidade estava lisonjeada, mas ela hesitava, olhando-o de cima a baixo como que calculando a sua capacidade.
- Você pode mesmo pintar? Quero dizer, poderia fazer um bom retrato?
- Pode contar comigo. Porei tudo o que tenho nessa pintura.
- Sim, suponho que poria, para o seu próprio bem. - Uma ideia lhe ocorreu. - Mas eu vou excursionar no mês que vem.
- Até lá há tempo suficiente. Se você vier todos os dias durante três semanas, posso pintar os detalhes depois que você for.
Novamente podia ver que ela debatia as possibilidades.
- Bem - disse ela, por fim, na sua maneira desgraciosa. - Não me importo. Acho que não vou perder nada.
Ele reprimiu uma exclamação de satisfação e alívio - não somente tinha querido pintá-la desde o começo, mas ela seria perfeita para o assunto que naquelas últimas
e poucas horas havia se apoderado dele. Rapidamente, deu-lhe o seu novo endereço, pediu-lhe que estivesse lá às 10 da manhã seguinte, usando o seu suéter preto e
a saia pregueada, e despediu-se antes que ela pudesse mudar de ideia.
Vagabundeando pela avenida, sentia-se excitado pelo que tinha realizado nesse dia. Só então se lembrou que não comia desde que dividira um sanduíche com o motorista
do camion na noite passada. A fome o atacou como um tapa. Mergulhou numa épicerie, onde comprou um pão comprido e uma tranche de salsicha. Não conseguia ficar quieto.
Andando pela rua escurecida diante do Jardin des Plantes, mordia alternadamente o pão estalante e o suculento patê embutido no seu branco envoltório de toucinho.
Como era gostoso. Sentia-se feliz, livre, e estranhamente exaltado.


CAPÍTULO VI

No DIA SEGUINTE, ele estava pronto e esperando impacientemente, a tela preparada, quando ela chegou, com uns 20 minutos de atraso.
- Aí está você! - exclamou ele. - Pensei que não viesse mais.
Ela não respondeu, mas da porta olhou em torno para o quartinho miserável com as pranchas nuas, uma cadeira de bambu quebrada e uma cama sobre roletes, afundada
no meio.
- Você está quebrado, não?
- Mais ou menos.
- Você tem topete. Trazer-me para um trou destes. Nem ao menos tem onde pendurar as minhas coisas.
Ele corou, mas forçou um sorriso.
- Admito que não seja o Elysée, mas nío é mau lugar para pintar. Dê-me uma chance e eu prometo que não se arrependerá.
Ela baixou o lábio numa espécie de careta, mas, com um dar de ombros, entrou e deixou que ele lhe tirasse o casaco e a postasse diante da janela.
A luz era boa, e, cheio de um súbito hausto de força, ele começou a tracejar a composição que agora o obcecava. Como as regras do concurso exigiam uma pintura "clássica",
seu tema seria alegórico, embora moderno na composição, e o assunto era: Circe e Seus Amantes. Poderia a sua absurda aventura com Madame Cruchot, trabalhando no
fundo do seu inconsciente, inflamar uma centelha que incendiasse essa estranha visão? Símbolos e imagens enchiam a tela da sua vista, cativando os sentidos. Na sua
imaginação, o prazer lutava com a virtude, e a luxúria se revelava na forma dos seios à espreita. Tudo ainda era uma miragem; no entanto, nos íntimos e misteriosos
recessos da sua alma, sentia a força para fazer aquele sonho existir.
Embora pudesse ter continuado o dia inteiro, ao meio-dia, advertido pela expressão da moça, Stephen lhe disse que talvez fosse o bastante para aquele dia. Imediatamente,
ela atravessou o quarto e examinou a tela, onde, usando carvão, ele já tinha feito seu esboço, de corpo inteiro e bem definido. As sobrancelhas ergueram-se e o olhar
amuado deixou o seu rosto quando ela se viu ocupando o centro da tela, de pernas separadas, mãos plantadas nos quadris, uma atitude que era toda sua. Não disse nada
enquanto permitia que ele a ajudasse a vestir o casaco, mas na porta se voltou e acenou a cabeça.
- À mesma hora, amanhã.
Durante a tarde, enquanto a luz durou, ele trabalhou no plano de fundo. E no dia seguinte, e nos que se seguiram, continuou, nem sempre de ânimo elevado, mas com
um propósito que o transportara através de momentânea melancolia para novos transes. Ao mesmo tempo, à medida que prosseguiam as sessões e ele entrava em contato
mais íntimo com Emmy, não mais podia ficar cego ao aprofundamento dos seus sentimentos por ela. A cada dia, terminada a sessão, dava consigo a sentir falta dela,
mais e mais. Na ausência de Peyrat e Glyn, estava sozinho. Mas isso explicaria o seu constante desejo pela companhia dela? Zangado consigo mesmo, lembrou o quanto
não gostara dela no seu primeiro encontro, e como ela às vezes o irritava com a sua grosseria e falta de educação. Quando ela estava de mau humor e ele tentava conversar
com ela, as suas respostas eram monossilábicas, e quando lhe dizia que descansasse, ela continuava a ignorá-lo, deitava-se de barriga na cama, acendia um Caporal
e mergulhava numa revista esportiva amarrotada. Percebeu que ela não tinha atenção para com ele e que somente a vaidade a trazia regularmente ao seu quarto. Uma
dúzia de vezes por dia ela ia observar a marcha do trabalho, e embora nunca o elogiasse, congratulava-se consigo mesma.
- Estou saindo bem, não é?
A lenda da Odisseia, da filha de Helios e da ninfa do oceano Perse, que ele explicou para ela, mexeu-lhe com a fantasia. A ideia de que tivesse o poder de transformar
seres humanos em formas animais provocou-lhe um sorriso.
- Bem feito, pra eles aprenderem.
Essa vulgaridade estremeceu-o. E contudo não era inibidora. Que haveria naquela moça para provocar o seu premente interesse? Procurou descobrir. Que sabia realmente
dela? Muito pouco, exceto que era comum, dura e insignificante - uma pequena nulidade, desinteligente, sem imaginação, completamente empedernida. Não sabia nada
de arte, não tinha interesse pelo seu trabalho, e se entediava quando ele falava. Mas a sua figura era esquisita - não estava reproduzindo cada linha sutil dos seus
membros fortes e esbeltos, o ventre chato e os seios firmes? - e acima de tudo ela era pequena. Embora pudesse admirar na tela a carne voluptuosa das mulheres de
Rubens, o seu gosto sempre fora por uma perfeição menos arredondada. E ela possuía essa nitidez física, uma figura que ele sempre comparava à Maja de Goya. Contudo,
ninguém poderia chamá-la de bela. Tinha um encanto travesso, mas os seus lábios eram finos, as narinas um tanto puxadas, e a sua expressão, quando não alerta e vigilante,
era quase carrancuda. Curioso é que, todas as suas imperfeições eram aparentes para ele. Contudo, não afetavam em nada aquela estranha emoção que, a despeito de
todos os seus esforços para suprimi-la, crescia nele.
Desejava estar ao lado dela e sentia-se inquieto e nervoso quando ela se retirava. Desordenadamente afetado pelos seus humores variáveis, respondia a eles de uma
maneira que o fazia desprezar a si mesmo. Em raras ocasiões, quando ela se mostrava agradável, o seu coração se animava. Às vezes, nessa disposição tagarela, ela
fazia perguntas sobre o único assunto que, entre todos os outros ligados a ele, parecia interessá-la.
- É verdade que os seus pais têm uma grande proprieté em Sussex, com muitos acres de boa terra?
- Não muitos - sorriu ele. - Se Glyn lhe disse isso, exagerou.
- E você ia ser um padrezinho... até que eles o tiraram do seminário.
- Você sabe que eu saí por minha vontade.
- Para viver num quarto como este? - perguntou, incrédula.
Encolheu os ombros, mas sem desprezo - lisonja que o gratificou. Essa afabilidade, embora não causasse alívio, era um agradável contraste com a mortificante indiferença
com que ela geralmente recebia as suas tentativas para agradá-la. E enquanto ela posava, indolente como um gato, ele começou a contar-lhe, sem parar de pintar, histórias
sobre Stillwater que achava pudesse entretê-la e diverti-la. Quando finalmente esgotou o repertório, ela refletiu por alguns momentos, e então declarou:
- É certo que vivi com, isto é - corrigiu-se - entre artistas toda a minha vida. Eu própria sou uma artista. Compreendo que se abandone alguma coisa pela arte, quando
isso não é nada. Mas você está numa categoria diferente. E abandonar a sua bonne proprieté, que você poderia herdar... - fez pausa e encolheu os ombros - ... foi
imbécile.
- Não completamente - sorriu ele - ou eu não a teria encontrado. Veio-lhe uma súbita onda de anseio. Deteve-se, não ousando olhar para
ela.
- Você não percebe, Emmy?... que estou gostando terrivelmente de você?
Ela riu-se brevemente e levantou um dedo avisador,
- Nada disso, Abbé. Isso não faz parte do nosso acordo.
Derrotado, retomou o trabalho. E por toda a noite sentiu a dor da rejeição. Se ao menos pudesse sair com ela à noite - ela, que apreciava diversões vulgares - achava
que podia conquistar sua simpatia. Mas sua falta de recursos o impedia. Vivia com pouco mais de meio franco por dia, subsistindo com um pão ou uma maçã até às seis
horas, quando tomava sua solitária refeição no café mais barato das redondezas.
Certa tarde, quando suas sessões de pose já estavam terminando, ela chegou, mais atrasada do que de costume. Aparentava ótimo humor. Usava um fichu amarelo novo
com uma curta jaqueta vermelha ataviada de rendas, e seu cabelo estava recém-lavado.
- Você está muito bem - cumprimentou Stephen. - Eu quase desisti de esperá-la.
- Tenho um encontro com Peroz. O escritório dele fica bem longe... no Boulevard Jules Ferry. Mas consegui o contrato que eu queria.
- Ótimo - sorriu ele, sem mencionar que a sua partida o deprimia. Quando parte?
- A 14 de outubro. Houve um adiamento de duas semanas.
- vou sentir a sua falta, Emmy. - E inclinando-se para ela: - Mais do que você pensa.
Ela riu de novo e ele notou que os seus dentes eram agudos e regulares, com espaços definidos entre eles. Então, com vivacidade, acentuando as suas observações,
ela começou a descrever como conseguira o melhor de Peroz ao estabelecerem os termos do seu contrato.
- Dizem que ele tem bom coração - concluiu ela. - Acho que ele é apenas um gobeur... um mole.
Sabendo que a sua conversa geralmente a aborrecia, Stephen encorajou-a a continuar falando sobre si mesma. Então, como não houvesse mais luz, guardou os seus pincéis.
- Deixe-me andar com você - disse ele. - Está uma bela noite.
- Muito bem, se quiser - concordou ela, dando de ombros.
Quando ela apanhou as suas coisas, eles desceram a escada e dali a pouco chegaram ao Boulevard Gavranche, onde uma escuridão quente lançava um halo em torno das
lâmpadas da rua, envolvendo a cidade muda em misteriosa beleza. Casais passavam lentamente, de braço dado, nas calçadas tranquilas a noite parecia feita para os
namorados. Numa rua lateral perto do rio, passaram por um café, onde com a música de um acordeom, havia gente dançando sob uma pérgula, com lanternas chinesas penduradas
nos ramos dos plátanos. A cena estava cheia de luz e alegria, e Stephen podia sentir os olhares interrogativos de Emmy lançados para ele.
- Gostaria de dançar?
Tomado por um demorado embaraço, consciente da sua inépcia, ele abanou a cabeça.
- Eu não seria muito bom nisso.
Era verdade. Ela encolheu os ombros.
- Você não é bom em muita coisa, não é? - disse ela.
Chegaram às sombras dos quais. O Sena fluía em silêncio, uma corrente lisa e verde, sob o vão baixo da Pont de l'Alma. Como se estivesse entediada pelo seu silêncio,
ela caminhava um pouco adiante, começando a trautear a canção tocada pelo acordeom no cabaré.
- Espere, Emmy. - Ele se chegou para o abrigo de um arco. Ela o Olhou de lado, por sobre o ombro.
- Que é que tem na cabeça, Abbé?
- Você não vê... o quanto significa para mim?
Pôs um braço em torno dela, atraindo-a para si. Durante uns poucos momentos, insensível como o poste de iluminação, ela deixou que ele a abraçasse, e depois, com
um movimento brusco de impaciência, empurrou-o.
- Você não entende nada disso.
Havia desprezo na sua voz.
Ferido e humilhado, fraco de emoção frustrada, sentindo a verdade da observação, ele a seguiu para a rua. Caminharam para a Rue de Bièvre. Diante da loja de bicicletas,
ela olhou para ele como se nada tivesse acontecido.
- Posso ir amanhã de manhã?
- Não - disse ele amargamente. - Não será necessário. Voltou-se, furioso com ela e enojado consigo mesmo.
- Não se esqueça - gritou ela. - Quero ver o quadro quando estiver terminado.
Ele a odiava por sua dureza, sua falta de generosidade comum - ela sequer tivera pena dele. Disse a si mesmo que nunca mais tornaria a vê-la.
Na manhã seguinte, quando acordou de uma noite inquieta, lançou-se apaixonadamente na contemplação do quadro. Até agora, só a figura central
tinha tomado forma, havia ainda o tema a ser desenvolvido. O tempo se tornara úmido e sombrio, a luz era pouca, o seu estúdio improvisado varrido por correntes de
ar, mas nenhuma dificuldade parecia tão grande que ele não pudesse vencer. Na sua busca de realismo, ia todas as tardes ao Jardim Zoológico; depois, voltando para
o seu quarto, transferia as abjetas criaturas para a tela, com algo da sua própria tristeza e sujeição. No fim dessa semana, o seu dinheiro acabou - procurando uma
moeda para comprar o seu petit pain, não pôde achar um único soldo. Sem se abater, continuou a pintar o dia todo com uma espécie de fúria.
Na manhã seguinte, sentiu-se fraco e tonto, mas ainda assim forçou-se a prosseguir no trabalho. Quando chegou a tarde, porém, um raio de razão se infiltrou pelas
névoas que agora obscureciam o seu cérebro. Percebeu que se não comesse para viver, simplesmente isso, nunca terminaria a Circe - a menos que pudesse achar algum
meio de sustento. Sentado na beira da cama, refletiu por um instante e depois foi ao canto onde estavam as suas pinturas de Netiers, selecionando três que eram especialmente
brilhantes e coloridas. Eram boas, satisfaziam-no, davam-lhe confiança. Embrulhou-as em papel pardo e, com o rolo debaixo do braço, saiu para atravessar o Sena ao
longo dos Champs Elysées para o Faubourg Saint Honoré. Era um ato de coragem. Contudo, o tempo para meias medidas tinha passado. Estava resolvido a oferecer o seu
trabalho ao melhor negociante de arte da França.
Na esquina da Avenue Marigny, um logradouro principalmente ocupado por pequenos edifícios de apartamentos e suntuosas lojas de haute couture, deteve-se diante de
uma rica mas comedida fachada de pilares paládicos e pedra branca talhada. Depois, retesando-se decididamente, passou pela porta veneziana dourada e entrou num vestíbulo
calçado de mármore, com painéis de jacarandá e colgaduras de veludo vermelho, onde se achou diante de um jovem de paletó com abas abertas, sentado atrás de uma escrivaninha
Luís XVI laqueada e com ouropel. Através do cortinado lá atrás, via-se um amplo salão, igualmente esplêndido, embelezado por grandes buques de lírios em vasos de
alabastro e cheio de quadros belamente iluminados, diante dos quais gente elegante se movia, e misturava, consultando os seus catálogos, conversando em voz baixa.
- O senhor tem convite para o vernissage, monsieur?
Stephen devolveu o olhar do jovem maneiroso, que, por baixo do seu sorriso profissional, examinava-o com extrema cautela.
- Não. Eu ignorava que havia uma exibição. Vim para ver Monsieur Tessier.
- Qual o assunto, monsieur?lis
- Pessoal.
O sorriso, de inefável polidez, não vacilou.
- Receio que Monsieur Tessier não se encontre na casa. Contudo, se quiser tomar uma cadeira, irei verificar.
Quando Stephen sentou-se, o jovem levantou-se graciosamente e deslizou para dentro. Mas quase ao mesmo tempo uma porta lateral se abriu e três pessoas entraram na
sobreloja - uma mulher, muito elegante, de preto, carregando uma miniatura de poodle, enfitado e fantasticamente frisado; seu acompanhante, um homem idoso, entediado
e distinto, impecavelmente vestido, dos sapatos marrons ao chapéu; e Tessier, que Stephen reconheceu imediatamente, uma figura cortês, de rosto moreno, barbeado,
com o lábio inferior saliente e olhos de bistre. O marchand estava falando, sensatamente com reservada animação e movimentos comedidos das mãos.
- Asseguro-lhe que é uma perfeita gema. A mais fina que me chegou em vários anos.
- É linda - disse a dama.
- Mas o preço! - interpelou o seu companheiro um tanto soturno.
- Já lhe disse, cavalheiro. Por 100 mil, é inquestionavelmente um preço de ocasião. Mas se não o deseja para o senhor, tem somente que me dizer. Virtualmente, tenho
compromisso com outro cliente.
Houve uma pausa, um toque na manga do acompanhante, um murmúrio de conversação íntima, e então:
- Pode considerar a pintura vendida.
Uma inclinação de cabeça, não obsequiosa, mas gravemente aprovando semelhante bom gosto, foi a única resposta de Tessier. Contudo, não os levou até a porta, e quando
se voltou, parecendo meditativo, de cabeça baixa, mãos cruzadas atrás das costas, Stephen foi ao seu encontro.
- Monsieur Tessier, peço-lhe que me desculpe pela intrusão. Poderá dar-me cinco minutos apenas do seu tempo?
O negociante ergueu os olhos vivamente, perturbado nos seus pensamentos, certamente relacionados com cálculos e seu olho empapuçado, com a imediata percepção de
algo encontrado com desagrado em ocasiões anteriores, apreciou a figura maltrapilha que tinha diante de si, dos sapatos enlameados e encharcados ao embrulho malfeito
que trazia debaixo do braço.
- Não - murmurou ele. - Agora não. Como vê, estou inteiramente ocupado.
- Mas monsieur - insistiu Stephen, abalado mas com determinação. - Só lhe peço que veja o meu trabalho. Será demais um artista solicitar-lhe isso?
- Então o senhor é um artista? - O lábio de Tessier reentrou. - Felicito-o. Sabe que cada semana sou assediado, atacado e importunado por pessoas que se intitulam
génios e imaginam que eu desmaiarei num êxtase quando contemplar os seus execráveis esforços? Mas nunca tinha encontrado um com o atrevimento de me procurar aqui,
no auge da minha exibição de outono.
- Lamento perturbá-lo... mas o assunto é um tanto urgente.
- Urgente para mim... ou para o senhor?
- Para ambos. - Stephen engoliu convulsivamente. Na sua agitação, falou sem controle. - O senhor acaba de vender um Millet por uma soma considerável. Perdoe-me,
não pude deixar de ouvir. Dê-me uma oportunidade e eu lhe mostrarei um trabalho tão fino como qualquer coisa vinda de Barbizon.
Tessier relanceou os olhos para Stephen, notou a sua aparência perturbada, a dilatação dos seus olhos.
- Por favor - disse ele de maneira fatigada, abandonando o argumento.
- Mais uma vez, rogo-lhe.
Afastou-se para um lado, entrou no salão e um instante depois perdia-se de vista. Stephen, que tinha começado, com pressa nervosa, a desfazer o embrulho, ficou por
um momento muito pálido; depois, com uma expressão estranha, andou para a porta. Ao chegar à rua, o barbante, mal amarrado, desatou-se e as três telas caíram na
calçada molhada e escorregaram para a sarjeta.
Apanhou-as com cuidado, com uma ternura quase ridícula. O simples ato de abaixar-se fez-lhe a cabeça dar voltas. Mas teimosamente, com uma intensidade quase fanática,
disse a si mesmo que não seria derrotado. Havia outros negociantes de quadros em Paris, menos arrogantes, certamente mais acessíveis do que esse intolerável Tessier.
Vagarosamente, caminhou, através do tráfego, para a Rue de la Boétie.
Duas horas depois, molhado e ainda atrapalhado pelos três quadros, estava de volta à Place St. Séverin, tão exausto que mal pôde subir para o seu quarto. Na verdade,
na metade da escada sentou-se num degrau para recobrar o fôlego. Ao fazê-lo, a porta junto ao patamar abriu-se e apareceu, vestido para sair, de tamancos, camisa
sem colarinho e um sobretudo surrado, um homem de cerca de 30 anos, alto e moreno, com uma pele descorada e olhos fundos de semita. Ao descer, quase tropeçou em
Stephen, recuou e estudou-o com um sorriso amargo, peculiar.
- Não teve sorte? - exclamou.
- Não.
- Tentou com quem?
- A maioria deles... de Tessier para baixo.
- Salamon?
- Não me lembro.
- Ele não é mau. Mas nenhum deles está comprando agora.
- Tive uma oferta. Duzentos francos para falsificar um Breughel.
- E você aceitou?
- Não.
- Ah, a vida tem seus pequenos vexames. - E depois de uma pausa: - Como se chama?
- Stephen Desmonde.
- Chamo-me Amédée Modigliani. Venha tomar um drinque.
Dirigiu o caminho de volta ao patamar e abriu a porta do seu quarto. O seu apartamento era quase idêntico ao de Stephen, mas talvez mais sórdido. Num canto, ao lado
da cama por fazer, havia uma pilha suja de garrafas vazias, e no centro um cavalete com uma pintura quase terminada, um nu reclinado.
- Gosta? - Servindo dois Pernods de uma garrafa que tirara do armário, Modigliani inclinou a cabeça para a tela.
- Sim - disse Stephen após um momento.
Havia na pintura um estilo pessoal, marcado por seus esforços numa linha arabesca, algo de monumental e puro.
- bom - disse Modigliani, passando-lhe o copo - mas esse quadro porá o comissário de polícia atrás de mim. Ele já proclamou que os meus nus são escandalosos.
O absinto, fortalecendo Stephen, clareando o seu cérebro, evocou uma nota de recordação.
- Você não exibiu nos Indépendants? Le Joueur de Violoncello?
O outro fez um gesto afirmativo.
- Não era o meu melhor trabalho. Mas foi vendido. Agora eles não comprarão nada. Na verdade, se não fosse o meu talento para plongeur no Hotel Monarque, eu teria
sido gentil com os meus críticos e deixado de existir.
- Um plongeur? - Stephen não compreendia.
- Sim, gostaria de experimentar o trabalho? vou para lá agora. É um emprego fascinante. Um leve sorriso, saturnino, apareceu nas suas feições impassíveis, cor de
oliva. - E eles sempre apreciam um empregado novo.
- Tentarei qualquer coisa.
Saíram juntos e começaram a andar em direção à Etoile. O Grand Monarque, um dos famosos hotéis parisienses, era uma imensa construção palacial no estilo Terceiro
Império, ocupando um quarteirão inteiro, logo depois dos Grands Boulevards. Imponente e digno, um tanto fora de moda, com degraus de mármore, tapetes vermelhos,
as vastas salas públicas com lustres cintilantes, um bando de atendentes esvoaçando atrás das portas de metal polido, como sentinelas, para receber os embaixadores,
dignitários estrangeiros e príncipes nativos, que estavam entre os seus visitantes, dava uma sensação de opulenta magnificência. Modigliani, contudo, quando chegaram
ao pórtico central, não tentou uma entrada, mas guiou o caminho em torno de um canto escuro e por uma passagem que dava para as dependências dos fundos, flanqueada
por uma bateria de latas de lixo amassadas; um lance de escadas admitiu-os no subsolo.
Era menos um subsolo do que uma imensa adega subterrânea, com o teto úmido e pingando, atravessada por uma confusão de tubos de ferro, de paredes
escamadas, pegajosas de bolor, o chão de pedra-britada com água de despejos até os tornozelos, tudo fracamente iluminado por umas poucas lâmpadas elétricas nuas,
cheio de vapor, barulho e uma confusão babélica de vozes. Ali, numa comprida calha, uma fila de homens, arrebanhados, parecia, na ralé de Paris, estava febrilmente
lavando pratos que uma turma de ajudantes de cozinha continuava trazendo apressadamente, embraçadas, das cozinhas contíguas. Agora, pensou Stephen, após acomodar
os olhos àquela visão de pesadelo, sei o que significa um plongeur.
Entrementes, Amédée tinha se aproximado do contremaître, que, com um olhar indiferente para Stephen, entregou-lhe um disco de metal com um número estampado e marcou
o tempo a giz, diante desse mesmo número, numa ardósia que pendia do seu cubículo, ao lado de um aviso que advertia que se alguém fosse apanhado tirando porções
de alimento seria sumariamente processado.
E agora, imitando seu companheiro, Stephen tirou a sua jaqueta e, tomando lugar na fila, começou a lavar os pratos do jantar empilhados na pia. Não era trabalho
fácil, curvado sobre a calha baixa, e não havia interrupção. O odor da água espumosa nunca mudava, o mau cheiro da graxa e restos de comida era nauseante. Periodicamente,
a pasta de restos entupia o ralo e tinha que ser retirada com a mão. Era estranho, durante esse processo, ouvir um leve sopro de música polida vindo da orquestra
no pátio de palmeiras lá em cima.
Cerca das 11 horas, o ritmo diminuiu, e antes da meia-noite houve uma parada definitiva, que indicava que as damas e cavalheiros lá de cima tinham Sido alimentados.
Amédée, que durante todo o tempo não pronunciara uma única palavra, pôs o seu casaco, acendeu um cigarro e, com um movimento da cabeça, chamou Stephen para a porta,
onde o contramestre, após uma olhadela na pedra do tempo, pagou a cada um 2 francos e 50.
Lá fora, ainda em silêncio, ele caminhou de ombros caídos pelas ruas escuras e, cinco minutos depois, guiou o caminho para um bistro que ficava aberto a noite toda.
Ali, enquanto Amédée bebia vários Pernods, Stephen consumiu um pratarrão de pot-au-feu, grosso de boas verduras e pedaços de carne de carneiro. Era a sua primeira
refeição satisfatória em muitos dias, e sentiu-se melhor.
- Não quer alguma coisa? - perguntou ele.
- Isto é carne e pão para mim. - Amédée olhava com dura indiferença para o fluido esverdeado e opalescente do seu copo, que segurava com os dedos manchados de nicotina.
- Tem sido a minha dieta há muito tempo.
Sentado no café deserto, as luzes amortecidas, a mesa de bilhar lá atrás, protegida para a noite, o garçom solitário, semi-adormecido, com o seu guardanapo sobre
a cabeça, atrás do balcão, Amédée revelou alguma coisa de si mesmo em frases lacónicas.
Nascido na Itália, provinha de uma família de judeus italianos, estudara, a despeito das interrupções causadas por doenças, em Florença, e na Academia de Veneza.
Nos últimos sete anos, inspirado pelos primitivos e pela arte negra, tinha trabalhado em Paris, às vezes com o seu amigo Picasso, e ocasionalmente com Gris. Não
tinha vendido praticamente nada.
- Assim é que agora - concluiu ele, com o seu sorriso sombrio mas inquieto - me vê enfraquecido pela pobreza, pelo excesso de álcool, e pelo uso de drogas nocivas.
Sozinho, a não ser por uma moça que teve a desgraça de me conhecer. Despido de qualquer reputação. - Emborcou o resto da bebida e levantou-se. - Mas alegre pelo
fato de que jamais aviltei a minha arte.
Disse boa-noite, sem ênfase, na escada que levava aos seus aposentos.
Por breve que tivesse sido, aquele estranho encontro foi providencial para Stephen. Agora, aguentando todas as noites cinco horas de trabalho suado nos porões fumegantes
do Grand Monarque, podia sobreviver e, o que lhe parecia mais importante, continuar a trabalhar com toda a sua força na Circe.
Finalmente, cerca de três semanas depois, numa tarde seca e fria, terminava o trabalho. Lá estava ela, naquela atitude familiar de descuidada insolência, indiferente
mas aliciante, com seu rosto pálido e olhos enigmáticos, aquela moderna filha de Helios, tendo como fundo não o palácio de Aiaia, mas a rua de um bairro miserável
de Paris onde se agrupavam os seus amantes vencidos, mudados e degradados na forma de bestas, e que, domados e abatidos, olhavam para ela com um desejo servil, como
se ainda estivessem sedentos por suas carícias.
Exaurido por esse esforço final, Stephen foi incapaz de avaliar sua obra, que tomara uma forma fantástica por força de uma compulsão a que ele não pudera resistir.
Sabia apenas que nada mais podia acrescentar, e, em um espasmo de impaciência nervosa, embrulhou o quadro no mesmo papel pardo amassado que já usara antes e o levou
para o Institut des Arts Graphiques, na Place Redon. Lá, um funcionário idoso tomou o seu nome e anotou meticulosamente todos os detalhes em um livro; depois, constatando
que a tela não tinha moldura, relutou em aceitá-la.
- O senhor vê, monsieur, a especificação é de montage.
- Não notei.
- Mas é evidente. Olhe, monsieur, todas as outras peças estão corretamente montadas.
Stephen, relanceando os olhos por uma comprida galeria com dezenas de pinturas, sentiu uma súbita apatia. De uma maneira ou de outra, não se importava.
- Não posso comprar uma moldura. Aceite como está ou não aceite.
- Isso é muito irregular, monsieur. Mas, se quiser, deixe-a.
De volta ao seu sótão, sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, tomado
por uma letargia de pós-criação. E agora... que faria? Impossível continuar no Monarque - sua alma revoltava-se com essa ideia - contudo estava à beira da indigência.
Tirante as roupas que usava, o equipamento de pintura, e 15 soldos, não possuía nada de valor material. Tudo mais tinha empenhado. Levantou-se e olhou no armário.
Continha a metade de um pão, duro como pedra, e uma fatia de queijo. Lá embaixo, Amédée estava ausente há três dias, submerso numa das farras em que periodicamente
sucumbia, e da qual emergiria, entontecido, em alguma remota região da cidade. Atrás da divisão de madeira, o casal da porta ao lado tinha começado uma briga, gritando
um para o outro. Crianças brincando, discutindo, aumentavam a barulheira. Apesar da janela aberta, o quarto estava abafado pelo ar viciado da cidade, e nos lambris
rachados começava a usual procissão noturna de baratas.
Tudo isso, bastante difícil de aguentar, não era nada porém comparado com a insuportável sensação de solidão e privação que lhe torturava o peito. Não mais amortecido
pelo analgésico do trabalho, o seu desejo de que Emmy voltasse era mais forte do que antes. Ao contrário de Ulisses, nSo tinha uma erva mágica para proteger-se contra
o seu encanto. Culpava-se por não a ter convidado para ver o quadro. No dia seguinte ela tinha partido, indo para o sul com a troupe de Peroz - não a veria antes
de pelo menos seis meses, se é que tornaria a vê-la. Lembrando-se da enfatuação que Madame Cruchot tivera por ele, tremeu com a peça que o destino lhe tinha pregado
- agora era ele quem assumia o ridículo papel.
Não tinha nada em que se ocupar, nem ao menos um livro para ler; sentia-se inteiramente mole para se aventurar às ruas. Quando anoiteceu, deitou-se na cama, mas
não pôde dormir. O dia seguinte era terça-feira, e surgiu com um suave e límpido amanhecer. Ele se levantou e se vestiu. A ideia dos veículos do circo partindo naquela
tarde para o campo aberto e a ensolarada Côte d'Azur atormentava-o novamente. De repente, sem quê nem por quê, veio-lhe uma ideia. Por um momento, ficou imóvel,
parado no meio do soalho. Seria capaz disso? Ao menos poderia tentar. Apanhando o chapéu, saiu rapidamente do quarto e tomou, trémulo, a direção do Boulevard Jules Ferry.


CAPÍTULO VII

NUMA EXTENSÃO DE TERRENO COMUM, logo após os taludes de Angeres, naquela tarde de sol muito brilhante para o fim de outubro, o Circo Peroz armou
a sua cidade de lona vermelho vivo. As barracas de espetáculos secundários já estavam em ação, uma musiquinha vinha do carrossel das crianças, e os aboyers começavam
as suas exortações aos poucos espectadores presentes.
No seu stand, no fim de uma linha de barracas, vestido com uma blusa azul, boina, uma frouxa gravata preta, vestuário composto para sugerir às mentes rústicas a
altura da arte parisiense, Stephen respirava longamente o ar do campo, aromatizado com a fumaça de lenha, cascas de laranja, serragem fresca, tanino, e o cheiro
dos cavalos. A seu lado aprumava-se um cavalete enfeitado com uma tabuleta que o exaltava como Grand Maître des Academies de Londres et Paris, e prometia uma semelhança
exata, feita à mão, de perfil ou de frente, em carvão de primeira qualidade, por apenas cinco francos, em cores ricas e permanentes por sete francos e cinquenta,
cortesia e serviço iguais aos dispensados às cabeças coroadas da Europa, satisfação assegurada.
Ouviu-se o relincho de um garanhão, o agudo clangor de uma corneta e o grunhido fraco de uma leoa velha. Com a sua tosse praticamente desaparecida, Stephen experimentava
uma súbita recuperação do seu bem-estar físico. Não lamentava o impulso que o levara a Peroz três semanas antes.
- Aproxime-se, aproxime-se, cavalheiro. Vamos, senhor, convença mademoiselle a ter o seu lindo rosto pintado. Não seja modesto. Deixe um retrato para os seus netos.
Um casal de campônios, de braço dado, vestido com as suas roupas domingueiras, hesitava à sua frente, e então corando, a moça tomou coragem e aproximou-se. Não era
bonita, mas ele, em poucos e rápidos traços, esboçou a sua figura na folha que estava no cavalete, deu relevo à sua coifa de renda fina, aos bordados à mão dos seus
punhos, e, ensinado pela experiência, não esqueceu o broche de camafeu, um óbvio tesouro de família, que ela usava no corpete.
Enquanto isso, uma pequena multidão se juntava, ouvindo-se murmúrios de aprovação pelo retrato terminado, e logo ele estava trabalhando bastante. Para ele, não era
mais que um processo mecânico executado sem pensar; contudo, divertia-se em dar a alguns dos seus retratos uma individualidade irónica, detendo-se no detalhe de
uma feição particular, um olho bovino, uma orelha grande, um nariz bulboso, como acontecia às vezes nas noites de sábado, quando um cliente era ofensivo, desenhando
com malícia uma caricatura que, as mais das vezes, provocava o riso dos outros.
Às seis horas, a multidão diminuía, como sempre, antes da função principal do circo, e apanhando a sua tabuleta e tirando a blusa e gravata, Stephen entrava por
um labirinto de cordas e lonas para um pequeno recinto atrás da barraca contígua. Ali, acocorado diante de um vivo braseiro, um homenzinho enrugado, de perneiras
gretadas e culotes sujos de veludo cotelê, estava cozinhando o jantar. De pernas tortas, cabelo cortado rente, tinha feições nítidas,
castigadas pelo tempo, exceto o nariz, que era chato e quebrado. Seus olhos eram miúdos como contas, parados, e o fulgor do braseiro lhes dava calor.
- Que temos esta noite, Jo-jo?
- O de sempre. - Jo-jo olhou para cima. - Mas também um pouco de salsicha de carne de porco fresca, de Angers, que achei na Tur Toussaint. É uma das duas especialidades
desta cidade.
- E a outra?
- Cointreau, naturalmente, mon brave. É feito aqui.
As salsichas, respingando numa frigideira, pareciam cheias de promessas. promissoras. Jo-jo, que na sua mocidade tinha sido jóquei, depois vendedor de barbadas,
depois cavalariço, e depois bookmaker, e que finalmente tinha sido aconselhado a sair de Longchamps, era um cavador perito. Conhecia todas as tramóias da França.
Ninguém gostava mais de regatear no mercado ou de pegar uma galinha extraviada de uma granja à beira da estrada.
- Gostei destas duas noites aqui. - Stephen deu lugar no braseiro para o coador de folha do café. - Amanhã estamos de folga até as três. Pretendo dar uma olhada
no rio.
- O Loire é um bom rio - disse Jo-jo com um ar de quem sabe das coisas. - Fundo bom de areia, com muito peixe bom. Vou deixar umas iscas de noite e ver se temos
sorte. De fato, todo o país é bom para nós - Tours, Bolis, e especialmente Nevers. O vinho é um tanto fraco, mas a bóia é de primeira, e as mulheres... essas putas
da Touraine, grandes atrás e na frente... - Assobiou e revirou os olhos.
Enquanto ele falava, a aba da barraca se abriu e entrou um homem de aspecto estranho, com calças de xadrez e suéter caqui de gola rulê. Era alto e franzino, tão
dolorosamente magro que parecia um esqueleto, e o rosto e mãos - únicas partes visíveis do seu corpo - estavam cobertos por uma espessa crosta de escamas cor de
cobre. Era Jean-Baptiste, que participava de um dos mais pobres caminhões com Stephen e Jo-jo. Manso, taciturno e melancólico, era um caso extremo de psoríase crónica,
uma doença da pele, indolor mas incurável, sendo exibido aos curiosos como o Crocodilo Humano, produto da união de um sáurio feroz e de uma nadadora do Rio Amazonas,
com o que ganhava uma modesta subsistência.
- Teve uma tarde boa, Croc? - perguntou Stephen.
- Não muito - respondeu Baptiste sombriamente. - Nem um íntimo.
Essa era a parte mais proveitosa da técnica de Croc em descobrir-se lentamente, das extremidades para baixo; quando chegava ao umbigo, fazia uma pausa e, deixando
seus olhos correrem pela plateia, exclamava dramaticamente, com uma espécie de sedução macabra:
- Para revelações mais íntimas, estou à disposição na tenda dos fundos. Ingresso especial para essas revelações privadas, apenas cinco francos.
Quando a comida ficou pronta, sentaram-se em volta do braseiro - uma grande caneca de sopa fumegante, seguida pelas salsichas, duras mas suculentas, temperadas com
ervas do campo, um molho com pedaços de pão fresco cortados com uma faca dobradiça. Somente depois que se juntara à troupe, Stephen aprendeu a saborear os aumentos
comidos ao ar livre. Depois houve café, quente, forte e arenoso, servido na caneca de sopa. Então Jo-jo enrolou um cigarro e, com o ar de um mágico, tirou do bolso
dos quadris uma garrafa do límpido licor da região.
- Que tal um gole de vinho do altar, Abbé?
O apelido tinha seguido Stephen de Paris - ele não se importava. Passaram a garrafa de mão em mão, bebendo o claro e ardente licor sem copos. Jo-jo enrolava-o na
língua.
- Você pode confiar nele. Feito com as melhores laranjas de Valença.
- Uma vez me aconselharam a nunca comer frutas. Outra vez me disseram que não comesse outra coisa - disse Baptiste, que gostava de falar no assunto da sua doença.
- Ao todo consultei 19 médicos. Cada um deles mais tolo do que o outro.
- Então tome outra dose do meu remédio.
- Ah, isto é que é remédio para mim!
- Você não pode se queixar, Croc. Não tem uma existência rica e interessante? Você experimenta as delícias de viajar. Em suma, você é famoso.
- É fora de dúvida que muitas pessoas têm viajado 50 quilómetros para
me ver.
- E não tem um grande sucesso com as damas?
- Tenho mesmo. Exerço um certo fascínio sobre elas.
Diante desta séria admissão, Jo-jo soltou uma risada. Depois, apagando o cigarro, levantou-se para ver os cavalos.
Era a vez de Stephen lavar as panelas. Quando terminou, ao lusco-fusco, as luzes produzidas pelo gerador brilhavam como vaga-lumes sobre a feira. Olhando, sentia
todos os seus sentidos despertados. Não tinha visto Emmy todo o dia. Mas ela não gostava de ser perturbada antes do espetáculo, e o povo já convergia para a grande
tenda. Guardou o cavalete e o resto da tralha numa caixa, debaixo do seu beliche no caminhão, vestiu as suas roupas comuns e caminhava para a entrada dos fundos
do picadeiro. De acordo com o seu contrato, era seu dever acompanhar os membros de terra da companhia, que indicavam aos espectadores os seus lugares, vendiam programas,
sorvetes, citronade, e aquela marca de nugá feita especialmente em Paris para o Circo Peroz.
Parecia a Stephen uma excelente "casa" - o circo tinha uma reputação merecidamente popular através das províncias, e, com bom tempo, a mercadoria dos stands era
em geral totalmente vendida. Esta noite, fila após fila de rostos expectantes e rosados se ergueram da serragem do picadeiro. Subitamente,
na sua alta plataforma, vestido de vermelho e dourado, quando a charanga atacava uma grande marcha, o mestre do picadeiro, o próprio Peroz, apareceu de cartola,
alamares brancos e capa escarlate, dirigindo um cortejo de póneis que entraram na arena a meio-galope, atirando as crinas para os lados, e o espetáculo começou.
Embora, a esse tempo, conhecesse os números de cor, acocorado junto à grade do corredor da entrada dos artistas, com um bloco de esboços no joelho, Stephen acompanhava
cada fase, cada movimento do espetáculo com absorvido interesse, notando, vezes e mais vezes, os ritmos da coordenação muscular, o jogo de luzes e tons das cores
no vasto caleidoscópio cintilante, e mesmo as reações individuais, às vezes cómicas e bizarras, das pessoas da plateia.
Era fascinante, aquele novo mundo que ele havia descoberto, com os seus soberbos cavalos de alta escola, montanhosos elefantes e sinuosos leões de olhos amarelos,
seus acrobatas às cambalhotas, jograis prestidigitadores, funâmbulos da corda bamba sob os seus pára-sóis de papel. Observando, Stephen pensava na famosa peça de
circo de Manet, Lola no Arame, e na sua atual disposição melhorada sentia que podia desenhar aquele campo com igual riqueza. Desenho, sem dúvida, haveria, mas acima
de tudo a cor seria o instrumento da sua expressão. Via na sua paleta as cores puras, os ultramarinos, ocres e vermelhões, via como podia humanizá-lo sem reduzir
a sua intensidade. Criaria um novo mundo, um mundo que só ele percebia, um mundo somente para ele. Curvado no seu canto, desenhava e desenhava. Este era o seu verdadeiro
trabalho; os retratos que pintava de dia não eram mais que um meio de vida, e na pasta em sua caixa fechada já tinha dezenas de estudos que usaria numa formidável
composição.
Após o intervalo, davam entrada os artistas mais importantes - a troupe Dorando, de trapezistas; Chico, o engolidor de espadas; Max e Montz, os palhaços famosos.
A seguir, um soalho de madeira era rapidamente montado no centro do picadeiro e ouvia-se a fanfarra que conhecia tão bem, e que sempre fazia o seu coração bater.
Então, embaixo, via Emmy pedalando, usando uma blusa de cetim branco, calções brancos e compridas botas brancas. Ao chegar ao assoalhado, começava a executar, à
luz da bicicleta niquelada, uma série de evoluções que deixavam o espectador tonto, circulando e recuando e avançando, sempre no pequeno espaço, mudando de posição,
até que dirigia de cabeça para baixo segura no guidom, finalmente desmontando em movimento e fazendo complexas configurações numa roda só.
Talvez essas manobras fossem menos difíceis do que pareciam, mas o culto da bicicleta, uma paixão nacional que anualmente chegava ao auge nas agitadas semanas devotadas
ao Tour de France, tornava-a popular junto ao público. Uma tempestade de aplausos reboava embaixo da grande cúpula, seguida por um silêncio enquanto Emmy caminhava
para uma curiosa estrutura na
extremidade do picadeiro. Era um elevado escorregador, uma estreita fita de metal pintada de vermelho, branco e azul, que descia que descia quase verticalmente do
teto da tenda e terminava numa curva que subia bruscamente.
Alterando o seu ritmo, a banda exagerava a expectativa, enquanto Emmy, subindo lentamente por uma escada de corda, alcançava a minúscula plataforma do topo. Lá,
entrevista nas últimas espirais de fumaça, ela desenganchava uma bicicleta mais pesada das travas que a sustinham e segurava-a, testava o quadro, espichava os membros,
passava giz nas mãos, montava na máquina sobre a plataforma e, por um longo momento, parecia estar suspensa, quase flutuando na névoa de vapor. Os metais, que tinham
gradativamente diminuído para um profético murmúrio, vinham agora novamente à vida, apoiados por um estaccato de tambores que rufavam e reverberavam cada vez mais
alto. Era o instante que fazia Stephen desejar fechar os olhos. Jo-jo lhe dissera que, havendo perícia e coragem, o perigo era limitado; a estria branca do centro,
na qual as rodas deviam andar precisamente, tinha menos de 15 centímetros de largura, e depois da chuva, ou quando a umidade era grande, a superfície escorregadia,
apesar de enxugada, era traiçoeira. Contudo, não havia tempo para pensar - numa tempestade final de som, Emmy soltou-se, caiu parecendo uma pluma, projetou-se para
cima na curva e pousou na plataforma de madeira com uma velocidade que a carregava para fora da tenda como um raio.
No meio dos aplausos, embora não pudesse sair, Stephen escapou e rodeou para a barraca onde os artistas se vestiam. Teve que esperar 15 minutos até que ela saísse,
e imediatamente sentiu que ela não estava de humor muito amável.
- Então? - perguntou ela.
- Você esteve ótima... notável - afirmou ele.
- A pista estava molhada - um orvalho pesado - e esses fripons preguiçosos não enxugaram nem a metade. Então não sabem que é suicídio deslizar numa pista úmida?
Eu quase não desci. - Em várias ocasiões, por causa disso, tinha cancelado o número - de fato, tinha um acordo com Peroz que lhe permitia tomar essa resolução. Mas
a queixa deixou-lhe a voz. - Mas esta noite eu queria mesmo.
- Por quê?
Ela não pareceu ouvi-lo. Então, indiferente, respondeu:
- Por causa daqueles militares.
- Soldados?
- Não, estúpido, oficiais, naturalmente. Havia aqui uma escola de cadetes do primeiro ano. Não viu o grupo na frente da tribune?
- Acho que não.
- Uma turma elegante, isso era, nas suas túnicas. Eu gosto de uniforme.
E eles estavam querendo que eu os visse. Não que eu notasse, naturalmente. - A sua expressão amuada afastou-se um pouco. - Eu fiz um extra para eles.
Ele mordeu o lábio, procurando abafar o ciúme que ela tinha tanta capacidade de despertar nele. Após o calor sufocante da tenda, o ar era leve e fresco.
- Vamos caminhar até os muros da cidade... lá é muito bonito.
- Não. Não estou com disposição.
- Mas está uma noite tão linda. Olhe, a lua acaba de sair.
- E eu vou entrar.
- Não vi você o dia todo.
Nenhum músculo do seu rosto Se moveu.
- Já me viu agora.
- Apenas um momento. Venha.
- Já não lhe disse que fico cansada depois do meu número? A tensão é muito violenta. Pra você, tudo muito bem, vendendo programas e nugá lá embaixo.
Ele viu que era inútil insistir mais. Escondeu estoicamente o seu desapontamento. Chegaram ao caminhão que ela partilhava com Madame Armande, a mulher que cuidava
do vestuário da troupe. Ele tinha pensado nela o dia inteiro, sentia-se faminto por sua companhia, por um sinal da sua afeição. E ela estava ali, a sua figura ao
luar, rija, sedutora; queria agarrá-la e beijar à força o seu rosto pálido e indiferente, a sua boca ligeiramente entreaberta. Mas não fez nada disso, limitando-Se
a dizer:
- Não se esqueça de amanhã. Venho buscá-la às 10.
Viu-a subir as escadas a correr e desaparecer no caminhão.
Ao voltar, a função tinha terminado e a multidão se despejava pela saída da grande tenda, falando, gesticulando, rindo. Todos pareciam felizes, satisfeitos com a
vida e consigo próprios, ao voltarem aos seus lugares comuns e confortáveis. Stephen perdeu aquela sua primeira disposição alegre. Inquieto e perturbado, não podia
voltar ao seu canto, enfrentar as caçoadas de Jo-jo e os roncos de Baptiste. Saiu para as muralhas sozinho.


CAPÍTULO VIII

NA MANHÃ SEGUINTE, trazida por uma alvorada mansa e cinzenta, ela o surpreendeu e alegrou por sua pontualidade. Estava quase pronta quando ele chegou,
e pouco depois estavam nos seus vélos, rumando para o Loire, no belo contorno de Angeres, com as suas muralhas romanas, a Catedral de St. Maurice com suas agulhas
e as arcarias da préfecture atrás deles. Como sempre, ela imprimia um ritmo muito veloz, curvada sobre o guidom, as pernas movimentando-se como pistons, com o firme
propósito de deixá-lo para trás. A bicicleta dele, comprada barato com o seu primeiro pagamento semanal, era um modelo antigo; contudo, o ar fresco e a comida do
campo tinham-no robustecido. Embora lhe custasse um esforço contínuo ladeira acima, mantinha o seu lugar pouco atrás do ombro dela.
Atravessaram, dali a pouco, um arvoredo à esquerda e imediatamente se descortinou todo o esplendor do vale - o rio grande e largo brilhando na luz plácida, movendo-se
preguiçoso entre as ribanceiras e sobre baixios de areia dourada, passando por altos tufos de vimeiros, barcos de fundo chato atracados e ilhotas verdes. Na estrada
serpenteante, pesada pela areia, diminuíram a velocidade. Por trás de uma cortina de faias, Stephen avistou as torres pontudas e a fachada musguenta de um antigo
castelo. A beleza da região era inebriante para o seu espírito. Soerguido, olhou para a sua companheira, fez como se fosse falar, mas, depois, sabiamente, absteve-se.
Por volta do meio-dia, chegaram a um staminet à beira do rio, onde, acima da porta, um peixe monstruoso, enredado em algas, nadava numa caixa de vidro. Primeiro,
Stephen tinha proposto um piquenique, mas isso tinha pouca atração para Emmy, que sempre preferia parar em algum café provavelmente freqüentado pela confraria esportiva,
onde, numa atmosfera de camaradagem, havia livre companheirismo, vivas conversas em gíria e a música de um acordeom. A estalagem, todavia, embora possuísse um considerável
encanto, estava vazia de clientes - um fato que não desagradou Stephen, que sofria com a admiração demasiado franca que a sua companheira gostava de provocar. Atravessaram
o soalho de pedra limpo com areia, sentaram-se à mesa esfregada com escova e sabão junto a uma janela, da qual pendia um banco, e, após consultarem a proprietária,
escolheram um prato de peixe local que ela recomendara muito. Este chegou pouco depois, numa enorme travessa de madeira, um fritto de minúsculas espadilhas do Loire,
cada uma não maior do que um filhote de arenque, cozidas tão secas que se quebravam ao toque do garfo. Com eles vieram pommes frites e uma jarra de Bière Navarin,
preferida por Emmy.
- Isto é bom - disse Stephen, olhando por cima da mesa.
- Não é mau.
- Gostaria de pedir uma garrafa de vinho para mim - disse ele em tom de pedido.
- Eu gosto desta cerveja. Faz-me lembrar de Paris.
- Num dia como este?
- Em qualquer dia Paris me basta.
- Ainda assim... você não se importa de estar aqui não é?
- Podia ser pior.
Emmy não era afeita a superlativos, mas neste momento estava de excelente humor, e dali a pouco pôs-se a rir.
- Você não adivinha o que eu recebi esta manhã. Flores. Rosas. E um billet-doux de um dos oficiais.
- Ah, sim? - A sua expressão tornou-se ligeiramente rígida.
- Aqui está. Monograma gravado e tudo. Com outra risada, apalpou o bolso e tirou um bilhete cor-de-rosa amarrotado. - Dê uma olhada.
Ele não tinha vontade de ler o bilhete, mas também não queria ofendê-la. Passou rapidamente os olhos, notando o duplo sentido das frases polidas que a convidavam
a ir tomar um aperitivo na Terrasse e depois jantar no Le Vert d'Eau. Devolveu-o sem comentário.
- Ele é capitão, parece. Acho que o vi no grupo de ontem à noite. Alto e bonito, de bigode.
- Você vai? - perguntou ele, mascarando os seus sentimentos com um tom inexpressivo.
A fria ironia da sua maneira atravessou a sua auto-estima. Ela raramente corava, agora uma leve cor apareceu por baixo da sua pele branco-azulada.
- Quem é que você pensa que eu sou? Conheço essas guarnições da cidade e o que se pode arranjar com elas. Pra mim não, obrigada.
Stephen ficou silencioso. Embora se desprezasse por isso, e em vão tentasse combatê-lo, de tempos em tempos o ciúme lhe vinha num impulso dominador. A simples ideia
de que ela pudesse sair sozinha com aquele oficial desconhecido causava-lhe um sofrimento penoso. Contudo, ela declarara categoricamente que iria ignorar o convite;
assim, obrigando-se a ser razoável, forçou um sorriso conciliatório.
- Vamos descer até o rio. - Quando brigavam, era sempre ele quem procurava fazer as pazes.
Pagou a conta, e desceram à beira da água. O sol, geralmente quente para aquela época do ano, tinha esmaecido e, lançando reflexos da água que faziam fechar os olhos,
envolveu-os num banho de luz. Ele amava o sol - sol e água eram os deuses gémeos que poderia adorar. E enquanto ela acendia um Caporal e, com os olhos fechados,
relaxava numa postura cómoda na sombra de um salgueiro, ele sentou-se na claridade aberta e começou a desenhá-la. Já tinha feito dezenas de desenhos, nos quais se
refletia não apenas a intensidade do seu sentimento por ela, mas também a complexa interação de angústia, desejo e, por vezes, quase ódio que o compunha.
Não estava cego àquela forma de egoísmo, crueldade e vaidade, que em outra pessoa teria provocado o seu desprezo. Sabia que ela apenas o tolerava
- talvez porque a sua mentalidade gaulesa se detivesse nas possibilidades da grande proprieté, mas principalmente, e disso tinha certeza, porque o seu evidente desejo
a lisonjeava, dava-lhe uma sensação de poder apreciada por sua natureza. Ela lhe trazia mais sofrimento que felicidade. Contudo, nada podia fazer. Desejava-a com
uma necessidade física que, não sendo por ela satisfeita, aumentava de dia para dia.
Dali a pouco, erguendo os olhos do bloco, viu que ela estava dormindo. Deixou escapar, involuntariamente, um suspiro nervoso e irritante. Soltando o seu bloco e
creions, aproximou-se mais da margem, e então, num impulso, tirou a roupa e mergulhou no rio. Sabia, pelas excursões anteriores, que ela não gostava daquilo - tinha
uma aversão felina pela água fria - mas para ele o choque daquelas águas vindas de fontes era uma revigorante delícia.
Quando voltou, ela estava em pé, sacudindo o capim do cabelo cheio e curto.
- Você sabe deixar os outros sozinhos.
- Pensei que estivesse dormindo.
- Que horas são?
- Ainda é cedo - disse ele, aproximando-se e enlaçando-a pela cintura.
- Ainda temos mais uma hora.
- Oh, deixe-me! - Inclinou-se para trás e empurrou-lhe o peito com as mãos. - Você está molhado.
- Mas Emmy...
- Não, não. Não devemos chegar atrasados. Você não vai querer perder o seu emprego. É tão agradável e conveniente para você, não é?
- Sim, claro - respondeu ele com voz tensa. Ela já estava voltando para a estalagem e Stephen a acompanhou.
Aquele raro interesse pelo seu bem-estar intrigava-o. E não se dissipou pela sua disposição animada, quando voltavam a Augers. Em voz alta, ela ia cantando trechos
da última canção do teatro de variedades:
Les jolis soirs dans les jardins de l'Alhambra Ou donc sont les belles?
Que l'amour appelle?...
Et le rendez-vous, de l'amour très fou.
E seguindo seu hábito quando estava alegre, deixava os habitantes locais de boca aberta, com uma exibição de ciclismo difícil ao passarem rapidamente pelas aldeias
ribeiras.
Ainda não eram três horas quando chegaram ao circo, e poucas pessoas estavam diante dele. Stephen trocou de roupa e armou o seu cavalete. Trabalhou toda a tarde,
de um modo ausente, sorumbático, com as linhas da testa
cada vez mais fundas. Embora lutasse contra a ideia de que ela abreviara a excursão a fim de ir ao encontro na Terrasse, essa ideia só fazia aumentar. O crepúsculo
não lhe trouxe nenhum alívio, e durante o jantar mal trocou uma palavra com Jo-jo e Croc.
Por fim, levantou-se bruscamente e foi para o outro lado do campo, onde estava o caminhão de Emmy. Madame Armande estava sentada nos degraus, com um balde entre
os joelhos gordos, lavando meias. Em certa época, ela fizera parte de um número de trapézio, mas quebrara o quadril numa queda e desde então caminhava coxeando.
Agora, aos 50 anos, pesada e sem formas, de pernas hidrópicas e papada, era conhecida como a mexeriqueira da companhia Jo-jo, que cuspia ao ouvir o nome dela, dizia
que durante o recesso de inverno ela gerenciava um estabelecimento de reputação duvidosa no porto do Havre.
- Boa noite - disse Stephen, tentando manter a voz calma. - Emmy está?
Madame Armande mediu-o de esguelha com os seus olhos miudinhos.
- Mas Abbé, você sabe muito bem que ela não vê ninguém antes do espetáculo.
- É só um instante.
Ela abanou a cabeça encaixada num lenço estampado com bolinhas.
- Eu não me atrevo a perturbá-la.
- Então... - Hesitou, ansioso por acreditar nela. - Está descansando?
- A mulher levantou os braços.
- E que mais? Nom de Dieu, acha que sou mentirosa?
A sua indignação era real ou fingida? Ele queria entrar no caminhão, mas a mulher e o balde bloqueavam a entrada. Não devia tornar-se completamente ridículo. Forçou-se
a fazer algumas observações convencionais, e voltou para a escuridão.
O povo chegava aos bandos, a função começava, risadas estrepitosas e aplausos enchiam a grande tenda. Ela estava atrasada. Seria por simples coincidência? Não podia
ter certeza. Procurou tranquilizar-se. Quando ela finalmente apareceu, a impressão, conforme sua fantasia superexcitada, foi de que estava mais aparatosa, mais espetacularmente
viva do que o usual. Gritos prolongados de "bravo!" vinham da tribune quando ela deixou o picadeiro.
Depois disso, na confusão de arrancar as estacas, não pôde vê-la. Melancolicamente, juntou-se a Jo-jo e Croc na tarefa de desmontar os stands. Trabalhando sem atenção,
cortou a mão num gancho de ferro. Não se importou. Um vento frio começava a fustigar o campo. O gerador foi desligado, as luzes elétricas se apagaram. Em toda a
volta, à luz de fogachos vermelhos, entre gritos e imprecações, homens trabalhavam como demónios, desencravando pontaletes, puxando cordas, lutando com grandes abas
de lona. Como sempre
acontecia na primeira hora de movimentação, os animais estavam nervosos, soltando em todos os tons, nas suas jaulas móveis, sinistros uivos de protesto. Os engenhos
de tração, pulsando e roncando, com os volantes girando, aumentavam o tumulto. Para Stephen, parecia que a cena vinha diretamente das gravuras do Inferno de Doré,
e que ele também estava sofrendo as torturas das almas danadas.


CAPÍTULO IX

DE ANGERS, O Circo PEROZ deslocou-se para Tours, depois para Blois, e então para Bourges e Nevers. O tempo se mantinha bom, o negócio prosperava, o velho Peroz usava
o seu chapéu num ângulo elegante. Após uma estada de três dias em Dijon, viraram para o sul e chegaram a Côte d'Or, detendo-se uma noite nas velhas cidades muradas,
com portões de acesso estendidas entre vinhedos, ao longo do vale do Ouche.
A princípio, Stephen era olhado com reserva pela companhia. Mas como a "retirada" semanal dos seus retratos era satisfatória, e uma percentagem fixa dessa soma ia
para o tronc, do qual todos os artistas participavam quando era distribuído em Nice, ele começou a ganhar importância. Além disso, as suas maneiras agradáveis e
disposição tranquila logo o puseram em termos amistosos com a maioria da troupe.
Formavam um painel humano. Fernand, o domador de leões que passeava destemido na jaula circular de ferro das feras, como um hussardo no seu uniforme azul e prateado,
com uma manga dramaticamente rasgada em pedaços, era o mais tímido dos homens, sofrendo agudamente de dispepsia nervosa e sendo mimado com uma dieta de leite por
sua devotada esposa. Os próprios leões eram inofensivos como vacas, na maior parte muito velhos, os machos castrados rugiam somente porque queriam o seu jantar,
e todo o aparato de cercar a jaula de auxiliares com ferros em brasa era pura encenação.
"Não tivemos um acidente em 20 anos", observava complacentemente Peroz no boletim que antecipava ao jornal local da próxima cidade do circuito.
ESCAPOU POR UM TRIZ NO CIRCO PEROZ
LEOA ATACADA DE LOUCURA
Fernand gravemente machucado
Max e Montz, ambos anões, eram os dois palhaços principais, um par internacionalmente famoso, cujo número maior era chamado "O Rapto", um esquete no qual Max, ataviado
em rendas grotescamente fora de moda, desempenhava o papel de noiva velhota. A rotina, executada num antigo automóvel Panhard que enguiçava e se recusava a funcionar,
caindo finalmente aos pedaços, era ruidosamente cómica. Max, com o seu beicinho de criança, fazia a platéia morrer de rir. Contudo, fora do picadeiro mostrava uma
melancolia mais profunda que a de Hamlet, tendo confiado a Stephen que a paixão de toda a sua vida era o violino.
Com tais incoerências diante de si, Stephen ficou menos surpreso ao descobrir que o equilibrista japonês era um adepto da Ciência Cristã, que Nina D'Amora, que cavalgava
em pêlo, era alérgica a cavalos e em consequência sofria cronicamente de asma, ao passo que Philippe, que todas as noites corria riscos espetaculares no trapézio
alto, passava a maior parte do seu tempo de folga tricotando meias.
Por formar um grupo com Jo-jo e Croc, Stephen via-os mais do que aos outros. Jean Baptiste, por baixo da sua aparente apatia, era um homem sensível e inteligente
- Stephen fez dele vários esboços notáveis, em pé na sua plataforma, diante da multidão boquiaberta. Fora bem educado no lycée de Rouen, e chegara a assumir uma
posição com boas perspectivas numa excelente firma, La Nationale. Então lhe viera aquela afecção incurável, transformando-o gradualmente de um ser normal em um monstro
medonho - um irremediável desenvolvimento - e levando-o ao desespero final de um show secundário no Circo Peroz.
Mas era a Jo-jo que Stephen dispensava uma particular atenção. O ex-jóquei era um rematado patife que roubava em qualquer oportunidade, trapaceava pelo interior
e embebedava-se até cair e ficar no chão estuporado, "curando" a bebedeira. Contudo, na sua duplicidade havia uma qualidade curiosamente humana de que se gabava:
jamais em sua vida ter deixado um amigo sem ajuda. Às vezes, de noite, depois de ter visto Emmy, quando vinha ao camion adaptado onde ele e os outros dois moravam,
Stephen surpreendia Jo-jo com o olhar peculiarmente fixo nele - menos por simpatia, uma emoção que Jo-jo era incapaz de sentir, do que por uma espécie de cínica
compreensão, levemente tingida de escárnio.
- Saiu com a sua garota?
- Parece, não?
- Divertiram-se?
Stephen não respondia.
Em várias ocasiões, o ex-jóquei parecia querer tratar do assunto, mas em vez disso encolhia os ombros e voltava-se para Jean Baptiste, iniciando com ele uma discussão
que tornava intencionalmente grosseira, como agora:
- Qual é a sua opinião sobre as mulheres, Croc?
- Considero-as com tolerante desprezo.
- Você fala como um marido.
- Sim... já fui casado. Minha esposa agora opera a passage à niveau em Croiset, no Chemin de Fer du Nord. A minha mais cara esperança é que um dia o expresso de
Paris, correndo 90 quilómetros por hora, atinja-a numa parte vulnerável.
- De minha parte, apesar de nunca ter me casado, gosto de mulheres. Mas só para dormir com elas. Para o resto, são piores que uma gonorréia.
- Mas a gente consegue isso dormindo com elas.
- Não com as minhas mulheres. Nunca escolho putas. Somente boas e honestas esposas camponesas que encontro no mercado e estão à procura de alguma ligeira variedade.
- Ah, variedade! Essa é a verdadeira palavra - à qual devo muito do meu último sucesso.
- Você, escamado?!
- Mas certamente. Tenho feito muitas conquistas com meus íntimos através da curiosidade. Mulheres entediadas com o leito matrimonial fazem qualquer coisa por uma
novidade. Li uma vez que um assassino condenado à guilhotina pode escolher dezenas de mulheres.
- Sacré bleu! Embora mereça, você não vai perder essa cabeça feia.
- Não. Mas exerço a mesma atração. Refletindo sobre a força da cauda do crocodilo, as mulheres acreditam que sou dotado de um formidável poder fálico.
- Mas você as decepciona, farceur.
- Isso só aconteceu uma vez, Jo-jo. Era uma gorda, solteirona, sem ligações, que durante meses me seguia na esperança de que os nossos repetidos enlaces produzissem
um jacaré. Infelizmente a criança nasceu normal.
Uma gargalhada profana encheu o caminhão, mas Stephen não participou dela. Sabia que o diálogo era dirigido a ele, não por qualquer intenção maldosa, mas como um
remédio administrado à vítima de uma febre renitente. Contudo, a sua doença já progredira tanto, que parecia incurável, intensificada pelos humores e incoerências
de Emmy. Às vezes ela o tratava bem, sentava-se nos degraus do caminhão, lisonjeada por suas atenções, cheia de sua própria importância, balançando os pés nus ao
sol. E conquanto não fosse pródiga com os seus favores, vez por outra, quando passeavam juntos no escuro, deixava que ele a beijasse antes de se afastar rapidamente.
Em vão ele dizia consigo mesmo que, numa natureza tão carente de profundidade, jamais despertaria uma paixão correspondente. Voltejava em torno dela como um marimbondo
em torno de uma nectarina, mas sem penetrar uma única vez na carne macia do fruto.
Numa tarde chuvosa, quando tinham deixado o agradável distrito do Saône pelo território estéril do Pays de Dombres, foram até uma pequena e dispersa comunidade de
Moulin-les-Drages. O seu destino inicial era St. Etienne, mas o trator principal quebrou na estrada, detendo uma longa fila de carros rebocados, e uma vez que o
conserto demoraria pelo menos 24 horas, era forçoso fazer um alto. Peroz, muito aborrecido por perder uma data importante, resolveu, após considerável debate, oferecer
um espetáculo em Les Drages e assim diminuir um pouco o seu prejuízo.
Mas tendo começado com má sorte, o dia continuou de mal a pior. Cartazes não tinham sido previamente afixados; a cidade, investigada, mostrou ser mesquinha e pobre,
sendo a única indústria uma olaria decadente. E a chuva aumentava continuamente. Quando chegou a noite, não havia mais de 100 pessoas na tenda gotejante.
Honrando a tradição Peroz, a maior parte dos artistas apresentou os seus números em bom estilo, voltando depois para a grande estufa da sala de estar. Emmy, contudo,
foi menos afortunada. Duas vezes, durante as suas evoluções preliminares, as rodas derraparam e ela foi atirada no chão molhado. Como resultado, cortou a parte principal
do seu número e saiu do picadeiro pedalando com a cabeça no ar. A primeira queda provocara risadas na plateia aborrecida; a segunda, uma positiva zombaria, seguida
de uma vaia com miados de gato.
Quando Stephen a viu depois, fora da tenda, ela ainda estava pálida com o vexame. Ele sabia que não devia falar, e por isso saiu com ela pela estrada em direção
ao acampamento, cerca de um quilómetro e meio distante, onde os carros estavam estacionados. Para piorar as coisas, não tinham andado muito quando desabou um forte
aguaceiro, forçando-os a se abrigar num celeiro ao lado de um campo aberto de restolho.
Quando seus olhos se habituaram à escuridão, Stephen olhou em torno, observando que o lugar estava cheio de palha. Rompeu o silêncio.
- Aqui pelo menos está seco. - E acrescentou: - Estou contente porque não apresentou hoje a parte final. Aquela gente não merecia.
- Que quer dizer?
- Bem... - Corou ligeiramente. - Eram gente um tanto antipática.
- Não notei. Eu sempre domino a minha plateia.
- Então por que não desceu?
- Porque a pista estava ensopada. Você não entende que na chuva isso é suicídio? - Num ataque de mau humor, seus olhos cintilaram para ele. Quem é você para ficar
aí me criticando? Sabe lá os riscos que eu corro todas as noites, enquanto você fica sentado lá atrás, rabiscando numa folha de papel, com menos coragem do que um
piolho? Eu desço ou não desço exatamente quando resolvo. E não vou quebrar o pescoço por nenhum padrezinho.
Ele a encarou por um momento, agora tão pálido quanto ela; depois, furioso, agarrou-a subitamente pela cintura.
- Não me fale assim!
- Largue-me.
- Só se me pedir desculpa.
- Fiche-toi le camp.
No próximo instante estavam lutando. Cego de raiva, recordando todos os insultos e desfeitas que ela acumulara nele, resolvido a vencê-la fisicamente, fechando ambos
os braços em torno dela como um lutador, tentou levá-la ao chão. Mas ela lutava como um gato selvagem, torcendo-se e revolvendo-se na palha fofa, malhando-o com
os cotovelos. Ela era mais forte do que ele julgava, com músculos curtos e poderosos de felina agilidade. Começou a respirar pesadamente, sentindo a pressão do seu
corpo contra ele. Retesando cada músculo, ele resistia. Rolaram por aqui e ali, sem decisão, até que ela, encolhendo a perna por trás dele, atirou-o longe com uma
rápida distensão.
- Está vendo? - disse ela. - Que isso lhe sirva de lição.
Ele se levantou devagar. Estava menos escuro do que antes; através da
clarabóia do celeiro, a lua era visível correndo entre as nuvens. Com um esforço, ainda tentando recuperar o fôlego, forçou-se a olhar para ela e viu, com confusa
surpresa, que ela não havia levantado; estava deitada de costas sobre a palha, com o vestido ainda desarranjado pela luta, observando-o através dos olhos apertados
com uma curiosa expressão especulativa, excitada, mas, ainda vagamente zombeteira. No seu rosto, geralmente de uma palidez fria, havia uma orla de cor, nos seus
lábios pálidos um sorriso ligeiramente mau. Por um momento, sustentou o olhar dele; depois, colocando ambos os braços embaixo da cabeça, numa atitude menos de sedução
que de expectativa, fez um movimento impaciente.
- Então, estúpido... que está esperando?
O convite que ele tanto havia procurado era inconfundível, contudo tão descarado, tão despido da menor semelhança de afeição, que ele não podia se mover. Petrificado
e repelido, mirava-a, e, girando, saiu do celeiro sem uma palavra.
- Molenga! - gritou-lhe ela. - Espèce de crétin.
Ele caminhou talvez uns 30 metros antes que o desejo lhe surgisse novamente, mais desesperado do que antes. Pouco se importava, queria-a, e haveria de possuí-la
de qualquer maneira. Virou-se e voltou.
- Emmy... - Estava fraco, encolhido de desejo por ela. Mas agora ela estava fria e dura como uma pedra.
- Vá para o inferno - disse ela outra vez zangada. - Agora espere outra oportunidade.
A expressão dos seus olhos dizia-lhe que era inútil insistir. Novamente
saiu do celeiro. Sem saber aonde ia, caminhava direto para a frente, com os olhos contraídos e os lábios apertados. Naquelas últimas semanas, vitimado por seu desejo
insaciável, reduzido a uma perpétua atitude de propiciação, já tinha sido bem humilhado. Mas agora, ferido em sua sensibilidade, sentia-se no mais baixo nível de
abjeção. Não podia, não devia submeter-se a isso.
Seus pensamentos não tomaram uma forma coerente até chegar de volta ao acampamento do circo. Uma vez que o motor enguiçado não seria reparado antes da manhã seguinte,
nada tinha sido desmontado, e no campo enlameado a grande tenda se erguia deserta e vazia. Alguma coisa buliu dentro dele. A luz brilhando através da abertura do
topo do dossel banhava o picadeiro com uma luz espectral, mostrava a pista inclinada, que não fora desmontada, brilhando de umidade. Um estranho impulso, um senso
de dever para consigo mesmo, lentamente foi tomando forma no seu espírito atormentado. Olhando para cima, viu que o equipamento ainda estava no lugar. Incapaz de
reprimir um arrepio, dirigiu-se para a escada de corda, seus pés deixando pegadas na serragem molhada. Segurou a corda e começou a subir vagarosamente. Momentaneamente
uma vertigem paralisou-o. O vento naquela altura tinha mais força, fazendo a pista oscilar, e o grande toldo, panejando e agitando-se, aumentava a sua impressão
de insegurança. Ele compeliu os seus músculos rígidos ação. Olhando para cima e usando uma mão, desenganchou a bicicleta da trava e, ainda seguro firmemente ao mastro
com o outro braço, alinhou as rodas. Montou trémulo na máquina e forçou-se a olhar para baixo.
O picadeiro, lá embaixo, era impossivelmente pequeno, um distante disco amarelo. A pista na qual ele estava pousado não tinha mais substância que uma simples fita.
Outro violento tremor lhe percorreu o corpo. Continuava seguro, podia voltar atrás. O medo petrificava-o. Lutou com ele. O que quer que acontecesse, tinha que descer.
Respirou fundo, firmou a sua posição na bicicleta, curvou-se para diante. Ao fazer isso, teve a vaga consciência de um grito, de uma figura encurtada e escura que
acenava lá de baixo. Se pretendia avisar, era demasiado tarde. Focando o olhar na lista branca central, com um supremo esforço da vontade, soltou a mão que o segurava.
Veio uma fração de segundo de voo, uma descida incrível, um empuxão para cima que o catapultou para o ar, e no mesmo instante, com um salto ruidoso, estava embaixo,
atirado com tremenda velocidade para fora do campo, estatelado na lama mole da vala que o margeava.
Por um momento lá ficou, imóvel, surpreso por estar vivo. Até que ouviu alguém correr para ele.
- Nom de Dieu... Está querendo se matar? - Era Jo-jo, desta vez em considerável estado de agitação.
- Não - disse Stephen, levantando-se tonto. - Mas acho que vou ficar enjoado.
- Seu filho da puta maluco. Que bicho lhe mordeu?
- Precisava de um pouco de exercício.
- Você está louco. Quando vi você lá em cima, pensei que estava liquidado.
- E que diferença isso teria feito?
Jo-jo encarou-o.
- Pelo amor de Deus, venha tomar um drinque.
- Muito bem - disse Stephen, e acrescentou: - Não comente isso com ninguém.
Foram até o café da aldeia. Depois de um bom copo de Calvados, a mão de Stephen parou de tremer. Lá ficou bebendo com Jo-jo, quase em silêncio, até que o lugar fechou.
O conhaque pesava-lhe na cabeça, fazendo-o sentir-se embotado e entorpecido. Mas na verdade não tinha realizado nada. A dor no coração ainda estava lá.


CAPÍTULO X

DUAS SEMANAS SE PASSARAM. Estavam em Nice. A cidade, iniciada pelos terraços de mimosas de La Burnette, era maior do que Stephen imaginava. A Promenade de Anglais,
a cintilante orla marítima, com os seus canteiros formais e hotéis ostentosos, dava uma desagradável nota pretensiosa. Mas o terreno do circo ficava bem para o interior,
na direção de Cimiez, atrás da Place Carabacel, cercado de ruas estreitas com feiras ao ar livre e pequenas barraquinhas de frutas, verduras e uma profusão de flores,
uma rede de coloridas e ruidosas passagens que tinham o encanto íntimo de Paris acrescido do calor do Sul.
- Nada mau, hein? - disse Jo-jo, expandindo o seu magro peito embaixo do colete rasgado.
- Gosta daqui?
- Muito. E você também vai gostar. - Fez um gesto abrangente. - Há muito interesse para um artista na Carabacel.
Em outro momento teria sido um entretenimento para Stephen explorar aquele bairro. Agora, tenso e inquieto, sentia que não poderia trabalhar. Mas obrigou-se a tal
com o seu bloco Ingres e fez alguns estudos dos nicenses - uma velha de touca branca vendendo alcachofras, um homem do campo
com uma rede de galinhas vivas, trabalhadores tapando um buraco na estrada. Contudo, o seu coração não estava naquilo, e ao calor do meio-dia voltou para o acampamento
a fim de descansar um pouco antes de começar o trabalho na sua barraca.
Na tarde seguinte, diante do seu cavalete na feira, completava o seu último retrato da sessão quando notou que havia um espectador atrás dele, ligeiramente inclinado
sobre uma bengala de rotim. Algo na sua postura despertou-lhe um eco na memória. Voltou-se.
- Chester!
- Como está, meu velho? - Harry rompeu no seu riso contagiante, descalçou uma luva de couro lavável e estendeu-lhe a mão. - Soube que você tinha entrado para o Peroz.
Mas por que diabo está com essa fantasia?
- Faz parte do trabalho.
- Claro, uma maneira de atrair os nativos. Mas não o faz sentir-se com cara de tolo?
- Ora, estou acostumado. Espere, que já estarei com você.
Enquanto Stephen dava rapidamente os toques finais no retrato, Chester tirou uma cigarreira e acendeu um cigarro. Espremido num traje de linho branco, sapatos marrons
e um chapéu panamá, tinha um ar abastado. Calças bem vincadas, camisa de tussor de seda, exibia uma elegante gravata-borboleta. O rosto estava bem queimado.
- Não posso acreditar que você esteja aqui. Embora tivesse dito que ia para Nice. Você parece estar bem.
- Estou em ótima forma, obrigado.
- Suponho que teve alguma sorte nas mesas.
- Para dizer o mínimo, tive. - O sorriso de Chester escureceu. - Eu estava nas últimas e apostei os 50 francos que me restavam no duplo zero. Por quê? Porque sabia
que teria menos que zero se perdesse. Deu o duplo zero. Deixei tudo. Por quê? Só Deus sabe. E deu o duplo zero outra vez. Meu Deus, você nunca viu semelhante pilha
de grandes e lindas fichas quadradas vermelhas em sua vida. Fui apanhá-la. Não pude. Alguma coisa dentro de mim dizia sorte pela terceira vez. Quando a roda girou,
quase morri. O duplo zero deu de novo. E desta vez recolhi tudo rapidamente e fui trocar no guichê do caixa. No dia seguinte mudei-me do prejuízo para Villefranche,
um pequeno apartamento. Desde então estou vivendo como um lorde. - Tomou o braço de Stephen. - Agora fale-me de você. Como vai o trabalho?
- Assim-assim.
- Vamos vê-lo.
Stephen guiou-o até o seu caminhão, apanhou algumas telas e inclinou-as, uma depois da outra, contra a calota da roda, enquanto Harry, com uma expressão profissional,
estudava cada uma a seu turno.
- Bem - declarou ele afinal. - Você pode ter algo aí, mas não compreendi bem o que é. Perspectiva? As suas pinceladas não são muito rudes?
- São intencionalmente rudes... para dar uma impressão de vida.
- Esses cavalos não são particularmente reais.
Harry apontou com a sua bengala para uma composição a têmpera de cavalos correndo como loucos numa tempestade.
- Não estou procurando expressar o óbvio.
- Obviamente não. Contudo... gosto que um cavalo se pareça com um cavalo.
- E quando você vê um homem montado nele, então tem certeza disse Stephen secamente, e empilhou as telas, percebendo que Chester não tinha a menor ideia do que ele
buscava. - Você ainda está pintando?
- Oh, naturalmente. Quando tenho tempo. Estou fazendo uma vista geral da Promenade. Às vezes saio com Lambert. Ele e Elise estão aqui. Ele pegou uma viúva americana
rica no Ambassadeurs e está dando expediente inteiro com ela.
Enquanto ele falava, soaram passos, e por trás da lona do caminhão apareceu Emmy. Quando se dirigia para Stephen, recuou de súbito, tendo notado a presença de Chester.
Uma expressão curiosa lhe assomou ao rosto.
- Que é que está fazendo aqui?
- Eu geralmente apareço quando menos se espera.
- Como um cêntimo falso?
- Desta vez como uma bela nota de mil francos - respondeu Chester amavelmente, sem se deixar diminuir. - Sentiu a minha falta?
- A privação foi insuportável.
- Não seja rude com o tio Harry. Você sabe que os seus nervos são fracos. - Consultou o relógio. - Tenho que partir. Devo estar no Negresco às seis. Mas quero que
vocês venham almoçar amanhã no meu apartamento Rue des Lilas, 11-B - ao largo do Boulevard General Leclerc. Os Lamberts também estarão lá. Os dois estão livres?
Ótimo. São apenas uns poucos quilómetros pela Corniche, o bonde passa na minha porta.
Sorrindo e acenando com a bengala, chamou um fiacre no fim do acampamento, saltou nele, reclinou-se no encosto acolchoado e mandou tocar a galope. Emmy acompanhou-o
com olhos ressentidos.
- Voyou metido a sebo. Mandando a gente tomar o bonde enquanto ele vai de carruagem.
- Não devemos invejá-lo. Ele também já teve os seus maus momentos.
- Não acredito que ele tenha acertado um coup. Deve estar vivendo com alguma velha.
- Não mesmo. Chester é o tipo de sujeito com sorte para ganhar uma bolada. Além disso, só se interessa por moças bonitas.
- Um dia ele vai ver o que é bom. - Mostrou os seus dentinhos agudos.
- Sale type. Nunca fui com a cara dele.
- Então você não irá lá amanhã...
- Claro que irei. Não seja tão fou. Faremos com que ele se arrependa da sua pretensão.
Ele a olhou perplexo. Obviamente detestava Chester. Por que, então, aceitar o seu convite? Talvez quisesse ver os Lamberts. Jamais soube o que ela tinha em mente.
No dia seguinte, quando veio ao seu encontro, ela usava um vestidinho amarelo de musselina bordada e uma fita da mesma cor em volta do cabelo cheio e curto. Deu-lhe
um pequeno sorriso com os lábios apertados.
- Podemos pegar um fiacre?
- Isso mesmo. Nada de bonde para nós.
Ela escolheu a mais elegante vitória da fila. Sentou-se confortavelmente.
- Como estou?
- Maravilhosa.
- Eu precisava de um vestido novo. Comprei este hoje de manhã na Galerie Mondial.
- É encantador - disse ele. - E assenta-lhe perfeitamente.
- Gosto de mostrar a essa gente que não sou uma coisa embaixo dos pés deles. Chester especialmente. Ele é muito cheio de si.
- Talvez, mas não é um mau sujeito. Acho-o apenas um pouco mimado. É bonito demais.
- Acha-o atraente?
- Acho que muita mulher tola já tem caído pelos seus belos olhos azuis e cabelos crespos.
Ela lançou-lhe um penetrante olhar de soslaio.
- Pelo menos eu não sou uma delas.
- Não - sorriu Stephen. - Estou um tanto aliviado por você detestá-lo. Rodaram pela Avenue Raspail, um largo logradouro sombreado de catalpas, ao longo do Boulevard
Carnot, e depois pela curva da baía para Beaulieu. O céu estava azul, uma brisa de deliciosa fragrância soprava das colinas. Ele apertou-lhe a mão, feliz - ela se
deixou segurar por um momento. Ultimamente, as atenções que ele tinha para com ela, os pequenos presentes que continuamente lhe dava, as restrições que por um esforço
de vontade impunha a si mesmo pareciam estar causando alguma impressão nela.
- Você está sendo gentil comigo - murmurou ela.
Essa ligeira observação tornou-o ridiculamente feliz. Talvez, por fim, ela pudesse aprender a amá-lo.
Dali a pouco rodavam por Villefranche. O apartamento de Chester, na Rue des Lilas, uma rua em ângulo reto com a avenida, integrava uma série de
suítes que abriam sob um balcão comum em torno de um pátio, atendidas por um pequeno hotel, o Hotel des Lilas. Um pequeno chafariz cercado de cactos gorgolejava
no centro do pátio, e tubos verdes de oleandros floridos decoravam a varanda. O lugar parecia limpo, agradável e discreto - exatamente a espécie de pied-à-terre
que Chester, com a sua inclinação para se tratar bem, acharia sem o menor esforço.
Foram os primeiros a chegar, e Harry recebeu-os efusivamente.
- Bem-vindos ao castelo ancestral. Não é grande, mas tem história.
- Má, sem dúvida - disse Emmy.
Chester riu. Vestia calças de flanela branca e um blazer azul com botões de metal amarelo. Seu farto cabelo castanho, recém-ondulado, tinha uma listra de cor mais
clara na testa.
- Se é isso o que você pensa, não posso deixá-la mentir.
Enquanto ele levou Emmy ao dormitório para deixar a sua echarpe e luvas, Stephen relanceou os olhos em torno da pequena sala de estar. Era mobiliada convencionalmente,
mas nas paredes havia duas aquarelas emolduradas que reconheceu como sendo trabalho de Lambert. Examinou-as de perto - uma era um arranjo de ervilhas-de-cheiro num
vaso Ming, a outra um bando de cegonhas paradas num lago nevoento - e ao olhá-las imaginava como jamais poderia ele ter apreciado semelhante beleza. Belamente executadas,
com uma delicadeza quase feminina, eram contudo vazias e insípidas, despidas de toda vitalidade ou intenção. Podiam ter sido feitas por uma hábil professora de arte
de uma escola superior para moças. Faziam-no avaliar que longa estrada tinha percorrido desde aqueles primeiros dias em Paris. Se a jornada fora áspera, pelo menos
lhe tinha ensinado em que consistia realmente uma obra de arte.
- Boas, não? - Chester tinha voltado com Emmy. - Lambert, num gesto muito decente, me emprestou as duas. O preço está nas costas. Há sempre uma chance de que os
meus visitantes queiram comprá-las.
Trouxe uma garrafa de Dubonnet e serviu três copos, depois passando uma bandeja de camarões frescos.
- Posso tentá-la, mademoiselle Rouquet de la baie.
- Você mesmo os apanhou?
- Claro. Levantei-me antes do desjejum.
Rearranjando o cabelo, ela olhou para ele, mas pela primeira vez com menos animosidade.
- Que grande mentiroso!
Harry riu-se gostosamente.
- Também sou muito bom nisso.
A campainha tocou e os Lamberts entraram. Pareciam pouco mudados, embora Philip estivesse mais gordo, mais lânguido nas suas maneiras. Usava
um terno cinza com um cravo azul na lapela e trazia pendurada no indicador uma caixinha de pâtisserie amarrada com uma fita.
- Trouxe-lhe alguns bolinhos do Henri, Chester. Acompanharão o café. Naturalmente, você está lembrado da minha gulodice, Desmonde. - Espichou-se comodamente no divã
e delicadamente aproximou as suas finas narinas da flor que tinha na lapela. Elise, que vestia o inevitável verde, e cujo sorriso parecia um tanto mais fixo do que
antes, estava conversando com Emmy.
- Agora, conte-me tudo como um bom menino.
Stephen começou um relato a seu respeito, mas antes que fosse muito longe viu que Lambert não estava prestando atenção, e interrompeu-se.
- Você sabe, Desmonde - disse Philip num tom ligeiro e divertido eu desejaria, pelo seu próprio bem, que você não se tivesse metido nessas coisas pesadas. Você não
pode atacar a arte com uma picareta. Por que suar como um britador de pedras? Faça como eu e use um pouco de delicadeza, um pouco de habilidade. Eu nunca trabalhei
demais, e no entanto clientes não me faltam. E eu vendo. Admito que tenho talento, e isso torna as coisas mais fáceis para mim.
Stephen ficou silencioso. Podia muito bem adivinhar a facilidade de Lambert. Mas o anúncio de Chester, dizendo que o almoço estava servido, salvou-o da resposta.
A refeição fornecida pelo hotel lá de baixo era esplêndida, servida por um jovem garçom que, para apresentar uma comida tão quente, devia ter executado estranhas
proezas de agilidade nas escadas. Uma lagosta cozida à moda da terra, seguida de um risotto de frango, e depois um queijo soufflé; antes, Harry, com o toque de um
perito, tinha feito saltar a rolha de uma garrafa de Veuve Cliquot. Quanto mais alegre a mesa, porém, mais Stephen se sentia completamente alheio a ela. Em certa
época tinha apreciado aquela sociedade, mas agora, apesar do enorme esforço para se coadunar com ela, fracassava tristemente. Que lhe tinha acontecido para que se
sentasse ali, mudo, com a consciência mortal de que não mais pertencia a ela? Emmy, bebendo mais champanhe do que devia, exibia tolas personificações de Max e Monx
que faziam Chester, agora mais ruidoso do que nunca, estourar de riso. Lambert, a quem Stephen tinha antes admirado, parecia-lhe agora exatamente como Glyn o via
- um poseur e diletante, um amador fracamente dotado. Perfeitamente amaneirado, bem-educado, garantido por sua pequena renda regular, recusando-se a ser perturbado
ou excitado, flutuava a esmo, nunca se exercendo a sério, tocando de leve o creme da vida. Cultivando mulheres, arranjava clientes que lhe encomendavam retratos
ou que pagavam bons preços por seus leques e aquarelas. Elise, com o seu sorriso fixo e perfil nítido, mostrava sinais dessa existência. Sua aparência começava a
murchar e as rugas a juntar-se embaixo dos seus
olhos verdes e pestanudos; contudo, embora a sua capacidade de lisonjeá-lo já estivesse um tanto gasta, a sua inexaurível devoção fazia dela, cada vez mais, uma
parceira complacente naquele jogo de blefe artístico, cujo mero pensamento levava Stephen a remexer-se mais inquieto na cadeira.
Depois do café e bolinhos, dos quais Philip, desculpando-se com uma delicada alusão literária ao jovem com as bombas de creme de Stevenson, comeu cinco, sentaram-se
na sacada. Continuando a monopolizar a conversação, descreveu, com irónica meticulosidade, as deficiências faciais e sociais da mulher idosa que retratava atualmente.
- De fato - concluiu ele aereamente - não se poderia esperar mais da viúva de um enlatador de carne de porco de Chicago.
- Imagino que o cheque dela foi bom.
- Bem... naturalmente.
Embora tentasse livrar-se da sua apatia, Stephen via o tempo passar com interminável lentidão. Por fim, cerca de três horas, aproveitando um intervalo na conversação,
olhou para Emmy.
- Acho que temos de ir agora.
- Oh, tolice - protestou Chester. - A tarde ainda é jovem. Vocês não podem nos deixar agora, de modo nenhum.
- Se eu não for chegarei tarde no meu emprego.
- Então por que você não fica, Emmy? - sorriu Harry afavelmente. Houve uma pausa. Stephen notou sua hesitação, mas ela logo sacudiu
bruscamente a cabeça.
- Não. Eu vou agora.
Despediram-se, o porteiro lá embaixo conseguiu-lhes um fiacre. Ao dobrarem a esquina, fora da vista do hotel, Stephen inclinou-se para ela.
- Foi bondade da sua parte vir comigo. Gostei disso.
- E eu não gosto de me tornar fácil.
Não era a resposta que ele esperava; no entanto, animado pela recente mostra de sua consideração, chegou-se mais perto, sob a coberta do avental da carruagem, e
procurou-lhe a mão.
- Não - disse ela, empurrando-o irritada. - Não está vendo como me sinto?
E ao voltar-se surpreso, ela, com franqueza vulgar, deu uma desculpa que, se fosse verdade, teria talvez causado a sua prematura partida.


CAPÍTULO XI

APÓS O TUMULTO E EXCITAÇÃO das viagens através das estradas do país, muitos membros do Circo Peroz acharam agradável estabelecer os seus alojamentos de inverno na
Côte d'Azur. Ali era a sua base; muitos tinham relações em Nice, Toulouse e Marselha, e com mais tempo disponível, poderiam visitá-las. Embora o negócio continuasse
firme, o programa tinha sido reduzido para cinco espetáculos por semana, e após a grande noite de domingo, segunda e terça-feira, ficavam livres.
Os amigos de Stephen já haviam Se acomodado à nova rotina. Max reiniciara as suas lições de violino e podia ser visto, todas as tardes, com a caixa preta em forma
de pêra debaixo do braço, partindo no trote miudinho forçado por suas diminutas pernas. Croc, por outro lado, passava a maior parte do seu tempo na Bibliothèque
Nationale, curvado sobre grossos volumes, expondo na volta, a Stephen e Jo-jo, uma nova versão de Schopenhauer, ao passo que Fernand, parecendo gasto e sonhador,
ia todas as manhãs, de braço dado com a esposa, a um homeopata de Cimiez para a irrigação diária prescrita para o seu flux intestinal. Mais prático, Jo-jo tinha
achado uma ocupação subsidiária nas cavalariças do Negresco, onde, a pretexto de lavar as carruagens, passava a maior parte do tempo tagarelando com cocheiros e
motoristas, levando um livrinho sobre as corridas locais e comentando sarcasticamente, com o canto da sua boca de ratoeira, os visitantes que entravam e saíam do
hotel.
Stephen, por sua vez, tinha começado o desenho preliminar para uma pintura na qual pretendia utilizar os estudos individuais feitos na grande tenda, a que pretendia
chamar Grcus. Esse arranjo complexo, um agrupamento de inumeráveis figuras com as suas cores combinadas e contrastantes, era difícil e, desde que ele não tinha estúdio
nem tela suficientemente grandes, propunha-se seguir o precedente dos antigos mestres e construir a sua composição, primeiro que tudo, numa escala menor e menos
rigorosa. A ideia lhe surgiu à medida que progredia, e ele começou a sentir que semelhante material, recolhido em semanas de paciente observação, devia dar um magnífico
resultado.
Desde o dia do almoço no Hotel des Lilas, o barómetro dos humores de Emmy tinha lentamente chegado a "bom tempo". Após esse evento, não tinham
mais visto Chester ou os Lamberts, e parecia que essa ligação estava finalmente rompida.
No fundo do espírito de Stephen, talvez por uma observação de Glyn, sempre havia a ideia de uma afeição entre Chester e Emmy. Era-lhe gratificante o fato de que
Emmy tivesse aceito a brusca interrupção de sua amizade com tão pouco interesse. Ela, como os outros, tinha voltado a sua atenção para Nice. A irmã de Madame Armande,
que morava nos arredores, logo após o subúrbio de St. Roch, tinha uma pequena chapelaria dedicada principalmente à produção e venda de chapéus de palha de carnaval.
Emmy, como muitas moças francesas, tinha talento para os trabalhos de agulha, e todas as tardes tomava modestamente o bonde para ganhar algum dinheirinho na oficina
do Chapeau de Paille. Como resultado, Stephen via-a menos do que o usual. Contudo, experimentava um certo conforto íntimo com esse aspecto inesperadamente sossegado
da sua natureza. Tal atividade, no entanto, devia ser terrivelmente monótona, e ele disse para si mesmo que devia procurar quebrar essa monotonia. No Clarion de
Nice, descobriu que uma companhia lírica, cumprindo um contrato no Casino Municipal, faria uma representação de La Bohême na segunda-feira seguinte. Esse romance
ultrapassado da vida de estudante em Paris talvez a entretivesse, e no seu encontro seguinte ele falou no assunto.
- Você quer ir ao teatro na segunda?
- Teatro? - Pareceu ligeiramente perturbada. - Você não está ocupado com a sua pintura?
- Não de noite, com certeza.
- Bem... se você quiser.
- bom. vou comprar as entradas hoje.
Andou todo o caminho até o Casino e comprou duas cadeiras no grand circle, e então, sabendo o quanto ela gostava de "uma noite fora", reservou uma mesa no restaurante
para a ceia nessa mesma noite. Começou a esperar o evento com aquela antecipação que tão dolorosamente o afetava sempre que pensava em ficar a sós com ela.
Segunda-feira chegou. Quando terminou a sua sessão na barraca, banhou-se com água da bacia no lado de fora do seu alojamento e vestiu o seu terno e uma camisa limpa
que lavara na véspera. Justamente quando se aprontou, ouviu passos atrás dele. Voltou-se e viu uma expressão de pesar nos olhos de Emmy.
- Que houve?
- Não posso ir com você esta noite.
- Não pode?
- A irmã de Madame Armande está de cama, com l agrippe. Tenho que ficar com ela.
- Madame Armande pode fazer isso.
- Sim, mas há pedidos de urgência para atender.
- Talvez...
- Não. Tenho obrigação de ir.
Houve uma longa pausa.
- Bem... suponho que não tenha jeito.
Ficou terrivelmente abatido, mas não se importava em mostrá-lo.
- Você deve convidar alguém. Não desperdice as entradas.
- Ora, para o diabo os bilhetes! Que importam eles?
- Sinto muito. - Deu-lhe um tapinha condoído.
- Outra noite, quem sabe.
Aquele ar de interesse preocupado diminuiu a sua decepção. Todavia, ao vê-la apressar-se, indo em seguida despejar lentamente a água cheia de espuma de sabão da
bacia, a sua tristeza era tão grande, que Jo-jo, que acabava de voltar, descansando com os cotovelos no degrau, tendo testemunhado a recente cena, veio fazer perguntas.
- Como vai a coisa? - Falava sem tirar a palha que tinha entre os dentes.
- Muito bem.
- Você está todo emperequetado.
- Estou vestido, se é isso que quer dizer.
- Aonde ia?
- Ao teatro. Venha comigo. É La Bohême.
- Variedades?
- Não, ópera.
- Ópera? Ah, não. Mas vamos tomar um drinque no Mas Provençal. Atravessaram a praça em direção a um café das proximidades. Era um lugar reles mas agradável, com
compridos bancos e mesas na calçada. No interior obscuro, um piano mecânico estava tocando, e o pessoal se achava sentado em mangas de camisa. Jo-jo acenou para
alguns operários que, a caminho de casa, tinham parado para uma caneca de cerveja.
- Qual é o seu veneno, Abbé?
- Qualquer coisa... Vermute.
- Vermute Quelle blague. Você vai tomar é um conhaque. - Pediu em voz alta um Pernod e um conhaque.
As bebidas foram trazidas por uma raparigona de braços nus, vermelhos, e seios redondos, cheios debaixo da blusa, como cocos.
- Aí está uma garota para você. - com mão prática, Jo-jo filtrou o Pernod através de um torrão de açúcar, e tomou um gole confortante do líquido opalescente. - O
nome é Suzie. E não é poule. Por que não experimenta a sorte? Essas mulheres grandalhonas gostam de homens pequenos.
- Ora, vá pró inferno!
Jo-jo riu brevemente.
- Isso é melhor. O problema com você, Abbé, é que nunca se entrega.
- Que quer dizer?
- Sacré bleu! Você pode se desamarrar um pouco. Então nlo fiquei sabendo que você tem tutano - aquela noite... quando desceu na pista? Voando com todo o seu corpo.
Fique alegre, embebede-se e divirta-se.
- Já tentei isso. Comigo não dá resultado.
- Há um chá dançante todas as noites no Negresco. De muita classe. Pode ser interessante.
Havia uma intenção esquisita na voz de Jo-jo, mas Stephen simplesmente abanou a cabeça.
Jo-jo abriu os braços resignado. E depois disse:
- Que aconteceu com a beleza da bicicleta?
- Teve que ficar com a irmã de Madame Armande.
- Armande tem irmã? Haverá duas cadelas iguais neste mundo infeliz?
- Ela tem uma chapelaria em Lunel, atrás de St. Roch. E está doente.
- Uma obra de caridade - fez Jo-jo, baixando a cabeça. - Uma segunda Mademoiselle Nightingale.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual ele continuou a olhar para Stephen com um satírico aperto nos lábios. Uma vez, pareceu que ia falar, mas em vez disso encolheu
ligeiramente os ombros, pediu novas bebidas com um gesto, e começou a falar sobre as corridas do dia seguinte.
Às sete horas, deixaram o café; Jo-jo foi dar água e comida aos seus árabes, e Stephen ficou só. Sentia-se melhor, aquecido e mais alegre depois de três conhaques,
mas ainda assim tinha pouca disposição para ir sozinho ao Casino. A noite era deliciosamente linda - e seria uma pena gastá-la num teatro abafado. De repente lhe
veio uma ideia, Lunel não ficava muito longe, apenas uma viagem de bonde de 20 cêntimos. Por que não dar um pulo até a oficina de Madame Armande e, mesmo que fosse
obrigado a esperar até que ela terminasse o seu trabalho, voltar com Emmy? Com sorte, poderiam até chegar a tempo para o jantar.
A perspectiva apressou os seus passos e ele atravessou o Boulevard Risso para a Place Pigalle, onde, sem dificuldade, achou um bonde para a zona norte. A viagem
foi lenta, e mais longa do que ele supunha, mas não eram oito horas e ainda havia luz quando ele chegou ao seu destino. Lunel, como cidade, era surpreendentemente
pequena e pouco desenvolvida, o terreno plano quase todo ocupado por hortas, pouco mais que uma coleção de casinhas novas de estuque margeando uma única rua não
calçada. Stephen subiu e desceu duas vezes essa rua sem encontrar o Chapeau de Paille. Na verdade, as poucas lojas que lá havia em nada se pareciam com uma fábrica
de chapéus. Intrigado e confundido, Stephen ficou um momento parado, enquanto rajadas de vento
levantavam poeira em toda parte, e então foi à agência do correio, que, funcionando na mesma casa de uma épicerie, ainda estava aberta. Ali, em resposta às suas
indagações, ficou sabendo que não havia modista, e positivamente nenhuma fábrica de chapéus, em Lunel.
Com uma expressão curiosa na face, sentado no canto de um bonde quase vazio, Stephen voltou para Nice. O veículo sacolejante deixou-o meio tonto. Teria cometido
um engano estúpido por ouvir mal o nome do lugar que ela lhe tinha dito? Não, estava certo de que ela dissera Lunel, não uma, mas diversas vezes. Não o teria despistado,
inventando aquela desculpa à última hora? Isso também era impossível - ela vinha visitando a irmã de Madame Armande diariamente nos últimos 15 dias. Sua expressão,
se havia, tornou-se ainda mais fixa. Estava bem escuro quando chegou a Carabacel. Tudo tranquilo e deserto no acampamento. Teve um impulso de ir ao seu alojamento
e ver se ela tinha regressado, mas o orgulho e uma sensação de cansaço físico o contiveram. Já tinha se tornado suficientemente ridículo sem fazer uma cena àquela
hora. Entrou no seu caminhão, deitou-se no beliche e fechou os olhos. Tiraria tudo a limpo com ela de manhã.


CAPÍTULO XII

No DIA SEGUINTE, embora acordasse cedo, não a viu até as 11 horas, quando ela apareceu nos degraus do vagão de chinelos e um penhoar de algodão azul e branco. Sentou-se
no primeiro degrau, segurando uma xícara de café. Ele foi até ela.
- bom dia... Como deixou a sua doente?
- Oh, bem melhor.
- Chamou o médico?
- Naturalmente.
- Espero que não tenha sido nada sério.
Ela tomou um gole de café.
- Eu lhe disse que era uma gripe.
- Mas isso não é contagioso? - disse solícito. - Você deve se cuidar.
- Eu me cuido.
- Estou falando sério... venta muito em Lunel. E o bonde demora muito a chegar.
Ela olhou para ele em silêncio sobre a beira da xícara.
- Que é que você sabe de Lunel?
- Estive lá ontem à noite.
Ela o olhou desconfiada, e deu uma risada.
- Não brinque comigo. Você foi ao teatro.
- Não, eu fui a Lunel.
- Por quê?
- Pensei que podia comprar um chapéu. Infelizmente, não pude achar nenhuma chapelaria.
- Aonde é que você quer chegar.
- E também não encontrei nenhuma irmã de Madame Armande.
- Quem diabo você pensa que é, metendo o nariz nos assuntos dos outros? Saindo para me espionar. Seu rato sujo.
- Pelo menos não sou mentiroso.
- E quem é que mentiu? Falei a verdade. Se eu quisesse, poderia ter levado você lá. Onde você andou zanzando ontem à noite, não sei. Mas o lugar existe sim. Além
do mais - ajuntou ela com um toque final - a irmã de madame é viúva; o nome dela não é Armande. E agora talvez você vá cantar noutra freguesia e me deixe tomar o
meu café em paz.
Com o coração batendo como um martelo, Stephen olhou para ela com um misto de raiva e desespero. Sentia que ela estava mentindo - quando a ocasião exigia, ela podia
ser escorregadia como uma enguia. Mas a sua própria veemência era suspeita. Contudo, era até possível que falasse a verdade. Queria com toda a sua alma acreditar
nela. Sempre pronto a imputar a falta a si próprio, ponderou que aquele terrível aperto que sentia no coração poderia tê-lo levado a julgá-la mal. O desejo de reconciliação
apoderou-se dele e o enfraqueceu.
- Eu esperava tanto a nossa noite juntos.. . - murmurou ele.
- Isso não é desculpa.
- Seja como for, vamos esquecer isso.
- Só se me pedir desculpas por ter me chamado de mentirosa. Pede?
Ele hesitou, mordendo nervosamente os lábios, de olhos baixos. Seu orgulho impedia-o de aceitar aquela humilhação por parte dela. Mas a necessidade que tinha dela
tornava-o abjeto.
- Está bem... se quiser. Sinto tê-la ofendido - disse ele, extraindo à força as palavras que o faziam sentir-se desprezível.
Passou o resto do dia dilacerado pela indecisão, desejando estar com ela. Serviu-lhe de algum consolo observar que ela não saíra do acampamento. À noite, retirou-se
para o seu alojamento imediatamente depois do espetáculo. Mas sabia que não poderia continuar daquele modo, isso era impossível; de uma maneira ou outra, precisava
certificar-se.
No dia seguinte, após o almoço, quando ela saiu para a Place Pigalle, ele a seguiu. Ao saber de casos semelhantes, sempre desprezara o marido desconfiado ou o amante
ciumento que espionava a mulher que lhe causava suspeitas. Agora não podia evitá-lo. Mas ele não era nenhum especialista no assunto e, no seu esforço para não ser
visto, perdeu a sua presa no terminal da Pigalle. Contudo, vira que ela tinha tomado um bonde na direção do passeio público, e como outro estava no ponto, embarcou
nele. Em 15 minutos estava diante da costa. Procurou Emmy apressadamente em torno, andou até a esplanada e voltou, contornando o Casino, mas não viu nenhum sinal
dela. Então, como estava indeciso, de repente se lembrou do jeito de Jo-jo ao falar no chá dançante do Negresco. Embora a possibilidade parecesse remota, atravessou
a rua, entrou nos jardins do Musée Masséna e olhou por cima das grades de pontas douradas, através da Rue Rivoli, para o terraço coberto do hotel. Ao lado, sob um
toldo estendido do saguão até uma pequena plataforma com mesas de chá, uma orquestra, escondida entre as palmeiras, executava uma marcha que alguns casais dançavam.
A princípio, pensou que ela não estava lá. Então, por trás do biombo da folhagem, outra parelha saiu para a pista. A moça sorria quando, com um gesto prático, estendeu
os braços para o companheiro, que a enlaçou pela cintura. Deslizaram juntos - Chester e Emmy.
Imóvel, com a face estranhamente inexpressiva, Stephen ficou a olhá-los, observando como se moviam graciosamente. Seus passos combinavam perfeitamente. Quando a
música parou, permaneceram de pé, juntos, e quando o bis começou, prosseguiram sozinhos. Tão perfeita era a sua exibição, que os deixaram monopolizar a pista, e
quando afinal foram sentar-se, receberam um murmúrio polido de aplausos.
Stephen arrancou-se dali, caminhou lentamente para o passeio público e sentou-se num banco do qual podia ver a entrada do hotel. A dor no seu coração era quase insuportável.
Apertava os olhos ao pensar em como ela o havia enganado. Como ela e Chester deviam ter rido juntos com a invenção da chapelaria fictícia, e a sua crença inteiramente
falsa de que ela estava modesta, industriosamente trabalhando com a agulha, quando durante todo o tempo tinha estado com Harry. Madame Armande era inquestionavelmente
outra parceira daquela peça burlesca e tinha sem dúvida espalhado a notícia entre os membros da companhia. Certamente Jo-jo sabia que ele estava sendo um grandíssimo
tolo, embora, por pena, nada tivesse dito.
No entanto, tudo isso não era nada diante da angústia e da amarga fome da alma que agora o possuíam. Maior ainda que a sua raiva e mortificação, era aquela frenética
intensificação dos ciúmes e do desejo. Através da mágoa e da humilhação, ainda a queria; através do ódio, ainda tinha necessidade dela. E sentado ali, com a cabeça
entre as mãos, procurara achar desculpas para racionalizar
a conduta de Emmy. Afinal de contas, ela estava apenas dançando com Harry, e isso decerto não era um crime. Conhecem-se muitos parceiros de dança que não sentem
nada um pelo outro e estão unidos por não mais que um prazer puramente impessoal pela arte.
A música continuou a tocar intermitentemente até as seis horas, e quando a pista esvaziou, ele viu os músicos saírem com os seus instrumentos. Seguiu-se um demorado
intervalo. Com toda a certeza, Harry e Emmy tinha ido ao bar - imaginava-os muito juntos nos bancos altos, Harry à vontade e descansando, na maior intimidade com
o barman.
Demoraram tanto a reaparecer que ele começou a temer que tivessem deixado o hotel por outra saída. Mas, por fim, já quase noite, filas de luzes coloridas se acenderam
na frente e eles apareceram, descendo os largos degraus do pórtico, e se dirigindo para o passeio. Falando junto, animadamente, passaram tão perto que ele poderia
tê-los chamado. Mas manteve os lábios apertados, e quando já estavam uns 30 metros adiante, levantou-se, quase automaticamente, e seguiu-os.
Não foram muito longe. A uma pequena distância do Casino, deixaram o passeio público, tomaram a rua lateral do Marche aux Fleurs, na Cidade Velha, e entraram num
pequeno restaurante - a Brasserie Lutétia. Jantar para dois, pensou Stephen sombriamente, e teve um impulso hesitante, doentio, de entrar e sentar-se na mesa deles
- em vez disso, abotoou a gola do paletó e postou-se na sombra de um portal.
Não muitas pessoas entravam na brasserie - era um desses lugares sossegados, onde se podia ter completa intimidade. Uma vez, um garçom saiu à porta, olhou para cima
e para baixo, como se esperasse fregueses, e entrou novamente. Um gato passou de mansinho pela calçada. Do portal, sobre os telhados no fim da rua, Stephen podia
distinguir a massa escura das montanhas e altos pontinhos de luz que talvez fossem estrelas.
Teve que esperar até depois das nove, antes que eles emergissem. Somente a grande premência da sua necessidade de descobrir a verdade ajudou-o a manter-se naquela
triste e degradante vigília. E o momento se aproximava - um tremor o percorreu ao vê-los em pé sob as luzes da marquise. Com certeza, Chester estava para se despedir,
ou então ia levá-la de volta à Place Pigalle.
Estavam agora falando com o garçom, o mesmo que vira sair com eles, e Harry disse alguma coisa que os fez rir. Um fiacre chegou ruidoso, chamado da fila na praça,
lá embaixo, uma gorjeta foi dada, Emmy e Chester entraram. Rapidamente, ao se afastarem, Stephen andou até a praça, saltou noutra carruagem e disse ao cocheiro que
os seguisse.
Rodaram pelo Mercado das Flores deserto, entraram num labirinto de ruas antigas e viraram para a costa; então, com o coração encolhido, Stephen
viu que eles se dirigiam diretamente para Villefranche. Logo estavam lá. No fim da Rue des Lilas, Stephen mandou o cocheiro parar e pagou a corrida. Mais adiante,
na rua tranquila, viu o outro veículo parar. Ambos os seus ocupantes desceram, desaparecendo no pátio. Agora as duas carruagens tinham sumido, e ele ficara só na
rua deserta. Instintivamente olhou para o relógio - o mostrador luminoso indicava 10:30. Lentamente, andou para o Hotel des Lilas e ergueu os olhos para a sacada
do apartamento de Chester. A luz de um quarto estava acesa, e ele o identificou como o dormitório, podendo ver duas figuras se moverem por trás da cortina amarela.
A luz permaneceu por mais alguns minutos, e depois se apagou.
Quanto tempo ficou ali, olhando tristemente para o apartamento escuro, Stephen não poderia dizer. Por fim, deu as costas e afastou-se.


CAPÍTULO XIII

VOLTOU À PLACE CARABACEL antes da meia-noite. Através da dor surda que sentia na testa, sabia que deveria ir embora. Metodicamente, sem perturbar Jo-jo e Croc, ambos
adormecidos, reuniu os seus pertences na mochila. Amarrando as telas juntas, prendeu-as nas costas e, com um último olhar para os seus companheiros, saiu na sua
bicicleta. Dirigiu-se para o norte, pedalando velozmente na estrada plana que levava a St. Agustin, com a vaga intenção de pegar a route nationale que finalmente
o levaria a Auvergne. Sentia necessidade de estar com Peyrat - devia ter feito aquilo semanas antes. Mas sobretudo era premido pelo desejo de escapar, de obliterar
da memória aquelas últimas e intoleráveis semanas.
Quase pela manhã, desmontou, estendeu-se num espaço da charneca à beira da estrada e fechou os olhos. Não pôde dormir, mas, tendo descansado até que o sol despontara,
pôs-se novamente em marcha. E agora via pela sinalização que não estava na grande route, mas numa estrada secundária que corria entre as gargantas rochosas do Var
e subia serpeando para Touet e Colmars. Todavia, não quis desandar caminho. Todo o dia e no seguinte trabalhou nos pedais, mais do que a sua força lhe permitia,
no esforço para esquecer. Em Entrevaux, entrou erradamente numa estrada secundária, mais inclinada, que coleava para as montanhas através de um pinheiral. A pavimentação
era má, o progresso ali era mais difícil, havia um opressivo fragor de água se despejando
à medida que a torrente estrondeava sobre o seu leito de pedregulhos; contudo, o estranho medo de voltar mantinha-o tocando para a frente, comendo às pressas quando
podia, dormindo no chão nu, atrás de montes de feno, em estábulos desertos, com a sua capa dobrada como travesseiro. Uma aversão mórbida a qualquer contato humano
afastava-o das mais humildes estalagens.
O tempo piorara, e entre as colinas era úmido e nevoento. Na manhã de domingo, chegou a Annot, uma cidadezinha agrícola construída num planalto, com um vento frio
soprando dos Alpes. Sabia que era domingo pelo repicar dos sinos da igreja e pelo desfile de habitantes sérios, vestidos de preto, que olhavam para ele com desconfiança.
Doente de fadiga e esgotado como estava, essa hostilidade todavia o atingiu, e embora tivesse uma desesperada necessidade de tomar um café quente e pensasse em se
deter ali, não o fez, baixando a cabeça sobre o guidom e pedalando para fora da cidade. A chuva começou a cair. Ele foi obrigado a descansar. Ao desmontar, quase
caiu da sua máquina. Acocorado debaixo de uma cerca gotejante, comendo os restos de comida fria que tinha comprado na noite anterior, sentia-se inteiramente sem
lar, sem um lugar ou abrigo, irreal e desligado como um fantasma.
A chuva não parou, mas ele continuou, agora mais devagar do que antes e com uma falta de fôlego que o obrigava a desmontar nos aclives mais fortes. Seu nariz começou
a sangrar intermitentemente, e embora atribuísse o fato à altitude e lhe desse pouca atenção, era uma sensação esquisita o sangue a refluir quente sobre a sua garganta.
Cerca do meio-dia, começou a sentir-se extremamente indisposto, e, através do entorpecimento que o oprimia, penetrou-lhe um raio de razão. Nunca chegaria a Auvergne
daquela maneira, era loucura continuar; devia procurar uma estrada de ferro ou algum centro próximo sem demora. Desdobrando o seu mapa em grande escala, e protegendo-se
com a sua capa gotejante, viu que, atalhando para oeste, por Barréme, podia alcançar o entroncamento de Digne, não mais que 35 quilómetros além. Digne talvez não
fosse grande, mas ficava numa planície, o que lhe permitiria escapar destas montanhas impossíveis.
Tomou pelo atalho. Era escabroso, mais difícil do que antes, coberto de um cascalho áspero que fazia os seus pneus saltarem e derraparem. Tinha menos força do que
antes nos aclives, e com o esforço adicional seu nariz recomeçou a sangrar. O céu lá adiante era baixo e encoberto, a chuva aumentava rapidamente, e dali a pouco
um dilúvio desabou sobre ele. Ensopado, na escuridão que descia rapidamente, alarmou-se, acendeu com dificuldade a sua pequena lanterna de carbureto e novamente
consultou o mapa.
Não tinha examinado a folha por mais de um minuto, quando um gemido se lhe escapou. Oh, Deus... que tolo... que idiota cego e insensato. Acompanhando com o dedo,
viu que estava no caminho errado. Lá atrás, em
St. André, a curva devia ter sido para a esquerda, não para a direita. E agora examinou o sinal, route acidentés, fort montée, isolée - encontrava-se num beco sem
saída que levava direto acima, ao Col d'Allos.
Um ataque de nervos, quase de pânico, sacudiu-o. Aproximou mais o mapa. Devia haver alguma espécie de aldeia na vizinhança. Então, com alívio, decifrou o nome de
St. Jérõme. Era aparentemente um povoado, mas por sorte estava cercado por uma Cruz de Lorena vermelha, indicando a presença de uma hospedaria arrolada pelo Touring
Club da França como oferecendo acomodações para ciclistas e onde ao menos poderia achar abrigo para a noite. Se não estava completamente perdido, devia alcançá-la
em uma hora.
Pedalou, curvado, contra o vento. O gosto de sal na sua boca aumentou, e passando o lenço nos lábios sentiu que estavam inchados e flácidos. Suas pernas não mais
lhe pertenciam, um martelo batia na sua cabeça, mas quando sentiu que não podia avançar mais, viu tremeluzir, no socavão adiante, um grupo de luzes.
Ficaram mais próximas: uma grande construção cercada por casas menores tomava formas indistintamente, lá embaixo. Completamente esgotado, deixou a sua bicicleta
rodar e subiu aos tropeções a trilha para a primeira casa
- parecia a choupana de um trabalhador. Suas batidas permaneceram sem resposta por um interminável intervalo, e então a porta foi aberta por uma criancinha que ficou
olhando para ele e depois voltou-se e correu. Ele entrou num corredor, ouvindo vozes numa peça dos fundos da casa. Respirava irregularmente, e embora estivesse ensopado,
morria de sede. Devem receber-me, pensou, vou adoecer... aliás, já estou desgraçadamente doente.
Um trabalhador de camisa azul dirigiu-se para ele, seguido de uma mulher com uma lâmpada Argand e, atrás dela, a criança. Ele viu os seus rostos sobressaltados através
do nevoeiro que passava.
- Sinto muito. - com terrível dificuldade, como se do fundo de um poço, pronunciava as palavras. - Perdi o caminho. Podem me receber?
- Mas monsieur...
- Por favor... posso me sentar?... uma bebida.
Antes que ele pudesse falar outra vez, o homem chegou mais perto, sacudindo excitadamente o braço.
- Não aqui - disse. - O senhor deve continuar.
- Deixe-me ficar. - Novamente o terrível problema da articulação. Não posso continuar.
- Não, não... mais adiante.. . não aqui.
O homem segurou-o pelo ombro e levou-o para fora da casa. Julgando que estava sendo enxotado para a estrada, incapaz de resistir ou sequer protestar, tomado de uma
desesperança final, sentiu uma ardência nos olhos, e então, ao chegarem ao portão, percebeu que o homem não o tinha soltado,
mas o ajudava, amparando-o por um corredor rua abaixo. Na verdade, ao avançarem, ele murmurou algumas palavras de encorajamento:
- Está vendo? Não é longe... estamos quase lá.
No fim, alcançaram a grande construção. Havia árvores de espessa folhagem em ambos os lados. O homem puxou a corda de uma sineta e, após um momento, abriu-se uma
grade na porta tacheada. Seguiu-se uma breve conversação e depois ele foi admitido num pequeno saguão caiado, com um chão de pedra nua e bancos lustrosos junto às
paredes.
À beira do colapso, Stephen olhou em torno, tonto. Tudo estava fora de foco. Todas as linhas do saguão corriam juntas e depois se afastavam, como círculos num lago.
Até o porteiro que o deixara entrar parecia fantasticamente indistinto, vestido num paletó comprido e com capuz que lhe dava um aspecto de mulher. Outro homem, ou
mulher, tinha aparecido. Então, imediatamente, todas as linhas se dissolveram. O trabalhador da choupana, voltando-se para esse recém-chegado, retirou atabalhoadamente
o braço que o amparava. Stephen caiu de rosto para baixo, com o embrulho de telas molhadas ainda amarrado às costas.


CAPÍTULO XIV

O SOL DA MANHÃ, incidindo na única e funda janela à cabeceira da tarimba armada sobre cavaletes, acordou-o. Ele deixou-se ficar passivamente, o olhar percorrendo
os poucos objetos da pequena ermida da qual, durante as últimas três semanas, tinha se tornado íntimo e familiar - a solitária cadeira de assento empalhado, o armário
provençal, o genuflexório de madeira num canto, o crucifixo preto na parede branca. Especulativamente, examinou a sua mão, levantando-a contra a luz, achando os
dedos ainda brancos, mas talvez menos translúcidos do que na véspera. Esse era um teste que ele fazia todas as manhãs. Passos leves, rangendo no corredor coberto
de areia, fizeram que ele, sem querer, movesse o corpo e voltasse a cabeça. Estava olhando para a porta quando ela se abriu e o enfermeiro entrou, trazendo o seu
desjejum numa bandeja.
- Como dormiu?
- Muito bem.
- A nossa cantoria não o perturbou?
- Não, agora já estou acostumado.
- bom - disse Dom Arthaud, depondo a bandeja.
Tirou um termómetro dos recessos do seu hábito branco, sacudiu-o e, com um sorriso, colocou-o entre os lábios de Stephen. - Isto não é mais necessário. Mas como
você vai se levantar hoje, queremos ter certeza.
Era um homem de uns 50 anos, de estatura média, vigoroso, ombros quadrados, com uma cara grande e agradável, ligeiramente azulada em torno do queixo, e inteligente,
de olhos castanhos com óculos, a cabeça raspada e tonsurada; usava sandálias de tiras nos pés nus. Ao cabo de um minuto, retirou o termómetro, leu-o e, com um aceno
tranquilizador, puxou a cadeira com a bandeja para junto da cama.
- Não esqueça o seu remédio.
Depois de tomar, com um canudinho de vidro, o líquido escuro de sabor metálico, Stephen começou o seu desjejum - uma caneca de café au lait, manteiga fresca numa
tigela de barro, pão cortado em fatias e frutas. O café com leite estava quente, cheirando a chicória. Depois de molhar o pão na caneca, Stephen olhou compungido
para o que estava em pé - ele nunca sentava-se na extremidade da cama.
- Por que não come comigo? Aqui há mais do que suficiente para dois.
- De modo nenhum. Fazemos a nossa refeição ao meio-dia.
- Mas... isto está muito gostoso.
O enfermeiro sorriu alegremente.
- Sim... a nossa comida é perfeitamente horrível. Mas estamos habituados a ela. E depois, não estivemos doentes.
Stephen apanhou outra fatia de pão.
- Isso é que eu estava querendo lhe perguntar. Que foi exatamente que eu tive? O senhor nunca disse.
- Você teve uma inflamação dos pulmões... por exposição à intempérie. Além disso, fez um esforço demasiado grande. Como resultado, teve a complicação de uma hemorragia.
Muito grave.
- Pensei que o sangue fosse do nariz.
- Não, era dos pulmões. - Fez uma pausa, olhando por cima dos óculos de aros metálicos. - Já teve algo parecido antes?
Stephen refletiu um momento, depois abanou a cabeça.
- Tive um resfriado há alguns meses. Bronquite, imagino. Mas podia ter sido por causa disso.
O enfermeiro baixou os olhos.
- Eu não poderia responder. Não sou médico.
- Mas o senhor me salvou desta muito bem.
- Com a ajuda de Deus.
- E muita habilidade. Não acredito que o senhor não seja qualificado.
- Estudei medicina em Lions com o Professor Rolland. No último ano, assim como você foi chamado para ser um pintor, recebi o chamado para ser um monge.
- Muito afortunadamente para mim.
Dom Arthaud inclinou a cabeça, e então, quando Stephen terminou, apanhou a bandeja. Na porta, fez uma pausa.
- Não se levante ainda. Esta manhã, o Reverendo Prior vem visitá-lo. Quando ele saiu, Stephen recostou-se, com as mãos cruzadas atrás da cabeça. Ainda se sentia
atrozmente fraco. Contudo, quase já não tinha tosse e nem sentia mais aquela pontada aguda do lado. Como era bom o sol no seu rosto - a atividade da convalescença
começava. Não se preocupava com a sua situação. A persistência do enfermeiro em tirar-lhe a temperatura de manhã e à noite não era palpavelmente mais do que uma
rotina. Na verdade, imaginava, calmamente, se a sua doença, com aquele estranho depauperamento, não teria sido peculiarmente oportuno. Já ouvira falar de sangria
como remédio para a febre. Pelo menos sentia-se curado daquelas dores cruciantes que tão intoleravelmente o atormentavam.
Olhando para trás, admirava-se de que, durante todos aqueles meses, tivesse permanecido naquele estado de tamanha sujeição, aniquilado por uma única palavra, arrastando-se
pelo favor de Emmy. A simples ideia daquilo fazia-o estremecer. Rejubilava-se em ser ele mesmo outra vez, e jurou que jamais se submeteria a semelhante escravidão
- na verdade, foi mais longe, e fez um voto solene de que no futuro nenhuma mulher participaria da sua vida. Somente o seu trabalho o interessaria agora, e a ele
se aplicaria com rigorosa autodisciplina.
Às 11 horas chegou o seu visitante. O Prior, uma figura alta e imponente, na sua vestimenta branca encapuzada, sentou-se tranquilamente na cadeira e estudou Stephen
com grave reflexão.
- Então, afinal vai sair da sua cama, meu filho. Alegro-me.
- E eu estou agradecido - murmurou Stephen. - Foi sorte minha encontrar a sua cruz no meu mapa.
- É verdade que temos uma cruz. Mas não figuramos no mapa - disse o Prior com um leve sorriso. - Aquela marca é para uma hospedaria de ciclistas no vale vizinho.
Você se extraviou no caminho, meu filho. Ou, desde que a Providência o trouxe aqui, poderíamos dizer que o achou?
Uma esquisita inflexão na voz do Prior trouxe uma ligeira cor ao rosto pálido de Stephen. Teria deixado escapar alguma coisa a seu respeito nos primeiros dias da
doença?
- De qualquer maneira - respondeu ele - já era tempo de eu ficar bom. Dei-lhe um grande trabalho. Os senhores devem estar querendo se livrar de mim.
- Ao contrário, você é muito bem-vindo aqui. Sofreu um grande abalo, e Dom Arthaud acha que antes de várias semanas não estará apto para viajar.
- Mas... receio que não possa pagar.
- Nós lhe pedimos o seu dinheiro, meu filho? Aliás, quem o esperaria de um artista que luta? Fique conosco por uns tempos. Sente-se ao sol no jardim. Quando estiver
mais forte, a vida terá um aspecto diferente. Será capaz de enfrentar melhor o mundo.
O Prior pousou delicadamente a mão no braço de Stephen, e então levantou-se e saiu.
Stephen teve que se esforçar para reprimir as lágrimas dos olhos. Levantou-se. Suas roupas, lavadas e cuidadosamente dobradas, estavam no armário, com os seus outros
pertences. O dinheiro, cerca de 30 francos, achava-se numa pilha precisa ao lado do seu relógio, que estava funcionando; ele adivinhou que lhe tinham dado corda
todos os dias. Depois de se vestir, deixou o quarto e andou ao longo de um corredor estranho, lajeado de pedra, que o levou ao jardim, nos fundos.
Não era um recinto grande, umas poucas trilhas em torno de roseiras separadas, que levavam a uma gruta com uma estátua no fundo. Um muro de andebol quebrava o contorno
da cerca em volta. Além, alguns campos. Por suas conversações com Dom Arthaud, Stephen soubera que, graças à doação de uma pequena casa de campo, a comunidade, devotada
à instrução de cerca de 20 noviços, tinha sido recentemente estabelecida e estava crescendo unicamente devido aos esforços dos próprios monges, que haviam construído
com as suas mãos a pequena capela contígua à antiga mansão. Podia vê-la agora, branca e um tanto grosseira, aprumando-se contra o céu lanoso.
Após ter andado pelas trilhas, foi obrigado a descansar num dos bancos que flanqueavam a quadra de andebol. Um velho, com o hábito castanho de irmão leigo, estava
ordenhando uma vaca no pasto. Dali a pouco, começou um ofício na capela, e o cantochão, carregado pela brisa suave, era mais do que ele podia suportar. Levantou-se
e arrastou-se para o seu quarto.
Lá, encontrou uma carta, colocada bem à vista no peitoril da janela. Uma semana antes, sentindo-se terrivelmente só, soerguera-se no travesseiro e garatujara umas
linhas ao morador do nº 15 da Rue Castel, pedindo-lhe que remetesse qualquer correspondência que chegasse para ele àquele endereço. Este era, presumivelmente, o
resultado. Rasgou o envelope. Era de Stillwater, uma breve nota escrita havia dois meses.
CARO STEPHEN
Não sei se esta lhe chegará às mãos. Se chegar, é para informá-lo da morte de Lady Broughton, em outubro. Isso não foi inesperado. Algumas semanas antes, o noivado
de Claire e Geoffrey fora anunciado. Vão casar-se muito em breve. Não há outras notícias de importância para lhe dar, a não ser que papai
continua muito triste com a sua ausência. Suplico-lhe que volte e aceite suas responsabilidades como filho obediente.
Sua, Caroline.
Ainda com a carta na mão, Stephen sentou na cama. Em outros tempos, aquela notícia de casa não o teria afetado tão profundamente. Sabia da doença de Lady Broughton,
e seu amor por Claire nunca tinha sido mais que uma afeição fraternal. Contudo, aqui, neste ambiente estranho e remoto, abatido pela doença, a morte de uma e o próximo
casamento de outra - com Geoffrey, entre todos os homens! - parecia aumentar a sua sensação de exílio, cortá-lo mais fundamente de toda aquela vida agradável que
normalmente ainda seria sua. O tom da carta de Caroline, breve, cheio de calada amargura e implícitas censuras pelo que poderia ter sido, fazia-o mais do que nunca
sentir-se uma criatura à parte, cuja própria natureza o punha em conflito com a família, a pátria e a sociedade.
Com o decorrer das semanas, ele ficava mais forte. A região em torno, coberta de pinheiros baixos, sem beleza e sem qualidade, dava-lhe pouco incentivo para sair
do recinto. Fez amizade com os dois filhos de Pierre, o trabalhador da choupana que o trouxera ao mosteiro, levava-os encarapitados no selim da sua bicicleta. Ajudava
o velho Irmão Ludovic na horta, jogava andebol com os noviços na hora do recreio. Eram um alegre grupo de jovens, recrutados principalmente em boas casas burguesas
em Garonde e nas cidades vizinhas. Talvez por ele ser um estranho, e de uma raça diferente, eles se davam ao trabalho de lhe dedicar pequenas atenções matizadas
de um espírito de proselitismo que, embora o deixasse insensível, comovia-o e divertia-o. Seus corações estavam naquela nova pequena comunidade, e quando não mergulhados
em oração, entregavam-se sem poupar-se ao duro trabalho manual nos seus esforços para melhorá-la.
Um dia, no jogo de andebol, fizeram-lhe uma observação, meio rindo, meio sérios.
- Monsieur Desmonde... Uma vez que o senhor é um artista, por que não pinta um belo quadro para a nossa igreja?
Stephen, com a atenção presa, olhou para o proponente.
- E por que não? - respondeu com um ar sério.
A ideia, que não lhe ocorrera, pareceu-lhe um admirável meio de expressar a sua gratidão, de dar alguma retribuição tangível pela bondade que tinha recebido. Além
disso, a vadiagem forçada começara a pesar-lhe.
Nessa mesma tarde, conversou com seu amigo Dom Arthaud, que recebeu a sugestão calorosamente e prometeu falar com o Prior. A princípio, o Prior hesitou. A capela,
embora reconhecidamente inacabada por dentro,
era o produto de um prolongado e árduo esforço e cara ao seu coração. Seria sensato colocar aquela prezada e duramente ganha possessão nas mãos de um pintor desconhecido,
cujas poucas telas, embora estranhamente compulsivas, não davam indicação de competência ortodoxa? No fim, a fé, que era o sustentáculo da sua existência, moveu-o
a uma decisão. Mandou chamar Stephen.
- Diga-me, meu filho, o que pretende fazer.
- Gostaria de pintar um afresco acima do altar, na parede de fundo da abside.
- Tema religioso?
- Naturalmente. Pensei na Transfiguração. Iluminaria toda a capela.
- Você está certo de que poderia produzir algo que aprovássemos?
- Eu tentaria. Não tenho tintas nem pincéis bastante largos. O senhor teria que arranjá-los para mim. Teria que confiar em mim. Se o fizer, prometo dar o melhor
de mim.
Na manhã seguinte, dois dos padres partiram para Garonde, voltando à tarde com vários pacotes embrulhados em papel pardo. Nesse meio tempo, os noviços tinham armado
um andaime atrás do altar. Cedo, no dia seguinte, com aquele alvoroço que sempre sentia ao começar um novo trabalho, Stephen pegou o seu pincel.
Contudo, o seu estado de espírito era muito insólito. De corpo relaxado, não de todo livre da lassidão da convalescença, parecia banhado de um fofo langor. Suas
emoções ainda eram instáveis, a umidade lhe vinha prontamente aos olhos. O ambiente da capela, a entonação dos monges, a sensação de estar separado do mundo induziam
nele emoções inteiramente alheias à sua natureza. Embora não dispusesse de modelos, o trabalho tomou corpo com uma surpreendente facilidade, para quem estava acostumado
a um esforço sobrehumano nas primeiras horas de criação. Já tinha esboçado a figura central do Senhor, vestido de trajes brancos, radiante com uma nuvem de luz,
e começava a traçar as feições de Moisés e Elias.
Ao progredir com tamanha facilidade, experimentou esquisitos momentos de desconfiança, imaginando-se, em vez de projetar as suas próprias ideias, não estaria reproduzindo
inconscientemente uma compósita de primitivos pintores religiosos. Aplicadas em têmpera, as suas cores, usualmente tão duras, eram macias e lisas, suas formas pareciam
perturbadoramente convencionais. No entanto, contra essas dúvidas, crescia a aprovação da comunidade.
No começo, fora olhado com ansiedade, talvez até com desconfiança. Mas logo isso deu lugar a uma franca admiração. Às vezes, ao voltar-se no andaime para limpar
os pincéis, observava nos olhos de algum noviço que tinha vindo ostensivamente para rezar, mas na verdade para incorrer no pecado da distração, um olhar de perfeito
transe. Aquilo não era suficientemente tranquilizador? E, afinal de contas, ele não se comprometera a agradar?
O afresco, ocupando todo o espaço acima dos retábulos, ficou terminado em três semanas, e quando o andaime foi retirado, toda a comunidade reunida olhava-o com aclamação.
- Meu filho - disse o Prior a Stephen - agora sei que a sua vinda aqui foi providencial. Deu-nos um memento da sua estada que durará muito além da existência de
todos nós. Agora somos nós quem lhe devemos muito. - E continuou: - Amanhã celebraremos a Missa Solene para consagrar a sua obra. Embora não seja membro da nossa
fé, espero que nos agrade com a sua presença.
Na manhã seguinte, o altar estava enfeitado de flores, chamejante de velas. O Superior, em paramentos brancos, assistido por Dom Arthaud, cantou a Missa, enquanto
o coro entoava as respostas. Para Stephen, sentado na galeria, a pintura, brilhando à luz dos círios, tornada mística por uma nuvem de incenso, parecia uma esplêndida
realização. Nunca antes tivera tamanho sucesso.
Um repasto especial foi servido após a cerimónia, com um vinho da região de tal vigor que Stephen deu um passeio à aldeia para clarear a cabeça.
À tarde, quando voltava, Dom Arthaud o recebeu à porta com uma curiosa expressão.
- Há um visitante que deseja vê-lo. Um cavalheiro que diz ter vindo para levá-lo de volta a Paris.
Stephen entrou no seu quarto. Lá, reclinado na cama, usando chapéu e paletó, e soprando furiosamente no seu cachimbo, estava Peyrat. Pulou imediatamente quando Stephen
entrou e beijou-o em ambas as faces.
- Que é que andou fazendo? Não uma, mas uma dúzia de vezes procurei alcançá-lo. Agora, por casualidade, consegui o seu endereço na Rue Chancel. Por que está enterrado
aqui?
- Estive pintando - sorriu Stephen, ainda vibrando com a inesperada presença de Peyrat.
- Sorte ingrata - disse Peyrat, com fingida braveza. - Enquanto eu esperava, me arrastaram para a igreja. Que coisa terrível essa que você fez, cher ami. Oh, que
miserável cópia de del Sarto. Que terrível refundição de Luini. Embora eles gostem e vão se ajoelhar diante daquela pintura durante séculos, é indesculpavelmente
chocante, e para você, especialmente neste momento, uma desgraça.
- Por que neste momento? - perguntou Stephen, um tanto desconcertado.
- Por causa do anúncio feito no mês passado, e que me fez caçá-lo por toda a França.
- Que diabo está querendo dizer?
- Um anúncio - continuou Peyrat imperturbável, rolando as palavras
na língua como se gostasse do seu sabor - que lhe colocava uma medalha no peito, 1.500 francos no bolso e ainda nos permitirá, espero, fazer uma viagem juntos à
Espanha.
Subitamente atirou os braços em torno de Stephen e mais uma vez o abraçou.
- Não se importe com a sua doença, ou aquele medonho Moisés e Elias. A sua Circe ganhou o Prix de Luxembourg.


CONTINUA

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

DOVER, NA CHUVA, era uma triste porta dos fundos para fugir da Inglaterra. Quando o navio de carreira deixou o porto sujo, as ruas enlameadas, os edifícios amarelos
da encosta, os rochedos de um branco encardido, tudo mergulhou igualmente num dilúvio cinzento.
Na terceira classe, o espaço limitado estava abarrotado de passageiros, e Stephen, deixando aquele ar pesado de umidade e ruidosa camaradagem, voltou para o convés
molhado e atravancado de cabos. Ficou solitário na popa, abrigando-se, o melhor que podia, atrás da lona que cobria um guincho, com os olhos na costa amorfa, os
pensamentos tão equilibrados entre a amargura e a tristeza que fixavam nele uma atitude de completa imobilidade.
Dali a pouco foi sentar-se num braço do guincho, indiferente ao balanço do navio, ao vento e aos esguichos que assobiavam junto daquela ligeira proteção; tirou do
bolso o seu bloco de esboços. Era um movimento reflexo, um grito do coração. Contudo, uma vez que o seu lápis começou a andar pelas páginas agitadas na beira pela
ventania, perdeu-se, desenhando, com grande rapidez, fases do mar agitado, ondas estranhas e pressagas, a que ele insuflava uma qualidade de vida, vendo nos seus
contornos rotos, no laço intrincado das suas cristas, selvagens rostos humanos, cabeças atormentadas e torsos retorcidos, figuras de homens e de monstros, de cabelos
escorrendo e membros contraídos, tudo perdido e arrastado pela invencível força do mar.
Foi talvez uma espécie de loucura, uma vertigem, que o deixou amolecido e exausto. Tiritava quando o vapor diminuiu a sua marcha arfante para entrar cautelosamente
nos braços do quebra-mar de Calis, e, consciente do seu rosto gotejante e roupas ensopadas, guardou o bloco no bolso com um ar furtivo. Cabos eram lançados, pranchas
de desembarque empurradas, a douane era rapidamente passada. Mas algum ligeiro acidente na linha tinha atrasado o trem para Paris, que ainda não chegara.
Stephen tiritava novamente, batendo os pés sobre a plataforma a fim de restabelecer a circulação. Embora a chuva fosse menos impiedosa em terra, o vento, enfiando-se
pela curva dos trilhos, parecia mais violento, mais cortante. A maioria dos seus companheiros de viagem estava aproveitando o atraso para um almoço à la carte no
restaurante da estação. Mas, diante de um
futuro de completa incerteza, um exame mais detido do estado das suas finanças absteve-se desse luxo. Tinha, para ser preciso, 5 libras e 6 xelins, tudo que lhe
restava das 10 libras que trazia consigo quando chegara a Stillwater.
Por fim, o trem entrou resfolegando; após várias conferências e muita gesticulação, apitos agudos, jatos de vapor, e as notas melodiosas de uma trompa, a marcha
foi invertida e o vapor esguichou novamente. Para Stephen, encolhido no canto de um compartimento ventoso, foi uma viagem miserável. Tiritava frequentemente, sabia
que tinha apanhado um resfriado, e acusava-se de ter sido um tolo.
Na Gare du Nord hesitou, e então, aceitando o risco, e não sem uma certa recordação melancólica da sua prévia entrada na cidade de coração leve, tomou o metro para
a Rue Gastei. No seu presente estado de espírito ansiava, acima de tudo, pela simplicidade e firme amizade de Peyrat. Mas o novo inquilino do apartamento, incompreensivo
e desconfiado, apareceu na porta, respondendo que não havia cartas nem recados... acreditava que Monsieur Peyrat estaria no Puy de Dome, em Auvergne, até o fim do
ano, e além disso não sabia mais nada.
Os passos seguintes de Stephen levaram-no ao estúdio de Glyn. Estava fechado. Do mesmo modo, o pavilhão dos Lamberts, com as janelas fechadas, foi uma nova decepção.
Stephen voltou para o alojamento de Chester. Embora não tivesse acertado exatamente o montante da dívida, sabia que Harry, com seus repetidos pedidos de empréstimo,
devia-lhe pelo menos umas 30 libras, soma que agora adquiria uma importância muito maior do que antes. Mas também aquele quarto estava fechado, aliás, trancado com
um cadeado. Todavia, ao descer as escadas, foi reconhecido pelo concierge e obteve dele o atual endereço de Chester, enviado num cartão-postal recebido dois dias
antes: Hotel du Lion d'Or, Netiers, Normandia.
Animado, Stephen entrou no primeiro bureau de poste e passou um telegrama, explicando a sua situação e pedindo que Chester lhe mandasse por cheque telegráfico, se
não todo, ao menos parte do dinheiro que lhe devia, aos cuidados de Adolf Bisque na Rue Castel. Quando a moça de blusa de alpaca atrás do guichê terminou, a tinta,
uma soma complicada, um processo que a ocupou durante alguns minutos, Stephen pagou e dirigiu-se para o DuvaPs, onde pediu chocolate quente e um brioche.
Depois dessa ligeira refeição, como a chuva caísse mais forte e as sarjetas transbordassem, ele decidiu encontrar, o mais depressa possível, um alojamento para a
noite. Por causa da sua conveniência, e não na esperança de encontrar conforto, ficou num hotel barato das proximidades, a Pension de
l'Ouest, diante da qual passara tantas vezes a caminho do estúdio de Glyn.
Alcançado por escadas sem passadeira, seu quarto não era mais que um estreito, cubículo, mas era seco, e a cama, embora os lençóis estivessem encardidos,
tinha uma ampla provisão de cobertores estampados de azul - aqueles cobertores grosseiros usados pelos recrutas durante as manobras do Exército e vendidos depois
pelos contratantes do governo. Após alguns tremores iniciais, aqueceu-se e dormiu pesadamente. Na realidade, ao acordar na manhã seguinte sentia-se melhor, embora
não se surpreendesse com a tosse, agora piorando. Tomou café com um pãozinho, outra vez no DuvaTs, às 11 horas, e dirigiu-se para a loja de Monsieur Bisque.
Ali o esperava uma agradável surpresa. O pasteleiro recebeu-o cordialmente, com a sua cara de lua cheia enrugada de sorrisos, e, tendo repreendido Stephen por não
o ter visitado no dia anterior, apresentou com modos de prestidigitador o telegrama de resposta de Chester. Este, embora não trouxesse dinheiro, era de natureza
a animar o seu destinatário.
DELICIADO SEU TELEGRAMA. VENHA PARA CÁ. TEMPO E HOTEL EXCELENTES. BELO LUGAR PARA PINTAR. ABRAÇOS
HARRY
A perspectiva aberta por aquele amistoso convite, a ideia de estar com uma paleta e pincéis, diante de um cavalete, na Normandia, fazia brilhar os olhos de Stephen.
Bisque tinha um guia que, embora de páginas esfarrapadas e um tanto antigas, parecia provar que o rapide Granville, o trem mais ou menos direto, já tinha partido
- às 10 horas, para ser exato, daquela manhã. Stephen decidiu adiar a viagem até o dia seguinte. Passou à tarde na loja de Napoleon Campo, onde, além de receber
o cavalete e equipamento lá depositados, comprou novos tubos de tinta e algumas telas. Pagou a metade, 50 francos, e prometeu mandar o restante quando chegasse a
Netiers.
A manhã seguinte trouxe um límpido céu azul, e Stephen saiu com os seus pertences para a estação de Montparnasse. O rapide na Plataforma 2 não estava muito cheio
e ele conseguiu, sem dificuldade, um compartimento vazio na parte dianteira do vagão. Ao partirem, não podia afirmar que se sentia bem, pois experimentava uma sensação
de abafamento, com uma pontada no lado direito. Apesar disso, depois que o trem furou o seu caminho através dos túneis e cortes murados e escuros que davam saída
da cidade, perdeu a lassidão, olhando a paisagem em desfilada: vastos campos de restolho com poças de água da chuva, flanqueados por longas fileiras de olmos - sentinelas
intermináveis; uma agulha distante, delgada, graciosa; parelhas de grandes cavalos, com corvos assistentes, arrastando o arado; velhas construções rurais, de telhas
ocres, as empenas salpicadas de anúncios - Byrrh, Cinzano, Dubonnet.
Ao meio-dia, comeu uma maçã e uma barra de chocolate. Gradualmente, a configuração do terreno havia se alterado. Lutando contra a sonolência, ele
notou as azinhagas ondulantes e pequenos pomares cercados, um bando de gansos em lenta procissão para um lago lodoso, seguido de uma menina de pernas nuas com uma
vara de aveleira, um renque de salgueiros podados cercemente, e depois uma dama idosa, de coifa branca, tangendo uma vaca pela relva da beira da estrada, parando
de quando em vez para tricotar. Até a natureza da bebida tinha mudado. Attendez, exclamavam os anúncios, buvez le cidre moissoné!
Cerca de três horas, o trem alcançou o topo de um longo aclive e entrou na pequena estação de Netiers. Apressadamente, Stephen reuniu as suas coisas e pulou do alto
estribo. Uma rápida inspeção mostrou que Harry não estava lá para recebê-lo. Raciocinando que Chester podia não ter calculado bem a hora da sua chegada, Stephen
começou a andar para a cidade, que se podia avistar mais abaixo da colina, coisa de um quilómetro. A expectativa, ao se aproximar, aumentava a sua ansiedade - passou
um muro valado com fortificações, entrou nas ruas tortuosas, de paralelepípedos, tão estreitos que as casas de pedra cinzenta, muito inclinadas, pareciam estar acima
da sua cabeça. E então, no centro da praça do mercado, em frente à fachada de terracota desbotada do antigo hotel de ville, discerniu a tabuleta dourada do Lion
d'Or.
A estalagem era maciça, solidamente confortável, de alta classe. Stephen percebeu isso de relance, ao se dirigir para o balcão de recepção situado no vão de uma
escada de carvalho.
- Sim, monsieur!
- Meu nome é Desmonde. Tenha a bondade de dizer ao Sr. Chester que acabo de chegar.
Uma pausa.
- Está perguntando por Monsieur Chester?
- Sim. Ele me espera.
O empregado, um rapaz de ombros altos e cabeça rapada, estudou Stephen por um momento e depois disse:
- Tenha a bondade de aguardar, cavalheiro.
Desapareceu por trás da cortina que fechava o fundo do bureau; então, após um breve intervalo, voltou com um homem mais velho, uma figura sólida, de pescoço grosso,
vestido com a roupa listrada da profissão.
- O senhor está procurando Monsieur Chester Harry? O tom, embora cortês, tinha uma qualidade intimidante.
- Sim, por quê? Sou amigo dele. Ele não está hospedado aqui? Uma pausa gélida.
- Ele estava residindo aqui, monsieur. Até ontem à tarde, quando apresentamos a sua conta. Desde esse momento não vimos mais o seu famoso Monsieur Chester.
Stephen olhou para o proprietário, estupefato. Pois não viera por convite expresso de Harry, gastando o seu último soldo na passagem de trem? E de súbito lhe veio
uma ideia, contundente como um golpe. Chester, mais uma vez em apuros financeiros, convidara-o a vir somente na esperança de pedir-lhe mais uma quantia emprestada.
- Se monsieur é realmente Monsieur Desmonde - o sarcasmo era cortante - eis aqui uma carta que seu amigo lhe deixou.
MEU VELHO,
Eles podem não lhe entregar esta. Se entregarem, saberá que, com muito pesar, fui obrigado, encore, a cair fora. Pensei que podíamos resolver o caso juntos - baseados
no princípio de que duas cabeças pensam melhor do que uma - mas o departamento de contabilidade daqui estava um passo à minha frente. Provavelmente vou filar minha
viagem para o Sul, ficar um tempo em Nice, tentar a sorte nas mesas: De qualquer modo, eu com certeza o verei mais cedo ou mais tarde... Sinto muitíssimo e todas
essas coisas... mas quando o diabo aperta...
Seu,
HARRY
P.S. Nenhuma mulher decente na cidade. Mas não deixe de provar a sidra local. É excelente.
Stephen amarrotou o bilhete, escrito a lápis e às pressas, entre os dedos tensos. Sabia que Chester não merecia confiança, mas agora, por baixo do encanto, da alegria,
da amizade efusiva, sentia o âmago do seu total egoísmo.
O estalajadeiro e seu empregado olhavam para ele por detrás do balcão com manifesto desprezo.
- Naturalmente monsieur compreende que não temos acomodações para o senhor nesta casa.
- Compreendo perfeitamente - disse Stephen, girando nos calcanhares e saindo para a rua.


CAPÍTULO II

ALI, SEM DINHEIRO E SOZINHO, parado na praça do mercado de uma desconhecida cidade francesa, Stephen avaliava inquietamente a sua situação. Nunca antes estivera
sem dinheiro. Sua pensão, como o amanhecer, era algo
que tinha como certo, a consequência natural da sua posição na sociedade, do seu próprio direito de nascimento. Agora, com um amargo esgar nos lábios, percebia como
era poderosa a arma que seu pai tinha usado. No entanto, a sua renitência nata mantinha-lhe o prumo. Saiu imediatamente à procura de algum abrigo.
Isso, numa cidade sempre cheia de turistas, foi menos difícil do que ele temia, e antes do entardecer ele estava instalado num quartinho do alto, no fundo de um
pátio da Rue de la Cathédrale. Ao entregar a bagagem para a senhoria, uma velha digna, que não lhe pediu pagamento adiantado por ser de apenas 12 francos por semana
o aluguel, resolveu que, houvesse o que houvesse, estaria em condições de pagar-lhe antes que se passassem muitas horas. Tinha sabedoria suficiente para reconhecer
que, naquela localidade, não poderia conseguir uma subsistência imediata com sua arte. Sim, a sua educação, o seu curso universitário e grau de bacharel deviam certamente
capacitá-lo para alguma modesta posição na qual pudesse ganhar dinheiro suficiente para se manter em pé. E até mesmo o bastante para pagar a conta de Chester ainda
lhe doía a farpa final lançada pelo proprietário da estalagem - e voltar a Paris, encontrar-se lá com Peyrat, tendo uma boa quantia, antes do inverno. Se ao menos
estivesse menos indisposto! Aquela tosse, que desde a travessia do Canal lhe abalava o peito, era um grande incómodo. Mas um ferrenho desejo de experimentar-se levou-o
novamente ao centro da cidade.
Lá chegando, fez um exame perspectivo do logradouro principal, a Rue de la Republique. As lojas, embora pequenas, tinham, em sua maioria, um aspecto de sólida prosperidade
associado a uma ativa região agrícola. Pás, garfos, foices, baldes de zinco, grades de dentes vermelhos, tudo isso e mais estava exposto nas casas de ferragem; havia
guloseimas também - deliciosos petits fours e almôndegas doces, arranjados como buquês de noiva, enfeitavam a vitrine de uma pâtisserie, ao passo que na leiteria
da esquina se via um monte amarelo de manteiga da Normandia, ladeado por dois jarros de leite cheios até a borda.
Na frente de uma papelaria, viu uma caixa de vidro com alguns anúncios e avisos escritos à mão. Leu-os cuidadosamente e depois afastou-se. Ele não podia afinar pianos
nem remendar cadeiras de palhinha, não precisava da metade de uma vila à beira dos rochedos litorâneos de Granville. Mais abaixo da rua chegou à redação de um jornal
semanal, Courier de Netiers. Lá dentro, o número em circulação podia ser lido. Mas as suas magras colunas, devotadas principalmente às fases da lua, venda de gado
e cal, cobertura de vacas e éguas, horário das marés no Mont St. Michel, nada lhe ofereciam.
E agora? Era evidente que precisava de conselho. Obedecendo a um impulso, entrou na mairie e, escolhendo um funcionário de ar simpático, sondou-o discretamente sobre
as possibilidades de emprego na cidade. O jovem,
embora surpreso com semelhante indagação, mostrou-se inteligente e bem-intencionado. Pensou muito, e depois abanou lentamente a cabeça:
- É muito difícil... numa comunidade pequena como esta, as pessoas - sorriu, em desaprovação, ajeitou os punhos de papel - ... não são amáveis com estrangeiros.
Por mais uma hora, Stephen palmilhou a cidade sem sucesso. Quando caiu a noite, voltou, cansado e desanimado, ao seu alojamento. Revistando os bolsos, contou a soma
dos seus recursos: 1 franco e 50 soldos. À vista daquelas minguadas moedas na palma da sua mão, sentiu uma onda de orgulho. Não podia, não devia render-se.
No dia seguinte, na esperança de achar um trabalho manual, deu uma volta, a pé, pelas granjas das redondezas. Ao todo, devia ter andado uma distância de 20 quilómetros.
E em vão. Não havia escassez de mão-de-obra agrícola. Em vários lugares foi tomado por um vagabundo, e soltaram os cães contra ele. Um camponês caridoso, de garfo
em punho, fazendo a provisão anual de feno, pareceu hesitar, comovido talvez pela intensidade do pedido de Stephen, mas no fim prevaleceu a sólida cabeça normanda:
- Você não é muito forte, mon petit, pequeno... oh, muito pequeno. Mas, espere. - Chamou para a cozinha. - Jeanne, traga alguma coisa de comer para este rapaz.
Uma bonita mulher, de braços nus, vermelhos, saiu da porta dos fundos com o barulho dos seus tamancos. Dali a pouco, tendo examinado Stephen, trouxe-lhe um pedação
de torta de carne e uma caneca de sidra. Enquanto ele comia esse repasto, sentado num banquinho de ordenhar, na varanda, o granjeiro e a mulher, observando juntos,
discutiam em voz baixa, enquanto um meninozinho de guarda-pó preto espiava-o curiosamente por trás das saias da mSe. Stephen estava hirto de vergonha. Oh, meu Deus,
gemia ele consigo, sou exatamente como alguém de uma gravura de Cotman... cheguei realmente a isto! Mas a torta era boa, com um molho forte e gostoso, e a bebida
ácida lhe trouxe um novo ânimo para caminhar de volta a Netiers.
Escurecia quando chegou à Rue de la Cathédrale. E agora, embora mantido o ânimo muito bem durante todo o dia, um terrível abatimento o prostrava. A mortal estranheza
daquele quartinho apertado, cheirando a madeira velha, bolor e cânfora, estalando a cada passo que dava; a sensação de estar tão completamente só, enganado por Chester,
encurralado num futuro sem esperança; a suspeita, também, de que a sua senhoria começava a olhá-lo com dubiedade - tudo isso se acumulava para derrotá-lo. Sem querer,
atirou-se na cama e, voltando o rosto para a parede caiada, chorou como uma criança.
Esse acesso durou pouco, mas infelizmente tinha provocado a tosse. A noite inteira, ela o castigou severamente, desde que, na sua ansiedade para
não perturbar a casa, suprimia os espasmos e assim aumentava a sua frequência. Por fim, perto do amanhecer, com a cabeça embaixo das cobertas, caiu no sono.
Era tarde, quase 11 horas da manhã, quando acordou - primeiro para um breve momento de descansada alegria, depois para a sombria consciência da sua entalada. Levantou-se,
vestiu-se sem fazer a barba, e foi para a cidade. A agitação do espírito comunicava uma curiosa fraqueza às suas pernas. Estava andando sem rumo ou objetivo. Subitamente,
quando começava a atravessar pela segunda vez a praça do mercado, ouviu que alguém corria atrás dele. E então sentiu uma mão no ombro. Terrivelmente sobressaltado,
voltou-se. Era o funcionário da mairie.
- Desculpe-me, monsieur. - O moço interrompeu-se para respirar. Estive olhando o senhor durante toda a minha hora de almoço. Olhe, desde que foi embora andei fazendo
algumas perguntas para o senhor. E Madame Cruchot, que juntamente com o seu marido tem a sua épicerie ali - e apontou para o outro lado da rua - tem duas filhas
pequenas que ela quer que aprendam inglês. É possível que ela se agrade do senhor. Nesse caso, vale a pena tentar.
- Muito obrigado - gaguejou Stephen, emocionado. - Muitíssimo obrigado.
O jovem funcionário sorriu.
- Boa sorte. - Pronunciou as palavras entre os dentes, cuidadosamente, em inglês, e depois, como se satisfeito com sua proeza, apertou-lhe a mão, tirou o chapéu
e ficou observando-o atravessar apressadamente a rua.
A mercearia Cruchot, ocupando uma posição de destaque na praça, com duplas vitrines de vidro plano e uma brilhante tabuleta que dizia ALIMENTATION DE RENNES, dava
toda a indicação de ser um próspero estabelecimento, negociando com um grande e tentador sortimento de alimentos. Um constante fluxo de fregueses entrava e saía
pela porta, estreitada por presuntos pendurados, redes de limões, um cacho de banana e várias cestas de verduras escolhidas. Dentro, as prateleiras estavam cheias
dos generosos produtos da terra e do mar, com salsichas e fígado de ganso, sardinhas e enchovas, toucinho, azeite de oliva, queijo, frutas em conserva, conhaques
antigos também, vinhos e licores, café, especiarias, dobradinhas, pés de porco, e vidros e garrafas dispostos em pirâmides brilhantes no chão coberto de serragem.
Entrando, Stephen estacou menos por seu próprio nervosismo do que pelo barulho e movimento, gritos de pedidos, a movimentação de dois auxiliares de paletó branco:
uma moça normanda de ombros pesados e um homem coxo de olhar aborrecido.
Todavia, em pouco sentiu-se escolhido por uma voz de timbre penetrante.
- Que deseja, m'sieur?
Presidindo de uma mesinha, controlando o lufa-lufa, parecendo a dona pela amplidão do seu busto e ousadia do olho, uma mulher de cabelos amarelos, de uns 38 anos,
com a sua figura curva e bem coberta, pele lisa, orelhas rosadas suportando pesados brincos de ouro. Usava um vestido malva da última moda provinciana - com uma
aplicação de renda no decote - vários anéis e pulseiras, e um broche de camafeu.
- Perdoe-me - falou Stephen em voz baixa, aproximando-se. - Meu nome é Desmonde. Soube que a senhora talvez precise de um tutor inglês para as suas crianças.
A verificação de que ele não era um freguês afastara o sorriso maquinal dos lábios de Madame Cruchot; seus olhos apertaram-se na fria apreciação de alguém que, no
mercado, é capaz de avaliar, por um simples cabelo o peso e a qualidade de um porco cevado. Mas a palavra tutor, que ele por sorte tinha usado, lisonjeou-lhe a vaidade,
que predominava entre as muitas e fortes características que possuía, e que aliás era o verdadeiro motivo por trás da ideia de que as suas filhas deviam aprender
o idioma inglês. Também aquele jovem que tinha diante de si parecia simpático, "refinado" e tímido o bastante para lhe trazer algum problema.
- M'sieur pode me dizer quem é?
Muito francamente, Stephen lhe disse.
- Então m'sieur é estudante da universidade de Oxford. - Um lampejo iluminou o olho azul de porcelana de Madame Cruchot, mas no interesse da barganha foi rapidamente
suprimido. Duvidosa, encolheu os ombros. - Naturalmente, temos apenas a palavra de m'sieur quanto a isso.
- Asseguro-lhe que...
- Oh, la, la... estou disposta a confiar no senhor. Mas, naturalmente, considerando a idade das minhas filhinhas, exijo o mais alto padrão de conduta e moralidade.
- Naturalmente, madame...
- Então, quando... - interrompeu-se, com uma ordem aguda, suas palavras ressoando como uma pequena salva de artilharia: - Não, não, Marie, esses ovos não, estúpida,
já estão encomendados por Madame Oulard... e, Joseph, até quando preciso dizer que tire açúcar do saco aberto? Qual o salário que pede, m'sieur?
Stephen tratou de calcular rapidamente o menor estipêndio capaz de sustentá-lo.
- Digamos, com lições diárias, 30 francos por semana?
Com um gesto de consternação, Madame Cruchot ergueu as suas mãos gordas e cheias de anéis. Depois sorriu gentilmente, mostrando-lhe um dente de ouro que era como
uma bala.
- M'sieur está brincando.
- Não, realmente... - Empurrado e acotovelado pelo redemoinho de fregueses, Stephen ficou rubro. - Estou falando sério.
- Também somos gente honesta, Monsieur Crochet e eu, m'sieur, mas longe, oh, muito longe, de ser rica. - Feriu uma nota patética. - O máximo que meu marido me autoriza
a oferecer são 20 francos.
- Mas, madame... eu tenho que viver.
Madame Cruchot sacudiu o seu chinó amarelo tristemente.
- Nós também, m'sieur.
Stephen mordeu o lábio, com raiva e orgulho no peito. O aluguel semanal do seu quarto era de 12 francos. Como diabo poderia manter-se com os oito francos que lhe
restariam depois de pagar a sua senhoria? Não, por grande que fosse a sua necessidade, não poderia submeter-se a semelhante imposição. Deu meia-volta para retirar-se.
Mas Madame Cruchot, que não queria perdê-lo e que, no intervalo, tinha-o observado de soslaio da cabeça aos pés, deteve-o com um gesto delicado.
- Talvez... - Inclinou-se para diante, falando com um ar solícito. Talvez se servíssemos aqui o almoço para m'sieur, isso ajudasse um pouco a situação. Uma refeição
boa e substancial.
Apanhado desse modo, Stephen hesitou. Profundamente humilhado, não podia erguer os olhos.
- Muito bem... aceito - murmurou ele.
- Ótimo. Nosso negócio está fechado. Começará amanhã. Não esqueça que exigirei instrução da mais alta classe. E, sem dúvida, no futuro, m'sieur não esquecerá de
barbear-se.
Stephen inclinou a cabeça. Não podia falar. Contudo, a despeito da sua humilhação, por ignominiosa que fosse a sua situação, só podia experimentar uma sensação de
alívio. Com 20 francos e um almoço diário, estava salvo, ao menos por enquanto.
Ao sair da mercearia, ouviu a voz de Madame Cruchot proclamando em altos brados para as regiões do mundo:
- Marie-Louise, Victorine... Sua bondosa mamã acaba de contratar um tutor inglês.


CAPÍTULO III

AGORA, NA ABAFANTE MONOTONIA de uma cidadezinha provinciana, começava para Stephen uma estranha existência. Todas as manhãs, era acordado pelo sino da catedral,
que badalava três vezes, pesadamente, na Consagração das sete horas, afugentando as pombas, quebrando o silêncio eclesiástico da praça vazia. Uma vez vestido, descia
descuidadamente a escada - pelo menos podia sair de casa sem medo de encontrar a sua senhoria. Atravessando a praça para o Café des Ouvriers, que ficava a curta
distância do jardim de muros altos do convento, encontrava sempre as mesmas mulheres pias, vestidas de preto, e algumas freiras, aos pares, emergindo - flutuantes,
parecia, sobre as largas abas das suas toucas - da igreja. O café, assinalado por um ramo murcho na ombreira da porta, não era um lugar especialmente reputado, não
mais do que a cozinha de pedra de uma casa baixa mobiliada com uma mesa tosca e alguns bancos de madeira. Ali, por cinco soldos, tomava o desjejum habitual da casa:
uma xícara de café preto cheio de borra, lavado por um golinho de vinho branco num copo grosso com um dedo, uma espantosa combinação em seu poder restaurativo. Às
vezes havia um jornal da noite passada, Intelligence de Rennes, que o mantinha ocupado por meia hora. Podia conversar um pouco com Mie, a fille de comptoir de olhos
negros, quieta, que atendia o bar primitivo com discrição e que aparentemente tinha outras funções e obrigações, ou com outro cliente, talvez um mascate, um carregador
da estação, ou um entregador de carvão.
Pontualmente às 11 horas, apresentava-se na casa dos Cruchots, situada atrás da mercearia, e se dirigia a uma porta na parede lateral. Ali, na latada contígua a
uma pequena área fechada de relva, ou, nos dias de chuva, na sala abundantemente enfeitada a que Madame se referia como o "salon", Stephen dava sua atenção às menininhas
Cruchot; Victorine, de onze anos, e Marie-Louise, que tinha apenas nove.
Não eram, de um modo geral, crianças desagradáveis, um tanto estragadas por mimos, mas com toda atração da sua tenra idade. Às vezes, eram mesmo muito meigas à sua
maneira, especialmente a mais nova, uma coisinha bonita de cachos castanhos e faces de maçã". Stephen não as achou difícil de levar e logo ficou gostando delas.
Contudo, já os atributos herdados começavam
a se manifestar - sabiam o preço de tudo, calculavam como matemática, podiam recitar fluentemente aforismos morais sobre a virtude da economia. Cada uma tinha o
seu cofrezinho de metal, com a forma da Torre Eiffel, para depositarem as suas economias, e traziam a chave presa, com a medalha de um santo, a uma fita azul no
pescoço. Às vezes, repetiam, muito inocentemente, observações que tinham ouvido.
- Monsieur Stephen - ele insistia em que o chamassem pelo seu nome de batismo - mamã disse a papá que o senhor deve ser muito pobre.
- Bem, Victorine, devo confessar que ela estava certa.
- Mas papá disse que pelo menos o senhor não era um beberrão.
- bom... papá é meu amigo.
- Ah, sim, Monsieur Stephen. Porque ele também disse que, embora o senhor com certeza tenha feito alguma coisa errada na sua terra, sendo obrigado a fugir, não deve
ter sido um crime sério.
Stephen riu-se, um tanto secamente.
- Vamos... já é tempo de começarem a leitura.
Tão rápido tinha sido o progresso das suas ágeis inteligências, que ele acabara por trazer Alice no País das Maravilhas, e o interesse delas pela história tornava
possíveis até as palavras mais difíceis.
Embora, à maneira de um proprietário, ocasionalmente enfiasse a cabeça na porta, Monsieur Gruchot não vinha muito às lições. Era um homem de estatura média, com
modos inquietos, olhos cor de café, vivos, com os cantos injetados de amarelo, e um bigode preto, cheio, de pontas reviradas, que usava polainas e, dentro ou fora
de casa, exceto no sagrado recinto do "salon", um brilhante chapéu de palha reto. O seu lugar, naturalmente, era na loja, mas passava dois dias por semana fazendo
compras no mercado da vizinha cidade de Rennes, de onde, aliás, ele e sua mulher tinham vindo originalmente. Ligado a Madame Cruchot por uma ostensiva felicidade,
pelos dois lindos penhores da sua afeição, e acima de tudo pelo seu apaixonado desejo de ganho, Albert Cruchot tinha, contudo, em certos momentos, um certo ar, como
se as proporções físicas da sua esposa, seu riso agudo e voz penetrante fossem uma opressão maior do que um homem do seu porte pudesse razoavelmente aguentar. Ele
não encolhia exatamente, porém seus pés empolainados se moviam inquietos e a sua pupila café-au-lait bruxuleava num brilho de impaciência.
Na verdade, por trás do seu sorriso, dos seus modos amáveis e do brilho especioso do seu dente de ouro, Madame Cruchot era uma tirana. Todos os dias ela vinha verificar
"por si mesma" o andamento da lição, sentando-se rígida, numa postura de supervisão, os olhos sem compreensão mas alerta, indo de Stephen para as crianças, perturbando-as,
fazendo que cometessem erros.
- O senhor compreende, m'sieur... desejo que elas não só leiam mas falem coloquialmente... e recitem poesias... como fazemos em sociedade.
Atendendo às suas repetidas exigências, Stephen ensinou as crianças as duas primeiras estrofes de A uma Cotovia. Então, no dia indicado para mostrar o progresso
das suas pupilas, madame apareceu com três amigas íntimas, esposas de lojistas preeminentes, membros da haute bourgeoisie de Netiers, que se aboletaram expectantes
nas cadeiras douradas do salão.
Marie-Louise, escolhida para a primeira prova, foi colocada sozinha na falsa ilha de Aubusson.
- Salve, ó tu, espírito jovial... - começou ela; depois parou, olhou em torno e suprimiu um risinho.
- Comece de novo, Marie-Louise - disse Stephen bondosamente.
- Sabe, ó tu, espírito jovial... - Novamente a criança se interrompeu, piscou, torceu a cinta e olhou timidamente para a mãe.
- Continue - disse Madame Cruchot numa voz estranha. Marie-Louise lançou um olhar súplice para o seu professor. Um leve
suor começava surgir na testa de Stephen. Num tom de lisonja, que o desagradava, disse:
- Vamos, minha querida. Salve, ó tu, espírito jovial...
Um breve silêncio, durante o qual Madame Cruchot pareceu ter virado pedra: depois, sem aviso, levantou-se e deu um tapa na cara da menina. Imediatamente Marie-Louise
debulhou-se em pranto. No momento de consternação que se seguiu, olhares indignados foram lançados para Stephen, a criança soluçante, agora agarrada ao seio materno,
foi confortada com um bombom, e ouviu-se a voz de Mane gritando lá da loja:
- Venha depressa, madame... o fígado está chegando do matadouro. Na confusão que acompanhou a retirada de Madame Cruchot, Stephen ficou desamparado, prevendo com
sardónico fatalismo a possibilidade da sua demissão. Contudo, quando a mãe reapareceu, Marie-Louise correu através da sala, pegou a mão dele e despejou instantaneamente
a poesia, que recitou por inteiro, de um só fôlego. Victorine, para não ficar atrás, seguiu-a, por sua conta, com um perfeito desempenho.
Imediatamente o aspecto da reunião mudou, houve gritinhos de aclamação, sorrisos e acenos de cabeça foram dispensados a Stephen. Madame Cruchot resplandecia de perdoável
triunfo. Na verdade, depois de acompanhar as senhoras até a porta, voltou para Stephen com uma disposição de curiosa indulgência. Em vez da costumeira fina fatia
de presunto, deu-lhe no almoço um prato quente de carne ensopada, guarnecida de rabanetes e cebolas de Bordéus. Sentando-se diante da mesa da copa, observou:
- Afinal de contas, as coisas correram bem.
- Sim - disse Stephen sem levantar os olhos. - No começo, foi apenas o medo do palco.
Por um momento, ela continuou a vê-lo comer.
- Minhas amigas ficaram muito satisfeitas com o senhor - disse ela de repente. - Madame Oulard... a esposa do nosso primeiro pharmacien, uma senhora de certa posição
na cidade, embora naturalmente não possa pagar um tutor para as suas crianças, considera-o très sympathique... um perfeito cavalheiro.
- Sou muito grato por sua boa opinião.
- Acha que ela é uma mulher bonita?
- Deus do céu, não - disse Stephen com um ar ausente. - Eu mal a notei.
Madame Cruchot afagou as suas pastas de cabelo amarelo e, esticando o corpete, bateu nas suas firmes ancas com um gesto significativo.
- Deixe-me servir-lhe mais ensopado.
Nos dias que se seguiram, a qualidade e aliás a quantidade da refeição do meio-dia do tutor inglês melhoraram misteriosamente, e de várias outras maneiras a dona
da casa continuou a sua atitude diferente, e até se poderia dizer, o seu favor. Era uma mudança afortunada para Stephen, em quem a falta de alimentação adequada
e aquela tosse que não o deixava tinham causado considerável dano físico. Começou a sentir-se mais forte, novas correntes de vida movendo-se lentamente nas suas
veias, e um dia, de repente, sentiu, pela primeira vez desde que chegara a Netiers, um vivo desejo de pintar.
O impulso era irresistível, e ao deixar a mercearia apanhou um bloco de papel da Índia e alguns bastões de giz colorido. Quando a lição estava quase terminada, pôs
as duas crianças a ler no mesmo livro, juntas, na latada, e então, com o anseio de uma paixão contida, com linhas ligeiras, firmes e felizes, fez um pastel das suas
cabeças. A coisa foi feita rapidamente, tão veemente era a inspiração - em questão de menos de meia hora. Nunca tinha executado algo tão vívido, tão fresco na sua
composição impressionista. Até ele, que sempre subestimava o seu trabalho, estava comovido, sobressaltado, e excitado por aquela coisa adorável que tinha ganho vida,
misteriosamente, vinda do nada, ao seu toque.
Estava com a cabeça inclinada apontando para o fundo com um creiom amarelo, quando ouviu um som atrás dele: Madame Cruchot, por cima do seu ombro, estava olhando
para o pastel.
- Foi o senhor quem fez isso, m'sieur?
A sua expressão de pasmada incredulidade provocou-lhe um sorriso.
- Gosta?
Talvez ela não compreendesse plenamente a pintura. Mas via nela as suas duas crianças, belamente sugeridas em poucas linhas, umas poucas sombras de cor pura e brilhante.
Não entendia nada de arte. Contudo, o seu astuto instinto comercial tornou-a de imediato - ainda que subconscientemente, advertida de que ali estava algo raro e
delicado, algo da mais alta qualidade. Cobiçou-a
imediatamente. Mas além disso experimentou um singular afluxo dos seus sentimentos por aquele jovem inglês desconhecido, aquela emoção que começara quando, no dia
da recitação, o nevoeiro da sua indiferença se dissipara e ela o vira, através da tagarelice das suas amigas, como realmente era, um homem jovem muito atraente,
com a figura franzina e rosto sensível, os olhos negros e a delicada palidez. As menininhas ainda estavam soletrando no seu livro. Ela passou por trás do sofá e
sentou-se ao lado de Stephen.
- Não percebi - disse ela num cochicho confidencial - que m'sieur era um verdadeiro artista.
- Mas eu lhe disse quando a senhora me empregou.
A referência àquela primeira entrevista, quando ela o tratara tão rispidamente, provocou-lhe um rubor profundo até o seu queixo redondo e sólido e a coluna muscular
do pescoço.
- Ah - disse ela - não fiz muito caso do que me disse naquela ocasião. Eu não tinha o prazer de conhecer m'sieur como conheço agora... após estas semanas de agradável
intimidade, quando tem ensinado às minhas filhas, participado comigo da minha casa, e sempre com a polidez e reserva que só vem da verdadeira distinção. M'sieur
Stephen... - era a primeira vez que ela se dirigia a ele pelo nome, e o fazia com um frémito que endurecia a pele dos seus sólidos seios... - mesmo que não tivesse
me dito nada, eu saberia, por esta pintura, que o senhor tem grande talento.
Suas palavras de mau gosto eram embaraçosas, mas ele disse, gentilmente:
- Talvez queira ficar com ela...
A sugestão, com as suas implicações de compra, levou-a a recuar ligeiramente, mas só por um instante. Respondeu, séria:
- Quero sim, M'sieur Stephen, e vou falar a esse respeito com meu marido esta noite. Naturalmente, é possível que ele diga que o trabalho foi feito na hora da aula,
pelo que o senhor já estava pago, e nesse caso...
- Minha cara Madame Cruchot - interpôs apressadamente Stephen - a senhora absolutamente não me entendeu. Ofereço-lhe a pintura de presente.
Os olhos dela brilharam, não de cupidez agora, mas de uma emoção mais suave e confusa. Suprimiu um suspiro, olhou para ele com uma expressão terna, dizendo:
- Obrigada, M'sieur Stephen. Garanto-lhe que não se arrependerá.
A singularidade de estar sentada tão junto dele punha-lhe a cabeça a girar, uma sensação bem diferente da que lhe dava a proximidade de Cruchot. Mas as menininhas
começavam a exigir atenção, e ela ficou com medo de comprometer-se mais. Com um olhar de soslaio, rápido mas intenso, no qual tentava, em vão, mostrar o seu coração,
que batia rapidamente, levantou-se, disse-lhe au revoir, e voltou para a mercearia.


CAPÍTULO IV

APÓS SEMANAS DE aNIMADA APATIA, Stephen achou que podia pintar novamente. Era como despertar para uma nova vida na qual ele se descobria possuído de uma capacidade
maior, de uma visão mais penetrante do que antes. A cidadezinha, com seus insípidos habitantes, até aqui um deserto de esterilidade, transfigurou-se de repente numa
palpitante fonte de inspiração. Pintou o hotel de ville; a praça de armas do quartel; os telhados da cidade, vistos da sua janela, estranhamente pitorescos; uma
bela composição em cinza e negro das irmãs do convento voltando da missa na chuva, embaixo dos seus guarda-chuvas. As telas que tinha trazido de Napoleon Campo foram
uma a uma transformadas, pregadas no canto do quarto do sótão.
Havia cartas também, de Peyrat e Glyn, para alegrá-lo. Jerome propunha-se continuar em Puy de Dome no inverno e Glyn voltaria a Londres para uma breve estada no
outono. Ambos instavam para que fosse juntar-se a eles. Mas era claro que ele não iria. Estava pintando aqui, e feliz. Nesse estado de ressurreição, a lição diária
para as meninas Cruchot perdeu seu aspecto normal de necessidade. Na verdade, muitas vezes era penoso para Stephen pôr de lado os seus pincéis e correr à mercearia,
justamente quando a luz era a melhor. E embora, na linguagem do estabelecimento, ele continuasse tendo um valor, a sua mente não estava inteiramente no ensino, nem
após a aula era motivado por outro pensamento que não o ir-se dali.
Por causa da sua distração, continuou mais ou menos esquecido das mudanças, sempre crescentes, na atitude de Madame Cruchot para com ele. O vasto melhoramento na
cozinha era, sem dúvida, evidente, mas ele creditava-o à gratidão da proprietária pelo presente do quadro. A esta também atribuía os outros sinais de atenção que
lhe eram dispensados. Tornara-se agora costume de madame presidir o seu almoço e impor-lhe a sua hospitalidade. Na verdade, a sua dedicação foi além.
- M'sieur Stephen - ponderou ela um dia, com uma nota de solicitude. - estou preocupada com o seu conforto. O senhor pode não ser bem-visto em casa de Madame Clouet.
- Mas sou - contrariou ele. - Ela é uma alma muito decente.
- Mas é um quarto tão pobre.
- Conhece-o? - surpreendeu-se ele.
- Bem - disse ela enrubescendo. - Passei pela casa muitas vezes... no meu caminho para a igreja, naturalmente. Se ao menos alguém de gosto acrescentasse umas poucas
coisas... e as arranjasse, ficaria muito mais agradável para o senhor.
- Não, realmente - sorriu ele. - Agrada-me como está... despido e arejado.
- Mas não é bom para o senhor - insistiu ela. - Não posso deixar de notar que a sua tosse ainda o incomoda.
- Oh, não é nada... foi só esta manhã.
- Meu caro M'sieur Stephen. - Olhou-o com terna censura. - Não me contrarie em tudo. Se não posso melhorar o seu quarto, deixe-me ao menos restaurar a sua saúde.
No dia seguinte, para seu embaraço, um frasco de sirop pectoral do estabelecimento de Monsieur Oulard estava na mesa ao lado do seu prato, e madame, medindo uma
colherada, administrou-lhe a dose com ambas as mãos. Victorine e Marie-Louise divertiram-se vendo o seu professor ter que engolir remédio à força. E, no fim, Stephen
também riu.
Quando as crianças correram para brincar no jardim, Madame Cruchot, após um olhar demorado, soltou um suspiro:
- Naturalmente... uma coisa posso ver muito bem. O senhor encontrou na cidade alguma moça insignificante que o atrai.
- O quê! Em Netiers?
- Por que não? Não vai todos os dias ao Café des Ouvriers, e aquela Julie Grosette... eles por lá não têm grandes escrúpulos, posso lhe garantir...
Na verdade, ela conhecia todos os falatórios, mexericos e pequenas intrigas da cidadezinha. Mas o olhar atónito de Stephen era tamanho, que ela parou de falar. Forçou
um risinho.
- Não me olhe assim, meu amigo. Só estou pensando no seu bem-estar. E afinal de contas, embora eu seja uma boa mulher, também sou uma mulher do mundo. Então não
tem ninguém?
- Não - disse ele brevemente.
O olhar de expectativa, de ciúme, desapareceu dos seus olhos e foi substituído por um ar de coqueteria.
- Diga-me se gosta do meu vestido.
Colocou-se ligeiramente de quadril, exibindo o seu novo vestido, de um verde um tanto agressivo, com trancelins amarelos embaixo, que davam um efeito de juventude.
E o cabelo, recém-lavado, fora ondulado com um brilho mais metálico. Madame tinha apego aos vestidos, era uma cliente regular das galleries de Rennes, e ultimamente
exibia para Stephen as suas mais elaboradas toilettes, que, ai!, ele nunca parecia notar. Era essa indiferença que aumentava
os seus anseios, essa completa inconsciência de que ela era uma mulher, e talvez ele fosse assim com qualquer mulher, de uma inocência comparável à do jovem cura
que uma vez servira na paróquia e que ela admirava à distância, sonhando com ele todas as noites ao lado do merceeiro, que, com a carne aplacada pelo seu insensível
traseiro, roncava musicalmente. Mas isso não tinha sido nada, o mero sopro das asas de uma borboleta ao lado deste desejo que agora lhe corria nas veias, fazendo-a
arder de vontade de apertar Stephen nos braços e cobri-lo de beijos.
Ela estava cega para a comédia da sua situação: uma mulher de quase
40 anos, metida de corpo e alma nas atribulações de um negócio banal, de punhos fechados, uma tirana que passava a vida, de voz estrídula e metálica, pondo areia
no açúcar, água na sidra, extorquindo o último soldo das palmas renitentes de um camponês - ela, entre todas as mulheres, sendo amaciada, liquefeita por aquela devastadora
paixão por um rapazinho que talvez pudesse ter sido seu filho. Perdeu o interesse nas suas crianças, nas suas amigas, na busca da riqueza. O marido tornou-se-lhe
odioso. Os seus maneirismos burgueses, a maneira de comer, de soltar ventosidades baixinho após a sua cerveja, despertavam nela uma tempestade de ódio.
- Je te défends de passer le gaz en bas! - gritava ela, encolerizada.
E com tudo isso o seu próprio refinamento aumentava. Banhava-se com mais frequência, usava um perfume mais forte, chupava pastilhas para perfumar o hálito, mudava
a rroupa branca mais seguidamente. Se não pudesse tê-lo, sentia que deixaria de viver.
Subitamente veio uma resposta às suas preces mudas, uma ideia de brilho surpreendente. Como é que ela não tinha pensado nisso antes? Quando Stephen entrou nesse
dia, ela o interceptou no corredor.
- Meu amigo - disse ela alegremente. - Tenho uma boa notícia para o senhor, em suma, uma incumbência. Monsieur Cruchot insiste em que o senhor deve pintar-me.
Desconcertado, Stephen olhou para ela em silêncio.
- Sim - acenou ela. - Cruchot está cheio de entusiasmo. Não falou em outra coisa ontem à noite... De corpo inteiro... a óleo.
- Mas, madame. - Stephen franziu o cenho hesitante, procurando uma desculpa. - Eu... eu não pinto retratos... estou trabalhando em outro tema...
Ela sorriu para ele tranquilizadoramente.
- Não se preocupe, mon petit, farei com que seja pago. Na terça-feira, então, começamos. Está combinado.
Antes que ele pudesse terminar, ela bateu-lhe no braço, com um olhar arqueado, e saiu depressa da sala.
Terça-feira era meio feriado para os comerciantes. Como sempre, a loja
fechava ao meio-dia e tudo ficava tranquilo. Contudo, no momento em que entrou, Stephen sentiu, nos postigos fechados, uma calma sobrenatural. Madame Cruchot recebeu-o
na porta.
- Nada de lição hoje - anunciou ela efusivamente. - As meninas foram para o campo com Marie.
Ao admiti-lo na loja, explicou que a empregada fazia uma visita por mês aos seus pais em St. Vallé, e que, às vezes, como grande favor, ela lhe permitia que levasse
as crianças.
- E naturalmente - acrescentou sem cerimónia - meu marido está em Rennes, no mercado. Não seremos perturbados.
Novamente o silêncio incomum perturbou-o; nenhum rumor na adega, onde Joseph, o auxiliar, passava duas horas cuidando do estoque. Na casa, a não ser eles, não havia
ninguém. Mas foi a mesa, na sala de almoço, posta para dois, com toalha engomada e os melhores talheres, adornada com um vaso de rosas vermelhas, que o pôs em guarda.
- Se não se incomoda, almoçaremos juntos. Será muito mais conveniente.
Falando voluvelmente, naquela mesma maneira descuidada, trouxe da copa um poulet de Bresse assado, com cogumelos e salada, um paté de Estrasburgo, pêssegos em calda,
e uma garrafa de champanhe. Somente depois de abarrotar o seu prato, permitiu-se olhar para ele.
- Estamos bem aconchegados aqui. Não é agradável almoçarmos tête-à-tête? Sabe, deve comer antes de trabalhar. - Lançou-lhe um olhar pudico. Deixe-me servir-rlhe
o champanhe. É o melhor que vendemos. Cinco francos a garrafa.
Ele sentia-se confuso, desconcertado e inquieto. Mas no seu estado empobrecido, tinha para com a comida uma espécie de oportunismo. Comeu o que foi posto diante
dele, certo de que não estava em posição de recusar, mas foi se tornando cada vez mais consciente daqueles olhares lânguidos que pousavam nele. Do seu busto também,
que subia com esforço cada vez que ela respirava com esforço, fazendo os seios pularem e o queixo afundar no pescoço, parecendo aproximar-se mais dele a cada respiração.
Ao contrário do seu costume habitual, ela não estava comendo, servindo-se, com um ar de refinamento, apenas de uma asa de frango, e agora já partindo para o segundo
copo de vinho. Seus olhinhos redondos brilhavam como bolinhas de gude. Sentia um forte impulso para estender o braço por sobre a mesa e apertar-lhe a mão. Ele nunca
adivinharia que delicados favores ela estava preparada para lhe oferecer? Quanto menos ele entendia, mais a seduzia.
- Meu amigo - exclamou ela - não pode fazer uma ideia do que tem sido a minha vida nestes últimos 15 anos aqui em Netiers.
- Infelizmente não a conheço há tanto tempo.
- Não - refletiu ela, e numa voz sumida: - Contudo, devo ao senhor o fato de ter descoberto o vazio da minha existência.
- Isso seria um mísero retorno, madame... se fosse verdade.
- É verdade. - Como ele nada dissesse, ela moveu a cabeça enfaticamente. - Sim, ao senhor, meu amigo, que me abriu os olhos para novos horizontes, com os quais antes
eu nem sonhava. Monsieur Cruchot, embora sem excessiva ternura ou delicadeza, é um homem digno. E naturalmente eu sou uma mulher virtuosa. Mas há momentos em que
a solidão me invade o coração, quando tenho necessidade de um confidente. Ah, meu amigo - suspirou ela
- quando o coração pede, quem é que pode negar? É errado procurar a realização... uma vez que seja discreta?
Sentado em silêncio, constrangido, uma rude explicação para aquele comportamento atravessou-lhe de fato o espíriro. Mas despediu-a como absurda. Contudo, sentia-se
obrigado a começar o trabalho sem demora e executá-lo o mais depressa possível. Empurrou o prato.
- E agora, madame, se lhe for agradável, podemos começar. Pensei que seria melhor fazer um esboço preliminar. A senhora posará para mim? No salão?
Ela olhou para ele e tomou um fôlego convulsivo.
- Não - replicou numa voz indistinta. - Lá em cima a luz é melhor. Levantou-se da mesa e dirigiu-se para a porta. - Eu me apronto logo. Termine o seu vinho. E depois
suba.
Ele nunca tinha estado antes no andar de cima. Após esperar cinco minutos, encaminhou-se para a escada. Estava frouxamente iluminada, e os degraus, cobertos de tapete
fino, estalavam aos seus pés. O cheiro dos queijos, postos a amadurecer no armário do corredor encheu o ar. Ao chegar à porta, encontrou-a aberta. Imaginou que dava
acesso à sala de estar, mas antes que pudesse bater, ela o chamou:
- Entre, mon ami.
Ele entrou.
Madame Cruchot estava junto à cama dupla, pedindo a sua aprovação. Tinha tirado o vestido e usava um penhoar, que, numa pose vulgar, com uma das mãos no quadril,
ela mantinha meio aberto, revelando os calções listrados, com um babado de renda pesada, que caía abaixo dos seus joelhos grossos, e uma camisola cor-de-rosa umedecida
por uma mancha de perfume que acabara de pôr, enrugada pelo espartilho.
Um suor frio inundou Stephen. Suas pupilas ardiam com cada detalhe do ostentoso mas desmazelado dormitório, o tapete ornado e as cortinas com colgadura, a cómoda
manchada, o utensílio de louça embaixo da cama, e até a camisa de dormir de Cruchot enfiada às pressas embaixo de um travesseiro. Empalideceu. Interpretando mal
os seus olhos dilatados, ela agitou a cabeça,
fingindo tremer, e então, com uma terrível coqueteria, veio para ele. Era demais. Ele recuou com uma expressão de repulsa, furioso consigo por ter caído em tal situação,
que, embora participasse dos elementos da farsa era abjetamente humilhante. Sem uma palavra, voltou-se e precipitou-se para fora do quarto.
Nessa noite, sentado no seu sótão, ouviu fortes pancadas na porta da frente, seguidas de passos pesados na escada, e logo Monsieur Cruchot invadia o seu quarto.
O merceeiro, ainda vestindo o seu melhor terno, encontrava-se num estado de cólera fabricada.
- Como se atreve a fazer propostas amorosas a minha esposa... miserável insignificante... no instante em que dou as costas? Tenho a intenção de ir diretamente à
polícia. Sempre pensei que você era uma cobrinha inglesa. Mas morder a mão que o sustenta... uma mulher de coração puro... uma mãe! Que ultraje... uma atrocidade!
Jamais torne a mostrar o seu focinho no meu estabelecimento. Mas, além disso, deve haver uma compensação... por danos... no mínimo uma pintura.
Stephen sabia que Cruchot não gostava dele, no entanto era evidente que aquela exibição era instigada pela esposa, o marido era o mensageiro da mulher despeitada.
E com uma onda de amargura, como Cruchot continuasse a ameaçá-lo, Stephen arrancou uma página do bloco que estava na mesa dele e entregou-a ao merceeiro. Era um
esboço que ele acabara de fazer de memória de madame, obesa e afetada, de calções, no quarto de dormir.
Monsieur Cruchot, silenciado pelo gesto inesperado, olhou para o desenho fatal. Sua face tornou-se lívida. Ia rasgá-lo, mas, com a esperteza nativa, considerou-o
novamente, enrolou-o cuidadosamente e colocou-o dentro do chapéu. Depois, com um olhar furtivo, voltou-se e foi embora.


CAPÍTULO V

NA MANHÃ SEGUINTE, Stephen fez a sua mochila, amarrou as suas telas num canudo e, pondo a carga ao ombro, partiu de Netiers a pé. Seu objetivo era Fougères, situada
na route nacional, a 30 quilómetros de distância, e às cinco horas da tarde, após uma sufocante caminhada através dos campos, alcançou, a cidade, erguida em ambos
os lados de uma colina cortada pela estrada principal
para Paris. Lá, encontrou um restaurante barato que lhe pareceu um ponto de parada para caminhoneiros. O garçom, ao qual pediu ajuda, tinha certeza de que surgiria
uma oportunidade, e na verdade, justamente antes das nove, parou um camion da Compagnie Atlantique com um reboque e dele desceram dois homens de macacão e entraram
no bar. Poucos minutos depois, o garçom fez um sinal, houve apresentações, explicações transitórias e um geral aperto de mãos - tudo arranjado. As coisas de Stephen
foram colocadas embaixo do assento e eles partiram.
A noite chegou quente e serena. Rodaram através de aldeias adormecidas, cidades desertas onde brilhavam apenas umas poucas luzes, passando Vire, Argentan, Dreux.
O ar quente assobiava ao lado deles, os paralelepípedos estrondejando embaixo, a lua mergulhou por trás das alamedas nevoentas de álamos. Finalmente, quando rompeu
o amanhecer pálido e escorrido, atravessaram o Sena em Neully, entraram em Paris pela Pote Neully e pararam no mercado Les Halles. Lá, Stephen agradeceu aos seus
dois amigos e deixou-os.
A cidade, ainda não acordada de todo, tinha um ar cinzento e triste, mas quando atravessou a Ponte Nova, Stephen respirou fundamente o ar úmido. Estava de volta
a Paris. Depois de Netiers sentia-se mais forte, acima de tudo cheio de uma firme determinação de demonstrar o seu talento ao mundo.
Quando o mont-de-piété da Rue Madrigal abriu as portas, ele estava à espera do lado de fora. Entrando, empenhou o relógio - um presente do pai no dia do seu vigésimo
primeiro aniversário - pelo qual recebeu 180 francos. A seguir, após uma demorada procura, achou uma acomodação numa rua lateral próxima da Place St. Séverin, um
bairro frequentado por artistas como último recurso. Era um quarteirão pobre e um quarto ainda mais pobre, escassamente mobiliado e terrivelmente sujo - somente
10 francos por semana. Imediatamente se pôs ao trabalho e, pedindo emprestados uma vassoura e um balde, limpou o cómodo. Até lavou as paredes, a fim de que parecessem
recomendáveis, embora ainda permanecessem algumas manchas de insetos.
Passava das duas; sem pensar em comida, escolheu quatro das suas pinturas e dirigiu-se rapidamente pelos quais à loja de Napoleon Campo. O vendedor de tintas estava
sentado no seu caixote costumeiro atrás do balcão, balançando as pernas curtas, usando uma jaqueta azul de piloto e boné amarelo de tricô, com as orelhas gretadas
de fora, o rosto púrpura com a barba por fazer, mãos cruzadas sobre a barriga. Saudou Stephen amavelmente, como se o tivesse visto na véspera.
- Bem, Monsieur l'Abbé, que posso fazer pelo senhor?
- Antes de tudo, deixe-me liquidar o que lhe devo.
- Obrigado, o senhor é um homem honesto.
Recebeu os 50 francos que Stephen lhe deu e enfiou-os numa velha bolsa de couro.
- E agora, Monsieur Campo, quero uma tela bem larga, 2,00 x 0,80cm.
- Ora! Tem um trabalho tão grande assim em vista? Naturalmente pode pagar?
- Em dinheiro não, monsieur. Com estes.
- Endoideceu, Abbé? Deus do céu, meu porão está abarrotado de pinturas, refugo impróprio até para a lata de lixo, que recebi por ter um coração bondoso.
- Nem tudo é lixo, Campo. Você recebeu pinturas de Pissarro, e Boudin, e Degas.
- Você é um Degas, meu pequeno Abbé?
- Um dia, talvez.
- Meu Deus, é sempre o mesmo conto de fadas. Então a sua tela especialmente grande é para pendurar no Salon, com multidões diante dela. Terá fama e fortuna da noite
para o dia. Bah!
- Então aceite 20 francos por conta e estas pinturas como penhor do restante.
Os insignificantes olhinhos azuis de Napoleon procuraram o rosto pálido e sério diante dele. Tantos, tantos rostos tinham passado por sua loja nos últimos 30 anos,
que afogavam a sua memória. Era um homem fleumático, que não se comovia facilmente, e a idade o tinha tornado ainda mais impassível. Mas ocasionalmente, embora isso
fosse raro, havia nos modos e no aspecto de algum aspirante necessitado, como agora nas curiosas feições daquele inglesinho, um tipo de intensidade que o impressionava.
Hesitou, depois desceu do seu assento e começou a remexer nas prateleiras. Quando a tela que Stephen queria - um fino linho de grão fino - estava em cima do balcão,
houve uma pausa.
- Disse 20 francos?
- Sim, Monsieur Campo. Stephen contou as moedas.
Napoleon Campo tomou uma pitada de rapé, limpando meditativamente o nariz carnudo com o punho da sua jaqueta de piloto.
- E agora, naturalmente, vai passar fome.
Houve outra pausa. Subitamente Campo empurrou as moedas que estavam em cima do balcão.
- Devolva estas à sua caixa de coleta, Abbé. E me dê os seus miseráveis borrões.
Surpreso, Stephen entregou-lhe as suas pinturas. Sem ao menos uma olhada por alto, Napoleon colocou-as embaixo do balcão.
- Mas. . . não quer vê-las?... São... as melhores que eu fiz.
- Não julgo pinturas e sim gente - replicou Campo rispidamente. bom dia, monsieur. E boa sorte.
Stephen voltou ao seu quarto com a tela às três horas, e sem demora saiu imediatamente para a loja de bicicleta da Rue de Bièvre. Até agora as coisas tinham ido
bem, mas ao se aproximar do estabelecimento de Berthelot sentiu-se nervoso e inseguro de si mesmo, embora cheio de uma viva expectativa que fazia o seu coração bater
depressa. Muitas vezes, durante os últimos meses, tinha pensado em Emmy; a recordação daqueles momentos na escuridão do corredor estreito lhe vinha de tempos em
tempos sem aviso, ainda que com uma esquisita inconsistência.
Encontrou-a no pátio atrás da oficina, curvada sobre uma bicicleta niquelada, reforçada e pintada de vermelho e ouro. Vê-la outra vez deu-lhe uma sensação de calor
por dentro. Ela ergueu os olhos quando ele apareceu, aceitou a sua saudação sem surpresa e continuou a acertar os rolamentos. O pulso dele ainda estava absurdamente
desigual; contudo, desde as suas excursões juntos, sabia muito bem que ela abafava qualquer mostra de afeição.
- É uma linda máquina - disse ele após alguns momentos.
- É minha. Vou usá-la em breve. - Endireitou-se, atirou uma mecha de cabelo para trás. - Então está na cidade de novo?
- Desde esta manhã.
- Quer alugar uma?
Ele abanou a cabeça.
- Tenho coisas mais importantes para fazer.
Houve uma pausa. Ela sempre fora um tanto curiosa a respeito dele, e agora, como ele pretendia, o seu interesse tinha aumentado.
- Está metido em quê?
Ele respirou rápido.
- Já ouviu falar do Prix de Luxembourg, Emmy? É uma competição aberta a todos os que nunca estiveram no Salon. Pretendo arriscar. - Depois, como se ela se voltasse
indiferente, acrescentou: - Foi por isso que voltei. Quero que você pose para mim.
- Quer dizer... - interrompeu-se, olhando para ele - ... fazer o meu retrato?
- Isso mesmo. - Procurou falar num tom casual. - Você nunca foi pintada, foi?
- Não, apesar de que já devia ter sido há muito tempo, considerando quem sou.
- Então, esta é a sua oportunidade. Pode ser muito bom para você. Os melhores trabalhos serão exibidos no Orangerie. Você certamente seria reconhecida.
Ele podia ver que a sua vaidade estava lisonjeada, mas ela hesitava, olhando-o de cima a baixo como que calculando a sua capacidade.
- Você pode mesmo pintar? Quero dizer, poderia fazer um bom retrato?
- Pode contar comigo. Porei tudo o que tenho nessa pintura.
- Sim, suponho que poria, para o seu próprio bem. - Uma ideia lhe ocorreu. - Mas eu vou excursionar no mês que vem.
- Até lá há tempo suficiente. Se você vier todos os dias durante três semanas, posso pintar os detalhes depois que você for.
Novamente podia ver que ela debatia as possibilidades.
- Bem - disse ela, por fim, na sua maneira desgraciosa. - Não me importo. Acho que não vou perder nada.
Ele reprimiu uma exclamação de satisfação e alívio - não somente tinha querido pintá-la desde o começo, mas ela seria perfeita para o assunto que naquelas últimas
e poucas horas havia se apoderado dele. Rapidamente, deu-lhe o seu novo endereço, pediu-lhe que estivesse lá às 10 da manhã seguinte, usando o seu suéter preto e
a saia pregueada, e despediu-se antes que ela pudesse mudar de ideia.
Vagabundeando pela avenida, sentia-se excitado pelo que tinha realizado nesse dia. Só então se lembrou que não comia desde que dividira um sanduíche com o motorista
do camion na noite passada. A fome o atacou como um tapa. Mergulhou numa épicerie, onde comprou um pão comprido e uma tranche de salsicha. Não conseguia ficar quieto.
Andando pela rua escurecida diante do Jardin des Plantes, mordia alternadamente o pão estalante e o suculento patê embutido no seu branco envoltório de toucinho.
Como era gostoso. Sentia-se feliz, livre, e estranhamente exaltado.


CAPÍTULO VI

No DIA SEGUINTE, ele estava pronto e esperando impacientemente, a tela preparada, quando ela chegou, com uns 20 minutos de atraso.
- Aí está você! - exclamou ele. - Pensei que não viesse mais.
Ela não respondeu, mas da porta olhou em torno para o quartinho miserável com as pranchas nuas, uma cadeira de bambu quebrada e uma cama sobre roletes, afundada
no meio.
- Você está quebrado, não?
- Mais ou menos.
- Você tem topete. Trazer-me para um trou destes. Nem ao menos tem onde pendurar as minhas coisas.
Ele corou, mas forçou um sorriso.
- Admito que não seja o Elysée, mas nío é mau lugar para pintar. Dê-me uma chance e eu prometo que não se arrependerá.
Ela baixou o lábio numa espécie de careta, mas, com um dar de ombros, entrou e deixou que ele lhe tirasse o casaco e a postasse diante da janela.
A luz era boa, e, cheio de um súbito hausto de força, ele começou a tracejar a composição que agora o obcecava. Como as regras do concurso exigiam uma pintura "clássica",
seu tema seria alegórico, embora moderno na composição, e o assunto era: Circe e Seus Amantes. Poderia a sua absurda aventura com Madame Cruchot, trabalhando no
fundo do seu inconsciente, inflamar uma centelha que incendiasse essa estranha visão? Símbolos e imagens enchiam a tela da sua vista, cativando os sentidos. Na sua
imaginação, o prazer lutava com a virtude, e a luxúria se revelava na forma dos seios à espreita. Tudo ainda era uma miragem; no entanto, nos íntimos e misteriosos
recessos da sua alma, sentia a força para fazer aquele sonho existir.
Embora pudesse ter continuado o dia inteiro, ao meio-dia, advertido pela expressão da moça, Stephen lhe disse que talvez fosse o bastante para aquele dia. Imediatamente,
ela atravessou o quarto e examinou a tela, onde, usando carvão, ele já tinha feito seu esboço, de corpo inteiro e bem definido. As sobrancelhas ergueram-se e o olhar
amuado deixou o seu rosto quando ela se viu ocupando o centro da tela, de pernas separadas, mãos plantadas nos quadris, uma atitude que era toda sua. Não disse nada
enquanto permitia que ele a ajudasse a vestir o casaco, mas na porta se voltou e acenou a cabeça.
- À mesma hora, amanhã.
Durante a tarde, enquanto a luz durou, ele trabalhou no plano de fundo. E no dia seguinte, e nos que se seguiram, continuou, nem sempre de ânimo elevado, mas com
um propósito que o transportara através de momentânea melancolia para novos transes. Ao mesmo tempo, à medida que prosseguiam as sessões e ele entrava em contato
mais íntimo com Emmy, não mais podia ficar cego ao aprofundamento dos seus sentimentos por ela. A cada dia, terminada a sessão, dava consigo a sentir falta dela,
mais e mais. Na ausência de Peyrat e Glyn, estava sozinho. Mas isso explicaria o seu constante desejo pela companhia dela? Zangado consigo mesmo, lembrou o quanto
não gostara dela no seu primeiro encontro, e como ela às vezes o irritava com a sua grosseria e falta de educação. Quando ela estava de mau humor e ele tentava conversar
com ela, as suas respostas eram monossilábicas, e quando lhe dizia que descansasse, ela continuava a ignorá-lo, deitava-se de barriga na cama, acendia um Caporal
e mergulhava numa revista esportiva amarrotada. Percebeu que ela não tinha atenção para com ele e que somente a vaidade a trazia regularmente ao seu quarto. Uma
dúzia de vezes por dia ela ia observar a marcha do trabalho, e embora nunca o elogiasse, congratulava-se consigo mesma.
- Estou saindo bem, não é?
A lenda da Odisseia, da filha de Helios e da ninfa do oceano Perse, que ele explicou para ela, mexeu-lhe com a fantasia. A ideia de que tivesse o poder de transformar
seres humanos em formas animais provocou-lhe um sorriso.
- Bem feito, pra eles aprenderem.
Essa vulgaridade estremeceu-o. E contudo não era inibidora. Que haveria naquela moça para provocar o seu premente interesse? Procurou descobrir. Que sabia realmente
dela? Muito pouco, exceto que era comum, dura e insignificante - uma pequena nulidade, desinteligente, sem imaginação, completamente empedernida. Não sabia nada
de arte, não tinha interesse pelo seu trabalho, e se entediava quando ele falava. Mas a sua figura era esquisita - não estava reproduzindo cada linha sutil dos seus
membros fortes e esbeltos, o ventre chato e os seios firmes? - e acima de tudo ela era pequena. Embora pudesse admirar na tela a carne voluptuosa das mulheres de
Rubens, o seu gosto sempre fora por uma perfeição menos arredondada. E ela possuía essa nitidez física, uma figura que ele sempre comparava à Maja de Goya. Contudo,
ninguém poderia chamá-la de bela. Tinha um encanto travesso, mas os seus lábios eram finos, as narinas um tanto puxadas, e a sua expressão, quando não alerta e vigilante,
era quase carrancuda. Curioso é que, todas as suas imperfeições eram aparentes para ele. Contudo, não afetavam em nada aquela estranha emoção que, a despeito de
todos os seus esforços para suprimi-la, crescia nele.
Desejava estar ao lado dela e sentia-se inquieto e nervoso quando ela se retirava. Desordenadamente afetado pelos seus humores variáveis, respondia a eles de uma
maneira que o fazia desprezar a si mesmo. Em raras ocasiões, quando ela se mostrava agradável, o seu coração se animava. Às vezes, nessa disposição tagarela, ela
fazia perguntas sobre o único assunto que, entre todos os outros ligados a ele, parecia interessá-la.
- É verdade que os seus pais têm uma grande proprieté em Sussex, com muitos acres de boa terra?
- Não muitos - sorriu ele. - Se Glyn lhe disse isso, exagerou.
- E você ia ser um padrezinho... até que eles o tiraram do seminário.
- Você sabe que eu saí por minha vontade.
- Para viver num quarto como este? - perguntou, incrédula.
Encolheu os ombros, mas sem desprezo - lisonja que o gratificou. Essa afabilidade, embora não causasse alívio, era um agradável contraste com a mortificante indiferença
com que ela geralmente recebia as suas tentativas para agradá-la. E enquanto ela posava, indolente como um gato, ele começou a contar-lhe, sem parar de pintar, histórias
sobre Stillwater que achava pudesse entretê-la e diverti-la. Quando finalmente esgotou o repertório, ela refletiu por alguns momentos, e então declarou:
- É certo que vivi com, isto é - corrigiu-se - entre artistas toda a minha vida. Eu própria sou uma artista. Compreendo que se abandone alguma coisa pela arte, quando
isso não é nada. Mas você está numa categoria diferente. E abandonar a sua bonne proprieté, que você poderia herdar... - fez pausa e encolheu os ombros - ... foi
imbécile.
- Não completamente - sorriu ele - ou eu não a teria encontrado. Veio-lhe uma súbita onda de anseio. Deteve-se, não ousando olhar para
ela.
- Você não percebe, Emmy?... que estou gostando terrivelmente de você?
Ela riu-se brevemente e levantou um dedo avisador,
- Nada disso, Abbé. Isso não faz parte do nosso acordo.
Derrotado, retomou o trabalho. E por toda a noite sentiu a dor da rejeição. Se ao menos pudesse sair com ela à noite - ela, que apreciava diversões vulgares - achava
que podia conquistar sua simpatia. Mas sua falta de recursos o impedia. Vivia com pouco mais de meio franco por dia, subsistindo com um pão ou uma maçã até às seis
horas, quando tomava sua solitária refeição no café mais barato das redondezas.
Certa tarde, quando suas sessões de pose já estavam terminando, ela chegou, mais atrasada do que de costume. Aparentava ótimo humor. Usava um fichu amarelo novo
com uma curta jaqueta vermelha ataviada de rendas, e seu cabelo estava recém-lavado.
- Você está muito bem - cumprimentou Stephen. - Eu quase desisti de esperá-la.
- Tenho um encontro com Peroz. O escritório dele fica bem longe... no Boulevard Jules Ferry. Mas consegui o contrato que eu queria.
- Ótimo - sorriu ele, sem mencionar que a sua partida o deprimia. Quando parte?
- A 14 de outubro. Houve um adiamento de duas semanas.
- vou sentir a sua falta, Emmy. - E inclinando-se para ela: - Mais do que você pensa.
Ela riu de novo e ele notou que os seus dentes eram agudos e regulares, com espaços definidos entre eles. Então, com vivacidade, acentuando as suas observações,
ela começou a descrever como conseguira o melhor de Peroz ao estabelecerem os termos do seu contrato.
- Dizem que ele tem bom coração - concluiu ela. - Acho que ele é apenas um gobeur... um mole.
Sabendo que a sua conversa geralmente a aborrecia, Stephen encorajou-a a continuar falando sobre si mesma. Então, como não houvesse mais luz, guardou os seus pincéis.
- Deixe-me andar com você - disse ele. - Está uma bela noite.
- Muito bem, se quiser - concordou ela, dando de ombros.
Quando ela apanhou as suas coisas, eles desceram a escada e dali a pouco chegaram ao Boulevard Gavranche, onde uma escuridão quente lançava um halo em torno das
lâmpadas da rua, envolvendo a cidade muda em misteriosa beleza. Casais passavam lentamente, de braço dado, nas calçadas tranquilas a noite parecia feita para os
namorados. Numa rua lateral perto do rio, passaram por um café, onde com a música de um acordeom, havia gente dançando sob uma pérgula, com lanternas chinesas penduradas
nos ramos dos plátanos. A cena estava cheia de luz e alegria, e Stephen podia sentir os olhares interrogativos de Emmy lançados para ele.
- Gostaria de dançar?
Tomado por um demorado embaraço, consciente da sua inépcia, ele abanou a cabeça.
- Eu não seria muito bom nisso.
Era verdade. Ela encolheu os ombros.
- Você não é bom em muita coisa, não é? - disse ela.
Chegaram às sombras dos quais. O Sena fluía em silêncio, uma corrente lisa e verde, sob o vão baixo da Pont de l'Alma. Como se estivesse entediada pelo seu silêncio,
ela caminhava um pouco adiante, começando a trautear a canção tocada pelo acordeom no cabaré.
- Espere, Emmy. - Ele se chegou para o abrigo de um arco. Ela o Olhou de lado, por sobre o ombro.
- Que é que tem na cabeça, Abbé?
- Você não vê... o quanto significa para mim?
Pôs um braço em torno dela, atraindo-a para si. Durante uns poucos momentos, insensível como o poste de iluminação, ela deixou que ele a abraçasse, e depois, com
um movimento brusco de impaciência, empurrou-o.
- Você não entende nada disso.
Havia desprezo na sua voz.
Ferido e humilhado, fraco de emoção frustrada, sentindo a verdade da observação, ele a seguiu para a rua. Caminharam para a Rue de Bièvre. Diante da loja de bicicletas,
ela olhou para ele como se nada tivesse acontecido.
- Posso ir amanhã de manhã?
- Não - disse ele amargamente. - Não será necessário. Voltou-se, furioso com ela e enojado consigo mesmo.
- Não se esqueça - gritou ela. - Quero ver o quadro quando estiver terminado.
Ele a odiava por sua dureza, sua falta de generosidade comum - ela sequer tivera pena dele. Disse a si mesmo que nunca mais tornaria a vê-la.
Na manhã seguinte, quando acordou de uma noite inquieta, lançou-se apaixonadamente na contemplação do quadro. Até agora, só a figura central
tinha tomado forma, havia ainda o tema a ser desenvolvido. O tempo se tornara úmido e sombrio, a luz era pouca, o seu estúdio improvisado varrido por correntes de
ar, mas nenhuma dificuldade parecia tão grande que ele não pudesse vencer. Na sua busca de realismo, ia todas as tardes ao Jardim Zoológico; depois, voltando para
o seu quarto, transferia as abjetas criaturas para a tela, com algo da sua própria tristeza e sujeição. No fim dessa semana, o seu dinheiro acabou - procurando uma
moeda para comprar o seu petit pain, não pôde achar um único soldo. Sem se abater, continuou a pintar o dia todo com uma espécie de fúria.
Na manhã seguinte, sentiu-se fraco e tonto, mas ainda assim forçou-se a prosseguir no trabalho. Quando chegou a tarde, porém, um raio de razão se infiltrou pelas
névoas que agora obscureciam o seu cérebro. Percebeu que se não comesse para viver, simplesmente isso, nunca terminaria a Circe - a menos que pudesse achar algum
meio de sustento. Sentado na beira da cama, refletiu por um instante e depois foi ao canto onde estavam as suas pinturas de Netiers, selecionando três que eram especialmente
brilhantes e coloridas. Eram boas, satisfaziam-no, davam-lhe confiança. Embrulhou-as em papel pardo e, com o rolo debaixo do braço, saiu para atravessar o Sena ao
longo dos Champs Elysées para o Faubourg Saint Honoré. Era um ato de coragem. Contudo, o tempo para meias medidas tinha passado. Estava resolvido a oferecer o seu
trabalho ao melhor negociante de arte da França.
Na esquina da Avenue Marigny, um logradouro principalmente ocupado por pequenos edifícios de apartamentos e suntuosas lojas de haute couture, deteve-se diante de
uma rica mas comedida fachada de pilares paládicos e pedra branca talhada. Depois, retesando-se decididamente, passou pela porta veneziana dourada e entrou num vestíbulo
calçado de mármore, com painéis de jacarandá e colgaduras de veludo vermelho, onde se achou diante de um jovem de paletó com abas abertas, sentado atrás de uma escrivaninha
Luís XVI laqueada e com ouropel. Através do cortinado lá atrás, via-se um amplo salão, igualmente esplêndido, embelezado por grandes buques de lírios em vasos de
alabastro e cheio de quadros belamente iluminados, diante dos quais gente elegante se movia, e misturava, consultando os seus catálogos, conversando em voz baixa.
- O senhor tem convite para o vernissage, monsieur?
Stephen devolveu o olhar do jovem maneiroso, que, por baixo do seu sorriso profissional, examinava-o com extrema cautela.
- Não. Eu ignorava que havia uma exibição. Vim para ver Monsieur Tessier.
- Qual o assunto, monsieur?lis
- Pessoal.
O sorriso, de inefável polidez, não vacilou.
- Receio que Monsieur Tessier não se encontre na casa. Contudo, se quiser tomar uma cadeira, irei verificar.
Quando Stephen sentou-se, o jovem levantou-se graciosamente e deslizou para dentro. Mas quase ao mesmo tempo uma porta lateral se abriu e três pessoas entraram na
sobreloja - uma mulher, muito elegante, de preto, carregando uma miniatura de poodle, enfitado e fantasticamente frisado; seu acompanhante, um homem idoso, entediado
e distinto, impecavelmente vestido, dos sapatos marrons ao chapéu; e Tessier, que Stephen reconheceu imediatamente, uma figura cortês, de rosto moreno, barbeado,
com o lábio inferior saliente e olhos de bistre. O marchand estava falando, sensatamente com reservada animação e movimentos comedidos das mãos.
- Asseguro-lhe que é uma perfeita gema. A mais fina que me chegou em vários anos.
- É linda - disse a dama.
- Mas o preço! - interpelou o seu companheiro um tanto soturno.
- Já lhe disse, cavalheiro. Por 100 mil, é inquestionavelmente um preço de ocasião. Mas se não o deseja para o senhor, tem somente que me dizer. Virtualmente, tenho
compromisso com outro cliente.
Houve uma pausa, um toque na manga do acompanhante, um murmúrio de conversação íntima, e então:
- Pode considerar a pintura vendida.
Uma inclinação de cabeça, não obsequiosa, mas gravemente aprovando semelhante bom gosto, foi a única resposta de Tessier. Contudo, não os levou até a porta, e quando
se voltou, parecendo meditativo, de cabeça baixa, mãos cruzadas atrás das costas, Stephen foi ao seu encontro.
- Monsieur Tessier, peço-lhe que me desculpe pela intrusão. Poderá dar-me cinco minutos apenas do seu tempo?
O negociante ergueu os olhos vivamente, perturbado nos seus pensamentos, certamente relacionados com cálculos e seu olho empapuçado, com a imediata percepção de
algo encontrado com desagrado em ocasiões anteriores, apreciou a figura maltrapilha que tinha diante de si, dos sapatos enlameados e encharcados ao embrulho malfeito
que trazia debaixo do braço.
- Não - murmurou ele. - Agora não. Como vê, estou inteiramente ocupado.
- Mas monsieur - insistiu Stephen, abalado mas com determinação. - Só lhe peço que veja o meu trabalho. Será demais um artista solicitar-lhe isso?
- Então o senhor é um artista? - O lábio de Tessier reentrou. - Felicito-o. Sabe que cada semana sou assediado, atacado e importunado por pessoas que se intitulam
génios e imaginam que eu desmaiarei num êxtase quando contemplar os seus execráveis esforços? Mas nunca tinha encontrado um com o atrevimento de me procurar aqui,
no auge da minha exibição de outono.
- Lamento perturbá-lo... mas o assunto é um tanto urgente.
- Urgente para mim... ou para o senhor?
- Para ambos. - Stephen engoliu convulsivamente. Na sua agitação, falou sem controle. - O senhor acaba de vender um Millet por uma soma considerável. Perdoe-me,
não pude deixar de ouvir. Dê-me uma oportunidade e eu lhe mostrarei um trabalho tão fino como qualquer coisa vinda de Barbizon.
Tessier relanceou os olhos para Stephen, notou a sua aparência perturbada, a dilatação dos seus olhos.
- Por favor - disse ele de maneira fatigada, abandonando o argumento.
- Mais uma vez, rogo-lhe.
Afastou-se para um lado, entrou no salão e um instante depois perdia-se de vista. Stephen, que tinha começado, com pressa nervosa, a desfazer o embrulho, ficou por
um momento muito pálido; depois, com uma expressão estranha, andou para a porta. Ao chegar à rua, o barbante, mal amarrado, desatou-se e as três telas caíram na
calçada molhada e escorregaram para a sarjeta.
Apanhou-as com cuidado, com uma ternura quase ridícula. O simples ato de abaixar-se fez-lhe a cabeça dar voltas. Mas teimosamente, com uma intensidade quase fanática,
disse a si mesmo que não seria derrotado. Havia outros negociantes de quadros em Paris, menos arrogantes, certamente mais acessíveis do que esse intolerável Tessier.
Vagarosamente, caminhou, através do tráfego, para a Rue de la Boétie.
Duas horas depois, molhado e ainda atrapalhado pelos três quadros, estava de volta à Place St. Séverin, tão exausto que mal pôde subir para o seu quarto. Na verdade,
na metade da escada sentou-se num degrau para recobrar o fôlego. Ao fazê-lo, a porta junto ao patamar abriu-se e apareceu, vestido para sair, de tamancos, camisa
sem colarinho e um sobretudo surrado, um homem de cerca de 30 anos, alto e moreno, com uma pele descorada e olhos fundos de semita. Ao descer, quase tropeçou em
Stephen, recuou e estudou-o com um sorriso amargo, peculiar.
- Não teve sorte? - exclamou.
- Não.
- Tentou com quem?
- A maioria deles... de Tessier para baixo.
- Salamon?
- Não me lembro.
- Ele não é mau. Mas nenhum deles está comprando agora.
- Tive uma oferta. Duzentos francos para falsificar um Breughel.
- E você aceitou?
- Não.
- Ah, a vida tem seus pequenos vexames. - E depois de uma pausa: - Como se chama?
- Stephen Desmonde.
- Chamo-me Amédée Modigliani. Venha tomar um drinque.
Dirigiu o caminho de volta ao patamar e abriu a porta do seu quarto. O seu apartamento era quase idêntico ao de Stephen, mas talvez mais sórdido. Num canto, ao lado
da cama por fazer, havia uma pilha suja de garrafas vazias, e no centro um cavalete com uma pintura quase terminada, um nu reclinado.
- Gosta? - Servindo dois Pernods de uma garrafa que tirara do armário, Modigliani inclinou a cabeça para a tela.
- Sim - disse Stephen após um momento.
Havia na pintura um estilo pessoal, marcado por seus esforços numa linha arabesca, algo de monumental e puro.
- bom - disse Modigliani, passando-lhe o copo - mas esse quadro porá o comissário de polícia atrás de mim. Ele já proclamou que os meus nus são escandalosos.
O absinto, fortalecendo Stephen, clareando o seu cérebro, evocou uma nota de recordação.
- Você não exibiu nos Indépendants? Le Joueur de Violoncello?
O outro fez um gesto afirmativo.
- Não era o meu melhor trabalho. Mas foi vendido. Agora eles não comprarão nada. Na verdade, se não fosse o meu talento para plongeur no Hotel Monarque, eu teria
sido gentil com os meus críticos e deixado de existir.
- Um plongeur? - Stephen não compreendia.
- Sim, gostaria de experimentar o trabalho? vou para lá agora. É um emprego fascinante. Um leve sorriso, saturnino, apareceu nas suas feições impassíveis, cor de
oliva. - E eles sempre apreciam um empregado novo.
- Tentarei qualquer coisa.
Saíram juntos e começaram a andar em direção à Etoile. O Grand Monarque, um dos famosos hotéis parisienses, era uma imensa construção palacial no estilo Terceiro
Império, ocupando um quarteirão inteiro, logo depois dos Grands Boulevards. Imponente e digno, um tanto fora de moda, com degraus de mármore, tapetes vermelhos,
as vastas salas públicas com lustres cintilantes, um bando de atendentes esvoaçando atrás das portas de metal polido, como sentinelas, para receber os embaixadores,
dignitários estrangeiros e príncipes nativos, que estavam entre os seus visitantes, dava uma sensação de opulenta magnificência. Modigliani, contudo, quando chegaram
ao pórtico central, não tentou uma entrada, mas guiou o caminho em torno de um canto escuro e por uma passagem que dava para as dependências dos fundos, flanqueada
por uma bateria de latas de lixo amassadas; um lance de escadas admitiu-os no subsolo.
Era menos um subsolo do que uma imensa adega subterrânea, com o teto úmido e pingando, atravessada por uma confusão de tubos de ferro, de paredes
escamadas, pegajosas de bolor, o chão de pedra-britada com água de despejos até os tornozelos, tudo fracamente iluminado por umas poucas lâmpadas elétricas nuas,
cheio de vapor, barulho e uma confusão babélica de vozes. Ali, numa comprida calha, uma fila de homens, arrebanhados, parecia, na ralé de Paris, estava febrilmente
lavando pratos que uma turma de ajudantes de cozinha continuava trazendo apressadamente, embraçadas, das cozinhas contíguas. Agora, pensou Stephen, após acomodar
os olhos àquela visão de pesadelo, sei o que significa um plongeur.
Entrementes, Amédée tinha se aproximado do contremaître, que, com um olhar indiferente para Stephen, entregou-lhe um disco de metal com um número estampado e marcou
o tempo a giz, diante desse mesmo número, numa ardósia que pendia do seu cubículo, ao lado de um aviso que advertia que se alguém fosse apanhado tirando porções
de alimento seria sumariamente processado.
E agora, imitando seu companheiro, Stephen tirou a sua jaqueta e, tomando lugar na fila, começou a lavar os pratos do jantar empilhados na pia. Não era trabalho
fácil, curvado sobre a calha baixa, e não havia interrupção. O odor da água espumosa nunca mudava, o mau cheiro da graxa e restos de comida era nauseante. Periodicamente,
a pasta de restos entupia o ralo e tinha que ser retirada com a mão. Era estranho, durante esse processo, ouvir um leve sopro de música polida vindo da orquestra
no pátio de palmeiras lá em cima.
Cerca das 11 horas, o ritmo diminuiu, e antes da meia-noite houve uma parada definitiva, que indicava que as damas e cavalheiros lá de cima tinham Sido alimentados.
Amédée, que durante todo o tempo não pronunciara uma única palavra, pôs o seu casaco, acendeu um cigarro e, com um movimento da cabeça, chamou Stephen para a porta,
onde o contramestre, após uma olhadela na pedra do tempo, pagou a cada um 2 francos e 50.
Lá fora, ainda em silêncio, ele caminhou de ombros caídos pelas ruas escuras e, cinco minutos depois, guiou o caminho para um bistro que ficava aberto a noite toda.
Ali, enquanto Amédée bebia vários Pernods, Stephen consumiu um pratarrão de pot-au-feu, grosso de boas verduras e pedaços de carne de carneiro. Era a sua primeira
refeição satisfatória em muitos dias, e sentiu-se melhor.
- Não quer alguma coisa? - perguntou ele.
- Isto é carne e pão para mim. - Amédée olhava com dura indiferença para o fluido esverdeado e opalescente do seu copo, que segurava com os dedos manchados de nicotina.
- Tem sido a minha dieta há muito tempo.
Sentado no café deserto, as luzes amortecidas, a mesa de bilhar lá atrás, protegida para a noite, o garçom solitário, semi-adormecido, com o seu guardanapo sobre
a cabeça, atrás do balcão, Amédée revelou alguma coisa de si mesmo em frases lacónicas.
Nascido na Itália, provinha de uma família de judeus italianos, estudara, a despeito das interrupções causadas por doenças, em Florença, e na Academia de Veneza.
Nos últimos sete anos, inspirado pelos primitivos e pela arte negra, tinha trabalhado em Paris, às vezes com o seu amigo Picasso, e ocasionalmente com Gris. Não
tinha vendido praticamente nada.
- Assim é que agora - concluiu ele, com o seu sorriso sombrio mas inquieto - me vê enfraquecido pela pobreza, pelo excesso de álcool, e pelo uso de drogas nocivas.
Sozinho, a não ser por uma moça que teve a desgraça de me conhecer. Despido de qualquer reputação. - Emborcou o resto da bebida e levantou-se. - Mas alegre pelo
fato de que jamais aviltei a minha arte.
Disse boa-noite, sem ênfase, na escada que levava aos seus aposentos.
Por breve que tivesse sido, aquele estranho encontro foi providencial para Stephen. Agora, aguentando todas as noites cinco horas de trabalho suado nos porões fumegantes
do Grand Monarque, podia sobreviver e, o que lhe parecia mais importante, continuar a trabalhar com toda a sua força na Circe.
Finalmente, cerca de três semanas depois, numa tarde seca e fria, terminava o trabalho. Lá estava ela, naquela atitude familiar de descuidada insolência, indiferente
mas aliciante, com seu rosto pálido e olhos enigmáticos, aquela moderna filha de Helios, tendo como fundo não o palácio de Aiaia, mas a rua de um bairro miserável
de Paris onde se agrupavam os seus amantes vencidos, mudados e degradados na forma de bestas, e que, domados e abatidos, olhavam para ela com um desejo servil, como
se ainda estivessem sedentos por suas carícias.
Exaurido por esse esforço final, Stephen foi incapaz de avaliar sua obra, que tomara uma forma fantástica por força de uma compulsão a que ele não pudera resistir.
Sabia apenas que nada mais podia acrescentar, e, em um espasmo de impaciência nervosa, embrulhou o quadro no mesmo papel pardo amassado que já usara antes e o levou
para o Institut des Arts Graphiques, na Place Redon. Lá, um funcionário idoso tomou o seu nome e anotou meticulosamente todos os detalhes em um livro; depois, constatando
que a tela não tinha moldura, relutou em aceitá-la.
- O senhor vê, monsieur, a especificação é de montage.
- Não notei.
- Mas é evidente. Olhe, monsieur, todas as outras peças estão corretamente montadas.
Stephen, relanceando os olhos por uma comprida galeria com dezenas de pinturas, sentiu uma súbita apatia. De uma maneira ou de outra, não se importava.
- Não posso comprar uma moldura. Aceite como está ou não aceite.
- Isso é muito irregular, monsieur. Mas, se quiser, deixe-a.
De volta ao seu sótão, sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, tomado
por uma letargia de pós-criação. E agora... que faria? Impossível continuar no Monarque - sua alma revoltava-se com essa ideia - contudo estava à beira da indigência.
Tirante as roupas que usava, o equipamento de pintura, e 15 soldos, não possuía nada de valor material. Tudo mais tinha empenhado. Levantou-se e olhou no armário.
Continha a metade de um pão, duro como pedra, e uma fatia de queijo. Lá embaixo, Amédée estava ausente há três dias, submerso numa das farras em que periodicamente
sucumbia, e da qual emergiria, entontecido, em alguma remota região da cidade. Atrás da divisão de madeira, o casal da porta ao lado tinha começado uma briga, gritando
um para o outro. Crianças brincando, discutindo, aumentavam a barulheira. Apesar da janela aberta, o quarto estava abafado pelo ar viciado da cidade, e nos lambris
rachados começava a usual procissão noturna de baratas.
Tudo isso, bastante difícil de aguentar, não era nada porém comparado com a insuportável sensação de solidão e privação que lhe torturava o peito. Não mais amortecido
pelo analgésico do trabalho, o seu desejo de que Emmy voltasse era mais forte do que antes. Ao contrário de Ulisses, nSo tinha uma erva mágica para proteger-se contra
o seu encanto. Culpava-se por não a ter convidado para ver o quadro. No dia seguinte ela tinha partido, indo para o sul com a troupe de Peroz - não a veria antes
de pelo menos seis meses, se é que tornaria a vê-la. Lembrando-se da enfatuação que Madame Cruchot tivera por ele, tremeu com a peça que o destino lhe tinha pregado
- agora era ele quem assumia o ridículo papel.
Não tinha nada em que se ocupar, nem ao menos um livro para ler; sentia-se inteiramente mole para se aventurar às ruas. Quando anoiteceu, deitou-se na cama, mas
não pôde dormir. O dia seguinte era terça-feira, e surgiu com um suave e límpido amanhecer. Ele se levantou e se vestiu. A ideia dos veículos do circo partindo naquela
tarde para o campo aberto e a ensolarada Côte d'Azur atormentava-o novamente. De repente, sem quê nem por quê, veio-lhe uma ideia. Por um momento, ficou imóvel,
parado no meio do soalho. Seria capaz disso? Ao menos poderia tentar. Apanhando o chapéu, saiu rapidamente do quarto e tomou, trémulo, a direção do Boulevard Jules Ferry.


CAPÍTULO VII

NUMA EXTENSÃO DE TERRENO COMUM, logo após os taludes de Angeres, naquela tarde de sol muito brilhante para o fim de outubro, o Circo Peroz armou
a sua cidade de lona vermelho vivo. As barracas de espetáculos secundários já estavam em ação, uma musiquinha vinha do carrossel das crianças, e os aboyers começavam
as suas exortações aos poucos espectadores presentes.
No seu stand, no fim de uma linha de barracas, vestido com uma blusa azul, boina, uma frouxa gravata preta, vestuário composto para sugerir às mentes rústicas a
altura da arte parisiense, Stephen respirava longamente o ar do campo, aromatizado com a fumaça de lenha, cascas de laranja, serragem fresca, tanino, e o cheiro
dos cavalos. A seu lado aprumava-se um cavalete enfeitado com uma tabuleta que o exaltava como Grand Maître des Academies de Londres et Paris, e prometia uma semelhança
exata, feita à mão, de perfil ou de frente, em carvão de primeira qualidade, por apenas cinco francos, em cores ricas e permanentes por sete francos e cinquenta,
cortesia e serviço iguais aos dispensados às cabeças coroadas da Europa, satisfação assegurada.
Ouviu-se o relincho de um garanhão, o agudo clangor de uma corneta e o grunhido fraco de uma leoa velha. Com a sua tosse praticamente desaparecida, Stephen experimentava
uma súbita recuperação do seu bem-estar físico. Não lamentava o impulso que o levara a Peroz três semanas antes.
- Aproxime-se, aproxime-se, cavalheiro. Vamos, senhor, convença mademoiselle a ter o seu lindo rosto pintado. Não seja modesto. Deixe um retrato para os seus netos.
Um casal de campônios, de braço dado, vestido com as suas roupas domingueiras, hesitava à sua frente, e então corando, a moça tomou coragem e aproximou-se. Não era
bonita, mas ele, em poucos e rápidos traços, esboçou a sua figura na folha que estava no cavalete, deu relevo à sua coifa de renda fina, aos bordados à mão dos seus
punhos, e, ensinado pela experiência, não esqueceu o broche de camafeu, um óbvio tesouro de família, que ela usava no corpete.
Enquanto isso, uma pequena multidão se juntava, ouvindo-se murmúrios de aprovação pelo retrato terminado, e logo ele estava trabalhando bastante. Para ele, não era
mais que um processo mecânico executado sem pensar; contudo, divertia-se em dar a alguns dos seus retratos uma individualidade irónica, detendo-se no detalhe de
uma feição particular, um olho bovino, uma orelha grande, um nariz bulboso, como acontecia às vezes nas noites de sábado, quando um cliente era ofensivo, desenhando
com malícia uma caricatura que, as mais das vezes, provocava o riso dos outros.
Às seis horas, a multidão diminuía, como sempre, antes da função principal do circo, e apanhando a sua tabuleta e tirando a blusa e gravata, Stephen entrava por
um labirinto de cordas e lonas para um pequeno recinto atrás da barraca contígua. Ali, acocorado diante de um vivo braseiro, um homenzinho enrugado, de perneiras
gretadas e culotes sujos de veludo cotelê, estava cozinhando o jantar. De pernas tortas, cabelo cortado rente, tinha feições nítidas,
castigadas pelo tempo, exceto o nariz, que era chato e quebrado. Seus olhos eram miúdos como contas, parados, e o fulgor do braseiro lhes dava calor.
- Que temos esta noite, Jo-jo?
- O de sempre. - Jo-jo olhou para cima. - Mas também um pouco de salsicha de carne de porco fresca, de Angers, que achei na Tur Toussaint. É uma das duas especialidades
desta cidade.
- E a outra?
- Cointreau, naturalmente, mon brave. É feito aqui.
As salsichas, respingando numa frigideira, pareciam cheias de promessas. promissoras. Jo-jo, que na sua mocidade tinha sido jóquei, depois vendedor de barbadas,
depois cavalariço, e depois bookmaker, e que finalmente tinha sido aconselhado a sair de Longchamps, era um cavador perito. Conhecia todas as tramóias da França.
Ninguém gostava mais de regatear no mercado ou de pegar uma galinha extraviada de uma granja à beira da estrada.
- Gostei destas duas noites aqui. - Stephen deu lugar no braseiro para o coador de folha do café. - Amanhã estamos de folga até as três. Pretendo dar uma olhada
no rio.
- O Loire é um bom rio - disse Jo-jo com um ar de quem sabe das coisas. - Fundo bom de areia, com muito peixe bom. Vou deixar umas iscas de noite e ver se temos
sorte. De fato, todo o país é bom para nós - Tours, Bolis, e especialmente Nevers. O vinho é um tanto fraco, mas a bóia é de primeira, e as mulheres... essas putas
da Touraine, grandes atrás e na frente... - Assobiou e revirou os olhos.
Enquanto ele falava, a aba da barraca se abriu e entrou um homem de aspecto estranho, com calças de xadrez e suéter caqui de gola rulê. Era alto e franzino, tão
dolorosamente magro que parecia um esqueleto, e o rosto e mãos - únicas partes visíveis do seu corpo - estavam cobertos por uma espessa crosta de escamas cor de
cobre. Era Jean-Baptiste, que participava de um dos mais pobres caminhões com Stephen e Jo-jo. Manso, taciturno e melancólico, era um caso extremo de psoríase crónica,
uma doença da pele, indolor mas incurável, sendo exibido aos curiosos como o Crocodilo Humano, produto da união de um sáurio feroz e de uma nadadora do Rio Amazonas,
com o que ganhava uma modesta subsistência.
- Teve uma tarde boa, Croc? - perguntou Stephen.
- Não muito - respondeu Baptiste sombriamente. - Nem um íntimo.
Essa era a parte mais proveitosa da técnica de Croc em descobrir-se lentamente, das extremidades para baixo; quando chegava ao umbigo, fazia uma pausa e, deixando
seus olhos correrem pela plateia, exclamava dramaticamente, com uma espécie de sedução macabra:
- Para revelações mais íntimas, estou à disposição na tenda dos fundos. Ingresso especial para essas revelações privadas, apenas cinco francos.
Quando a comida ficou pronta, sentaram-se em volta do braseiro - uma grande caneca de sopa fumegante, seguida pelas salsichas, duras mas suculentas, temperadas com
ervas do campo, um molho com pedaços de pão fresco cortados com uma faca dobradiça. Somente depois que se juntara à troupe, Stephen aprendeu a saborear os aumentos
comidos ao ar livre. Depois houve café, quente, forte e arenoso, servido na caneca de sopa. Então Jo-jo enrolou um cigarro e, com o ar de um mágico, tirou do bolso
dos quadris uma garrafa do límpido licor da região.
- Que tal um gole de vinho do altar, Abbé?
O apelido tinha seguido Stephen de Paris - ele não se importava. Passaram a garrafa de mão em mão, bebendo o claro e ardente licor sem copos. Jo-jo enrolava-o na
língua.
- Você pode confiar nele. Feito com as melhores laranjas de Valença.
- Uma vez me aconselharam a nunca comer frutas. Outra vez me disseram que não comesse outra coisa - disse Baptiste, que gostava de falar no assunto da sua doença.
- Ao todo consultei 19 médicos. Cada um deles mais tolo do que o outro.
- Então tome outra dose do meu remédio.
- Ah, isto é que é remédio para mim!
- Você não pode se queixar, Croc. Não tem uma existência rica e interessante? Você experimenta as delícias de viajar. Em suma, você é famoso.
- É fora de dúvida que muitas pessoas têm viajado 50 quilómetros para
me ver.
- E não tem um grande sucesso com as damas?
- Tenho mesmo. Exerço um certo fascínio sobre elas.
Diante desta séria admissão, Jo-jo soltou uma risada. Depois, apagando o cigarro, levantou-se para ver os cavalos.
Era a vez de Stephen lavar as panelas. Quando terminou, ao lusco-fusco, as luzes produzidas pelo gerador brilhavam como vaga-lumes sobre a feira. Olhando, sentia
todos os seus sentidos despertados. Não tinha visto Emmy todo o dia. Mas ela não gostava de ser perturbada antes do espetáculo, e o povo já convergia para a grande
tenda. Guardou o cavalete e o resto da tralha numa caixa, debaixo do seu beliche no caminhão, vestiu as suas roupas comuns e caminhava para a entrada dos fundos
do picadeiro. De acordo com o seu contrato, era seu dever acompanhar os membros de terra da companhia, que indicavam aos espectadores os seus lugares, vendiam programas,
sorvetes, citronade, e aquela marca de nugá feita especialmente em Paris para o Circo Peroz.
Parecia a Stephen uma excelente "casa" - o circo tinha uma reputação merecidamente popular através das províncias, e, com bom tempo, a mercadoria dos stands era
em geral totalmente vendida. Esta noite, fila após fila de rostos expectantes e rosados se ergueram da serragem do picadeiro. Subitamente,
na sua alta plataforma, vestido de vermelho e dourado, quando a charanga atacava uma grande marcha, o mestre do picadeiro, o próprio Peroz, apareceu de cartola,
alamares brancos e capa escarlate, dirigindo um cortejo de póneis que entraram na arena a meio-galope, atirando as crinas para os lados, e o espetáculo começou.
Embora, a esse tempo, conhecesse os números de cor, acocorado junto à grade do corredor da entrada dos artistas, com um bloco de esboços no joelho, Stephen acompanhava
cada fase, cada movimento do espetáculo com absorvido interesse, notando, vezes e mais vezes, os ritmos da coordenação muscular, o jogo de luzes e tons das cores
no vasto caleidoscópio cintilante, e mesmo as reações individuais, às vezes cómicas e bizarras, das pessoas da plateia.
Era fascinante, aquele novo mundo que ele havia descoberto, com os seus soberbos cavalos de alta escola, montanhosos elefantes e sinuosos leões de olhos amarelos,
seus acrobatas às cambalhotas, jograis prestidigitadores, funâmbulos da corda bamba sob os seus pára-sóis de papel. Observando, Stephen pensava na famosa peça de
circo de Manet, Lola no Arame, e na sua atual disposição melhorada sentia que podia desenhar aquele campo com igual riqueza. Desenho, sem dúvida, haveria, mas acima
de tudo a cor seria o instrumento da sua expressão. Via na sua paleta as cores puras, os ultramarinos, ocres e vermelhões, via como podia humanizá-lo sem reduzir
a sua intensidade. Criaria um novo mundo, um mundo que só ele percebia, um mundo somente para ele. Curvado no seu canto, desenhava e desenhava. Este era o seu verdadeiro
trabalho; os retratos que pintava de dia não eram mais que um meio de vida, e na pasta em sua caixa fechada já tinha dezenas de estudos que usaria numa formidável
composição.
Após o intervalo, davam entrada os artistas mais importantes - a troupe Dorando, de trapezistas; Chico, o engolidor de espadas; Max e Montz, os palhaços famosos.
A seguir, um soalho de madeira era rapidamente montado no centro do picadeiro e ouvia-se a fanfarra que conhecia tão bem, e que sempre fazia o seu coração bater.
Então, embaixo, via Emmy pedalando, usando uma blusa de cetim branco, calções brancos e compridas botas brancas. Ao chegar ao assoalhado, começava a executar, à
luz da bicicleta niquelada, uma série de evoluções que deixavam o espectador tonto, circulando e recuando e avançando, sempre no pequeno espaço, mudando de posição,
até que dirigia de cabeça para baixo segura no guidom, finalmente desmontando em movimento e fazendo complexas configurações numa roda só.
Talvez essas manobras fossem menos difíceis do que pareciam, mas o culto da bicicleta, uma paixão nacional que anualmente chegava ao auge nas agitadas semanas devotadas
ao Tour de France, tornava-a popular junto ao público. Uma tempestade de aplausos reboava embaixo da grande cúpula, seguida por um silêncio enquanto Emmy caminhava
para uma curiosa estrutura na
extremidade do picadeiro. Era um elevado escorregador, uma estreita fita de metal pintada de vermelho, branco e azul, que descia que descia quase verticalmente do
teto da tenda e terminava numa curva que subia bruscamente.
Alterando o seu ritmo, a banda exagerava a expectativa, enquanto Emmy, subindo lentamente por uma escada de corda, alcançava a minúscula plataforma do topo. Lá,
entrevista nas últimas espirais de fumaça, ela desenganchava uma bicicleta mais pesada das travas que a sustinham e segurava-a, testava o quadro, espichava os membros,
passava giz nas mãos, montava na máquina sobre a plataforma e, por um longo momento, parecia estar suspensa, quase flutuando na névoa de vapor. Os metais, que tinham
gradativamente diminuído para um profético murmúrio, vinham agora novamente à vida, apoiados por um estaccato de tambores que rufavam e reverberavam cada vez mais
alto. Era o instante que fazia Stephen desejar fechar os olhos. Jo-jo lhe dissera que, havendo perícia e coragem, o perigo era limitado; a estria branca do centro,
na qual as rodas deviam andar precisamente, tinha menos de 15 centímetros de largura, e depois da chuva, ou quando a umidade era grande, a superfície escorregadia,
apesar de enxugada, era traiçoeira. Contudo, não havia tempo para pensar - numa tempestade final de som, Emmy soltou-se, caiu parecendo uma pluma, projetou-se para
cima na curva e pousou na plataforma de madeira com uma velocidade que a carregava para fora da tenda como um raio.
No meio dos aplausos, embora não pudesse sair, Stephen escapou e rodeou para a barraca onde os artistas se vestiam. Teve que esperar 15 minutos até que ela saísse,
e imediatamente sentiu que ela não estava de humor muito amável.
- Então? - perguntou ela.
- Você esteve ótima... notável - afirmou ele.
- A pista estava molhada - um orvalho pesado - e esses fripons preguiçosos não enxugaram nem a metade. Então não sabem que é suicídio deslizar numa pista úmida?
Eu quase não desci. - Em várias ocasiões, por causa disso, tinha cancelado o número - de fato, tinha um acordo com Peroz que lhe permitia tomar essa resolução. Mas
a queixa deixou-lhe a voz. - Mas esta noite eu queria mesmo.
- Por quê?
Ela não pareceu ouvi-lo. Então, indiferente, respondeu:
- Por causa daqueles militares.
- Soldados?
- Não, estúpido, oficiais, naturalmente. Havia aqui uma escola de cadetes do primeiro ano. Não viu o grupo na frente da tribune?
- Acho que não.
- Uma turma elegante, isso era, nas suas túnicas. Eu gosto de uniforme.
E eles estavam querendo que eu os visse. Não que eu notasse, naturalmente. - A sua expressão amuada afastou-se um pouco. - Eu fiz um extra para eles.
Ele mordeu o lábio, procurando abafar o ciúme que ela tinha tanta capacidade de despertar nele. Após o calor sufocante da tenda, o ar era leve e fresco.
- Vamos caminhar até os muros da cidade... lá é muito bonito.
- Não. Não estou com disposição.
- Mas está uma noite tão linda. Olhe, a lua acaba de sair.
- E eu vou entrar.
- Não vi você o dia todo.
Nenhum músculo do seu rosto Se moveu.
- Já me viu agora.
- Apenas um momento. Venha.
- Já não lhe disse que fico cansada depois do meu número? A tensão é muito violenta. Pra você, tudo muito bem, vendendo programas e nugá lá embaixo.
Ele viu que era inútil insistir mais. Escondeu estoicamente o seu desapontamento. Chegaram ao caminhão que ela partilhava com Madame Armande, a mulher que cuidava
do vestuário da troupe. Ele tinha pensado nela o dia inteiro, sentia-se faminto por sua companhia, por um sinal da sua afeição. E ela estava ali, a sua figura ao
luar, rija, sedutora; queria agarrá-la e beijar à força o seu rosto pálido e indiferente, a sua boca ligeiramente entreaberta. Mas não fez nada disso, limitando-Se
a dizer:
- Não se esqueça de amanhã. Venho buscá-la às 10.
Viu-a subir as escadas a correr e desaparecer no caminhão.
Ao voltar, a função tinha terminado e a multidão se despejava pela saída da grande tenda, falando, gesticulando, rindo. Todos pareciam felizes, satisfeitos com a
vida e consigo próprios, ao voltarem aos seus lugares comuns e confortáveis. Stephen perdeu aquela sua primeira disposição alegre. Inquieto e perturbado, não podia
voltar ao seu canto, enfrentar as caçoadas de Jo-jo e os roncos de Baptiste. Saiu para as muralhas sozinho.


CAPÍTULO VIII

NA MANHÃ SEGUINTE, trazida por uma alvorada mansa e cinzenta, ela o surpreendeu e alegrou por sua pontualidade. Estava quase pronta quando ele chegou,
e pouco depois estavam nos seus vélos, rumando para o Loire, no belo contorno de Angeres, com as suas muralhas romanas, a Catedral de St. Maurice com suas agulhas
e as arcarias da préfecture atrás deles. Como sempre, ela imprimia um ritmo muito veloz, curvada sobre o guidom, as pernas movimentando-se como pistons, com o firme
propósito de deixá-lo para trás. A bicicleta dele, comprada barato com o seu primeiro pagamento semanal, era um modelo antigo; contudo, o ar fresco e a comida do
campo tinham-no robustecido. Embora lhe custasse um esforço contínuo ladeira acima, mantinha o seu lugar pouco atrás do ombro dela.
Atravessaram, dali a pouco, um arvoredo à esquerda e imediatamente se descortinou todo o esplendor do vale - o rio grande e largo brilhando na luz plácida, movendo-se
preguiçoso entre as ribanceiras e sobre baixios de areia dourada, passando por altos tufos de vimeiros, barcos de fundo chato atracados e ilhotas verdes. Na estrada
serpenteante, pesada pela areia, diminuíram a velocidade. Por trás de uma cortina de faias, Stephen avistou as torres pontudas e a fachada musguenta de um antigo
castelo. A beleza da região era inebriante para o seu espírito. Soerguido, olhou para a sua companheira, fez como se fosse falar, mas, depois, sabiamente, absteve-se.
Por volta do meio-dia, chegaram a um staminet à beira do rio, onde, acima da porta, um peixe monstruoso, enredado em algas, nadava numa caixa de vidro. Primeiro,
Stephen tinha proposto um piquenique, mas isso tinha pouca atração para Emmy, que sempre preferia parar em algum café provavelmente freqüentado pela confraria esportiva,
onde, numa atmosfera de camaradagem, havia livre companheirismo, vivas conversas em gíria e a música de um acordeom. A estalagem, todavia, embora possuísse um considerável
encanto, estava vazia de clientes - um fato que não desagradou Stephen, que sofria com a admiração demasiado franca que a sua companheira gostava de provocar. Atravessaram
o soalho de pedra limpo com areia, sentaram-se à mesa esfregada com escova e sabão junto a uma janela, da qual pendia um banco, e, após consultarem a proprietária,
escolheram um prato de peixe local que ela recomendara muito. Este chegou pouco depois, numa enorme travessa de madeira, um fritto de minúsculas espadilhas do Loire,
cada uma não maior do que um filhote de arenque, cozidas tão secas que se quebravam ao toque do garfo. Com eles vieram pommes frites e uma jarra de Bière Navarin,
preferida por Emmy.
- Isto é bom - disse Stephen, olhando por cima da mesa.
- Não é mau.
- Gostaria de pedir uma garrafa de vinho para mim - disse ele em tom de pedido.
- Eu gosto desta cerveja. Faz-me lembrar de Paris.
- Num dia como este?
- Em qualquer dia Paris me basta.
- Ainda assim... você não se importa de estar aqui não é?
- Podia ser pior.
Emmy não era afeita a superlativos, mas neste momento estava de excelente humor, e dali a pouco pôs-se a rir.
- Você não adivinha o que eu recebi esta manhã. Flores. Rosas. E um billet-doux de um dos oficiais.
- Ah, sim? - A sua expressão tornou-se ligeiramente rígida.
- Aqui está. Monograma gravado e tudo. Com outra risada, apalpou o bolso e tirou um bilhete cor-de-rosa amarrotado. - Dê uma olhada.
Ele não tinha vontade de ler o bilhete, mas também não queria ofendê-la. Passou rapidamente os olhos, notando o duplo sentido das frases polidas que a convidavam
a ir tomar um aperitivo na Terrasse e depois jantar no Le Vert d'Eau. Devolveu-o sem comentário.
- Ele é capitão, parece. Acho que o vi no grupo de ontem à noite. Alto e bonito, de bigode.
- Você vai? - perguntou ele, mascarando os seus sentimentos com um tom inexpressivo.
A fria ironia da sua maneira atravessou a sua auto-estima. Ela raramente corava, agora uma leve cor apareceu por baixo da sua pele branco-azulada.
- Quem é que você pensa que eu sou? Conheço essas guarnições da cidade e o que se pode arranjar com elas. Pra mim não, obrigada.
Stephen ficou silencioso. Embora se desprezasse por isso, e em vão tentasse combatê-lo, de tempos em tempos o ciúme lhe vinha num impulso dominador. A simples ideia
de que ela pudesse sair sozinha com aquele oficial desconhecido causava-lhe um sofrimento penoso. Contudo, ela declarara categoricamente que iria ignorar o convite;
assim, obrigando-se a ser razoável, forçou um sorriso conciliatório.
- Vamos descer até o rio. - Quando brigavam, era sempre ele quem procurava fazer as pazes.
Pagou a conta, e desceram à beira da água. O sol, geralmente quente para aquela época do ano, tinha esmaecido e, lançando reflexos da água que faziam fechar os olhos,
envolveu-os num banho de luz. Ele amava o sol - sol e água eram os deuses gémeos que poderia adorar. E enquanto ela acendia um Caporal e, com os olhos fechados,
relaxava numa postura cómoda na sombra de um salgueiro, ele sentou-se na claridade aberta e começou a desenhá-la. Já tinha feito dezenas de desenhos, nos quais se
refletia não apenas a intensidade do seu sentimento por ela, mas também a complexa interação de angústia, desejo e, por vezes, quase ódio que o compunha.
Não estava cego àquela forma de egoísmo, crueldade e vaidade, que em outra pessoa teria provocado o seu desprezo. Sabia que ela apenas o tolerava
- talvez porque a sua mentalidade gaulesa se detivesse nas possibilidades da grande proprieté, mas principalmente, e disso tinha certeza, porque o seu evidente desejo
a lisonjeava, dava-lhe uma sensação de poder apreciada por sua natureza. Ela lhe trazia mais sofrimento que felicidade. Contudo, nada podia fazer. Desejava-a com
uma necessidade física que, não sendo por ela satisfeita, aumentava de dia para dia.
Dali a pouco, erguendo os olhos do bloco, viu que ela estava dormindo. Deixou escapar, involuntariamente, um suspiro nervoso e irritante. Soltando o seu bloco e
creions, aproximou-se mais da margem, e então, num impulso, tirou a roupa e mergulhou no rio. Sabia, pelas excursões anteriores, que ela não gostava daquilo - tinha
uma aversão felina pela água fria - mas para ele o choque daquelas águas vindas de fontes era uma revigorante delícia.
Quando voltou, ela estava em pé, sacudindo o capim do cabelo cheio e curto.
- Você sabe deixar os outros sozinhos.
- Pensei que estivesse dormindo.
- Que horas são?
- Ainda é cedo - disse ele, aproximando-se e enlaçando-a pela cintura.
- Ainda temos mais uma hora.
- Oh, deixe-me! - Inclinou-se para trás e empurrou-lhe o peito com as mãos. - Você está molhado.
- Mas Emmy...
- Não, não. Não devemos chegar atrasados. Você não vai querer perder o seu emprego. É tão agradável e conveniente para você, não é?
- Sim, claro - respondeu ele com voz tensa. Ela já estava voltando para a estalagem e Stephen a acompanhou.
Aquele raro interesse pelo seu bem-estar intrigava-o. E não se dissipou pela sua disposição animada, quando voltavam a Augers. Em voz alta, ela ia cantando trechos
da última canção do teatro de variedades:
Les jolis soirs dans les jardins de l'Alhambra Ou donc sont les belles?
Que l'amour appelle?...
Et le rendez-vous, de l'amour très fou.
E seguindo seu hábito quando estava alegre, deixava os habitantes locais de boca aberta, com uma exibição de ciclismo difícil ao passarem rapidamente pelas aldeias
ribeiras.
Ainda não eram três horas quando chegaram ao circo, e poucas pessoas estavam diante dele. Stephen trocou de roupa e armou o seu cavalete. Trabalhou toda a tarde,
de um modo ausente, sorumbático, com as linhas da testa
cada vez mais fundas. Embora lutasse contra a ideia de que ela abreviara a excursão a fim de ir ao encontro na Terrasse, essa ideia só fazia aumentar. O crepúsculo
não lhe trouxe nenhum alívio, e durante o jantar mal trocou uma palavra com Jo-jo e Croc.
Por fim, levantou-se bruscamente e foi para o outro lado do campo, onde estava o caminhão de Emmy. Madame Armande estava sentada nos degraus, com um balde entre
os joelhos gordos, lavando meias. Em certa época, ela fizera parte de um número de trapézio, mas quebrara o quadril numa queda e desde então caminhava coxeando.
Agora, aos 50 anos, pesada e sem formas, de pernas hidrópicas e papada, era conhecida como a mexeriqueira da companhia Jo-jo, que cuspia ao ouvir o nome dela, dizia
que durante o recesso de inverno ela gerenciava um estabelecimento de reputação duvidosa no porto do Havre.
- Boa noite - disse Stephen, tentando manter a voz calma. - Emmy está?
Madame Armande mediu-o de esguelha com os seus olhos miudinhos.
- Mas Abbé, você sabe muito bem que ela não vê ninguém antes do espetáculo.
- É só um instante.
Ela abanou a cabeça encaixada num lenço estampado com bolinhas.
- Eu não me atrevo a perturbá-la.
- Então... - Hesitou, ansioso por acreditar nela. - Está descansando?
- A mulher levantou os braços.
- E que mais? Nom de Dieu, acha que sou mentirosa?
A sua indignação era real ou fingida? Ele queria entrar no caminhão, mas a mulher e o balde bloqueavam a entrada. Não devia tornar-se completamente ridículo. Forçou-se
a fazer algumas observações convencionais, e voltou para a escuridão.
O povo chegava aos bandos, a função começava, risadas estrepitosas e aplausos enchiam a grande tenda. Ela estava atrasada. Seria por simples coincidência? Não podia
ter certeza. Procurou tranquilizar-se. Quando ela finalmente apareceu, a impressão, conforme sua fantasia superexcitada, foi de que estava mais aparatosa, mais espetacularmente
viva do que o usual. Gritos prolongados de "bravo!" vinham da tribune quando ela deixou o picadeiro.
Depois disso, na confusão de arrancar as estacas, não pôde vê-la. Melancolicamente, juntou-se a Jo-jo e Croc na tarefa de desmontar os stands. Trabalhando sem atenção,
cortou a mão num gancho de ferro. Não se importou. Um vento frio começava a fustigar o campo. O gerador foi desligado, as luzes elétricas se apagaram. Em toda a
volta, à luz de fogachos vermelhos, entre gritos e imprecações, homens trabalhavam como demónios, desencravando pontaletes, puxando cordas, lutando com grandes abas
de lona. Como sempre
acontecia na primeira hora de movimentação, os animais estavam nervosos, soltando em todos os tons, nas suas jaulas móveis, sinistros uivos de protesto. Os engenhos
de tração, pulsando e roncando, com os volantes girando, aumentavam o tumulto. Para Stephen, parecia que a cena vinha diretamente das gravuras do Inferno de Doré,
e que ele também estava sofrendo as torturas das almas danadas.


CAPÍTULO IX

DE ANGERS, O Circo PEROZ deslocou-se para Tours, depois para Blois, e então para Bourges e Nevers. O tempo se mantinha bom, o negócio prosperava, o velho Peroz usava
o seu chapéu num ângulo elegante. Após uma estada de três dias em Dijon, viraram para o sul e chegaram a Côte d'Or, detendo-se uma noite nas velhas cidades muradas,
com portões de acesso estendidas entre vinhedos, ao longo do vale do Ouche.
A princípio, Stephen era olhado com reserva pela companhia. Mas como a "retirada" semanal dos seus retratos era satisfatória, e uma percentagem fixa dessa soma ia
para o tronc, do qual todos os artistas participavam quando era distribuído em Nice, ele começou a ganhar importância. Além disso, as suas maneiras agradáveis e
disposição tranquila logo o puseram em termos amistosos com a maioria da troupe.
Formavam um painel humano. Fernand, o domador de leões que passeava destemido na jaula circular de ferro das feras, como um hussardo no seu uniforme azul e prateado,
com uma manga dramaticamente rasgada em pedaços, era o mais tímido dos homens, sofrendo agudamente de dispepsia nervosa e sendo mimado com uma dieta de leite por
sua devotada esposa. Os próprios leões eram inofensivos como vacas, na maior parte muito velhos, os machos castrados rugiam somente porque queriam o seu jantar,
e todo o aparato de cercar a jaula de auxiliares com ferros em brasa era pura encenação.
"Não tivemos um acidente em 20 anos", observava complacentemente Peroz no boletim que antecipava ao jornal local da próxima cidade do circuito.
ESCAPOU POR UM TRIZ NO CIRCO PEROZ
LEOA ATACADA DE LOUCURA
Fernand gravemente machucado
Max e Montz, ambos anões, eram os dois palhaços principais, um par internacionalmente famoso, cujo número maior era chamado "O Rapto", um esquete no qual Max, ataviado
em rendas grotescamente fora de moda, desempenhava o papel de noiva velhota. A rotina, executada num antigo automóvel Panhard que enguiçava e se recusava a funcionar,
caindo finalmente aos pedaços, era ruidosamente cómica. Max, com o seu beicinho de criança, fazia a platéia morrer de rir. Contudo, fora do picadeiro mostrava uma
melancolia mais profunda que a de Hamlet, tendo confiado a Stephen que a paixão de toda a sua vida era o violino.
Com tais incoerências diante de si, Stephen ficou menos surpreso ao descobrir que o equilibrista japonês era um adepto da Ciência Cristã, que Nina D'Amora, que cavalgava
em pêlo, era alérgica a cavalos e em consequência sofria cronicamente de asma, ao passo que Philippe, que todas as noites corria riscos espetaculares no trapézio
alto, passava a maior parte do seu tempo de folga tricotando meias.
Por formar um grupo com Jo-jo e Croc, Stephen via-os mais do que aos outros. Jean Baptiste, por baixo da sua aparente apatia, era um homem sensível e inteligente
- Stephen fez dele vários esboços notáveis, em pé na sua plataforma, diante da multidão boquiaberta. Fora bem educado no lycée de Rouen, e chegara a assumir uma
posição com boas perspectivas numa excelente firma, La Nationale. Então lhe viera aquela afecção incurável, transformando-o gradualmente de um ser normal em um monstro
medonho - um irremediável desenvolvimento - e levando-o ao desespero final de um show secundário no Circo Peroz.
Mas era a Jo-jo que Stephen dispensava uma particular atenção. O ex-jóquei era um rematado patife que roubava em qualquer oportunidade, trapaceava pelo interior
e embebedava-se até cair e ficar no chão estuporado, "curando" a bebedeira. Contudo, na sua duplicidade havia uma qualidade curiosamente humana de que se gabava:
jamais em sua vida ter deixado um amigo sem ajuda. Às vezes, de noite, depois de ter visto Emmy, quando vinha ao camion adaptado onde ele e os outros dois moravam,
Stephen surpreendia Jo-jo com o olhar peculiarmente fixo nele - menos por simpatia, uma emoção que Jo-jo era incapaz de sentir, do que por uma espécie de cínica
compreensão, levemente tingida de escárnio.
- Saiu com a sua garota?
- Parece, não?
- Divertiram-se?
Stephen não respondia.
Em várias ocasiões, o ex-jóquei parecia querer tratar do assunto, mas em vez disso encolhia os ombros e voltava-se para Jean Baptiste, iniciando com ele uma discussão
que tornava intencionalmente grosseira, como agora:
- Qual é a sua opinião sobre as mulheres, Croc?
- Considero-as com tolerante desprezo.
- Você fala como um marido.
- Sim... já fui casado. Minha esposa agora opera a passage à niveau em Croiset, no Chemin de Fer du Nord. A minha mais cara esperança é que um dia o expresso de
Paris, correndo 90 quilómetros por hora, atinja-a numa parte vulnerável.
- De minha parte, apesar de nunca ter me casado, gosto de mulheres. Mas só para dormir com elas. Para o resto, são piores que uma gonorréia.
- Mas a gente consegue isso dormindo com elas.
- Não com as minhas mulheres. Nunca escolho putas. Somente boas e honestas esposas camponesas que encontro no mercado e estão à procura de alguma ligeira variedade.
- Ah, variedade! Essa é a verdadeira palavra - à qual devo muito do meu último sucesso.
- Você, escamado?!
- Mas certamente. Tenho feito muitas conquistas com meus íntimos através da curiosidade. Mulheres entediadas com o leito matrimonial fazem qualquer coisa por uma
novidade. Li uma vez que um assassino condenado à guilhotina pode escolher dezenas de mulheres.
- Sacré bleu! Embora mereça, você não vai perder essa cabeça feia.
- Não. Mas exerço a mesma atração. Refletindo sobre a força da cauda do crocodilo, as mulheres acreditam que sou dotado de um formidável poder fálico.
- Mas você as decepciona, farceur.
- Isso só aconteceu uma vez, Jo-jo. Era uma gorda, solteirona, sem ligações, que durante meses me seguia na esperança de que os nossos repetidos enlaces produzissem
um jacaré. Infelizmente a criança nasceu normal.
Uma gargalhada profana encheu o caminhão, mas Stephen não participou dela. Sabia que o diálogo era dirigido a ele, não por qualquer intenção maldosa, mas como um
remédio administrado à vítima de uma febre renitente. Contudo, a sua doença já progredira tanto, que parecia incurável, intensificada pelos humores e incoerências
de Emmy. Às vezes ela o tratava bem, sentava-se nos degraus do caminhão, lisonjeada por suas atenções, cheia de sua própria importância, balançando os pés nus ao
sol. E conquanto não fosse pródiga com os seus favores, vez por outra, quando passeavam juntos no escuro, deixava que ele a beijasse antes de se afastar rapidamente.
Em vão ele dizia consigo mesmo que, numa natureza tão carente de profundidade, jamais despertaria uma paixão correspondente. Voltejava em torno dela como um marimbondo
em torno de uma nectarina, mas sem penetrar uma única vez na carne macia do fruto.
Numa tarde chuvosa, quando tinham deixado o agradável distrito do Saône pelo território estéril do Pays de Dombres, foram até uma pequena e dispersa comunidade de
Moulin-les-Drages. O seu destino inicial era St. Etienne, mas o trator principal quebrou na estrada, detendo uma longa fila de carros rebocados, e uma vez que o
conserto demoraria pelo menos 24 horas, era forçoso fazer um alto. Peroz, muito aborrecido por perder uma data importante, resolveu, após considerável debate, oferecer
um espetáculo em Les Drages e assim diminuir um pouco o seu prejuízo.
Mas tendo começado com má sorte, o dia continuou de mal a pior. Cartazes não tinham sido previamente afixados; a cidade, investigada, mostrou ser mesquinha e pobre,
sendo a única indústria uma olaria decadente. E a chuva aumentava continuamente. Quando chegou a noite, não havia mais de 100 pessoas na tenda gotejante.
Honrando a tradição Peroz, a maior parte dos artistas apresentou os seus números em bom estilo, voltando depois para a grande estufa da sala de estar. Emmy, contudo,
foi menos afortunada. Duas vezes, durante as suas evoluções preliminares, as rodas derraparam e ela foi atirada no chão molhado. Como resultado, cortou a parte principal
do seu número e saiu do picadeiro pedalando com a cabeça no ar. A primeira queda provocara risadas na plateia aborrecida; a segunda, uma positiva zombaria, seguida
de uma vaia com miados de gato.
Quando Stephen a viu depois, fora da tenda, ela ainda estava pálida com o vexame. Ele sabia que não devia falar, e por isso saiu com ela pela estrada em direção
ao acampamento, cerca de um quilómetro e meio distante, onde os carros estavam estacionados. Para piorar as coisas, não tinham andado muito quando desabou um forte
aguaceiro, forçando-os a se abrigar num celeiro ao lado de um campo aberto de restolho.
Quando seus olhos se habituaram à escuridão, Stephen olhou em torno, observando que o lugar estava cheio de palha. Rompeu o silêncio.
- Aqui pelo menos está seco. - E acrescentou: - Estou contente porque não apresentou hoje a parte final. Aquela gente não merecia.
- Que quer dizer?
- Bem... - Corou ligeiramente. - Eram gente um tanto antipática.
- Não notei. Eu sempre domino a minha plateia.
- Então por que não desceu?
- Porque a pista estava ensopada. Você não entende que na chuva isso é suicídio? - Num ataque de mau humor, seus olhos cintilaram para ele. Quem é você para ficar
aí me criticando? Sabe lá os riscos que eu corro todas as noites, enquanto você fica sentado lá atrás, rabiscando numa folha de papel, com menos coragem do que um
piolho? Eu desço ou não desço exatamente quando resolvo. E não vou quebrar o pescoço por nenhum padrezinho.
Ele a encarou por um momento, agora tão pálido quanto ela; depois, furioso, agarrou-a subitamente pela cintura.
- Não me fale assim!
- Largue-me.
- Só se me pedir desculpa.
- Fiche-toi le camp.
No próximo instante estavam lutando. Cego de raiva, recordando todos os insultos e desfeitas que ela acumulara nele, resolvido a vencê-la fisicamente, fechando ambos
os braços em torno dela como um lutador, tentou levá-la ao chão. Mas ela lutava como um gato selvagem, torcendo-se e revolvendo-se na palha fofa, malhando-o com
os cotovelos. Ela era mais forte do que ele julgava, com músculos curtos e poderosos de felina agilidade. Começou a respirar pesadamente, sentindo a pressão do seu
corpo contra ele. Retesando cada músculo, ele resistia. Rolaram por aqui e ali, sem decisão, até que ela, encolhendo a perna por trás dele, atirou-o longe com uma
rápida distensão.
- Está vendo? - disse ela. - Que isso lhe sirva de lição.
Ele se levantou devagar. Estava menos escuro do que antes; através da
clarabóia do celeiro, a lua era visível correndo entre as nuvens. Com um esforço, ainda tentando recuperar o fôlego, forçou-se a olhar para ela e viu, com confusa
surpresa, que ela não havia levantado; estava deitada de costas sobre a palha, com o vestido ainda desarranjado pela luta, observando-o através dos olhos apertados
com uma curiosa expressão especulativa, excitada, mas, ainda vagamente zombeteira. No seu rosto, geralmente de uma palidez fria, havia uma orla de cor, nos seus
lábios pálidos um sorriso ligeiramente mau. Por um momento, sustentou o olhar dele; depois, colocando ambos os braços embaixo da cabeça, numa atitude menos de sedução
que de expectativa, fez um movimento impaciente.
- Então, estúpido... que está esperando?
O convite que ele tanto havia procurado era inconfundível, contudo tão descarado, tão despido da menor semelhança de afeição, que ele não podia se mover. Petrificado
e repelido, mirava-a, e, girando, saiu do celeiro sem uma palavra.
- Molenga! - gritou-lhe ela. - Espèce de crétin.
Ele caminhou talvez uns 30 metros antes que o desejo lhe surgisse novamente, mais desesperado do que antes. Pouco se importava, queria-a, e haveria de possuí-la
de qualquer maneira. Virou-se e voltou.
- Emmy... - Estava fraco, encolhido de desejo por ela. Mas agora ela estava fria e dura como uma pedra.
- Vá para o inferno - disse ela outra vez zangada. - Agora espere outra oportunidade.
A expressão dos seus olhos dizia-lhe que era inútil insistir. Novamente
saiu do celeiro. Sem saber aonde ia, caminhava direto para a frente, com os olhos contraídos e os lábios apertados. Naquelas últimas semanas, vitimado por seu desejo
insaciável, reduzido a uma perpétua atitude de propiciação, já tinha sido bem humilhado. Mas agora, ferido em sua sensibilidade, sentia-se no mais baixo nível de
abjeção. Não podia, não devia submeter-se a isso.
Seus pensamentos não tomaram uma forma coerente até chegar de volta ao acampamento do circo. Uma vez que o motor enguiçado não seria reparado antes da manhã seguinte,
nada tinha sido desmontado, e no campo enlameado a grande tenda se erguia deserta e vazia. Alguma coisa buliu dentro dele. A luz brilhando através da abertura do
topo do dossel banhava o picadeiro com uma luz espectral, mostrava a pista inclinada, que não fora desmontada, brilhando de umidade. Um estranho impulso, um senso
de dever para consigo mesmo, lentamente foi tomando forma no seu espírito atormentado. Olhando para cima, viu que o equipamento ainda estava no lugar. Incapaz de
reprimir um arrepio, dirigiu-se para a escada de corda, seus pés deixando pegadas na serragem molhada. Segurou a corda e começou a subir vagarosamente. Momentaneamente
uma vertigem paralisou-o. O vento naquela altura tinha mais força, fazendo a pista oscilar, e o grande toldo, panejando e agitando-se, aumentava a sua impressão
de insegurança. Ele compeliu os seus músculos rígidos ação. Olhando para cima e usando uma mão, desenganchou a bicicleta da trava e, ainda seguro firmemente ao mastro
com o outro braço, alinhou as rodas. Montou trémulo na máquina e forçou-se a olhar para baixo.
O picadeiro, lá embaixo, era impossivelmente pequeno, um distante disco amarelo. A pista na qual ele estava pousado não tinha mais substância que uma simples fita.
Outro violento tremor lhe percorreu o corpo. Continuava seguro, podia voltar atrás. O medo petrificava-o. Lutou com ele. O que quer que acontecesse, tinha que descer.
Respirou fundo, firmou a sua posição na bicicleta, curvou-se para diante. Ao fazer isso, teve a vaga consciência de um grito, de uma figura encurtada e escura que
acenava lá de baixo. Se pretendia avisar, era demasiado tarde. Focando o olhar na lista branca central, com um supremo esforço da vontade, soltou a mão que o segurava.
Veio uma fração de segundo de voo, uma descida incrível, um empuxão para cima que o catapultou para o ar, e no mesmo instante, com um salto ruidoso, estava embaixo,
atirado com tremenda velocidade para fora do campo, estatelado na lama mole da vala que o margeava.
Por um momento lá ficou, imóvel, surpreso por estar vivo. Até que ouviu alguém correr para ele.
- Nom de Dieu... Está querendo se matar? - Era Jo-jo, desta vez em considerável estado de agitação.
- Não - disse Stephen, levantando-se tonto. - Mas acho que vou ficar enjoado.
- Seu filho da puta maluco. Que bicho lhe mordeu?
- Precisava de um pouco de exercício.
- Você está louco. Quando vi você lá em cima, pensei que estava liquidado.
- E que diferença isso teria feito?
Jo-jo encarou-o.
- Pelo amor de Deus, venha tomar um drinque.
- Muito bem - disse Stephen, e acrescentou: - Não comente isso com ninguém.
Foram até o café da aldeia. Depois de um bom copo de Calvados, a mão de Stephen parou de tremer. Lá ficou bebendo com Jo-jo, quase em silêncio, até que o lugar fechou.
O conhaque pesava-lhe na cabeça, fazendo-o sentir-se embotado e entorpecido. Mas na verdade não tinha realizado nada. A dor no coração ainda estava lá.


CAPÍTULO X

DUAS SEMANAS SE PASSARAM. Estavam em Nice. A cidade, iniciada pelos terraços de mimosas de La Burnette, era maior do que Stephen imaginava. A Promenade de Anglais,
a cintilante orla marítima, com os seus canteiros formais e hotéis ostentosos, dava uma desagradável nota pretensiosa. Mas o terreno do circo ficava bem para o interior,
na direção de Cimiez, atrás da Place Carabacel, cercado de ruas estreitas com feiras ao ar livre e pequenas barraquinhas de frutas, verduras e uma profusão de flores,
uma rede de coloridas e ruidosas passagens que tinham o encanto íntimo de Paris acrescido do calor do Sul.
- Nada mau, hein? - disse Jo-jo, expandindo o seu magro peito embaixo do colete rasgado.
- Gosta daqui?
- Muito. E você também vai gostar. - Fez um gesto abrangente. - Há muito interesse para um artista na Carabacel.
Em outro momento teria sido um entretenimento para Stephen explorar aquele bairro. Agora, tenso e inquieto, sentia que não poderia trabalhar. Mas obrigou-se a tal
com o seu bloco Ingres e fez alguns estudos dos nicenses - uma velha de touca branca vendendo alcachofras, um homem do campo
com uma rede de galinhas vivas, trabalhadores tapando um buraco na estrada. Contudo, o seu coração não estava naquilo, e ao calor do meio-dia voltou para o acampamento
a fim de descansar um pouco antes de começar o trabalho na sua barraca.
Na tarde seguinte, diante do seu cavalete na feira, completava o seu último retrato da sessão quando notou que havia um espectador atrás dele, ligeiramente inclinado
sobre uma bengala de rotim. Algo na sua postura despertou-lhe um eco na memória. Voltou-se.
- Chester!
- Como está, meu velho? - Harry rompeu no seu riso contagiante, descalçou uma luva de couro lavável e estendeu-lhe a mão. - Soube que você tinha entrado para o Peroz.
Mas por que diabo está com essa fantasia?
- Faz parte do trabalho.
- Claro, uma maneira de atrair os nativos. Mas não o faz sentir-se com cara de tolo?
- Ora, estou acostumado. Espere, que já estarei com você.
Enquanto Stephen dava rapidamente os toques finais no retrato, Chester tirou uma cigarreira e acendeu um cigarro. Espremido num traje de linho branco, sapatos marrons
e um chapéu panamá, tinha um ar abastado. Calças bem vincadas, camisa de tussor de seda, exibia uma elegante gravata-borboleta. O rosto estava bem queimado.
- Não posso acreditar que você esteja aqui. Embora tivesse dito que ia para Nice. Você parece estar bem.
- Estou em ótima forma, obrigado.
- Suponho que teve alguma sorte nas mesas.
- Para dizer o mínimo, tive. - O sorriso de Chester escureceu. - Eu estava nas últimas e apostei os 50 francos que me restavam no duplo zero. Por quê? Porque sabia
que teria menos que zero se perdesse. Deu o duplo zero. Deixei tudo. Por quê? Só Deus sabe. E deu o duplo zero outra vez. Meu Deus, você nunca viu semelhante pilha
de grandes e lindas fichas quadradas vermelhas em sua vida. Fui apanhá-la. Não pude. Alguma coisa dentro de mim dizia sorte pela terceira vez. Quando a roda girou,
quase morri. O duplo zero deu de novo. E desta vez recolhi tudo rapidamente e fui trocar no guichê do caixa. No dia seguinte mudei-me do prejuízo para Villefranche,
um pequeno apartamento. Desde então estou vivendo como um lorde. - Tomou o braço de Stephen. - Agora fale-me de você. Como vai o trabalho?
- Assim-assim.
- Vamos vê-lo.
Stephen guiou-o até o seu caminhão, apanhou algumas telas e inclinou-as, uma depois da outra, contra a calota da roda, enquanto Harry, com uma expressão profissional,
estudava cada uma a seu turno.
- Bem - declarou ele afinal. - Você pode ter algo aí, mas não compreendi bem o que é. Perspectiva? As suas pinceladas não são muito rudes?
- São intencionalmente rudes... para dar uma impressão de vida.
- Esses cavalos não são particularmente reais.
Harry apontou com a sua bengala para uma composição a têmpera de cavalos correndo como loucos numa tempestade.
- Não estou procurando expressar o óbvio.
- Obviamente não. Contudo... gosto que um cavalo se pareça com um cavalo.
- E quando você vê um homem montado nele, então tem certeza disse Stephen secamente, e empilhou as telas, percebendo que Chester não tinha a menor ideia do que ele
buscava. - Você ainda está pintando?
- Oh, naturalmente. Quando tenho tempo. Estou fazendo uma vista geral da Promenade. Às vezes saio com Lambert. Ele e Elise estão aqui. Ele pegou uma viúva americana
rica no Ambassadeurs e está dando expediente inteiro com ela.
Enquanto ele falava, soaram passos, e por trás da lona do caminhão apareceu Emmy. Quando se dirigia para Stephen, recuou de súbito, tendo notado a presença de Chester.
Uma expressão curiosa lhe assomou ao rosto.
- Que é que está fazendo aqui?
- Eu geralmente apareço quando menos se espera.
- Como um cêntimo falso?
- Desta vez como uma bela nota de mil francos - respondeu Chester amavelmente, sem se deixar diminuir. - Sentiu a minha falta?
- A privação foi insuportável.
- Não seja rude com o tio Harry. Você sabe que os seus nervos são fracos. - Consultou o relógio. - Tenho que partir. Devo estar no Negresco às seis. Mas quero que
vocês venham almoçar amanhã no meu apartamento Rue des Lilas, 11-B - ao largo do Boulevard General Leclerc. Os Lamberts também estarão lá. Os dois estão livres?
Ótimo. São apenas uns poucos quilómetros pela Corniche, o bonde passa na minha porta.
Sorrindo e acenando com a bengala, chamou um fiacre no fim do acampamento, saltou nele, reclinou-se no encosto acolchoado e mandou tocar a galope. Emmy acompanhou-o
com olhos ressentidos.
- Voyou metido a sebo. Mandando a gente tomar o bonde enquanto ele vai de carruagem.
- Não devemos invejá-lo. Ele também já teve os seus maus momentos.
- Não acredito que ele tenha acertado um coup. Deve estar vivendo com alguma velha.
- Não mesmo. Chester é o tipo de sujeito com sorte para ganhar uma bolada. Além disso, só se interessa por moças bonitas.
- Um dia ele vai ver o que é bom. - Mostrou os seus dentinhos agudos.
- Sale type. Nunca fui com a cara dele.
- Então você não irá lá amanhã...
- Claro que irei. Não seja tão fou. Faremos com que ele se arrependa da sua pretensão.
Ele a olhou perplexo. Obviamente detestava Chester. Por que, então, aceitar o seu convite? Talvez quisesse ver os Lamberts. Jamais soube o que ela tinha em mente.
No dia seguinte, quando veio ao seu encontro, ela usava um vestidinho amarelo de musselina bordada e uma fita da mesma cor em volta do cabelo cheio e curto. Deu-lhe
um pequeno sorriso com os lábios apertados.
- Podemos pegar um fiacre?
- Isso mesmo. Nada de bonde para nós.
Ela escolheu a mais elegante vitória da fila. Sentou-se confortavelmente.
- Como estou?
- Maravilhosa.
- Eu precisava de um vestido novo. Comprei este hoje de manhã na Galerie Mondial.
- É encantador - disse ele. - E assenta-lhe perfeitamente.
- Gosto de mostrar a essa gente que não sou uma coisa embaixo dos pés deles. Chester especialmente. Ele é muito cheio de si.
- Talvez, mas não é um mau sujeito. Acho-o apenas um pouco mimado. É bonito demais.
- Acha-o atraente?
- Acho que muita mulher tola já tem caído pelos seus belos olhos azuis e cabelos crespos.
Ela lançou-lhe um penetrante olhar de soslaio.
- Pelo menos eu não sou uma delas.
- Não - sorriu Stephen. - Estou um tanto aliviado por você detestá-lo. Rodaram pela Avenue Raspail, um largo logradouro sombreado de catalpas, ao longo do Boulevard
Carnot, e depois pela curva da baía para Beaulieu. O céu estava azul, uma brisa de deliciosa fragrância soprava das colinas. Ele apertou-lhe a mão, feliz - ela se
deixou segurar por um momento. Ultimamente, as atenções que ele tinha para com ela, os pequenos presentes que continuamente lhe dava, as restrições que por um esforço
de vontade impunha a si mesmo pareciam estar causando alguma impressão nela.
- Você está sendo gentil comigo - murmurou ela.
Essa ligeira observação tornou-o ridiculamente feliz. Talvez, por fim, ela pudesse aprender a amá-lo.
Dali a pouco rodavam por Villefranche. O apartamento de Chester, na Rue des Lilas, uma rua em ângulo reto com a avenida, integrava uma série de
suítes que abriam sob um balcão comum em torno de um pátio, atendidas por um pequeno hotel, o Hotel des Lilas. Um pequeno chafariz cercado de cactos gorgolejava
no centro do pátio, e tubos verdes de oleandros floridos decoravam a varanda. O lugar parecia limpo, agradável e discreto - exatamente a espécie de pied-à-terre
que Chester, com a sua inclinação para se tratar bem, acharia sem o menor esforço.
Foram os primeiros a chegar, e Harry recebeu-os efusivamente.
- Bem-vindos ao castelo ancestral. Não é grande, mas tem história.
- Má, sem dúvida - disse Emmy.
Chester riu. Vestia calças de flanela branca e um blazer azul com botões de metal amarelo. Seu farto cabelo castanho, recém-ondulado, tinha uma listra de cor mais
clara na testa.
- Se é isso o que você pensa, não posso deixá-la mentir.
Enquanto ele levou Emmy ao dormitório para deixar a sua echarpe e luvas, Stephen relanceou os olhos em torno da pequena sala de estar. Era mobiliada convencionalmente,
mas nas paredes havia duas aquarelas emolduradas que reconheceu como sendo trabalho de Lambert. Examinou-as de perto - uma era um arranjo de ervilhas-de-cheiro num
vaso Ming, a outra um bando de cegonhas paradas num lago nevoento - e ao olhá-las imaginava como jamais poderia ele ter apreciado semelhante beleza. Belamente executadas,
com uma delicadeza quase feminina, eram contudo vazias e insípidas, despidas de toda vitalidade ou intenção. Podiam ter sido feitas por uma hábil professora de arte
de uma escola superior para moças. Faziam-no avaliar que longa estrada tinha percorrido desde aqueles primeiros dias em Paris. Se a jornada fora áspera, pelo menos
lhe tinha ensinado em que consistia realmente uma obra de arte.
- Boas, não? - Chester tinha voltado com Emmy. - Lambert, num gesto muito decente, me emprestou as duas. O preço está nas costas. Há sempre uma chance de que os
meus visitantes queiram comprá-las.
Trouxe uma garrafa de Dubonnet e serviu três copos, depois passando uma bandeja de camarões frescos.
- Posso tentá-la, mademoiselle Rouquet de la baie.
- Você mesmo os apanhou?
- Claro. Levantei-me antes do desjejum.
Rearranjando o cabelo, ela olhou para ele, mas pela primeira vez com menos animosidade.
- Que grande mentiroso!
Harry riu-se gostosamente.
- Também sou muito bom nisso.
A campainha tocou e os Lamberts entraram. Pareciam pouco mudados, embora Philip estivesse mais gordo, mais lânguido nas suas maneiras. Usava
um terno cinza com um cravo azul na lapela e trazia pendurada no indicador uma caixinha de pâtisserie amarrada com uma fita.
- Trouxe-lhe alguns bolinhos do Henri, Chester. Acompanharão o café. Naturalmente, você está lembrado da minha gulodice, Desmonde. - Espichou-se comodamente no divã
e delicadamente aproximou as suas finas narinas da flor que tinha na lapela. Elise, que vestia o inevitável verde, e cujo sorriso parecia um tanto mais fixo do que
antes, estava conversando com Emmy.
- Agora, conte-me tudo como um bom menino.
Stephen começou um relato a seu respeito, mas antes que fosse muito longe viu que Lambert não estava prestando atenção, e interrompeu-se.
- Você sabe, Desmonde - disse Philip num tom ligeiro e divertido eu desejaria, pelo seu próprio bem, que você não se tivesse metido nessas coisas pesadas. Você não
pode atacar a arte com uma picareta. Por que suar como um britador de pedras? Faça como eu e use um pouco de delicadeza, um pouco de habilidade. Eu nunca trabalhei
demais, e no entanto clientes não me faltam. E eu vendo. Admito que tenho talento, e isso torna as coisas mais fáceis para mim.
Stephen ficou silencioso. Podia muito bem adivinhar a facilidade de Lambert. Mas o anúncio de Chester, dizendo que o almoço estava servido, salvou-o da resposta.
A refeição fornecida pelo hotel lá de baixo era esplêndida, servida por um jovem garçom que, para apresentar uma comida tão quente, devia ter executado estranhas
proezas de agilidade nas escadas. Uma lagosta cozida à moda da terra, seguida de um risotto de frango, e depois um queijo soufflé; antes, Harry, com o toque de um
perito, tinha feito saltar a rolha de uma garrafa de Veuve Cliquot. Quanto mais alegre a mesa, porém, mais Stephen se sentia completamente alheio a ela. Em certa
época tinha apreciado aquela sociedade, mas agora, apesar do enorme esforço para se coadunar com ela, fracassava tristemente. Que lhe tinha acontecido para que se
sentasse ali, mudo, com a consciência mortal de que não mais pertencia a ela? Emmy, bebendo mais champanhe do que devia, exibia tolas personificações de Max e Monx
que faziam Chester, agora mais ruidoso do que nunca, estourar de riso. Lambert, a quem Stephen tinha antes admirado, parecia-lhe agora exatamente como Glyn o via
- um poseur e diletante, um amador fracamente dotado. Perfeitamente amaneirado, bem-educado, garantido por sua pequena renda regular, recusando-se a ser perturbado
ou excitado, flutuava a esmo, nunca se exercendo a sério, tocando de leve o creme da vida. Cultivando mulheres, arranjava clientes que lhe encomendavam retratos
ou que pagavam bons preços por seus leques e aquarelas. Elise, com o seu sorriso fixo e perfil nítido, mostrava sinais dessa existência. Sua aparência começava a
murchar e as rugas a juntar-se embaixo dos seus
olhos verdes e pestanudos; contudo, embora a sua capacidade de lisonjeá-lo já estivesse um tanto gasta, a sua inexaurível devoção fazia dela, cada vez mais, uma
parceira complacente naquele jogo de blefe artístico, cujo mero pensamento levava Stephen a remexer-se mais inquieto na cadeira.
Depois do café e bolinhos, dos quais Philip, desculpando-se com uma delicada alusão literária ao jovem com as bombas de creme de Stevenson, comeu cinco, sentaram-se
na sacada. Continuando a monopolizar a conversação, descreveu, com irónica meticulosidade, as deficiências faciais e sociais da mulher idosa que retratava atualmente.
- De fato - concluiu ele aereamente - não se poderia esperar mais da viúva de um enlatador de carne de porco de Chicago.
- Imagino que o cheque dela foi bom.
- Bem... naturalmente.
Embora tentasse livrar-se da sua apatia, Stephen via o tempo passar com interminável lentidão. Por fim, cerca de três horas, aproveitando um intervalo na conversação,
olhou para Emmy.
- Acho que temos de ir agora.
- Oh, tolice - protestou Chester. - A tarde ainda é jovem. Vocês não podem nos deixar agora, de modo nenhum.
- Se eu não for chegarei tarde no meu emprego.
- Então por que você não fica, Emmy? - sorriu Harry afavelmente. Houve uma pausa. Stephen notou sua hesitação, mas ela logo sacudiu
bruscamente a cabeça.
- Não. Eu vou agora.
Despediram-se, o porteiro lá embaixo conseguiu-lhes um fiacre. Ao dobrarem a esquina, fora da vista do hotel, Stephen inclinou-se para ela.
- Foi bondade da sua parte vir comigo. Gostei disso.
- E eu não gosto de me tornar fácil.
Não era a resposta que ele esperava; no entanto, animado pela recente mostra de sua consideração, chegou-se mais perto, sob a coberta do avental da carruagem, e
procurou-lhe a mão.
- Não - disse ela, empurrando-o irritada. - Não está vendo como me sinto?
E ao voltar-se surpreso, ela, com franqueza vulgar, deu uma desculpa que, se fosse verdade, teria talvez causado a sua prematura partida.


CAPÍTULO XI

APÓS O TUMULTO E EXCITAÇÃO das viagens através das estradas do país, muitos membros do Circo Peroz acharam agradável estabelecer os seus alojamentos de inverno na
Côte d'Azur. Ali era a sua base; muitos tinham relações em Nice, Toulouse e Marselha, e com mais tempo disponível, poderiam visitá-las. Embora o negócio continuasse
firme, o programa tinha sido reduzido para cinco espetáculos por semana, e após a grande noite de domingo, segunda e terça-feira, ficavam livres.
Os amigos de Stephen já haviam Se acomodado à nova rotina. Max reiniciara as suas lições de violino e podia ser visto, todas as tardes, com a caixa preta em forma
de pêra debaixo do braço, partindo no trote miudinho forçado por suas diminutas pernas. Croc, por outro lado, passava a maior parte do seu tempo na Bibliothèque
Nationale, curvado sobre grossos volumes, expondo na volta, a Stephen e Jo-jo, uma nova versão de Schopenhauer, ao passo que Fernand, parecendo gasto e sonhador,
ia todas as manhãs, de braço dado com a esposa, a um homeopata de Cimiez para a irrigação diária prescrita para o seu flux intestinal. Mais prático, Jo-jo tinha
achado uma ocupação subsidiária nas cavalariças do Negresco, onde, a pretexto de lavar as carruagens, passava a maior parte do tempo tagarelando com cocheiros e
motoristas, levando um livrinho sobre as corridas locais e comentando sarcasticamente, com o canto da sua boca de ratoeira, os visitantes que entravam e saíam do
hotel.
Stephen, por sua vez, tinha começado o desenho preliminar para uma pintura na qual pretendia utilizar os estudos individuais feitos na grande tenda, a que pretendia
chamar Grcus. Esse arranjo complexo, um agrupamento de inumeráveis figuras com as suas cores combinadas e contrastantes, era difícil e, desde que ele não tinha estúdio
nem tela suficientemente grandes, propunha-se seguir o precedente dos antigos mestres e construir a sua composição, primeiro que tudo, numa escala menor e menos
rigorosa. A ideia lhe surgiu à medida que progredia, e ele começou a sentir que semelhante material, recolhido em semanas de paciente observação, devia dar um magnífico
resultado.
Desde o dia do almoço no Hotel des Lilas, o barómetro dos humores de Emmy tinha lentamente chegado a "bom tempo". Após esse evento, não tinham
mais visto Chester ou os Lamberts, e parecia que essa ligação estava finalmente rompida.
No fundo do espírito de Stephen, talvez por uma observação de Glyn, sempre havia a ideia de uma afeição entre Chester e Emmy. Era-lhe gratificante o fato de que
Emmy tivesse aceito a brusca interrupção de sua amizade com tão pouco interesse. Ela, como os outros, tinha voltado a sua atenção para Nice. A irmã de Madame Armande,
que morava nos arredores, logo após o subúrbio de St. Roch, tinha uma pequena chapelaria dedicada principalmente à produção e venda de chapéus de palha de carnaval.
Emmy, como muitas moças francesas, tinha talento para os trabalhos de agulha, e todas as tardes tomava modestamente o bonde para ganhar algum dinheirinho na oficina
do Chapeau de Paille. Como resultado, Stephen via-a menos do que o usual. Contudo, experimentava um certo conforto íntimo com esse aspecto inesperadamente sossegado
da sua natureza. Tal atividade, no entanto, devia ser terrivelmente monótona, e ele disse para si mesmo que devia procurar quebrar essa monotonia. No Clarion de
Nice, descobriu que uma companhia lírica, cumprindo um contrato no Casino Municipal, faria uma representação de La Bohême na segunda-feira seguinte. Esse romance
ultrapassado da vida de estudante em Paris talvez a entretivesse, e no seu encontro seguinte ele falou no assunto.
- Você quer ir ao teatro na segunda?
- Teatro? - Pareceu ligeiramente perturbada. - Você não está ocupado com a sua pintura?
- Não de noite, com certeza.
- Bem... se você quiser.
- bom. vou comprar as entradas hoje.
Andou todo o caminho até o Casino e comprou duas cadeiras no grand circle, e então, sabendo o quanto ela gostava de "uma noite fora", reservou uma mesa no restaurante
para a ceia nessa mesma noite. Começou a esperar o evento com aquela antecipação que tão dolorosamente o afetava sempre que pensava em ficar a sós com ela.
Segunda-feira chegou. Quando terminou a sua sessão na barraca, banhou-se com água da bacia no lado de fora do seu alojamento e vestiu o seu terno e uma camisa limpa
que lavara na véspera. Justamente quando se aprontou, ouviu passos atrás dele. Voltou-se e viu uma expressão de pesar nos olhos de Emmy.
- Que houve?
- Não posso ir com você esta noite.
- Não pode?
- A irmã de Madame Armande está de cama, com l agrippe. Tenho que ficar com ela.
- Madame Armande pode fazer isso.
- Sim, mas há pedidos de urgência para atender.
- Talvez...
- Não. Tenho obrigação de ir.
Houve uma longa pausa.
- Bem... suponho que não tenha jeito.
Ficou terrivelmente abatido, mas não se importava em mostrá-lo.
- Você deve convidar alguém. Não desperdice as entradas.
- Ora, para o diabo os bilhetes! Que importam eles?
- Sinto muito. - Deu-lhe um tapinha condoído.
- Outra noite, quem sabe.
Aquele ar de interesse preocupado diminuiu a sua decepção. Todavia, ao vê-la apressar-se, indo em seguida despejar lentamente a água cheia de espuma de sabão da
bacia, a sua tristeza era tão grande, que Jo-jo, que acabava de voltar, descansando com os cotovelos no degrau, tendo testemunhado a recente cena, veio fazer perguntas.
- Como vai a coisa? - Falava sem tirar a palha que tinha entre os dentes.
- Muito bem.
- Você está todo emperequetado.
- Estou vestido, se é isso que quer dizer.
- Aonde ia?
- Ao teatro. Venha comigo. É La Bohême.
- Variedades?
- Não, ópera.
- Ópera? Ah, não. Mas vamos tomar um drinque no Mas Provençal. Atravessaram a praça em direção a um café das proximidades. Era um lugar reles mas agradável, com
compridos bancos e mesas na calçada. No interior obscuro, um piano mecânico estava tocando, e o pessoal se achava sentado em mangas de camisa. Jo-jo acenou para
alguns operários que, a caminho de casa, tinham parado para uma caneca de cerveja.
- Qual é o seu veneno, Abbé?
- Qualquer coisa... Vermute.
- Vermute Quelle blague. Você vai tomar é um conhaque. - Pediu em voz alta um Pernod e um conhaque.
As bebidas foram trazidas por uma raparigona de braços nus, vermelhos, e seios redondos, cheios debaixo da blusa, como cocos.
- Aí está uma garota para você. - com mão prática, Jo-jo filtrou o Pernod através de um torrão de açúcar, e tomou um gole confortante do líquido opalescente. - O
nome é Suzie. E não é poule. Por que não experimenta a sorte? Essas mulheres grandalhonas gostam de homens pequenos.
- Ora, vá pró inferno!
Jo-jo riu brevemente.
- Isso é melhor. O problema com você, Abbé, é que nunca se entrega.
- Que quer dizer?
- Sacré bleu! Você pode se desamarrar um pouco. Então nlo fiquei sabendo que você tem tutano - aquela noite... quando desceu na pista? Voando com todo o seu corpo.
Fique alegre, embebede-se e divirta-se.
- Já tentei isso. Comigo não dá resultado.
- Há um chá dançante todas as noites no Negresco. De muita classe. Pode ser interessante.
Havia uma intenção esquisita na voz de Jo-jo, mas Stephen simplesmente abanou a cabeça.
Jo-jo abriu os braços resignado. E depois disse:
- Que aconteceu com a beleza da bicicleta?
- Teve que ficar com a irmã de Madame Armande.
- Armande tem irmã? Haverá duas cadelas iguais neste mundo infeliz?
- Ela tem uma chapelaria em Lunel, atrás de St. Roch. E está doente.
- Uma obra de caridade - fez Jo-jo, baixando a cabeça. - Uma segunda Mademoiselle Nightingale.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual ele continuou a olhar para Stephen com um satírico aperto nos lábios. Uma vez, pareceu que ia falar, mas em vez disso encolheu
ligeiramente os ombros, pediu novas bebidas com um gesto, e começou a falar sobre as corridas do dia seguinte.
Às sete horas, deixaram o café; Jo-jo foi dar água e comida aos seus árabes, e Stephen ficou só. Sentia-se melhor, aquecido e mais alegre depois de três conhaques,
mas ainda assim tinha pouca disposição para ir sozinho ao Casino. A noite era deliciosamente linda - e seria uma pena gastá-la num teatro abafado. De repente lhe
veio uma ideia, Lunel não ficava muito longe, apenas uma viagem de bonde de 20 cêntimos. Por que não dar um pulo até a oficina de Madame Armande e, mesmo que fosse
obrigado a esperar até que ela terminasse o seu trabalho, voltar com Emmy? Com sorte, poderiam até chegar a tempo para o jantar.
A perspectiva apressou os seus passos e ele atravessou o Boulevard Risso para a Place Pigalle, onde, sem dificuldade, achou um bonde para a zona norte. A viagem
foi lenta, e mais longa do que ele supunha, mas não eram oito horas e ainda havia luz quando ele chegou ao seu destino. Lunel, como cidade, era surpreendentemente
pequena e pouco desenvolvida, o terreno plano quase todo ocupado por hortas, pouco mais que uma coleção de casinhas novas de estuque margeando uma única rua não
calçada. Stephen subiu e desceu duas vezes essa rua sem encontrar o Chapeau de Paille. Na verdade, as poucas lojas que lá havia em nada se pareciam com uma fábrica
de chapéus. Intrigado e confundido, Stephen ficou um momento parado, enquanto rajadas de vento
levantavam poeira em toda parte, e então foi à agência do correio, que, funcionando na mesma casa de uma épicerie, ainda estava aberta. Ali, em resposta às suas
indagações, ficou sabendo que não havia modista, e positivamente nenhuma fábrica de chapéus, em Lunel.
Com uma expressão curiosa na face, sentado no canto de um bonde quase vazio, Stephen voltou para Nice. O veículo sacolejante deixou-o meio tonto. Teria cometido
um engano estúpido por ouvir mal o nome do lugar que ela lhe tinha dito? Não, estava certo de que ela dissera Lunel, não uma, mas diversas vezes. Não o teria despistado,
inventando aquela desculpa à última hora? Isso também era impossível - ela vinha visitando a irmã de Madame Armande diariamente nos últimos 15 dias. Sua expressão,
se havia, tornou-se ainda mais fixa. Estava bem escuro quando chegou a Carabacel. Tudo tranquilo e deserto no acampamento. Teve um impulso de ir ao seu alojamento
e ver se ela tinha regressado, mas o orgulho e uma sensação de cansaço físico o contiveram. Já tinha se tornado suficientemente ridículo sem fazer uma cena àquela
hora. Entrou no seu caminhão, deitou-se no beliche e fechou os olhos. Tiraria tudo a limpo com ela de manhã.


CAPÍTULO XII

No DIA SEGUINTE, embora acordasse cedo, não a viu até as 11 horas, quando ela apareceu nos degraus do vagão de chinelos e um penhoar de algodão azul e branco. Sentou-se
no primeiro degrau, segurando uma xícara de café. Ele foi até ela.
- bom dia... Como deixou a sua doente?
- Oh, bem melhor.
- Chamou o médico?
- Naturalmente.
- Espero que não tenha sido nada sério.
Ela tomou um gole de café.
- Eu lhe disse que era uma gripe.
- Mas isso não é contagioso? - disse solícito. - Você deve se cuidar.
- Eu me cuido.
- Estou falando sério... venta muito em Lunel. E o bonde demora muito a chegar.
Ela olhou para ele em silêncio sobre a beira da xícara.
- Que é que você sabe de Lunel?
- Estive lá ontem à noite.
Ela o olhou desconfiada, e deu uma risada.
- Não brinque comigo. Você foi ao teatro.
- Não, eu fui a Lunel.
- Por quê?
- Pensei que podia comprar um chapéu. Infelizmente, não pude achar nenhuma chapelaria.
- Aonde é que você quer chegar.
- E também não encontrei nenhuma irmã de Madame Armande.
- Quem diabo você pensa que é, metendo o nariz nos assuntos dos outros? Saindo para me espionar. Seu rato sujo.
- Pelo menos não sou mentiroso.
- E quem é que mentiu? Falei a verdade. Se eu quisesse, poderia ter levado você lá. Onde você andou zanzando ontem à noite, não sei. Mas o lugar existe sim. Além
do mais - ajuntou ela com um toque final - a irmã de madame é viúva; o nome dela não é Armande. E agora talvez você vá cantar noutra freguesia e me deixe tomar o
meu café em paz.
Com o coração batendo como um martelo, Stephen olhou para ela com um misto de raiva e desespero. Sentia que ela estava mentindo - quando a ocasião exigia, ela podia
ser escorregadia como uma enguia. Mas a sua própria veemência era suspeita. Contudo, era até possível que falasse a verdade. Queria com toda a sua alma acreditar
nela. Sempre pronto a imputar a falta a si próprio, ponderou que aquele terrível aperto que sentia no coração poderia tê-lo levado a julgá-la mal. O desejo de reconciliação
apoderou-se dele e o enfraqueceu.
- Eu esperava tanto a nossa noite juntos.. . - murmurou ele.
- Isso não é desculpa.
- Seja como for, vamos esquecer isso.
- Só se me pedir desculpas por ter me chamado de mentirosa. Pede?
Ele hesitou, mordendo nervosamente os lábios, de olhos baixos. Seu orgulho impedia-o de aceitar aquela humilhação por parte dela. Mas a necessidade que tinha dela
tornava-o abjeto.
- Está bem... se quiser. Sinto tê-la ofendido - disse ele, extraindo à força as palavras que o faziam sentir-se desprezível.
Passou o resto do dia dilacerado pela indecisão, desejando estar com ela. Serviu-lhe de algum consolo observar que ela não saíra do acampamento. À noite, retirou-se
para o seu alojamento imediatamente depois do espetáculo. Mas sabia que não poderia continuar daquele modo, isso era impossível; de uma maneira ou outra, precisava
certificar-se.
No dia seguinte, após o almoço, quando ela saiu para a Place Pigalle, ele a seguiu. Ao saber de casos semelhantes, sempre desprezara o marido desconfiado ou o amante
ciumento que espionava a mulher que lhe causava suspeitas. Agora não podia evitá-lo. Mas ele não era nenhum especialista no assunto e, no seu esforço para não ser
visto, perdeu a sua presa no terminal da Pigalle. Contudo, vira que ela tinha tomado um bonde na direção do passeio público, e como outro estava no ponto, embarcou
nele. Em 15 minutos estava diante da costa. Procurou Emmy apressadamente em torno, andou até a esplanada e voltou, contornando o Casino, mas não viu nenhum sinal
dela. Então, como estava indeciso, de repente se lembrou do jeito de Jo-jo ao falar no chá dançante do Negresco. Embora a possibilidade parecesse remota, atravessou
a rua, entrou nos jardins do Musée Masséna e olhou por cima das grades de pontas douradas, através da Rue Rivoli, para o terraço coberto do hotel. Ao lado, sob um
toldo estendido do saguão até uma pequena plataforma com mesas de chá, uma orquestra, escondida entre as palmeiras, executava uma marcha que alguns casais dançavam.
A princípio, pensou que ela não estava lá. Então, por trás do biombo da folhagem, outra parelha saiu para a pista. A moça sorria quando, com um gesto prático, estendeu
os braços para o companheiro, que a enlaçou pela cintura. Deslizaram juntos - Chester e Emmy.
Imóvel, com a face estranhamente inexpressiva, Stephen ficou a olhá-los, observando como se moviam graciosamente. Seus passos combinavam perfeitamente. Quando a
música parou, permaneceram de pé, juntos, e quando o bis começou, prosseguiram sozinhos. Tão perfeita era a sua exibição, que os deixaram monopolizar a pista, e
quando afinal foram sentar-se, receberam um murmúrio polido de aplausos.
Stephen arrancou-se dali, caminhou lentamente para o passeio público e sentou-se num banco do qual podia ver a entrada do hotel. A dor no seu coração era quase insuportável.
Apertava os olhos ao pensar em como ela o havia enganado. Como ela e Chester deviam ter rido juntos com a invenção da chapelaria fictícia, e a sua crença inteiramente
falsa de que ela estava modesta, industriosamente trabalhando com a agulha, quando durante todo o tempo tinha estado com Harry. Madame Armande era inquestionavelmente
outra parceira daquela peça burlesca e tinha sem dúvida espalhado a notícia entre os membros da companhia. Certamente Jo-jo sabia que ele estava sendo um grandíssimo
tolo, embora, por pena, nada tivesse dito.
No entanto, tudo isso não era nada diante da angústia e da amarga fome da alma que agora o possuíam. Maior ainda que a sua raiva e mortificação, era aquela frenética
intensificação dos ciúmes e do desejo. Através da mágoa e da humilhação, ainda a queria; através do ódio, ainda tinha necessidade dela. E sentado ali, com a cabeça
entre as mãos, procurara achar desculpas para racionalizar
a conduta de Emmy. Afinal de contas, ela estava apenas dançando com Harry, e isso decerto não era um crime. Conhecem-se muitos parceiros de dança que não sentem
nada um pelo outro e estão unidos por não mais que um prazer puramente impessoal pela arte.
A música continuou a tocar intermitentemente até as seis horas, e quando a pista esvaziou, ele viu os músicos saírem com os seus instrumentos. Seguiu-se um demorado
intervalo. Com toda a certeza, Harry e Emmy tinha ido ao bar - imaginava-os muito juntos nos bancos altos, Harry à vontade e descansando, na maior intimidade com
o barman.
Demoraram tanto a reaparecer que ele começou a temer que tivessem deixado o hotel por outra saída. Mas, por fim, já quase noite, filas de luzes coloridas se acenderam
na frente e eles apareceram, descendo os largos degraus do pórtico, e se dirigindo para o passeio. Falando junto, animadamente, passaram tão perto que ele poderia
tê-los chamado. Mas manteve os lábios apertados, e quando já estavam uns 30 metros adiante, levantou-se, quase automaticamente, e seguiu-os.
Não foram muito longe. A uma pequena distância do Casino, deixaram o passeio público, tomaram a rua lateral do Marche aux Fleurs, na Cidade Velha, e entraram num
pequeno restaurante - a Brasserie Lutétia. Jantar para dois, pensou Stephen sombriamente, e teve um impulso hesitante, doentio, de entrar e sentar-se na mesa deles
- em vez disso, abotoou a gola do paletó e postou-se na sombra de um portal.
Não muitas pessoas entravam na brasserie - era um desses lugares sossegados, onde se podia ter completa intimidade. Uma vez, um garçom saiu à porta, olhou para cima
e para baixo, como se esperasse fregueses, e entrou novamente. Um gato passou de mansinho pela calçada. Do portal, sobre os telhados no fim da rua, Stephen podia
distinguir a massa escura das montanhas e altos pontinhos de luz que talvez fossem estrelas.
Teve que esperar até depois das nove, antes que eles emergissem. Somente a grande premência da sua necessidade de descobrir a verdade ajudou-o a manter-se naquela
triste e degradante vigília. E o momento se aproximava - um tremor o percorreu ao vê-los em pé sob as luzes da marquise. Com certeza, Chester estava para se despedir,
ou então ia levá-la de volta à Place Pigalle.
Estavam agora falando com o garçom, o mesmo que vira sair com eles, e Harry disse alguma coisa que os fez rir. Um fiacre chegou ruidoso, chamado da fila na praça,
lá embaixo, uma gorjeta foi dada, Emmy e Chester entraram. Rapidamente, ao se afastarem, Stephen andou até a praça, saltou noutra carruagem e disse ao cocheiro que
os seguisse.
Rodaram pelo Mercado das Flores deserto, entraram num labirinto de ruas antigas e viraram para a costa; então, com o coração encolhido, Stephen
viu que eles se dirigiam diretamente para Villefranche. Logo estavam lá. No fim da Rue des Lilas, Stephen mandou o cocheiro parar e pagou a corrida. Mais adiante,
na rua tranquila, viu o outro veículo parar. Ambos os seus ocupantes desceram, desaparecendo no pátio. Agora as duas carruagens tinham sumido, e ele ficara só na
rua deserta. Instintivamente olhou para o relógio - o mostrador luminoso indicava 10:30. Lentamente, andou para o Hotel des Lilas e ergueu os olhos para a sacada
do apartamento de Chester. A luz de um quarto estava acesa, e ele o identificou como o dormitório, podendo ver duas figuras se moverem por trás da cortina amarela.
A luz permaneceu por mais alguns minutos, e depois se apagou.
Quanto tempo ficou ali, olhando tristemente para o apartamento escuro, Stephen não poderia dizer. Por fim, deu as costas e afastou-se.


CAPÍTULO XIII

VOLTOU À PLACE CARABACEL antes da meia-noite. Através da dor surda que sentia na testa, sabia que deveria ir embora. Metodicamente, sem perturbar Jo-jo e Croc, ambos
adormecidos, reuniu os seus pertences na mochila. Amarrando as telas juntas, prendeu-as nas costas e, com um último olhar para os seus companheiros, saiu na sua
bicicleta. Dirigiu-se para o norte, pedalando velozmente na estrada plana que levava a St. Agustin, com a vaga intenção de pegar a route nationale que finalmente
o levaria a Auvergne. Sentia necessidade de estar com Peyrat - devia ter feito aquilo semanas antes. Mas sobretudo era premido pelo desejo de escapar, de obliterar
da memória aquelas últimas e intoleráveis semanas.
Quase pela manhã, desmontou, estendeu-se num espaço da charneca à beira da estrada e fechou os olhos. Não pôde dormir, mas, tendo descansado até que o sol despontara,
pôs-se novamente em marcha. E agora via pela sinalização que não estava na grande route, mas numa estrada secundária que corria entre as gargantas rochosas do Var
e subia serpeando para Touet e Colmars. Todavia, não quis desandar caminho. Todo o dia e no seguinte trabalhou nos pedais, mais do que a sua força lhe permitia,
no esforço para esquecer. Em Entrevaux, entrou erradamente numa estrada secundária, mais inclinada, que coleava para as montanhas através de um pinheiral. A pavimentação
era má, o progresso ali era mais difícil, havia um opressivo fragor de água se despejando
à medida que a torrente estrondeava sobre o seu leito de pedregulhos; contudo, o estranho medo de voltar mantinha-o tocando para a frente, comendo às pressas quando
podia, dormindo no chão nu, atrás de montes de feno, em estábulos desertos, com a sua capa dobrada como travesseiro. Uma aversão mórbida a qualquer contato humano
afastava-o das mais humildes estalagens.
O tempo piorara, e entre as colinas era úmido e nevoento. Na manhã de domingo, chegou a Annot, uma cidadezinha agrícola construída num planalto, com um vento frio
soprando dos Alpes. Sabia que era domingo pelo repicar dos sinos da igreja e pelo desfile de habitantes sérios, vestidos de preto, que olhavam para ele com desconfiança.
Doente de fadiga e esgotado como estava, essa hostilidade todavia o atingiu, e embora tivesse uma desesperada necessidade de tomar um café quente e pensasse em se
deter ali, não o fez, baixando a cabeça sobre o guidom e pedalando para fora da cidade. A chuva começou a cair. Ele foi obrigado a descansar. Ao desmontar, quase
caiu da sua máquina. Acocorado debaixo de uma cerca gotejante, comendo os restos de comida fria que tinha comprado na noite anterior, sentia-se inteiramente sem
lar, sem um lugar ou abrigo, irreal e desligado como um fantasma.
A chuva não parou, mas ele continuou, agora mais devagar do que antes e com uma falta de fôlego que o obrigava a desmontar nos aclives mais fortes. Seu nariz começou
a sangrar intermitentemente, e embora atribuísse o fato à altitude e lhe desse pouca atenção, era uma sensação esquisita o sangue a refluir quente sobre a sua garganta.
Cerca do meio-dia, começou a sentir-se extremamente indisposto, e, através do entorpecimento que o oprimia, penetrou-lhe um raio de razão. Nunca chegaria a Auvergne
daquela maneira, era loucura continuar; devia procurar uma estrada de ferro ou algum centro próximo sem demora. Desdobrando o seu mapa em grande escala, e protegendo-se
com a sua capa gotejante, viu que, atalhando para oeste, por Barréme, podia alcançar o entroncamento de Digne, não mais que 35 quilómetros além. Digne talvez não
fosse grande, mas ficava numa planície, o que lhe permitiria escapar destas montanhas impossíveis.
Tomou pelo atalho. Era escabroso, mais difícil do que antes, coberto de um cascalho áspero que fazia os seus pneus saltarem e derraparem. Tinha menos força do que
antes nos aclives, e com o esforço adicional seu nariz recomeçou a sangrar. O céu lá adiante era baixo e encoberto, a chuva aumentava rapidamente, e dali a pouco
um dilúvio desabou sobre ele. Ensopado, na escuridão que descia rapidamente, alarmou-se, acendeu com dificuldade a sua pequena lanterna de carbureto e novamente
consultou o mapa.
Não tinha examinado a folha por mais de um minuto, quando um gemido se lhe escapou. Oh, Deus... que tolo... que idiota cego e insensato. Acompanhando com o dedo,
viu que estava no caminho errado. Lá atrás, em
St. André, a curva devia ter sido para a esquerda, não para a direita. E agora examinou o sinal, route acidentés, fort montée, isolée - encontrava-se num beco sem
saída que levava direto acima, ao Col d'Allos.
Um ataque de nervos, quase de pânico, sacudiu-o. Aproximou mais o mapa. Devia haver alguma espécie de aldeia na vizinhança. Então, com alívio, decifrou o nome de
St. Jérõme. Era aparentemente um povoado, mas por sorte estava cercado por uma Cruz de Lorena vermelha, indicando a presença de uma hospedaria arrolada pelo Touring
Club da França como oferecendo acomodações para ciclistas e onde ao menos poderia achar abrigo para a noite. Se não estava completamente perdido, devia alcançá-la
em uma hora.
Pedalou, curvado, contra o vento. O gosto de sal na sua boca aumentou, e passando o lenço nos lábios sentiu que estavam inchados e flácidos. Suas pernas não mais
lhe pertenciam, um martelo batia na sua cabeça, mas quando sentiu que não podia avançar mais, viu tremeluzir, no socavão adiante, um grupo de luzes.
Ficaram mais próximas: uma grande construção cercada por casas menores tomava formas indistintamente, lá embaixo. Completamente esgotado, deixou a sua bicicleta
rodar e subiu aos tropeções a trilha para a primeira casa
- parecia a choupana de um trabalhador. Suas batidas permaneceram sem resposta por um interminável intervalo, e então a porta foi aberta por uma criancinha que ficou
olhando para ele e depois voltou-se e correu. Ele entrou num corredor, ouvindo vozes numa peça dos fundos da casa. Respirava irregularmente, e embora estivesse ensopado,
morria de sede. Devem receber-me, pensou, vou adoecer... aliás, já estou desgraçadamente doente.
Um trabalhador de camisa azul dirigiu-se para ele, seguido de uma mulher com uma lâmpada Argand e, atrás dela, a criança. Ele viu os seus rostos sobressaltados através
do nevoeiro que passava.
- Sinto muito. - com terrível dificuldade, como se do fundo de um poço, pronunciava as palavras. - Perdi o caminho. Podem me receber?
- Mas monsieur...
- Por favor... posso me sentar?... uma bebida.
Antes que ele pudesse falar outra vez, o homem chegou mais perto, sacudindo excitadamente o braço.
- Não aqui - disse. - O senhor deve continuar.
- Deixe-me ficar. - Novamente o terrível problema da articulação. Não posso continuar.
- Não, não... mais adiante.. . não aqui.
O homem segurou-o pelo ombro e levou-o para fora da casa. Julgando que estava sendo enxotado para a estrada, incapaz de resistir ou sequer protestar, tomado de uma
desesperança final, sentiu uma ardência nos olhos, e então, ao chegarem ao portão, percebeu que o homem não o tinha soltado,
mas o ajudava, amparando-o por um corredor rua abaixo. Na verdade, ao avançarem, ele murmurou algumas palavras de encorajamento:
- Está vendo? Não é longe... estamos quase lá.
No fim, alcançaram a grande construção. Havia árvores de espessa folhagem em ambos os lados. O homem puxou a corda de uma sineta e, após um momento, abriu-se uma
grade na porta tacheada. Seguiu-se uma breve conversação e depois ele foi admitido num pequeno saguão caiado, com um chão de pedra nua e bancos lustrosos junto às
paredes.
À beira do colapso, Stephen olhou em torno, tonto. Tudo estava fora de foco. Todas as linhas do saguão corriam juntas e depois se afastavam, como círculos num lago.
Até o porteiro que o deixara entrar parecia fantasticamente indistinto, vestido num paletó comprido e com capuz que lhe dava um aspecto de mulher. Outro homem, ou
mulher, tinha aparecido. Então, imediatamente, todas as linhas se dissolveram. O trabalhador da choupana, voltando-se para esse recém-chegado, retirou atabalhoadamente
o braço que o amparava. Stephen caiu de rosto para baixo, com o embrulho de telas molhadas ainda amarrado às costas.


CAPÍTULO XIV

O SOL DA MANHÃ, incidindo na única e funda janela à cabeceira da tarimba armada sobre cavaletes, acordou-o. Ele deixou-se ficar passivamente, o olhar percorrendo
os poucos objetos da pequena ermida da qual, durante as últimas três semanas, tinha se tornado íntimo e familiar - a solitária cadeira de assento empalhado, o armário
provençal, o genuflexório de madeira num canto, o crucifixo preto na parede branca. Especulativamente, examinou a sua mão, levantando-a contra a luz, achando os
dedos ainda brancos, mas talvez menos translúcidos do que na véspera. Esse era um teste que ele fazia todas as manhãs. Passos leves, rangendo no corredor coberto
de areia, fizeram que ele, sem querer, movesse o corpo e voltasse a cabeça. Estava olhando para a porta quando ela se abriu e o enfermeiro entrou, trazendo o seu
desjejum numa bandeja.
- Como dormiu?
- Muito bem.
- A nossa cantoria não o perturbou?
- Não, agora já estou acostumado.
- bom - disse Dom Arthaud, depondo a bandeja.
Tirou um termómetro dos recessos do seu hábito branco, sacudiu-o e, com um sorriso, colocou-o entre os lábios de Stephen. - Isto não é mais necessário. Mas como
você vai se levantar hoje, queremos ter certeza.
Era um homem de uns 50 anos, de estatura média, vigoroso, ombros quadrados, com uma cara grande e agradável, ligeiramente azulada em torno do queixo, e inteligente,
de olhos castanhos com óculos, a cabeça raspada e tonsurada; usava sandálias de tiras nos pés nus. Ao cabo de um minuto, retirou o termómetro, leu-o e, com um aceno
tranquilizador, puxou a cadeira com a bandeja para junto da cama.
- Não esqueça o seu remédio.
Depois de tomar, com um canudinho de vidro, o líquido escuro de sabor metálico, Stephen começou o seu desjejum - uma caneca de café au lait, manteiga fresca numa
tigela de barro, pão cortado em fatias e frutas. O café com leite estava quente, cheirando a chicória. Depois de molhar o pão na caneca, Stephen olhou compungido
para o que estava em pé - ele nunca sentava-se na extremidade da cama.
- Por que não come comigo? Aqui há mais do que suficiente para dois.
- De modo nenhum. Fazemos a nossa refeição ao meio-dia.
- Mas... isto está muito gostoso.
O enfermeiro sorriu alegremente.
- Sim... a nossa comida é perfeitamente horrível. Mas estamos habituados a ela. E depois, não estivemos doentes.
Stephen apanhou outra fatia de pão.
- Isso é que eu estava querendo lhe perguntar. Que foi exatamente que eu tive? O senhor nunca disse.
- Você teve uma inflamação dos pulmões... por exposição à intempérie. Além disso, fez um esforço demasiado grande. Como resultado, teve a complicação de uma hemorragia.
Muito grave.
- Pensei que o sangue fosse do nariz.
- Não, era dos pulmões. - Fez uma pausa, olhando por cima dos óculos de aros metálicos. - Já teve algo parecido antes?
Stephen refletiu um momento, depois abanou a cabeça.
- Tive um resfriado há alguns meses. Bronquite, imagino. Mas podia ter sido por causa disso.
O enfermeiro baixou os olhos.
- Eu não poderia responder. Não sou médico.
- Mas o senhor me salvou desta muito bem.
- Com a ajuda de Deus.
- E muita habilidade. Não acredito que o senhor não seja qualificado.
- Estudei medicina em Lions com o Professor Rolland. No último ano, assim como você foi chamado para ser um pintor, recebi o chamado para ser um monge.
- Muito afortunadamente para mim.
Dom Arthaud inclinou a cabeça, e então, quando Stephen terminou, apanhou a bandeja. Na porta, fez uma pausa.
- Não se levante ainda. Esta manhã, o Reverendo Prior vem visitá-lo. Quando ele saiu, Stephen recostou-se, com as mãos cruzadas atrás da cabeça. Ainda se sentia
atrozmente fraco. Contudo, quase já não tinha tosse e nem sentia mais aquela pontada aguda do lado. Como era bom o sol no seu rosto - a atividade da convalescença
começava. Não se preocupava com a sua situação. A persistência do enfermeiro em tirar-lhe a temperatura de manhã e à noite não era palpavelmente mais do que uma
rotina. Na verdade, imaginava, calmamente, se a sua doença, com aquele estranho depauperamento, não teria sido peculiarmente oportuno. Já ouvira falar de sangria
como remédio para a febre. Pelo menos sentia-se curado daquelas dores cruciantes que tão intoleravelmente o atormentavam.
Olhando para trás, admirava-se de que, durante todos aqueles meses, tivesse permanecido naquele estado de tamanha sujeição, aniquilado por uma única palavra, arrastando-se
pelo favor de Emmy. A simples ideia daquilo fazia-o estremecer. Rejubilava-se em ser ele mesmo outra vez, e jurou que jamais se submeteria a semelhante escravidão
- na verdade, foi mais longe, e fez um voto solene de que no futuro nenhuma mulher participaria da sua vida. Somente o seu trabalho o interessaria agora, e a ele
se aplicaria com rigorosa autodisciplina.
Às 11 horas chegou o seu visitante. O Prior, uma figura alta e imponente, na sua vestimenta branca encapuzada, sentou-se tranquilamente na cadeira e estudou Stephen
com grave reflexão.
- Então, afinal vai sair da sua cama, meu filho. Alegro-me.
- E eu estou agradecido - murmurou Stephen. - Foi sorte minha encontrar a sua cruz no meu mapa.
- É verdade que temos uma cruz. Mas não figuramos no mapa - disse o Prior com um leve sorriso. - Aquela marca é para uma hospedaria de ciclistas no vale vizinho.
Você se extraviou no caminho, meu filho. Ou, desde que a Providência o trouxe aqui, poderíamos dizer que o achou?
Uma esquisita inflexão na voz do Prior trouxe uma ligeira cor ao rosto pálido de Stephen. Teria deixado escapar alguma coisa a seu respeito nos primeiros dias da
doença?
- De qualquer maneira - respondeu ele - já era tempo de eu ficar bom. Dei-lhe um grande trabalho. Os senhores devem estar querendo se livrar de mim.
- Ao contrário, você é muito bem-vindo aqui. Sofreu um grande abalo, e Dom Arthaud acha que antes de várias semanas não estará apto para viajar.
- Mas... receio que não possa pagar.
- Nós lhe pedimos o seu dinheiro, meu filho? Aliás, quem o esperaria de um artista que luta? Fique conosco por uns tempos. Sente-se ao sol no jardim. Quando estiver
mais forte, a vida terá um aspecto diferente. Será capaz de enfrentar melhor o mundo.
O Prior pousou delicadamente a mão no braço de Stephen, e então levantou-se e saiu.
Stephen teve que se esforçar para reprimir as lágrimas dos olhos. Levantou-se. Suas roupas, lavadas e cuidadosamente dobradas, estavam no armário, com os seus outros
pertences. O dinheiro, cerca de 30 francos, achava-se numa pilha precisa ao lado do seu relógio, que estava funcionando; ele adivinhou que lhe tinham dado corda
todos os dias. Depois de se vestir, deixou o quarto e andou ao longo de um corredor estranho, lajeado de pedra, que o levou ao jardim, nos fundos.
Não era um recinto grande, umas poucas trilhas em torno de roseiras separadas, que levavam a uma gruta com uma estátua no fundo. Um muro de andebol quebrava o contorno
da cerca em volta. Além, alguns campos. Por suas conversações com Dom Arthaud, Stephen soubera que, graças à doação de uma pequena casa de campo, a comunidade, devotada
à instrução de cerca de 20 noviços, tinha sido recentemente estabelecida e estava crescendo unicamente devido aos esforços dos próprios monges, que haviam construído
com as suas mãos a pequena capela contígua à antiga mansão. Podia vê-la agora, branca e um tanto grosseira, aprumando-se contra o céu lanoso.
Após ter andado pelas trilhas, foi obrigado a descansar num dos bancos que flanqueavam a quadra de andebol. Um velho, com o hábito castanho de irmão leigo, estava
ordenhando uma vaca no pasto. Dali a pouco, começou um ofício na capela, e o cantochão, carregado pela brisa suave, era mais do que ele podia suportar. Levantou-se
e arrastou-se para o seu quarto.
Lá, encontrou uma carta, colocada bem à vista no peitoril da janela. Uma semana antes, sentindo-se terrivelmente só, soerguera-se no travesseiro e garatujara umas
linhas ao morador do nº 15 da Rue Castel, pedindo-lhe que remetesse qualquer correspondência que chegasse para ele àquele endereço. Este era, presumivelmente, o
resultado. Rasgou o envelope. Era de Stillwater, uma breve nota escrita havia dois meses.
CARO STEPHEN
Não sei se esta lhe chegará às mãos. Se chegar, é para informá-lo da morte de Lady Broughton, em outubro. Isso não foi inesperado. Algumas semanas antes, o noivado
de Claire e Geoffrey fora anunciado. Vão casar-se muito em breve. Não há outras notícias de importância para lhe dar, a não ser que papai
continua muito triste com a sua ausência. Suplico-lhe que volte e aceite suas responsabilidades como filho obediente.
Sua, Caroline.
Ainda com a carta na mão, Stephen sentou na cama. Em outros tempos, aquela notícia de casa não o teria afetado tão profundamente. Sabia da doença de Lady Broughton,
e seu amor por Claire nunca tinha sido mais que uma afeição fraternal. Contudo, aqui, neste ambiente estranho e remoto, abatido pela doença, a morte de uma e o próximo
casamento de outra - com Geoffrey, entre todos os homens! - parecia aumentar a sua sensação de exílio, cortá-lo mais fundamente de toda aquela vida agradável que
normalmente ainda seria sua. O tom da carta de Caroline, breve, cheio de calada amargura e implícitas censuras pelo que poderia ter sido, fazia-o mais do que nunca
sentir-se uma criatura à parte, cuja própria natureza o punha em conflito com a família, a pátria e a sociedade.
Com o decorrer das semanas, ele ficava mais forte. A região em torno, coberta de pinheiros baixos, sem beleza e sem qualidade, dava-lhe pouco incentivo para sair
do recinto. Fez amizade com os dois filhos de Pierre, o trabalhador da choupana que o trouxera ao mosteiro, levava-os encarapitados no selim da sua bicicleta. Ajudava
o velho Irmão Ludovic na horta, jogava andebol com os noviços na hora do recreio. Eram um alegre grupo de jovens, recrutados principalmente em boas casas burguesas
em Garonde e nas cidades vizinhas. Talvez por ele ser um estranho, e de uma raça diferente, eles se davam ao trabalho de lhe dedicar pequenas atenções matizadas
de um espírito de proselitismo que, embora o deixasse insensível, comovia-o e divertia-o. Seus corações estavam naquela nova pequena comunidade, e quando não mergulhados
em oração, entregavam-se sem poupar-se ao duro trabalho manual nos seus esforços para melhorá-la.
Um dia, no jogo de andebol, fizeram-lhe uma observação, meio rindo, meio sérios.
- Monsieur Desmonde... Uma vez que o senhor é um artista, por que não pinta um belo quadro para a nossa igreja?
Stephen, com a atenção presa, olhou para o proponente.
- E por que não? - respondeu com um ar sério.
A ideia, que não lhe ocorrera, pareceu-lhe um admirável meio de expressar a sua gratidão, de dar alguma retribuição tangível pela bondade que tinha recebido. Além
disso, a vadiagem forçada começara a pesar-lhe.
Nessa mesma tarde, conversou com seu amigo Dom Arthaud, que recebeu a sugestão calorosamente e prometeu falar com o Prior. A princípio, o Prior hesitou. A capela,
embora reconhecidamente inacabada por dentro,
era o produto de um prolongado e árduo esforço e cara ao seu coração. Seria sensato colocar aquela prezada e duramente ganha possessão nas mãos de um pintor desconhecido,
cujas poucas telas, embora estranhamente compulsivas, não davam indicação de competência ortodoxa? No fim, a fé, que era o sustentáculo da sua existência, moveu-o
a uma decisão. Mandou chamar Stephen.
- Diga-me, meu filho, o que pretende fazer.
- Gostaria de pintar um afresco acima do altar, na parede de fundo da abside.
- Tema religioso?
- Naturalmente. Pensei na Transfiguração. Iluminaria toda a capela.
- Você está certo de que poderia produzir algo que aprovássemos?
- Eu tentaria. Não tenho tintas nem pincéis bastante largos. O senhor teria que arranjá-los para mim. Teria que confiar em mim. Se o fizer, prometo dar o melhor
de mim.
Na manhã seguinte, dois dos padres partiram para Garonde, voltando à tarde com vários pacotes embrulhados em papel pardo. Nesse meio tempo, os noviços tinham armado
um andaime atrás do altar. Cedo, no dia seguinte, com aquele alvoroço que sempre sentia ao começar um novo trabalho, Stephen pegou o seu pincel.
Contudo, o seu estado de espírito era muito insólito. De corpo relaxado, não de todo livre da lassidão da convalescença, parecia banhado de um fofo langor. Suas
emoções ainda eram instáveis, a umidade lhe vinha prontamente aos olhos. O ambiente da capela, a entonação dos monges, a sensação de estar separado do mundo induziam
nele emoções inteiramente alheias à sua natureza. Embora não dispusesse de modelos, o trabalho tomou corpo com uma surpreendente facilidade, para quem estava acostumado
a um esforço sobrehumano nas primeiras horas de criação. Já tinha esboçado a figura central do Senhor, vestido de trajes brancos, radiante com uma nuvem de luz,
e começava a traçar as feições de Moisés e Elias.
Ao progredir com tamanha facilidade, experimentou esquisitos momentos de desconfiança, imaginando-se, em vez de projetar as suas próprias ideias, não estaria reproduzindo
inconscientemente uma compósita de primitivos pintores religiosos. Aplicadas em têmpera, as suas cores, usualmente tão duras, eram macias e lisas, suas formas pareciam
perturbadoramente convencionais. No entanto, contra essas dúvidas, crescia a aprovação da comunidade.
No começo, fora olhado com ansiedade, talvez até com desconfiança. Mas logo isso deu lugar a uma franca admiração. Às vezes, ao voltar-se no andaime para limpar
os pincéis, observava nos olhos de algum noviço que tinha vindo ostensivamente para rezar, mas na verdade para incorrer no pecado da distração, um olhar de perfeito
transe. Aquilo não era suficientemente tranquilizador? E, afinal de contas, ele não se comprometera a agradar?
O afresco, ocupando todo o espaço acima dos retábulos, ficou terminado em três semanas, e quando o andaime foi retirado, toda a comunidade reunida olhava-o com aclamação.
- Meu filho - disse o Prior a Stephen - agora sei que a sua vinda aqui foi providencial. Deu-nos um memento da sua estada que durará muito além da existência de
todos nós. Agora somos nós quem lhe devemos muito. - E continuou: - Amanhã celebraremos a Missa Solene para consagrar a sua obra. Embora não seja membro da nossa
fé, espero que nos agrade com a sua presença.
Na manhã seguinte, o altar estava enfeitado de flores, chamejante de velas. O Superior, em paramentos brancos, assistido por Dom Arthaud, cantou a Missa, enquanto
o coro entoava as respostas. Para Stephen, sentado na galeria, a pintura, brilhando à luz dos círios, tornada mística por uma nuvem de incenso, parecia uma esplêndida
realização. Nunca antes tivera tamanho sucesso.
Um repasto especial foi servido após a cerimónia, com um vinho da região de tal vigor que Stephen deu um passeio à aldeia para clarear a cabeça.
À tarde, quando voltava, Dom Arthaud o recebeu à porta com uma curiosa expressão.
- Há um visitante que deseja vê-lo. Um cavalheiro que diz ter vindo para levá-lo de volta a Paris.
Stephen entrou no seu quarto. Lá, reclinado na cama, usando chapéu e paletó, e soprando furiosamente no seu cachimbo, estava Peyrat. Pulou imediatamente quando Stephen
entrou e beijou-o em ambas as faces.
- Que é que andou fazendo? Não uma, mas uma dúzia de vezes procurei alcançá-lo. Agora, por casualidade, consegui o seu endereço na Rue Chancel. Por que está enterrado
aqui?
- Estive pintando - sorriu Stephen, ainda vibrando com a inesperada presença de Peyrat.
- Sorte ingrata - disse Peyrat, com fingida braveza. - Enquanto eu esperava, me arrastaram para a igreja. Que coisa terrível essa que você fez, cher ami. Oh, que
miserável cópia de del Sarto. Que terrível refundição de Luini. Embora eles gostem e vão se ajoelhar diante daquela pintura durante séculos, é indesculpavelmente
chocante, e para você, especialmente neste momento, uma desgraça.
- Por que neste momento? - perguntou Stephen, um tanto desconcertado.
- Por causa do anúncio feito no mês passado, e que me fez caçá-lo por toda a França.
- Que diabo está querendo dizer?
- Um anúncio - continuou Peyrat imperturbável, rolando as palavras
na língua como se gostasse do seu sabor - que lhe colocava uma medalha no peito, 1.500 francos no bolso e ainda nos permitirá, espero, fazer uma viagem juntos à
Espanha.
Subitamente atirou os braços em torno de Stephen e mais uma vez o abraçou.
- Não se importe com a sua doença, ou aquele medonho Moisés e Elias. A sua Circe ganhou o Prix de Luxembourg.


CONTINUA

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

DOVER, NA CHUVA, era uma triste porta dos fundos para fugir da Inglaterra. Quando o navio de carreira deixou o porto sujo, as ruas enlameadas, os edifícios amarelos
da encosta, os rochedos de um branco encardido, tudo mergulhou igualmente num dilúvio cinzento.
Na terceira classe, o espaço limitado estava abarrotado de passageiros, e Stephen, deixando aquele ar pesado de umidade e ruidosa camaradagem, voltou para o convés
molhado e atravancado de cabos. Ficou solitário na popa, abrigando-se, o melhor que podia, atrás da lona que cobria um guincho, com os olhos na costa amorfa, os
pensamentos tão equilibrados entre a amargura e a tristeza que fixavam nele uma atitude de completa imobilidade.
Dali a pouco foi sentar-se num braço do guincho, indiferente ao balanço do navio, ao vento e aos esguichos que assobiavam junto daquela ligeira proteção; tirou do
bolso o seu bloco de esboços. Era um movimento reflexo, um grito do coração. Contudo, uma vez que o seu lápis começou a andar pelas páginas agitadas na beira pela
ventania, perdeu-se, desenhando, com grande rapidez, fases do mar agitado, ondas estranhas e pressagas, a que ele insuflava uma qualidade de vida, vendo nos seus
contornos rotos, no laço intrincado das suas cristas, selvagens rostos humanos, cabeças atormentadas e torsos retorcidos, figuras de homens e de monstros, de cabelos
escorrendo e membros contraídos, tudo perdido e arrastado pela invencível força do mar.
Foi talvez uma espécie de loucura, uma vertigem, que o deixou amolecido e exausto. Tiritava quando o vapor diminuiu a sua marcha arfante para entrar cautelosamente
nos braços do quebra-mar de Calis, e, consciente do seu rosto gotejante e roupas ensopadas, guardou o bloco no bolso com um ar furtivo. Cabos eram lançados, pranchas
de desembarque empurradas, a douane era rapidamente passada. Mas algum ligeiro acidente na linha tinha atrasado o trem para Paris, que ainda não chegara.
Stephen tiritava novamente, batendo os pés sobre a plataforma a fim de restabelecer a circulação. Embora a chuva fosse menos impiedosa em terra, o vento, enfiando-se
pela curva dos trilhos, parecia mais violento, mais cortante. A maioria dos seus companheiros de viagem estava aproveitando o atraso para um almoço à la carte no
restaurante da estação. Mas, diante de um
futuro de completa incerteza, um exame mais detido do estado das suas finanças absteve-se desse luxo. Tinha, para ser preciso, 5 libras e 6 xelins, tudo que lhe
restava das 10 libras que trazia consigo quando chegara a Stillwater.
Por fim, o trem entrou resfolegando; após várias conferências e muita gesticulação, apitos agudos, jatos de vapor, e as notas melodiosas de uma trompa, a marcha
foi invertida e o vapor esguichou novamente. Para Stephen, encolhido no canto de um compartimento ventoso, foi uma viagem miserável. Tiritava frequentemente, sabia
que tinha apanhado um resfriado, e acusava-se de ter sido um tolo.
Na Gare du Nord hesitou, e então, aceitando o risco, e não sem uma certa recordação melancólica da sua prévia entrada na cidade de coração leve, tomou o metro para
a Rue Gastei. No seu presente estado de espírito ansiava, acima de tudo, pela simplicidade e firme amizade de Peyrat. Mas o novo inquilino do apartamento, incompreensivo
e desconfiado, apareceu na porta, respondendo que não havia cartas nem recados... acreditava que Monsieur Peyrat estaria no Puy de Dome, em Auvergne, até o fim do
ano, e além disso não sabia mais nada.
Os passos seguintes de Stephen levaram-no ao estúdio de Glyn. Estava fechado. Do mesmo modo, o pavilhão dos Lamberts, com as janelas fechadas, foi uma nova decepção.
Stephen voltou para o alojamento de Chester. Embora não tivesse acertado exatamente o montante da dívida, sabia que Harry, com seus repetidos pedidos de empréstimo,
devia-lhe pelo menos umas 30 libras, soma que agora adquiria uma importância muito maior do que antes. Mas também aquele quarto estava fechado, aliás, trancado com
um cadeado. Todavia, ao descer as escadas, foi reconhecido pelo concierge e obteve dele o atual endereço de Chester, enviado num cartão-postal recebido dois dias
antes: Hotel du Lion d'Or, Netiers, Normandia.
Animado, Stephen entrou no primeiro bureau de poste e passou um telegrama, explicando a sua situação e pedindo que Chester lhe mandasse por cheque telegráfico, se
não todo, ao menos parte do dinheiro que lhe devia, aos cuidados de Adolf Bisque na Rue Castel. Quando a moça de blusa de alpaca atrás do guichê terminou, a tinta,
uma soma complicada, um processo que a ocupou durante alguns minutos, Stephen pagou e dirigiu-se para o DuvaPs, onde pediu chocolate quente e um brioche.
Depois dessa ligeira refeição, como a chuva caísse mais forte e as sarjetas transbordassem, ele decidiu encontrar, o mais depressa possível, um alojamento para a
noite. Por causa da sua conveniência, e não na esperança de encontrar conforto, ficou num hotel barato das proximidades, a Pension de
l'Ouest, diante da qual passara tantas vezes a caminho do estúdio de Glyn.
Alcançado por escadas sem passadeira, seu quarto não era mais que um estreito, cubículo, mas era seco, e a cama, embora os lençóis estivessem encardidos,
tinha uma ampla provisão de cobertores estampados de azul - aqueles cobertores grosseiros usados pelos recrutas durante as manobras do Exército e vendidos depois
pelos contratantes do governo. Após alguns tremores iniciais, aqueceu-se e dormiu pesadamente. Na realidade, ao acordar na manhã seguinte sentia-se melhor, embora
não se surpreendesse com a tosse, agora piorando. Tomou café com um pãozinho, outra vez no DuvaTs, às 11 horas, e dirigiu-se para a loja de Monsieur Bisque.
Ali o esperava uma agradável surpresa. O pasteleiro recebeu-o cordialmente, com a sua cara de lua cheia enrugada de sorrisos, e, tendo repreendido Stephen por não
o ter visitado no dia anterior, apresentou com modos de prestidigitador o telegrama de resposta de Chester. Este, embora não trouxesse dinheiro, era de natureza
a animar o seu destinatário.
DELICIADO SEU TELEGRAMA. VENHA PARA CÁ. TEMPO E HOTEL EXCELENTES. BELO LUGAR PARA PINTAR. ABRAÇOS
HARRY
A perspectiva aberta por aquele amistoso convite, a ideia de estar com uma paleta e pincéis, diante de um cavalete, na Normandia, fazia brilhar os olhos de Stephen.
Bisque tinha um guia que, embora de páginas esfarrapadas e um tanto antigas, parecia provar que o rapide Granville, o trem mais ou menos direto, já tinha partido
- às 10 horas, para ser exato, daquela manhã. Stephen decidiu adiar a viagem até o dia seguinte. Passou à tarde na loja de Napoleon Campo, onde, além de receber
o cavalete e equipamento lá depositados, comprou novos tubos de tinta e algumas telas. Pagou a metade, 50 francos, e prometeu mandar o restante quando chegasse a
Netiers.
A manhã seguinte trouxe um límpido céu azul, e Stephen saiu com os seus pertences para a estação de Montparnasse. O rapide na Plataforma 2 não estava muito cheio
e ele conseguiu, sem dificuldade, um compartimento vazio na parte dianteira do vagão. Ao partirem, não podia afirmar que se sentia bem, pois experimentava uma sensação
de abafamento, com uma pontada no lado direito. Apesar disso, depois que o trem furou o seu caminho através dos túneis e cortes murados e escuros que davam saída
da cidade, perdeu a lassidão, olhando a paisagem em desfilada: vastos campos de restolho com poças de água da chuva, flanqueados por longas fileiras de olmos - sentinelas
intermináveis; uma agulha distante, delgada, graciosa; parelhas de grandes cavalos, com corvos assistentes, arrastando o arado; velhas construções rurais, de telhas
ocres, as empenas salpicadas de anúncios - Byrrh, Cinzano, Dubonnet.
Ao meio-dia, comeu uma maçã e uma barra de chocolate. Gradualmente, a configuração do terreno havia se alterado. Lutando contra a sonolência, ele
notou as azinhagas ondulantes e pequenos pomares cercados, um bando de gansos em lenta procissão para um lago lodoso, seguido de uma menina de pernas nuas com uma
vara de aveleira, um renque de salgueiros podados cercemente, e depois uma dama idosa, de coifa branca, tangendo uma vaca pela relva da beira da estrada, parando
de quando em vez para tricotar. Até a natureza da bebida tinha mudado. Attendez, exclamavam os anúncios, buvez le cidre moissoné!
Cerca de três horas, o trem alcançou o topo de um longo aclive e entrou na pequena estação de Netiers. Apressadamente, Stephen reuniu as suas coisas e pulou do alto
estribo. Uma rápida inspeção mostrou que Harry não estava lá para recebê-lo. Raciocinando que Chester podia não ter calculado bem a hora da sua chegada, Stephen
começou a andar para a cidade, que se podia avistar mais abaixo da colina, coisa de um quilómetro. A expectativa, ao se aproximar, aumentava a sua ansiedade - passou
um muro valado com fortificações, entrou nas ruas tortuosas, de paralelepípedos, tão estreitos que as casas de pedra cinzenta, muito inclinadas, pareciam estar acima
da sua cabeça. E então, no centro da praça do mercado, em frente à fachada de terracota desbotada do antigo hotel de ville, discerniu a tabuleta dourada do Lion
d'Or.
A estalagem era maciça, solidamente confortável, de alta classe. Stephen percebeu isso de relance, ao se dirigir para o balcão de recepção situado no vão de uma
escada de carvalho.
- Sim, monsieur!
- Meu nome é Desmonde. Tenha a bondade de dizer ao Sr. Chester que acabo de chegar.
Uma pausa.
- Está perguntando por Monsieur Chester?
- Sim. Ele me espera.
O empregado, um rapaz de ombros altos e cabeça rapada, estudou Stephen por um momento e depois disse:
- Tenha a bondade de aguardar, cavalheiro.
Desapareceu por trás da cortina que fechava o fundo do bureau; então, após um breve intervalo, voltou com um homem mais velho, uma figura sólida, de pescoço grosso,
vestido com a roupa listrada da profissão.
- O senhor está procurando Monsieur Chester Harry? O tom, embora cortês, tinha uma qualidade intimidante.
- Sim, por quê? Sou amigo dele. Ele não está hospedado aqui? Uma pausa gélida.
- Ele estava residindo aqui, monsieur. Até ontem à tarde, quando apresentamos a sua conta. Desde esse momento não vimos mais o seu famoso Monsieur Chester.
Stephen olhou para o proprietário, estupefato. Pois não viera por convite expresso de Harry, gastando o seu último soldo na passagem de trem? E de súbito lhe veio
uma ideia, contundente como um golpe. Chester, mais uma vez em apuros financeiros, convidara-o a vir somente na esperança de pedir-lhe mais uma quantia emprestada.
- Se monsieur é realmente Monsieur Desmonde - o sarcasmo era cortante - eis aqui uma carta que seu amigo lhe deixou.
MEU VELHO,
Eles podem não lhe entregar esta. Se entregarem, saberá que, com muito pesar, fui obrigado, encore, a cair fora. Pensei que podíamos resolver o caso juntos - baseados
no princípio de que duas cabeças pensam melhor do que uma - mas o departamento de contabilidade daqui estava um passo à minha frente. Provavelmente vou filar minha
viagem para o Sul, ficar um tempo em Nice, tentar a sorte nas mesas: De qualquer modo, eu com certeza o verei mais cedo ou mais tarde... Sinto muitíssimo e todas
essas coisas... mas quando o diabo aperta...
Seu,
HARRY
P.S. Nenhuma mulher decente na cidade. Mas não deixe de provar a sidra local. É excelente.
Stephen amarrotou o bilhete, escrito a lápis e às pressas, entre os dedos tensos. Sabia que Chester não merecia confiança, mas agora, por baixo do encanto, da alegria,
da amizade efusiva, sentia o âmago do seu total egoísmo.
O estalajadeiro e seu empregado olhavam para ele por detrás do balcão com manifesto desprezo.
- Naturalmente monsieur compreende que não temos acomodações para o senhor nesta casa.
- Compreendo perfeitamente - disse Stephen, girando nos calcanhares e saindo para a rua.


CAPÍTULO II

ALI, SEM DINHEIRO E SOZINHO, parado na praça do mercado de uma desconhecida cidade francesa, Stephen avaliava inquietamente a sua situação. Nunca antes estivera
sem dinheiro. Sua pensão, como o amanhecer, era algo
que tinha como certo, a consequência natural da sua posição na sociedade, do seu próprio direito de nascimento. Agora, com um amargo esgar nos lábios, percebia como
era poderosa a arma que seu pai tinha usado. No entanto, a sua renitência nata mantinha-lhe o prumo. Saiu imediatamente à procura de algum abrigo.
Isso, numa cidade sempre cheia de turistas, foi menos difícil do que ele temia, e antes do entardecer ele estava instalado num quartinho do alto, no fundo de um
pátio da Rue de la Cathédrale. Ao entregar a bagagem para a senhoria, uma velha digna, que não lhe pediu pagamento adiantado por ser de apenas 12 francos por semana
o aluguel, resolveu que, houvesse o que houvesse, estaria em condições de pagar-lhe antes que se passassem muitas horas. Tinha sabedoria suficiente para reconhecer
que, naquela localidade, não poderia conseguir uma subsistência imediata com sua arte. Sim, a sua educação, o seu curso universitário e grau de bacharel deviam certamente
capacitá-lo para alguma modesta posição na qual pudesse ganhar dinheiro suficiente para se manter em pé. E até mesmo o bastante para pagar a conta de Chester ainda
lhe doía a farpa final lançada pelo proprietário da estalagem - e voltar a Paris, encontrar-se lá com Peyrat, tendo uma boa quantia, antes do inverno. Se ao menos
estivesse menos indisposto! Aquela tosse, que desde a travessia do Canal lhe abalava o peito, era um grande incómodo. Mas um ferrenho desejo de experimentar-se levou-o
novamente ao centro da cidade.
Lá chegando, fez um exame perspectivo do logradouro principal, a Rue de la Republique. As lojas, embora pequenas, tinham, em sua maioria, um aspecto de sólida prosperidade
associado a uma ativa região agrícola. Pás, garfos, foices, baldes de zinco, grades de dentes vermelhos, tudo isso e mais estava exposto nas casas de ferragem; havia
guloseimas também - deliciosos petits fours e almôndegas doces, arranjados como buquês de noiva, enfeitavam a vitrine de uma pâtisserie, ao passo que na leiteria
da esquina se via um monte amarelo de manteiga da Normandia, ladeado por dois jarros de leite cheios até a borda.
Na frente de uma papelaria, viu uma caixa de vidro com alguns anúncios e avisos escritos à mão. Leu-os cuidadosamente e depois afastou-se. Ele não podia afinar pianos
nem remendar cadeiras de palhinha, não precisava da metade de uma vila à beira dos rochedos litorâneos de Granville. Mais abaixo da rua chegou à redação de um jornal
semanal, Courier de Netiers. Lá dentro, o número em circulação podia ser lido. Mas as suas magras colunas, devotadas principalmente às fases da lua, venda de gado
e cal, cobertura de vacas e éguas, horário das marés no Mont St. Michel, nada lhe ofereciam.
E agora? Era evidente que precisava de conselho. Obedecendo a um impulso, entrou na mairie e, escolhendo um funcionário de ar simpático, sondou-o discretamente sobre
as possibilidades de emprego na cidade. O jovem,
embora surpreso com semelhante indagação, mostrou-se inteligente e bem-intencionado. Pensou muito, e depois abanou lentamente a cabeça:
- É muito difícil... numa comunidade pequena como esta, as pessoas - sorriu, em desaprovação, ajeitou os punhos de papel - ... não são amáveis com estrangeiros.
Por mais uma hora, Stephen palmilhou a cidade sem sucesso. Quando caiu a noite, voltou, cansado e desanimado, ao seu alojamento. Revistando os bolsos, contou a soma
dos seus recursos: 1 franco e 50 soldos. À vista daquelas minguadas moedas na palma da sua mão, sentiu uma onda de orgulho. Não podia, não devia render-se.
No dia seguinte, na esperança de achar um trabalho manual, deu uma volta, a pé, pelas granjas das redondezas. Ao todo, devia ter andado uma distância de 20 quilómetros.
E em vão. Não havia escassez de mão-de-obra agrícola. Em vários lugares foi tomado por um vagabundo, e soltaram os cães contra ele. Um camponês caridoso, de garfo
em punho, fazendo a provisão anual de feno, pareceu hesitar, comovido talvez pela intensidade do pedido de Stephen, mas no fim prevaleceu a sólida cabeça normanda:
- Você não é muito forte, mon petit, pequeno... oh, muito pequeno. Mas, espere. - Chamou para a cozinha. - Jeanne, traga alguma coisa de comer para este rapaz.
Uma bonita mulher, de braços nus, vermelhos, saiu da porta dos fundos com o barulho dos seus tamancos. Dali a pouco, tendo examinado Stephen, trouxe-lhe um pedação
de torta de carne e uma caneca de sidra. Enquanto ele comia esse repasto, sentado num banquinho de ordenhar, na varanda, o granjeiro e a mulher, observando juntos,
discutiam em voz baixa, enquanto um meninozinho de guarda-pó preto espiava-o curiosamente por trás das saias da mSe. Stephen estava hirto de vergonha. Oh, meu Deus,
gemia ele consigo, sou exatamente como alguém de uma gravura de Cotman... cheguei realmente a isto! Mas a torta era boa, com um molho forte e gostoso, e a bebida
ácida lhe trouxe um novo ânimo para caminhar de volta a Netiers.
Escurecia quando chegou à Rue de la Cathédrale. E agora, embora mantido o ânimo muito bem durante todo o dia, um terrível abatimento o prostrava. A mortal estranheza
daquele quartinho apertado, cheirando a madeira velha, bolor e cânfora, estalando a cada passo que dava; a sensação de estar tão completamente só, enganado por Chester,
encurralado num futuro sem esperança; a suspeita, também, de que a sua senhoria começava a olhá-lo com dubiedade - tudo isso se acumulava para derrotá-lo. Sem querer,
atirou-se na cama e, voltando o rosto para a parede caiada, chorou como uma criança.
Esse acesso durou pouco, mas infelizmente tinha provocado a tosse. A noite inteira, ela o castigou severamente, desde que, na sua ansiedade para
não perturbar a casa, suprimia os espasmos e assim aumentava a sua frequência. Por fim, perto do amanhecer, com a cabeça embaixo das cobertas, caiu no sono.
Era tarde, quase 11 horas da manhã, quando acordou - primeiro para um breve momento de descansada alegria, depois para a sombria consciência da sua entalada. Levantou-se,
vestiu-se sem fazer a barba, e foi para a cidade. A agitação do espírito comunicava uma curiosa fraqueza às suas pernas. Estava andando sem rumo ou objetivo. Subitamente,
quando começava a atravessar pela segunda vez a praça do mercado, ouviu que alguém corria atrás dele. E então sentiu uma mão no ombro. Terrivelmente sobressaltado,
voltou-se. Era o funcionário da mairie.
- Desculpe-me, monsieur. - O moço interrompeu-se para respirar. Estive olhando o senhor durante toda a minha hora de almoço. Olhe, desde que foi embora andei fazendo
algumas perguntas para o senhor. E Madame Cruchot, que juntamente com o seu marido tem a sua épicerie ali - e apontou para o outro lado da rua - tem duas filhas
pequenas que ela quer que aprendam inglês. É possível que ela se agrade do senhor. Nesse caso, vale a pena tentar.
- Muito obrigado - gaguejou Stephen, emocionado. - Muitíssimo obrigado.
O jovem funcionário sorriu.
- Boa sorte. - Pronunciou as palavras entre os dentes, cuidadosamente, em inglês, e depois, como se satisfeito com sua proeza, apertou-lhe a mão, tirou o chapéu
e ficou observando-o atravessar apressadamente a rua.
A mercearia Cruchot, ocupando uma posição de destaque na praça, com duplas vitrines de vidro plano e uma brilhante tabuleta que dizia ALIMENTATION DE RENNES, dava
toda a indicação de ser um próspero estabelecimento, negociando com um grande e tentador sortimento de alimentos. Um constante fluxo de fregueses entrava e saía
pela porta, estreitada por presuntos pendurados, redes de limões, um cacho de banana e várias cestas de verduras escolhidas. Dentro, as prateleiras estavam cheias
dos generosos produtos da terra e do mar, com salsichas e fígado de ganso, sardinhas e enchovas, toucinho, azeite de oliva, queijo, frutas em conserva, conhaques
antigos também, vinhos e licores, café, especiarias, dobradinhas, pés de porco, e vidros e garrafas dispostos em pirâmides brilhantes no chão coberto de serragem.
Entrando, Stephen estacou menos por seu próprio nervosismo do que pelo barulho e movimento, gritos de pedidos, a movimentação de dois auxiliares de paletó branco:
uma moça normanda de ombros pesados e um homem coxo de olhar aborrecido.
Todavia, em pouco sentiu-se escolhido por uma voz de timbre penetrante.
- Que deseja, m'sieur?
Presidindo de uma mesinha, controlando o lufa-lufa, parecendo a dona pela amplidão do seu busto e ousadia do olho, uma mulher de cabelos amarelos, de uns 38 anos,
com a sua figura curva e bem coberta, pele lisa, orelhas rosadas suportando pesados brincos de ouro. Usava um vestido malva da última moda provinciana - com uma
aplicação de renda no decote - vários anéis e pulseiras, e um broche de camafeu.
- Perdoe-me - falou Stephen em voz baixa, aproximando-se. - Meu nome é Desmonde. Soube que a senhora talvez precise de um tutor inglês para as suas crianças.
A verificação de que ele não era um freguês afastara o sorriso maquinal dos lábios de Madame Cruchot; seus olhos apertaram-se na fria apreciação de alguém que, no
mercado, é capaz de avaliar, por um simples cabelo o peso e a qualidade de um porco cevado. Mas a palavra tutor, que ele por sorte tinha usado, lisonjeou-lhe a vaidade,
que predominava entre as muitas e fortes características que possuía, e que aliás era o verdadeiro motivo por trás da ideia de que as suas filhas deviam aprender
o idioma inglês. Também aquele jovem que tinha diante de si parecia simpático, "refinado" e tímido o bastante para lhe trazer algum problema.
- M'sieur pode me dizer quem é?
Muito francamente, Stephen lhe disse.
- Então m'sieur é estudante da universidade de Oxford. - Um lampejo iluminou o olho azul de porcelana de Madame Cruchot, mas no interesse da barganha foi rapidamente
suprimido. Duvidosa, encolheu os ombros. - Naturalmente, temos apenas a palavra de m'sieur quanto a isso.
- Asseguro-lhe que...
- Oh, la, la... estou disposta a confiar no senhor. Mas, naturalmente, considerando a idade das minhas filhinhas, exijo o mais alto padrão de conduta e moralidade.
- Naturalmente, madame...
- Então, quando... - interrompeu-se, com uma ordem aguda, suas palavras ressoando como uma pequena salva de artilharia: - Não, não, Marie, esses ovos não, estúpida,
já estão encomendados por Madame Oulard... e, Joseph, até quando preciso dizer que tire açúcar do saco aberto? Qual o salário que pede, m'sieur?
Stephen tratou de calcular rapidamente o menor estipêndio capaz de sustentá-lo.
- Digamos, com lições diárias, 30 francos por semana?
Com um gesto de consternação, Madame Cruchot ergueu as suas mãos gordas e cheias de anéis. Depois sorriu gentilmente, mostrando-lhe um dente de ouro que era como
uma bala.
- M'sieur está brincando.
- Não, realmente... - Empurrado e acotovelado pelo redemoinho de fregueses, Stephen ficou rubro. - Estou falando sério.
- Também somos gente honesta, Monsieur Crochet e eu, m'sieur, mas longe, oh, muito longe, de ser rica. - Feriu uma nota patética. - O máximo que meu marido me autoriza
a oferecer são 20 francos.
- Mas, madame... eu tenho que viver.
Madame Cruchot sacudiu o seu chinó amarelo tristemente.
- Nós também, m'sieur.
Stephen mordeu o lábio, com raiva e orgulho no peito. O aluguel semanal do seu quarto era de 12 francos. Como diabo poderia manter-se com os oito francos que lhe
restariam depois de pagar a sua senhoria? Não, por grande que fosse a sua necessidade, não poderia submeter-se a semelhante imposição. Deu meia-volta para retirar-se.
Mas Madame Cruchot, que não queria perdê-lo e que, no intervalo, tinha-o observado de soslaio da cabeça aos pés, deteve-o com um gesto delicado.
- Talvez... - Inclinou-se para diante, falando com um ar solícito. Talvez se servíssemos aqui o almoço para m'sieur, isso ajudasse um pouco a situação. Uma refeição
boa e substancial.
Apanhado desse modo, Stephen hesitou. Profundamente humilhado, não podia erguer os olhos.
- Muito bem... aceito - murmurou ele.
- Ótimo. Nosso negócio está fechado. Começará amanhã. Não esqueça que exigirei instrução da mais alta classe. E, sem dúvida, no futuro, m'sieur não esquecerá de
barbear-se.
Stephen inclinou a cabeça. Não podia falar. Contudo, a despeito da sua humilhação, por ignominiosa que fosse a sua situação, só podia experimentar uma sensação de
alívio. Com 20 francos e um almoço diário, estava salvo, ao menos por enquanto.
Ao sair da mercearia, ouviu a voz de Madame Cruchot proclamando em altos brados para as regiões do mundo:
- Marie-Louise, Victorine... Sua bondosa mamã acaba de contratar um tutor inglês.


CAPÍTULO III

AGORA, NA ABAFANTE MONOTONIA de uma cidadezinha provinciana, começava para Stephen uma estranha existência. Todas as manhãs, era acordado pelo sino da catedral,
que badalava três vezes, pesadamente, na Consagração das sete horas, afugentando as pombas, quebrando o silêncio eclesiástico da praça vazia. Uma vez vestido, descia
descuidadamente a escada - pelo menos podia sair de casa sem medo de encontrar a sua senhoria. Atravessando a praça para o Café des Ouvriers, que ficava a curta
distância do jardim de muros altos do convento, encontrava sempre as mesmas mulheres pias, vestidas de preto, e algumas freiras, aos pares, emergindo - flutuantes,
parecia, sobre as largas abas das suas toucas - da igreja. O café, assinalado por um ramo murcho na ombreira da porta, não era um lugar especialmente reputado, não
mais do que a cozinha de pedra de uma casa baixa mobiliada com uma mesa tosca e alguns bancos de madeira. Ali, por cinco soldos, tomava o desjejum habitual da casa:
uma xícara de café preto cheio de borra, lavado por um golinho de vinho branco num copo grosso com um dedo, uma espantosa combinação em seu poder restaurativo. Às
vezes havia um jornal da noite passada, Intelligence de Rennes, que o mantinha ocupado por meia hora. Podia conversar um pouco com Mie, a fille de comptoir de olhos
negros, quieta, que atendia o bar primitivo com discrição e que aparentemente tinha outras funções e obrigações, ou com outro cliente, talvez um mascate, um carregador
da estação, ou um entregador de carvão.
Pontualmente às 11 horas, apresentava-se na casa dos Cruchots, situada atrás da mercearia, e se dirigia a uma porta na parede lateral. Ali, na latada contígua a
uma pequena área fechada de relva, ou, nos dias de chuva, na sala abundantemente enfeitada a que Madame se referia como o "salon", Stephen dava sua atenção às menininhas
Cruchot; Victorine, de onze anos, e Marie-Louise, que tinha apenas nove.
Não eram, de um modo geral, crianças desagradáveis, um tanto estragadas por mimos, mas com toda atração da sua tenra idade. Às vezes, eram mesmo muito meigas à sua
maneira, especialmente a mais nova, uma coisinha bonita de cachos castanhos e faces de maçã". Stephen não as achou difícil de levar e logo ficou gostando delas.
Contudo, já os atributos herdados começavam
a se manifestar - sabiam o preço de tudo, calculavam como matemática, podiam recitar fluentemente aforismos morais sobre a virtude da economia. Cada uma tinha o
seu cofrezinho de metal, com a forma da Torre Eiffel, para depositarem as suas economias, e traziam a chave presa, com a medalha de um santo, a uma fita azul no
pescoço. Às vezes, repetiam, muito inocentemente, observações que tinham ouvido.
- Monsieur Stephen - ele insistia em que o chamassem pelo seu nome de batismo - mamã disse a papá que o senhor deve ser muito pobre.
- Bem, Victorine, devo confessar que ela estava certa.
- Mas papá disse que pelo menos o senhor não era um beberrão.
- bom... papá é meu amigo.
- Ah, sim, Monsieur Stephen. Porque ele também disse que, embora o senhor com certeza tenha feito alguma coisa errada na sua terra, sendo obrigado a fugir, não deve
ter sido um crime sério.
Stephen riu-se, um tanto secamente.
- Vamos... já é tempo de começarem a leitura.
Tão rápido tinha sido o progresso das suas ágeis inteligências, que ele acabara por trazer Alice no País das Maravilhas, e o interesse delas pela história tornava
possíveis até as palavras mais difíceis.
Embora, à maneira de um proprietário, ocasionalmente enfiasse a cabeça na porta, Monsieur Gruchot não vinha muito às lições. Era um homem de estatura média, com
modos inquietos, olhos cor de café, vivos, com os cantos injetados de amarelo, e um bigode preto, cheio, de pontas reviradas, que usava polainas e, dentro ou fora
de casa, exceto no sagrado recinto do "salon", um brilhante chapéu de palha reto. O seu lugar, naturalmente, era na loja, mas passava dois dias por semana fazendo
compras no mercado da vizinha cidade de Rennes, de onde, aliás, ele e sua mulher tinham vindo originalmente. Ligado a Madame Cruchot por uma ostensiva felicidade,
pelos dois lindos penhores da sua afeição, e acima de tudo pelo seu apaixonado desejo de ganho, Albert Cruchot tinha, contudo, em certos momentos, um certo ar, como
se as proporções físicas da sua esposa, seu riso agudo e voz penetrante fossem uma opressão maior do que um homem do seu porte pudesse razoavelmente aguentar. Ele
não encolhia exatamente, porém seus pés empolainados se moviam inquietos e a sua pupila café-au-lait bruxuleava num brilho de impaciência.
Na verdade, por trás do seu sorriso, dos seus modos amáveis e do brilho especioso do seu dente de ouro, Madame Cruchot era uma tirana. Todos os dias ela vinha verificar
"por si mesma" o andamento da lição, sentando-se rígida, numa postura de supervisão, os olhos sem compreensão mas alerta, indo de Stephen para as crianças, perturbando-as,
fazendo que cometessem erros.
- O senhor compreende, m'sieur... desejo que elas não só leiam mas falem coloquialmente... e recitem poesias... como fazemos em sociedade.
Atendendo às suas repetidas exigências, Stephen ensinou as crianças as duas primeiras estrofes de A uma Cotovia. Então, no dia indicado para mostrar o progresso
das suas pupilas, madame apareceu com três amigas íntimas, esposas de lojistas preeminentes, membros da haute bourgeoisie de Netiers, que se aboletaram expectantes
nas cadeiras douradas do salão.
Marie-Louise, escolhida para a primeira prova, foi colocada sozinha na falsa ilha de Aubusson.
- Salve, ó tu, espírito jovial... - começou ela; depois parou, olhou em torno e suprimiu um risinho.
- Comece de novo, Marie-Louise - disse Stephen bondosamente.
- Sabe, ó tu, espírito jovial... - Novamente a criança se interrompeu, piscou, torceu a cinta e olhou timidamente para a mãe.
- Continue - disse Madame Cruchot numa voz estranha. Marie-Louise lançou um olhar súplice para o seu professor. Um leve
suor começava surgir na testa de Stephen. Num tom de lisonja, que o desagradava, disse:
- Vamos, minha querida. Salve, ó tu, espírito jovial...
Um breve silêncio, durante o qual Madame Cruchot pareceu ter virado pedra: depois, sem aviso, levantou-se e deu um tapa na cara da menina. Imediatamente Marie-Louise
debulhou-se em pranto. No momento de consternação que se seguiu, olhares indignados foram lançados para Stephen, a criança soluçante, agora agarrada ao seio materno,
foi confortada com um bombom, e ouviu-se a voz de Mane gritando lá da loja:
- Venha depressa, madame... o fígado está chegando do matadouro. Na confusão que acompanhou a retirada de Madame Cruchot, Stephen ficou desamparado, prevendo com
sardónico fatalismo a possibilidade da sua demissão. Contudo, quando a mãe reapareceu, Marie-Louise correu através da sala, pegou a mão dele e despejou instantaneamente
a poesia, que recitou por inteiro, de um só fôlego. Victorine, para não ficar atrás, seguiu-a, por sua conta, com um perfeito desempenho.
Imediatamente o aspecto da reunião mudou, houve gritinhos de aclamação, sorrisos e acenos de cabeça foram dispensados a Stephen. Madame Cruchot resplandecia de perdoável
triunfo. Na verdade, depois de acompanhar as senhoras até a porta, voltou para Stephen com uma disposição de curiosa indulgência. Em vez da costumeira fina fatia
de presunto, deu-lhe no almoço um prato quente de carne ensopada, guarnecida de rabanetes e cebolas de Bordéus. Sentando-se diante da mesa da copa, observou:
- Afinal de contas, as coisas correram bem.
- Sim - disse Stephen sem levantar os olhos. - No começo, foi apenas o medo do palco.
Por um momento, ela continuou a vê-lo comer.
- Minhas amigas ficaram muito satisfeitas com o senhor - disse ela de repente. - Madame Oulard... a esposa do nosso primeiro pharmacien, uma senhora de certa posição
na cidade, embora naturalmente não possa pagar um tutor para as suas crianças, considera-o très sympathique... um perfeito cavalheiro.
- Sou muito grato por sua boa opinião.
- Acha que ela é uma mulher bonita?
- Deus do céu, não - disse Stephen com um ar ausente. - Eu mal a notei.
Madame Cruchot afagou as suas pastas de cabelo amarelo e, esticando o corpete, bateu nas suas firmes ancas com um gesto significativo.
- Deixe-me servir-lhe mais ensopado.
Nos dias que se seguiram, a qualidade e aliás a quantidade da refeição do meio-dia do tutor inglês melhoraram misteriosamente, e de várias outras maneiras a dona
da casa continuou a sua atitude diferente, e até se poderia dizer, o seu favor. Era uma mudança afortunada para Stephen, em quem a falta de alimentação adequada
e aquela tosse que não o deixava tinham causado considerável dano físico. Começou a sentir-se mais forte, novas correntes de vida movendo-se lentamente nas suas
veias, e um dia, de repente, sentiu, pela primeira vez desde que chegara a Netiers, um vivo desejo de pintar.
O impulso era irresistível, e ao deixar a mercearia apanhou um bloco de papel da Índia e alguns bastões de giz colorido. Quando a lição estava quase terminada, pôs
as duas crianças a ler no mesmo livro, juntas, na latada, e então, com o anseio de uma paixão contida, com linhas ligeiras, firmes e felizes, fez um pastel das suas
cabeças. A coisa foi feita rapidamente, tão veemente era a inspiração - em questão de menos de meia hora. Nunca tinha executado algo tão vívido, tão fresco na sua
composição impressionista. Até ele, que sempre subestimava o seu trabalho, estava comovido, sobressaltado, e excitado por aquela coisa adorável que tinha ganho vida,
misteriosamente, vinda do nada, ao seu toque.
Estava com a cabeça inclinada apontando para o fundo com um creiom amarelo, quando ouviu um som atrás dele: Madame Cruchot, por cima do seu ombro, estava olhando
para o pastel.
- Foi o senhor quem fez isso, m'sieur?
A sua expressão de pasmada incredulidade provocou-lhe um sorriso.
- Gosta?
Talvez ela não compreendesse plenamente a pintura. Mas via nela as suas duas crianças, belamente sugeridas em poucas linhas, umas poucas sombras de cor pura e brilhante.
Não entendia nada de arte. Contudo, o seu astuto instinto comercial tornou-a de imediato - ainda que subconscientemente, advertida de que ali estava algo raro e
delicado, algo da mais alta qualidade. Cobiçou-a
imediatamente. Mas além disso experimentou um singular afluxo dos seus sentimentos por aquele jovem inglês desconhecido, aquela emoção que começara quando, no dia
da recitação, o nevoeiro da sua indiferença se dissipara e ela o vira, através da tagarelice das suas amigas, como realmente era, um homem jovem muito atraente,
com a figura franzina e rosto sensível, os olhos negros e a delicada palidez. As menininhas ainda estavam soletrando no seu livro. Ela passou por trás do sofá e
sentou-se ao lado de Stephen.
- Não percebi - disse ela num cochicho confidencial - que m'sieur era um verdadeiro artista.
- Mas eu lhe disse quando a senhora me empregou.
A referência àquela primeira entrevista, quando ela o tratara tão rispidamente, provocou-lhe um rubor profundo até o seu queixo redondo e sólido e a coluna muscular
do pescoço.
- Ah - disse ela - não fiz muito caso do que me disse naquela ocasião. Eu não tinha o prazer de conhecer m'sieur como conheço agora... após estas semanas de agradável
intimidade, quando tem ensinado às minhas filhas, participado comigo da minha casa, e sempre com a polidez e reserva que só vem da verdadeira distinção. M'sieur
Stephen... - era a primeira vez que ela se dirigia a ele pelo nome, e o fazia com um frémito que endurecia a pele dos seus sólidos seios... - mesmo que não tivesse
me dito nada, eu saberia, por esta pintura, que o senhor tem grande talento.
Suas palavras de mau gosto eram embaraçosas, mas ele disse, gentilmente:
- Talvez queira ficar com ela...
A sugestão, com as suas implicações de compra, levou-a a recuar ligeiramente, mas só por um instante. Respondeu, séria:
- Quero sim, M'sieur Stephen, e vou falar a esse respeito com meu marido esta noite. Naturalmente, é possível que ele diga que o trabalho foi feito na hora da aula,
pelo que o senhor já estava pago, e nesse caso...
- Minha cara Madame Cruchot - interpôs apressadamente Stephen - a senhora absolutamente não me entendeu. Ofereço-lhe a pintura de presente.
Os olhos dela brilharam, não de cupidez agora, mas de uma emoção mais suave e confusa. Suprimiu um suspiro, olhou para ele com uma expressão terna, dizendo:
- Obrigada, M'sieur Stephen. Garanto-lhe que não se arrependerá.
A singularidade de estar sentada tão junto dele punha-lhe a cabeça a girar, uma sensação bem diferente da que lhe dava a proximidade de Cruchot. Mas as menininhas
começavam a exigir atenção, e ela ficou com medo de comprometer-se mais. Com um olhar de soslaio, rápido mas intenso, no qual tentava, em vão, mostrar o seu coração,
que batia rapidamente, levantou-se, disse-lhe au revoir, e voltou para a mercearia.


CAPÍTULO IV

APÓS SEMANAS DE aNIMADA APATIA, Stephen achou que podia pintar novamente. Era como despertar para uma nova vida na qual ele se descobria possuído de uma capacidade
maior, de uma visão mais penetrante do que antes. A cidadezinha, com seus insípidos habitantes, até aqui um deserto de esterilidade, transfigurou-se de repente numa
palpitante fonte de inspiração. Pintou o hotel de ville; a praça de armas do quartel; os telhados da cidade, vistos da sua janela, estranhamente pitorescos; uma
bela composição em cinza e negro das irmãs do convento voltando da missa na chuva, embaixo dos seus guarda-chuvas. As telas que tinha trazido de Napoleon Campo foram
uma a uma transformadas, pregadas no canto do quarto do sótão.
Havia cartas também, de Peyrat e Glyn, para alegrá-lo. Jerome propunha-se continuar em Puy de Dome no inverno e Glyn voltaria a Londres para uma breve estada no
outono. Ambos instavam para que fosse juntar-se a eles. Mas era claro que ele não iria. Estava pintando aqui, e feliz. Nesse estado de ressurreição, a lição diária
para as meninas Cruchot perdeu seu aspecto normal de necessidade. Na verdade, muitas vezes era penoso para Stephen pôr de lado os seus pincéis e correr à mercearia,
justamente quando a luz era a melhor. E embora, na linguagem do estabelecimento, ele continuasse tendo um valor, a sua mente não estava inteiramente no ensino, nem
após a aula era motivado por outro pensamento que não o ir-se dali.
Por causa da sua distração, continuou mais ou menos esquecido das mudanças, sempre crescentes, na atitude de Madame Cruchot para com ele. O vasto melhoramento na
cozinha era, sem dúvida, evidente, mas ele creditava-o à gratidão da proprietária pelo presente do quadro. A esta também atribuía os outros sinais de atenção que
lhe eram dispensados. Tornara-se agora costume de madame presidir o seu almoço e impor-lhe a sua hospitalidade. Na verdade, a sua dedicação foi além.
- M'sieur Stephen - ponderou ela um dia, com uma nota de solicitude. - estou preocupada com o seu conforto. O senhor pode não ser bem-visto em casa de Madame Clouet.
- Mas sou - contrariou ele. - Ela é uma alma muito decente.
- Mas é um quarto tão pobre.
- Conhece-o? - surpreendeu-se ele.
- Bem - disse ela enrubescendo. - Passei pela casa muitas vezes... no meu caminho para a igreja, naturalmente. Se ao menos alguém de gosto acrescentasse umas poucas
coisas... e as arranjasse, ficaria muito mais agradável para o senhor.
- Não, realmente - sorriu ele. - Agrada-me como está... despido e arejado.
- Mas não é bom para o senhor - insistiu ela. - Não posso deixar de notar que a sua tosse ainda o incomoda.
- Oh, não é nada... foi só esta manhã.
- Meu caro M'sieur Stephen. - Olhou-o com terna censura. - Não me contrarie em tudo. Se não posso melhorar o seu quarto, deixe-me ao menos restaurar a sua saúde.
No dia seguinte, para seu embaraço, um frasco de sirop pectoral do estabelecimento de Monsieur Oulard estava na mesa ao lado do seu prato, e madame, medindo uma
colherada, administrou-lhe a dose com ambas as mãos. Victorine e Marie-Louise divertiram-se vendo o seu professor ter que engolir remédio à força. E, no fim, Stephen
também riu.
Quando as crianças correram para brincar no jardim, Madame Cruchot, após um olhar demorado, soltou um suspiro:
- Naturalmente... uma coisa posso ver muito bem. O senhor encontrou na cidade alguma moça insignificante que o atrai.
- O quê! Em Netiers?
- Por que não? Não vai todos os dias ao Café des Ouvriers, e aquela Julie Grosette... eles por lá não têm grandes escrúpulos, posso lhe garantir...
Na verdade, ela conhecia todos os falatórios, mexericos e pequenas intrigas da cidadezinha. Mas o olhar atónito de Stephen era tamanho, que ela parou de falar. Forçou
um risinho.
- Não me olhe assim, meu amigo. Só estou pensando no seu bem-estar. E afinal de contas, embora eu seja uma boa mulher, também sou uma mulher do mundo. Então não
tem ninguém?
- Não - disse ele brevemente.
O olhar de expectativa, de ciúme, desapareceu dos seus olhos e foi substituído por um ar de coqueteria.
- Diga-me se gosta do meu vestido.
Colocou-se ligeiramente de quadril, exibindo o seu novo vestido, de um verde um tanto agressivo, com trancelins amarelos embaixo, que davam um efeito de juventude.
E o cabelo, recém-lavado, fora ondulado com um brilho mais metálico. Madame tinha apego aos vestidos, era uma cliente regular das galleries de Rennes, e ultimamente
exibia para Stephen as suas mais elaboradas toilettes, que, ai!, ele nunca parecia notar. Era essa indiferença que aumentava
os seus anseios, essa completa inconsciência de que ela era uma mulher, e talvez ele fosse assim com qualquer mulher, de uma inocência comparável à do jovem cura
que uma vez servira na paróquia e que ela admirava à distância, sonhando com ele todas as noites ao lado do merceeiro, que, com a carne aplacada pelo seu insensível
traseiro, roncava musicalmente. Mas isso não tinha sido nada, o mero sopro das asas de uma borboleta ao lado deste desejo que agora lhe corria nas veias, fazendo-a
arder de vontade de apertar Stephen nos braços e cobri-lo de beijos.
Ela estava cega para a comédia da sua situação: uma mulher de quase
40 anos, metida de corpo e alma nas atribulações de um negócio banal, de punhos fechados, uma tirana que passava a vida, de voz estrídula e metálica, pondo areia
no açúcar, água na sidra, extorquindo o último soldo das palmas renitentes de um camponês - ela, entre todas as mulheres, sendo amaciada, liquefeita por aquela devastadora
paixão por um rapazinho que talvez pudesse ter sido seu filho. Perdeu o interesse nas suas crianças, nas suas amigas, na busca da riqueza. O marido tornou-se-lhe
odioso. Os seus maneirismos burgueses, a maneira de comer, de soltar ventosidades baixinho após a sua cerveja, despertavam nela uma tempestade de ódio.
- Je te défends de passer le gaz en bas! - gritava ela, encolerizada.
E com tudo isso o seu próprio refinamento aumentava. Banhava-se com mais frequência, usava um perfume mais forte, chupava pastilhas para perfumar o hálito, mudava
a rroupa branca mais seguidamente. Se não pudesse tê-lo, sentia que deixaria de viver.
Subitamente veio uma resposta às suas preces mudas, uma ideia de brilho surpreendente. Como é que ela não tinha pensado nisso antes? Quando Stephen entrou nesse
dia, ela o interceptou no corredor.
- Meu amigo - disse ela alegremente. - Tenho uma boa notícia para o senhor, em suma, uma incumbência. Monsieur Cruchot insiste em que o senhor deve pintar-me.
Desconcertado, Stephen olhou para ela em silêncio.
- Sim - acenou ela. - Cruchot está cheio de entusiasmo. Não falou em outra coisa ontem à noite... De corpo inteiro... a óleo.
- Mas, madame. - Stephen franziu o cenho hesitante, procurando uma desculpa. - Eu... eu não pinto retratos... estou trabalhando em outro tema...
Ela sorriu para ele tranquilizadoramente.
- Não se preocupe, mon petit, farei com que seja pago. Na terça-feira, então, começamos. Está combinado.
Antes que ele pudesse terminar, ela bateu-lhe no braço, com um olhar arqueado, e saiu depressa da sala.
Terça-feira era meio feriado para os comerciantes. Como sempre, a loja
fechava ao meio-dia e tudo ficava tranquilo. Contudo, no momento em que entrou, Stephen sentiu, nos postigos fechados, uma calma sobrenatural. Madame Cruchot recebeu-o
na porta.
- Nada de lição hoje - anunciou ela efusivamente. - As meninas foram para o campo com Marie.
Ao admiti-lo na loja, explicou que a empregada fazia uma visita por mês aos seus pais em St. Vallé, e que, às vezes, como grande favor, ela lhe permitia que levasse
as crianças.
- E naturalmente - acrescentou sem cerimónia - meu marido está em Rennes, no mercado. Não seremos perturbados.
Novamente o silêncio incomum perturbou-o; nenhum rumor na adega, onde Joseph, o auxiliar, passava duas horas cuidando do estoque. Na casa, a não ser eles, não havia
ninguém. Mas foi a mesa, na sala de almoço, posta para dois, com toalha engomada e os melhores talheres, adornada com um vaso de rosas vermelhas, que o pôs em guarda.
- Se não se incomoda, almoçaremos juntos. Será muito mais conveniente.
Falando voluvelmente, naquela mesma maneira descuidada, trouxe da copa um poulet de Bresse assado, com cogumelos e salada, um paté de Estrasburgo, pêssegos em calda,
e uma garrafa de champanhe. Somente depois de abarrotar o seu prato, permitiu-se olhar para ele.
- Estamos bem aconchegados aqui. Não é agradável almoçarmos tête-à-tête? Sabe, deve comer antes de trabalhar. - Lançou-lhe um olhar pudico. Deixe-me servir-rlhe
o champanhe. É o melhor que vendemos. Cinco francos a garrafa.
Ele sentia-se confuso, desconcertado e inquieto. Mas no seu estado empobrecido, tinha para com a comida uma espécie de oportunismo. Comeu o que foi posto diante
dele, certo de que não estava em posição de recusar, mas foi se tornando cada vez mais consciente daqueles olhares lânguidos que pousavam nele. Do seu busto também,
que subia com esforço cada vez que ela respirava com esforço, fazendo os seios pularem e o queixo afundar no pescoço, parecendo aproximar-se mais dele a cada respiração.
Ao contrário do seu costume habitual, ela não estava comendo, servindo-se, com um ar de refinamento, apenas de uma asa de frango, e agora já partindo para o segundo
copo de vinho. Seus olhinhos redondos brilhavam como bolinhas de gude. Sentia um forte impulso para estender o braço por sobre a mesa e apertar-lhe a mão. Ele nunca
adivinharia que delicados favores ela estava preparada para lhe oferecer? Quanto menos ele entendia, mais a seduzia.
- Meu amigo - exclamou ela - não pode fazer uma ideia do que tem sido a minha vida nestes últimos 15 anos aqui em Netiers.
- Infelizmente não a conheço há tanto tempo.
- Não - refletiu ela, e numa voz sumida: - Contudo, devo ao senhor o fato de ter descoberto o vazio da minha existência.
- Isso seria um mísero retorno, madame... se fosse verdade.
- É verdade. - Como ele nada dissesse, ela moveu a cabeça enfaticamente. - Sim, ao senhor, meu amigo, que me abriu os olhos para novos horizontes, com os quais antes
eu nem sonhava. Monsieur Cruchot, embora sem excessiva ternura ou delicadeza, é um homem digno. E naturalmente eu sou uma mulher virtuosa. Mas há momentos em que
a solidão me invade o coração, quando tenho necessidade de um confidente. Ah, meu amigo - suspirou ela
- quando o coração pede, quem é que pode negar? É errado procurar a realização... uma vez que seja discreta?
Sentado em silêncio, constrangido, uma rude explicação para aquele comportamento atravessou-lhe de fato o espíriro. Mas despediu-a como absurda. Contudo, sentia-se
obrigado a começar o trabalho sem demora e executá-lo o mais depressa possível. Empurrou o prato.
- E agora, madame, se lhe for agradável, podemos começar. Pensei que seria melhor fazer um esboço preliminar. A senhora posará para mim? No salão?
Ela olhou para ele e tomou um fôlego convulsivo.
- Não - replicou numa voz indistinta. - Lá em cima a luz é melhor. Levantou-se da mesa e dirigiu-se para a porta. - Eu me apronto logo. Termine o seu vinho. E depois
suba.
Ele nunca tinha estado antes no andar de cima. Após esperar cinco minutos, encaminhou-se para a escada. Estava frouxamente iluminada, e os degraus, cobertos de tapete
fino, estalavam aos seus pés. O cheiro dos queijos, postos a amadurecer no armário do corredor encheu o ar. Ao chegar à porta, encontrou-a aberta. Imaginou que dava
acesso à sala de estar, mas antes que pudesse bater, ela o chamou:
- Entre, mon ami.
Ele entrou.
Madame Cruchot estava junto à cama dupla, pedindo a sua aprovação. Tinha tirado o vestido e usava um penhoar, que, numa pose vulgar, com uma das mãos no quadril,
ela mantinha meio aberto, revelando os calções listrados, com um babado de renda pesada, que caía abaixo dos seus joelhos grossos, e uma camisola cor-de-rosa umedecida
por uma mancha de perfume que acabara de pôr, enrugada pelo espartilho.
Um suor frio inundou Stephen. Suas pupilas ardiam com cada detalhe do ostentoso mas desmazelado dormitório, o tapete ornado e as cortinas com colgadura, a cómoda
manchada, o utensílio de louça embaixo da cama, e até a camisa de dormir de Cruchot enfiada às pressas embaixo de um travesseiro. Empalideceu. Interpretando mal
os seus olhos dilatados, ela agitou a cabeça,
fingindo tremer, e então, com uma terrível coqueteria, veio para ele. Era demais. Ele recuou com uma expressão de repulsa, furioso consigo por ter caído em tal situação,
que, embora participasse dos elementos da farsa era abjetamente humilhante. Sem uma palavra, voltou-se e precipitou-se para fora do quarto.
Nessa noite, sentado no seu sótão, ouviu fortes pancadas na porta da frente, seguidas de passos pesados na escada, e logo Monsieur Cruchot invadia o seu quarto.
O merceeiro, ainda vestindo o seu melhor terno, encontrava-se num estado de cólera fabricada.
- Como se atreve a fazer propostas amorosas a minha esposa... miserável insignificante... no instante em que dou as costas? Tenho a intenção de ir diretamente à
polícia. Sempre pensei que você era uma cobrinha inglesa. Mas morder a mão que o sustenta... uma mulher de coração puro... uma mãe! Que ultraje... uma atrocidade!
Jamais torne a mostrar o seu focinho no meu estabelecimento. Mas, além disso, deve haver uma compensação... por danos... no mínimo uma pintura.
Stephen sabia que Cruchot não gostava dele, no entanto era evidente que aquela exibição era instigada pela esposa, o marido era o mensageiro da mulher despeitada.
E com uma onda de amargura, como Cruchot continuasse a ameaçá-lo, Stephen arrancou uma página do bloco que estava na mesa dele e entregou-a ao merceeiro. Era um
esboço que ele acabara de fazer de memória de madame, obesa e afetada, de calções, no quarto de dormir.
Monsieur Cruchot, silenciado pelo gesto inesperado, olhou para o desenho fatal. Sua face tornou-se lívida. Ia rasgá-lo, mas, com a esperteza nativa, considerou-o
novamente, enrolou-o cuidadosamente e colocou-o dentro do chapéu. Depois, com um olhar furtivo, voltou-se e foi embora.


CAPÍTULO V

NA MANHÃ SEGUINTE, Stephen fez a sua mochila, amarrou as suas telas num canudo e, pondo a carga ao ombro, partiu de Netiers a pé. Seu objetivo era Fougères, situada
na route nacional, a 30 quilómetros de distância, e às cinco horas da tarde, após uma sufocante caminhada através dos campos, alcançou, a cidade, erguida em ambos
os lados de uma colina cortada pela estrada principal
para Paris. Lá, encontrou um restaurante barato que lhe pareceu um ponto de parada para caminhoneiros. O garçom, ao qual pediu ajuda, tinha certeza de que surgiria
uma oportunidade, e na verdade, justamente antes das nove, parou um camion da Compagnie Atlantique com um reboque e dele desceram dois homens de macacão e entraram
no bar. Poucos minutos depois, o garçom fez um sinal, houve apresentações, explicações transitórias e um geral aperto de mãos - tudo arranjado. As coisas de Stephen
foram colocadas embaixo do assento e eles partiram.
A noite chegou quente e serena. Rodaram através de aldeias adormecidas, cidades desertas onde brilhavam apenas umas poucas luzes, passando Vire, Argentan, Dreux.
O ar quente assobiava ao lado deles, os paralelepípedos estrondejando embaixo, a lua mergulhou por trás das alamedas nevoentas de álamos. Finalmente, quando rompeu
o amanhecer pálido e escorrido, atravessaram o Sena em Neully, entraram em Paris pela Pote Neully e pararam no mercado Les Halles. Lá, Stephen agradeceu aos seus
dois amigos e deixou-os.
A cidade, ainda não acordada de todo, tinha um ar cinzento e triste, mas quando atravessou a Ponte Nova, Stephen respirou fundamente o ar úmido. Estava de volta
a Paris. Depois de Netiers sentia-se mais forte, acima de tudo cheio de uma firme determinação de demonstrar o seu talento ao mundo.
Quando o mont-de-piété da Rue Madrigal abriu as portas, ele estava à espera do lado de fora. Entrando, empenhou o relógio - um presente do pai no dia do seu vigésimo
primeiro aniversário - pelo qual recebeu 180 francos. A seguir, após uma demorada procura, achou uma acomodação numa rua lateral próxima da Place St. Séverin, um
bairro frequentado por artistas como último recurso. Era um quarteirão pobre e um quarto ainda mais pobre, escassamente mobiliado e terrivelmente sujo - somente
10 francos por semana. Imediatamente se pôs ao trabalho e, pedindo emprestados uma vassoura e um balde, limpou o cómodo. Até lavou as paredes, a fim de que parecessem
recomendáveis, embora ainda permanecessem algumas manchas de insetos.
Passava das duas; sem pensar em comida, escolheu quatro das suas pinturas e dirigiu-se rapidamente pelos quais à loja de Napoleon Campo. O vendedor de tintas estava
sentado no seu caixote costumeiro atrás do balcão, balançando as pernas curtas, usando uma jaqueta azul de piloto e boné amarelo de tricô, com as orelhas gretadas
de fora, o rosto púrpura com a barba por fazer, mãos cruzadas sobre a barriga. Saudou Stephen amavelmente, como se o tivesse visto na véspera.
- Bem, Monsieur l'Abbé, que posso fazer pelo senhor?
- Antes de tudo, deixe-me liquidar o que lhe devo.
- Obrigado, o senhor é um homem honesto.
Recebeu os 50 francos que Stephen lhe deu e enfiou-os numa velha bolsa de couro.
- E agora, Monsieur Campo, quero uma tela bem larga, 2,00 x 0,80cm.
- Ora! Tem um trabalho tão grande assim em vista? Naturalmente pode pagar?
- Em dinheiro não, monsieur. Com estes.
- Endoideceu, Abbé? Deus do céu, meu porão está abarrotado de pinturas, refugo impróprio até para a lata de lixo, que recebi por ter um coração bondoso.
- Nem tudo é lixo, Campo. Você recebeu pinturas de Pissarro, e Boudin, e Degas.
- Você é um Degas, meu pequeno Abbé?
- Um dia, talvez.
- Meu Deus, é sempre o mesmo conto de fadas. Então a sua tela especialmente grande é para pendurar no Salon, com multidões diante dela. Terá fama e fortuna da noite
para o dia. Bah!
- Então aceite 20 francos por conta e estas pinturas como penhor do restante.
Os insignificantes olhinhos azuis de Napoleon procuraram o rosto pálido e sério diante dele. Tantos, tantos rostos tinham passado por sua loja nos últimos 30 anos,
que afogavam a sua memória. Era um homem fleumático, que não se comovia facilmente, e a idade o tinha tornado ainda mais impassível. Mas ocasionalmente, embora isso
fosse raro, havia nos modos e no aspecto de algum aspirante necessitado, como agora nas curiosas feições daquele inglesinho, um tipo de intensidade que o impressionava.
Hesitou, depois desceu do seu assento e começou a remexer nas prateleiras. Quando a tela que Stephen queria - um fino linho de grão fino - estava em cima do balcão,
houve uma pausa.
- Disse 20 francos?
- Sim, Monsieur Campo. Stephen contou as moedas.
Napoleon Campo tomou uma pitada de rapé, limpando meditativamente o nariz carnudo com o punho da sua jaqueta de piloto.
- E agora, naturalmente, vai passar fome.
Houve outra pausa. Subitamente Campo empurrou as moedas que estavam em cima do balcão.
- Devolva estas à sua caixa de coleta, Abbé. E me dê os seus miseráveis borrões.
Surpreso, Stephen entregou-lhe as suas pinturas. Sem ao menos uma olhada por alto, Napoleon colocou-as embaixo do balcão.
- Mas. . . não quer vê-las?... São... as melhores que eu fiz.
- Não julgo pinturas e sim gente - replicou Campo rispidamente. bom dia, monsieur. E boa sorte.
Stephen voltou ao seu quarto com a tela às três horas, e sem demora saiu imediatamente para a loja de bicicleta da Rue de Bièvre. Até agora as coisas tinham ido
bem, mas ao se aproximar do estabelecimento de Berthelot sentiu-se nervoso e inseguro de si mesmo, embora cheio de uma viva expectativa que fazia o seu coração bater
depressa. Muitas vezes, durante os últimos meses, tinha pensado em Emmy; a recordação daqueles momentos na escuridão do corredor estreito lhe vinha de tempos em
tempos sem aviso, ainda que com uma esquisita inconsistência.
Encontrou-a no pátio atrás da oficina, curvada sobre uma bicicleta niquelada, reforçada e pintada de vermelho e ouro. Vê-la outra vez deu-lhe uma sensação de calor
por dentro. Ela ergueu os olhos quando ele apareceu, aceitou a sua saudação sem surpresa e continuou a acertar os rolamentos. O pulso dele ainda estava absurdamente
desigual; contudo, desde as suas excursões juntos, sabia muito bem que ela abafava qualquer mostra de afeição.
- É uma linda máquina - disse ele após alguns momentos.
- É minha. Vou usá-la em breve. - Endireitou-se, atirou uma mecha de cabelo para trás. - Então está na cidade de novo?
- Desde esta manhã.
- Quer alugar uma?
Ele abanou a cabeça.
- Tenho coisas mais importantes para fazer.
Houve uma pausa. Ela sempre fora um tanto curiosa a respeito dele, e agora, como ele pretendia, o seu interesse tinha aumentado.
- Está metido em quê?
Ele respirou rápido.
- Já ouviu falar do Prix de Luxembourg, Emmy? É uma competição aberta a todos os que nunca estiveram no Salon. Pretendo arriscar. - Depois, como se ela se voltasse
indiferente, acrescentou: - Foi por isso que voltei. Quero que você pose para mim.
- Quer dizer... - interrompeu-se, olhando para ele - ... fazer o meu retrato?
- Isso mesmo. - Procurou falar num tom casual. - Você nunca foi pintada, foi?
- Não, apesar de que já devia ter sido há muito tempo, considerando quem sou.
- Então, esta é a sua oportunidade. Pode ser muito bom para você. Os melhores trabalhos serão exibidos no Orangerie. Você certamente seria reconhecida.
Ele podia ver que a sua vaidade estava lisonjeada, mas ela hesitava, olhando-o de cima a baixo como que calculando a sua capacidade.
- Você pode mesmo pintar? Quero dizer, poderia fazer um bom retrato?
- Pode contar comigo. Porei tudo o que tenho nessa pintura.
- Sim, suponho que poria, para o seu próprio bem. - Uma ideia lhe ocorreu. - Mas eu vou excursionar no mês que vem.
- Até lá há tempo suficiente. Se você vier todos os dias durante três semanas, posso pintar os detalhes depois que você for.
Novamente podia ver que ela debatia as possibilidades.
- Bem - disse ela, por fim, na sua maneira desgraciosa. - Não me importo. Acho que não vou perder nada.
Ele reprimiu uma exclamação de satisfação e alívio - não somente tinha querido pintá-la desde o começo, mas ela seria perfeita para o assunto que naquelas últimas
e poucas horas havia se apoderado dele. Rapidamente, deu-lhe o seu novo endereço, pediu-lhe que estivesse lá às 10 da manhã seguinte, usando o seu suéter preto e
a saia pregueada, e despediu-se antes que ela pudesse mudar de ideia.
Vagabundeando pela avenida, sentia-se excitado pelo que tinha realizado nesse dia. Só então se lembrou que não comia desde que dividira um sanduíche com o motorista
do camion na noite passada. A fome o atacou como um tapa. Mergulhou numa épicerie, onde comprou um pão comprido e uma tranche de salsicha. Não conseguia ficar quieto.
Andando pela rua escurecida diante do Jardin des Plantes, mordia alternadamente o pão estalante e o suculento patê embutido no seu branco envoltório de toucinho.
Como era gostoso. Sentia-se feliz, livre, e estranhamente exaltado.


CAPÍTULO VI

No DIA SEGUINTE, ele estava pronto e esperando impacientemente, a tela preparada, quando ela chegou, com uns 20 minutos de atraso.
- Aí está você! - exclamou ele. - Pensei que não viesse mais.
Ela não respondeu, mas da porta olhou em torno para o quartinho miserável com as pranchas nuas, uma cadeira de bambu quebrada e uma cama sobre roletes, afundada
no meio.
- Você está quebrado, não?
- Mais ou menos.
- Você tem topete. Trazer-me para um trou destes. Nem ao menos tem onde pendurar as minhas coisas.
Ele corou, mas forçou um sorriso.
- Admito que não seja o Elysée, mas nío é mau lugar para pintar. Dê-me uma chance e eu prometo que não se arrependerá.
Ela baixou o lábio numa espécie de careta, mas, com um dar de ombros, entrou e deixou que ele lhe tirasse o casaco e a postasse diante da janela.
A luz era boa, e, cheio de um súbito hausto de força, ele começou a tracejar a composição que agora o obcecava. Como as regras do concurso exigiam uma pintura "clássica",
seu tema seria alegórico, embora moderno na composição, e o assunto era: Circe e Seus Amantes. Poderia a sua absurda aventura com Madame Cruchot, trabalhando no
fundo do seu inconsciente, inflamar uma centelha que incendiasse essa estranha visão? Símbolos e imagens enchiam a tela da sua vista, cativando os sentidos. Na sua
imaginação, o prazer lutava com a virtude, e a luxúria se revelava na forma dos seios à espreita. Tudo ainda era uma miragem; no entanto, nos íntimos e misteriosos
recessos da sua alma, sentia a força para fazer aquele sonho existir.
Embora pudesse ter continuado o dia inteiro, ao meio-dia, advertido pela expressão da moça, Stephen lhe disse que talvez fosse o bastante para aquele dia. Imediatamente,
ela atravessou o quarto e examinou a tela, onde, usando carvão, ele já tinha feito seu esboço, de corpo inteiro e bem definido. As sobrancelhas ergueram-se e o olhar
amuado deixou o seu rosto quando ela se viu ocupando o centro da tela, de pernas separadas, mãos plantadas nos quadris, uma atitude que era toda sua. Não disse nada
enquanto permitia que ele a ajudasse a vestir o casaco, mas na porta se voltou e acenou a cabeça.
- À mesma hora, amanhã.
Durante a tarde, enquanto a luz durou, ele trabalhou no plano de fundo. E no dia seguinte, e nos que se seguiram, continuou, nem sempre de ânimo elevado, mas com
um propósito que o transportara através de momentânea melancolia para novos transes. Ao mesmo tempo, à medida que prosseguiam as sessões e ele entrava em contato
mais íntimo com Emmy, não mais podia ficar cego ao aprofundamento dos seus sentimentos por ela. A cada dia, terminada a sessão, dava consigo a sentir falta dela,
mais e mais. Na ausência de Peyrat e Glyn, estava sozinho. Mas isso explicaria o seu constante desejo pela companhia dela? Zangado consigo mesmo, lembrou o quanto
não gostara dela no seu primeiro encontro, e como ela às vezes o irritava com a sua grosseria e falta de educação. Quando ela estava de mau humor e ele tentava conversar
com ela, as suas respostas eram monossilábicas, e quando lhe dizia que descansasse, ela continuava a ignorá-lo, deitava-se de barriga na cama, acendia um Caporal
e mergulhava numa revista esportiva amarrotada. Percebeu que ela não tinha atenção para com ele e que somente a vaidade a trazia regularmente ao seu quarto. Uma
dúzia de vezes por dia ela ia observar a marcha do trabalho, e embora nunca o elogiasse, congratulava-se consigo mesma.
- Estou saindo bem, não é?
A lenda da Odisseia, da filha de Helios e da ninfa do oceano Perse, que ele explicou para ela, mexeu-lhe com a fantasia. A ideia de que tivesse o poder de transformar
seres humanos em formas animais provocou-lhe um sorriso.
- Bem feito, pra eles aprenderem.
Essa vulgaridade estremeceu-o. E contudo não era inibidora. Que haveria naquela moça para provocar o seu premente interesse? Procurou descobrir. Que sabia realmente
dela? Muito pouco, exceto que era comum, dura e insignificante - uma pequena nulidade, desinteligente, sem imaginação, completamente empedernida. Não sabia nada
de arte, não tinha interesse pelo seu trabalho, e se entediava quando ele falava. Mas a sua figura era esquisita - não estava reproduzindo cada linha sutil dos seus
membros fortes e esbeltos, o ventre chato e os seios firmes? - e acima de tudo ela era pequena. Embora pudesse admirar na tela a carne voluptuosa das mulheres de
Rubens, o seu gosto sempre fora por uma perfeição menos arredondada. E ela possuía essa nitidez física, uma figura que ele sempre comparava à Maja de Goya. Contudo,
ninguém poderia chamá-la de bela. Tinha um encanto travesso, mas os seus lábios eram finos, as narinas um tanto puxadas, e a sua expressão, quando não alerta e vigilante,
era quase carrancuda. Curioso é que, todas as suas imperfeições eram aparentes para ele. Contudo, não afetavam em nada aquela estranha emoção que, a despeito de
todos os seus esforços para suprimi-la, crescia nele.
Desejava estar ao lado dela e sentia-se inquieto e nervoso quando ela se retirava. Desordenadamente afetado pelos seus humores variáveis, respondia a eles de uma
maneira que o fazia desprezar a si mesmo. Em raras ocasiões, quando ela se mostrava agradável, o seu coração se animava. Às vezes, nessa disposição tagarela, ela
fazia perguntas sobre o único assunto que, entre todos os outros ligados a ele, parecia interessá-la.
- É verdade que os seus pais têm uma grande proprieté em Sussex, com muitos acres de boa terra?
- Não muitos - sorriu ele. - Se Glyn lhe disse isso, exagerou.
- E você ia ser um padrezinho... até que eles o tiraram do seminário.
- Você sabe que eu saí por minha vontade.
- Para viver num quarto como este? - perguntou, incrédula.
Encolheu os ombros, mas sem desprezo - lisonja que o gratificou. Essa afabilidade, embora não causasse alívio, era um agradável contraste com a mortificante indiferença
com que ela geralmente recebia as suas tentativas para agradá-la. E enquanto ela posava, indolente como um gato, ele começou a contar-lhe, sem parar de pintar, histórias
sobre Stillwater que achava pudesse entretê-la e diverti-la. Quando finalmente esgotou o repertório, ela refletiu por alguns momentos, e então declarou:
- É certo que vivi com, isto é - corrigiu-se - entre artistas toda a minha vida. Eu própria sou uma artista. Compreendo que se abandone alguma coisa pela arte, quando
isso não é nada. Mas você está numa categoria diferente. E abandonar a sua bonne proprieté, que você poderia herdar... - fez pausa e encolheu os ombros - ... foi
imbécile.
- Não completamente - sorriu ele - ou eu não a teria encontrado. Veio-lhe uma súbita onda de anseio. Deteve-se, não ousando olhar para
ela.
- Você não percebe, Emmy?... que estou gostando terrivelmente de você?
Ela riu-se brevemente e levantou um dedo avisador,
- Nada disso, Abbé. Isso não faz parte do nosso acordo.
Derrotado, retomou o trabalho. E por toda a noite sentiu a dor da rejeição. Se ao menos pudesse sair com ela à noite - ela, que apreciava diversões vulgares - achava
que podia conquistar sua simpatia. Mas sua falta de recursos o impedia. Vivia com pouco mais de meio franco por dia, subsistindo com um pão ou uma maçã até às seis
horas, quando tomava sua solitária refeição no café mais barato das redondezas.
Certa tarde, quando suas sessões de pose já estavam terminando, ela chegou, mais atrasada do que de costume. Aparentava ótimo humor. Usava um fichu amarelo novo
com uma curta jaqueta vermelha ataviada de rendas, e seu cabelo estava recém-lavado.
- Você está muito bem - cumprimentou Stephen. - Eu quase desisti de esperá-la.
- Tenho um encontro com Peroz. O escritório dele fica bem longe... no Boulevard Jules Ferry. Mas consegui o contrato que eu queria.
- Ótimo - sorriu ele, sem mencionar que a sua partida o deprimia. Quando parte?
- A 14 de outubro. Houve um adiamento de duas semanas.
- vou sentir a sua falta, Emmy. - E inclinando-se para ela: - Mais do que você pensa.
Ela riu de novo e ele notou que os seus dentes eram agudos e regulares, com espaços definidos entre eles. Então, com vivacidade, acentuando as suas observações,
ela começou a descrever como conseguira o melhor de Peroz ao estabelecerem os termos do seu contrato.
- Dizem que ele tem bom coração - concluiu ela. - Acho que ele é apenas um gobeur... um mole.
Sabendo que a sua conversa geralmente a aborrecia, Stephen encorajou-a a continuar falando sobre si mesma. Então, como não houvesse mais luz, guardou os seus pincéis.
- Deixe-me andar com você - disse ele. - Está uma bela noite.
- Muito bem, se quiser - concordou ela, dando de ombros.
Quando ela apanhou as suas coisas, eles desceram a escada e dali a pouco chegaram ao Boulevard Gavranche, onde uma escuridão quente lançava um halo em torno das
lâmpadas da rua, envolvendo a cidade muda em misteriosa beleza. Casais passavam lentamente, de braço dado, nas calçadas tranquilas a noite parecia feita para os
namorados. Numa rua lateral perto do rio, passaram por um café, onde com a música de um acordeom, havia gente dançando sob uma pérgula, com lanternas chinesas penduradas
nos ramos dos plátanos. A cena estava cheia de luz e alegria, e Stephen podia sentir os olhares interrogativos de Emmy lançados para ele.
- Gostaria de dançar?
Tomado por um demorado embaraço, consciente da sua inépcia, ele abanou a cabeça.
- Eu não seria muito bom nisso.
Era verdade. Ela encolheu os ombros.
- Você não é bom em muita coisa, não é? - disse ela.
Chegaram às sombras dos quais. O Sena fluía em silêncio, uma corrente lisa e verde, sob o vão baixo da Pont de l'Alma. Como se estivesse entediada pelo seu silêncio,
ela caminhava um pouco adiante, começando a trautear a canção tocada pelo acordeom no cabaré.
- Espere, Emmy. - Ele se chegou para o abrigo de um arco. Ela o Olhou de lado, por sobre o ombro.
- Que é que tem na cabeça, Abbé?
- Você não vê... o quanto significa para mim?
Pôs um braço em torno dela, atraindo-a para si. Durante uns poucos momentos, insensível como o poste de iluminação, ela deixou que ele a abraçasse, e depois, com
um movimento brusco de impaciência, empurrou-o.
- Você não entende nada disso.
Havia desprezo na sua voz.
Ferido e humilhado, fraco de emoção frustrada, sentindo a verdade da observação, ele a seguiu para a rua. Caminharam para a Rue de Bièvre. Diante da loja de bicicletas,
ela olhou para ele como se nada tivesse acontecido.
- Posso ir amanhã de manhã?
- Não - disse ele amargamente. - Não será necessário. Voltou-se, furioso com ela e enojado consigo mesmo.
- Não se esqueça - gritou ela. - Quero ver o quadro quando estiver terminado.
Ele a odiava por sua dureza, sua falta de generosidade comum - ela sequer tivera pena dele. Disse a si mesmo que nunca mais tornaria a vê-la.
Na manhã seguinte, quando acordou de uma noite inquieta, lançou-se apaixonadamente na contemplação do quadro. Até agora, só a figura central
tinha tomado forma, havia ainda o tema a ser desenvolvido. O tempo se tornara úmido e sombrio, a luz era pouca, o seu estúdio improvisado varrido por correntes de
ar, mas nenhuma dificuldade parecia tão grande que ele não pudesse vencer. Na sua busca de realismo, ia todas as tardes ao Jardim Zoológico; depois, voltando para
o seu quarto, transferia as abjetas criaturas para a tela, com algo da sua própria tristeza e sujeição. No fim dessa semana, o seu dinheiro acabou - procurando uma
moeda para comprar o seu petit pain, não pôde achar um único soldo. Sem se abater, continuou a pintar o dia todo com uma espécie de fúria.
Na manhã seguinte, sentiu-se fraco e tonto, mas ainda assim forçou-se a prosseguir no trabalho. Quando chegou a tarde, porém, um raio de razão se infiltrou pelas
névoas que agora obscureciam o seu cérebro. Percebeu que se não comesse para viver, simplesmente isso, nunca terminaria a Circe - a menos que pudesse achar algum
meio de sustento. Sentado na beira da cama, refletiu por um instante e depois foi ao canto onde estavam as suas pinturas de Netiers, selecionando três que eram especialmente
brilhantes e coloridas. Eram boas, satisfaziam-no, davam-lhe confiança. Embrulhou-as em papel pardo e, com o rolo debaixo do braço, saiu para atravessar o Sena ao
longo dos Champs Elysées para o Faubourg Saint Honoré. Era um ato de coragem. Contudo, o tempo para meias medidas tinha passado. Estava resolvido a oferecer o seu
trabalho ao melhor negociante de arte da França.
Na esquina da Avenue Marigny, um logradouro principalmente ocupado por pequenos edifícios de apartamentos e suntuosas lojas de haute couture, deteve-se diante de
uma rica mas comedida fachada de pilares paládicos e pedra branca talhada. Depois, retesando-se decididamente, passou pela porta veneziana dourada e entrou num vestíbulo
calçado de mármore, com painéis de jacarandá e colgaduras de veludo vermelho, onde se achou diante de um jovem de paletó com abas abertas, sentado atrás de uma escrivaninha
Luís XVI laqueada e com ouropel. Através do cortinado lá atrás, via-se um amplo salão, igualmente esplêndido, embelezado por grandes buques de lírios em vasos de
alabastro e cheio de quadros belamente iluminados, diante dos quais gente elegante se movia, e misturava, consultando os seus catálogos, conversando em voz baixa.
- O senhor tem convite para o vernissage, monsieur?
Stephen devolveu o olhar do jovem maneiroso, que, por baixo do seu sorriso profissional, examinava-o com extrema cautela.
- Não. Eu ignorava que havia uma exibição. Vim para ver Monsieur Tessier.
- Qual o assunto, monsieur?lis
- Pessoal.
O sorriso, de inefável polidez, não vacilou.
- Receio que Monsieur Tessier não se encontre na casa. Contudo, se quiser tomar uma cadeira, irei verificar.
Quando Stephen sentou-se, o jovem levantou-se graciosamente e deslizou para dentro. Mas quase ao mesmo tempo uma porta lateral se abriu e três pessoas entraram na
sobreloja - uma mulher, muito elegante, de preto, carregando uma miniatura de poodle, enfitado e fantasticamente frisado; seu acompanhante, um homem idoso, entediado
e distinto, impecavelmente vestido, dos sapatos marrons ao chapéu; e Tessier, que Stephen reconheceu imediatamente, uma figura cortês, de rosto moreno, barbeado,
com o lábio inferior saliente e olhos de bistre. O marchand estava falando, sensatamente com reservada animação e movimentos comedidos das mãos.
- Asseguro-lhe que é uma perfeita gema. A mais fina que me chegou em vários anos.
- É linda - disse a dama.
- Mas o preço! - interpelou o seu companheiro um tanto soturno.
- Já lhe disse, cavalheiro. Por 100 mil, é inquestionavelmente um preço de ocasião. Mas se não o deseja para o senhor, tem somente que me dizer. Virtualmente, tenho
compromisso com outro cliente.
Houve uma pausa, um toque na manga do acompanhante, um murmúrio de conversação íntima, e então:
- Pode considerar a pintura vendida.
Uma inclinação de cabeça, não obsequiosa, mas gravemente aprovando semelhante bom gosto, foi a única resposta de Tessier. Contudo, não os levou até a porta, e quando
se voltou, parecendo meditativo, de cabeça baixa, mãos cruzadas atrás das costas, Stephen foi ao seu encontro.
- Monsieur Tessier, peço-lhe que me desculpe pela intrusão. Poderá dar-me cinco minutos apenas do seu tempo?
O negociante ergueu os olhos vivamente, perturbado nos seus pensamentos, certamente relacionados com cálculos e seu olho empapuçado, com a imediata percepção de
algo encontrado com desagrado em ocasiões anteriores, apreciou a figura maltrapilha que tinha diante de si, dos sapatos enlameados e encharcados ao embrulho malfeito
que trazia debaixo do braço.
- Não - murmurou ele. - Agora não. Como vê, estou inteiramente ocupado.
- Mas monsieur - insistiu Stephen, abalado mas com determinação. - Só lhe peço que veja o meu trabalho. Será demais um artista solicitar-lhe isso?
- Então o senhor é um artista? - O lábio de Tessier reentrou. - Felicito-o. Sabe que cada semana sou assediado, atacado e importunado por pessoas que se intitulam
génios e imaginam que eu desmaiarei num êxtase quando contemplar os seus execráveis esforços? Mas nunca tinha encontrado um com o atrevimento de me procurar aqui,
no auge da minha exibição de outono.
- Lamento perturbá-lo... mas o assunto é um tanto urgente.
- Urgente para mim... ou para o senhor?
- Para ambos. - Stephen engoliu convulsivamente. Na sua agitação, falou sem controle. - O senhor acaba de vender um Millet por uma soma considerável. Perdoe-me,
não pude deixar de ouvir. Dê-me uma oportunidade e eu lhe mostrarei um trabalho tão fino como qualquer coisa vinda de Barbizon.
Tessier relanceou os olhos para Stephen, notou a sua aparência perturbada, a dilatação dos seus olhos.
- Por favor - disse ele de maneira fatigada, abandonando o argumento.
- Mais uma vez, rogo-lhe.
Afastou-se para um lado, entrou no salão e um instante depois perdia-se de vista. Stephen, que tinha começado, com pressa nervosa, a desfazer o embrulho, ficou por
um momento muito pálido; depois, com uma expressão estranha, andou para a porta. Ao chegar à rua, o barbante, mal amarrado, desatou-se e as três telas caíram na
calçada molhada e escorregaram para a sarjeta.
Apanhou-as com cuidado, com uma ternura quase ridícula. O simples ato de abaixar-se fez-lhe a cabeça dar voltas. Mas teimosamente, com uma intensidade quase fanática,
disse a si mesmo que não seria derrotado. Havia outros negociantes de quadros em Paris, menos arrogantes, certamente mais acessíveis do que esse intolerável Tessier.
Vagarosamente, caminhou, através do tráfego, para a Rue de la Boétie.
Duas horas depois, molhado e ainda atrapalhado pelos três quadros, estava de volta à Place St. Séverin, tão exausto que mal pôde subir para o seu quarto. Na verdade,
na metade da escada sentou-se num degrau para recobrar o fôlego. Ao fazê-lo, a porta junto ao patamar abriu-se e apareceu, vestido para sair, de tamancos, camisa
sem colarinho e um sobretudo surrado, um homem de cerca de 30 anos, alto e moreno, com uma pele descorada e olhos fundos de semita. Ao descer, quase tropeçou em
Stephen, recuou e estudou-o com um sorriso amargo, peculiar.
- Não teve sorte? - exclamou.
- Não.
- Tentou com quem?
- A maioria deles... de Tessier para baixo.
- Salamon?
- Não me lembro.
- Ele não é mau. Mas nenhum deles está comprando agora.
- Tive uma oferta. Duzentos francos para falsificar um Breughel.
- E você aceitou?
- Não.
- Ah, a vida tem seus pequenos vexames. - E depois de uma pausa: - Como se chama?
- Stephen Desmonde.
- Chamo-me Amédée Modigliani. Venha tomar um drinque.
Dirigiu o caminho de volta ao patamar e abriu a porta do seu quarto. O seu apartamento era quase idêntico ao de Stephen, mas talvez mais sórdido. Num canto, ao lado
da cama por fazer, havia uma pilha suja de garrafas vazias, e no centro um cavalete com uma pintura quase terminada, um nu reclinado.
- Gosta? - Servindo dois Pernods de uma garrafa que tirara do armário, Modigliani inclinou a cabeça para a tela.
- Sim - disse Stephen após um momento.
Havia na pintura um estilo pessoal, marcado por seus esforços numa linha arabesca, algo de monumental e puro.
- bom - disse Modigliani, passando-lhe o copo - mas esse quadro porá o comissário de polícia atrás de mim. Ele já proclamou que os meus nus são escandalosos.
O absinto, fortalecendo Stephen, clareando o seu cérebro, evocou uma nota de recordação.
- Você não exibiu nos Indépendants? Le Joueur de Violoncello?
O outro fez um gesto afirmativo.
- Não era o meu melhor trabalho. Mas foi vendido. Agora eles não comprarão nada. Na verdade, se não fosse o meu talento para plongeur no Hotel Monarque, eu teria
sido gentil com os meus críticos e deixado de existir.
- Um plongeur? - Stephen não compreendia.
- Sim, gostaria de experimentar o trabalho? vou para lá agora. É um emprego fascinante. Um leve sorriso, saturnino, apareceu nas suas feições impassíveis, cor de
oliva. - E eles sempre apreciam um empregado novo.
- Tentarei qualquer coisa.
Saíram juntos e começaram a andar em direção à Etoile. O Grand Monarque, um dos famosos hotéis parisienses, era uma imensa construção palacial no estilo Terceiro
Império, ocupando um quarteirão inteiro, logo depois dos Grands Boulevards. Imponente e digno, um tanto fora de moda, com degraus de mármore, tapetes vermelhos,
as vastas salas públicas com lustres cintilantes, um bando de atendentes esvoaçando atrás das portas de metal polido, como sentinelas, para receber os embaixadores,
dignitários estrangeiros e príncipes nativos, que estavam entre os seus visitantes, dava uma sensação de opulenta magnificência. Modigliani, contudo, quando chegaram
ao pórtico central, não tentou uma entrada, mas guiou o caminho em torno de um canto escuro e por uma passagem que dava para as dependências dos fundos, flanqueada
por uma bateria de latas de lixo amassadas; um lance de escadas admitiu-os no subsolo.
Era menos um subsolo do que uma imensa adega subterrânea, com o teto úmido e pingando, atravessada por uma confusão de tubos de ferro, de paredes
escamadas, pegajosas de bolor, o chão de pedra-britada com água de despejos até os tornozelos, tudo fracamente iluminado por umas poucas lâmpadas elétricas nuas,
cheio de vapor, barulho e uma confusão babélica de vozes. Ali, numa comprida calha, uma fila de homens, arrebanhados, parecia, na ralé de Paris, estava febrilmente
lavando pratos que uma turma de ajudantes de cozinha continuava trazendo apressadamente, embraçadas, das cozinhas contíguas. Agora, pensou Stephen, após acomodar
os olhos àquela visão de pesadelo, sei o que significa um plongeur.
Entrementes, Amédée tinha se aproximado do contremaître, que, com um olhar indiferente para Stephen, entregou-lhe um disco de metal com um número estampado e marcou
o tempo a giz, diante desse mesmo número, numa ardósia que pendia do seu cubículo, ao lado de um aviso que advertia que se alguém fosse apanhado tirando porções
de alimento seria sumariamente processado.
E agora, imitando seu companheiro, Stephen tirou a sua jaqueta e, tomando lugar na fila, começou a lavar os pratos do jantar empilhados na pia. Não era trabalho
fácil, curvado sobre a calha baixa, e não havia interrupção. O odor da água espumosa nunca mudava, o mau cheiro da graxa e restos de comida era nauseante. Periodicamente,
a pasta de restos entupia o ralo e tinha que ser retirada com a mão. Era estranho, durante esse processo, ouvir um leve sopro de música polida vindo da orquestra
no pátio de palmeiras lá em cima.
Cerca das 11 horas, o ritmo diminuiu, e antes da meia-noite houve uma parada definitiva, que indicava que as damas e cavalheiros lá de cima tinham Sido alimentados.
Amédée, que durante todo o tempo não pronunciara uma única palavra, pôs o seu casaco, acendeu um cigarro e, com um movimento da cabeça, chamou Stephen para a porta,
onde o contramestre, após uma olhadela na pedra do tempo, pagou a cada um 2 francos e 50.
Lá fora, ainda em silêncio, ele caminhou de ombros caídos pelas ruas escuras e, cinco minutos depois, guiou o caminho para um bistro que ficava aberto a noite toda.
Ali, enquanto Amédée bebia vários Pernods, Stephen consumiu um pratarrão de pot-au-feu, grosso de boas verduras e pedaços de carne de carneiro. Era a sua primeira
refeição satisfatória em muitos dias, e sentiu-se melhor.
- Não quer alguma coisa? - perguntou ele.
- Isto é carne e pão para mim. - Amédée olhava com dura indiferença para o fluido esverdeado e opalescente do seu copo, que segurava com os dedos manchados de nicotina.
- Tem sido a minha dieta há muito tempo.
Sentado no café deserto, as luzes amortecidas, a mesa de bilhar lá atrás, protegida para a noite, o garçom solitário, semi-adormecido, com o seu guardanapo sobre
a cabeça, atrás do balcão, Amédée revelou alguma coisa de si mesmo em frases lacónicas.
Nascido na Itália, provinha de uma família de judeus italianos, estudara, a despeito das interrupções causadas por doenças, em Florença, e na Academia de Veneza.
Nos últimos sete anos, inspirado pelos primitivos e pela arte negra, tinha trabalhado em Paris, às vezes com o seu amigo Picasso, e ocasionalmente com Gris. Não
tinha vendido praticamente nada.
- Assim é que agora - concluiu ele, com o seu sorriso sombrio mas inquieto - me vê enfraquecido pela pobreza, pelo excesso de álcool, e pelo uso de drogas nocivas.
Sozinho, a não ser por uma moça que teve a desgraça de me conhecer. Despido de qualquer reputação. - Emborcou o resto da bebida e levantou-se. - Mas alegre pelo
fato de que jamais aviltei a minha arte.
Disse boa-noite, sem ênfase, na escada que levava aos seus aposentos.
Por breve que tivesse sido, aquele estranho encontro foi providencial para Stephen. Agora, aguentando todas as noites cinco horas de trabalho suado nos porões fumegantes
do Grand Monarque, podia sobreviver e, o que lhe parecia mais importante, continuar a trabalhar com toda a sua força na Circe.
Finalmente, cerca de três semanas depois, numa tarde seca e fria, terminava o trabalho. Lá estava ela, naquela atitude familiar de descuidada insolência, indiferente
mas aliciante, com seu rosto pálido e olhos enigmáticos, aquela moderna filha de Helios, tendo como fundo não o palácio de Aiaia, mas a rua de um bairro miserável
de Paris onde se agrupavam os seus amantes vencidos, mudados e degradados na forma de bestas, e que, domados e abatidos, olhavam para ela com um desejo servil, como
se ainda estivessem sedentos por suas carícias.
Exaurido por esse esforço final, Stephen foi incapaz de avaliar sua obra, que tomara uma forma fantástica por força de uma compulsão a que ele não pudera resistir.
Sabia apenas que nada mais podia acrescentar, e, em um espasmo de impaciência nervosa, embrulhou o quadro no mesmo papel pardo amassado que já usara antes e o levou
para o Institut des Arts Graphiques, na Place Redon. Lá, um funcionário idoso tomou o seu nome e anotou meticulosamente todos os detalhes em um livro; depois, constatando
que a tela não tinha moldura, relutou em aceitá-la.
- O senhor vê, monsieur, a especificação é de montage.
- Não notei.
- Mas é evidente. Olhe, monsieur, todas as outras peças estão corretamente montadas.
Stephen, relanceando os olhos por uma comprida galeria com dezenas de pinturas, sentiu uma súbita apatia. De uma maneira ou de outra, não se importava.
- Não posso comprar uma moldura. Aceite como está ou não aceite.
- Isso é muito irregular, monsieur. Mas, se quiser, deixe-a.
De volta ao seu sótão, sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, tomado
por uma letargia de pós-criação. E agora... que faria? Impossível continuar no Monarque - sua alma revoltava-se com essa ideia - contudo estava à beira da indigência.
Tirante as roupas que usava, o equipamento de pintura, e 15 soldos, não possuía nada de valor material. Tudo mais tinha empenhado. Levantou-se e olhou no armário.
Continha a metade de um pão, duro como pedra, e uma fatia de queijo. Lá embaixo, Amédée estava ausente há três dias, submerso numa das farras em que periodicamente
sucumbia, e da qual emergiria, entontecido, em alguma remota região da cidade. Atrás da divisão de madeira, o casal da porta ao lado tinha começado uma briga, gritando
um para o outro. Crianças brincando, discutindo, aumentavam a barulheira. Apesar da janela aberta, o quarto estava abafado pelo ar viciado da cidade, e nos lambris
rachados começava a usual procissão noturna de baratas.
Tudo isso, bastante difícil de aguentar, não era nada porém comparado com a insuportável sensação de solidão e privação que lhe torturava o peito. Não mais amortecido
pelo analgésico do trabalho, o seu desejo de que Emmy voltasse era mais forte do que antes. Ao contrário de Ulisses, nSo tinha uma erva mágica para proteger-se contra
o seu encanto. Culpava-se por não a ter convidado para ver o quadro. No dia seguinte ela tinha partido, indo para o sul com a troupe de Peroz - não a veria antes
de pelo menos seis meses, se é que tornaria a vê-la. Lembrando-se da enfatuação que Madame Cruchot tivera por ele, tremeu com a peça que o destino lhe tinha pregado
- agora era ele quem assumia o ridículo papel.
Não tinha nada em que se ocupar, nem ao menos um livro para ler; sentia-se inteiramente mole para se aventurar às ruas. Quando anoiteceu, deitou-se na cama, mas
não pôde dormir. O dia seguinte era terça-feira, e surgiu com um suave e límpido amanhecer. Ele se levantou e se vestiu. A ideia dos veículos do circo partindo naquela
tarde para o campo aberto e a ensolarada Côte d'Azur atormentava-o novamente. De repente, sem quê nem por quê, veio-lhe uma ideia. Por um momento, ficou imóvel,
parado no meio do soalho. Seria capaz disso? Ao menos poderia tentar. Apanhando o chapéu, saiu rapidamente do quarto e tomou, trémulo, a direção do Boulevard Jules Ferry.


CAPÍTULO VII

NUMA EXTENSÃO DE TERRENO COMUM, logo após os taludes de Angeres, naquela tarde de sol muito brilhante para o fim de outubro, o Circo Peroz armou
a sua cidade de lona vermelho vivo. As barracas de espetáculos secundários já estavam em ação, uma musiquinha vinha do carrossel das crianças, e os aboyers começavam
as suas exortações aos poucos espectadores presentes.
No seu stand, no fim de uma linha de barracas, vestido com uma blusa azul, boina, uma frouxa gravata preta, vestuário composto para sugerir às mentes rústicas a
altura da arte parisiense, Stephen respirava longamente o ar do campo, aromatizado com a fumaça de lenha, cascas de laranja, serragem fresca, tanino, e o cheiro
dos cavalos. A seu lado aprumava-se um cavalete enfeitado com uma tabuleta que o exaltava como Grand Maître des Academies de Londres et Paris, e prometia uma semelhança
exata, feita à mão, de perfil ou de frente, em carvão de primeira qualidade, por apenas cinco francos, em cores ricas e permanentes por sete francos e cinquenta,
cortesia e serviço iguais aos dispensados às cabeças coroadas da Europa, satisfação assegurada.
Ouviu-se o relincho de um garanhão, o agudo clangor de uma corneta e o grunhido fraco de uma leoa velha. Com a sua tosse praticamente desaparecida, Stephen experimentava
uma súbita recuperação do seu bem-estar físico. Não lamentava o impulso que o levara a Peroz três semanas antes.
- Aproxime-se, aproxime-se, cavalheiro. Vamos, senhor, convença mademoiselle a ter o seu lindo rosto pintado. Não seja modesto. Deixe um retrato para os seus netos.
Um casal de campônios, de braço dado, vestido com as suas roupas domingueiras, hesitava à sua frente, e então corando, a moça tomou coragem e aproximou-se. Não era
bonita, mas ele, em poucos e rápidos traços, esboçou a sua figura na folha que estava no cavalete, deu relevo à sua coifa de renda fina, aos bordados à mão dos seus
punhos, e, ensinado pela experiência, não esqueceu o broche de camafeu, um óbvio tesouro de família, que ela usava no corpete.
Enquanto isso, uma pequena multidão se juntava, ouvindo-se murmúrios de aprovação pelo retrato terminado, e logo ele estava trabalhando bastante. Para ele, não era
mais que um processo mecânico executado sem pensar; contudo, divertia-se em dar a alguns dos seus retratos uma individualidade irónica, detendo-se no detalhe de
uma feição particular, um olho bovino, uma orelha grande, um nariz bulboso, como acontecia às vezes nas noites de sábado, quando um cliente era ofensivo, desenhando
com malícia uma caricatura que, as mais das vezes, provocava o riso dos outros.
Às seis horas, a multidão diminuía, como sempre, antes da função principal do circo, e apanhando a sua tabuleta e tirando a blusa e gravata, Stephen entrava por
um labirinto de cordas e lonas para um pequeno recinto atrás da barraca contígua. Ali, acocorado diante de um vivo braseiro, um homenzinho enrugado, de perneiras
gretadas e culotes sujos de veludo cotelê, estava cozinhando o jantar. De pernas tortas, cabelo cortado rente, tinha feições nítidas,
castigadas pelo tempo, exceto o nariz, que era chato e quebrado. Seus olhos eram miúdos como contas, parados, e o fulgor do braseiro lhes dava calor.
- Que temos esta noite, Jo-jo?
- O de sempre. - Jo-jo olhou para cima. - Mas também um pouco de salsicha de carne de porco fresca, de Angers, que achei na Tur Toussaint. É uma das duas especialidades
desta cidade.
- E a outra?
- Cointreau, naturalmente, mon brave. É feito aqui.
As salsichas, respingando numa frigideira, pareciam cheias de promessas. promissoras. Jo-jo, que na sua mocidade tinha sido jóquei, depois vendedor de barbadas,
depois cavalariço, e depois bookmaker, e que finalmente tinha sido aconselhado a sair de Longchamps, era um cavador perito. Conhecia todas as tramóias da França.
Ninguém gostava mais de regatear no mercado ou de pegar uma galinha extraviada de uma granja à beira da estrada.
- Gostei destas duas noites aqui. - Stephen deu lugar no braseiro para o coador de folha do café. - Amanhã estamos de folga até as três. Pretendo dar uma olhada
no rio.
- O Loire é um bom rio - disse Jo-jo com um ar de quem sabe das coisas. - Fundo bom de areia, com muito peixe bom. Vou deixar umas iscas de noite e ver se temos
sorte. De fato, todo o país é bom para nós - Tours, Bolis, e especialmente Nevers. O vinho é um tanto fraco, mas a bóia é de primeira, e as mulheres... essas putas
da Touraine, grandes atrás e na frente... - Assobiou e revirou os olhos.
Enquanto ele falava, a aba da barraca se abriu e entrou um homem de aspecto estranho, com calças de xadrez e suéter caqui de gola rulê. Era alto e franzino, tão
dolorosamente magro que parecia um esqueleto, e o rosto e mãos - únicas partes visíveis do seu corpo - estavam cobertos por uma espessa crosta de escamas cor de
cobre. Era Jean-Baptiste, que participava de um dos mais pobres caminhões com Stephen e Jo-jo. Manso, taciturno e melancólico, era um caso extremo de psoríase crónica,
uma doença da pele, indolor mas incurável, sendo exibido aos curiosos como o Crocodilo Humano, produto da união de um sáurio feroz e de uma nadadora do Rio Amazonas,
com o que ganhava uma modesta subsistência.
- Teve uma tarde boa, Croc? - perguntou Stephen.
- Não muito - respondeu Baptiste sombriamente. - Nem um íntimo.
Essa era a parte mais proveitosa da técnica de Croc em descobrir-se lentamente, das extremidades para baixo; quando chegava ao umbigo, fazia uma pausa e, deixando
seus olhos correrem pela plateia, exclamava dramaticamente, com uma espécie de sedução macabra:
- Para revelações mais íntimas, estou à disposição na tenda dos fundos. Ingresso especial para essas revelações privadas, apenas cinco francos.
Quando a comida ficou pronta, sentaram-se em volta do braseiro - uma grande caneca de sopa fumegante, seguida pelas salsichas, duras mas suculentas, temperadas com
ervas do campo, um molho com pedaços de pão fresco cortados com uma faca dobradiça. Somente depois que se juntara à troupe, Stephen aprendeu a saborear os aumentos
comidos ao ar livre. Depois houve café, quente, forte e arenoso, servido na caneca de sopa. Então Jo-jo enrolou um cigarro e, com o ar de um mágico, tirou do bolso
dos quadris uma garrafa do límpido licor da região.
- Que tal um gole de vinho do altar, Abbé?
O apelido tinha seguido Stephen de Paris - ele não se importava. Passaram a garrafa de mão em mão, bebendo o claro e ardente licor sem copos. Jo-jo enrolava-o na
língua.
- Você pode confiar nele. Feito com as melhores laranjas de Valença.
- Uma vez me aconselharam a nunca comer frutas. Outra vez me disseram que não comesse outra coisa - disse Baptiste, que gostava de falar no assunto da sua doença.
- Ao todo consultei 19 médicos. Cada um deles mais tolo do que o outro.
- Então tome outra dose do meu remédio.
- Ah, isto é que é remédio para mim!
- Você não pode se queixar, Croc. Não tem uma existência rica e interessante? Você experimenta as delícias de viajar. Em suma, você é famoso.
- É fora de dúvida que muitas pessoas têm viajado 50 quilómetros para
me ver.
- E não tem um grande sucesso com as damas?
- Tenho mesmo. Exerço um certo fascínio sobre elas.
Diante desta séria admissão, Jo-jo soltou uma risada. Depois, apagando o cigarro, levantou-se para ver os cavalos.
Era a vez de Stephen lavar as panelas. Quando terminou, ao lusco-fusco, as luzes produzidas pelo gerador brilhavam como vaga-lumes sobre a feira. Olhando, sentia
todos os seus sentidos despertados. Não tinha visto Emmy todo o dia. Mas ela não gostava de ser perturbada antes do espetáculo, e o povo já convergia para a grande
tenda. Guardou o cavalete e o resto da tralha numa caixa, debaixo do seu beliche no caminhão, vestiu as suas roupas comuns e caminhava para a entrada dos fundos
do picadeiro. De acordo com o seu contrato, era seu dever acompanhar os membros de terra da companhia, que indicavam aos espectadores os seus lugares, vendiam programas,
sorvetes, citronade, e aquela marca de nugá feita especialmente em Paris para o Circo Peroz.
Parecia a Stephen uma excelente "casa" - o circo tinha uma reputação merecidamente popular através das províncias, e, com bom tempo, a mercadoria dos stands era
em geral totalmente vendida. Esta noite, fila após fila de rostos expectantes e rosados se ergueram da serragem do picadeiro. Subitamente,
na sua alta plataforma, vestido de vermelho e dourado, quando a charanga atacava uma grande marcha, o mestre do picadeiro, o próprio Peroz, apareceu de cartola,
alamares brancos e capa escarlate, dirigindo um cortejo de póneis que entraram na arena a meio-galope, atirando as crinas para os lados, e o espetáculo começou.
Embora, a esse tempo, conhecesse os números de cor, acocorado junto à grade do corredor da entrada dos artistas, com um bloco de esboços no joelho, Stephen acompanhava
cada fase, cada movimento do espetáculo com absorvido interesse, notando, vezes e mais vezes, os ritmos da coordenação muscular, o jogo de luzes e tons das cores
no vasto caleidoscópio cintilante, e mesmo as reações individuais, às vezes cómicas e bizarras, das pessoas da plateia.
Era fascinante, aquele novo mundo que ele havia descoberto, com os seus soberbos cavalos de alta escola, montanhosos elefantes e sinuosos leões de olhos amarelos,
seus acrobatas às cambalhotas, jograis prestidigitadores, funâmbulos da corda bamba sob os seus pára-sóis de papel. Observando, Stephen pensava na famosa peça de
circo de Manet, Lola no Arame, e na sua atual disposição melhorada sentia que podia desenhar aquele campo com igual riqueza. Desenho, sem dúvida, haveria, mas acima
de tudo a cor seria o instrumento da sua expressão. Via na sua paleta as cores puras, os ultramarinos, ocres e vermelhões, via como podia humanizá-lo sem reduzir
a sua intensidade. Criaria um novo mundo, um mundo que só ele percebia, um mundo somente para ele. Curvado no seu canto, desenhava e desenhava. Este era o seu verdadeiro
trabalho; os retratos que pintava de dia não eram mais que um meio de vida, e na pasta em sua caixa fechada já tinha dezenas de estudos que usaria numa formidável
composição.
Após o intervalo, davam entrada os artistas mais importantes - a troupe Dorando, de trapezistas; Chico, o engolidor de espadas; Max e Montz, os palhaços famosos.
A seguir, um soalho de madeira era rapidamente montado no centro do picadeiro e ouvia-se a fanfarra que conhecia tão bem, e que sempre fazia o seu coração bater.
Então, embaixo, via Emmy pedalando, usando uma blusa de cetim branco, calções brancos e compridas botas brancas. Ao chegar ao assoalhado, começava a executar, à
luz da bicicleta niquelada, uma série de evoluções que deixavam o espectador tonto, circulando e recuando e avançando, sempre no pequeno espaço, mudando de posição,
até que dirigia de cabeça para baixo segura no guidom, finalmente desmontando em movimento e fazendo complexas configurações numa roda só.
Talvez essas manobras fossem menos difíceis do que pareciam, mas o culto da bicicleta, uma paixão nacional que anualmente chegava ao auge nas agitadas semanas devotadas
ao Tour de France, tornava-a popular junto ao público. Uma tempestade de aplausos reboava embaixo da grande cúpula, seguida por um silêncio enquanto Emmy caminhava
para uma curiosa estrutura na
extremidade do picadeiro. Era um elevado escorregador, uma estreita fita de metal pintada de vermelho, branco e azul, que descia que descia quase verticalmente do
teto da tenda e terminava numa curva que subia bruscamente.
Alterando o seu ritmo, a banda exagerava a expectativa, enquanto Emmy, subindo lentamente por uma escada de corda, alcançava a minúscula plataforma do topo. Lá,
entrevista nas últimas espirais de fumaça, ela desenganchava uma bicicleta mais pesada das travas que a sustinham e segurava-a, testava o quadro, espichava os membros,
passava giz nas mãos, montava na máquina sobre a plataforma e, por um longo momento, parecia estar suspensa, quase flutuando na névoa de vapor. Os metais, que tinham
gradativamente diminuído para um profético murmúrio, vinham agora novamente à vida, apoiados por um estaccato de tambores que rufavam e reverberavam cada vez mais
alto. Era o instante que fazia Stephen desejar fechar os olhos. Jo-jo lhe dissera que, havendo perícia e coragem, o perigo era limitado; a estria branca do centro,
na qual as rodas deviam andar precisamente, tinha menos de 15 centímetros de largura, e depois da chuva, ou quando a umidade era grande, a superfície escorregadia,
apesar de enxugada, era traiçoeira. Contudo, não havia tempo para pensar - numa tempestade final de som, Emmy soltou-se, caiu parecendo uma pluma, projetou-se para
cima na curva e pousou na plataforma de madeira com uma velocidade que a carregava para fora da tenda como um raio.
No meio dos aplausos, embora não pudesse sair, Stephen escapou e rodeou para a barraca onde os artistas se vestiam. Teve que esperar 15 minutos até que ela saísse,
e imediatamente sentiu que ela não estava de humor muito amável.
- Então? - perguntou ela.
- Você esteve ótima... notável - afirmou ele.
- A pista estava molhada - um orvalho pesado - e esses fripons preguiçosos não enxugaram nem a metade. Então não sabem que é suicídio deslizar numa pista úmida?
Eu quase não desci. - Em várias ocasiões, por causa disso, tinha cancelado o número - de fato, tinha um acordo com Peroz que lhe permitia tomar essa resolução. Mas
a queixa deixou-lhe a voz. - Mas esta noite eu queria mesmo.
- Por quê?
Ela não pareceu ouvi-lo. Então, indiferente, respondeu:
- Por causa daqueles militares.
- Soldados?
- Não, estúpido, oficiais, naturalmente. Havia aqui uma escola de cadetes do primeiro ano. Não viu o grupo na frente da tribune?
- Acho que não.
- Uma turma elegante, isso era, nas suas túnicas. Eu gosto de uniforme.
E eles estavam querendo que eu os visse. Não que eu notasse, naturalmente. - A sua expressão amuada afastou-se um pouco. - Eu fiz um extra para eles.
Ele mordeu o lábio, procurando abafar o ciúme que ela tinha tanta capacidade de despertar nele. Após o calor sufocante da tenda, o ar era leve e fresco.
- Vamos caminhar até os muros da cidade... lá é muito bonito.
- Não. Não estou com disposição.
- Mas está uma noite tão linda. Olhe, a lua acaba de sair.
- E eu vou entrar.
- Não vi você o dia todo.
Nenhum músculo do seu rosto Se moveu.
- Já me viu agora.
- Apenas um momento. Venha.
- Já não lhe disse que fico cansada depois do meu número? A tensão é muito violenta. Pra você, tudo muito bem, vendendo programas e nugá lá embaixo.
Ele viu que era inútil insistir mais. Escondeu estoicamente o seu desapontamento. Chegaram ao caminhão que ela partilhava com Madame Armande, a mulher que cuidava
do vestuário da troupe. Ele tinha pensado nela o dia inteiro, sentia-se faminto por sua companhia, por um sinal da sua afeição. E ela estava ali, a sua figura ao
luar, rija, sedutora; queria agarrá-la e beijar à força o seu rosto pálido e indiferente, a sua boca ligeiramente entreaberta. Mas não fez nada disso, limitando-Se
a dizer:
- Não se esqueça de amanhã. Venho buscá-la às 10.
Viu-a subir as escadas a correr e desaparecer no caminhão.
Ao voltar, a função tinha terminado e a multidão se despejava pela saída da grande tenda, falando, gesticulando, rindo. Todos pareciam felizes, satisfeitos com a
vida e consigo próprios, ao voltarem aos seus lugares comuns e confortáveis. Stephen perdeu aquela sua primeira disposição alegre. Inquieto e perturbado, não podia
voltar ao seu canto, enfrentar as caçoadas de Jo-jo e os roncos de Baptiste. Saiu para as muralhas sozinho.


CAPÍTULO VIII

NA MANHÃ SEGUINTE, trazida por uma alvorada mansa e cinzenta, ela o surpreendeu e alegrou por sua pontualidade. Estava quase pronta quando ele chegou,
e pouco depois estavam nos seus vélos, rumando para o Loire, no belo contorno de Angeres, com as suas muralhas romanas, a Catedral de St. Maurice com suas agulhas
e as arcarias da préfecture atrás deles. Como sempre, ela imprimia um ritmo muito veloz, curvada sobre o guidom, as pernas movimentando-se como pistons, com o firme
propósito de deixá-lo para trás. A bicicleta dele, comprada barato com o seu primeiro pagamento semanal, era um modelo antigo; contudo, o ar fresco e a comida do
campo tinham-no robustecido. Embora lhe custasse um esforço contínuo ladeira acima, mantinha o seu lugar pouco atrás do ombro dela.
Atravessaram, dali a pouco, um arvoredo à esquerda e imediatamente se descortinou todo o esplendor do vale - o rio grande e largo brilhando na luz plácida, movendo-se
preguiçoso entre as ribanceiras e sobre baixios de areia dourada, passando por altos tufos de vimeiros, barcos de fundo chato atracados e ilhotas verdes. Na estrada
serpenteante, pesada pela areia, diminuíram a velocidade. Por trás de uma cortina de faias, Stephen avistou as torres pontudas e a fachada musguenta de um antigo
castelo. A beleza da região era inebriante para o seu espírito. Soerguido, olhou para a sua companheira, fez como se fosse falar, mas, depois, sabiamente, absteve-se.
Por volta do meio-dia, chegaram a um staminet à beira do rio, onde, acima da porta, um peixe monstruoso, enredado em algas, nadava numa caixa de vidro. Primeiro,
Stephen tinha proposto um piquenique, mas isso tinha pouca atração para Emmy, que sempre preferia parar em algum café provavelmente freqüentado pela confraria esportiva,
onde, numa atmosfera de camaradagem, havia livre companheirismo, vivas conversas em gíria e a música de um acordeom. A estalagem, todavia, embora possuísse um considerável
encanto, estava vazia de clientes - um fato que não desagradou Stephen, que sofria com a admiração demasiado franca que a sua companheira gostava de provocar. Atravessaram
o soalho de pedra limpo com areia, sentaram-se à mesa esfregada com escova e sabão junto a uma janela, da qual pendia um banco, e, após consultarem a proprietária,
escolheram um prato de peixe local que ela recomendara muito. Este chegou pouco depois, numa enorme travessa de madeira, um fritto de minúsculas espadilhas do Loire,
cada uma não maior do que um filhote de arenque, cozidas tão secas que se quebravam ao toque do garfo. Com eles vieram pommes frites e uma jarra de Bière Navarin,
preferida por Emmy.
- Isto é bom - disse Stephen, olhando por cima da mesa.
- Não é mau.
- Gostaria de pedir uma garrafa de vinho para mim - disse ele em tom de pedido.
- Eu gosto desta cerveja. Faz-me lembrar de Paris.
- Num dia como este?
- Em qualquer dia Paris me basta.
- Ainda assim... você não se importa de estar aqui não é?
- Podia ser pior.
Emmy não era afeita a superlativos, mas neste momento estava de excelente humor, e dali a pouco pôs-se a rir.
- Você não adivinha o que eu recebi esta manhã. Flores. Rosas. E um billet-doux de um dos oficiais.
- Ah, sim? - A sua expressão tornou-se ligeiramente rígida.
- Aqui está. Monograma gravado e tudo. Com outra risada, apalpou o bolso e tirou um bilhete cor-de-rosa amarrotado. - Dê uma olhada.
Ele não tinha vontade de ler o bilhete, mas também não queria ofendê-la. Passou rapidamente os olhos, notando o duplo sentido das frases polidas que a convidavam
a ir tomar um aperitivo na Terrasse e depois jantar no Le Vert d'Eau. Devolveu-o sem comentário.
- Ele é capitão, parece. Acho que o vi no grupo de ontem à noite. Alto e bonito, de bigode.
- Você vai? - perguntou ele, mascarando os seus sentimentos com um tom inexpressivo.
A fria ironia da sua maneira atravessou a sua auto-estima. Ela raramente corava, agora uma leve cor apareceu por baixo da sua pele branco-azulada.
- Quem é que você pensa que eu sou? Conheço essas guarnições da cidade e o que se pode arranjar com elas. Pra mim não, obrigada.
Stephen ficou silencioso. Embora se desprezasse por isso, e em vão tentasse combatê-lo, de tempos em tempos o ciúme lhe vinha num impulso dominador. A simples ideia
de que ela pudesse sair sozinha com aquele oficial desconhecido causava-lhe um sofrimento penoso. Contudo, ela declarara categoricamente que iria ignorar o convite;
assim, obrigando-se a ser razoável, forçou um sorriso conciliatório.
- Vamos descer até o rio. - Quando brigavam, era sempre ele quem procurava fazer as pazes.
Pagou a conta, e desceram à beira da água. O sol, geralmente quente para aquela época do ano, tinha esmaecido e, lançando reflexos da água que faziam fechar os olhos,
envolveu-os num banho de luz. Ele amava o sol - sol e água eram os deuses gémeos que poderia adorar. E enquanto ela acendia um Caporal e, com os olhos fechados,
relaxava numa postura cómoda na sombra de um salgueiro, ele sentou-se na claridade aberta e começou a desenhá-la. Já tinha feito dezenas de desenhos, nos quais se
refletia não apenas a intensidade do seu sentimento por ela, mas também a complexa interação de angústia, desejo e, por vezes, quase ódio que o compunha.
Não estava cego àquela forma de egoísmo, crueldade e vaidade, que em outra pessoa teria provocado o seu desprezo. Sabia que ela apenas o tolerava
- talvez porque a sua mentalidade gaulesa se detivesse nas possibilidades da grande proprieté, mas principalmente, e disso tinha certeza, porque o seu evidente desejo
a lisonjeava, dava-lhe uma sensação de poder apreciada por sua natureza. Ela lhe trazia mais sofrimento que felicidade. Contudo, nada podia fazer. Desejava-a com
uma necessidade física que, não sendo por ela satisfeita, aumentava de dia para dia.
Dali a pouco, erguendo os olhos do bloco, viu que ela estava dormindo. Deixou escapar, involuntariamente, um suspiro nervoso e irritante. Soltando o seu bloco e
creions, aproximou-se mais da margem, e então, num impulso, tirou a roupa e mergulhou no rio. Sabia, pelas excursões anteriores, que ela não gostava daquilo - tinha
uma aversão felina pela água fria - mas para ele o choque daquelas águas vindas de fontes era uma revigorante delícia.
Quando voltou, ela estava em pé, sacudindo o capim do cabelo cheio e curto.
- Você sabe deixar os outros sozinhos.
- Pensei que estivesse dormindo.
- Que horas são?
- Ainda é cedo - disse ele, aproximando-se e enlaçando-a pela cintura.
- Ainda temos mais uma hora.
- Oh, deixe-me! - Inclinou-se para trás e empurrou-lhe o peito com as mãos. - Você está molhado.
- Mas Emmy...
- Não, não. Não devemos chegar atrasados. Você não vai querer perder o seu emprego. É tão agradável e conveniente para você, não é?
- Sim, claro - respondeu ele com voz tensa. Ela já estava voltando para a estalagem e Stephen a acompanhou.
Aquele raro interesse pelo seu bem-estar intrigava-o. E não se dissipou pela sua disposição animada, quando voltavam a Augers. Em voz alta, ela ia cantando trechos
da última canção do teatro de variedades:
Les jolis soirs dans les jardins de l'Alhambra Ou donc sont les belles?
Que l'amour appelle?...
Et le rendez-vous, de l'amour très fou.
E seguindo seu hábito quando estava alegre, deixava os habitantes locais de boca aberta, com uma exibição de ciclismo difícil ao passarem rapidamente pelas aldeias
ribeiras.
Ainda não eram três horas quando chegaram ao circo, e poucas pessoas estavam diante dele. Stephen trocou de roupa e armou o seu cavalete. Trabalhou toda a tarde,
de um modo ausente, sorumbático, com as linhas da testa
cada vez mais fundas. Embora lutasse contra a ideia de que ela abreviara a excursão a fim de ir ao encontro na Terrasse, essa ideia só fazia aumentar. O crepúsculo
não lhe trouxe nenhum alívio, e durante o jantar mal trocou uma palavra com Jo-jo e Croc.
Por fim, levantou-se bruscamente e foi para o outro lado do campo, onde estava o caminhão de Emmy. Madame Armande estava sentada nos degraus, com um balde entre
os joelhos gordos, lavando meias. Em certa época, ela fizera parte de um número de trapézio, mas quebrara o quadril numa queda e desde então caminhava coxeando.
Agora, aos 50 anos, pesada e sem formas, de pernas hidrópicas e papada, era conhecida como a mexeriqueira da companhia Jo-jo, que cuspia ao ouvir o nome dela, dizia
que durante o recesso de inverno ela gerenciava um estabelecimento de reputação duvidosa no porto do Havre.
- Boa noite - disse Stephen, tentando manter a voz calma. - Emmy está?
Madame Armande mediu-o de esguelha com os seus olhos miudinhos.
- Mas Abbé, você sabe muito bem que ela não vê ninguém antes do espetáculo.
- É só um instante.
Ela abanou a cabeça encaixada num lenço estampado com bolinhas.
- Eu não me atrevo a perturbá-la.
- Então... - Hesitou, ansioso por acreditar nela. - Está descansando?
- A mulher levantou os braços.
- E que mais? Nom de Dieu, acha que sou mentirosa?
A sua indignação era real ou fingida? Ele queria entrar no caminhão, mas a mulher e o balde bloqueavam a entrada. Não devia tornar-se completamente ridículo. Forçou-se
a fazer algumas observações convencionais, e voltou para a escuridão.
O povo chegava aos bandos, a função começava, risadas estrepitosas e aplausos enchiam a grande tenda. Ela estava atrasada. Seria por simples coincidência? Não podia
ter certeza. Procurou tranquilizar-se. Quando ela finalmente apareceu, a impressão, conforme sua fantasia superexcitada, foi de que estava mais aparatosa, mais espetacularmente
viva do que o usual. Gritos prolongados de "bravo!" vinham da tribune quando ela deixou o picadeiro.
Depois disso, na confusão de arrancar as estacas, não pôde vê-la. Melancolicamente, juntou-se a Jo-jo e Croc na tarefa de desmontar os stands. Trabalhando sem atenção,
cortou a mão num gancho de ferro. Não se importou. Um vento frio começava a fustigar o campo. O gerador foi desligado, as luzes elétricas se apagaram. Em toda a
volta, à luz de fogachos vermelhos, entre gritos e imprecações, homens trabalhavam como demónios, desencravando pontaletes, puxando cordas, lutando com grandes abas
de lona. Como sempre
acontecia na primeira hora de movimentação, os animais estavam nervosos, soltando em todos os tons, nas suas jaulas móveis, sinistros uivos de protesto. Os engenhos
de tração, pulsando e roncando, com os volantes girando, aumentavam o tumulto. Para Stephen, parecia que a cena vinha diretamente das gravuras do Inferno de Doré,
e que ele também estava sofrendo as torturas das almas danadas.


CAPÍTULO IX

DE ANGERS, O Circo PEROZ deslocou-se para Tours, depois para Blois, e então para Bourges e Nevers. O tempo se mantinha bom, o negócio prosperava, o velho Peroz usava
o seu chapéu num ângulo elegante. Após uma estada de três dias em Dijon, viraram para o sul e chegaram a Côte d'Or, detendo-se uma noite nas velhas cidades muradas,
com portões de acesso estendidas entre vinhedos, ao longo do vale do Ouche.
A princípio, Stephen era olhado com reserva pela companhia. Mas como a "retirada" semanal dos seus retratos era satisfatória, e uma percentagem fixa dessa soma ia
para o tronc, do qual todos os artistas participavam quando era distribuído em Nice, ele começou a ganhar importância. Além disso, as suas maneiras agradáveis e
disposição tranquila logo o puseram em termos amistosos com a maioria da troupe.
Formavam um painel humano. Fernand, o domador de leões que passeava destemido na jaula circular de ferro das feras, como um hussardo no seu uniforme azul e prateado,
com uma manga dramaticamente rasgada em pedaços, era o mais tímido dos homens, sofrendo agudamente de dispepsia nervosa e sendo mimado com uma dieta de leite por
sua devotada esposa. Os próprios leões eram inofensivos como vacas, na maior parte muito velhos, os machos castrados rugiam somente porque queriam o seu jantar,
e todo o aparato de cercar a jaula de auxiliares com ferros em brasa era pura encenação.
"Não tivemos um acidente em 20 anos", observava complacentemente Peroz no boletim que antecipava ao jornal local da próxima cidade do circuito.
ESCAPOU POR UM TRIZ NO CIRCO PEROZ
LEOA ATACADA DE LOUCURA
Fernand gravemente machucado
Max e Montz, ambos anões, eram os dois palhaços principais, um par internacionalmente famoso, cujo número maior era chamado "O Rapto", um esquete no qual Max, ataviado
em rendas grotescamente fora de moda, desempenhava o papel de noiva velhota. A rotina, executada num antigo automóvel Panhard que enguiçava e se recusava a funcionar,
caindo finalmente aos pedaços, era ruidosamente cómica. Max, com o seu beicinho de criança, fazia a platéia morrer de rir. Contudo, fora do picadeiro mostrava uma
melancolia mais profunda que a de Hamlet, tendo confiado a Stephen que a paixão de toda a sua vida era o violino.
Com tais incoerências diante de si, Stephen ficou menos surpreso ao descobrir que o equilibrista japonês era um adepto da Ciência Cristã, que Nina D'Amora, que cavalgava
em pêlo, era alérgica a cavalos e em consequência sofria cronicamente de asma, ao passo que Philippe, que todas as noites corria riscos espetaculares no trapézio
alto, passava a maior parte do seu tempo de folga tricotando meias.
Por formar um grupo com Jo-jo e Croc, Stephen via-os mais do que aos outros. Jean Baptiste, por baixo da sua aparente apatia, era um homem sensível e inteligente
- Stephen fez dele vários esboços notáveis, em pé na sua plataforma, diante da multidão boquiaberta. Fora bem educado no lycée de Rouen, e chegara a assumir uma
posição com boas perspectivas numa excelente firma, La Nationale. Então lhe viera aquela afecção incurável, transformando-o gradualmente de um ser normal em um monstro
medonho - um irremediável desenvolvimento - e levando-o ao desespero final de um show secundário no Circo Peroz.
Mas era a Jo-jo que Stephen dispensava uma particular atenção. O ex-jóquei era um rematado patife que roubava em qualquer oportunidade, trapaceava pelo interior
e embebedava-se até cair e ficar no chão estuporado, "curando" a bebedeira. Contudo, na sua duplicidade havia uma qualidade curiosamente humana de que se gabava:
jamais em sua vida ter deixado um amigo sem ajuda. Às vezes, de noite, depois de ter visto Emmy, quando vinha ao camion adaptado onde ele e os outros dois moravam,
Stephen surpreendia Jo-jo com o olhar peculiarmente fixo nele - menos por simpatia, uma emoção que Jo-jo era incapaz de sentir, do que por uma espécie de cínica
compreensão, levemente tingida de escárnio.
- Saiu com a sua garota?
- Parece, não?
- Divertiram-se?
Stephen não respondia.
Em várias ocasiões, o ex-jóquei parecia querer tratar do assunto, mas em vez disso encolhia os ombros e voltava-se para Jean Baptiste, iniciando com ele uma discussão
que tornava intencionalmente grosseira, como agora:
- Qual é a sua opinião sobre as mulheres, Croc?
- Considero-as com tolerante desprezo.
- Você fala como um marido.
- Sim... já fui casado. Minha esposa agora opera a passage à niveau em Croiset, no Chemin de Fer du Nord. A minha mais cara esperança é que um dia o expresso de
Paris, correndo 90 quilómetros por hora, atinja-a numa parte vulnerável.
- De minha parte, apesar de nunca ter me casado, gosto de mulheres. Mas só para dormir com elas. Para o resto, são piores que uma gonorréia.
- Mas a gente consegue isso dormindo com elas.
- Não com as minhas mulheres. Nunca escolho putas. Somente boas e honestas esposas camponesas que encontro no mercado e estão à procura de alguma ligeira variedade.
- Ah, variedade! Essa é a verdadeira palavra - à qual devo muito do meu último sucesso.
- Você, escamado?!
- Mas certamente. Tenho feito muitas conquistas com meus íntimos através da curiosidade. Mulheres entediadas com o leito matrimonial fazem qualquer coisa por uma
novidade. Li uma vez que um assassino condenado à guilhotina pode escolher dezenas de mulheres.
- Sacré bleu! Embora mereça, você não vai perder essa cabeça feia.
- Não. Mas exerço a mesma atração. Refletindo sobre a força da cauda do crocodilo, as mulheres acreditam que sou dotado de um formidável poder fálico.
- Mas você as decepciona, farceur.
- Isso só aconteceu uma vez, Jo-jo. Era uma gorda, solteirona, sem ligações, que durante meses me seguia na esperança de que os nossos repetidos enlaces produzissem
um jacaré. Infelizmente a criança nasceu normal.
Uma gargalhada profana encheu o caminhão, mas Stephen não participou dela. Sabia que o diálogo era dirigido a ele, não por qualquer intenção maldosa, mas como um
remédio administrado à vítima de uma febre renitente. Contudo, a sua doença já progredira tanto, que parecia incurável, intensificada pelos humores e incoerências
de Emmy. Às vezes ela o tratava bem, sentava-se nos degraus do caminhão, lisonjeada por suas atenções, cheia de sua própria importância, balançando os pés nus ao
sol. E conquanto não fosse pródiga com os seus favores, vez por outra, quando passeavam juntos no escuro, deixava que ele a beijasse antes de se afastar rapidamente.
Em vão ele dizia consigo mesmo que, numa natureza tão carente de profundidade, jamais despertaria uma paixão correspondente. Voltejava em torno dela como um marimbondo
em torno de uma nectarina, mas sem penetrar uma única vez na carne macia do fruto.
Numa tarde chuvosa, quando tinham deixado o agradável distrito do Saône pelo território estéril do Pays de Dombres, foram até uma pequena e dispersa comunidade de
Moulin-les-Drages. O seu destino inicial era St. Etienne, mas o trator principal quebrou na estrada, detendo uma longa fila de carros rebocados, e uma vez que o
conserto demoraria pelo menos 24 horas, era forçoso fazer um alto. Peroz, muito aborrecido por perder uma data importante, resolveu, após considerável debate, oferecer
um espetáculo em Les Drages e assim diminuir um pouco o seu prejuízo.
Mas tendo começado com má sorte, o dia continuou de mal a pior. Cartazes não tinham sido previamente afixados; a cidade, investigada, mostrou ser mesquinha e pobre,
sendo a única indústria uma olaria decadente. E a chuva aumentava continuamente. Quando chegou a noite, não havia mais de 100 pessoas na tenda gotejante.
Honrando a tradição Peroz, a maior parte dos artistas apresentou os seus números em bom estilo, voltando depois para a grande estufa da sala de estar. Emmy, contudo,
foi menos afortunada. Duas vezes, durante as suas evoluções preliminares, as rodas derraparam e ela foi atirada no chão molhado. Como resultado, cortou a parte principal
do seu número e saiu do picadeiro pedalando com a cabeça no ar. A primeira queda provocara risadas na plateia aborrecida; a segunda, uma positiva zombaria, seguida
de uma vaia com miados de gato.
Quando Stephen a viu depois, fora da tenda, ela ainda estava pálida com o vexame. Ele sabia que não devia falar, e por isso saiu com ela pela estrada em direção
ao acampamento, cerca de um quilómetro e meio distante, onde os carros estavam estacionados. Para piorar as coisas, não tinham andado muito quando desabou um forte
aguaceiro, forçando-os a se abrigar num celeiro ao lado de um campo aberto de restolho.
Quando seus olhos se habituaram à escuridão, Stephen olhou em torno, observando que o lugar estava cheio de palha. Rompeu o silêncio.
- Aqui pelo menos está seco. - E acrescentou: - Estou contente porque não apresentou hoje a parte final. Aquela gente não merecia.
- Que quer dizer?
- Bem... - Corou ligeiramente. - Eram gente um tanto antipática.
- Não notei. Eu sempre domino a minha plateia.
- Então por que não desceu?
- Porque a pista estava ensopada. Você não entende que na chuva isso é suicídio? - Num ataque de mau humor, seus olhos cintilaram para ele. Quem é você para ficar
aí me criticando? Sabe lá os riscos que eu corro todas as noites, enquanto você fica sentado lá atrás, rabiscando numa folha de papel, com menos coragem do que um
piolho? Eu desço ou não desço exatamente quando resolvo. E não vou quebrar o pescoço por nenhum padrezinho.
Ele a encarou por um momento, agora tão pálido quanto ela; depois, furioso, agarrou-a subitamente pela cintura.
- Não me fale assim!
- Largue-me.
- Só se me pedir desculpa.
- Fiche-toi le camp.
No próximo instante estavam lutando. Cego de raiva, recordando todos os insultos e desfeitas que ela acumulara nele, resolvido a vencê-la fisicamente, fechando ambos
os braços em torno dela como um lutador, tentou levá-la ao chão. Mas ela lutava como um gato selvagem, torcendo-se e revolvendo-se na palha fofa, malhando-o com
os cotovelos. Ela era mais forte do que ele julgava, com músculos curtos e poderosos de felina agilidade. Começou a respirar pesadamente, sentindo a pressão do seu
corpo contra ele. Retesando cada músculo, ele resistia. Rolaram por aqui e ali, sem decisão, até que ela, encolhendo a perna por trás dele, atirou-o longe com uma
rápida distensão.
- Está vendo? - disse ela. - Que isso lhe sirva de lição.
Ele se levantou devagar. Estava menos escuro do que antes; através da
clarabóia do celeiro, a lua era visível correndo entre as nuvens. Com um esforço, ainda tentando recuperar o fôlego, forçou-se a olhar para ela e viu, com confusa
surpresa, que ela não havia levantado; estava deitada de costas sobre a palha, com o vestido ainda desarranjado pela luta, observando-o através dos olhos apertados
com uma curiosa expressão especulativa, excitada, mas, ainda vagamente zombeteira. No seu rosto, geralmente de uma palidez fria, havia uma orla de cor, nos seus
lábios pálidos um sorriso ligeiramente mau. Por um momento, sustentou o olhar dele; depois, colocando ambos os braços embaixo da cabeça, numa atitude menos de sedução
que de expectativa, fez um movimento impaciente.
- Então, estúpido... que está esperando?
O convite que ele tanto havia procurado era inconfundível, contudo tão descarado, tão despido da menor semelhança de afeição, que ele não podia se mover. Petrificado
e repelido, mirava-a, e, girando, saiu do celeiro sem uma palavra.
- Molenga! - gritou-lhe ela. - Espèce de crétin.
Ele caminhou talvez uns 30 metros antes que o desejo lhe surgisse novamente, mais desesperado do que antes. Pouco se importava, queria-a, e haveria de possuí-la
de qualquer maneira. Virou-se e voltou.
- Emmy... - Estava fraco, encolhido de desejo por ela. Mas agora ela estava fria e dura como uma pedra.
- Vá para o inferno - disse ela outra vez zangada. - Agora espere outra oportunidade.
A expressão dos seus olhos dizia-lhe que era inútil insistir. Novamente
saiu do celeiro. Sem saber aonde ia, caminhava direto para a frente, com os olhos contraídos e os lábios apertados. Naquelas últimas semanas, vitimado por seu desejo
insaciável, reduzido a uma perpétua atitude de propiciação, já tinha sido bem humilhado. Mas agora, ferido em sua sensibilidade, sentia-se no mais baixo nível de
abjeção. Não podia, não devia submeter-se a isso.
Seus pensamentos não tomaram uma forma coerente até chegar de volta ao acampamento do circo. Uma vez que o motor enguiçado não seria reparado antes da manhã seguinte,
nada tinha sido desmontado, e no campo enlameado a grande tenda se erguia deserta e vazia. Alguma coisa buliu dentro dele. A luz brilhando através da abertura do
topo do dossel banhava o picadeiro com uma luz espectral, mostrava a pista inclinada, que não fora desmontada, brilhando de umidade. Um estranho impulso, um senso
de dever para consigo mesmo, lentamente foi tomando forma no seu espírito atormentado. Olhando para cima, viu que o equipamento ainda estava no lugar. Incapaz de
reprimir um arrepio, dirigiu-se para a escada de corda, seus pés deixando pegadas na serragem molhada. Segurou a corda e começou a subir vagarosamente. Momentaneamente
uma vertigem paralisou-o. O vento naquela altura tinha mais força, fazendo a pista oscilar, e o grande toldo, panejando e agitando-se, aumentava a sua impressão
de insegurança. Ele compeliu os seus músculos rígidos ação. Olhando para cima e usando uma mão, desenganchou a bicicleta da trava e, ainda seguro firmemente ao mastro
com o outro braço, alinhou as rodas. Montou trémulo na máquina e forçou-se a olhar para baixo.
O picadeiro, lá embaixo, era impossivelmente pequeno, um distante disco amarelo. A pista na qual ele estava pousado não tinha mais substância que uma simples fita.
Outro violento tremor lhe percorreu o corpo. Continuava seguro, podia voltar atrás. O medo petrificava-o. Lutou com ele. O que quer que acontecesse, tinha que descer.
Respirou fundo, firmou a sua posição na bicicleta, curvou-se para diante. Ao fazer isso, teve a vaga consciência de um grito, de uma figura encurtada e escura que
acenava lá de baixo. Se pretendia avisar, era demasiado tarde. Focando o olhar na lista branca central, com um supremo esforço da vontade, soltou a mão que o segurava.
Veio uma fração de segundo de voo, uma descida incrível, um empuxão para cima que o catapultou para o ar, e no mesmo instante, com um salto ruidoso, estava embaixo,
atirado com tremenda velocidade para fora do campo, estatelado na lama mole da vala que o margeava.
Por um momento lá ficou, imóvel, surpreso por estar vivo. Até que ouviu alguém correr para ele.
- Nom de Dieu... Está querendo se matar? - Era Jo-jo, desta vez em considerável estado de agitação.
- Não - disse Stephen, levantando-se tonto. - Mas acho que vou ficar enjoado.
- Seu filho da puta maluco. Que bicho lhe mordeu?
- Precisava de um pouco de exercício.
- Você está louco. Quando vi você lá em cima, pensei que estava liquidado.
- E que diferença isso teria feito?
Jo-jo encarou-o.
- Pelo amor de Deus, venha tomar um drinque.
- Muito bem - disse Stephen, e acrescentou: - Não comente isso com ninguém.
Foram até o café da aldeia. Depois de um bom copo de Calvados, a mão de Stephen parou de tremer. Lá ficou bebendo com Jo-jo, quase em silêncio, até que o lugar fechou.
O conhaque pesava-lhe na cabeça, fazendo-o sentir-se embotado e entorpecido. Mas na verdade não tinha realizado nada. A dor no coração ainda estava lá.


CAPÍTULO X

DUAS SEMANAS SE PASSARAM. Estavam em Nice. A cidade, iniciada pelos terraços de mimosas de La Burnette, era maior do que Stephen imaginava. A Promenade de Anglais,
a cintilante orla marítima, com os seus canteiros formais e hotéis ostentosos, dava uma desagradável nota pretensiosa. Mas o terreno do circo ficava bem para o interior,
na direção de Cimiez, atrás da Place Carabacel, cercado de ruas estreitas com feiras ao ar livre e pequenas barraquinhas de frutas, verduras e uma profusão de flores,
uma rede de coloridas e ruidosas passagens que tinham o encanto íntimo de Paris acrescido do calor do Sul.
- Nada mau, hein? - disse Jo-jo, expandindo o seu magro peito embaixo do colete rasgado.
- Gosta daqui?
- Muito. E você também vai gostar. - Fez um gesto abrangente. - Há muito interesse para um artista na Carabacel.
Em outro momento teria sido um entretenimento para Stephen explorar aquele bairro. Agora, tenso e inquieto, sentia que não poderia trabalhar. Mas obrigou-se a tal
com o seu bloco Ingres e fez alguns estudos dos nicenses - uma velha de touca branca vendendo alcachofras, um homem do campo
com uma rede de galinhas vivas, trabalhadores tapando um buraco na estrada. Contudo, o seu coração não estava naquilo, e ao calor do meio-dia voltou para o acampamento
a fim de descansar um pouco antes de começar o trabalho na sua barraca.
Na tarde seguinte, diante do seu cavalete na feira, completava o seu último retrato da sessão quando notou que havia um espectador atrás dele, ligeiramente inclinado
sobre uma bengala de rotim. Algo na sua postura despertou-lhe um eco na memória. Voltou-se.
- Chester!
- Como está, meu velho? - Harry rompeu no seu riso contagiante, descalçou uma luva de couro lavável e estendeu-lhe a mão. - Soube que você tinha entrado para o Peroz.
Mas por que diabo está com essa fantasia?
- Faz parte do trabalho.
- Claro, uma maneira de atrair os nativos. Mas não o faz sentir-se com cara de tolo?
- Ora, estou acostumado. Espere, que já estarei com você.
Enquanto Stephen dava rapidamente os toques finais no retrato, Chester tirou uma cigarreira e acendeu um cigarro. Espremido num traje de linho branco, sapatos marrons
e um chapéu panamá, tinha um ar abastado. Calças bem vincadas, camisa de tussor de seda, exibia uma elegante gravata-borboleta. O rosto estava bem queimado.
- Não posso acreditar que você esteja aqui. Embora tivesse dito que ia para Nice. Você parece estar bem.
- Estou em ótima forma, obrigado.
- Suponho que teve alguma sorte nas mesas.
- Para dizer o mínimo, tive. - O sorriso de Chester escureceu. - Eu estava nas últimas e apostei os 50 francos que me restavam no duplo zero. Por quê? Porque sabia
que teria menos que zero se perdesse. Deu o duplo zero. Deixei tudo. Por quê? Só Deus sabe. E deu o duplo zero outra vez. Meu Deus, você nunca viu semelhante pilha
de grandes e lindas fichas quadradas vermelhas em sua vida. Fui apanhá-la. Não pude. Alguma coisa dentro de mim dizia sorte pela terceira vez. Quando a roda girou,
quase morri. O duplo zero deu de novo. E desta vez recolhi tudo rapidamente e fui trocar no guichê do caixa. No dia seguinte mudei-me do prejuízo para Villefranche,
um pequeno apartamento. Desde então estou vivendo como um lorde. - Tomou o braço de Stephen. - Agora fale-me de você. Como vai o trabalho?
- Assim-assim.
- Vamos vê-lo.
Stephen guiou-o até o seu caminhão, apanhou algumas telas e inclinou-as, uma depois da outra, contra a calota da roda, enquanto Harry, com uma expressão profissional,
estudava cada uma a seu turno.
- Bem - declarou ele afinal. - Você pode ter algo aí, mas não compreendi bem o que é. Perspectiva? As suas pinceladas não são muito rudes?
- São intencionalmente rudes... para dar uma impressão de vida.
- Esses cavalos não são particularmente reais.
Harry apontou com a sua bengala para uma composição a têmpera de cavalos correndo como loucos numa tempestade.
- Não estou procurando expressar o óbvio.
- Obviamente não. Contudo... gosto que um cavalo se pareça com um cavalo.
- E quando você vê um homem montado nele, então tem certeza disse Stephen secamente, e empilhou as telas, percebendo que Chester não tinha a menor ideia do que ele
buscava. - Você ainda está pintando?
- Oh, naturalmente. Quando tenho tempo. Estou fazendo uma vista geral da Promenade. Às vezes saio com Lambert. Ele e Elise estão aqui. Ele pegou uma viúva americana
rica no Ambassadeurs e está dando expediente inteiro com ela.
Enquanto ele falava, soaram passos, e por trás da lona do caminhão apareceu Emmy. Quando se dirigia para Stephen, recuou de súbito, tendo notado a presença de Chester.
Uma expressão curiosa lhe assomou ao rosto.
- Que é que está fazendo aqui?
- Eu geralmente apareço quando menos se espera.
- Como um cêntimo falso?
- Desta vez como uma bela nota de mil francos - respondeu Chester amavelmente, sem se deixar diminuir. - Sentiu a minha falta?
- A privação foi insuportável.
- Não seja rude com o tio Harry. Você sabe que os seus nervos são fracos. - Consultou o relógio. - Tenho que partir. Devo estar no Negresco às seis. Mas quero que
vocês venham almoçar amanhã no meu apartamento Rue des Lilas, 11-B - ao largo do Boulevard General Leclerc. Os Lamberts também estarão lá. Os dois estão livres?
Ótimo. São apenas uns poucos quilómetros pela Corniche, o bonde passa na minha porta.
Sorrindo e acenando com a bengala, chamou um fiacre no fim do acampamento, saltou nele, reclinou-se no encosto acolchoado e mandou tocar a galope. Emmy acompanhou-o
com olhos ressentidos.
- Voyou metido a sebo. Mandando a gente tomar o bonde enquanto ele vai de carruagem.
- Não devemos invejá-lo. Ele também já teve os seus maus momentos.
- Não acredito que ele tenha acertado um coup. Deve estar vivendo com alguma velha.
- Não mesmo. Chester é o tipo de sujeito com sorte para ganhar uma bolada. Além disso, só se interessa por moças bonitas.
- Um dia ele vai ver o que é bom. - Mostrou os seus dentinhos agudos.
- Sale type. Nunca fui com a cara dele.
- Então você não irá lá amanhã...
- Claro que irei. Não seja tão fou. Faremos com que ele se arrependa da sua pretensão.
Ele a olhou perplexo. Obviamente detestava Chester. Por que, então, aceitar o seu convite? Talvez quisesse ver os Lamberts. Jamais soube o que ela tinha em mente.
No dia seguinte, quando veio ao seu encontro, ela usava um vestidinho amarelo de musselina bordada e uma fita da mesma cor em volta do cabelo cheio e curto. Deu-lhe
um pequeno sorriso com os lábios apertados.
- Podemos pegar um fiacre?
- Isso mesmo. Nada de bonde para nós.
Ela escolheu a mais elegante vitória da fila. Sentou-se confortavelmente.
- Como estou?
- Maravilhosa.
- Eu precisava de um vestido novo. Comprei este hoje de manhã na Galerie Mondial.
- É encantador - disse ele. - E assenta-lhe perfeitamente.
- Gosto de mostrar a essa gente que não sou uma coisa embaixo dos pés deles. Chester especialmente. Ele é muito cheio de si.
- Talvez, mas não é um mau sujeito. Acho-o apenas um pouco mimado. É bonito demais.
- Acha-o atraente?
- Acho que muita mulher tola já tem caído pelos seus belos olhos azuis e cabelos crespos.
Ela lançou-lhe um penetrante olhar de soslaio.
- Pelo menos eu não sou uma delas.
- Não - sorriu Stephen. - Estou um tanto aliviado por você detestá-lo. Rodaram pela Avenue Raspail, um largo logradouro sombreado de catalpas, ao longo do Boulevard
Carnot, e depois pela curva da baía para Beaulieu. O céu estava azul, uma brisa de deliciosa fragrância soprava das colinas. Ele apertou-lhe a mão, feliz - ela se
deixou segurar por um momento. Ultimamente, as atenções que ele tinha para com ela, os pequenos presentes que continuamente lhe dava, as restrições que por um esforço
de vontade impunha a si mesmo pareciam estar causando alguma impressão nela.
- Você está sendo gentil comigo - murmurou ela.
Essa ligeira observação tornou-o ridiculamente feliz. Talvez, por fim, ela pudesse aprender a amá-lo.
Dali a pouco rodavam por Villefranche. O apartamento de Chester, na Rue des Lilas, uma rua em ângulo reto com a avenida, integrava uma série de
suítes que abriam sob um balcão comum em torno de um pátio, atendidas por um pequeno hotel, o Hotel des Lilas. Um pequeno chafariz cercado de cactos gorgolejava
no centro do pátio, e tubos verdes de oleandros floridos decoravam a varanda. O lugar parecia limpo, agradável e discreto - exatamente a espécie de pied-à-terre
que Chester, com a sua inclinação para se tratar bem, acharia sem o menor esforço.
Foram os primeiros a chegar, e Harry recebeu-os efusivamente.
- Bem-vindos ao castelo ancestral. Não é grande, mas tem história.
- Má, sem dúvida - disse Emmy.
Chester riu. Vestia calças de flanela branca e um blazer azul com botões de metal amarelo. Seu farto cabelo castanho, recém-ondulado, tinha uma listra de cor mais
clara na testa.
- Se é isso o que você pensa, não posso deixá-la mentir.
Enquanto ele levou Emmy ao dormitório para deixar a sua echarpe e luvas, Stephen relanceou os olhos em torno da pequena sala de estar. Era mobiliada convencionalmente,
mas nas paredes havia duas aquarelas emolduradas que reconheceu como sendo trabalho de Lambert. Examinou-as de perto - uma era um arranjo de ervilhas-de-cheiro num
vaso Ming, a outra um bando de cegonhas paradas num lago nevoento - e ao olhá-las imaginava como jamais poderia ele ter apreciado semelhante beleza. Belamente executadas,
com uma delicadeza quase feminina, eram contudo vazias e insípidas, despidas de toda vitalidade ou intenção. Podiam ter sido feitas por uma hábil professora de arte
de uma escola superior para moças. Faziam-no avaliar que longa estrada tinha percorrido desde aqueles primeiros dias em Paris. Se a jornada fora áspera, pelo menos
lhe tinha ensinado em que consistia realmente uma obra de arte.
- Boas, não? - Chester tinha voltado com Emmy. - Lambert, num gesto muito decente, me emprestou as duas. O preço está nas costas. Há sempre uma chance de que os
meus visitantes queiram comprá-las.
Trouxe uma garrafa de Dubonnet e serviu três copos, depois passando uma bandeja de camarões frescos.
- Posso tentá-la, mademoiselle Rouquet de la baie.
- Você mesmo os apanhou?
- Claro. Levantei-me antes do desjejum.
Rearranjando o cabelo, ela olhou para ele, mas pela primeira vez com menos animosidade.
- Que grande mentiroso!
Harry riu-se gostosamente.
- Também sou muito bom nisso.
A campainha tocou e os Lamberts entraram. Pareciam pouco mudados, embora Philip estivesse mais gordo, mais lânguido nas suas maneiras. Usava
um terno cinza com um cravo azul na lapela e trazia pendurada no indicador uma caixinha de pâtisserie amarrada com uma fita.
- Trouxe-lhe alguns bolinhos do Henri, Chester. Acompanharão o café. Naturalmente, você está lembrado da minha gulodice, Desmonde. - Espichou-se comodamente no divã
e delicadamente aproximou as suas finas narinas da flor que tinha na lapela. Elise, que vestia o inevitável verde, e cujo sorriso parecia um tanto mais fixo do que
antes, estava conversando com Emmy.
- Agora, conte-me tudo como um bom menino.
Stephen começou um relato a seu respeito, mas antes que fosse muito longe viu que Lambert não estava prestando atenção, e interrompeu-se.
- Você sabe, Desmonde - disse Philip num tom ligeiro e divertido eu desejaria, pelo seu próprio bem, que você não se tivesse metido nessas coisas pesadas. Você não
pode atacar a arte com uma picareta. Por que suar como um britador de pedras? Faça como eu e use um pouco de delicadeza, um pouco de habilidade. Eu nunca trabalhei
demais, e no entanto clientes não me faltam. E eu vendo. Admito que tenho talento, e isso torna as coisas mais fáceis para mim.
Stephen ficou silencioso. Podia muito bem adivinhar a facilidade de Lambert. Mas o anúncio de Chester, dizendo que o almoço estava servido, salvou-o da resposta.
A refeição fornecida pelo hotel lá de baixo era esplêndida, servida por um jovem garçom que, para apresentar uma comida tão quente, devia ter executado estranhas
proezas de agilidade nas escadas. Uma lagosta cozida à moda da terra, seguida de um risotto de frango, e depois um queijo soufflé; antes, Harry, com o toque de um
perito, tinha feito saltar a rolha de uma garrafa de Veuve Cliquot. Quanto mais alegre a mesa, porém, mais Stephen se sentia completamente alheio a ela. Em certa
época tinha apreciado aquela sociedade, mas agora, apesar do enorme esforço para se coadunar com ela, fracassava tristemente. Que lhe tinha acontecido para que se
sentasse ali, mudo, com a consciência mortal de que não mais pertencia a ela? Emmy, bebendo mais champanhe do que devia, exibia tolas personificações de Max e Monx
que faziam Chester, agora mais ruidoso do que nunca, estourar de riso. Lambert, a quem Stephen tinha antes admirado, parecia-lhe agora exatamente como Glyn o via
- um poseur e diletante, um amador fracamente dotado. Perfeitamente amaneirado, bem-educado, garantido por sua pequena renda regular, recusando-se a ser perturbado
ou excitado, flutuava a esmo, nunca se exercendo a sério, tocando de leve o creme da vida. Cultivando mulheres, arranjava clientes que lhe encomendavam retratos
ou que pagavam bons preços por seus leques e aquarelas. Elise, com o seu sorriso fixo e perfil nítido, mostrava sinais dessa existência. Sua aparência começava a
murchar e as rugas a juntar-se embaixo dos seus
olhos verdes e pestanudos; contudo, embora a sua capacidade de lisonjeá-lo já estivesse um tanto gasta, a sua inexaurível devoção fazia dela, cada vez mais, uma
parceira complacente naquele jogo de blefe artístico, cujo mero pensamento levava Stephen a remexer-se mais inquieto na cadeira.
Depois do café e bolinhos, dos quais Philip, desculpando-se com uma delicada alusão literária ao jovem com as bombas de creme de Stevenson, comeu cinco, sentaram-se
na sacada. Continuando a monopolizar a conversação, descreveu, com irónica meticulosidade, as deficiências faciais e sociais da mulher idosa que retratava atualmente.
- De fato - concluiu ele aereamente - não se poderia esperar mais da viúva de um enlatador de carne de porco de Chicago.
- Imagino que o cheque dela foi bom.
- Bem... naturalmente.
Embora tentasse livrar-se da sua apatia, Stephen via o tempo passar com interminável lentidão. Por fim, cerca de três horas, aproveitando um intervalo na conversação,
olhou para Emmy.
- Acho que temos de ir agora.
- Oh, tolice - protestou Chester. - A tarde ainda é jovem. Vocês não podem nos deixar agora, de modo nenhum.
- Se eu não for chegarei tarde no meu emprego.
- Então por que você não fica, Emmy? - sorriu Harry afavelmente. Houve uma pausa. Stephen notou sua hesitação, mas ela logo sacudiu
bruscamente a cabeça.
- Não. Eu vou agora.
Despediram-se, o porteiro lá embaixo conseguiu-lhes um fiacre. Ao dobrarem a esquina, fora da vista do hotel, Stephen inclinou-se para ela.
- Foi bondade da sua parte vir comigo. Gostei disso.
- E eu não gosto de me tornar fácil.
Não era a resposta que ele esperava; no entanto, animado pela recente mostra de sua consideração, chegou-se mais perto, sob a coberta do avental da carruagem, e
procurou-lhe a mão.
- Não - disse ela, empurrando-o irritada. - Não está vendo como me sinto?
E ao voltar-se surpreso, ela, com franqueza vulgar, deu uma desculpa que, se fosse verdade, teria talvez causado a sua prematura partida.


CAPÍTULO XI

APÓS O TUMULTO E EXCITAÇÃO das viagens através das estradas do país, muitos membros do Circo Peroz acharam agradável estabelecer os seus alojamentos de inverno na
Côte d'Azur. Ali era a sua base; muitos tinham relações em Nice, Toulouse e Marselha, e com mais tempo disponível, poderiam visitá-las. Embora o negócio continuasse
firme, o programa tinha sido reduzido para cinco espetáculos por semana, e após a grande noite de domingo, segunda e terça-feira, ficavam livres.
Os amigos de Stephen já haviam Se acomodado à nova rotina. Max reiniciara as suas lições de violino e podia ser visto, todas as tardes, com a caixa preta em forma
de pêra debaixo do braço, partindo no trote miudinho forçado por suas diminutas pernas. Croc, por outro lado, passava a maior parte do seu tempo na Bibliothèque
Nationale, curvado sobre grossos volumes, expondo na volta, a Stephen e Jo-jo, uma nova versão de Schopenhauer, ao passo que Fernand, parecendo gasto e sonhador,
ia todas as manhãs, de braço dado com a esposa, a um homeopata de Cimiez para a irrigação diária prescrita para o seu flux intestinal. Mais prático, Jo-jo tinha
achado uma ocupação subsidiária nas cavalariças do Negresco, onde, a pretexto de lavar as carruagens, passava a maior parte do tempo tagarelando com cocheiros e
motoristas, levando um livrinho sobre as corridas locais e comentando sarcasticamente, com o canto da sua boca de ratoeira, os visitantes que entravam e saíam do
hotel.
Stephen, por sua vez, tinha começado o desenho preliminar para uma pintura na qual pretendia utilizar os estudos individuais feitos na grande tenda, a que pretendia
chamar Grcus. Esse arranjo complexo, um agrupamento de inumeráveis figuras com as suas cores combinadas e contrastantes, era difícil e, desde que ele não tinha estúdio
nem tela suficientemente grandes, propunha-se seguir o precedente dos antigos mestres e construir a sua composição, primeiro que tudo, numa escala menor e menos
rigorosa. A ideia lhe surgiu à medida que progredia, e ele começou a sentir que semelhante material, recolhido em semanas de paciente observação, devia dar um magnífico
resultado.
Desde o dia do almoço no Hotel des Lilas, o barómetro dos humores de Emmy tinha lentamente chegado a "bom tempo". Após esse evento, não tinham
mais visto Chester ou os Lamberts, e parecia que essa ligação estava finalmente rompida.
No fundo do espírito de Stephen, talvez por uma observação de Glyn, sempre havia a ideia de uma afeição entre Chester e Emmy. Era-lhe gratificante o fato de que
Emmy tivesse aceito a brusca interrupção de sua amizade com tão pouco interesse. Ela, como os outros, tinha voltado a sua atenção para Nice. A irmã de Madame Armande,
que morava nos arredores, logo após o subúrbio de St. Roch, tinha uma pequena chapelaria dedicada principalmente à produção e venda de chapéus de palha de carnaval.
Emmy, como muitas moças francesas, tinha talento para os trabalhos de agulha, e todas as tardes tomava modestamente o bonde para ganhar algum dinheirinho na oficina
do Chapeau de Paille. Como resultado, Stephen via-a menos do que o usual. Contudo, experimentava um certo conforto íntimo com esse aspecto inesperadamente sossegado
da sua natureza. Tal atividade, no entanto, devia ser terrivelmente monótona, e ele disse para si mesmo que devia procurar quebrar essa monotonia. No Clarion de
Nice, descobriu que uma companhia lírica, cumprindo um contrato no Casino Municipal, faria uma representação de La Bohême na segunda-feira seguinte. Esse romance
ultrapassado da vida de estudante em Paris talvez a entretivesse, e no seu encontro seguinte ele falou no assunto.
- Você quer ir ao teatro na segunda?
- Teatro? - Pareceu ligeiramente perturbada. - Você não está ocupado com a sua pintura?
- Não de noite, com certeza.
- Bem... se você quiser.
- bom. vou comprar as entradas hoje.
Andou todo o caminho até o Casino e comprou duas cadeiras no grand circle, e então, sabendo o quanto ela gostava de "uma noite fora", reservou uma mesa no restaurante
para a ceia nessa mesma noite. Começou a esperar o evento com aquela antecipação que tão dolorosamente o afetava sempre que pensava em ficar a sós com ela.
Segunda-feira chegou. Quando terminou a sua sessão na barraca, banhou-se com água da bacia no lado de fora do seu alojamento e vestiu o seu terno e uma camisa limpa
que lavara na véspera. Justamente quando se aprontou, ouviu passos atrás dele. Voltou-se e viu uma expressão de pesar nos olhos de Emmy.
- Que houve?
- Não posso ir com você esta noite.
- Não pode?
- A irmã de Madame Armande está de cama, com l agrippe. Tenho que ficar com ela.
- Madame Armande pode fazer isso.
- Sim, mas há pedidos de urgência para atender.
- Talvez...
- Não. Tenho obrigação de ir.
Houve uma longa pausa.
- Bem... suponho que não tenha jeito.
Ficou terrivelmente abatido, mas não se importava em mostrá-lo.
- Você deve convidar alguém. Não desperdice as entradas.
- Ora, para o diabo os bilhetes! Que importam eles?
- Sinto muito. - Deu-lhe um tapinha condoído.
- Outra noite, quem sabe.
Aquele ar de interesse preocupado diminuiu a sua decepção. Todavia, ao vê-la apressar-se, indo em seguida despejar lentamente a água cheia de espuma de sabão da
bacia, a sua tristeza era tão grande, que Jo-jo, que acabava de voltar, descansando com os cotovelos no degrau, tendo testemunhado a recente cena, veio fazer perguntas.
- Como vai a coisa? - Falava sem tirar a palha que tinha entre os dentes.
- Muito bem.
- Você está todo emperequetado.
- Estou vestido, se é isso que quer dizer.
- Aonde ia?
- Ao teatro. Venha comigo. É La Bohême.
- Variedades?
- Não, ópera.
- Ópera? Ah, não. Mas vamos tomar um drinque no Mas Provençal. Atravessaram a praça em direção a um café das proximidades. Era um lugar reles mas agradável, com
compridos bancos e mesas na calçada. No interior obscuro, um piano mecânico estava tocando, e o pessoal se achava sentado em mangas de camisa. Jo-jo acenou para
alguns operários que, a caminho de casa, tinham parado para uma caneca de cerveja.
- Qual é o seu veneno, Abbé?
- Qualquer coisa... Vermute.
- Vermute Quelle blague. Você vai tomar é um conhaque. - Pediu em voz alta um Pernod e um conhaque.
As bebidas foram trazidas por uma raparigona de braços nus, vermelhos, e seios redondos, cheios debaixo da blusa, como cocos.
- Aí está uma garota para você. - com mão prática, Jo-jo filtrou o Pernod através de um torrão de açúcar, e tomou um gole confortante do líquido opalescente. - O
nome é Suzie. E não é poule. Por que não experimenta a sorte? Essas mulheres grandalhonas gostam de homens pequenos.
- Ora, vá pró inferno!
Jo-jo riu brevemente.
- Isso é melhor. O problema com você, Abbé, é que nunca se entrega.
- Que quer dizer?
- Sacré bleu! Você pode se desamarrar um pouco. Então nlo fiquei sabendo que você tem tutano - aquela noite... quando desceu na pista? Voando com todo o seu corpo.
Fique alegre, embebede-se e divirta-se.
- Já tentei isso. Comigo não dá resultado.
- Há um chá dançante todas as noites no Negresco. De muita classe. Pode ser interessante.
Havia uma intenção esquisita na voz de Jo-jo, mas Stephen simplesmente abanou a cabeça.
Jo-jo abriu os braços resignado. E depois disse:
- Que aconteceu com a beleza da bicicleta?
- Teve que ficar com a irmã de Madame Armande.
- Armande tem irmã? Haverá duas cadelas iguais neste mundo infeliz?
- Ela tem uma chapelaria em Lunel, atrás de St. Roch. E está doente.
- Uma obra de caridade - fez Jo-jo, baixando a cabeça. - Uma segunda Mademoiselle Nightingale.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual ele continuou a olhar para Stephen com um satírico aperto nos lábios. Uma vez, pareceu que ia falar, mas em vez disso encolheu
ligeiramente os ombros, pediu novas bebidas com um gesto, e começou a falar sobre as corridas do dia seguinte.
Às sete horas, deixaram o café; Jo-jo foi dar água e comida aos seus árabes, e Stephen ficou só. Sentia-se melhor, aquecido e mais alegre depois de três conhaques,
mas ainda assim tinha pouca disposição para ir sozinho ao Casino. A noite era deliciosamente linda - e seria uma pena gastá-la num teatro abafado. De repente lhe
veio uma ideia, Lunel não ficava muito longe, apenas uma viagem de bonde de 20 cêntimos. Por que não dar um pulo até a oficina de Madame Armande e, mesmo que fosse
obrigado a esperar até que ela terminasse o seu trabalho, voltar com Emmy? Com sorte, poderiam até chegar a tempo para o jantar.
A perspectiva apressou os seus passos e ele atravessou o Boulevard Risso para a Place Pigalle, onde, sem dificuldade, achou um bonde para a zona norte. A viagem
foi lenta, e mais longa do que ele supunha, mas não eram oito horas e ainda havia luz quando ele chegou ao seu destino. Lunel, como cidade, era surpreendentemente
pequena e pouco desenvolvida, o terreno plano quase todo ocupado por hortas, pouco mais que uma coleção de casinhas novas de estuque margeando uma única rua não
calçada. Stephen subiu e desceu duas vezes essa rua sem encontrar o Chapeau de Paille. Na verdade, as poucas lojas que lá havia em nada se pareciam com uma fábrica
de chapéus. Intrigado e confundido, Stephen ficou um momento parado, enquanto rajadas de vento
levantavam poeira em toda parte, e então foi à agência do correio, que, funcionando na mesma casa de uma épicerie, ainda estava aberta. Ali, em resposta às suas
indagações, ficou sabendo que não havia modista, e positivamente nenhuma fábrica de chapéus, em Lunel.
Com uma expressão curiosa na face, sentado no canto de um bonde quase vazio, Stephen voltou para Nice. O veículo sacolejante deixou-o meio tonto. Teria cometido
um engano estúpido por ouvir mal o nome do lugar que ela lhe tinha dito? Não, estava certo de que ela dissera Lunel, não uma, mas diversas vezes. Não o teria despistado,
inventando aquela desculpa à última hora? Isso também era impossível - ela vinha visitando a irmã de Madame Armande diariamente nos últimos 15 dias. Sua expressão,
se havia, tornou-se ainda mais fixa. Estava bem escuro quando chegou a Carabacel. Tudo tranquilo e deserto no acampamento. Teve um impulso de ir ao seu alojamento
e ver se ela tinha regressado, mas o orgulho e uma sensação de cansaço físico o contiveram. Já tinha se tornado suficientemente ridículo sem fazer uma cena àquela
hora. Entrou no seu caminhão, deitou-se no beliche e fechou os olhos. Tiraria tudo a limpo com ela de manhã.


CAPÍTULO XII

No DIA SEGUINTE, embora acordasse cedo, não a viu até as 11 horas, quando ela apareceu nos degraus do vagão de chinelos e um penhoar de algodão azul e branco. Sentou-se
no primeiro degrau, segurando uma xícara de café. Ele foi até ela.
- bom dia... Como deixou a sua doente?
- Oh, bem melhor.
- Chamou o médico?
- Naturalmente.
- Espero que não tenha sido nada sério.
Ela tomou um gole de café.
- Eu lhe disse que era uma gripe.
- Mas isso não é contagioso? - disse solícito. - Você deve se cuidar.
- Eu me cuido.
- Estou falando sério... venta muito em Lunel. E o bonde demora muito a chegar.
Ela olhou para ele em silêncio sobre a beira da xícara.
- Que é que você sabe de Lunel?
- Estive lá ontem à noite.
Ela o olhou desconfiada, e deu uma risada.
- Não brinque comigo. Você foi ao teatro.
- Não, eu fui a Lunel.
- Por quê?
- Pensei que podia comprar um chapéu. Infelizmente, não pude achar nenhuma chapelaria.
- Aonde é que você quer chegar.
- E também não encontrei nenhuma irmã de Madame Armande.
- Quem diabo você pensa que é, metendo o nariz nos assuntos dos outros? Saindo para me espionar. Seu rato sujo.
- Pelo menos não sou mentiroso.
- E quem é que mentiu? Falei a verdade. Se eu quisesse, poderia ter levado você lá. Onde você andou zanzando ontem à noite, não sei. Mas o lugar existe sim. Além
do mais - ajuntou ela com um toque final - a irmã de madame é viúva; o nome dela não é Armande. E agora talvez você vá cantar noutra freguesia e me deixe tomar o
meu café em paz.
Com o coração batendo como um martelo, Stephen olhou para ela com um misto de raiva e desespero. Sentia que ela estava mentindo - quando a ocasião exigia, ela podia
ser escorregadia como uma enguia. Mas a sua própria veemência era suspeita. Contudo, era até possível que falasse a verdade. Queria com toda a sua alma acreditar
nela. Sempre pronto a imputar a falta a si próprio, ponderou que aquele terrível aperto que sentia no coração poderia tê-lo levado a julgá-la mal. O desejo de reconciliação
apoderou-se dele e o enfraqueceu.
- Eu esperava tanto a nossa noite juntos.. . - murmurou ele.
- Isso não é desculpa.
- Seja como for, vamos esquecer isso.
- Só se me pedir desculpas por ter me chamado de mentirosa. Pede?
Ele hesitou, mordendo nervosamente os lábios, de olhos baixos. Seu orgulho impedia-o de aceitar aquela humilhação por parte dela. Mas a necessidade que tinha dela
tornava-o abjeto.
- Está bem... se quiser. Sinto tê-la ofendido - disse ele, extraindo à força as palavras que o faziam sentir-se desprezível.
Passou o resto do dia dilacerado pela indecisão, desejando estar com ela. Serviu-lhe de algum consolo observar que ela não saíra do acampamento. À noite, retirou-se
para o seu alojamento imediatamente depois do espetáculo. Mas sabia que não poderia continuar daquele modo, isso era impossível; de uma maneira ou outra, precisava
certificar-se.
No dia seguinte, após o almoço, quando ela saiu para a Place Pigalle, ele a seguiu. Ao saber de casos semelhantes, sempre desprezara o marido desconfiado ou o amante
ciumento que espionava a mulher que lhe causava suspeitas. Agora não podia evitá-lo. Mas ele não era nenhum especialista no assunto e, no seu esforço para não ser
visto, perdeu a sua presa no terminal da Pigalle. Contudo, vira que ela tinha tomado um bonde na direção do passeio público, e como outro estava no ponto, embarcou
nele. Em 15 minutos estava diante da costa. Procurou Emmy apressadamente em torno, andou até a esplanada e voltou, contornando o Casino, mas não viu nenhum sinal
dela. Então, como estava indeciso, de repente se lembrou do jeito de Jo-jo ao falar no chá dançante do Negresco. Embora a possibilidade parecesse remota, atravessou
a rua, entrou nos jardins do Musée Masséna e olhou por cima das grades de pontas douradas, através da Rue Rivoli, para o terraço coberto do hotel. Ao lado, sob um
toldo estendido do saguão até uma pequena plataforma com mesas de chá, uma orquestra, escondida entre as palmeiras, executava uma marcha que alguns casais dançavam.
A princípio, pensou que ela não estava lá. Então, por trás do biombo da folhagem, outra parelha saiu para a pista. A moça sorria quando, com um gesto prático, estendeu
os braços para o companheiro, que a enlaçou pela cintura. Deslizaram juntos - Chester e Emmy.
Imóvel, com a face estranhamente inexpressiva, Stephen ficou a olhá-los, observando como se moviam graciosamente. Seus passos combinavam perfeitamente. Quando a
música parou, permaneceram de pé, juntos, e quando o bis começou, prosseguiram sozinhos. Tão perfeita era a sua exibição, que os deixaram monopolizar a pista, e
quando afinal foram sentar-se, receberam um murmúrio polido de aplausos.
Stephen arrancou-se dali, caminhou lentamente para o passeio público e sentou-se num banco do qual podia ver a entrada do hotel. A dor no seu coração era quase insuportável.
Apertava os olhos ao pensar em como ela o havia enganado. Como ela e Chester deviam ter rido juntos com a invenção da chapelaria fictícia, e a sua crença inteiramente
falsa de que ela estava modesta, industriosamente trabalhando com a agulha, quando durante todo o tempo tinha estado com Harry. Madame Armande era inquestionavelmente
outra parceira daquela peça burlesca e tinha sem dúvida espalhado a notícia entre os membros da companhia. Certamente Jo-jo sabia que ele estava sendo um grandíssimo
tolo, embora, por pena, nada tivesse dito.
No entanto, tudo isso não era nada diante da angústia e da amarga fome da alma que agora o possuíam. Maior ainda que a sua raiva e mortificação, era aquela frenética
intensificação dos ciúmes e do desejo. Através da mágoa e da humilhação, ainda a queria; através do ódio, ainda tinha necessidade dela. E sentado ali, com a cabeça
entre as mãos, procurara achar desculpas para racionalizar
a conduta de Emmy. Afinal de contas, ela estava apenas dançando com Harry, e isso decerto não era um crime. Conhecem-se muitos parceiros de dança que não sentem
nada um pelo outro e estão unidos por não mais que um prazer puramente impessoal pela arte.
A música continuou a tocar intermitentemente até as seis horas, e quando a pista esvaziou, ele viu os músicos saírem com os seus instrumentos. Seguiu-se um demorado
intervalo. Com toda a certeza, Harry e Emmy tinha ido ao bar - imaginava-os muito juntos nos bancos altos, Harry à vontade e descansando, na maior intimidade com
o barman.
Demoraram tanto a reaparecer que ele começou a temer que tivessem deixado o hotel por outra saída. Mas, por fim, já quase noite, filas de luzes coloridas se acenderam
na frente e eles apareceram, descendo os largos degraus do pórtico, e se dirigindo para o passeio. Falando junto, animadamente, passaram tão perto que ele poderia
tê-los chamado. Mas manteve os lábios apertados, e quando já estavam uns 30 metros adiante, levantou-se, quase automaticamente, e seguiu-os.
Não foram muito longe. A uma pequena distância do Casino, deixaram o passeio público, tomaram a rua lateral do Marche aux Fleurs, na Cidade Velha, e entraram num
pequeno restaurante - a Brasserie Lutétia. Jantar para dois, pensou Stephen sombriamente, e teve um impulso hesitante, doentio, de entrar e sentar-se na mesa deles
- em vez disso, abotoou a gola do paletó e postou-se na sombra de um portal.
Não muitas pessoas entravam na brasserie - era um desses lugares sossegados, onde se podia ter completa intimidade. Uma vez, um garçom saiu à porta, olhou para cima
e para baixo, como se esperasse fregueses, e entrou novamente. Um gato passou de mansinho pela calçada. Do portal, sobre os telhados no fim da rua, Stephen podia
distinguir a massa escura das montanhas e altos pontinhos de luz que talvez fossem estrelas.
Teve que esperar até depois das nove, antes que eles emergissem. Somente a grande premência da sua necessidade de descobrir a verdade ajudou-o a manter-se naquela
triste e degradante vigília. E o momento se aproximava - um tremor o percorreu ao vê-los em pé sob as luzes da marquise. Com certeza, Chester estava para se despedir,
ou então ia levá-la de volta à Place Pigalle.
Estavam agora falando com o garçom, o mesmo que vira sair com eles, e Harry disse alguma coisa que os fez rir. Um fiacre chegou ruidoso, chamado da fila na praça,
lá embaixo, uma gorjeta foi dada, Emmy e Chester entraram. Rapidamente, ao se afastarem, Stephen andou até a praça, saltou noutra carruagem e disse ao cocheiro que
os seguisse.
Rodaram pelo Mercado das Flores deserto, entraram num labirinto de ruas antigas e viraram para a costa; então, com o coração encolhido, Stephen
viu que eles se dirigiam diretamente para Villefranche. Logo estavam lá. No fim da Rue des Lilas, Stephen mandou o cocheiro parar e pagou a corrida. Mais adiante,
na rua tranquila, viu o outro veículo parar. Ambos os seus ocupantes desceram, desaparecendo no pátio. Agora as duas carruagens tinham sumido, e ele ficara só na
rua deserta. Instintivamente olhou para o relógio - o mostrador luminoso indicava 10:30. Lentamente, andou para o Hotel des Lilas e ergueu os olhos para a sacada
do apartamento de Chester. A luz de um quarto estava acesa, e ele o identificou como o dormitório, podendo ver duas figuras se moverem por trás da cortina amarela.
A luz permaneceu por mais alguns minutos, e depois se apagou.
Quanto tempo ficou ali, olhando tristemente para o apartamento escuro, Stephen não poderia dizer. Por fim, deu as costas e afastou-se.


CAPÍTULO XIII

VOLTOU À PLACE CARABACEL antes da meia-noite. Através da dor surda que sentia na testa, sabia que deveria ir embora. Metodicamente, sem perturbar Jo-jo e Croc, ambos
adormecidos, reuniu os seus pertences na mochila. Amarrando as telas juntas, prendeu-as nas costas e, com um último olhar para os seus companheiros, saiu na sua
bicicleta. Dirigiu-se para o norte, pedalando velozmente na estrada plana que levava a St. Agustin, com a vaga intenção de pegar a route nationale que finalmente
o levaria a Auvergne. Sentia necessidade de estar com Peyrat - devia ter feito aquilo semanas antes. Mas sobretudo era premido pelo desejo de escapar, de obliterar
da memória aquelas últimas e intoleráveis semanas.
Quase pela manhã, desmontou, estendeu-se num espaço da charneca à beira da estrada e fechou os olhos. Não pôde dormir, mas, tendo descansado até que o sol despontara,
pôs-se novamente em marcha. E agora via pela sinalização que não estava na grande route, mas numa estrada secundária que corria entre as gargantas rochosas do Var
e subia serpeando para Touet e Colmars. Todavia, não quis desandar caminho. Todo o dia e no seguinte trabalhou nos pedais, mais do que a sua força lhe permitia,
no esforço para esquecer. Em Entrevaux, entrou erradamente numa estrada secundária, mais inclinada, que coleava para as montanhas através de um pinheiral. A pavimentação
era má, o progresso ali era mais difícil, havia um opressivo fragor de água se despejando
à medida que a torrente estrondeava sobre o seu leito de pedregulhos; contudo, o estranho medo de voltar mantinha-o tocando para a frente, comendo às pressas quando
podia, dormindo no chão nu, atrás de montes de feno, em estábulos desertos, com a sua capa dobrada como travesseiro. Uma aversão mórbida a qualquer contato humano
afastava-o das mais humildes estalagens.
O tempo piorara, e entre as colinas era úmido e nevoento. Na manhã de domingo, chegou a Annot, uma cidadezinha agrícola construída num planalto, com um vento frio
soprando dos Alpes. Sabia que era domingo pelo repicar dos sinos da igreja e pelo desfile de habitantes sérios, vestidos de preto, que olhavam para ele com desconfiança.
Doente de fadiga e esgotado como estava, essa hostilidade todavia o atingiu, e embora tivesse uma desesperada necessidade de tomar um café quente e pensasse em se
deter ali, não o fez, baixando a cabeça sobre o guidom e pedalando para fora da cidade. A chuva começou a cair. Ele foi obrigado a descansar. Ao desmontar, quase
caiu da sua máquina. Acocorado debaixo de uma cerca gotejante, comendo os restos de comida fria que tinha comprado na noite anterior, sentia-se inteiramente sem
lar, sem um lugar ou abrigo, irreal e desligado como um fantasma.
A chuva não parou, mas ele continuou, agora mais devagar do que antes e com uma falta de fôlego que o obrigava a desmontar nos aclives mais fortes. Seu nariz começou
a sangrar intermitentemente, e embora atribuísse o fato à altitude e lhe desse pouca atenção, era uma sensação esquisita o sangue a refluir quente sobre a sua garganta.
Cerca do meio-dia, começou a sentir-se extremamente indisposto, e, através do entorpecimento que o oprimia, penetrou-lhe um raio de razão. Nunca chegaria a Auvergne
daquela maneira, era loucura continuar; devia procurar uma estrada de ferro ou algum centro próximo sem demora. Desdobrando o seu mapa em grande escala, e protegendo-se
com a sua capa gotejante, viu que, atalhando para oeste, por Barréme, podia alcançar o entroncamento de Digne, não mais que 35 quilómetros além. Digne talvez não
fosse grande, mas ficava numa planície, o que lhe permitiria escapar destas montanhas impossíveis.
Tomou pelo atalho. Era escabroso, mais difícil do que antes, coberto de um cascalho áspero que fazia os seus pneus saltarem e derraparem. Tinha menos força do que
antes nos aclives, e com o esforço adicional seu nariz recomeçou a sangrar. O céu lá adiante era baixo e encoberto, a chuva aumentava rapidamente, e dali a pouco
um dilúvio desabou sobre ele. Ensopado, na escuridão que descia rapidamente, alarmou-se, acendeu com dificuldade a sua pequena lanterna de carbureto e novamente
consultou o mapa.
Não tinha examinado a folha por mais de um minuto, quando um gemido se lhe escapou. Oh, Deus... que tolo... que idiota cego e insensato. Acompanhando com o dedo,
viu que estava no caminho errado. Lá atrás, em
St. André, a curva devia ter sido para a esquerda, não para a direita. E agora examinou o sinal, route acidentés, fort montée, isolée - encontrava-se num beco sem
saída que levava direto acima, ao Col d'Allos.
Um ataque de nervos, quase de pânico, sacudiu-o. Aproximou mais o mapa. Devia haver alguma espécie de aldeia na vizinhança. Então, com alívio, decifrou o nome de
St. Jérõme. Era aparentemente um povoado, mas por sorte estava cercado por uma Cruz de Lorena vermelha, indicando a presença de uma hospedaria arrolada pelo Touring
Club da França como oferecendo acomodações para ciclistas e onde ao menos poderia achar abrigo para a noite. Se não estava completamente perdido, devia alcançá-la
em uma hora.
Pedalou, curvado, contra o vento. O gosto de sal na sua boca aumentou, e passando o lenço nos lábios sentiu que estavam inchados e flácidos. Suas pernas não mais
lhe pertenciam, um martelo batia na sua cabeça, mas quando sentiu que não podia avançar mais, viu tremeluzir, no socavão adiante, um grupo de luzes.
Ficaram mais próximas: uma grande construção cercada por casas menores tomava formas indistintamente, lá embaixo. Completamente esgotado, deixou a sua bicicleta
rodar e subiu aos tropeções a trilha para a primeira casa
- parecia a choupana de um trabalhador. Suas batidas permaneceram sem resposta por um interminável intervalo, e então a porta foi aberta por uma criancinha que ficou
olhando para ele e depois voltou-se e correu. Ele entrou num corredor, ouvindo vozes numa peça dos fundos da casa. Respirava irregularmente, e embora estivesse ensopado,
morria de sede. Devem receber-me, pensou, vou adoecer... aliás, já estou desgraçadamente doente.
Um trabalhador de camisa azul dirigiu-se para ele, seguido de uma mulher com uma lâmpada Argand e, atrás dela, a criança. Ele viu os seus rostos sobressaltados através
do nevoeiro que passava.
- Sinto muito. - com terrível dificuldade, como se do fundo de um poço, pronunciava as palavras. - Perdi o caminho. Podem me receber?
- Mas monsieur...
- Por favor... posso me sentar?... uma bebida.
Antes que ele pudesse falar outra vez, o homem chegou mais perto, sacudindo excitadamente o braço.
- Não aqui - disse. - O senhor deve continuar.
- Deixe-me ficar. - Novamente o terrível problema da articulação. Não posso continuar.
- Não, não... mais adiante.. . não aqui.
O homem segurou-o pelo ombro e levou-o para fora da casa. Julgando que estava sendo enxotado para a estrada, incapaz de resistir ou sequer protestar, tomado de uma
desesperança final, sentiu uma ardência nos olhos, e então, ao chegarem ao portão, percebeu que o homem não o tinha soltado,
mas o ajudava, amparando-o por um corredor rua abaixo. Na verdade, ao avançarem, ele murmurou algumas palavras de encorajamento:
- Está vendo? Não é longe... estamos quase lá.
No fim, alcançaram a grande construção. Havia árvores de espessa folhagem em ambos os lados. O homem puxou a corda de uma sineta e, após um momento, abriu-se uma
grade na porta tacheada. Seguiu-se uma breve conversação e depois ele foi admitido num pequeno saguão caiado, com um chão de pedra nua e bancos lustrosos junto às
paredes.
À beira do colapso, Stephen olhou em torno, tonto. Tudo estava fora de foco. Todas as linhas do saguão corriam juntas e depois se afastavam, como círculos num lago.
Até o porteiro que o deixara entrar parecia fantasticamente indistinto, vestido num paletó comprido e com capuz que lhe dava um aspecto de mulher. Outro homem, ou
mulher, tinha aparecido. Então, imediatamente, todas as linhas se dissolveram. O trabalhador da choupana, voltando-se para esse recém-chegado, retirou atabalhoadamente
o braço que o amparava. Stephen caiu de rosto para baixo, com o embrulho de telas molhadas ainda amarrado às costas.


CAPÍTULO XIV

O SOL DA MANHÃ, incidindo na única e funda janela à cabeceira da tarimba armada sobre cavaletes, acordou-o. Ele deixou-se ficar passivamente, o olhar percorrendo
os poucos objetos da pequena ermida da qual, durante as últimas três semanas, tinha se tornado íntimo e familiar - a solitária cadeira de assento empalhado, o armário
provençal, o genuflexório de madeira num canto, o crucifixo preto na parede branca. Especulativamente, examinou a sua mão, levantando-a contra a luz, achando os
dedos ainda brancos, mas talvez menos translúcidos do que na véspera. Esse era um teste que ele fazia todas as manhãs. Passos leves, rangendo no corredor coberto
de areia, fizeram que ele, sem querer, movesse o corpo e voltasse a cabeça. Estava olhando para a porta quando ela se abriu e o enfermeiro entrou, trazendo o seu
desjejum numa bandeja.
- Como dormiu?
- Muito bem.
- A nossa cantoria não o perturbou?
- Não, agora já estou acostumado.
- bom - disse Dom Arthaud, depondo a bandeja.
Tirou um termómetro dos recessos do seu hábito branco, sacudiu-o e, com um sorriso, colocou-o entre os lábios de Stephen. - Isto não é mais necessário. Mas como
você vai se levantar hoje, queremos ter certeza.
Era um homem de uns 50 anos, de estatura média, vigoroso, ombros quadrados, com uma cara grande e agradável, ligeiramente azulada em torno do queixo, e inteligente,
de olhos castanhos com óculos, a cabeça raspada e tonsurada; usava sandálias de tiras nos pés nus. Ao cabo de um minuto, retirou o termómetro, leu-o e, com um aceno
tranquilizador, puxou a cadeira com a bandeja para junto da cama.
- Não esqueça o seu remédio.
Depois de tomar, com um canudinho de vidro, o líquido escuro de sabor metálico, Stephen começou o seu desjejum - uma caneca de café au lait, manteiga fresca numa
tigela de barro, pão cortado em fatias e frutas. O café com leite estava quente, cheirando a chicória. Depois de molhar o pão na caneca, Stephen olhou compungido
para o que estava em pé - ele nunca sentava-se na extremidade da cama.
- Por que não come comigo? Aqui há mais do que suficiente para dois.
- De modo nenhum. Fazemos a nossa refeição ao meio-dia.
- Mas... isto está muito gostoso.
O enfermeiro sorriu alegremente.
- Sim... a nossa comida é perfeitamente horrível. Mas estamos habituados a ela. E depois, não estivemos doentes.
Stephen apanhou outra fatia de pão.
- Isso é que eu estava querendo lhe perguntar. Que foi exatamente que eu tive? O senhor nunca disse.
- Você teve uma inflamação dos pulmões... por exposição à intempérie. Além disso, fez um esforço demasiado grande. Como resultado, teve a complicação de uma hemorragia.
Muito grave.
- Pensei que o sangue fosse do nariz.
- Não, era dos pulmões. - Fez uma pausa, olhando por cima dos óculos de aros metálicos. - Já teve algo parecido antes?
Stephen refletiu um momento, depois abanou a cabeça.
- Tive um resfriado há alguns meses. Bronquite, imagino. Mas podia ter sido por causa disso.
O enfermeiro baixou os olhos.
- Eu não poderia responder. Não sou médico.
- Mas o senhor me salvou desta muito bem.
- Com a ajuda de Deus.
- E muita habilidade. Não acredito que o senhor não seja qualificado.
- Estudei medicina em Lions com o Professor Rolland. No último ano, assim como você foi chamado para ser um pintor, recebi o chamado para ser um monge.
- Muito afortunadamente para mim.
Dom Arthaud inclinou a cabeça, e então, quando Stephen terminou, apanhou a bandeja. Na porta, fez uma pausa.
- Não se levante ainda. Esta manhã, o Reverendo Prior vem visitá-lo. Quando ele saiu, Stephen recostou-se, com as mãos cruzadas atrás da cabeça. Ainda se sentia
atrozmente fraco. Contudo, quase já não tinha tosse e nem sentia mais aquela pontada aguda do lado. Como era bom o sol no seu rosto - a atividade da convalescença
começava. Não se preocupava com a sua situação. A persistência do enfermeiro em tirar-lhe a temperatura de manhã e à noite não era palpavelmente mais do que uma
rotina. Na verdade, imaginava, calmamente, se a sua doença, com aquele estranho depauperamento, não teria sido peculiarmente oportuno. Já ouvira falar de sangria
como remédio para a febre. Pelo menos sentia-se curado daquelas dores cruciantes que tão intoleravelmente o atormentavam.
Olhando para trás, admirava-se de que, durante todos aqueles meses, tivesse permanecido naquele estado de tamanha sujeição, aniquilado por uma única palavra, arrastando-se
pelo favor de Emmy. A simples ideia daquilo fazia-o estremecer. Rejubilava-se em ser ele mesmo outra vez, e jurou que jamais se submeteria a semelhante escravidão
- na verdade, foi mais longe, e fez um voto solene de que no futuro nenhuma mulher participaria da sua vida. Somente o seu trabalho o interessaria agora, e a ele
se aplicaria com rigorosa autodisciplina.
Às 11 horas chegou o seu visitante. O Prior, uma figura alta e imponente, na sua vestimenta branca encapuzada, sentou-se tranquilamente na cadeira e estudou Stephen
com grave reflexão.
- Então, afinal vai sair da sua cama, meu filho. Alegro-me.
- E eu estou agradecido - murmurou Stephen. - Foi sorte minha encontrar a sua cruz no meu mapa.
- É verdade que temos uma cruz. Mas não figuramos no mapa - disse o Prior com um leve sorriso. - Aquela marca é para uma hospedaria de ciclistas no vale vizinho.
Você se extraviou no caminho, meu filho. Ou, desde que a Providência o trouxe aqui, poderíamos dizer que o achou?
Uma esquisita inflexão na voz do Prior trouxe uma ligeira cor ao rosto pálido de Stephen. Teria deixado escapar alguma coisa a seu respeito nos primeiros dias da
doença?
- De qualquer maneira - respondeu ele - já era tempo de eu ficar bom. Dei-lhe um grande trabalho. Os senhores devem estar querendo se livrar de mim.
- Ao contrário, você é muito bem-vindo aqui. Sofreu um grande abalo, e Dom Arthaud acha que antes de várias semanas não estará apto para viajar.
- Mas... receio que não possa pagar.
- Nós lhe pedimos o seu dinheiro, meu filho? Aliás, quem o esperaria de um artista que luta? Fique conosco por uns tempos. Sente-se ao sol no jardim. Quando estiver
mais forte, a vida terá um aspecto diferente. Será capaz de enfrentar melhor o mundo.
O Prior pousou delicadamente a mão no braço de Stephen, e então levantou-se e saiu.
Stephen teve que se esforçar para reprimir as lágrimas dos olhos. Levantou-se. Suas roupas, lavadas e cuidadosamente dobradas, estavam no armário, com os seus outros
pertences. O dinheiro, cerca de 30 francos, achava-se numa pilha precisa ao lado do seu relógio, que estava funcionando; ele adivinhou que lhe tinham dado corda
todos os dias. Depois de se vestir, deixou o quarto e andou ao longo de um corredor estranho, lajeado de pedra, que o levou ao jardim, nos fundos.
Não era um recinto grande, umas poucas trilhas em torno de roseiras separadas, que levavam a uma gruta com uma estátua no fundo. Um muro de andebol quebrava o contorno
da cerca em volta. Além, alguns campos. Por suas conversações com Dom Arthaud, Stephen soubera que, graças à doação de uma pequena casa de campo, a comunidade, devotada
à instrução de cerca de 20 noviços, tinha sido recentemente estabelecida e estava crescendo unicamente devido aos esforços dos próprios monges, que haviam construído
com as suas mãos a pequena capela contígua à antiga mansão. Podia vê-la agora, branca e um tanto grosseira, aprumando-se contra o céu lanoso.
Após ter andado pelas trilhas, foi obrigado a descansar num dos bancos que flanqueavam a quadra de andebol. Um velho, com o hábito castanho de irmão leigo, estava
ordenhando uma vaca no pasto. Dali a pouco, começou um ofício na capela, e o cantochão, carregado pela brisa suave, era mais do que ele podia suportar. Levantou-se
e arrastou-se para o seu quarto.
Lá, encontrou uma carta, colocada bem à vista no peitoril da janela. Uma semana antes, sentindo-se terrivelmente só, soerguera-se no travesseiro e garatujara umas
linhas ao morador do nº 15 da Rue Castel, pedindo-lhe que remetesse qualquer correspondência que chegasse para ele àquele endereço. Este era, presumivelmente, o
resultado. Rasgou o envelope. Era de Stillwater, uma breve nota escrita havia dois meses.
CARO STEPHEN
Não sei se esta lhe chegará às mãos. Se chegar, é para informá-lo da morte de Lady Broughton, em outubro. Isso não foi inesperado. Algumas semanas antes, o noivado
de Claire e Geoffrey fora anunciado. Vão casar-se muito em breve. Não há outras notícias de importância para lhe dar, a não ser que papai
continua muito triste com a sua ausência. Suplico-lhe que volte e aceite suas responsabilidades como filho obediente.
Sua, Caroline.
Ainda com a carta na mão, Stephen sentou na cama. Em outros tempos, aquela notícia de casa não o teria afetado tão profundamente. Sabia da doença de Lady Broughton,
e seu amor por Claire nunca tinha sido mais que uma afeição fraternal. Contudo, aqui, neste ambiente estranho e remoto, abatido pela doença, a morte de uma e o próximo
casamento de outra - com Geoffrey, entre todos os homens! - parecia aumentar a sua sensação de exílio, cortá-lo mais fundamente de toda aquela vida agradável que
normalmente ainda seria sua. O tom da carta de Caroline, breve, cheio de calada amargura e implícitas censuras pelo que poderia ter sido, fazia-o mais do que nunca
sentir-se uma criatura à parte, cuja própria natureza o punha em conflito com a família, a pátria e a sociedade.
Com o decorrer das semanas, ele ficava mais forte. A região em torno, coberta de pinheiros baixos, sem beleza e sem qualidade, dava-lhe pouco incentivo para sair
do recinto. Fez amizade com os dois filhos de Pierre, o trabalhador da choupana que o trouxera ao mosteiro, levava-os encarapitados no selim da sua bicicleta. Ajudava
o velho Irmão Ludovic na horta, jogava andebol com os noviços na hora do recreio. Eram um alegre grupo de jovens, recrutados principalmente em boas casas burguesas
em Garonde e nas cidades vizinhas. Talvez por ele ser um estranho, e de uma raça diferente, eles se davam ao trabalho de lhe dedicar pequenas atenções matizadas
de um espírito de proselitismo que, embora o deixasse insensível, comovia-o e divertia-o. Seus corações estavam naquela nova pequena comunidade, e quando não mergulhados
em oração, entregavam-se sem poupar-se ao duro trabalho manual nos seus esforços para melhorá-la.
Um dia, no jogo de andebol, fizeram-lhe uma observação, meio rindo, meio sérios.
- Monsieur Desmonde... Uma vez que o senhor é um artista, por que não pinta um belo quadro para a nossa igreja?
Stephen, com a atenção presa, olhou para o proponente.
- E por que não? - respondeu com um ar sério.
A ideia, que não lhe ocorrera, pareceu-lhe um admirável meio de expressar a sua gratidão, de dar alguma retribuição tangível pela bondade que tinha recebido. Além
disso, a vadiagem forçada começara a pesar-lhe.
Nessa mesma tarde, conversou com seu amigo Dom Arthaud, que recebeu a sugestão calorosamente e prometeu falar com o Prior. A princípio, o Prior hesitou. A capela,
embora reconhecidamente inacabada por dentro,
era o produto de um prolongado e árduo esforço e cara ao seu coração. Seria sensato colocar aquela prezada e duramente ganha possessão nas mãos de um pintor desconhecido,
cujas poucas telas, embora estranhamente compulsivas, não davam indicação de competência ortodoxa? No fim, a fé, que era o sustentáculo da sua existência, moveu-o
a uma decisão. Mandou chamar Stephen.
- Diga-me, meu filho, o que pretende fazer.
- Gostaria de pintar um afresco acima do altar, na parede de fundo da abside.
- Tema religioso?
- Naturalmente. Pensei na Transfiguração. Iluminaria toda a capela.
- Você está certo de que poderia produzir algo que aprovássemos?
- Eu tentaria. Não tenho tintas nem pincéis bastante largos. O senhor teria que arranjá-los para mim. Teria que confiar em mim. Se o fizer, prometo dar o melhor
de mim.
Na manhã seguinte, dois dos padres partiram para Garonde, voltando à tarde com vários pacotes embrulhados em papel pardo. Nesse meio tempo, os noviços tinham armado
um andaime atrás do altar. Cedo, no dia seguinte, com aquele alvoroço que sempre sentia ao começar um novo trabalho, Stephen pegou o seu pincel.
Contudo, o seu estado de espírito era muito insólito. De corpo relaxado, não de todo livre da lassidão da convalescença, parecia banhado de um fofo langor. Suas
emoções ainda eram instáveis, a umidade lhe vinha prontamente aos olhos. O ambiente da capela, a entonação dos monges, a sensação de estar separado do mundo induziam
nele emoções inteiramente alheias à sua natureza. Embora não dispusesse de modelos, o trabalho tomou corpo com uma surpreendente facilidade, para quem estava acostumado
a um esforço sobrehumano nas primeiras horas de criação. Já tinha esboçado a figura central do Senhor, vestido de trajes brancos, radiante com uma nuvem de luz,
e começava a traçar as feições de Moisés e Elias.
Ao progredir com tamanha facilidade, experimentou esquisitos momentos de desconfiança, imaginando-se, em vez de projetar as suas próprias ideias, não estaria reproduzindo
inconscientemente uma compósita de primitivos pintores religiosos. Aplicadas em têmpera, as suas cores, usualmente tão duras, eram macias e lisas, suas formas pareciam
perturbadoramente convencionais. No entanto, contra essas dúvidas, crescia a aprovação da comunidade.
No começo, fora olhado com ansiedade, talvez até com desconfiança. Mas logo isso deu lugar a uma franca admiração. Às vezes, ao voltar-se no andaime para limpar
os pincéis, observava nos olhos de algum noviço que tinha vindo ostensivamente para rezar, mas na verdade para incorrer no pecado da distração, um olhar de perfeito
transe. Aquilo não era suficientemente tranquilizador? E, afinal de contas, ele não se comprometera a agradar?
O afresco, ocupando todo o espaço acima dos retábulos, ficou terminado em três semanas, e quando o andaime foi retirado, toda a comunidade reunida olhava-o com aclamação.
- Meu filho - disse o Prior a Stephen - agora sei que a sua vinda aqui foi providencial. Deu-nos um memento da sua estada que durará muito além da existência de
todos nós. Agora somos nós quem lhe devemos muito. - E continuou: - Amanhã celebraremos a Missa Solene para consagrar a sua obra. Embora não seja membro da nossa
fé, espero que nos agrade com a sua presença.
Na manhã seguinte, o altar estava enfeitado de flores, chamejante de velas. O Superior, em paramentos brancos, assistido por Dom Arthaud, cantou a Missa, enquanto
o coro entoava as respostas. Para Stephen, sentado na galeria, a pintura, brilhando à luz dos círios, tornada mística por uma nuvem de incenso, parecia uma esplêndida
realização. Nunca antes tivera tamanho sucesso.
Um repasto especial foi servido após a cerimónia, com um vinho da região de tal vigor que Stephen deu um passeio à aldeia para clarear a cabeça.
À tarde, quando voltava, Dom Arthaud o recebeu à porta com uma curiosa expressão.
- Há um visitante que deseja vê-lo. Um cavalheiro que diz ter vindo para levá-lo de volta a Paris.
Stephen entrou no seu quarto. Lá, reclinado na cama, usando chapéu e paletó, e soprando furiosamente no seu cachimbo, estava Peyrat. Pulou imediatamente quando Stephen
entrou e beijou-o em ambas as faces.
- Que é que andou fazendo? Não uma, mas uma dúzia de vezes procurei alcançá-lo. Agora, por casualidade, consegui o seu endereço na Rue Chancel. Por que está enterrado
aqui?
- Estive pintando - sorriu Stephen, ainda vibrando com a inesperada presença de Peyrat.
- Sorte ingrata - disse Peyrat, com fingida braveza. - Enquanto eu esperava, me arrastaram para a igreja. Que coisa terrível essa que você fez, cher ami. Oh, que
miserável cópia de del Sarto. Que terrível refundição de Luini. Embora eles gostem e vão se ajoelhar diante daquela pintura durante séculos, é indesculpavelmente
chocante, e para você, especialmente neste momento, uma desgraça.
- Por que neste momento? - perguntou Stephen, um tanto desconcertado.
- Por causa do anúncio feito no mês passado, e que me fez caçá-lo por toda a França.
- Que diabo está querendo dizer?
- Um anúncio - continuou Peyrat imperturbável, rolando as palavras
na língua como se gostasse do seu sabor - que lhe colocava uma medalha no peito, 1.500 francos no bolso e ainda nos permitirá, espero, fazer uma viagem juntos à
Espanha.
Subitamente atirou os braços em torno de Stephen e mais uma vez o abraçou.
- Não se importe com a sua doença, ou aquele medonho Moisés e Elias. A sua Circe ganhou o Prix de Luxembourg.


CONTINUA

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

DOVER, NA CHUVA, era uma triste porta dos fundos para fugir da Inglaterra. Quando o navio de carreira deixou o porto sujo, as ruas enlameadas, os edifícios amarelos
da encosta, os rochedos de um branco encardido, tudo mergulhou igualmente num dilúvio cinzento.
Na terceira classe, o espaço limitado estava abarrotado de passageiros, e Stephen, deixando aquele ar pesado de umidade e ruidosa camaradagem, voltou para o convés
molhado e atravancado de cabos. Ficou solitário na popa, abrigando-se, o melhor que podia, atrás da lona que cobria um guincho, com os olhos na costa amorfa, os
pensamentos tão equilibrados entre a amargura e a tristeza que fixavam nele uma atitude de completa imobilidade.
Dali a pouco foi sentar-se num braço do guincho, indiferente ao balanço do navio, ao vento e aos esguichos que assobiavam junto daquela ligeira proteção; tirou do
bolso o seu bloco de esboços. Era um movimento reflexo, um grito do coração. Contudo, uma vez que o seu lápis começou a andar pelas páginas agitadas na beira pela
ventania, perdeu-se, desenhando, com grande rapidez, fases do mar agitado, ondas estranhas e pressagas, a que ele insuflava uma qualidade de vida, vendo nos seus
contornos rotos, no laço intrincado das suas cristas, selvagens rostos humanos, cabeças atormentadas e torsos retorcidos, figuras de homens e de monstros, de cabelos
escorrendo e membros contraídos, tudo perdido e arrastado pela invencível força do mar.
Foi talvez uma espécie de loucura, uma vertigem, que o deixou amolecido e exausto. Tiritava quando o vapor diminuiu a sua marcha arfante para entrar cautelosamente
nos braços do quebra-mar de Calis, e, consciente do seu rosto gotejante e roupas ensopadas, guardou o bloco no bolso com um ar furtivo. Cabos eram lançados, pranchas
de desembarque empurradas, a douane era rapidamente passada. Mas algum ligeiro acidente na linha tinha atrasado o trem para Paris, que ainda não chegara.
Stephen tiritava novamente, batendo os pés sobre a plataforma a fim de restabelecer a circulação. Embora a chuva fosse menos impiedosa em terra, o vento, enfiando-se
pela curva dos trilhos, parecia mais violento, mais cortante. A maioria dos seus companheiros de viagem estava aproveitando o atraso para um almoço à la carte no
restaurante da estação. Mas, diante de um
futuro de completa incerteza, um exame mais detido do estado das suas finanças absteve-se desse luxo. Tinha, para ser preciso, 5 libras e 6 xelins, tudo que lhe
restava das 10 libras que trazia consigo quando chegara a Stillwater.
Por fim, o trem entrou resfolegando; após várias conferências e muita gesticulação, apitos agudos, jatos de vapor, e as notas melodiosas de uma trompa, a marcha
foi invertida e o vapor esguichou novamente. Para Stephen, encolhido no canto de um compartimento ventoso, foi uma viagem miserável. Tiritava frequentemente, sabia
que tinha apanhado um resfriado, e acusava-se de ter sido um tolo.
Na Gare du Nord hesitou, e então, aceitando o risco, e não sem uma certa recordação melancólica da sua prévia entrada na cidade de coração leve, tomou o metro para
a Rue Gastei. No seu presente estado de espírito ansiava, acima de tudo, pela simplicidade e firme amizade de Peyrat. Mas o novo inquilino do apartamento, incompreensivo
e desconfiado, apareceu na porta, respondendo que não havia cartas nem recados... acreditava que Monsieur Peyrat estaria no Puy de Dome, em Auvergne, até o fim do
ano, e além disso não sabia mais nada.
Os passos seguintes de Stephen levaram-no ao estúdio de Glyn. Estava fechado. Do mesmo modo, o pavilhão dos Lamberts, com as janelas fechadas, foi uma nova decepção.
Stephen voltou para o alojamento de Chester. Embora não tivesse acertado exatamente o montante da dívida, sabia que Harry, com seus repetidos pedidos de empréstimo,
devia-lhe pelo menos umas 30 libras, soma que agora adquiria uma importância muito maior do que antes. Mas também aquele quarto estava fechado, aliás, trancado com
um cadeado. Todavia, ao descer as escadas, foi reconhecido pelo concierge e obteve dele o atual endereço de Chester, enviado num cartão-postal recebido dois dias
antes: Hotel du Lion d'Or, Netiers, Normandia.
Animado, Stephen entrou no primeiro bureau de poste e passou um telegrama, explicando a sua situação e pedindo que Chester lhe mandasse por cheque telegráfico, se
não todo, ao menos parte do dinheiro que lhe devia, aos cuidados de Adolf Bisque na Rue Castel. Quando a moça de blusa de alpaca atrás do guichê terminou, a tinta,
uma soma complicada, um processo que a ocupou durante alguns minutos, Stephen pagou e dirigiu-se para o DuvaPs, onde pediu chocolate quente e um brioche.
Depois dessa ligeira refeição, como a chuva caísse mais forte e as sarjetas transbordassem, ele decidiu encontrar, o mais depressa possível, um alojamento para a
noite. Por causa da sua conveniência, e não na esperança de encontrar conforto, ficou num hotel barato das proximidades, a Pension de
l'Ouest, diante da qual passara tantas vezes a caminho do estúdio de Glyn.
Alcançado por escadas sem passadeira, seu quarto não era mais que um estreito, cubículo, mas era seco, e a cama, embora os lençóis estivessem encardidos,
tinha uma ampla provisão de cobertores estampados de azul - aqueles cobertores grosseiros usados pelos recrutas durante as manobras do Exército e vendidos depois
pelos contratantes do governo. Após alguns tremores iniciais, aqueceu-se e dormiu pesadamente. Na realidade, ao acordar na manhã seguinte sentia-se melhor, embora
não se surpreendesse com a tosse, agora piorando. Tomou café com um pãozinho, outra vez no DuvaTs, às 11 horas, e dirigiu-se para a loja de Monsieur Bisque.
Ali o esperava uma agradável surpresa. O pasteleiro recebeu-o cordialmente, com a sua cara de lua cheia enrugada de sorrisos, e, tendo repreendido Stephen por não
o ter visitado no dia anterior, apresentou com modos de prestidigitador o telegrama de resposta de Chester. Este, embora não trouxesse dinheiro, era de natureza
a animar o seu destinatário.
DELICIADO SEU TELEGRAMA. VENHA PARA CÁ. TEMPO E HOTEL EXCELENTES. BELO LUGAR PARA PINTAR. ABRAÇOS
HARRY
A perspectiva aberta por aquele amistoso convite, a ideia de estar com uma paleta e pincéis, diante de um cavalete, na Normandia, fazia brilhar os olhos de Stephen.
Bisque tinha um guia que, embora de páginas esfarrapadas e um tanto antigas, parecia provar que o rapide Granville, o trem mais ou menos direto, já tinha partido
- às 10 horas, para ser exato, daquela manhã. Stephen decidiu adiar a viagem até o dia seguinte. Passou à tarde na loja de Napoleon Campo, onde, além de receber
o cavalete e equipamento lá depositados, comprou novos tubos de tinta e algumas telas. Pagou a metade, 50 francos, e prometeu mandar o restante quando chegasse a
Netiers.
A manhã seguinte trouxe um límpido céu azul, e Stephen saiu com os seus pertences para a estação de Montparnasse. O rapide na Plataforma 2 não estava muito cheio
e ele conseguiu, sem dificuldade, um compartimento vazio na parte dianteira do vagão. Ao partirem, não podia afirmar que se sentia bem, pois experimentava uma sensação
de abafamento, com uma pontada no lado direito. Apesar disso, depois que o trem furou o seu caminho através dos túneis e cortes murados e escuros que davam saída
da cidade, perdeu a lassidão, olhando a paisagem em desfilada: vastos campos de restolho com poças de água da chuva, flanqueados por longas fileiras de olmos - sentinelas
intermináveis; uma agulha distante, delgada, graciosa; parelhas de grandes cavalos, com corvos assistentes, arrastando o arado; velhas construções rurais, de telhas
ocres, as empenas salpicadas de anúncios - Byrrh, Cinzano, Dubonnet.
Ao meio-dia, comeu uma maçã e uma barra de chocolate. Gradualmente, a configuração do terreno havia se alterado. Lutando contra a sonolência, ele
notou as azinhagas ondulantes e pequenos pomares cercados, um bando de gansos em lenta procissão para um lago lodoso, seguido de uma menina de pernas nuas com uma
vara de aveleira, um renque de salgueiros podados cercemente, e depois uma dama idosa, de coifa branca, tangendo uma vaca pela relva da beira da estrada, parando
de quando em vez para tricotar. Até a natureza da bebida tinha mudado. Attendez, exclamavam os anúncios, buvez le cidre moissoné!
Cerca de três horas, o trem alcançou o topo de um longo aclive e entrou na pequena estação de Netiers. Apressadamente, Stephen reuniu as suas coisas e pulou do alto
estribo. Uma rápida inspeção mostrou que Harry não estava lá para recebê-lo. Raciocinando que Chester podia não ter calculado bem a hora da sua chegada, Stephen
começou a andar para a cidade, que se podia avistar mais abaixo da colina, coisa de um quilómetro. A expectativa, ao se aproximar, aumentava a sua ansiedade - passou
um muro valado com fortificações, entrou nas ruas tortuosas, de paralelepípedos, tão estreitos que as casas de pedra cinzenta, muito inclinadas, pareciam estar acima
da sua cabeça. E então, no centro da praça do mercado, em frente à fachada de terracota desbotada do antigo hotel de ville, discerniu a tabuleta dourada do Lion
d'Or.
A estalagem era maciça, solidamente confortável, de alta classe. Stephen percebeu isso de relance, ao se dirigir para o balcão de recepção situado no vão de uma
escada de carvalho.
- Sim, monsieur!
- Meu nome é Desmonde. Tenha a bondade de dizer ao Sr. Chester que acabo de chegar.
Uma pausa.
- Está perguntando por Monsieur Chester?
- Sim. Ele me espera.
O empregado, um rapaz de ombros altos e cabeça rapada, estudou Stephen por um momento e depois disse:
- Tenha a bondade de aguardar, cavalheiro.
Desapareceu por trás da cortina que fechava o fundo do bureau; então, após um breve intervalo, voltou com um homem mais velho, uma figura sólida, de pescoço grosso,
vestido com a roupa listrada da profissão.
- O senhor está procurando Monsieur Chester Harry? O tom, embora cortês, tinha uma qualidade intimidante.
- Sim, por quê? Sou amigo dele. Ele não está hospedado aqui? Uma pausa gélida.
- Ele estava residindo aqui, monsieur. Até ontem à tarde, quando apresentamos a sua conta. Desde esse momento não vimos mais o seu famoso Monsieur Chester.
Stephen olhou para o proprietário, estupefato. Pois não viera por convite expresso de Harry, gastando o seu último soldo na passagem de trem? E de súbito lhe veio
uma ideia, contundente como um golpe. Chester, mais uma vez em apuros financeiros, convidara-o a vir somente na esperança de pedir-lhe mais uma quantia emprestada.
- Se monsieur é realmente Monsieur Desmonde - o sarcasmo era cortante - eis aqui uma carta que seu amigo lhe deixou.
MEU VELHO,
Eles podem não lhe entregar esta. Se entregarem, saberá que, com muito pesar, fui obrigado, encore, a cair fora. Pensei que podíamos resolver o caso juntos - baseados
no princípio de que duas cabeças pensam melhor do que uma - mas o departamento de contabilidade daqui estava um passo à minha frente. Provavelmente vou filar minha
viagem para o Sul, ficar um tempo em Nice, tentar a sorte nas mesas: De qualquer modo, eu com certeza o verei mais cedo ou mais tarde... Sinto muitíssimo e todas
essas coisas... mas quando o diabo aperta...
Seu,
HARRY
P.S. Nenhuma mulher decente na cidade. Mas não deixe de provar a sidra local. É excelente.
Stephen amarrotou o bilhete, escrito a lápis e às pressas, entre os dedos tensos. Sabia que Chester não merecia confiança, mas agora, por baixo do encanto, da alegria,
da amizade efusiva, sentia o âmago do seu total egoísmo.
O estalajadeiro e seu empregado olhavam para ele por detrás do balcão com manifesto desprezo.
- Naturalmente monsieur compreende que não temos acomodações para o senhor nesta casa.
- Compreendo perfeitamente - disse Stephen, girando nos calcanhares e saindo para a rua.


CAPÍTULO II

ALI, SEM DINHEIRO E SOZINHO, parado na praça do mercado de uma desconhecida cidade francesa, Stephen avaliava inquietamente a sua situação. Nunca antes estivera
sem dinheiro. Sua pensão, como o amanhecer, era algo
que tinha como certo, a consequência natural da sua posição na sociedade, do seu próprio direito de nascimento. Agora, com um amargo esgar nos lábios, percebia como
era poderosa a arma que seu pai tinha usado. No entanto, a sua renitência nata mantinha-lhe o prumo. Saiu imediatamente à procura de algum abrigo.
Isso, numa cidade sempre cheia de turistas, foi menos difícil do que ele temia, e antes do entardecer ele estava instalado num quartinho do alto, no fundo de um
pátio da Rue de la Cathédrale. Ao entregar a bagagem para a senhoria, uma velha digna, que não lhe pediu pagamento adiantado por ser de apenas 12 francos por semana
o aluguel, resolveu que, houvesse o que houvesse, estaria em condições de pagar-lhe antes que se passassem muitas horas. Tinha sabedoria suficiente para reconhecer
que, naquela localidade, não poderia conseguir uma subsistência imediata com sua arte. Sim, a sua educação, o seu curso universitário e grau de bacharel deviam certamente
capacitá-lo para alguma modesta posição na qual pudesse ganhar dinheiro suficiente para se manter em pé. E até mesmo o bastante para pagar a conta de Chester ainda
lhe doía a farpa final lançada pelo proprietário da estalagem - e voltar a Paris, encontrar-se lá com Peyrat, tendo uma boa quantia, antes do inverno. Se ao menos
estivesse menos indisposto! Aquela tosse, que desde a travessia do Canal lhe abalava o peito, era um grande incómodo. Mas um ferrenho desejo de experimentar-se levou-o
novamente ao centro da cidade.
Lá chegando, fez um exame perspectivo do logradouro principal, a Rue de la Republique. As lojas, embora pequenas, tinham, em sua maioria, um aspecto de sólida prosperidade
associado a uma ativa região agrícola. Pás, garfos, foices, baldes de zinco, grades de dentes vermelhos, tudo isso e mais estava exposto nas casas de ferragem; havia
guloseimas também - deliciosos petits fours e almôndegas doces, arranjados como buquês de noiva, enfeitavam a vitrine de uma pâtisserie, ao passo que na leiteria
da esquina se via um monte amarelo de manteiga da Normandia, ladeado por dois jarros de leite cheios até a borda.
Na frente de uma papelaria, viu uma caixa de vidro com alguns anúncios e avisos escritos à mão. Leu-os cuidadosamente e depois afastou-se. Ele não podia afinar pianos
nem remendar cadeiras de palhinha, não precisava da metade de uma vila à beira dos rochedos litorâneos de Granville. Mais abaixo da rua chegou à redação de um jornal
semanal, Courier de Netiers. Lá dentro, o número em circulação podia ser lido. Mas as suas magras colunas, devotadas principalmente às fases da lua, venda de gado
e cal, cobertura de vacas e éguas, horário das marés no Mont St. Michel, nada lhe ofereciam.
E agora? Era evidente que precisava de conselho. Obedecendo a um impulso, entrou na mairie e, escolhendo um funcionário de ar simpático, sondou-o discretamente sobre
as possibilidades de emprego na cidade. O jovem,
embora surpreso com semelhante indagação, mostrou-se inteligente e bem-intencionado. Pensou muito, e depois abanou lentamente a cabeça:
- É muito difícil... numa comunidade pequena como esta, as pessoas - sorriu, em desaprovação, ajeitou os punhos de papel - ... não são amáveis com estrangeiros.
Por mais uma hora, Stephen palmilhou a cidade sem sucesso. Quando caiu a noite, voltou, cansado e desanimado, ao seu alojamento. Revistando os bolsos, contou a soma
dos seus recursos: 1 franco e 50 soldos. À vista daquelas minguadas moedas na palma da sua mão, sentiu uma onda de orgulho. Não podia, não devia render-se.
No dia seguinte, na esperança de achar um trabalho manual, deu uma volta, a pé, pelas granjas das redondezas. Ao todo, devia ter andado uma distância de 20 quilómetros.
E em vão. Não havia escassez de mão-de-obra agrícola. Em vários lugares foi tomado por um vagabundo, e soltaram os cães contra ele. Um camponês caridoso, de garfo
em punho, fazendo a provisão anual de feno, pareceu hesitar, comovido talvez pela intensidade do pedido de Stephen, mas no fim prevaleceu a sólida cabeça normanda:
- Você não é muito forte, mon petit, pequeno... oh, muito pequeno. Mas, espere. - Chamou para a cozinha. - Jeanne, traga alguma coisa de comer para este rapaz.
Uma bonita mulher, de braços nus, vermelhos, saiu da porta dos fundos com o barulho dos seus tamancos. Dali a pouco, tendo examinado Stephen, trouxe-lhe um pedação
de torta de carne e uma caneca de sidra. Enquanto ele comia esse repasto, sentado num banquinho de ordenhar, na varanda, o granjeiro e a mulher, observando juntos,
discutiam em voz baixa, enquanto um meninozinho de guarda-pó preto espiava-o curiosamente por trás das saias da mSe. Stephen estava hirto de vergonha. Oh, meu Deus,
gemia ele consigo, sou exatamente como alguém de uma gravura de Cotman... cheguei realmente a isto! Mas a torta era boa, com um molho forte e gostoso, e a bebida
ácida lhe trouxe um novo ânimo para caminhar de volta a Netiers.
Escurecia quando chegou à Rue de la Cathédrale. E agora, embora mantido o ânimo muito bem durante todo o dia, um terrível abatimento o prostrava. A mortal estranheza
daquele quartinho apertado, cheirando a madeira velha, bolor e cânfora, estalando a cada passo que dava; a sensação de estar tão completamente só, enganado por Chester,
encurralado num futuro sem esperança; a suspeita, também, de que a sua senhoria começava a olhá-lo com dubiedade - tudo isso se acumulava para derrotá-lo. Sem querer,
atirou-se na cama e, voltando o rosto para a parede caiada, chorou como uma criança.
Esse acesso durou pouco, mas infelizmente tinha provocado a tosse. A noite inteira, ela o castigou severamente, desde que, na sua ansiedade para
não perturbar a casa, suprimia os espasmos e assim aumentava a sua frequência. Por fim, perto do amanhecer, com a cabeça embaixo das cobertas, caiu no sono.
Era tarde, quase 11 horas da manhã, quando acordou - primeiro para um breve momento de descansada alegria, depois para a sombria consciência da sua entalada. Levantou-se,
vestiu-se sem fazer a barba, e foi para a cidade. A agitação do espírito comunicava uma curiosa fraqueza às suas pernas. Estava andando sem rumo ou objetivo. Subitamente,
quando começava a atravessar pela segunda vez a praça do mercado, ouviu que alguém corria atrás dele. E então sentiu uma mão no ombro. Terrivelmente sobressaltado,
voltou-se. Era o funcionário da mairie.
- Desculpe-me, monsieur. - O moço interrompeu-se para respirar. Estive olhando o senhor durante toda a minha hora de almoço. Olhe, desde que foi embora andei fazendo
algumas perguntas para o senhor. E Madame Cruchot, que juntamente com o seu marido tem a sua épicerie ali - e apontou para o outro lado da rua - tem duas filhas
pequenas que ela quer que aprendam inglês. É possível que ela se agrade do senhor. Nesse caso, vale a pena tentar.
- Muito obrigado - gaguejou Stephen, emocionado. - Muitíssimo obrigado.
O jovem funcionário sorriu.
- Boa sorte. - Pronunciou as palavras entre os dentes, cuidadosamente, em inglês, e depois, como se satisfeito com sua proeza, apertou-lhe a mão, tirou o chapéu
e ficou observando-o atravessar apressadamente a rua.
A mercearia Cruchot, ocupando uma posição de destaque na praça, com duplas vitrines de vidro plano e uma brilhante tabuleta que dizia ALIMENTATION DE RENNES, dava
toda a indicação de ser um próspero estabelecimento, negociando com um grande e tentador sortimento de alimentos. Um constante fluxo de fregueses entrava e saía
pela porta, estreitada por presuntos pendurados, redes de limões, um cacho de banana e várias cestas de verduras escolhidas. Dentro, as prateleiras estavam cheias
dos generosos produtos da terra e do mar, com salsichas e fígado de ganso, sardinhas e enchovas, toucinho, azeite de oliva, queijo, frutas em conserva, conhaques
antigos também, vinhos e licores, café, especiarias, dobradinhas, pés de porco, e vidros e garrafas dispostos em pirâmides brilhantes no chão coberto de serragem.
Entrando, Stephen estacou menos por seu próprio nervosismo do que pelo barulho e movimento, gritos de pedidos, a movimentação de dois auxiliares de paletó branco:
uma moça normanda de ombros pesados e um homem coxo de olhar aborrecido.
Todavia, em pouco sentiu-se escolhido por uma voz de timbre penetrante.
- Que deseja, m'sieur?
Presidindo de uma mesinha, controlando o lufa-lufa, parecendo a dona pela amplidão do seu busto e ousadia do olho, uma mulher de cabelos amarelos, de uns 38 anos,
com a sua figura curva e bem coberta, pele lisa, orelhas rosadas suportando pesados brincos de ouro. Usava um vestido malva da última moda provinciana - com uma
aplicação de renda no decote - vários anéis e pulseiras, e um broche de camafeu.
- Perdoe-me - falou Stephen em voz baixa, aproximando-se. - Meu nome é Desmonde. Soube que a senhora talvez precise de um tutor inglês para as suas crianças.
A verificação de que ele não era um freguês afastara o sorriso maquinal dos lábios de Madame Cruchot; seus olhos apertaram-se na fria apreciação de alguém que, no
mercado, é capaz de avaliar, por um simples cabelo o peso e a qualidade de um porco cevado. Mas a palavra tutor, que ele por sorte tinha usado, lisonjeou-lhe a vaidade,
que predominava entre as muitas e fortes características que possuía, e que aliás era o verdadeiro motivo por trás da ideia de que as suas filhas deviam aprender
o idioma inglês. Também aquele jovem que tinha diante de si parecia simpático, "refinado" e tímido o bastante para lhe trazer algum problema.
- M'sieur pode me dizer quem é?
Muito francamente, Stephen lhe disse.
- Então m'sieur é estudante da universidade de Oxford. - Um lampejo iluminou o olho azul de porcelana de Madame Cruchot, mas no interesse da barganha foi rapidamente
suprimido. Duvidosa, encolheu os ombros. - Naturalmente, temos apenas a palavra de m'sieur quanto a isso.
- Asseguro-lhe que...
- Oh, la, la... estou disposta a confiar no senhor. Mas, naturalmente, considerando a idade das minhas filhinhas, exijo o mais alto padrão de conduta e moralidade.
- Naturalmente, madame...
- Então, quando... - interrompeu-se, com uma ordem aguda, suas palavras ressoando como uma pequena salva de artilharia: - Não, não, Marie, esses ovos não, estúpida,
já estão encomendados por Madame Oulard... e, Joseph, até quando preciso dizer que tire açúcar do saco aberto? Qual o salário que pede, m'sieur?
Stephen tratou de calcular rapidamente o menor estipêndio capaz de sustentá-lo.
- Digamos, com lições diárias, 30 francos por semana?
Com um gesto de consternação, Madame Cruchot ergueu as suas mãos gordas e cheias de anéis. Depois sorriu gentilmente, mostrando-lhe um dente de ouro que era como
uma bala.
- M'sieur está brincando.
- Não, realmente... - Empurrado e acotovelado pelo redemoinho de fregueses, Stephen ficou rubro. - Estou falando sério.
- Também somos gente honesta, Monsieur Crochet e eu, m'sieur, mas longe, oh, muito longe, de ser rica. - Feriu uma nota patética. - O máximo que meu marido me autoriza
a oferecer são 20 francos.
- Mas, madame... eu tenho que viver.
Madame Cruchot sacudiu o seu chinó amarelo tristemente.
- Nós também, m'sieur.
Stephen mordeu o lábio, com raiva e orgulho no peito. O aluguel semanal do seu quarto era de 12 francos. Como diabo poderia manter-se com os oito francos que lhe
restariam depois de pagar a sua senhoria? Não, por grande que fosse a sua necessidade, não poderia submeter-se a semelhante imposição. Deu meia-volta para retirar-se.
Mas Madame Cruchot, que não queria perdê-lo e que, no intervalo, tinha-o observado de soslaio da cabeça aos pés, deteve-o com um gesto delicado.
- Talvez... - Inclinou-se para diante, falando com um ar solícito. Talvez se servíssemos aqui o almoço para m'sieur, isso ajudasse um pouco a situação. Uma refeição
boa e substancial.
Apanhado desse modo, Stephen hesitou. Profundamente humilhado, não podia erguer os olhos.
- Muito bem... aceito - murmurou ele.
- Ótimo. Nosso negócio está fechado. Começará amanhã. Não esqueça que exigirei instrução da mais alta classe. E, sem dúvida, no futuro, m'sieur não esquecerá de
barbear-se.
Stephen inclinou a cabeça. Não podia falar. Contudo, a despeito da sua humilhação, por ignominiosa que fosse a sua situação, só podia experimentar uma sensação de
alívio. Com 20 francos e um almoço diário, estava salvo, ao menos por enquanto.
Ao sair da mercearia, ouviu a voz de Madame Cruchot proclamando em altos brados para as regiões do mundo:
- Marie-Louise, Victorine... Sua bondosa mamã acaba de contratar um tutor inglês.


CAPÍTULO III

AGORA, NA ABAFANTE MONOTONIA de uma cidadezinha provinciana, começava para Stephen uma estranha existência. Todas as manhãs, era acordado pelo sino da catedral,
que badalava três vezes, pesadamente, na Consagração das sete horas, afugentando as pombas, quebrando o silêncio eclesiástico da praça vazia. Uma vez vestido, descia
descuidadamente a escada - pelo menos podia sair de casa sem medo de encontrar a sua senhoria. Atravessando a praça para o Café des Ouvriers, que ficava a curta
distância do jardim de muros altos do convento, encontrava sempre as mesmas mulheres pias, vestidas de preto, e algumas freiras, aos pares, emergindo - flutuantes,
parecia, sobre as largas abas das suas toucas - da igreja. O café, assinalado por um ramo murcho na ombreira da porta, não era um lugar especialmente reputado, não
mais do que a cozinha de pedra de uma casa baixa mobiliada com uma mesa tosca e alguns bancos de madeira. Ali, por cinco soldos, tomava o desjejum habitual da casa:
uma xícara de café preto cheio de borra, lavado por um golinho de vinho branco num copo grosso com um dedo, uma espantosa combinação em seu poder restaurativo. Às
vezes havia um jornal da noite passada, Intelligence de Rennes, que o mantinha ocupado por meia hora. Podia conversar um pouco com Mie, a fille de comptoir de olhos
negros, quieta, que atendia o bar primitivo com discrição e que aparentemente tinha outras funções e obrigações, ou com outro cliente, talvez um mascate, um carregador
da estação, ou um entregador de carvão.
Pontualmente às 11 horas, apresentava-se na casa dos Cruchots, situada atrás da mercearia, e se dirigia a uma porta na parede lateral. Ali, na latada contígua a
uma pequena área fechada de relva, ou, nos dias de chuva, na sala abundantemente enfeitada a que Madame se referia como o "salon", Stephen dava sua atenção às menininhas
Cruchot; Victorine, de onze anos, e Marie-Louise, que tinha apenas nove.
Não eram, de um modo geral, crianças desagradáveis, um tanto estragadas por mimos, mas com toda atração da sua tenra idade. Às vezes, eram mesmo muito meigas à sua
maneira, especialmente a mais nova, uma coisinha bonita de cachos castanhos e faces de maçã". Stephen não as achou difícil de levar e logo ficou gostando delas.
Contudo, já os atributos herdados começavam
a se manifestar - sabiam o preço de tudo, calculavam como matemática, podiam recitar fluentemente aforismos morais sobre a virtude da economia. Cada uma tinha o
seu cofrezinho de metal, com a forma da Torre Eiffel, para depositarem as suas economias, e traziam a chave presa, com a medalha de um santo, a uma fita azul no
pescoço. Às vezes, repetiam, muito inocentemente, observações que tinham ouvido.
- Monsieur Stephen - ele insistia em que o chamassem pelo seu nome de batismo - mamã disse a papá que o senhor deve ser muito pobre.
- Bem, Victorine, devo confessar que ela estava certa.
- Mas papá disse que pelo menos o senhor não era um beberrão.
- bom... papá é meu amigo.
- Ah, sim, Monsieur Stephen. Porque ele também disse que, embora o senhor com certeza tenha feito alguma coisa errada na sua terra, sendo obrigado a fugir, não deve
ter sido um crime sério.
Stephen riu-se, um tanto secamente.
- Vamos... já é tempo de começarem a leitura.
Tão rápido tinha sido o progresso das suas ágeis inteligências, que ele acabara por trazer Alice no País das Maravilhas, e o interesse delas pela história tornava
possíveis até as palavras mais difíceis.
Embora, à maneira de um proprietário, ocasionalmente enfiasse a cabeça na porta, Monsieur Gruchot não vinha muito às lições. Era um homem de estatura média, com
modos inquietos, olhos cor de café, vivos, com os cantos injetados de amarelo, e um bigode preto, cheio, de pontas reviradas, que usava polainas e, dentro ou fora
de casa, exceto no sagrado recinto do "salon", um brilhante chapéu de palha reto. O seu lugar, naturalmente, era na loja, mas passava dois dias por semana fazendo
compras no mercado da vizinha cidade de Rennes, de onde, aliás, ele e sua mulher tinham vindo originalmente. Ligado a Madame Cruchot por uma ostensiva felicidade,
pelos dois lindos penhores da sua afeição, e acima de tudo pelo seu apaixonado desejo de ganho, Albert Cruchot tinha, contudo, em certos momentos, um certo ar, como
se as proporções físicas da sua esposa, seu riso agudo e voz penetrante fossem uma opressão maior do que um homem do seu porte pudesse razoavelmente aguentar. Ele
não encolhia exatamente, porém seus pés empolainados se moviam inquietos e a sua pupila café-au-lait bruxuleava num brilho de impaciência.
Na verdade, por trás do seu sorriso, dos seus modos amáveis e do brilho especioso do seu dente de ouro, Madame Cruchot era uma tirana. Todos os dias ela vinha verificar
"por si mesma" o andamento da lição, sentando-se rígida, numa postura de supervisão, os olhos sem compreensão mas alerta, indo de Stephen para as crianças, perturbando-as,
fazendo que cometessem erros.
- O senhor compreende, m'sieur... desejo que elas não só leiam mas falem coloquialmente... e recitem poesias... como fazemos em sociedade.
Atendendo às suas repetidas exigências, Stephen ensinou as crianças as duas primeiras estrofes de A uma Cotovia. Então, no dia indicado para mostrar o progresso
das suas pupilas, madame apareceu com três amigas íntimas, esposas de lojistas preeminentes, membros da haute bourgeoisie de Netiers, que se aboletaram expectantes
nas cadeiras douradas do salão.
Marie-Louise, escolhida para a primeira prova, foi colocada sozinha na falsa ilha de Aubusson.
- Salve, ó tu, espírito jovial... - começou ela; depois parou, olhou em torno e suprimiu um risinho.
- Comece de novo, Marie-Louise - disse Stephen bondosamente.
- Sabe, ó tu, espírito jovial... - Novamente a criança se interrompeu, piscou, torceu a cinta e olhou timidamente para a mãe.
- Continue - disse Madame Cruchot numa voz estranha. Marie-Louise lançou um olhar súplice para o seu professor. Um leve
suor começava surgir na testa de Stephen. Num tom de lisonja, que o desagradava, disse:
- Vamos, minha querida. Salve, ó tu, espírito jovial...
Um breve silêncio, durante o qual Madame Cruchot pareceu ter virado pedra: depois, sem aviso, levantou-se e deu um tapa na cara da menina. Imediatamente Marie-Louise
debulhou-se em pranto. No momento de consternação que se seguiu, olhares indignados foram lançados para Stephen, a criança soluçante, agora agarrada ao seio materno,
foi confortada com um bombom, e ouviu-se a voz de Mane gritando lá da loja:
- Venha depressa, madame... o fígado está chegando do matadouro. Na confusão que acompanhou a retirada de Madame Cruchot, Stephen ficou desamparado, prevendo com
sardónico fatalismo a possibilidade da sua demissão. Contudo, quando a mãe reapareceu, Marie-Louise correu através da sala, pegou a mão dele e despejou instantaneamente
a poesia, que recitou por inteiro, de um só fôlego. Victorine, para não ficar atrás, seguiu-a, por sua conta, com um perfeito desempenho.
Imediatamente o aspecto da reunião mudou, houve gritinhos de aclamação, sorrisos e acenos de cabeça foram dispensados a Stephen. Madame Cruchot resplandecia de perdoável
triunfo. Na verdade, depois de acompanhar as senhoras até a porta, voltou para Stephen com uma disposição de curiosa indulgência. Em vez da costumeira fina fatia
de presunto, deu-lhe no almoço um prato quente de carne ensopada, guarnecida de rabanetes e cebolas de Bordéus. Sentando-se diante da mesa da copa, observou:
- Afinal de contas, as coisas correram bem.
- Sim - disse Stephen sem levantar os olhos. - No começo, foi apenas o medo do palco.
Por um momento, ela continuou a vê-lo comer.
- Minhas amigas ficaram muito satisfeitas com o senhor - disse ela de repente. - Madame Oulard... a esposa do nosso primeiro pharmacien, uma senhora de certa posição
na cidade, embora naturalmente não possa pagar um tutor para as suas crianças, considera-o très sympathique... um perfeito cavalheiro.
- Sou muito grato por sua boa opinião.
- Acha que ela é uma mulher bonita?
- Deus do céu, não - disse Stephen com um ar ausente. - Eu mal a notei.
Madame Cruchot afagou as suas pastas de cabelo amarelo e, esticando o corpete, bateu nas suas firmes ancas com um gesto significativo.
- Deixe-me servir-lhe mais ensopado.
Nos dias que se seguiram, a qualidade e aliás a quantidade da refeição do meio-dia do tutor inglês melhoraram misteriosamente, e de várias outras maneiras a dona
da casa continuou a sua atitude diferente, e até se poderia dizer, o seu favor. Era uma mudança afortunada para Stephen, em quem a falta de alimentação adequada
e aquela tosse que não o deixava tinham causado considerável dano físico. Começou a sentir-se mais forte, novas correntes de vida movendo-se lentamente nas suas
veias, e um dia, de repente, sentiu, pela primeira vez desde que chegara a Netiers, um vivo desejo de pintar.
O impulso era irresistível, e ao deixar a mercearia apanhou um bloco de papel da Índia e alguns bastões de giz colorido. Quando a lição estava quase terminada, pôs
as duas crianças a ler no mesmo livro, juntas, na latada, e então, com o anseio de uma paixão contida, com linhas ligeiras, firmes e felizes, fez um pastel das suas
cabeças. A coisa foi feita rapidamente, tão veemente era a inspiração - em questão de menos de meia hora. Nunca tinha executado algo tão vívido, tão fresco na sua
composição impressionista. Até ele, que sempre subestimava o seu trabalho, estava comovido, sobressaltado, e excitado por aquela coisa adorável que tinha ganho vida,
misteriosamente, vinda do nada, ao seu toque.
Estava com a cabeça inclinada apontando para o fundo com um creiom amarelo, quando ouviu um som atrás dele: Madame Cruchot, por cima do seu ombro, estava olhando
para o pastel.
- Foi o senhor quem fez isso, m'sieur?
A sua expressão de pasmada incredulidade provocou-lhe um sorriso.
- Gosta?
Talvez ela não compreendesse plenamente a pintura. Mas via nela as suas duas crianças, belamente sugeridas em poucas linhas, umas poucas sombras de cor pura e brilhante.
Não entendia nada de arte. Contudo, o seu astuto instinto comercial tornou-a de imediato - ainda que subconscientemente, advertida de que ali estava algo raro e
delicado, algo da mais alta qualidade. Cobiçou-a
imediatamente. Mas além disso experimentou um singular afluxo dos seus sentimentos por aquele jovem inglês desconhecido, aquela emoção que começara quando, no dia
da recitação, o nevoeiro da sua indiferença se dissipara e ela o vira, através da tagarelice das suas amigas, como realmente era, um homem jovem muito atraente,
com a figura franzina e rosto sensível, os olhos negros e a delicada palidez. As menininhas ainda estavam soletrando no seu livro. Ela passou por trás do sofá e
sentou-se ao lado de Stephen.
- Não percebi - disse ela num cochicho confidencial - que m'sieur era um verdadeiro artista.
- Mas eu lhe disse quando a senhora me empregou.
A referência àquela primeira entrevista, quando ela o tratara tão rispidamente, provocou-lhe um rubor profundo até o seu queixo redondo e sólido e a coluna muscular
do pescoço.
- Ah - disse ela - não fiz muito caso do que me disse naquela ocasião. Eu não tinha o prazer de conhecer m'sieur como conheço agora... após estas semanas de agradável
intimidade, quando tem ensinado às minhas filhas, participado comigo da minha casa, e sempre com a polidez e reserva que só vem da verdadeira distinção. M'sieur
Stephen... - era a primeira vez que ela se dirigia a ele pelo nome, e o fazia com um frémito que endurecia a pele dos seus sólidos seios... - mesmo que não tivesse
me dito nada, eu saberia, por esta pintura, que o senhor tem grande talento.
Suas palavras de mau gosto eram embaraçosas, mas ele disse, gentilmente:
- Talvez queira ficar com ela...
A sugestão, com as suas implicações de compra, levou-a a recuar ligeiramente, mas só por um instante. Respondeu, séria:
- Quero sim, M'sieur Stephen, e vou falar a esse respeito com meu marido esta noite. Naturalmente, é possível que ele diga que o trabalho foi feito na hora da aula,
pelo que o senhor já estava pago, e nesse caso...
- Minha cara Madame Cruchot - interpôs apressadamente Stephen - a senhora absolutamente não me entendeu. Ofereço-lhe a pintura de presente.
Os olhos dela brilharam, não de cupidez agora, mas de uma emoção mais suave e confusa. Suprimiu um suspiro, olhou para ele com uma expressão terna, dizendo:
- Obrigada, M'sieur Stephen. Garanto-lhe que não se arrependerá.
A singularidade de estar sentada tão junto dele punha-lhe a cabeça a girar, uma sensação bem diferente da que lhe dava a proximidade de Cruchot. Mas as menininhas
começavam a exigir atenção, e ela ficou com medo de comprometer-se mais. Com um olhar de soslaio, rápido mas intenso, no qual tentava, em vão, mostrar o seu coração,
que batia rapidamente, levantou-se, disse-lhe au revoir, e voltou para a mercearia.


CAPÍTULO IV

APÓS SEMANAS DE aNIMADA APATIA, Stephen achou que podia pintar novamente. Era como despertar para uma nova vida na qual ele se descobria possuído de uma capacidade
maior, de uma visão mais penetrante do que antes. A cidadezinha, com seus insípidos habitantes, até aqui um deserto de esterilidade, transfigurou-se de repente numa
palpitante fonte de inspiração. Pintou o hotel de ville; a praça de armas do quartel; os telhados da cidade, vistos da sua janela, estranhamente pitorescos; uma
bela composição em cinza e negro das irmãs do convento voltando da missa na chuva, embaixo dos seus guarda-chuvas. As telas que tinha trazido de Napoleon Campo foram
uma a uma transformadas, pregadas no canto do quarto do sótão.
Havia cartas também, de Peyrat e Glyn, para alegrá-lo. Jerome propunha-se continuar em Puy de Dome no inverno e Glyn voltaria a Londres para uma breve estada no
outono. Ambos instavam para que fosse juntar-se a eles. Mas era claro que ele não iria. Estava pintando aqui, e feliz. Nesse estado de ressurreição, a lição diária
para as meninas Cruchot perdeu seu aspecto normal de necessidade. Na verdade, muitas vezes era penoso para Stephen pôr de lado os seus pincéis e correr à mercearia,
justamente quando a luz era a melhor. E embora, na linguagem do estabelecimento, ele continuasse tendo um valor, a sua mente não estava inteiramente no ensino, nem
após a aula era motivado por outro pensamento que não o ir-se dali.
Por causa da sua distração, continuou mais ou menos esquecido das mudanças, sempre crescentes, na atitude de Madame Cruchot para com ele. O vasto melhoramento na
cozinha era, sem dúvida, evidente, mas ele creditava-o à gratidão da proprietária pelo presente do quadro. A esta também atribuía os outros sinais de atenção que
lhe eram dispensados. Tornara-se agora costume de madame presidir o seu almoço e impor-lhe a sua hospitalidade. Na verdade, a sua dedicação foi além.
- M'sieur Stephen - ponderou ela um dia, com uma nota de solicitude. - estou preocupada com o seu conforto. O senhor pode não ser bem-visto em casa de Madame Clouet.
- Mas sou - contrariou ele. - Ela é uma alma muito decente.
- Mas é um quarto tão pobre.
- Conhece-o? - surpreendeu-se ele.
- Bem - disse ela enrubescendo. - Passei pela casa muitas vezes... no meu caminho para a igreja, naturalmente. Se ao menos alguém de gosto acrescentasse umas poucas
coisas... e as arranjasse, ficaria muito mais agradável para o senhor.
- Não, realmente - sorriu ele. - Agrada-me como está... despido e arejado.
- Mas não é bom para o senhor - insistiu ela. - Não posso deixar de notar que a sua tosse ainda o incomoda.
- Oh, não é nada... foi só esta manhã.
- Meu caro M'sieur Stephen. - Olhou-o com terna censura. - Não me contrarie em tudo. Se não posso melhorar o seu quarto, deixe-me ao menos restaurar a sua saúde.
No dia seguinte, para seu embaraço, um frasco de sirop pectoral do estabelecimento de Monsieur Oulard estava na mesa ao lado do seu prato, e madame, medindo uma
colherada, administrou-lhe a dose com ambas as mãos. Victorine e Marie-Louise divertiram-se vendo o seu professor ter que engolir remédio à força. E, no fim, Stephen
também riu.
Quando as crianças correram para brincar no jardim, Madame Cruchot, após um olhar demorado, soltou um suspiro:
- Naturalmente... uma coisa posso ver muito bem. O senhor encontrou na cidade alguma moça insignificante que o atrai.
- O quê! Em Netiers?
- Por que não? Não vai todos os dias ao Café des Ouvriers, e aquela Julie Grosette... eles por lá não têm grandes escrúpulos, posso lhe garantir...
Na verdade, ela conhecia todos os falatórios, mexericos e pequenas intrigas da cidadezinha. Mas o olhar atónito de Stephen era tamanho, que ela parou de falar. Forçou
um risinho.
- Não me olhe assim, meu amigo. Só estou pensando no seu bem-estar. E afinal de contas, embora eu seja uma boa mulher, também sou uma mulher do mundo. Então não
tem ninguém?
- Não - disse ele brevemente.
O olhar de expectativa, de ciúme, desapareceu dos seus olhos e foi substituído por um ar de coqueteria.
- Diga-me se gosta do meu vestido.
Colocou-se ligeiramente de quadril, exibindo o seu novo vestido, de um verde um tanto agressivo, com trancelins amarelos embaixo, que davam um efeito de juventude.
E o cabelo, recém-lavado, fora ondulado com um brilho mais metálico. Madame tinha apego aos vestidos, era uma cliente regular das galleries de Rennes, e ultimamente
exibia para Stephen as suas mais elaboradas toilettes, que, ai!, ele nunca parecia notar. Era essa indiferença que aumentava
os seus anseios, essa completa inconsciência de que ela era uma mulher, e talvez ele fosse assim com qualquer mulher, de uma inocência comparável à do jovem cura
que uma vez servira na paróquia e que ela admirava à distância, sonhando com ele todas as noites ao lado do merceeiro, que, com a carne aplacada pelo seu insensível
traseiro, roncava musicalmente. Mas isso não tinha sido nada, o mero sopro das asas de uma borboleta ao lado deste desejo que agora lhe corria nas veias, fazendo-a
arder de vontade de apertar Stephen nos braços e cobri-lo de beijos.
Ela estava cega para a comédia da sua situação: uma mulher de quase
40 anos, metida de corpo e alma nas atribulações de um negócio banal, de punhos fechados, uma tirana que passava a vida, de voz estrídula e metálica, pondo areia
no açúcar, água na sidra, extorquindo o último soldo das palmas renitentes de um camponês - ela, entre todas as mulheres, sendo amaciada, liquefeita por aquela devastadora
paixão por um rapazinho que talvez pudesse ter sido seu filho. Perdeu o interesse nas suas crianças, nas suas amigas, na busca da riqueza. O marido tornou-se-lhe
odioso. Os seus maneirismos burgueses, a maneira de comer, de soltar ventosidades baixinho após a sua cerveja, despertavam nela uma tempestade de ódio.
- Je te défends de passer le gaz en bas! - gritava ela, encolerizada.
E com tudo isso o seu próprio refinamento aumentava. Banhava-se com mais frequência, usava um perfume mais forte, chupava pastilhas para perfumar o hálito, mudava
a rroupa branca mais seguidamente. Se não pudesse tê-lo, sentia que deixaria de viver.
Subitamente veio uma resposta às suas preces mudas, uma ideia de brilho surpreendente. Como é que ela não tinha pensado nisso antes? Quando Stephen entrou nesse
dia, ela o interceptou no corredor.
- Meu amigo - disse ela alegremente. - Tenho uma boa notícia para o senhor, em suma, uma incumbência. Monsieur Cruchot insiste em que o senhor deve pintar-me.
Desconcertado, Stephen olhou para ela em silêncio.
- Sim - acenou ela. - Cruchot está cheio de entusiasmo. Não falou em outra coisa ontem à noite... De corpo inteiro... a óleo.
- Mas, madame. - Stephen franziu o cenho hesitante, procurando uma desculpa. - Eu... eu não pinto retratos... estou trabalhando em outro tema...
Ela sorriu para ele tranquilizadoramente.
- Não se preocupe, mon petit, farei com que seja pago. Na terça-feira, então, começamos. Está combinado.
Antes que ele pudesse terminar, ela bateu-lhe no braço, com um olhar arqueado, e saiu depressa da sala.
Terça-feira era meio feriado para os comerciantes. Como sempre, a loja
fechava ao meio-dia e tudo ficava tranquilo. Contudo, no momento em que entrou, Stephen sentiu, nos postigos fechados, uma calma sobrenatural. Madame Cruchot recebeu-o
na porta.
- Nada de lição hoje - anunciou ela efusivamente. - As meninas foram para o campo com Marie.
Ao admiti-lo na loja, explicou que a empregada fazia uma visita por mês aos seus pais em St. Vallé, e que, às vezes, como grande favor, ela lhe permitia que levasse
as crianças.
- E naturalmente - acrescentou sem cerimónia - meu marido está em Rennes, no mercado. Não seremos perturbados.
Novamente o silêncio incomum perturbou-o; nenhum rumor na adega, onde Joseph, o auxiliar, passava duas horas cuidando do estoque. Na casa, a não ser eles, não havia
ninguém. Mas foi a mesa, na sala de almoço, posta para dois, com toalha engomada e os melhores talheres, adornada com um vaso de rosas vermelhas, que o pôs em guarda.
- Se não se incomoda, almoçaremos juntos. Será muito mais conveniente.
Falando voluvelmente, naquela mesma maneira descuidada, trouxe da copa um poulet de Bresse assado, com cogumelos e salada, um paté de Estrasburgo, pêssegos em calda,
e uma garrafa de champanhe. Somente depois de abarrotar o seu prato, permitiu-se olhar para ele.
- Estamos bem aconchegados aqui. Não é agradável almoçarmos tête-à-tête? Sabe, deve comer antes de trabalhar. - Lançou-lhe um olhar pudico. Deixe-me servir-rlhe
o champanhe. É o melhor que vendemos. Cinco francos a garrafa.
Ele sentia-se confuso, desconcertado e inquieto. Mas no seu estado empobrecido, tinha para com a comida uma espécie de oportunismo. Comeu o que foi posto diante
dele, certo de que não estava em posição de recusar, mas foi se tornando cada vez mais consciente daqueles olhares lânguidos que pousavam nele. Do seu busto também,
que subia com esforço cada vez que ela respirava com esforço, fazendo os seios pularem e o queixo afundar no pescoço, parecendo aproximar-se mais dele a cada respiração.
Ao contrário do seu costume habitual, ela não estava comendo, servindo-se, com um ar de refinamento, apenas de uma asa de frango, e agora já partindo para o segundo
copo de vinho. Seus olhinhos redondos brilhavam como bolinhas de gude. Sentia um forte impulso para estender o braço por sobre a mesa e apertar-lhe a mão. Ele nunca
adivinharia que delicados favores ela estava preparada para lhe oferecer? Quanto menos ele entendia, mais a seduzia.
- Meu amigo - exclamou ela - não pode fazer uma ideia do que tem sido a minha vida nestes últimos 15 anos aqui em Netiers.
- Infelizmente não a conheço há tanto tempo.
- Não - refletiu ela, e numa voz sumida: - Contudo, devo ao senhor o fato de ter descoberto o vazio da minha existência.
- Isso seria um mísero retorno, madame... se fosse verdade.
- É verdade. - Como ele nada dissesse, ela moveu a cabeça enfaticamente. - Sim, ao senhor, meu amigo, que me abriu os olhos para novos horizontes, com os quais antes
eu nem sonhava. Monsieur Cruchot, embora sem excessiva ternura ou delicadeza, é um homem digno. E naturalmente eu sou uma mulher virtuosa. Mas há momentos em que
a solidão me invade o coração, quando tenho necessidade de um confidente. Ah, meu amigo - suspirou ela
- quando o coração pede, quem é que pode negar? É errado procurar a realização... uma vez que seja discreta?
Sentado em silêncio, constrangido, uma rude explicação para aquele comportamento atravessou-lhe de fato o espíriro. Mas despediu-a como absurda. Contudo, sentia-se
obrigado a começar o trabalho sem demora e executá-lo o mais depressa possível. Empurrou o prato.
- E agora, madame, se lhe for agradável, podemos começar. Pensei que seria melhor fazer um esboço preliminar. A senhora posará para mim? No salão?
Ela olhou para ele e tomou um fôlego convulsivo.
- Não - replicou numa voz indistinta. - Lá em cima a luz é melhor. Levantou-se da mesa e dirigiu-se para a porta. - Eu me apronto logo. Termine o seu vinho. E depois
suba.
Ele nunca tinha estado antes no andar de cima. Após esperar cinco minutos, encaminhou-se para a escada. Estava frouxamente iluminada, e os degraus, cobertos de tapete
fino, estalavam aos seus pés. O cheiro dos queijos, postos a amadurecer no armário do corredor encheu o ar. Ao chegar à porta, encontrou-a aberta. Imaginou que dava
acesso à sala de estar, mas antes que pudesse bater, ela o chamou:
- Entre, mon ami.
Ele entrou.
Madame Cruchot estava junto à cama dupla, pedindo a sua aprovação. Tinha tirado o vestido e usava um penhoar, que, numa pose vulgar, com uma das mãos no quadril,
ela mantinha meio aberto, revelando os calções listrados, com um babado de renda pesada, que caía abaixo dos seus joelhos grossos, e uma camisola cor-de-rosa umedecida
por uma mancha de perfume que acabara de pôr, enrugada pelo espartilho.
Um suor frio inundou Stephen. Suas pupilas ardiam com cada detalhe do ostentoso mas desmazelado dormitório, o tapete ornado e as cortinas com colgadura, a cómoda
manchada, o utensílio de louça embaixo da cama, e até a camisa de dormir de Cruchot enfiada às pressas embaixo de um travesseiro. Empalideceu. Interpretando mal
os seus olhos dilatados, ela agitou a cabeça,
fingindo tremer, e então, com uma terrível coqueteria, veio para ele. Era demais. Ele recuou com uma expressão de repulsa, furioso consigo por ter caído em tal situação,
que, embora participasse dos elementos da farsa era abjetamente humilhante. Sem uma palavra, voltou-se e precipitou-se para fora do quarto.
Nessa noite, sentado no seu sótão, ouviu fortes pancadas na porta da frente, seguidas de passos pesados na escada, e logo Monsieur Cruchot invadia o seu quarto.
O merceeiro, ainda vestindo o seu melhor terno, encontrava-se num estado de cólera fabricada.
- Como se atreve a fazer propostas amorosas a minha esposa... miserável insignificante... no instante em que dou as costas? Tenho a intenção de ir diretamente à
polícia. Sempre pensei que você era uma cobrinha inglesa. Mas morder a mão que o sustenta... uma mulher de coração puro... uma mãe! Que ultraje... uma atrocidade!
Jamais torne a mostrar o seu focinho no meu estabelecimento. Mas, além disso, deve haver uma compensação... por danos... no mínimo uma pintura.
Stephen sabia que Cruchot não gostava dele, no entanto era evidente que aquela exibição era instigada pela esposa, o marido era o mensageiro da mulher despeitada.
E com uma onda de amargura, como Cruchot continuasse a ameaçá-lo, Stephen arrancou uma página do bloco que estava na mesa dele e entregou-a ao merceeiro. Era um
esboço que ele acabara de fazer de memória de madame, obesa e afetada, de calções, no quarto de dormir.
Monsieur Cruchot, silenciado pelo gesto inesperado, olhou para o desenho fatal. Sua face tornou-se lívida. Ia rasgá-lo, mas, com a esperteza nativa, considerou-o
novamente, enrolou-o cuidadosamente e colocou-o dentro do chapéu. Depois, com um olhar furtivo, voltou-se e foi embora.


CAPÍTULO V

NA MANHÃ SEGUINTE, Stephen fez a sua mochila, amarrou as suas telas num canudo e, pondo a carga ao ombro, partiu de Netiers a pé. Seu objetivo era Fougères, situada
na route nacional, a 30 quilómetros de distância, e às cinco horas da tarde, após uma sufocante caminhada através dos campos, alcançou, a cidade, erguida em ambos
os lados de uma colina cortada pela estrada principal
para Paris. Lá, encontrou um restaurante barato que lhe pareceu um ponto de parada para caminhoneiros. O garçom, ao qual pediu ajuda, tinha certeza de que surgiria
uma oportunidade, e na verdade, justamente antes das nove, parou um camion da Compagnie Atlantique com um reboque e dele desceram dois homens de macacão e entraram
no bar. Poucos minutos depois, o garçom fez um sinal, houve apresentações, explicações transitórias e um geral aperto de mãos - tudo arranjado. As coisas de Stephen
foram colocadas embaixo do assento e eles partiram.
A noite chegou quente e serena. Rodaram através de aldeias adormecidas, cidades desertas onde brilhavam apenas umas poucas luzes, passando Vire, Argentan, Dreux.
O ar quente assobiava ao lado deles, os paralelepípedos estrondejando embaixo, a lua mergulhou por trás das alamedas nevoentas de álamos. Finalmente, quando rompeu
o amanhecer pálido e escorrido, atravessaram o Sena em Neully, entraram em Paris pela Pote Neully e pararam no mercado Les Halles. Lá, Stephen agradeceu aos seus
dois amigos e deixou-os.
A cidade, ainda não acordada de todo, tinha um ar cinzento e triste, mas quando atravessou a Ponte Nova, Stephen respirou fundamente o ar úmido. Estava de volta
a Paris. Depois de Netiers sentia-se mais forte, acima de tudo cheio de uma firme determinação de demonstrar o seu talento ao mundo.
Quando o mont-de-piété da Rue Madrigal abriu as portas, ele estava à espera do lado de fora. Entrando, empenhou o relógio - um presente do pai no dia do seu vigésimo
primeiro aniversário - pelo qual recebeu 180 francos. A seguir, após uma demorada procura, achou uma acomodação numa rua lateral próxima da Place St. Séverin, um
bairro frequentado por artistas como último recurso. Era um quarteirão pobre e um quarto ainda mais pobre, escassamente mobiliado e terrivelmente sujo - somente
10 francos por semana. Imediatamente se pôs ao trabalho e, pedindo emprestados uma vassoura e um balde, limpou o cómodo. Até lavou as paredes, a fim de que parecessem
recomendáveis, embora ainda permanecessem algumas manchas de insetos.
Passava das duas; sem pensar em comida, escolheu quatro das suas pinturas e dirigiu-se rapidamente pelos quais à loja de Napoleon Campo. O vendedor de tintas estava
sentado no seu caixote costumeiro atrás do balcão, balançando as pernas curtas, usando uma jaqueta azul de piloto e boné amarelo de tricô, com as orelhas gretadas
de fora, o rosto púrpura com a barba por fazer, mãos cruzadas sobre a barriga. Saudou Stephen amavelmente, como se o tivesse visto na véspera.
- Bem, Monsieur l'Abbé, que posso fazer pelo senhor?
- Antes de tudo, deixe-me liquidar o que lhe devo.
- Obrigado, o senhor é um homem honesto.
Recebeu os 50 francos que Stephen lhe deu e enfiou-os numa velha bolsa de couro.
- E agora, Monsieur Campo, quero uma tela bem larga, 2,00 x 0,80cm.
- Ora! Tem um trabalho tão grande assim em vista? Naturalmente pode pagar?
- Em dinheiro não, monsieur. Com estes.
- Endoideceu, Abbé? Deus do céu, meu porão está abarrotado de pinturas, refugo impróprio até para a lata de lixo, que recebi por ter um coração bondoso.
- Nem tudo é lixo, Campo. Você recebeu pinturas de Pissarro, e Boudin, e Degas.
- Você é um Degas, meu pequeno Abbé?
- Um dia, talvez.
- Meu Deus, é sempre o mesmo conto de fadas. Então a sua tela especialmente grande é para pendurar no Salon, com multidões diante dela. Terá fama e fortuna da noite
para o dia. Bah!
- Então aceite 20 francos por conta e estas pinturas como penhor do restante.
Os insignificantes olhinhos azuis de Napoleon procuraram o rosto pálido e sério diante dele. Tantos, tantos rostos tinham passado por sua loja nos últimos 30 anos,
que afogavam a sua memória. Era um homem fleumático, que não se comovia facilmente, e a idade o tinha tornado ainda mais impassível. Mas ocasionalmente, embora isso
fosse raro, havia nos modos e no aspecto de algum aspirante necessitado, como agora nas curiosas feições daquele inglesinho, um tipo de intensidade que o impressionava.
Hesitou, depois desceu do seu assento e começou a remexer nas prateleiras. Quando a tela que Stephen queria - um fino linho de grão fino - estava em cima do balcão,
houve uma pausa.
- Disse 20 francos?
- Sim, Monsieur Campo. Stephen contou as moedas.
Napoleon Campo tomou uma pitada de rapé, limpando meditativamente o nariz carnudo com o punho da sua jaqueta de piloto.
- E agora, naturalmente, vai passar fome.
Houve outra pausa. Subitamente Campo empurrou as moedas que estavam em cima do balcão.
- Devolva estas à sua caixa de coleta, Abbé. E me dê os seus miseráveis borrões.
Surpreso, Stephen entregou-lhe as suas pinturas. Sem ao menos uma olhada por alto, Napoleon colocou-as embaixo do balcão.
- Mas. . . não quer vê-las?... São... as melhores que eu fiz.
- Não julgo pinturas e sim gente - replicou Campo rispidamente. bom dia, monsieur. E boa sorte.
Stephen voltou ao seu quarto com a tela às três horas, e sem demora saiu imediatamente para a loja de bicicleta da Rue de Bièvre. Até agora as coisas tinham ido
bem, mas ao se aproximar do estabelecimento de Berthelot sentiu-se nervoso e inseguro de si mesmo, embora cheio de uma viva expectativa que fazia o seu coração bater
depressa. Muitas vezes, durante os últimos meses, tinha pensado em Emmy; a recordação daqueles momentos na escuridão do corredor estreito lhe vinha de tempos em
tempos sem aviso, ainda que com uma esquisita inconsistência.
Encontrou-a no pátio atrás da oficina, curvada sobre uma bicicleta niquelada, reforçada e pintada de vermelho e ouro. Vê-la outra vez deu-lhe uma sensação de calor
por dentro. Ela ergueu os olhos quando ele apareceu, aceitou a sua saudação sem surpresa e continuou a acertar os rolamentos. O pulso dele ainda estava absurdamente
desigual; contudo, desde as suas excursões juntos, sabia muito bem que ela abafava qualquer mostra de afeição.
- É uma linda máquina - disse ele após alguns momentos.
- É minha. Vou usá-la em breve. - Endireitou-se, atirou uma mecha de cabelo para trás. - Então está na cidade de novo?
- Desde esta manhã.
- Quer alugar uma?
Ele abanou a cabeça.
- Tenho coisas mais importantes para fazer.
Houve uma pausa. Ela sempre fora um tanto curiosa a respeito dele, e agora, como ele pretendia, o seu interesse tinha aumentado.
- Está metido em quê?
Ele respirou rápido.
- Já ouviu falar do Prix de Luxembourg, Emmy? É uma competição aberta a todos os que nunca estiveram no Salon. Pretendo arriscar. - Depois, como se ela se voltasse
indiferente, acrescentou: - Foi por isso que voltei. Quero que você pose para mim.
- Quer dizer... - interrompeu-se, olhando para ele - ... fazer o meu retrato?
- Isso mesmo. - Procurou falar num tom casual. - Você nunca foi pintada, foi?
- Não, apesar de que já devia ter sido há muito tempo, considerando quem sou.
- Então, esta é a sua oportunidade. Pode ser muito bom para você. Os melhores trabalhos serão exibidos no Orangerie. Você certamente seria reconhecida.
Ele podia ver que a sua vaidade estava lisonjeada, mas ela hesitava, olhando-o de cima a baixo como que calculando a sua capacidade.
- Você pode mesmo pintar? Quero dizer, poderia fazer um bom retrato?
- Pode contar comigo. Porei tudo o que tenho nessa pintura.
- Sim, suponho que poria, para o seu próprio bem. - Uma ideia lhe ocorreu. - Mas eu vou excursionar no mês que vem.
- Até lá há tempo suficiente. Se você vier todos os dias durante três semanas, posso pintar os detalhes depois que você for.
Novamente podia ver que ela debatia as possibilidades.
- Bem - disse ela, por fim, na sua maneira desgraciosa. - Não me importo. Acho que não vou perder nada.
Ele reprimiu uma exclamação de satisfação e alívio - não somente tinha querido pintá-la desde o começo, mas ela seria perfeita para o assunto que naquelas últimas
e poucas horas havia se apoderado dele. Rapidamente, deu-lhe o seu novo endereço, pediu-lhe que estivesse lá às 10 da manhã seguinte, usando o seu suéter preto e
a saia pregueada, e despediu-se antes que ela pudesse mudar de ideia.
Vagabundeando pela avenida, sentia-se excitado pelo que tinha realizado nesse dia. Só então se lembrou que não comia desde que dividira um sanduíche com o motorista
do camion na noite passada. A fome o atacou como um tapa. Mergulhou numa épicerie, onde comprou um pão comprido e uma tranche de salsicha. Não conseguia ficar quieto.
Andando pela rua escurecida diante do Jardin des Plantes, mordia alternadamente o pão estalante e o suculento patê embutido no seu branco envoltório de toucinho.
Como era gostoso. Sentia-se feliz, livre, e estranhamente exaltado.


CAPÍTULO VI

No DIA SEGUINTE, ele estava pronto e esperando impacientemente, a tela preparada, quando ela chegou, com uns 20 minutos de atraso.
- Aí está você! - exclamou ele. - Pensei que não viesse mais.
Ela não respondeu, mas da porta olhou em torno para o quartinho miserável com as pranchas nuas, uma cadeira de bambu quebrada e uma cama sobre roletes, afundada
no meio.
- Você está quebrado, não?
- Mais ou menos.
- Você tem topete. Trazer-me para um trou destes. Nem ao menos tem onde pendurar as minhas coisas.
Ele corou, mas forçou um sorriso.
- Admito que não seja o Elysée, mas nío é mau lugar para pintar. Dê-me uma chance e eu prometo que não se arrependerá.
Ela baixou o lábio numa espécie de careta, mas, com um dar de ombros, entrou e deixou que ele lhe tirasse o casaco e a postasse diante da janela.
A luz era boa, e, cheio de um súbito hausto de força, ele começou a tracejar a composição que agora o obcecava. Como as regras do concurso exigiam uma pintura "clássica",
seu tema seria alegórico, embora moderno na composição, e o assunto era: Circe e Seus Amantes. Poderia a sua absurda aventura com Madame Cruchot, trabalhando no
fundo do seu inconsciente, inflamar uma centelha que incendiasse essa estranha visão? Símbolos e imagens enchiam a tela da sua vista, cativando os sentidos. Na sua
imaginação, o prazer lutava com a virtude, e a luxúria se revelava na forma dos seios à espreita. Tudo ainda era uma miragem; no entanto, nos íntimos e misteriosos
recessos da sua alma, sentia a força para fazer aquele sonho existir.
Embora pudesse ter continuado o dia inteiro, ao meio-dia, advertido pela expressão da moça, Stephen lhe disse que talvez fosse o bastante para aquele dia. Imediatamente,
ela atravessou o quarto e examinou a tela, onde, usando carvão, ele já tinha feito seu esboço, de corpo inteiro e bem definido. As sobrancelhas ergueram-se e o olhar
amuado deixou o seu rosto quando ela se viu ocupando o centro da tela, de pernas separadas, mãos plantadas nos quadris, uma atitude que era toda sua. Não disse nada
enquanto permitia que ele a ajudasse a vestir o casaco, mas na porta se voltou e acenou a cabeça.
- À mesma hora, amanhã.
Durante a tarde, enquanto a luz durou, ele trabalhou no plano de fundo. E no dia seguinte, e nos que se seguiram, continuou, nem sempre de ânimo elevado, mas com
um propósito que o transportara através de momentânea melancolia para novos transes. Ao mesmo tempo, à medida que prosseguiam as sessões e ele entrava em contato
mais íntimo com Emmy, não mais podia ficar cego ao aprofundamento dos seus sentimentos por ela. A cada dia, terminada a sessão, dava consigo a sentir falta dela,
mais e mais. Na ausência de Peyrat e Glyn, estava sozinho. Mas isso explicaria o seu constante desejo pela companhia dela? Zangado consigo mesmo, lembrou o quanto
não gostara dela no seu primeiro encontro, e como ela às vezes o irritava com a sua grosseria e falta de educação. Quando ela estava de mau humor e ele tentava conversar
com ela, as suas respostas eram monossilábicas, e quando lhe dizia que descansasse, ela continuava a ignorá-lo, deitava-se de barriga na cama, acendia um Caporal
e mergulhava numa revista esportiva amarrotada. Percebeu que ela não tinha atenção para com ele e que somente a vaidade a trazia regularmente ao seu quarto. Uma
dúzia de vezes por dia ela ia observar a marcha do trabalho, e embora nunca o elogiasse, congratulava-se consigo mesma.
- Estou saindo bem, não é?
A lenda da Odisseia, da filha de Helios e da ninfa do oceano Perse, que ele explicou para ela, mexeu-lhe com a fantasia. A ideia de que tivesse o poder de transformar
seres humanos em formas animais provocou-lhe um sorriso.
- Bem feito, pra eles aprenderem.
Essa vulgaridade estremeceu-o. E contudo não era inibidora. Que haveria naquela moça para provocar o seu premente interesse? Procurou descobrir. Que sabia realmente
dela? Muito pouco, exceto que era comum, dura e insignificante - uma pequena nulidade, desinteligente, sem imaginação, completamente empedernida. Não sabia nada
de arte, não tinha interesse pelo seu trabalho, e se entediava quando ele falava. Mas a sua figura era esquisita - não estava reproduzindo cada linha sutil dos seus
membros fortes e esbeltos, o ventre chato e os seios firmes? - e acima de tudo ela era pequena. Embora pudesse admirar na tela a carne voluptuosa das mulheres de
Rubens, o seu gosto sempre fora por uma perfeição menos arredondada. E ela possuía essa nitidez física, uma figura que ele sempre comparava à Maja de Goya. Contudo,
ninguém poderia chamá-la de bela. Tinha um encanto travesso, mas os seus lábios eram finos, as narinas um tanto puxadas, e a sua expressão, quando não alerta e vigilante,
era quase carrancuda. Curioso é que, todas as suas imperfeições eram aparentes para ele. Contudo, não afetavam em nada aquela estranha emoção que, a despeito de
todos os seus esforços para suprimi-la, crescia nele.
Desejava estar ao lado dela e sentia-se inquieto e nervoso quando ela se retirava. Desordenadamente afetado pelos seus humores variáveis, respondia a eles de uma
maneira que o fazia desprezar a si mesmo. Em raras ocasiões, quando ela se mostrava agradável, o seu coração se animava. Às vezes, nessa disposição tagarela, ela
fazia perguntas sobre o único assunto que, entre todos os outros ligados a ele, parecia interessá-la.
- É verdade que os seus pais têm uma grande proprieté em Sussex, com muitos acres de boa terra?
- Não muitos - sorriu ele. - Se Glyn lhe disse isso, exagerou.
- E você ia ser um padrezinho... até que eles o tiraram do seminário.
- Você sabe que eu saí por minha vontade.
- Para viver num quarto como este? - perguntou, incrédula.
Encolheu os ombros, mas sem desprezo - lisonja que o gratificou. Essa afabilidade, embora não causasse alívio, era um agradável contraste com a mortificante indiferença
com que ela geralmente recebia as suas tentativas para agradá-la. E enquanto ela posava, indolente como um gato, ele começou a contar-lhe, sem parar de pintar, histórias
sobre Stillwater que achava pudesse entretê-la e diverti-la. Quando finalmente esgotou o repertório, ela refletiu por alguns momentos, e então declarou:
- É certo que vivi com, isto é - corrigiu-se - entre artistas toda a minha vida. Eu própria sou uma artista. Compreendo que se abandone alguma coisa pela arte, quando
isso não é nada. Mas você está numa categoria diferente. E abandonar a sua bonne proprieté, que você poderia herdar... - fez pausa e encolheu os ombros - ... foi
imbécile.
- Não completamente - sorriu ele - ou eu não a teria encontrado. Veio-lhe uma súbita onda de anseio. Deteve-se, não ousando olhar para
ela.
- Você não percebe, Emmy?... que estou gostando terrivelmente de você?
Ela riu-se brevemente e levantou um dedo avisador,
- Nada disso, Abbé. Isso não faz parte do nosso acordo.
Derrotado, retomou o trabalho. E por toda a noite sentiu a dor da rejeição. Se ao menos pudesse sair com ela à noite - ela, que apreciava diversões vulgares - achava
que podia conquistar sua simpatia. Mas sua falta de recursos o impedia. Vivia com pouco mais de meio franco por dia, subsistindo com um pão ou uma maçã até às seis
horas, quando tomava sua solitária refeição no café mais barato das redondezas.
Certa tarde, quando suas sessões de pose já estavam terminando, ela chegou, mais atrasada do que de costume. Aparentava ótimo humor. Usava um fichu amarelo novo
com uma curta jaqueta vermelha ataviada de rendas, e seu cabelo estava recém-lavado.
- Você está muito bem - cumprimentou Stephen. - Eu quase desisti de esperá-la.
- Tenho um encontro com Peroz. O escritório dele fica bem longe... no Boulevard Jules Ferry. Mas consegui o contrato que eu queria.
- Ótimo - sorriu ele, sem mencionar que a sua partida o deprimia. Quando parte?
- A 14 de outubro. Houve um adiamento de duas semanas.
- vou sentir a sua falta, Emmy. - E inclinando-se para ela: - Mais do que você pensa.
Ela riu de novo e ele notou que os seus dentes eram agudos e regulares, com espaços definidos entre eles. Então, com vivacidade, acentuando as suas observações,
ela começou a descrever como conseguira o melhor de Peroz ao estabelecerem os termos do seu contrato.
- Dizem que ele tem bom coração - concluiu ela. - Acho que ele é apenas um gobeur... um mole.
Sabendo que a sua conversa geralmente a aborrecia, Stephen encorajou-a a continuar falando sobre si mesma. Então, como não houvesse mais luz, guardou os seus pincéis.
- Deixe-me andar com você - disse ele. - Está uma bela noite.
- Muito bem, se quiser - concordou ela, dando de ombros.
Quando ela apanhou as suas coisas, eles desceram a escada e dali a pouco chegaram ao Boulevard Gavranche, onde uma escuridão quente lançava um halo em torno das
lâmpadas da rua, envolvendo a cidade muda em misteriosa beleza. Casais passavam lentamente, de braço dado, nas calçadas tranquilas a noite parecia feita para os
namorados. Numa rua lateral perto do rio, passaram por um café, onde com a música de um acordeom, havia gente dançando sob uma pérgula, com lanternas chinesas penduradas
nos ramos dos plátanos. A cena estava cheia de luz e alegria, e Stephen podia sentir os olhares interrogativos de Emmy lançados para ele.
- Gostaria de dançar?
Tomado por um demorado embaraço, consciente da sua inépcia, ele abanou a cabeça.
- Eu não seria muito bom nisso.
Era verdade. Ela encolheu os ombros.
- Você não é bom em muita coisa, não é? - disse ela.
Chegaram às sombras dos quais. O Sena fluía em silêncio, uma corrente lisa e verde, sob o vão baixo da Pont de l'Alma. Como se estivesse entediada pelo seu silêncio,
ela caminhava um pouco adiante, começando a trautear a canção tocada pelo acordeom no cabaré.
- Espere, Emmy. - Ele se chegou para o abrigo de um arco. Ela o Olhou de lado, por sobre o ombro.
- Que é que tem na cabeça, Abbé?
- Você não vê... o quanto significa para mim?
Pôs um braço em torno dela, atraindo-a para si. Durante uns poucos momentos, insensível como o poste de iluminação, ela deixou que ele a abraçasse, e depois, com
um movimento brusco de impaciência, empurrou-o.
- Você não entende nada disso.
Havia desprezo na sua voz.
Ferido e humilhado, fraco de emoção frustrada, sentindo a verdade da observação, ele a seguiu para a rua. Caminharam para a Rue de Bièvre. Diante da loja de bicicletas,
ela olhou para ele como se nada tivesse acontecido.
- Posso ir amanhã de manhã?
- Não - disse ele amargamente. - Não será necessário. Voltou-se, furioso com ela e enojado consigo mesmo.
- Não se esqueça - gritou ela. - Quero ver o quadro quando estiver terminado.
Ele a odiava por sua dureza, sua falta de generosidade comum - ela sequer tivera pena dele. Disse a si mesmo que nunca mais tornaria a vê-la.
Na manhã seguinte, quando acordou de uma noite inquieta, lançou-se apaixonadamente na contemplação do quadro. Até agora, só a figura central
tinha tomado forma, havia ainda o tema a ser desenvolvido. O tempo se tornara úmido e sombrio, a luz era pouca, o seu estúdio improvisado varrido por correntes de
ar, mas nenhuma dificuldade parecia tão grande que ele não pudesse vencer. Na sua busca de realismo, ia todas as tardes ao Jardim Zoológico; depois, voltando para
o seu quarto, transferia as abjetas criaturas para a tela, com algo da sua própria tristeza e sujeição. No fim dessa semana, o seu dinheiro acabou - procurando uma
moeda para comprar o seu petit pain, não pôde achar um único soldo. Sem se abater, continuou a pintar o dia todo com uma espécie de fúria.
Na manhã seguinte, sentiu-se fraco e tonto, mas ainda assim forçou-se a prosseguir no trabalho. Quando chegou a tarde, porém, um raio de razão se infiltrou pelas
névoas que agora obscureciam o seu cérebro. Percebeu que se não comesse para viver, simplesmente isso, nunca terminaria a Circe - a menos que pudesse achar algum
meio de sustento. Sentado na beira da cama, refletiu por um instante e depois foi ao canto onde estavam as suas pinturas de Netiers, selecionando três que eram especialmente
brilhantes e coloridas. Eram boas, satisfaziam-no, davam-lhe confiança. Embrulhou-as em papel pardo e, com o rolo debaixo do braço, saiu para atravessar o Sena ao
longo dos Champs Elysées para o Faubourg Saint Honoré. Era um ato de coragem. Contudo, o tempo para meias medidas tinha passado. Estava resolvido a oferecer o seu
trabalho ao melhor negociante de arte da França.
Na esquina da Avenue Marigny, um logradouro principalmente ocupado por pequenos edifícios de apartamentos e suntuosas lojas de haute couture, deteve-se diante de
uma rica mas comedida fachada de pilares paládicos e pedra branca talhada. Depois, retesando-se decididamente, passou pela porta veneziana dourada e entrou num vestíbulo
calçado de mármore, com painéis de jacarandá e colgaduras de veludo vermelho, onde se achou diante de um jovem de paletó com abas abertas, sentado atrás de uma escrivaninha
Luís XVI laqueada e com ouropel. Através do cortinado lá atrás, via-se um amplo salão, igualmente esplêndido, embelezado por grandes buques de lírios em vasos de
alabastro e cheio de quadros belamente iluminados, diante dos quais gente elegante se movia, e misturava, consultando os seus catálogos, conversando em voz baixa.
- O senhor tem convite para o vernissage, monsieur?
Stephen devolveu o olhar do jovem maneiroso, que, por baixo do seu sorriso profissional, examinava-o com extrema cautela.
- Não. Eu ignorava que havia uma exibição. Vim para ver Monsieur Tessier.
- Qual o assunto, monsieur?lis
- Pessoal.
O sorriso, de inefável polidez, não vacilou.
- Receio que Monsieur Tessier não se encontre na casa. Contudo, se quiser tomar uma cadeira, irei verificar.
Quando Stephen sentou-se, o jovem levantou-se graciosamente e deslizou para dentro. Mas quase ao mesmo tempo uma porta lateral se abriu e três pessoas entraram na
sobreloja - uma mulher, muito elegante, de preto, carregando uma miniatura de poodle, enfitado e fantasticamente frisado; seu acompanhante, um homem idoso, entediado
e distinto, impecavelmente vestido, dos sapatos marrons ao chapéu; e Tessier, que Stephen reconheceu imediatamente, uma figura cortês, de rosto moreno, barbeado,
com o lábio inferior saliente e olhos de bistre. O marchand estava falando, sensatamente com reservada animação e movimentos comedidos das mãos.
- Asseguro-lhe que é uma perfeita gema. A mais fina que me chegou em vários anos.
- É linda - disse a dama.
- Mas o preço! - interpelou o seu companheiro um tanto soturno.
- Já lhe disse, cavalheiro. Por 100 mil, é inquestionavelmente um preço de ocasião. Mas se não o deseja para o senhor, tem somente que me dizer. Virtualmente, tenho
compromisso com outro cliente.
Houve uma pausa, um toque na manga do acompanhante, um murmúrio de conversação íntima, e então:
- Pode considerar a pintura vendida.
Uma inclinação de cabeça, não obsequiosa, mas gravemente aprovando semelhante bom gosto, foi a única resposta de Tessier. Contudo, não os levou até a porta, e quando
se voltou, parecendo meditativo, de cabeça baixa, mãos cruzadas atrás das costas, Stephen foi ao seu encontro.
- Monsieur Tessier, peço-lhe que me desculpe pela intrusão. Poderá dar-me cinco minutos apenas do seu tempo?
O negociante ergueu os olhos vivamente, perturbado nos seus pensamentos, certamente relacionados com cálculos e seu olho empapuçado, com a imediata percepção de
algo encontrado com desagrado em ocasiões anteriores, apreciou a figura maltrapilha que tinha diante de si, dos sapatos enlameados e encharcados ao embrulho malfeito
que trazia debaixo do braço.
- Não - murmurou ele. - Agora não. Como vê, estou inteiramente ocupado.
- Mas monsieur - insistiu Stephen, abalado mas com determinação. - Só lhe peço que veja o meu trabalho. Será demais um artista solicitar-lhe isso?
- Então o senhor é um artista? - O lábio de Tessier reentrou. - Felicito-o. Sabe que cada semana sou assediado, atacado e importunado por pessoas que se intitulam
génios e imaginam que eu desmaiarei num êxtase quando contemplar os seus execráveis esforços? Mas nunca tinha encontrado um com o atrevimento de me procurar aqui,
no auge da minha exibição de outono.
- Lamento perturbá-lo... mas o assunto é um tanto urgente.
- Urgente para mim... ou para o senhor?
- Para ambos. - Stephen engoliu convulsivamente. Na sua agitação, falou sem controle. - O senhor acaba de vender um Millet por uma soma considerável. Perdoe-me,
não pude deixar de ouvir. Dê-me uma oportunidade e eu lhe mostrarei um trabalho tão fino como qualquer coisa vinda de Barbizon.
Tessier relanceou os olhos para Stephen, notou a sua aparência perturbada, a dilatação dos seus olhos.
- Por favor - disse ele de maneira fatigada, abandonando o argumento.
- Mais uma vez, rogo-lhe.
Afastou-se para um lado, entrou no salão e um instante depois perdia-se de vista. Stephen, que tinha começado, com pressa nervosa, a desfazer o embrulho, ficou por
um momento muito pálido; depois, com uma expressão estranha, andou para a porta. Ao chegar à rua, o barbante, mal amarrado, desatou-se e as três telas caíram na
calçada molhada e escorregaram para a sarjeta.
Apanhou-as com cuidado, com uma ternura quase ridícula. O simples ato de abaixar-se fez-lhe a cabeça dar voltas. Mas teimosamente, com uma intensidade quase fanática,
disse a si mesmo que não seria derrotado. Havia outros negociantes de quadros em Paris, menos arrogantes, certamente mais acessíveis do que esse intolerável Tessier.
Vagarosamente, caminhou, através do tráfego, para a Rue de la Boétie.
Duas horas depois, molhado e ainda atrapalhado pelos três quadros, estava de volta à Place St. Séverin, tão exausto que mal pôde subir para o seu quarto. Na verdade,
na metade da escada sentou-se num degrau para recobrar o fôlego. Ao fazê-lo, a porta junto ao patamar abriu-se e apareceu, vestido para sair, de tamancos, camisa
sem colarinho e um sobretudo surrado, um homem de cerca de 30 anos, alto e moreno, com uma pele descorada e olhos fundos de semita. Ao descer, quase tropeçou em
Stephen, recuou e estudou-o com um sorriso amargo, peculiar.
- Não teve sorte? - exclamou.
- Não.
- Tentou com quem?
- A maioria deles... de Tessier para baixo.
- Salamon?
- Não me lembro.
- Ele não é mau. Mas nenhum deles está comprando agora.
- Tive uma oferta. Duzentos francos para falsificar um Breughel.
- E você aceitou?
- Não.
- Ah, a vida tem seus pequenos vexames. - E depois de uma pausa: - Como se chama?
- Stephen Desmonde.
- Chamo-me Amédée Modigliani. Venha tomar um drinque.
Dirigiu o caminho de volta ao patamar e abriu a porta do seu quarto. O seu apartamento era quase idêntico ao de Stephen, mas talvez mais sórdido. Num canto, ao lado
da cama por fazer, havia uma pilha suja de garrafas vazias, e no centro um cavalete com uma pintura quase terminada, um nu reclinado.
- Gosta? - Servindo dois Pernods de uma garrafa que tirara do armário, Modigliani inclinou a cabeça para a tela.
- Sim - disse Stephen após um momento.
Havia na pintura um estilo pessoal, marcado por seus esforços numa linha arabesca, algo de monumental e puro.
- bom - disse Modigliani, passando-lhe o copo - mas esse quadro porá o comissário de polícia atrás de mim. Ele já proclamou que os meus nus são escandalosos.
O absinto, fortalecendo Stephen, clareando o seu cérebro, evocou uma nota de recordação.
- Você não exibiu nos Indépendants? Le Joueur de Violoncello?
O outro fez um gesto afirmativo.
- Não era o meu melhor trabalho. Mas foi vendido. Agora eles não comprarão nada. Na verdade, se não fosse o meu talento para plongeur no Hotel Monarque, eu teria
sido gentil com os meus críticos e deixado de existir.
- Um plongeur? - Stephen não compreendia.
- Sim, gostaria de experimentar o trabalho? vou para lá agora. É um emprego fascinante. Um leve sorriso, saturnino, apareceu nas suas feições impassíveis, cor de
oliva. - E eles sempre apreciam um empregado novo.
- Tentarei qualquer coisa.
Saíram juntos e começaram a andar em direção à Etoile. O Grand Monarque, um dos famosos hotéis parisienses, era uma imensa construção palacial no estilo Terceiro
Império, ocupando um quarteirão inteiro, logo depois dos Grands Boulevards. Imponente e digno, um tanto fora de moda, com degraus de mármore, tapetes vermelhos,
as vastas salas públicas com lustres cintilantes, um bando de atendentes esvoaçando atrás das portas de metal polido, como sentinelas, para receber os embaixadores,
dignitários estrangeiros e príncipes nativos, que estavam entre os seus visitantes, dava uma sensação de opulenta magnificência. Modigliani, contudo, quando chegaram
ao pórtico central, não tentou uma entrada, mas guiou o caminho em torno de um canto escuro e por uma passagem que dava para as dependências dos fundos, flanqueada
por uma bateria de latas de lixo amassadas; um lance de escadas admitiu-os no subsolo.
Era menos um subsolo do que uma imensa adega subterrânea, com o teto úmido e pingando, atravessada por uma confusão de tubos de ferro, de paredes
escamadas, pegajosas de bolor, o chão de pedra-britada com água de despejos até os tornozelos, tudo fracamente iluminado por umas poucas lâmpadas elétricas nuas,
cheio de vapor, barulho e uma confusão babélica de vozes. Ali, numa comprida calha, uma fila de homens, arrebanhados, parecia, na ralé de Paris, estava febrilmente
lavando pratos que uma turma de ajudantes de cozinha continuava trazendo apressadamente, embraçadas, das cozinhas contíguas. Agora, pensou Stephen, após acomodar
os olhos àquela visão de pesadelo, sei o que significa um plongeur.
Entrementes, Amédée tinha se aproximado do contremaître, que, com um olhar indiferente para Stephen, entregou-lhe um disco de metal com um número estampado e marcou
o tempo a giz, diante desse mesmo número, numa ardósia que pendia do seu cubículo, ao lado de um aviso que advertia que se alguém fosse apanhado tirando porções
de alimento seria sumariamente processado.
E agora, imitando seu companheiro, Stephen tirou a sua jaqueta e, tomando lugar na fila, começou a lavar os pratos do jantar empilhados na pia. Não era trabalho
fácil, curvado sobre a calha baixa, e não havia interrupção. O odor da água espumosa nunca mudava, o mau cheiro da graxa e restos de comida era nauseante. Periodicamente,
a pasta de restos entupia o ralo e tinha que ser retirada com a mão. Era estranho, durante esse processo, ouvir um leve sopro de música polida vindo da orquestra
no pátio de palmeiras lá em cima.
Cerca das 11 horas, o ritmo diminuiu, e antes da meia-noite houve uma parada definitiva, que indicava que as damas e cavalheiros lá de cima tinham Sido alimentados.
Amédée, que durante todo o tempo não pronunciara uma única palavra, pôs o seu casaco, acendeu um cigarro e, com um movimento da cabeça, chamou Stephen para a porta,
onde o contramestre, após uma olhadela na pedra do tempo, pagou a cada um 2 francos e 50.
Lá fora, ainda em silêncio, ele caminhou de ombros caídos pelas ruas escuras e, cinco minutos depois, guiou o caminho para um bistro que ficava aberto a noite toda.
Ali, enquanto Amédée bebia vários Pernods, Stephen consumiu um pratarrão de pot-au-feu, grosso de boas verduras e pedaços de carne de carneiro. Era a sua primeira
refeição satisfatória em muitos dias, e sentiu-se melhor.
- Não quer alguma coisa? - perguntou ele.
- Isto é carne e pão para mim. - Amédée olhava com dura indiferença para o fluido esverdeado e opalescente do seu copo, que segurava com os dedos manchados de nicotina.
- Tem sido a minha dieta há muito tempo.
Sentado no café deserto, as luzes amortecidas, a mesa de bilhar lá atrás, protegida para a noite, o garçom solitário, semi-adormecido, com o seu guardanapo sobre
a cabeça, atrás do balcão, Amédée revelou alguma coisa de si mesmo em frases lacónicas.
Nascido na Itália, provinha de uma família de judeus italianos, estudara, a despeito das interrupções causadas por doenças, em Florença, e na Academia de Veneza.
Nos últimos sete anos, inspirado pelos primitivos e pela arte negra, tinha trabalhado em Paris, às vezes com o seu amigo Picasso, e ocasionalmente com Gris. Não
tinha vendido praticamente nada.
- Assim é que agora - concluiu ele, com o seu sorriso sombrio mas inquieto - me vê enfraquecido pela pobreza, pelo excesso de álcool, e pelo uso de drogas nocivas.
Sozinho, a não ser por uma moça que teve a desgraça de me conhecer. Despido de qualquer reputação. - Emborcou o resto da bebida e levantou-se. - Mas alegre pelo
fato de que jamais aviltei a minha arte.
Disse boa-noite, sem ênfase, na escada que levava aos seus aposentos.
Por breve que tivesse sido, aquele estranho encontro foi providencial para Stephen. Agora, aguentando todas as noites cinco horas de trabalho suado nos porões fumegantes
do Grand Monarque, podia sobreviver e, o que lhe parecia mais importante, continuar a trabalhar com toda a sua força na Circe.
Finalmente, cerca de três semanas depois, numa tarde seca e fria, terminava o trabalho. Lá estava ela, naquela atitude familiar de descuidada insolência, indiferente
mas aliciante, com seu rosto pálido e olhos enigmáticos, aquela moderna filha de Helios, tendo como fundo não o palácio de Aiaia, mas a rua de um bairro miserável
de Paris onde se agrupavam os seus amantes vencidos, mudados e degradados na forma de bestas, e que, domados e abatidos, olhavam para ela com um desejo servil, como
se ainda estivessem sedentos por suas carícias.
Exaurido por esse esforço final, Stephen foi incapaz de avaliar sua obra, que tomara uma forma fantástica por força de uma compulsão a que ele não pudera resistir.
Sabia apenas que nada mais podia acrescentar, e, em um espasmo de impaciência nervosa, embrulhou o quadro no mesmo papel pardo amassado que já usara antes e o levou
para o Institut des Arts Graphiques, na Place Redon. Lá, um funcionário idoso tomou o seu nome e anotou meticulosamente todos os detalhes em um livro; depois, constatando
que a tela não tinha moldura, relutou em aceitá-la.
- O senhor vê, monsieur, a especificação é de montage.
- Não notei.
- Mas é evidente. Olhe, monsieur, todas as outras peças estão corretamente montadas.
Stephen, relanceando os olhos por uma comprida galeria com dezenas de pinturas, sentiu uma súbita apatia. De uma maneira ou de outra, não se importava.
- Não posso comprar uma moldura. Aceite como está ou não aceite.
- Isso é muito irregular, monsieur. Mas, se quiser, deixe-a.
De volta ao seu sótão, sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, tomado
por uma letargia de pós-criação. E agora... que faria? Impossível continuar no Monarque - sua alma revoltava-se com essa ideia - contudo estava à beira da indigência.
Tirante as roupas que usava, o equipamento de pintura, e 15 soldos, não possuía nada de valor material. Tudo mais tinha empenhado. Levantou-se e olhou no armário.
Continha a metade de um pão, duro como pedra, e uma fatia de queijo. Lá embaixo, Amédée estava ausente há três dias, submerso numa das farras em que periodicamente
sucumbia, e da qual emergiria, entontecido, em alguma remota região da cidade. Atrás da divisão de madeira, o casal da porta ao lado tinha começado uma briga, gritando
um para o outro. Crianças brincando, discutindo, aumentavam a barulheira. Apesar da janela aberta, o quarto estava abafado pelo ar viciado da cidade, e nos lambris
rachados começava a usual procissão noturna de baratas.
Tudo isso, bastante difícil de aguentar, não era nada porém comparado com a insuportável sensação de solidão e privação que lhe torturava o peito. Não mais amortecido
pelo analgésico do trabalho, o seu desejo de que Emmy voltasse era mais forte do que antes. Ao contrário de Ulisses, nSo tinha uma erva mágica para proteger-se contra
o seu encanto. Culpava-se por não a ter convidado para ver o quadro. No dia seguinte ela tinha partido, indo para o sul com a troupe de Peroz - não a veria antes
de pelo menos seis meses, se é que tornaria a vê-la. Lembrando-se da enfatuação que Madame Cruchot tivera por ele, tremeu com a peça que o destino lhe tinha pregado
- agora era ele quem assumia o ridículo papel.
Não tinha nada em que se ocupar, nem ao menos um livro para ler; sentia-se inteiramente mole para se aventurar às ruas. Quando anoiteceu, deitou-se na cama, mas
não pôde dormir. O dia seguinte era terça-feira, e surgiu com um suave e límpido amanhecer. Ele se levantou e se vestiu. A ideia dos veículos do circo partindo naquela
tarde para o campo aberto e a ensolarada Côte d'Azur atormentava-o novamente. De repente, sem quê nem por quê, veio-lhe uma ideia. Por um momento, ficou imóvel,
parado no meio do soalho. Seria capaz disso? Ao menos poderia tentar. Apanhando o chapéu, saiu rapidamente do quarto e tomou, trémulo, a direção do Boulevard Jules Ferry.


CAPÍTULO VII

NUMA EXTENSÃO DE TERRENO COMUM, logo após os taludes de Angeres, naquela tarde de sol muito brilhante para o fim de outubro, o Circo Peroz armou
a sua cidade de lona vermelho vivo. As barracas de espetáculos secundários já estavam em ação, uma musiquinha vinha do carrossel das crianças, e os aboyers começavam
as suas exortações aos poucos espectadores presentes.
No seu stand, no fim de uma linha de barracas, vestido com uma blusa azul, boina, uma frouxa gravata preta, vestuário composto para sugerir às mentes rústicas a
altura da arte parisiense, Stephen respirava longamente o ar do campo, aromatizado com a fumaça de lenha, cascas de laranja, serragem fresca, tanino, e o cheiro
dos cavalos. A seu lado aprumava-se um cavalete enfeitado com uma tabuleta que o exaltava como Grand Maître des Academies de Londres et Paris, e prometia uma semelhança
exata, feita à mão, de perfil ou de frente, em carvão de primeira qualidade, por apenas cinco francos, em cores ricas e permanentes por sete francos e cinquenta,
cortesia e serviço iguais aos dispensados às cabeças coroadas da Europa, satisfação assegurada.
Ouviu-se o relincho de um garanhão, o agudo clangor de uma corneta e o grunhido fraco de uma leoa velha. Com a sua tosse praticamente desaparecida, Stephen experimentava
uma súbita recuperação do seu bem-estar físico. Não lamentava o impulso que o levara a Peroz três semanas antes.
- Aproxime-se, aproxime-se, cavalheiro. Vamos, senhor, convença mademoiselle a ter o seu lindo rosto pintado. Não seja modesto. Deixe um retrato para os seus netos.
Um casal de campônios, de braço dado, vestido com as suas roupas domingueiras, hesitava à sua frente, e então corando, a moça tomou coragem e aproximou-se. Não era
bonita, mas ele, em poucos e rápidos traços, esboçou a sua figura na folha que estava no cavalete, deu relevo à sua coifa de renda fina, aos bordados à mão dos seus
punhos, e, ensinado pela experiência, não esqueceu o broche de camafeu, um óbvio tesouro de família, que ela usava no corpete.
Enquanto isso, uma pequena multidão se juntava, ouvindo-se murmúrios de aprovação pelo retrato terminado, e logo ele estava trabalhando bastante. Para ele, não era
mais que um processo mecânico executado sem pensar; contudo, divertia-se em dar a alguns dos seus retratos uma individualidade irónica, detendo-se no detalhe de
uma feição particular, um olho bovino, uma orelha grande, um nariz bulboso, como acontecia às vezes nas noites de sábado, quando um cliente era ofensivo, desenhando
com malícia uma caricatura que, as mais das vezes, provocava o riso dos outros.
Às seis horas, a multidão diminuía, como sempre, antes da função principal do circo, e apanhando a sua tabuleta e tirando a blusa e gravata, Stephen entrava por
um labirinto de cordas e lonas para um pequeno recinto atrás da barraca contígua. Ali, acocorado diante de um vivo braseiro, um homenzinho enrugado, de perneiras
gretadas e culotes sujos de veludo cotelê, estava cozinhando o jantar. De pernas tortas, cabelo cortado rente, tinha feições nítidas,
castigadas pelo tempo, exceto o nariz, que era chato e quebrado. Seus olhos eram miúdos como contas, parados, e o fulgor do braseiro lhes dava calor.
- Que temos esta noite, Jo-jo?
- O de sempre. - Jo-jo olhou para cima. - Mas também um pouco de salsicha de carne de porco fresca, de Angers, que achei na Tur Toussaint. É uma das duas especialidades
desta cidade.
- E a outra?
- Cointreau, naturalmente, mon brave. É feito aqui.
As salsichas, respingando numa frigideira, pareciam cheias de promessas. promissoras. Jo-jo, que na sua mocidade tinha sido jóquei, depois vendedor de barbadas,
depois cavalariço, e depois bookmaker, e que finalmente tinha sido aconselhado a sair de Longchamps, era um cavador perito. Conhecia todas as tramóias da França.
Ninguém gostava mais de regatear no mercado ou de pegar uma galinha extraviada de uma granja à beira da estrada.
- Gostei destas duas noites aqui. - Stephen deu lugar no braseiro para o coador de folha do café. - Amanhã estamos de folga até as três. Pretendo dar uma olhada
no rio.
- O Loire é um bom rio - disse Jo-jo com um ar de quem sabe das coisas. - Fundo bom de areia, com muito peixe bom. Vou deixar umas iscas de noite e ver se temos
sorte. De fato, todo o país é bom para nós - Tours, Bolis, e especialmente Nevers. O vinho é um tanto fraco, mas a bóia é de primeira, e as mulheres... essas putas
da Touraine, grandes atrás e na frente... - Assobiou e revirou os olhos.
Enquanto ele falava, a aba da barraca se abriu e entrou um homem de aspecto estranho, com calças de xadrez e suéter caqui de gola rulê. Era alto e franzino, tão
dolorosamente magro que parecia um esqueleto, e o rosto e mãos - únicas partes visíveis do seu corpo - estavam cobertos por uma espessa crosta de escamas cor de
cobre. Era Jean-Baptiste, que participava de um dos mais pobres caminhões com Stephen e Jo-jo. Manso, taciturno e melancólico, era um caso extremo de psoríase crónica,
uma doença da pele, indolor mas incurável, sendo exibido aos curiosos como o Crocodilo Humano, produto da união de um sáurio feroz e de uma nadadora do Rio Amazonas,
com o que ganhava uma modesta subsistência.
- Teve uma tarde boa, Croc? - perguntou Stephen.
- Não muito - respondeu Baptiste sombriamente. - Nem um íntimo.
Essa era a parte mais proveitosa da técnica de Croc em descobrir-se lentamente, das extremidades para baixo; quando chegava ao umbigo, fazia uma pausa e, deixando
seus olhos correrem pela plateia, exclamava dramaticamente, com uma espécie de sedução macabra:
- Para revelações mais íntimas, estou à disposição na tenda dos fundos. Ingresso especial para essas revelações privadas, apenas cinco francos.
Quando a comida ficou pronta, sentaram-se em volta do braseiro - uma grande caneca de sopa fumegante, seguida pelas salsichas, duras mas suculentas, temperadas com
ervas do campo, um molho com pedaços de pão fresco cortados com uma faca dobradiça. Somente depois que se juntara à troupe, Stephen aprendeu a saborear os aumentos
comidos ao ar livre. Depois houve café, quente, forte e arenoso, servido na caneca de sopa. Então Jo-jo enrolou um cigarro e, com o ar de um mágico, tirou do bolso
dos quadris uma garrafa do límpido licor da região.
- Que tal um gole de vinho do altar, Abbé?
O apelido tinha seguido Stephen de Paris - ele não se importava. Passaram a garrafa de mão em mão, bebendo o claro e ardente licor sem copos. Jo-jo enrolava-o na
língua.
- Você pode confiar nele. Feito com as melhores laranjas de Valença.
- Uma vez me aconselharam a nunca comer frutas. Outra vez me disseram que não comesse outra coisa - disse Baptiste, que gostava de falar no assunto da sua doença.
- Ao todo consultei 19 médicos. Cada um deles mais tolo do que o outro.
- Então tome outra dose do meu remédio.
- Ah, isto é que é remédio para mim!
- Você não pode se queixar, Croc. Não tem uma existência rica e interessante? Você experimenta as delícias de viajar. Em suma, você é famoso.
- É fora de dúvida que muitas pessoas têm viajado 50 quilómetros para
me ver.
- E não tem um grande sucesso com as damas?
- Tenho mesmo. Exerço um certo fascínio sobre elas.
Diante desta séria admissão, Jo-jo soltou uma risada. Depois, apagando o cigarro, levantou-se para ver os cavalos.
Era a vez de Stephen lavar as panelas. Quando terminou, ao lusco-fusco, as luzes produzidas pelo gerador brilhavam como vaga-lumes sobre a feira. Olhando, sentia
todos os seus sentidos despertados. Não tinha visto Emmy todo o dia. Mas ela não gostava de ser perturbada antes do espetáculo, e o povo já convergia para a grande
tenda. Guardou o cavalete e o resto da tralha numa caixa, debaixo do seu beliche no caminhão, vestiu as suas roupas comuns e caminhava para a entrada dos fundos
do picadeiro. De acordo com o seu contrato, era seu dever acompanhar os membros de terra da companhia, que indicavam aos espectadores os seus lugares, vendiam programas,
sorvetes, citronade, e aquela marca de nugá feita especialmente em Paris para o Circo Peroz.
Parecia a Stephen uma excelente "casa" - o circo tinha uma reputação merecidamente popular através das províncias, e, com bom tempo, a mercadoria dos stands era
em geral totalmente vendida. Esta noite, fila após fila de rostos expectantes e rosados se ergueram da serragem do picadeiro. Subitamente,
na sua alta plataforma, vestido de vermelho e dourado, quando a charanga atacava uma grande marcha, o mestre do picadeiro, o próprio Peroz, apareceu de cartola,
alamares brancos e capa escarlate, dirigindo um cortejo de póneis que entraram na arena a meio-galope, atirando as crinas para os lados, e o espetáculo começou.
Embora, a esse tempo, conhecesse os números de cor, acocorado junto à grade do corredor da entrada dos artistas, com um bloco de esboços no joelho, Stephen acompanhava
cada fase, cada movimento do espetáculo com absorvido interesse, notando, vezes e mais vezes, os ritmos da coordenação muscular, o jogo de luzes e tons das cores
no vasto caleidoscópio cintilante, e mesmo as reações individuais, às vezes cómicas e bizarras, das pessoas da plateia.
Era fascinante, aquele novo mundo que ele havia descoberto, com os seus soberbos cavalos de alta escola, montanhosos elefantes e sinuosos leões de olhos amarelos,
seus acrobatas às cambalhotas, jograis prestidigitadores, funâmbulos da corda bamba sob os seus pára-sóis de papel. Observando, Stephen pensava na famosa peça de
circo de Manet, Lola no Arame, e na sua atual disposição melhorada sentia que podia desenhar aquele campo com igual riqueza. Desenho, sem dúvida, haveria, mas acima
de tudo a cor seria o instrumento da sua expressão. Via na sua paleta as cores puras, os ultramarinos, ocres e vermelhões, via como podia humanizá-lo sem reduzir
a sua intensidade. Criaria um novo mundo, um mundo que só ele percebia, um mundo somente para ele. Curvado no seu canto, desenhava e desenhava. Este era o seu verdadeiro
trabalho; os retratos que pintava de dia não eram mais que um meio de vida, e na pasta em sua caixa fechada já tinha dezenas de estudos que usaria numa formidável
composição.
Após o intervalo, davam entrada os artistas mais importantes - a troupe Dorando, de trapezistas; Chico, o engolidor de espadas; Max e Montz, os palhaços famosos.
A seguir, um soalho de madeira era rapidamente montado no centro do picadeiro e ouvia-se a fanfarra que conhecia tão bem, e que sempre fazia o seu coração bater.
Então, embaixo, via Emmy pedalando, usando uma blusa de cetim branco, calções brancos e compridas botas brancas. Ao chegar ao assoalhado, começava a executar, à
luz da bicicleta niquelada, uma série de evoluções que deixavam o espectador tonto, circulando e recuando e avançando, sempre no pequeno espaço, mudando de posição,
até que dirigia de cabeça para baixo segura no guidom, finalmente desmontando em movimento e fazendo complexas configurações numa roda só.
Talvez essas manobras fossem menos difíceis do que pareciam, mas o culto da bicicleta, uma paixão nacional que anualmente chegava ao auge nas agitadas semanas devotadas
ao Tour de France, tornava-a popular junto ao público. Uma tempestade de aplausos reboava embaixo da grande cúpula, seguida por um silêncio enquanto Emmy caminhava
para uma curiosa estrutura na
extremidade do picadeiro. Era um elevado escorregador, uma estreita fita de metal pintada de vermelho, branco e azul, que descia que descia quase verticalmente do
teto da tenda e terminava numa curva que subia bruscamente.
Alterando o seu ritmo, a banda exagerava a expectativa, enquanto Emmy, subindo lentamente por uma escada de corda, alcançava a minúscula plataforma do topo. Lá,
entrevista nas últimas espirais de fumaça, ela desenganchava uma bicicleta mais pesada das travas que a sustinham e segurava-a, testava o quadro, espichava os membros,
passava giz nas mãos, montava na máquina sobre a plataforma e, por um longo momento, parecia estar suspensa, quase flutuando na névoa de vapor. Os metais, que tinham
gradativamente diminuído para um profético murmúrio, vinham agora novamente à vida, apoiados por um estaccato de tambores que rufavam e reverberavam cada vez mais
alto. Era o instante que fazia Stephen desejar fechar os olhos. Jo-jo lhe dissera que, havendo perícia e coragem, o perigo era limitado; a estria branca do centro,
na qual as rodas deviam andar precisamente, tinha menos de 15 centímetros de largura, e depois da chuva, ou quando a umidade era grande, a superfície escorregadia,
apesar de enxugada, era traiçoeira. Contudo, não havia tempo para pensar - numa tempestade final de som, Emmy soltou-se, caiu parecendo uma pluma, projetou-se para
cima na curva e pousou na plataforma de madeira com uma velocidade que a carregava para fora da tenda como um raio.
No meio dos aplausos, embora não pudesse sair, Stephen escapou e rodeou para a barraca onde os artistas se vestiam. Teve que esperar 15 minutos até que ela saísse,
e imediatamente sentiu que ela não estava de humor muito amável.
- Então? - perguntou ela.
- Você esteve ótima... notável - afirmou ele.
- A pista estava molhada - um orvalho pesado - e esses fripons preguiçosos não enxugaram nem a metade. Então não sabem que é suicídio deslizar numa pista úmida?
Eu quase não desci. - Em várias ocasiões, por causa disso, tinha cancelado o número - de fato, tinha um acordo com Peroz que lhe permitia tomar essa resolução. Mas
a queixa deixou-lhe a voz. - Mas esta noite eu queria mesmo.
- Por quê?
Ela não pareceu ouvi-lo. Então, indiferente, respondeu:
- Por causa daqueles militares.
- Soldados?
- Não, estúpido, oficiais, naturalmente. Havia aqui uma escola de cadetes do primeiro ano. Não viu o grupo na frente da tribune?
- Acho que não.
- Uma turma elegante, isso era, nas suas túnicas. Eu gosto de uniforme.
E eles estavam querendo que eu os visse. Não que eu notasse, naturalmente. - A sua expressão amuada afastou-se um pouco. - Eu fiz um extra para eles.
Ele mordeu o lábio, procurando abafar o ciúme que ela tinha tanta capacidade de despertar nele. Após o calor sufocante da tenda, o ar era leve e fresco.
- Vamos caminhar até os muros da cidade... lá é muito bonito.
- Não. Não estou com disposição.
- Mas está uma noite tão linda. Olhe, a lua acaba de sair.
- E eu vou entrar.
- Não vi você o dia todo.
Nenhum músculo do seu rosto Se moveu.
- Já me viu agora.
- Apenas um momento. Venha.
- Já não lhe disse que fico cansada depois do meu número? A tensão é muito violenta. Pra você, tudo muito bem, vendendo programas e nugá lá embaixo.
Ele viu que era inútil insistir mais. Escondeu estoicamente o seu desapontamento. Chegaram ao caminhão que ela partilhava com Madame Armande, a mulher que cuidava
do vestuário da troupe. Ele tinha pensado nela o dia inteiro, sentia-se faminto por sua companhia, por um sinal da sua afeição. E ela estava ali, a sua figura ao
luar, rija, sedutora; queria agarrá-la e beijar à força o seu rosto pálido e indiferente, a sua boca ligeiramente entreaberta. Mas não fez nada disso, limitando-Se
a dizer:
- Não se esqueça de amanhã. Venho buscá-la às 10.
Viu-a subir as escadas a correr e desaparecer no caminhão.
Ao voltar, a função tinha terminado e a multidão se despejava pela saída da grande tenda, falando, gesticulando, rindo. Todos pareciam felizes, satisfeitos com a
vida e consigo próprios, ao voltarem aos seus lugares comuns e confortáveis. Stephen perdeu aquela sua primeira disposição alegre. Inquieto e perturbado, não podia
voltar ao seu canto, enfrentar as caçoadas de Jo-jo e os roncos de Baptiste. Saiu para as muralhas sozinho.


CAPÍTULO VIII

NA MANHÃ SEGUINTE, trazida por uma alvorada mansa e cinzenta, ela o surpreendeu e alegrou por sua pontualidade. Estava quase pronta quando ele chegou,
e pouco depois estavam nos seus vélos, rumando para o Loire, no belo contorno de Angeres, com as suas muralhas romanas, a Catedral de St. Maurice com suas agulhas
e as arcarias da préfecture atrás deles. Como sempre, ela imprimia um ritmo muito veloz, curvada sobre o guidom, as pernas movimentando-se como pistons, com o firme
propósito de deixá-lo para trás. A bicicleta dele, comprada barato com o seu primeiro pagamento semanal, era um modelo antigo; contudo, o ar fresco e a comida do
campo tinham-no robustecido. Embora lhe custasse um esforço contínuo ladeira acima, mantinha o seu lugar pouco atrás do ombro dela.
Atravessaram, dali a pouco, um arvoredo à esquerda e imediatamente se descortinou todo o esplendor do vale - o rio grande e largo brilhando na luz plácida, movendo-se
preguiçoso entre as ribanceiras e sobre baixios de areia dourada, passando por altos tufos de vimeiros, barcos de fundo chato atracados e ilhotas verdes. Na estrada
serpenteante, pesada pela areia, diminuíram a velocidade. Por trás de uma cortina de faias, Stephen avistou as torres pontudas e a fachada musguenta de um antigo
castelo. A beleza da região era inebriante para o seu espírito. Soerguido, olhou para a sua companheira, fez como se fosse falar, mas, depois, sabiamente, absteve-se.
Por volta do meio-dia, chegaram a um staminet à beira do rio, onde, acima da porta, um peixe monstruoso, enredado em algas, nadava numa caixa de vidro. Primeiro,
Stephen tinha proposto um piquenique, mas isso tinha pouca atração para Emmy, que sempre preferia parar em algum café provavelmente freqüentado pela confraria esportiva,
onde, numa atmosfera de camaradagem, havia livre companheirismo, vivas conversas em gíria e a música de um acordeom. A estalagem, todavia, embora possuísse um considerável
encanto, estava vazia de clientes - um fato que não desagradou Stephen, que sofria com a admiração demasiado franca que a sua companheira gostava de provocar. Atravessaram
o soalho de pedra limpo com areia, sentaram-se à mesa esfregada com escova e sabão junto a uma janela, da qual pendia um banco, e, após consultarem a proprietária,
escolheram um prato de peixe local que ela recomendara muito. Este chegou pouco depois, numa enorme travessa de madeira, um fritto de minúsculas espadilhas do Loire,
cada uma não maior do que um filhote de arenque, cozidas tão secas que se quebravam ao toque do garfo. Com eles vieram pommes frites e uma jarra de Bière Navarin,
preferida por Emmy.
- Isto é bom - disse Stephen, olhando por cima da mesa.
- Não é mau.
- Gostaria de pedir uma garrafa de vinho para mim - disse ele em tom de pedido.
- Eu gosto desta cerveja. Faz-me lembrar de Paris.
- Num dia como este?
- Em qualquer dia Paris me basta.
- Ainda assim... você não se importa de estar aqui não é?
- Podia ser pior.
Emmy não era afeita a superlativos, mas neste momento estava de excelente humor, e dali a pouco pôs-se a rir.
- Você não adivinha o que eu recebi esta manhã. Flores. Rosas. E um billet-doux de um dos oficiais.
- Ah, sim? - A sua expressão tornou-se ligeiramente rígida.
- Aqui está. Monograma gravado e tudo. Com outra risada, apalpou o bolso e tirou um bilhete cor-de-rosa amarrotado. - Dê uma olhada.
Ele não tinha vontade de ler o bilhete, mas também não queria ofendê-la. Passou rapidamente os olhos, notando o duplo sentido das frases polidas que a convidavam
a ir tomar um aperitivo na Terrasse e depois jantar no Le Vert d'Eau. Devolveu-o sem comentário.
- Ele é capitão, parece. Acho que o vi no grupo de ontem à noite. Alto e bonito, de bigode.
- Você vai? - perguntou ele, mascarando os seus sentimentos com um tom inexpressivo.
A fria ironia da sua maneira atravessou a sua auto-estima. Ela raramente corava, agora uma leve cor apareceu por baixo da sua pele branco-azulada.
- Quem é que você pensa que eu sou? Conheço essas guarnições da cidade e o que se pode arranjar com elas. Pra mim não, obrigada.
Stephen ficou silencioso. Embora se desprezasse por isso, e em vão tentasse combatê-lo, de tempos em tempos o ciúme lhe vinha num impulso dominador. A simples ideia
de que ela pudesse sair sozinha com aquele oficial desconhecido causava-lhe um sofrimento penoso. Contudo, ela declarara categoricamente que iria ignorar o convite;
assim, obrigando-se a ser razoável, forçou um sorriso conciliatório.
- Vamos descer até o rio. - Quando brigavam, era sempre ele quem procurava fazer as pazes.
Pagou a conta, e desceram à beira da água. O sol, geralmente quente para aquela época do ano, tinha esmaecido e, lançando reflexos da água que faziam fechar os olhos,
envolveu-os num banho de luz. Ele amava o sol - sol e água eram os deuses gémeos que poderia adorar. E enquanto ela acendia um Caporal e, com os olhos fechados,
relaxava numa postura cómoda na sombra de um salgueiro, ele sentou-se na claridade aberta e começou a desenhá-la. Já tinha feito dezenas de desenhos, nos quais se
refletia não apenas a intensidade do seu sentimento por ela, mas também a complexa interação de angústia, desejo e, por vezes, quase ódio que o compunha.
Não estava cego àquela forma de egoísmo, crueldade e vaidade, que em outra pessoa teria provocado o seu desprezo. Sabia que ela apenas o tolerava
- talvez porque a sua mentalidade gaulesa se detivesse nas possibilidades da grande proprieté, mas principalmente, e disso tinha certeza, porque o seu evidente desejo
a lisonjeava, dava-lhe uma sensação de poder apreciada por sua natureza. Ela lhe trazia mais sofrimento que felicidade. Contudo, nada podia fazer. Desejava-a com
uma necessidade física que, não sendo por ela satisfeita, aumentava de dia para dia.
Dali a pouco, erguendo os olhos do bloco, viu que ela estava dormindo. Deixou escapar, involuntariamente, um suspiro nervoso e irritante. Soltando o seu bloco e
creions, aproximou-se mais da margem, e então, num impulso, tirou a roupa e mergulhou no rio. Sabia, pelas excursões anteriores, que ela não gostava daquilo - tinha
uma aversão felina pela água fria - mas para ele o choque daquelas águas vindas de fontes era uma revigorante delícia.
Quando voltou, ela estava em pé, sacudindo o capim do cabelo cheio e curto.
- Você sabe deixar os outros sozinhos.
- Pensei que estivesse dormindo.
- Que horas são?
- Ainda é cedo - disse ele, aproximando-se e enlaçando-a pela cintura.
- Ainda temos mais uma hora.
- Oh, deixe-me! - Inclinou-se para trás e empurrou-lhe o peito com as mãos. - Você está molhado.
- Mas Emmy...
- Não, não. Não devemos chegar atrasados. Você não vai querer perder o seu emprego. É tão agradável e conveniente para você, não é?
- Sim, claro - respondeu ele com voz tensa. Ela já estava voltando para a estalagem e Stephen a acompanhou.
Aquele raro interesse pelo seu bem-estar intrigava-o. E não se dissipou pela sua disposição animada, quando voltavam a Augers. Em voz alta, ela ia cantando trechos
da última canção do teatro de variedades:
Les jolis soirs dans les jardins de l'Alhambra Ou donc sont les belles?
Que l'amour appelle?...
Et le rendez-vous, de l'amour très fou.
E seguindo seu hábito quando estava alegre, deixava os habitantes locais de boca aberta, com uma exibição de ciclismo difícil ao passarem rapidamente pelas aldeias
ribeiras.
Ainda não eram três horas quando chegaram ao circo, e poucas pessoas estavam diante dele. Stephen trocou de roupa e armou o seu cavalete. Trabalhou toda a tarde,
de um modo ausente, sorumbático, com as linhas da testa
cada vez mais fundas. Embora lutasse contra a ideia de que ela abreviara a excursão a fim de ir ao encontro na Terrasse, essa ideia só fazia aumentar. O crepúsculo
não lhe trouxe nenhum alívio, e durante o jantar mal trocou uma palavra com Jo-jo e Croc.
Por fim, levantou-se bruscamente e foi para o outro lado do campo, onde estava o caminhão de Emmy. Madame Armande estava sentada nos degraus, com um balde entre
os joelhos gordos, lavando meias. Em certa época, ela fizera parte de um número de trapézio, mas quebrara o quadril numa queda e desde então caminhava coxeando.
Agora, aos 50 anos, pesada e sem formas, de pernas hidrópicas e papada, era conhecida como a mexeriqueira da companhia Jo-jo, que cuspia ao ouvir o nome dela, dizia
que durante o recesso de inverno ela gerenciava um estabelecimento de reputação duvidosa no porto do Havre.
- Boa noite - disse Stephen, tentando manter a voz calma. - Emmy está?
Madame Armande mediu-o de esguelha com os seus olhos miudinhos.
- Mas Abbé, você sabe muito bem que ela não vê ninguém antes do espetáculo.
- É só um instante.
Ela abanou a cabeça encaixada num lenço estampado com bolinhas.
- Eu não me atrevo a perturbá-la.
- Então... - Hesitou, ansioso por acreditar nela. - Está descansando?
- A mulher levantou os braços.
- E que mais? Nom de Dieu, acha que sou mentirosa?
A sua indignação era real ou fingida? Ele queria entrar no caminhão, mas a mulher e o balde bloqueavam a entrada. Não devia tornar-se completamente ridículo. Forçou-se
a fazer algumas observações convencionais, e voltou para a escuridão.
O povo chegava aos bandos, a função começava, risadas estrepitosas e aplausos enchiam a grande tenda. Ela estava atrasada. Seria por simples coincidência? Não podia
ter certeza. Procurou tranquilizar-se. Quando ela finalmente apareceu, a impressão, conforme sua fantasia superexcitada, foi de que estava mais aparatosa, mais espetacularmente
viva do que o usual. Gritos prolongados de "bravo!" vinham da tribune quando ela deixou o picadeiro.
Depois disso, na confusão de arrancar as estacas, não pôde vê-la. Melancolicamente, juntou-se a Jo-jo e Croc na tarefa de desmontar os stands. Trabalhando sem atenção,
cortou a mão num gancho de ferro. Não se importou. Um vento frio começava a fustigar o campo. O gerador foi desligado, as luzes elétricas se apagaram. Em toda a
volta, à luz de fogachos vermelhos, entre gritos e imprecações, homens trabalhavam como demónios, desencravando pontaletes, puxando cordas, lutando com grandes abas
de lona. Como sempre
acontecia na primeira hora de movimentação, os animais estavam nervosos, soltando em todos os tons, nas suas jaulas móveis, sinistros uivos de protesto. Os engenhos
de tração, pulsando e roncando, com os volantes girando, aumentavam o tumulto. Para Stephen, parecia que a cena vinha diretamente das gravuras do Inferno de Doré,
e que ele também estava sofrendo as torturas das almas danadas.


CAPÍTULO IX

DE ANGERS, O Circo PEROZ deslocou-se para Tours, depois para Blois, e então para Bourges e Nevers. O tempo se mantinha bom, o negócio prosperava, o velho Peroz usava
o seu chapéu num ângulo elegante. Após uma estada de três dias em Dijon, viraram para o sul e chegaram a Côte d'Or, detendo-se uma noite nas velhas cidades muradas,
com portões de acesso estendidas entre vinhedos, ao longo do vale do Ouche.
A princípio, Stephen era olhado com reserva pela companhia. Mas como a "retirada" semanal dos seus retratos era satisfatória, e uma percentagem fixa dessa soma ia
para o tronc, do qual todos os artistas participavam quando era distribuído em Nice, ele começou a ganhar importância. Além disso, as suas maneiras agradáveis e
disposição tranquila logo o puseram em termos amistosos com a maioria da troupe.
Formavam um painel humano. Fernand, o domador de leões que passeava destemido na jaula circular de ferro das feras, como um hussardo no seu uniforme azul e prateado,
com uma manga dramaticamente rasgada em pedaços, era o mais tímido dos homens, sofrendo agudamente de dispepsia nervosa e sendo mimado com uma dieta de leite por
sua devotada esposa. Os próprios leões eram inofensivos como vacas, na maior parte muito velhos, os machos castrados rugiam somente porque queriam o seu jantar,
e todo o aparato de cercar a jaula de auxiliares com ferros em brasa era pura encenação.
"Não tivemos um acidente em 20 anos", observava complacentemente Peroz no boletim que antecipava ao jornal local da próxima cidade do circuito.
ESCAPOU POR UM TRIZ NO CIRCO PEROZ
LEOA ATACADA DE LOUCURA
Fernand gravemente machucado
Max e Montz, ambos anões, eram os dois palhaços principais, um par internacionalmente famoso, cujo número maior era chamado "O Rapto", um esquete no qual Max, ataviado
em rendas grotescamente fora de moda, desempenhava o papel de noiva velhota. A rotina, executada num antigo automóvel Panhard que enguiçava e se recusava a funcionar,
caindo finalmente aos pedaços, era ruidosamente cómica. Max, com o seu beicinho de criança, fazia a platéia morrer de rir. Contudo, fora do picadeiro mostrava uma
melancolia mais profunda que a de Hamlet, tendo confiado a Stephen que a paixão de toda a sua vida era o violino.
Com tais incoerências diante de si, Stephen ficou menos surpreso ao descobrir que o equilibrista japonês era um adepto da Ciência Cristã, que Nina D'Amora, que cavalgava
em pêlo, era alérgica a cavalos e em consequência sofria cronicamente de asma, ao passo que Philippe, que todas as noites corria riscos espetaculares no trapézio
alto, passava a maior parte do seu tempo de folga tricotando meias.
Por formar um grupo com Jo-jo e Croc, Stephen via-os mais do que aos outros. Jean Baptiste, por baixo da sua aparente apatia, era um homem sensível e inteligente
- Stephen fez dele vários esboços notáveis, em pé na sua plataforma, diante da multidão boquiaberta. Fora bem educado no lycée de Rouen, e chegara a assumir uma
posição com boas perspectivas numa excelente firma, La Nationale. Então lhe viera aquela afecção incurável, transformando-o gradualmente de um ser normal em um monstro
medonho - um irremediável desenvolvimento - e levando-o ao desespero final de um show secundário no Circo Peroz.
Mas era a Jo-jo que Stephen dispensava uma particular atenção. O ex-jóquei era um rematado patife que roubava em qualquer oportunidade, trapaceava pelo interior
e embebedava-se até cair e ficar no chão estuporado, "curando" a bebedeira. Contudo, na sua duplicidade havia uma qualidade curiosamente humana de que se gabava:
jamais em sua vida ter deixado um amigo sem ajuda. Às vezes, de noite, depois de ter visto Emmy, quando vinha ao camion adaptado onde ele e os outros dois moravam,
Stephen surpreendia Jo-jo com o olhar peculiarmente fixo nele - menos por simpatia, uma emoção que Jo-jo era incapaz de sentir, do que por uma espécie de cínica
compreensão, levemente tingida de escárnio.
- Saiu com a sua garota?
- Parece, não?
- Divertiram-se?
Stephen não respondia.
Em várias ocasiões, o ex-jóquei parecia querer tratar do assunto, mas em vez disso encolhia os ombros e voltava-se para Jean Baptiste, iniciando com ele uma discussão
que tornava intencionalmente grosseira, como agora:
- Qual é a sua opinião sobre as mulheres, Croc?
- Considero-as com tolerante desprezo.
- Você fala como um marido.
- Sim... já fui casado. Minha esposa agora opera a passage à niveau em Croiset, no Chemin de Fer du Nord. A minha mais cara esperança é que um dia o expresso de
Paris, correndo 90 quilómetros por hora, atinja-a numa parte vulnerável.
- De minha parte, apesar de nunca ter me casado, gosto de mulheres. Mas só para dormir com elas. Para o resto, são piores que uma gonorréia.
- Mas a gente consegue isso dormindo com elas.
- Não com as minhas mulheres. Nunca escolho putas. Somente boas e honestas esposas camponesas que encontro no mercado e estão à procura de alguma ligeira variedade.
- Ah, variedade! Essa é a verdadeira palavra - à qual devo muito do meu último sucesso.
- Você, escamado?!
- Mas certamente. Tenho feito muitas conquistas com meus íntimos através da curiosidade. Mulheres entediadas com o leito matrimonial fazem qualquer coisa por uma
novidade. Li uma vez que um assassino condenado à guilhotina pode escolher dezenas de mulheres.
- Sacré bleu! Embora mereça, você não vai perder essa cabeça feia.
- Não. Mas exerço a mesma atração. Refletindo sobre a força da cauda do crocodilo, as mulheres acreditam que sou dotado de um formidável poder fálico.
- Mas você as decepciona, farceur.
- Isso só aconteceu uma vez, Jo-jo. Era uma gorda, solteirona, sem ligações, que durante meses me seguia na esperança de que os nossos repetidos enlaces produzissem
um jacaré. Infelizmente a criança nasceu normal.
Uma gargalhada profana encheu o caminhão, mas Stephen não participou dela. Sabia que o diálogo era dirigido a ele, não por qualquer intenção maldosa, mas como um
remédio administrado à vítima de uma febre renitente. Contudo, a sua doença já progredira tanto, que parecia incurável, intensificada pelos humores e incoerências
de Emmy. Às vezes ela o tratava bem, sentava-se nos degraus do caminhão, lisonjeada por suas atenções, cheia de sua própria importância, balançando os pés nus ao
sol. E conquanto não fosse pródiga com os seus favores, vez por outra, quando passeavam juntos no escuro, deixava que ele a beijasse antes de se afastar rapidamente.
Em vão ele dizia consigo mesmo que, numa natureza tão carente de profundidade, jamais despertaria uma paixão correspondente. Voltejava em torno dela como um marimbondo
em torno de uma nectarina, mas sem penetrar uma única vez na carne macia do fruto.
Numa tarde chuvosa, quando tinham deixado o agradável distrito do Saône pelo território estéril do Pays de Dombres, foram até uma pequena e dispersa comunidade de
Moulin-les-Drages. O seu destino inicial era St. Etienne, mas o trator principal quebrou na estrada, detendo uma longa fila de carros rebocados, e uma vez que o
conserto demoraria pelo menos 24 horas, era forçoso fazer um alto. Peroz, muito aborrecido por perder uma data importante, resolveu, após considerável debate, oferecer
um espetáculo em Les Drages e assim diminuir um pouco o seu prejuízo.
Mas tendo começado com má sorte, o dia continuou de mal a pior. Cartazes não tinham sido previamente afixados; a cidade, investigada, mostrou ser mesquinha e pobre,
sendo a única indústria uma olaria decadente. E a chuva aumentava continuamente. Quando chegou a noite, não havia mais de 100 pessoas na tenda gotejante.
Honrando a tradição Peroz, a maior parte dos artistas apresentou os seus números em bom estilo, voltando depois para a grande estufa da sala de estar. Emmy, contudo,
foi menos afortunada. Duas vezes, durante as suas evoluções preliminares, as rodas derraparam e ela foi atirada no chão molhado. Como resultado, cortou a parte principal
do seu número e saiu do picadeiro pedalando com a cabeça no ar. A primeira queda provocara risadas na plateia aborrecida; a segunda, uma positiva zombaria, seguida
de uma vaia com miados de gato.
Quando Stephen a viu depois, fora da tenda, ela ainda estava pálida com o vexame. Ele sabia que não devia falar, e por isso saiu com ela pela estrada em direção
ao acampamento, cerca de um quilómetro e meio distante, onde os carros estavam estacionados. Para piorar as coisas, não tinham andado muito quando desabou um forte
aguaceiro, forçando-os a se abrigar num celeiro ao lado de um campo aberto de restolho.
Quando seus olhos se habituaram à escuridão, Stephen olhou em torno, observando que o lugar estava cheio de palha. Rompeu o silêncio.
- Aqui pelo menos está seco. - E acrescentou: - Estou contente porque não apresentou hoje a parte final. Aquela gente não merecia.
- Que quer dizer?
- Bem... - Corou ligeiramente. - Eram gente um tanto antipática.
- Não notei. Eu sempre domino a minha plateia.
- Então por que não desceu?
- Porque a pista estava ensopada. Você não entende que na chuva isso é suicídio? - Num ataque de mau humor, seus olhos cintilaram para ele. Quem é você para ficar
aí me criticando? Sabe lá os riscos que eu corro todas as noites, enquanto você fica sentado lá atrás, rabiscando numa folha de papel, com menos coragem do que um
piolho? Eu desço ou não desço exatamente quando resolvo. E não vou quebrar o pescoço por nenhum padrezinho.
Ele a encarou por um momento, agora tão pálido quanto ela; depois, furioso, agarrou-a subitamente pela cintura.
- Não me fale assim!
- Largue-me.
- Só se me pedir desculpa.
- Fiche-toi le camp.
No próximo instante estavam lutando. Cego de raiva, recordando todos os insultos e desfeitas que ela acumulara nele, resolvido a vencê-la fisicamente, fechando ambos
os braços em torno dela como um lutador, tentou levá-la ao chão. Mas ela lutava como um gato selvagem, torcendo-se e revolvendo-se na palha fofa, malhando-o com
os cotovelos. Ela era mais forte do que ele julgava, com músculos curtos e poderosos de felina agilidade. Começou a respirar pesadamente, sentindo a pressão do seu
corpo contra ele. Retesando cada músculo, ele resistia. Rolaram por aqui e ali, sem decisão, até que ela, encolhendo a perna por trás dele, atirou-o longe com uma
rápida distensão.
- Está vendo? - disse ela. - Que isso lhe sirva de lição.
Ele se levantou devagar. Estava menos escuro do que antes; através da
clarabóia do celeiro, a lua era visível correndo entre as nuvens. Com um esforço, ainda tentando recuperar o fôlego, forçou-se a olhar para ela e viu, com confusa
surpresa, que ela não havia levantado; estava deitada de costas sobre a palha, com o vestido ainda desarranjado pela luta, observando-o através dos olhos apertados
com uma curiosa expressão especulativa, excitada, mas, ainda vagamente zombeteira. No seu rosto, geralmente de uma palidez fria, havia uma orla de cor, nos seus
lábios pálidos um sorriso ligeiramente mau. Por um momento, sustentou o olhar dele; depois, colocando ambos os braços embaixo da cabeça, numa atitude menos de sedução
que de expectativa, fez um movimento impaciente.
- Então, estúpido... que está esperando?
O convite que ele tanto havia procurado era inconfundível, contudo tão descarado, tão despido da menor semelhança de afeição, que ele não podia se mover. Petrificado
e repelido, mirava-a, e, girando, saiu do celeiro sem uma palavra.
- Molenga! - gritou-lhe ela. - Espèce de crétin.
Ele caminhou talvez uns 30 metros antes que o desejo lhe surgisse novamente, mais desesperado do que antes. Pouco se importava, queria-a, e haveria de possuí-la
de qualquer maneira. Virou-se e voltou.
- Emmy... - Estava fraco, encolhido de desejo por ela. Mas agora ela estava fria e dura como uma pedra.
- Vá para o inferno - disse ela outra vez zangada. - Agora espere outra oportunidade.
A expressão dos seus olhos dizia-lhe que era inútil insistir. Novamente
saiu do celeiro. Sem saber aonde ia, caminhava direto para a frente, com os olhos contraídos e os lábios apertados. Naquelas últimas semanas, vitimado por seu desejo
insaciável, reduzido a uma perpétua atitude de propiciação, já tinha sido bem humilhado. Mas agora, ferido em sua sensibilidade, sentia-se no mais baixo nível de
abjeção. Não podia, não devia submeter-se a isso.
Seus pensamentos não tomaram uma forma coerente até chegar de volta ao acampamento do circo. Uma vez que o motor enguiçado não seria reparado antes da manhã seguinte,
nada tinha sido desmontado, e no campo enlameado a grande tenda se erguia deserta e vazia. Alguma coisa buliu dentro dele. A luz brilhando através da abertura do
topo do dossel banhava o picadeiro com uma luz espectral, mostrava a pista inclinada, que não fora desmontada, brilhando de umidade. Um estranho impulso, um senso
de dever para consigo mesmo, lentamente foi tomando forma no seu espírito atormentado. Olhando para cima, viu que o equipamento ainda estava no lugar. Incapaz de
reprimir um arrepio, dirigiu-se para a escada de corda, seus pés deixando pegadas na serragem molhada. Segurou a corda e começou a subir vagarosamente. Momentaneamente
uma vertigem paralisou-o. O vento naquela altura tinha mais força, fazendo a pista oscilar, e o grande toldo, panejando e agitando-se, aumentava a sua impressão
de insegurança. Ele compeliu os seus músculos rígidos ação. Olhando para cima e usando uma mão, desenganchou a bicicleta da trava e, ainda seguro firmemente ao mastro
com o outro braço, alinhou as rodas. Montou trémulo na máquina e forçou-se a olhar para baixo.
O picadeiro, lá embaixo, era impossivelmente pequeno, um distante disco amarelo. A pista na qual ele estava pousado não tinha mais substância que uma simples fita.
Outro violento tremor lhe percorreu o corpo. Continuava seguro, podia voltar atrás. O medo petrificava-o. Lutou com ele. O que quer que acontecesse, tinha que descer.
Respirou fundo, firmou a sua posição na bicicleta, curvou-se para diante. Ao fazer isso, teve a vaga consciência de um grito, de uma figura encurtada e escura que
acenava lá de baixo. Se pretendia avisar, era demasiado tarde. Focando o olhar na lista branca central, com um supremo esforço da vontade, soltou a mão que o segurava.
Veio uma fração de segundo de voo, uma descida incrível, um empuxão para cima que o catapultou para o ar, e no mesmo instante, com um salto ruidoso, estava embaixo,
atirado com tremenda velocidade para fora do campo, estatelado na lama mole da vala que o margeava.
Por um momento lá ficou, imóvel, surpreso por estar vivo. Até que ouviu alguém correr para ele.
- Nom de Dieu... Está querendo se matar? - Era Jo-jo, desta vez em considerável estado de agitação.
- Não - disse Stephen, levantando-se tonto. - Mas acho que vou ficar enjoado.
- Seu filho da puta maluco. Que bicho lhe mordeu?
- Precisava de um pouco de exercício.
- Você está louco. Quando vi você lá em cima, pensei que estava liquidado.
- E que diferença isso teria feito?
Jo-jo encarou-o.
- Pelo amor de Deus, venha tomar um drinque.
- Muito bem - disse Stephen, e acrescentou: - Não comente isso com ninguém.
Foram até o café da aldeia. Depois de um bom copo de Calvados, a mão de Stephen parou de tremer. Lá ficou bebendo com Jo-jo, quase em silêncio, até que o lugar fechou.
O conhaque pesava-lhe na cabeça, fazendo-o sentir-se embotado e entorpecido. Mas na verdade não tinha realizado nada. A dor no coração ainda estava lá.


CAPÍTULO X

DUAS SEMANAS SE PASSARAM. Estavam em Nice. A cidade, iniciada pelos terraços de mimosas de La Burnette, era maior do que Stephen imaginava. A Promenade de Anglais,
a cintilante orla marítima, com os seus canteiros formais e hotéis ostentosos, dava uma desagradável nota pretensiosa. Mas o terreno do circo ficava bem para o interior,
na direção de Cimiez, atrás da Place Carabacel, cercado de ruas estreitas com feiras ao ar livre e pequenas barraquinhas de frutas, verduras e uma profusão de flores,
uma rede de coloridas e ruidosas passagens que tinham o encanto íntimo de Paris acrescido do calor do Sul.
- Nada mau, hein? - disse Jo-jo, expandindo o seu magro peito embaixo do colete rasgado.
- Gosta daqui?
- Muito. E você também vai gostar. - Fez um gesto abrangente. - Há muito interesse para um artista na Carabacel.
Em outro momento teria sido um entretenimento para Stephen explorar aquele bairro. Agora, tenso e inquieto, sentia que não poderia trabalhar. Mas obrigou-se a tal
com o seu bloco Ingres e fez alguns estudos dos nicenses - uma velha de touca branca vendendo alcachofras, um homem do campo
com uma rede de galinhas vivas, trabalhadores tapando um buraco na estrada. Contudo, o seu coração não estava naquilo, e ao calor do meio-dia voltou para o acampamento
a fim de descansar um pouco antes de começar o trabalho na sua barraca.
Na tarde seguinte, diante do seu cavalete na feira, completava o seu último retrato da sessão quando notou que havia um espectador atrás dele, ligeiramente inclinado
sobre uma bengala de rotim. Algo na sua postura despertou-lhe um eco na memória. Voltou-se.
- Chester!
- Como está, meu velho? - Harry rompeu no seu riso contagiante, descalçou uma luva de couro lavável e estendeu-lhe a mão. - Soube que você tinha entrado para o Peroz.
Mas por que diabo está com essa fantasia?
- Faz parte do trabalho.
- Claro, uma maneira de atrair os nativos. Mas não o faz sentir-se com cara de tolo?
- Ora, estou acostumado. Espere, que já estarei com você.
Enquanto Stephen dava rapidamente os toques finais no retrato, Chester tirou uma cigarreira e acendeu um cigarro. Espremido num traje de linho branco, sapatos marrons
e um chapéu panamá, tinha um ar abastado. Calças bem vincadas, camisa de tussor de seda, exibia uma elegante gravata-borboleta. O rosto estava bem queimado.
- Não posso acreditar que você esteja aqui. Embora tivesse dito que ia para Nice. Você parece estar bem.
- Estou em ótima forma, obrigado.
- Suponho que teve alguma sorte nas mesas.
- Para dizer o mínimo, tive. - O sorriso de Chester escureceu. - Eu estava nas últimas e apostei os 50 francos que me restavam no duplo zero. Por quê? Porque sabia
que teria menos que zero se perdesse. Deu o duplo zero. Deixei tudo. Por quê? Só Deus sabe. E deu o duplo zero outra vez. Meu Deus, você nunca viu semelhante pilha
de grandes e lindas fichas quadradas vermelhas em sua vida. Fui apanhá-la. Não pude. Alguma coisa dentro de mim dizia sorte pela terceira vez. Quando a roda girou,
quase morri. O duplo zero deu de novo. E desta vez recolhi tudo rapidamente e fui trocar no guichê do caixa. No dia seguinte mudei-me do prejuízo para Villefranche,
um pequeno apartamento. Desde então estou vivendo como um lorde. - Tomou o braço de Stephen. - Agora fale-me de você. Como vai o trabalho?
- Assim-assim.
- Vamos vê-lo.
Stephen guiou-o até o seu caminhão, apanhou algumas telas e inclinou-as, uma depois da outra, contra a calota da roda, enquanto Harry, com uma expressão profissional,
estudava cada uma a seu turno.
- Bem - declarou ele afinal. - Você pode ter algo aí, mas não compreendi bem o que é. Perspectiva? As suas pinceladas não são muito rudes?
- São intencionalmente rudes... para dar uma impressão de vida.
- Esses cavalos não são particularmente reais.
Harry apontou com a sua bengala para uma composição a têmpera de cavalos correndo como loucos numa tempestade.
- Não estou procurando expressar o óbvio.
- Obviamente não. Contudo... gosto que um cavalo se pareça com um cavalo.
- E quando você vê um homem montado nele, então tem certeza disse Stephen secamente, e empilhou as telas, percebendo que Chester não tinha a menor ideia do que ele
buscava. - Você ainda está pintando?
- Oh, naturalmente. Quando tenho tempo. Estou fazendo uma vista geral da Promenade. Às vezes saio com Lambert. Ele e Elise estão aqui. Ele pegou uma viúva americana
rica no Ambassadeurs e está dando expediente inteiro com ela.
Enquanto ele falava, soaram passos, e por trás da lona do caminhão apareceu Emmy. Quando se dirigia para Stephen, recuou de súbito, tendo notado a presença de Chester.
Uma expressão curiosa lhe assomou ao rosto.
- Que é que está fazendo aqui?
- Eu geralmente apareço quando menos se espera.
- Como um cêntimo falso?
- Desta vez como uma bela nota de mil francos - respondeu Chester amavelmente, sem se deixar diminuir. - Sentiu a minha falta?
- A privação foi insuportável.
- Não seja rude com o tio Harry. Você sabe que os seus nervos são fracos. - Consultou o relógio. - Tenho que partir. Devo estar no Negresco às seis. Mas quero que
vocês venham almoçar amanhã no meu apartamento Rue des Lilas, 11-B - ao largo do Boulevard General Leclerc. Os Lamberts também estarão lá. Os dois estão livres?
Ótimo. São apenas uns poucos quilómetros pela Corniche, o bonde passa na minha porta.
Sorrindo e acenando com a bengala, chamou um fiacre no fim do acampamento, saltou nele, reclinou-se no encosto acolchoado e mandou tocar a galope. Emmy acompanhou-o
com olhos ressentidos.
- Voyou metido a sebo. Mandando a gente tomar o bonde enquanto ele vai de carruagem.
- Não devemos invejá-lo. Ele também já teve os seus maus momentos.
- Não acredito que ele tenha acertado um coup. Deve estar vivendo com alguma velha.
- Não mesmo. Chester é o tipo de sujeito com sorte para ganhar uma bolada. Além disso, só se interessa por moças bonitas.
- Um dia ele vai ver o que é bom. - Mostrou os seus dentinhos agudos.
- Sale type. Nunca fui com a cara dele.
- Então você não irá lá amanhã...
- Claro que irei. Não seja tão fou. Faremos com que ele se arrependa da sua pretensão.
Ele a olhou perplexo. Obviamente detestava Chester. Por que, então, aceitar o seu convite? Talvez quisesse ver os Lamberts. Jamais soube o que ela tinha em mente.
No dia seguinte, quando veio ao seu encontro, ela usava um vestidinho amarelo de musselina bordada e uma fita da mesma cor em volta do cabelo cheio e curto. Deu-lhe
um pequeno sorriso com os lábios apertados.
- Podemos pegar um fiacre?
- Isso mesmo. Nada de bonde para nós.
Ela escolheu a mais elegante vitória da fila. Sentou-se confortavelmente.
- Como estou?
- Maravilhosa.
- Eu precisava de um vestido novo. Comprei este hoje de manhã na Galerie Mondial.
- É encantador - disse ele. - E assenta-lhe perfeitamente.
- Gosto de mostrar a essa gente que não sou uma coisa embaixo dos pés deles. Chester especialmente. Ele é muito cheio de si.
- Talvez, mas não é um mau sujeito. Acho-o apenas um pouco mimado. É bonito demais.
- Acha-o atraente?
- Acho que muita mulher tola já tem caído pelos seus belos olhos azuis e cabelos crespos.
Ela lançou-lhe um penetrante olhar de soslaio.
- Pelo menos eu não sou uma delas.
- Não - sorriu Stephen. - Estou um tanto aliviado por você detestá-lo. Rodaram pela Avenue Raspail, um largo logradouro sombreado de catalpas, ao longo do Boulevard
Carnot, e depois pela curva da baía para Beaulieu. O céu estava azul, uma brisa de deliciosa fragrância soprava das colinas. Ele apertou-lhe a mão, feliz - ela se
deixou segurar por um momento. Ultimamente, as atenções que ele tinha para com ela, os pequenos presentes que continuamente lhe dava, as restrições que por um esforço
de vontade impunha a si mesmo pareciam estar causando alguma impressão nela.
- Você está sendo gentil comigo - murmurou ela.
Essa ligeira observação tornou-o ridiculamente feliz. Talvez, por fim, ela pudesse aprender a amá-lo.
Dali a pouco rodavam por Villefranche. O apartamento de Chester, na Rue des Lilas, uma rua em ângulo reto com a avenida, integrava uma série de
suítes que abriam sob um balcão comum em torno de um pátio, atendidas por um pequeno hotel, o Hotel des Lilas. Um pequeno chafariz cercado de cactos gorgolejava
no centro do pátio, e tubos verdes de oleandros floridos decoravam a varanda. O lugar parecia limpo, agradável e discreto - exatamente a espécie de pied-à-terre
que Chester, com a sua inclinação para se tratar bem, acharia sem o menor esforço.
Foram os primeiros a chegar, e Harry recebeu-os efusivamente.
- Bem-vindos ao castelo ancestral. Não é grande, mas tem história.
- Má, sem dúvida - disse Emmy.
Chester riu. Vestia calças de flanela branca e um blazer azul com botões de metal amarelo. Seu farto cabelo castanho, recém-ondulado, tinha uma listra de cor mais
clara na testa.
- Se é isso o que você pensa, não posso deixá-la mentir.
Enquanto ele levou Emmy ao dormitório para deixar a sua echarpe e luvas, Stephen relanceou os olhos em torno da pequena sala de estar. Era mobiliada convencionalmente,
mas nas paredes havia duas aquarelas emolduradas que reconheceu como sendo trabalho de Lambert. Examinou-as de perto - uma era um arranjo de ervilhas-de-cheiro num
vaso Ming, a outra um bando de cegonhas paradas num lago nevoento - e ao olhá-las imaginava como jamais poderia ele ter apreciado semelhante beleza. Belamente executadas,
com uma delicadeza quase feminina, eram contudo vazias e insípidas, despidas de toda vitalidade ou intenção. Podiam ter sido feitas por uma hábil professora de arte
de uma escola superior para moças. Faziam-no avaliar que longa estrada tinha percorrido desde aqueles primeiros dias em Paris. Se a jornada fora áspera, pelo menos
lhe tinha ensinado em que consistia realmente uma obra de arte.
- Boas, não? - Chester tinha voltado com Emmy. - Lambert, num gesto muito decente, me emprestou as duas. O preço está nas costas. Há sempre uma chance de que os
meus visitantes queiram comprá-las.
Trouxe uma garrafa de Dubonnet e serviu três copos, depois passando uma bandeja de camarões frescos.
- Posso tentá-la, mademoiselle Rouquet de la baie.
- Você mesmo os apanhou?
- Claro. Levantei-me antes do desjejum.
Rearranjando o cabelo, ela olhou para ele, mas pela primeira vez com menos animosidade.
- Que grande mentiroso!
Harry riu-se gostosamente.
- Também sou muito bom nisso.
A campainha tocou e os Lamberts entraram. Pareciam pouco mudados, embora Philip estivesse mais gordo, mais lânguido nas suas maneiras. Usava
um terno cinza com um cravo azul na lapela e trazia pendurada no indicador uma caixinha de pâtisserie amarrada com uma fita.
- Trouxe-lhe alguns bolinhos do Henri, Chester. Acompanharão o café. Naturalmente, você está lembrado da minha gulodice, Desmonde. - Espichou-se comodamente no divã
e delicadamente aproximou as suas finas narinas da flor que tinha na lapela. Elise, que vestia o inevitável verde, e cujo sorriso parecia um tanto mais fixo do que
antes, estava conversando com Emmy.
- Agora, conte-me tudo como um bom menino.
Stephen começou um relato a seu respeito, mas antes que fosse muito longe viu que Lambert não estava prestando atenção, e interrompeu-se.
- Você sabe, Desmonde - disse Philip num tom ligeiro e divertido eu desejaria, pelo seu próprio bem, que você não se tivesse metido nessas coisas pesadas. Você não
pode atacar a arte com uma picareta. Por que suar como um britador de pedras? Faça como eu e use um pouco de delicadeza, um pouco de habilidade. Eu nunca trabalhei
demais, e no entanto clientes não me faltam. E eu vendo. Admito que tenho talento, e isso torna as coisas mais fáceis para mim.
Stephen ficou silencioso. Podia muito bem adivinhar a facilidade de Lambert. Mas o anúncio de Chester, dizendo que o almoço estava servido, salvou-o da resposta.
A refeição fornecida pelo hotel lá de baixo era esplêndida, servida por um jovem garçom que, para apresentar uma comida tão quente, devia ter executado estranhas
proezas de agilidade nas escadas. Uma lagosta cozida à moda da terra, seguida de um risotto de frango, e depois um queijo soufflé; antes, Harry, com o toque de um
perito, tinha feito saltar a rolha de uma garrafa de Veuve Cliquot. Quanto mais alegre a mesa, porém, mais Stephen se sentia completamente alheio a ela. Em certa
época tinha apreciado aquela sociedade, mas agora, apesar do enorme esforço para se coadunar com ela, fracassava tristemente. Que lhe tinha acontecido para que se
sentasse ali, mudo, com a consciência mortal de que não mais pertencia a ela? Emmy, bebendo mais champanhe do que devia, exibia tolas personificações de Max e Monx
que faziam Chester, agora mais ruidoso do que nunca, estourar de riso. Lambert, a quem Stephen tinha antes admirado, parecia-lhe agora exatamente como Glyn o via
- um poseur e diletante, um amador fracamente dotado. Perfeitamente amaneirado, bem-educado, garantido por sua pequena renda regular, recusando-se a ser perturbado
ou excitado, flutuava a esmo, nunca se exercendo a sério, tocando de leve o creme da vida. Cultivando mulheres, arranjava clientes que lhe encomendavam retratos
ou que pagavam bons preços por seus leques e aquarelas. Elise, com o seu sorriso fixo e perfil nítido, mostrava sinais dessa existência. Sua aparência começava a
murchar e as rugas a juntar-se embaixo dos seus
olhos verdes e pestanudos; contudo, embora a sua capacidade de lisonjeá-lo já estivesse um tanto gasta, a sua inexaurível devoção fazia dela, cada vez mais, uma
parceira complacente naquele jogo de blefe artístico, cujo mero pensamento levava Stephen a remexer-se mais inquieto na cadeira.
Depois do café e bolinhos, dos quais Philip, desculpando-se com uma delicada alusão literária ao jovem com as bombas de creme de Stevenson, comeu cinco, sentaram-se
na sacada. Continuando a monopolizar a conversação, descreveu, com irónica meticulosidade, as deficiências faciais e sociais da mulher idosa que retratava atualmente.
- De fato - concluiu ele aereamente - não se poderia esperar mais da viúva de um enlatador de carne de porco de Chicago.
- Imagino que o cheque dela foi bom.
- Bem... naturalmente.
Embora tentasse livrar-se da sua apatia, Stephen via o tempo passar com interminável lentidão. Por fim, cerca de três horas, aproveitando um intervalo na conversação,
olhou para Emmy.
- Acho que temos de ir agora.
- Oh, tolice - protestou Chester. - A tarde ainda é jovem. Vocês não podem nos deixar agora, de modo nenhum.
- Se eu não for chegarei tarde no meu emprego.
- Então por que você não fica, Emmy? - sorriu Harry afavelmente. Houve uma pausa. Stephen notou sua hesitação, mas ela logo sacudiu
bruscamente a cabeça.
- Não. Eu vou agora.
Despediram-se, o porteiro lá embaixo conseguiu-lhes um fiacre. Ao dobrarem a esquina, fora da vista do hotel, Stephen inclinou-se para ela.
- Foi bondade da sua parte vir comigo. Gostei disso.
- E eu não gosto de me tornar fácil.
Não era a resposta que ele esperava; no entanto, animado pela recente mostra de sua consideração, chegou-se mais perto, sob a coberta do avental da carruagem, e
procurou-lhe a mão.
- Não - disse ela, empurrando-o irritada. - Não está vendo como me sinto?
E ao voltar-se surpreso, ela, com franqueza vulgar, deu uma desculpa que, se fosse verdade, teria talvez causado a sua prematura partida.


CAPÍTULO XI

APÓS O TUMULTO E EXCITAÇÃO das viagens através das estradas do país, muitos membros do Circo Peroz acharam agradável estabelecer os seus alojamentos de inverno na
Côte d'Azur. Ali era a sua base; muitos tinham relações em Nice, Toulouse e Marselha, e com mais tempo disponível, poderiam visitá-las. Embora o negócio continuasse
firme, o programa tinha sido reduzido para cinco espetáculos por semana, e após a grande noite de domingo, segunda e terça-feira, ficavam livres.
Os amigos de Stephen já haviam Se acomodado à nova rotina. Max reiniciara as suas lições de violino e podia ser visto, todas as tardes, com a caixa preta em forma
de pêra debaixo do braço, partindo no trote miudinho forçado por suas diminutas pernas. Croc, por outro lado, passava a maior parte do seu tempo na Bibliothèque
Nationale, curvado sobre grossos volumes, expondo na volta, a Stephen e Jo-jo, uma nova versão de Schopenhauer, ao passo que Fernand, parecendo gasto e sonhador,
ia todas as manhãs, de braço dado com a esposa, a um homeopata de Cimiez para a irrigação diária prescrita para o seu flux intestinal. Mais prático, Jo-jo tinha
achado uma ocupação subsidiária nas cavalariças do Negresco, onde, a pretexto de lavar as carruagens, passava a maior parte do tempo tagarelando com cocheiros e
motoristas, levando um livrinho sobre as corridas locais e comentando sarcasticamente, com o canto da sua boca de ratoeira, os visitantes que entravam e saíam do
hotel.
Stephen, por sua vez, tinha começado o desenho preliminar para uma pintura na qual pretendia utilizar os estudos individuais feitos na grande tenda, a que pretendia
chamar Grcus. Esse arranjo complexo, um agrupamento de inumeráveis figuras com as suas cores combinadas e contrastantes, era difícil e, desde que ele não tinha estúdio
nem tela suficientemente grandes, propunha-se seguir o precedente dos antigos mestres e construir a sua composição, primeiro que tudo, numa escala menor e menos
rigorosa. A ideia lhe surgiu à medida que progredia, e ele começou a sentir que semelhante material, recolhido em semanas de paciente observação, devia dar um magnífico
resultado.
Desde o dia do almoço no Hotel des Lilas, o barómetro dos humores de Emmy tinha lentamente chegado a "bom tempo". Após esse evento, não tinham
mais visto Chester ou os Lamberts, e parecia que essa ligação estava finalmente rompida.
No fundo do espírito de Stephen, talvez por uma observação de Glyn, sempre havia a ideia de uma afeição entre Chester e Emmy. Era-lhe gratificante o fato de que
Emmy tivesse aceito a brusca interrupção de sua amizade com tão pouco interesse. Ela, como os outros, tinha voltado a sua atenção para Nice. A irmã de Madame Armande,
que morava nos arredores, logo após o subúrbio de St. Roch, tinha uma pequena chapelaria dedicada principalmente à produção e venda de chapéus de palha de carnaval.
Emmy, como muitas moças francesas, tinha talento para os trabalhos de agulha, e todas as tardes tomava modestamente o bonde para ganhar algum dinheirinho na oficina
do Chapeau de Paille. Como resultado, Stephen via-a menos do que o usual. Contudo, experimentava um certo conforto íntimo com esse aspecto inesperadamente sossegado
da sua natureza. Tal atividade, no entanto, devia ser terrivelmente monótona, e ele disse para si mesmo que devia procurar quebrar essa monotonia. No Clarion de
Nice, descobriu que uma companhia lírica, cumprindo um contrato no Casino Municipal, faria uma representação de La Bohême na segunda-feira seguinte. Esse romance
ultrapassado da vida de estudante em Paris talvez a entretivesse, e no seu encontro seguinte ele falou no assunto.
- Você quer ir ao teatro na segunda?
- Teatro? - Pareceu ligeiramente perturbada. - Você não está ocupado com a sua pintura?
- Não de noite, com certeza.
- Bem... se você quiser.
- bom. vou comprar as entradas hoje.
Andou todo o caminho até o Casino e comprou duas cadeiras no grand circle, e então, sabendo o quanto ela gostava de "uma noite fora", reservou uma mesa no restaurante
para a ceia nessa mesma noite. Começou a esperar o evento com aquela antecipação que tão dolorosamente o afetava sempre que pensava em ficar a sós com ela.
Segunda-feira chegou. Quando terminou a sua sessão na barraca, banhou-se com água da bacia no lado de fora do seu alojamento e vestiu o seu terno e uma camisa limpa
que lavara na véspera. Justamente quando se aprontou, ouviu passos atrás dele. Voltou-se e viu uma expressão de pesar nos olhos de Emmy.
- Que houve?
- Não posso ir com você esta noite.
- Não pode?
- A irmã de Madame Armande está de cama, com l agrippe. Tenho que ficar com ela.
- Madame Armande pode fazer isso.
- Sim, mas há pedidos de urgência para atender.
- Talvez...
- Não. Tenho obrigação de ir.
Houve uma longa pausa.
- Bem... suponho que não tenha jeito.
Ficou terrivelmente abatido, mas não se importava em mostrá-lo.
- Você deve convidar alguém. Não desperdice as entradas.
- Ora, para o diabo os bilhetes! Que importam eles?
- Sinto muito. - Deu-lhe um tapinha condoído.
- Outra noite, quem sabe.
Aquele ar de interesse preocupado diminuiu a sua decepção. Todavia, ao vê-la apressar-se, indo em seguida despejar lentamente a água cheia de espuma de sabão da
bacia, a sua tristeza era tão grande, que Jo-jo, que acabava de voltar, descansando com os cotovelos no degrau, tendo testemunhado a recente cena, veio fazer perguntas.
- Como vai a coisa? - Falava sem tirar a palha que tinha entre os dentes.
- Muito bem.
- Você está todo emperequetado.
- Estou vestido, se é isso que quer dizer.
- Aonde ia?
- Ao teatro. Venha comigo. É La Bohême.
- Variedades?
- Não, ópera.
- Ópera? Ah, não. Mas vamos tomar um drinque no Mas Provençal. Atravessaram a praça em direção a um café das proximidades. Era um lugar reles mas agradável, com
compridos bancos e mesas na calçada. No interior obscuro, um piano mecânico estava tocando, e o pessoal se achava sentado em mangas de camisa. Jo-jo acenou para
alguns operários que, a caminho de casa, tinham parado para uma caneca de cerveja.
- Qual é o seu veneno, Abbé?
- Qualquer coisa... Vermute.
- Vermute Quelle blague. Você vai tomar é um conhaque. - Pediu em voz alta um Pernod e um conhaque.
As bebidas foram trazidas por uma raparigona de braços nus, vermelhos, e seios redondos, cheios debaixo da blusa, como cocos.
- Aí está uma garota para você. - com mão prática, Jo-jo filtrou o Pernod através de um torrão de açúcar, e tomou um gole confortante do líquido opalescente. - O
nome é Suzie. E não é poule. Por que não experimenta a sorte? Essas mulheres grandalhonas gostam de homens pequenos.
- Ora, vá pró inferno!
Jo-jo riu brevemente.
- Isso é melhor. O problema com você, Abbé, é que nunca se entrega.
- Que quer dizer?
- Sacré bleu! Você pode se desamarrar um pouco. Então nlo fiquei sabendo que você tem tutano - aquela noite... quando desceu na pista? Voando com todo o seu corpo.
Fique alegre, embebede-se e divirta-se.
- Já tentei isso. Comigo não dá resultado.
- Há um chá dançante todas as noites no Negresco. De muita classe. Pode ser interessante.
Havia uma intenção esquisita na voz de Jo-jo, mas Stephen simplesmente abanou a cabeça.
Jo-jo abriu os braços resignado. E depois disse:
- Que aconteceu com a beleza da bicicleta?
- Teve que ficar com a irmã de Madame Armande.
- Armande tem irmã? Haverá duas cadelas iguais neste mundo infeliz?
- Ela tem uma chapelaria em Lunel, atrás de St. Roch. E está doente.
- Uma obra de caridade - fez Jo-jo, baixando a cabeça. - Uma segunda Mademoiselle Nightingale.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual ele continuou a olhar para Stephen com um satírico aperto nos lábios. Uma vez, pareceu que ia falar, mas em vez disso encolheu
ligeiramente os ombros, pediu novas bebidas com um gesto, e começou a falar sobre as corridas do dia seguinte.
Às sete horas, deixaram o café; Jo-jo foi dar água e comida aos seus árabes, e Stephen ficou só. Sentia-se melhor, aquecido e mais alegre depois de três conhaques,
mas ainda assim tinha pouca disposição para ir sozinho ao Casino. A noite era deliciosamente linda - e seria uma pena gastá-la num teatro abafado. De repente lhe
veio uma ideia, Lunel não ficava muito longe, apenas uma viagem de bonde de 20 cêntimos. Por que não dar um pulo até a oficina de Madame Armande e, mesmo que fosse
obrigado a esperar até que ela terminasse o seu trabalho, voltar com Emmy? Com sorte, poderiam até chegar a tempo para o jantar.
A perspectiva apressou os seus passos e ele atravessou o Boulevard Risso para a Place Pigalle, onde, sem dificuldade, achou um bonde para a zona norte. A viagem
foi lenta, e mais longa do que ele supunha, mas não eram oito horas e ainda havia luz quando ele chegou ao seu destino. Lunel, como cidade, era surpreendentemente
pequena e pouco desenvolvida, o terreno plano quase todo ocupado por hortas, pouco mais que uma coleção de casinhas novas de estuque margeando uma única rua não
calçada. Stephen subiu e desceu duas vezes essa rua sem encontrar o Chapeau de Paille. Na verdade, as poucas lojas que lá havia em nada se pareciam com uma fábrica
de chapéus. Intrigado e confundido, Stephen ficou um momento parado, enquanto rajadas de vento
levantavam poeira em toda parte, e então foi à agência do correio, que, funcionando na mesma casa de uma épicerie, ainda estava aberta. Ali, em resposta às suas
indagações, ficou sabendo que não havia modista, e positivamente nenhuma fábrica de chapéus, em Lunel.
Com uma expressão curiosa na face, sentado no canto de um bonde quase vazio, Stephen voltou para Nice. O veículo sacolejante deixou-o meio tonto. Teria cometido
um engano estúpido por ouvir mal o nome do lugar que ela lhe tinha dito? Não, estava certo de que ela dissera Lunel, não uma, mas diversas vezes. Não o teria despistado,
inventando aquela desculpa à última hora? Isso também era impossível - ela vinha visitando a irmã de Madame Armande diariamente nos últimos 15 dias. Sua expressão,
se havia, tornou-se ainda mais fixa. Estava bem escuro quando chegou a Carabacel. Tudo tranquilo e deserto no acampamento. Teve um impulso de ir ao seu alojamento
e ver se ela tinha regressado, mas o orgulho e uma sensação de cansaço físico o contiveram. Já tinha se tornado suficientemente ridículo sem fazer uma cena àquela
hora. Entrou no seu caminhão, deitou-se no beliche e fechou os olhos. Tiraria tudo a limpo com ela de manhã.


CAPÍTULO XII

No DIA SEGUINTE, embora acordasse cedo, não a viu até as 11 horas, quando ela apareceu nos degraus do vagão de chinelos e um penhoar de algodão azul e branco. Sentou-se
no primeiro degrau, segurando uma xícara de café. Ele foi até ela.
- bom dia... Como deixou a sua doente?
- Oh, bem melhor.
- Chamou o médico?
- Naturalmente.
- Espero que não tenha sido nada sério.
Ela tomou um gole de café.
- Eu lhe disse que era uma gripe.
- Mas isso não é contagioso? - disse solícito. - Você deve se cuidar.
- Eu me cuido.
- Estou falando sério... venta muito em Lunel. E o bonde demora muito a chegar.
Ela olhou para ele em silêncio sobre a beira da xícara.
- Que é que você sabe de Lunel?
- Estive lá ontem à noite.
Ela o olhou desconfiada, e deu uma risada.
- Não brinque comigo. Você foi ao teatro.
- Não, eu fui a Lunel.
- Por quê?
- Pensei que podia comprar um chapéu. Infelizmente, não pude achar nenhuma chapelaria.
- Aonde é que você quer chegar.
- E também não encontrei nenhuma irmã de Madame Armande.
- Quem diabo você pensa que é, metendo o nariz nos assuntos dos outros? Saindo para me espionar. Seu rato sujo.
- Pelo menos não sou mentiroso.
- E quem é que mentiu? Falei a verdade. Se eu quisesse, poderia ter levado você lá. Onde você andou zanzando ontem à noite, não sei. Mas o lugar existe sim. Além
do mais - ajuntou ela com um toque final - a irmã de madame é viúva; o nome dela não é Armande. E agora talvez você vá cantar noutra freguesia e me deixe tomar o
meu café em paz.
Com o coração batendo como um martelo, Stephen olhou para ela com um misto de raiva e desespero. Sentia que ela estava mentindo - quando a ocasião exigia, ela podia
ser escorregadia como uma enguia. Mas a sua própria veemência era suspeita. Contudo, era até possível que falasse a verdade. Queria com toda a sua alma acreditar
nela. Sempre pronto a imputar a falta a si próprio, ponderou que aquele terrível aperto que sentia no coração poderia tê-lo levado a julgá-la mal. O desejo de reconciliação
apoderou-se dele e o enfraqueceu.
- Eu esperava tanto a nossa noite juntos.. . - murmurou ele.
- Isso não é desculpa.
- Seja como for, vamos esquecer isso.
- Só se me pedir desculpas por ter me chamado de mentirosa. Pede?
Ele hesitou, mordendo nervosamente os lábios, de olhos baixos. Seu orgulho impedia-o de aceitar aquela humilhação por parte dela. Mas a necessidade que tinha dela
tornava-o abjeto.
- Está bem... se quiser. Sinto tê-la ofendido - disse ele, extraindo à força as palavras que o faziam sentir-se desprezível.
Passou o resto do dia dilacerado pela indecisão, desejando estar com ela. Serviu-lhe de algum consolo observar que ela não saíra do acampamento. À noite, retirou-se
para o seu alojamento imediatamente depois do espetáculo. Mas sabia que não poderia continuar daquele modo, isso era impossível; de uma maneira ou outra, precisava
certificar-se.
No dia seguinte, após o almoço, quando ela saiu para a Place Pigalle, ele a seguiu. Ao saber de casos semelhantes, sempre desprezara o marido desconfiado ou o amante
ciumento que espionava a mulher que lhe causava suspeitas. Agora não podia evitá-lo. Mas ele não era nenhum especialista no assunto e, no seu esforço para não ser
visto, perdeu a sua presa no terminal da Pigalle. Contudo, vira que ela tinha tomado um bonde na direção do passeio público, e como outro estava no ponto, embarcou
nele. Em 15 minutos estava diante da costa. Procurou Emmy apressadamente em torno, andou até a esplanada e voltou, contornando o Casino, mas não viu nenhum sinal
dela. Então, como estava indeciso, de repente se lembrou do jeito de Jo-jo ao falar no chá dançante do Negresco. Embora a possibilidade parecesse remota, atravessou
a rua, entrou nos jardins do Musée Masséna e olhou por cima das grades de pontas douradas, através da Rue Rivoli, para o terraço coberto do hotel. Ao lado, sob um
toldo estendido do saguão até uma pequena plataforma com mesas de chá, uma orquestra, escondida entre as palmeiras, executava uma marcha que alguns casais dançavam.
A princípio, pensou que ela não estava lá. Então, por trás do biombo da folhagem, outra parelha saiu para a pista. A moça sorria quando, com um gesto prático, estendeu
os braços para o companheiro, que a enlaçou pela cintura. Deslizaram juntos - Chester e Emmy.
Imóvel, com a face estranhamente inexpressiva, Stephen ficou a olhá-los, observando como se moviam graciosamente. Seus passos combinavam perfeitamente. Quando a
música parou, permaneceram de pé, juntos, e quando o bis começou, prosseguiram sozinhos. Tão perfeita era a sua exibição, que os deixaram monopolizar a pista, e
quando afinal foram sentar-se, receberam um murmúrio polido de aplausos.
Stephen arrancou-se dali, caminhou lentamente para o passeio público e sentou-se num banco do qual podia ver a entrada do hotel. A dor no seu coração era quase insuportável.
Apertava os olhos ao pensar em como ela o havia enganado. Como ela e Chester deviam ter rido juntos com a invenção da chapelaria fictícia, e a sua crença inteiramente
falsa de que ela estava modesta, industriosamente trabalhando com a agulha, quando durante todo o tempo tinha estado com Harry. Madame Armande era inquestionavelmente
outra parceira daquela peça burlesca e tinha sem dúvida espalhado a notícia entre os membros da companhia. Certamente Jo-jo sabia que ele estava sendo um grandíssimo
tolo, embora, por pena, nada tivesse dito.
No entanto, tudo isso não era nada diante da angústia e da amarga fome da alma que agora o possuíam. Maior ainda que a sua raiva e mortificação, era aquela frenética
intensificação dos ciúmes e do desejo. Através da mágoa e da humilhação, ainda a queria; através do ódio, ainda tinha necessidade dela. E sentado ali, com a cabeça
entre as mãos, procurara achar desculpas para racionalizar
a conduta de Emmy. Afinal de contas, ela estava apenas dançando com Harry, e isso decerto não era um crime. Conhecem-se muitos parceiros de dança que não sentem
nada um pelo outro e estão unidos por não mais que um prazer puramente impessoal pela arte.
A música continuou a tocar intermitentemente até as seis horas, e quando a pista esvaziou, ele viu os músicos saírem com os seus instrumentos. Seguiu-se um demorado
intervalo. Com toda a certeza, Harry e Emmy tinha ido ao bar - imaginava-os muito juntos nos bancos altos, Harry à vontade e descansando, na maior intimidade com
o barman.
Demoraram tanto a reaparecer que ele começou a temer que tivessem deixado o hotel por outra saída. Mas, por fim, já quase noite, filas de luzes coloridas se acenderam
na frente e eles apareceram, descendo os largos degraus do pórtico, e se dirigindo para o passeio. Falando junto, animadamente, passaram tão perto que ele poderia
tê-los chamado. Mas manteve os lábios apertados, e quando já estavam uns 30 metros adiante, levantou-se, quase automaticamente, e seguiu-os.
Não foram muito longe. A uma pequena distância do Casino, deixaram o passeio público, tomaram a rua lateral do Marche aux Fleurs, na Cidade Velha, e entraram num
pequeno restaurante - a Brasserie Lutétia. Jantar para dois, pensou Stephen sombriamente, e teve um impulso hesitante, doentio, de entrar e sentar-se na mesa deles
- em vez disso, abotoou a gola do paletó e postou-se na sombra de um portal.
Não muitas pessoas entravam na brasserie - era um desses lugares sossegados, onde se podia ter completa intimidade. Uma vez, um garçom saiu à porta, olhou para cima
e para baixo, como se esperasse fregueses, e entrou novamente. Um gato passou de mansinho pela calçada. Do portal, sobre os telhados no fim da rua, Stephen podia
distinguir a massa escura das montanhas e altos pontinhos de luz que talvez fossem estrelas.
Teve que esperar até depois das nove, antes que eles emergissem. Somente a grande premência da sua necessidade de descobrir a verdade ajudou-o a manter-se naquela
triste e degradante vigília. E o momento se aproximava - um tremor o percorreu ao vê-los em pé sob as luzes da marquise. Com certeza, Chester estava para se despedir,
ou então ia levá-la de volta à Place Pigalle.
Estavam agora falando com o garçom, o mesmo que vira sair com eles, e Harry disse alguma coisa que os fez rir. Um fiacre chegou ruidoso, chamado da fila na praça,
lá embaixo, uma gorjeta foi dada, Emmy e Chester entraram. Rapidamente, ao se afastarem, Stephen andou até a praça, saltou noutra carruagem e disse ao cocheiro que
os seguisse.
Rodaram pelo Mercado das Flores deserto, entraram num labirinto de ruas antigas e viraram para a costa; então, com o coração encolhido, Stephen
viu que eles se dirigiam diretamente para Villefranche. Logo estavam lá. No fim da Rue des Lilas, Stephen mandou o cocheiro parar e pagou a corrida. Mais adiante,
na rua tranquila, viu o outro veículo parar. Ambos os seus ocupantes desceram, desaparecendo no pátio. Agora as duas carruagens tinham sumido, e ele ficara só na
rua deserta. Instintivamente olhou para o relógio - o mostrador luminoso indicava 10:30. Lentamente, andou para o Hotel des Lilas e ergueu os olhos para a sacada
do apartamento de Chester. A luz de um quarto estava acesa, e ele o identificou como o dormitório, podendo ver duas figuras se moverem por trás da cortina amarela.
A luz permaneceu por mais alguns minutos, e depois se apagou.
Quanto tempo ficou ali, olhando tristemente para o apartamento escuro, Stephen não poderia dizer. Por fim, deu as costas e afastou-se.


CAPÍTULO XIII

VOLTOU À PLACE CARABACEL antes da meia-noite. Através da dor surda que sentia na testa, sabia que deveria ir embora. Metodicamente, sem perturbar Jo-jo e Croc, ambos
adormecidos, reuniu os seus pertences na mochila. Amarrando as telas juntas, prendeu-as nas costas e, com um último olhar para os seus companheiros, saiu na sua
bicicleta. Dirigiu-se para o norte, pedalando velozmente na estrada plana que levava a St. Agustin, com a vaga intenção de pegar a route nationale que finalmente
o levaria a Auvergne. Sentia necessidade de estar com Peyrat - devia ter feito aquilo semanas antes. Mas sobretudo era premido pelo desejo de escapar, de obliterar
da memória aquelas últimas e intoleráveis semanas.
Quase pela manhã, desmontou, estendeu-se num espaço da charneca à beira da estrada e fechou os olhos. Não pôde dormir, mas, tendo descansado até que o sol despontara,
pôs-se novamente em marcha. E agora via pela sinalização que não estava na grande route, mas numa estrada secundária que corria entre as gargantas rochosas do Var
e subia serpeando para Touet e Colmars. Todavia, não quis desandar caminho. Todo o dia e no seguinte trabalhou nos pedais, mais do que a sua força lhe permitia,
no esforço para esquecer. Em Entrevaux, entrou erradamente numa estrada secundária, mais inclinada, que coleava para as montanhas através de um pinheiral. A pavimentação
era má, o progresso ali era mais difícil, havia um opressivo fragor de água se despejando
à medida que a torrente estrondeava sobre o seu leito de pedregulhos; contudo, o estranho medo de voltar mantinha-o tocando para a frente, comendo às pressas quando
podia, dormindo no chão nu, atrás de montes de feno, em estábulos desertos, com a sua capa dobrada como travesseiro. Uma aversão mórbida a qualquer contato humano
afastava-o das mais humildes estalagens.
O tempo piorara, e entre as colinas era úmido e nevoento. Na manhã de domingo, chegou a Annot, uma cidadezinha agrícola construída num planalto, com um vento frio
soprando dos Alpes. Sabia que era domingo pelo repicar dos sinos da igreja e pelo desfile de habitantes sérios, vestidos de preto, que olhavam para ele com desconfiança.
Doente de fadiga e esgotado como estava, essa hostilidade todavia o atingiu, e embora tivesse uma desesperada necessidade de tomar um café quente e pensasse em se
deter ali, não o fez, baixando a cabeça sobre o guidom e pedalando para fora da cidade. A chuva começou a cair. Ele foi obrigado a descansar. Ao desmontar, quase
caiu da sua máquina. Acocorado debaixo de uma cerca gotejante, comendo os restos de comida fria que tinha comprado na noite anterior, sentia-se inteiramente sem
lar, sem um lugar ou abrigo, irreal e desligado como um fantasma.
A chuva não parou, mas ele continuou, agora mais devagar do que antes e com uma falta de fôlego que o obrigava a desmontar nos aclives mais fortes. Seu nariz começou
a sangrar intermitentemente, e embora atribuísse o fato à altitude e lhe desse pouca atenção, era uma sensação esquisita o sangue a refluir quente sobre a sua garganta.
Cerca do meio-dia, começou a sentir-se extremamente indisposto, e, através do entorpecimento que o oprimia, penetrou-lhe um raio de razão. Nunca chegaria a Auvergne
daquela maneira, era loucura continuar; devia procurar uma estrada de ferro ou algum centro próximo sem demora. Desdobrando o seu mapa em grande escala, e protegendo-se
com a sua capa gotejante, viu que, atalhando para oeste, por Barréme, podia alcançar o entroncamento de Digne, não mais que 35 quilómetros além. Digne talvez não
fosse grande, mas ficava numa planície, o que lhe permitiria escapar destas montanhas impossíveis.
Tomou pelo atalho. Era escabroso, mais difícil do que antes, coberto de um cascalho áspero que fazia os seus pneus saltarem e derraparem. Tinha menos força do que
antes nos aclives, e com o esforço adicional seu nariz recomeçou a sangrar. O céu lá adiante era baixo e encoberto, a chuva aumentava rapidamente, e dali a pouco
um dilúvio desabou sobre ele. Ensopado, na escuridão que descia rapidamente, alarmou-se, acendeu com dificuldade a sua pequena lanterna de carbureto e novamente
consultou o mapa.
Não tinha examinado a folha por mais de um minuto, quando um gemido se lhe escapou. Oh, Deus... que tolo... que idiota cego e insensato. Acompanhando com o dedo,
viu que estava no caminho errado. Lá atrás, em
St. André, a curva devia ter sido para a esquerda, não para a direita. E agora examinou o sinal, route acidentés, fort montée, isolée - encontrava-se num beco sem
saída que levava direto acima, ao Col d'Allos.
Um ataque de nervos, quase de pânico, sacudiu-o. Aproximou mais o mapa. Devia haver alguma espécie de aldeia na vizinhança. Então, com alívio, decifrou o nome de
St. Jérõme. Era aparentemente um povoado, mas por sorte estava cercado por uma Cruz de Lorena vermelha, indicando a presença de uma hospedaria arrolada pelo Touring
Club da França como oferecendo acomodações para ciclistas e onde ao menos poderia achar abrigo para a noite. Se não estava completamente perdido, devia alcançá-la
em uma hora.
Pedalou, curvado, contra o vento. O gosto de sal na sua boca aumentou, e passando o lenço nos lábios sentiu que estavam inchados e flácidos. Suas pernas não mais
lhe pertenciam, um martelo batia na sua cabeça, mas quando sentiu que não podia avançar mais, viu tremeluzir, no socavão adiante, um grupo de luzes.
Ficaram mais próximas: uma grande construção cercada por casas menores tomava formas indistintamente, lá embaixo. Completamente esgotado, deixou a sua bicicleta
rodar e subiu aos tropeções a trilha para a primeira casa
- parecia a choupana de um trabalhador. Suas batidas permaneceram sem resposta por um interminável intervalo, e então a porta foi aberta por uma criancinha que ficou
olhando para ele e depois voltou-se e correu. Ele entrou num corredor, ouvindo vozes numa peça dos fundos da casa. Respirava irregularmente, e embora estivesse ensopado,
morria de sede. Devem receber-me, pensou, vou adoecer... aliás, já estou desgraçadamente doente.
Um trabalhador de camisa azul dirigiu-se para ele, seguido de uma mulher com uma lâmpada Argand e, atrás dela, a criança. Ele viu os seus rostos sobressaltados através
do nevoeiro que passava.
- Sinto muito. - com terrível dificuldade, como se do fundo de um poço, pronunciava as palavras. - Perdi o caminho. Podem me receber?
- Mas monsieur...
- Por favor... posso me sentar?... uma bebida.
Antes que ele pudesse falar outra vez, o homem chegou mais perto, sacudindo excitadamente o braço.
- Não aqui - disse. - O senhor deve continuar.
- Deixe-me ficar. - Novamente o terrível problema da articulação. Não posso continuar.
- Não, não... mais adiante.. . não aqui.
O homem segurou-o pelo ombro e levou-o para fora da casa. Julgando que estava sendo enxotado para a estrada, incapaz de resistir ou sequer protestar, tomado de uma
desesperança final, sentiu uma ardência nos olhos, e então, ao chegarem ao portão, percebeu que o homem não o tinha soltado,
mas o ajudava, amparando-o por um corredor rua abaixo. Na verdade, ao avançarem, ele murmurou algumas palavras de encorajamento:
- Está vendo? Não é longe... estamos quase lá.
No fim, alcançaram a grande construção. Havia árvores de espessa folhagem em ambos os lados. O homem puxou a corda de uma sineta e, após um momento, abriu-se uma
grade na porta tacheada. Seguiu-se uma breve conversação e depois ele foi admitido num pequeno saguão caiado, com um chão de pedra nua e bancos lustrosos junto às
paredes.
À beira do colapso, Stephen olhou em torno, tonto. Tudo estava fora de foco. Todas as linhas do saguão corriam juntas e depois se afastavam, como círculos num lago.
Até o porteiro que o deixara entrar parecia fantasticamente indistinto, vestido num paletó comprido e com capuz que lhe dava um aspecto de mulher. Outro homem, ou
mulher, tinha aparecido. Então, imediatamente, todas as linhas se dissolveram. O trabalhador da choupana, voltando-se para esse recém-chegado, retirou atabalhoadamente
o braço que o amparava. Stephen caiu de rosto para baixo, com o embrulho de telas molhadas ainda amarrado às costas.


CAPÍTULO XIV

O SOL DA MANHÃ, incidindo na única e funda janela à cabeceira da tarimba armada sobre cavaletes, acordou-o. Ele deixou-se ficar passivamente, o olhar percorrendo
os poucos objetos da pequena ermida da qual, durante as últimas três semanas, tinha se tornado íntimo e familiar - a solitária cadeira de assento empalhado, o armário
provençal, o genuflexório de madeira num canto, o crucifixo preto na parede branca. Especulativamente, examinou a sua mão, levantando-a contra a luz, achando os
dedos ainda brancos, mas talvez menos translúcidos do que na véspera. Esse era um teste que ele fazia todas as manhãs. Passos leves, rangendo no corredor coberto
de areia, fizeram que ele, sem querer, movesse o corpo e voltasse a cabeça. Estava olhando para a porta quando ela se abriu e o enfermeiro entrou, trazendo o seu
desjejum numa bandeja.
- Como dormiu?
- Muito bem.
- A nossa cantoria não o perturbou?
- Não, agora já estou acostumado.
- bom - disse Dom Arthaud, depondo a bandeja.
Tirou um termómetro dos recessos do seu hábito branco, sacudiu-o e, com um sorriso, colocou-o entre os lábios de Stephen. - Isto não é mais necessário. Mas como
você vai se levantar hoje, queremos ter certeza.
Era um homem de uns 50 anos, de estatura média, vigoroso, ombros quadrados, com uma cara grande e agradável, ligeiramente azulada em torno do queixo, e inteligente,
de olhos castanhos com óculos, a cabeça raspada e tonsurada; usava sandálias de tiras nos pés nus. Ao cabo de um minuto, retirou o termómetro, leu-o e, com um aceno
tranquilizador, puxou a cadeira com a bandeja para junto da cama.
- Não esqueça o seu remédio.
Depois de tomar, com um canudinho de vidro, o líquido escuro de sabor metálico, Stephen começou o seu desjejum - uma caneca de café au lait, manteiga fresca numa
tigela de barro, pão cortado em fatias e frutas. O café com leite estava quente, cheirando a chicória. Depois de molhar o pão na caneca, Stephen olhou compungido
para o que estava em pé - ele nunca sentava-se na extremidade da cama.
- Por que não come comigo? Aqui há mais do que suficiente para dois.
- De modo nenhum. Fazemos a nossa refeição ao meio-dia.
- Mas... isto está muito gostoso.
O enfermeiro sorriu alegremente.
- Sim... a nossa comida é perfeitamente horrível. Mas estamos habituados a ela. E depois, não estivemos doentes.
Stephen apanhou outra fatia de pão.
- Isso é que eu estava querendo lhe perguntar. Que foi exatamente que eu tive? O senhor nunca disse.
- Você teve uma inflamação dos pulmões... por exposição à intempérie. Além disso, fez um esforço demasiado grande. Como resultado, teve a complicação de uma hemorragia.
Muito grave.
- Pensei que o sangue fosse do nariz.
- Não, era dos pulmões. - Fez uma pausa, olhando por cima dos óculos de aros metálicos. - Já teve algo parecido antes?
Stephen refletiu um momento, depois abanou a cabeça.
- Tive um resfriado há alguns meses. Bronquite, imagino. Mas podia ter sido por causa disso.
O enfermeiro baixou os olhos.
- Eu não poderia responder. Não sou médico.
- Mas o senhor me salvou desta muito bem.
- Com a ajuda de Deus.
- E muita habilidade. Não acredito que o senhor não seja qualificado.
- Estudei medicina em Lions com o Professor Rolland. No último ano, assim como você foi chamado para ser um pintor, recebi o chamado para ser um monge.
- Muito afortunadamente para mim.
Dom Arthaud inclinou a cabeça, e então, quando Stephen terminou, apanhou a bandeja. Na porta, fez uma pausa.
- Não se levante ainda. Esta manhã, o Reverendo Prior vem visitá-lo. Quando ele saiu, Stephen recostou-se, com as mãos cruzadas atrás da cabeça. Ainda se sentia
atrozmente fraco. Contudo, quase já não tinha tosse e nem sentia mais aquela pontada aguda do lado. Como era bom o sol no seu rosto - a atividade da convalescença
começava. Não se preocupava com a sua situação. A persistência do enfermeiro em tirar-lhe a temperatura de manhã e à noite não era palpavelmente mais do que uma
rotina. Na verdade, imaginava, calmamente, se a sua doença, com aquele estranho depauperamento, não teria sido peculiarmente oportuno. Já ouvira falar de sangria
como remédio para a febre. Pelo menos sentia-se curado daquelas dores cruciantes que tão intoleravelmente o atormentavam.
Olhando para trás, admirava-se de que, durante todos aqueles meses, tivesse permanecido naquele estado de tamanha sujeição, aniquilado por uma única palavra, arrastando-se
pelo favor de Emmy. A simples ideia daquilo fazia-o estremecer. Rejubilava-se em ser ele mesmo outra vez, e jurou que jamais se submeteria a semelhante escravidão
- na verdade, foi mais longe, e fez um voto solene de que no futuro nenhuma mulher participaria da sua vida. Somente o seu trabalho o interessaria agora, e a ele
se aplicaria com rigorosa autodisciplina.
Às 11 horas chegou o seu visitante. O Prior, uma figura alta e imponente, na sua vestimenta branca encapuzada, sentou-se tranquilamente na cadeira e estudou Stephen
com grave reflexão.
- Então, afinal vai sair da sua cama, meu filho. Alegro-me.
- E eu estou agradecido - murmurou Stephen. - Foi sorte minha encontrar a sua cruz no meu mapa.
- É verdade que temos uma cruz. Mas não figuramos no mapa - disse o Prior com um leve sorriso. - Aquela marca é para uma hospedaria de ciclistas no vale vizinho.
Você se extraviou no caminho, meu filho. Ou, desde que a Providência o trouxe aqui, poderíamos dizer que o achou?
Uma esquisita inflexão na voz do Prior trouxe uma ligeira cor ao rosto pálido de Stephen. Teria deixado escapar alguma coisa a seu respeito nos primeiros dias da
doença?
- De qualquer maneira - respondeu ele - já era tempo de eu ficar bom. Dei-lhe um grande trabalho. Os senhores devem estar querendo se livrar de mim.
- Ao contrário, você é muito bem-vindo aqui. Sofreu um grande abalo, e Dom Arthaud acha que antes de várias semanas não estará apto para viajar.
- Mas... receio que não possa pagar.
- Nós lhe pedimos o seu dinheiro, meu filho? Aliás, quem o esperaria de um artista que luta? Fique conosco por uns tempos. Sente-se ao sol no jardim. Quando estiver
mais forte, a vida terá um aspecto diferente. Será capaz de enfrentar melhor o mundo.
O Prior pousou delicadamente a mão no braço de Stephen, e então levantou-se e saiu.
Stephen teve que se esforçar para reprimir as lágrimas dos olhos. Levantou-se. Suas roupas, lavadas e cuidadosamente dobradas, estavam no armário, com os seus outros
pertences. O dinheiro, cerca de 30 francos, achava-se numa pilha precisa ao lado do seu relógio, que estava funcionando; ele adivinhou que lhe tinham dado corda
todos os dias. Depois de se vestir, deixou o quarto e andou ao longo de um corredor estranho, lajeado de pedra, que o levou ao jardim, nos fundos.
Não era um recinto grande, umas poucas trilhas em torno de roseiras separadas, que levavam a uma gruta com uma estátua no fundo. Um muro de andebol quebrava o contorno
da cerca em volta. Além, alguns campos. Por suas conversações com Dom Arthaud, Stephen soubera que, graças à doação de uma pequena casa de campo, a comunidade, devotada
à instrução de cerca de 20 noviços, tinha sido recentemente estabelecida e estava crescendo unicamente devido aos esforços dos próprios monges, que haviam construído
com as suas mãos a pequena capela contígua à antiga mansão. Podia vê-la agora, branca e um tanto grosseira, aprumando-se contra o céu lanoso.
Após ter andado pelas trilhas, foi obrigado a descansar num dos bancos que flanqueavam a quadra de andebol. Um velho, com o hábito castanho de irmão leigo, estava
ordenhando uma vaca no pasto. Dali a pouco, começou um ofício na capela, e o cantochão, carregado pela brisa suave, era mais do que ele podia suportar. Levantou-se
e arrastou-se para o seu quarto.
Lá, encontrou uma carta, colocada bem à vista no peitoril da janela. Uma semana antes, sentindo-se terrivelmente só, soerguera-se no travesseiro e garatujara umas
linhas ao morador do nº 15 da Rue Castel, pedindo-lhe que remetesse qualquer correspondência que chegasse para ele àquele endereço. Este era, presumivelmente, o
resultado. Rasgou o envelope. Era de Stillwater, uma breve nota escrita havia dois meses.
CARO STEPHEN
Não sei se esta lhe chegará às mãos. Se chegar, é para informá-lo da morte de Lady Broughton, em outubro. Isso não foi inesperado. Algumas semanas antes, o noivado
de Claire e Geoffrey fora anunciado. Vão casar-se muito em breve. Não há outras notícias de importância para lhe dar, a não ser que papai
continua muito triste com a sua ausência. Suplico-lhe que volte e aceite suas responsabilidades como filho obediente.
Sua, Caroline.
Ainda com a carta na mão, Stephen sentou na cama. Em outros tempos, aquela notícia de casa não o teria afetado tão profundamente. Sabia da doença de Lady Broughton,
e seu amor por Claire nunca tinha sido mais que uma afeição fraternal. Contudo, aqui, neste ambiente estranho e remoto, abatido pela doença, a morte de uma e o próximo
casamento de outra - com Geoffrey, entre todos os homens! - parecia aumentar a sua sensação de exílio, cortá-lo mais fundamente de toda aquela vida agradável que
normalmente ainda seria sua. O tom da carta de Caroline, breve, cheio de calada amargura e implícitas censuras pelo que poderia ter sido, fazia-o mais do que nunca
sentir-se uma criatura à parte, cuja própria natureza o punha em conflito com a família, a pátria e a sociedade.
Com o decorrer das semanas, ele ficava mais forte. A região em torno, coberta de pinheiros baixos, sem beleza e sem qualidade, dava-lhe pouco incentivo para sair
do recinto. Fez amizade com os dois filhos de Pierre, o trabalhador da choupana que o trouxera ao mosteiro, levava-os encarapitados no selim da sua bicicleta. Ajudava
o velho Irmão Ludovic na horta, jogava andebol com os noviços na hora do recreio. Eram um alegre grupo de jovens, recrutados principalmente em boas casas burguesas
em Garonde e nas cidades vizinhas. Talvez por ele ser um estranho, e de uma raça diferente, eles se davam ao trabalho de lhe dedicar pequenas atenções matizadas
de um espírito de proselitismo que, embora o deixasse insensível, comovia-o e divertia-o. Seus corações estavam naquela nova pequena comunidade, e quando não mergulhados
em oração, entregavam-se sem poupar-se ao duro trabalho manual nos seus esforços para melhorá-la.
Um dia, no jogo de andebol, fizeram-lhe uma observação, meio rindo, meio sérios.
- Monsieur Desmonde... Uma vez que o senhor é um artista, por que não pinta um belo quadro para a nossa igreja?
Stephen, com a atenção presa, olhou para o proponente.
- E por que não? - respondeu com um ar sério.
A ideia, que não lhe ocorrera, pareceu-lhe um admirável meio de expressar a sua gratidão, de dar alguma retribuição tangível pela bondade que tinha recebido. Além
disso, a vadiagem forçada começara a pesar-lhe.
Nessa mesma tarde, conversou com seu amigo Dom Arthaud, que recebeu a sugestão calorosamente e prometeu falar com o Prior. A princípio, o Prior hesitou. A capela,
embora reconhecidamente inacabada por dentro,
era o produto de um prolongado e árduo esforço e cara ao seu coração. Seria sensato colocar aquela prezada e duramente ganha possessão nas mãos de um pintor desconhecido,
cujas poucas telas, embora estranhamente compulsivas, não davam indicação de competência ortodoxa? No fim, a fé, que era o sustentáculo da sua existência, moveu-o
a uma decisão. Mandou chamar Stephen.
- Diga-me, meu filho, o que pretende fazer.
- Gostaria de pintar um afresco acima do altar, na parede de fundo da abside.
- Tema religioso?
- Naturalmente. Pensei na Transfiguração. Iluminaria toda a capela.
- Você está certo de que poderia produzir algo que aprovássemos?
- Eu tentaria. Não tenho tintas nem pincéis bastante largos. O senhor teria que arranjá-los para mim. Teria que confiar em mim. Se o fizer, prometo dar o melhor
de mim.
Na manhã seguinte, dois dos padres partiram para Garonde, voltando à tarde com vários pacotes embrulhados em papel pardo. Nesse meio tempo, os noviços tinham armado
um andaime atrás do altar. Cedo, no dia seguinte, com aquele alvoroço que sempre sentia ao começar um novo trabalho, Stephen pegou o seu pincel.
Contudo, o seu estado de espírito era muito insólito. De corpo relaxado, não de todo livre da lassidão da convalescença, parecia banhado de um fofo langor. Suas
emoções ainda eram instáveis, a umidade lhe vinha prontamente aos olhos. O ambiente da capela, a entonação dos monges, a sensação de estar separado do mundo induziam
nele emoções inteiramente alheias à sua natureza. Embora não dispusesse de modelos, o trabalho tomou corpo com uma surpreendente facilidade, para quem estava acostumado
a um esforço sobrehumano nas primeiras horas de criação. Já tinha esboçado a figura central do Senhor, vestido de trajes brancos, radiante com uma nuvem de luz,
e começava a traçar as feições de Moisés e Elias.
Ao progredir com tamanha facilidade, experimentou esquisitos momentos de desconfiança, imaginando-se, em vez de projetar as suas próprias ideias, não estaria reproduzindo
inconscientemente uma compósita de primitivos pintores religiosos. Aplicadas em têmpera, as suas cores, usualmente tão duras, eram macias e lisas, suas formas pareciam
perturbadoramente convencionais. No entanto, contra essas dúvidas, crescia a aprovação da comunidade.
No começo, fora olhado com ansiedade, talvez até com desconfiança. Mas logo isso deu lugar a uma franca admiração. Às vezes, ao voltar-se no andaime para limpar
os pincéis, observava nos olhos de algum noviço que tinha vindo ostensivamente para rezar, mas na verdade para incorrer no pecado da distração, um olhar de perfeito
transe. Aquilo não era suficientemente tranquilizador? E, afinal de contas, ele não se comprometera a agradar?
O afresco, ocupando todo o espaço acima dos retábulos, ficou terminado em três semanas, e quando o andaime foi retirado, toda a comunidade reunida olhava-o com aclamação.
- Meu filho - disse o Prior a Stephen - agora sei que a sua vinda aqui foi providencial. Deu-nos um memento da sua estada que durará muito além da existência de
todos nós. Agora somos nós quem lhe devemos muito. - E continuou: - Amanhã celebraremos a Missa Solene para consagrar a sua obra. Embora não seja membro da nossa
fé, espero que nos agrade com a sua presença.
Na manhã seguinte, o altar estava enfeitado de flores, chamejante de velas. O Superior, em paramentos brancos, assistido por Dom Arthaud, cantou a Missa, enquanto
o coro entoava as respostas. Para Stephen, sentado na galeria, a pintura, brilhando à luz dos círios, tornada mística por uma nuvem de incenso, parecia uma esplêndida
realização. Nunca antes tivera tamanho sucesso.
Um repasto especial foi servido após a cerimónia, com um vinho da região de tal vigor que Stephen deu um passeio à aldeia para clarear a cabeça.
À tarde, quando voltava, Dom Arthaud o recebeu à porta com uma curiosa expressão.
- Há um visitante que deseja vê-lo. Um cavalheiro que diz ter vindo para levá-lo de volta a Paris.
Stephen entrou no seu quarto. Lá, reclinado na cama, usando chapéu e paletó, e soprando furiosamente no seu cachimbo, estava Peyrat. Pulou imediatamente quando Stephen
entrou e beijou-o em ambas as faces.
- Que é que andou fazendo? Não uma, mas uma dúzia de vezes procurei alcançá-lo. Agora, por casualidade, consegui o seu endereço na Rue Chancel. Por que está enterrado
aqui?
- Estive pintando - sorriu Stephen, ainda vibrando com a inesperada presença de Peyrat.
- Sorte ingrata - disse Peyrat, com fingida braveza. - Enquanto eu esperava, me arrastaram para a igreja. Que coisa terrível essa que você fez, cher ami. Oh, que
miserável cópia de del Sarto. Que terrível refundição de Luini. Embora eles gostem e vão se ajoelhar diante daquela pintura durante séculos, é indesculpavelmente
chocante, e para você, especialmente neste momento, uma desgraça.
- Por que neste momento? - perguntou Stephen, um tanto desconcertado.
- Por causa do anúncio feito no mês passado, e que me fez caçá-lo por toda a França.
- Que diabo está querendo dizer?
- Um anúncio - continuou Peyrat imperturbável, rolando as palavras
na língua como se gostasse do seu sabor - que lhe colocava uma medalha no peito, 1.500 francos no bolso e ainda nos permitirá, espero, fazer uma viagem juntos à
Espanha.
Subitamente atirou os braços em torno de Stephen e mais uma vez o abraçou.
- Não se importe com a sua doença, ou aquele medonho Moisés e Elias. A sua Circe ganhou o Prix de Luxembourg.


CONTINUA

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

DOVER, NA CHUVA, era uma triste porta dos fundos para fugir da Inglaterra. Quando o navio de carreira deixou o porto sujo, as ruas enlameadas, os edifícios amarelos
da encosta, os rochedos de um branco encardido, tudo mergulhou igualmente num dilúvio cinzento.
Na terceira classe, o espaço limitado estava abarrotado de passageiros, e Stephen, deixando aquele ar pesado de umidade e ruidosa camaradagem, voltou para o convés
molhado e atravancado de cabos. Ficou solitário na popa, abrigando-se, o melhor que podia, atrás da lona que cobria um guincho, com os olhos na costa amorfa, os
pensamentos tão equilibrados entre a amargura e a tristeza que fixavam nele uma atitude de completa imobilidade.
Dali a pouco foi sentar-se num braço do guincho, indiferente ao balanço do navio, ao vento e aos esguichos que assobiavam junto daquela ligeira proteção; tirou do
bolso o seu bloco de esboços. Era um movimento reflexo, um grito do coração. Contudo, uma vez que o seu lápis começou a andar pelas páginas agitadas na beira pela
ventania, perdeu-se, desenhando, com grande rapidez, fases do mar agitado, ondas estranhas e pressagas, a que ele insuflava uma qualidade de vida, vendo nos seus
contornos rotos, no laço intrincado das suas cristas, selvagens rostos humanos, cabeças atormentadas e torsos retorcidos, figuras de homens e de monstros, de cabelos
escorrendo e membros contraídos, tudo perdido e arrastado pela invencível força do mar.
Foi talvez uma espécie de loucura, uma vertigem, que o deixou amolecido e exausto. Tiritava quando o vapor diminuiu a sua marcha arfante para entrar cautelosamente
nos braços do quebra-mar de Calis, e, consciente do seu rosto gotejante e roupas ensopadas, guardou o bloco no bolso com um ar furtivo. Cabos eram lançados, pranchas
de desembarque empurradas, a douane era rapidamente passada. Mas algum ligeiro acidente na linha tinha atrasado o trem para Paris, que ainda não chegara.
Stephen tiritava novamente, batendo os pés sobre a plataforma a fim de restabelecer a circulação. Embora a chuva fosse menos impiedosa em terra, o vento, enfiando-se
pela curva dos trilhos, parecia mais violento, mais cortante. A maioria dos seus companheiros de viagem estava aproveitando o atraso para um almoço à la carte no
restaurante da estação. Mas, diante de um
futuro de completa incerteza, um exame mais detido do estado das suas finanças absteve-se desse luxo. Tinha, para ser preciso, 5 libras e 6 xelins, tudo que lhe
restava das 10 libras que trazia consigo quando chegara a Stillwater.
Por fim, o trem entrou resfolegando; após várias conferências e muita gesticulação, apitos agudos, jatos de vapor, e as notas melodiosas de uma trompa, a marcha
foi invertida e o vapor esguichou novamente. Para Stephen, encolhido no canto de um compartimento ventoso, foi uma viagem miserável. Tiritava frequentemente, sabia
que tinha apanhado um resfriado, e acusava-se de ter sido um tolo.
Na Gare du Nord hesitou, e então, aceitando o risco, e não sem uma certa recordação melancólica da sua prévia entrada na cidade de coração leve, tomou o metro para
a Rue Gastei. No seu presente estado de espírito ansiava, acima de tudo, pela simplicidade e firme amizade de Peyrat. Mas o novo inquilino do apartamento, incompreensivo
e desconfiado, apareceu na porta, respondendo que não havia cartas nem recados... acreditava que Monsieur Peyrat estaria no Puy de Dome, em Auvergne, até o fim do
ano, e além disso não sabia mais nada.
Os passos seguintes de Stephen levaram-no ao estúdio de Glyn. Estava fechado. Do mesmo modo, o pavilhão dos Lamberts, com as janelas fechadas, foi uma nova decepção.
Stephen voltou para o alojamento de Chester. Embora não tivesse acertado exatamente o montante da dívida, sabia que Harry, com seus repetidos pedidos de empréstimo,
devia-lhe pelo menos umas 30 libras, soma que agora adquiria uma importância muito maior do que antes. Mas também aquele quarto estava fechado, aliás, trancado com
um cadeado. Todavia, ao descer as escadas, foi reconhecido pelo concierge e obteve dele o atual endereço de Chester, enviado num cartão-postal recebido dois dias
antes: Hotel du Lion d'Or, Netiers, Normandia.
Animado, Stephen entrou no primeiro bureau de poste e passou um telegrama, explicando a sua situação e pedindo que Chester lhe mandasse por cheque telegráfico, se
não todo, ao menos parte do dinheiro que lhe devia, aos cuidados de Adolf Bisque na Rue Castel. Quando a moça de blusa de alpaca atrás do guichê terminou, a tinta,
uma soma complicada, um processo que a ocupou durante alguns minutos, Stephen pagou e dirigiu-se para o DuvaPs, onde pediu chocolate quente e um brioche.
Depois dessa ligeira refeição, como a chuva caísse mais forte e as sarjetas transbordassem, ele decidiu encontrar, o mais depressa possível, um alojamento para a
noite. Por causa da sua conveniência, e não na esperança de encontrar conforto, ficou num hotel barato das proximidades, a Pension de
l'Ouest, diante da qual passara tantas vezes a caminho do estúdio de Glyn.
Alcançado por escadas sem passadeira, seu quarto não era mais que um estreito, cubículo, mas era seco, e a cama, embora os lençóis estivessem encardidos,
tinha uma ampla provisão de cobertores estampados de azul - aqueles cobertores grosseiros usados pelos recrutas durante as manobras do Exército e vendidos depois
pelos contratantes do governo. Após alguns tremores iniciais, aqueceu-se e dormiu pesadamente. Na realidade, ao acordar na manhã seguinte sentia-se melhor, embora
não se surpreendesse com a tosse, agora piorando. Tomou café com um pãozinho, outra vez no DuvaTs, às 11 horas, e dirigiu-se para a loja de Monsieur Bisque.
Ali o esperava uma agradável surpresa. O pasteleiro recebeu-o cordialmente, com a sua cara de lua cheia enrugada de sorrisos, e, tendo repreendido Stephen por não
o ter visitado no dia anterior, apresentou com modos de prestidigitador o telegrama de resposta de Chester. Este, embora não trouxesse dinheiro, era de natureza
a animar o seu destinatário.
DELICIADO SEU TELEGRAMA. VENHA PARA CÁ. TEMPO E HOTEL EXCELENTES. BELO LUGAR PARA PINTAR. ABRAÇOS
HARRY
A perspectiva aberta por aquele amistoso convite, a ideia de estar com uma paleta e pincéis, diante de um cavalete, na Normandia, fazia brilhar os olhos de Stephen.
Bisque tinha um guia que, embora de páginas esfarrapadas e um tanto antigas, parecia provar que o rapide Granville, o trem mais ou menos direto, já tinha partido
- às 10 horas, para ser exato, daquela manhã. Stephen decidiu adiar a viagem até o dia seguinte. Passou à tarde na loja de Napoleon Campo, onde, além de receber
o cavalete e equipamento lá depositados, comprou novos tubos de tinta e algumas telas. Pagou a metade, 50 francos, e prometeu mandar o restante quando chegasse a
Netiers.
A manhã seguinte trouxe um límpido céu azul, e Stephen saiu com os seus pertences para a estação de Montparnasse. O rapide na Plataforma 2 não estava muito cheio
e ele conseguiu, sem dificuldade, um compartimento vazio na parte dianteira do vagão. Ao partirem, não podia afirmar que se sentia bem, pois experimentava uma sensação
de abafamento, com uma pontada no lado direito. Apesar disso, depois que o trem furou o seu caminho através dos túneis e cortes murados e escuros que davam saída
da cidade, perdeu a lassidão, olhando a paisagem em desfilada: vastos campos de restolho com poças de água da chuva, flanqueados por longas fileiras de olmos - sentinelas
intermináveis; uma agulha distante, delgada, graciosa; parelhas de grandes cavalos, com corvos assistentes, arrastando o arado; velhas construções rurais, de telhas
ocres, as empenas salpicadas de anúncios - Byrrh, Cinzano, Dubonnet.
Ao meio-dia, comeu uma maçã e uma barra de chocolate. Gradualmente, a configuração do terreno havia se alterado. Lutando contra a sonolência, ele
notou as azinhagas ondulantes e pequenos pomares cercados, um bando de gansos em lenta procissão para um lago lodoso, seguido de uma menina de pernas nuas com uma
vara de aveleira, um renque de salgueiros podados cercemente, e depois uma dama idosa, de coifa branca, tangendo uma vaca pela relva da beira da estrada, parando
de quando em vez para tricotar. Até a natureza da bebida tinha mudado. Attendez, exclamavam os anúncios, buvez le cidre moissoné!
Cerca de três horas, o trem alcançou o topo de um longo aclive e entrou na pequena estação de Netiers. Apressadamente, Stephen reuniu as suas coisas e pulou do alto
estribo. Uma rápida inspeção mostrou que Harry não estava lá para recebê-lo. Raciocinando que Chester podia não ter calculado bem a hora da sua chegada, Stephen
começou a andar para a cidade, que se podia avistar mais abaixo da colina, coisa de um quilómetro. A expectativa, ao se aproximar, aumentava a sua ansiedade - passou
um muro valado com fortificações, entrou nas ruas tortuosas, de paralelepípedos, tão estreitos que as casas de pedra cinzenta, muito inclinadas, pareciam estar acima
da sua cabeça. E então, no centro da praça do mercado, em frente à fachada de terracota desbotada do antigo hotel de ville, discerniu a tabuleta dourada do Lion
d'Or.
A estalagem era maciça, solidamente confortável, de alta classe. Stephen percebeu isso de relance, ao se dirigir para o balcão de recepção situado no vão de uma
escada de carvalho.
- Sim, monsieur!
- Meu nome é Desmonde. Tenha a bondade de dizer ao Sr. Chester que acabo de chegar.
Uma pausa.
- Está perguntando por Monsieur Chester?
- Sim. Ele me espera.
O empregado, um rapaz de ombros altos e cabeça rapada, estudou Stephen por um momento e depois disse:
- Tenha a bondade de aguardar, cavalheiro.
Desapareceu por trás da cortina que fechava o fundo do bureau; então, após um breve intervalo, voltou com um homem mais velho, uma figura sólida, de pescoço grosso,
vestido com a roupa listrada da profissão.
- O senhor está procurando Monsieur Chester Harry? O tom, embora cortês, tinha uma qualidade intimidante.
- Sim, por quê? Sou amigo dele. Ele não está hospedado aqui? Uma pausa gélida.
- Ele estava residindo aqui, monsieur. Até ontem à tarde, quando apresentamos a sua conta. Desde esse momento não vimos mais o seu famoso Monsieur Chester.
Stephen olhou para o proprietário, estupefato. Pois não viera por convite expresso de Harry, gastando o seu último soldo na passagem de trem? E de súbito lhe veio
uma ideia, contundente como um golpe. Chester, mais uma vez em apuros financeiros, convidara-o a vir somente na esperança de pedir-lhe mais uma quantia emprestada.
- Se monsieur é realmente Monsieur Desmonde - o sarcasmo era cortante - eis aqui uma carta que seu amigo lhe deixou.
MEU VELHO,
Eles podem não lhe entregar esta. Se entregarem, saberá que, com muito pesar, fui obrigado, encore, a cair fora. Pensei que podíamos resolver o caso juntos - baseados
no princípio de que duas cabeças pensam melhor do que uma - mas o departamento de contabilidade daqui estava um passo à minha frente. Provavelmente vou filar minha
viagem para o Sul, ficar um tempo em Nice, tentar a sorte nas mesas: De qualquer modo, eu com certeza o verei mais cedo ou mais tarde... Sinto muitíssimo e todas
essas coisas... mas quando o diabo aperta...
Seu,
HARRY
P.S. Nenhuma mulher decente na cidade. Mas não deixe de provar a sidra local. É excelente.
Stephen amarrotou o bilhete, escrito a lápis e às pressas, entre os dedos tensos. Sabia que Chester não merecia confiança, mas agora, por baixo do encanto, da alegria,
da amizade efusiva, sentia o âmago do seu total egoísmo.
O estalajadeiro e seu empregado olhavam para ele por detrás do balcão com manifesto desprezo.
- Naturalmente monsieur compreende que não temos acomodações para o senhor nesta casa.
- Compreendo perfeitamente - disse Stephen, girando nos calcanhares e saindo para a rua.


CAPÍTULO II

ALI, SEM DINHEIRO E SOZINHO, parado na praça do mercado de uma desconhecida cidade francesa, Stephen avaliava inquietamente a sua situação. Nunca antes estivera
sem dinheiro. Sua pensão, como o amanhecer, era algo
que tinha como certo, a consequência natural da sua posição na sociedade, do seu próprio direito de nascimento. Agora, com um amargo esgar nos lábios, percebia como
era poderosa a arma que seu pai tinha usado. No entanto, a sua renitência nata mantinha-lhe o prumo. Saiu imediatamente à procura de algum abrigo.
Isso, numa cidade sempre cheia de turistas, foi menos difícil do que ele temia, e antes do entardecer ele estava instalado num quartinho do alto, no fundo de um
pátio da Rue de la Cathédrale. Ao entregar a bagagem para a senhoria, uma velha digna, que não lhe pediu pagamento adiantado por ser de apenas 12 francos por semana
o aluguel, resolveu que, houvesse o que houvesse, estaria em condições de pagar-lhe antes que se passassem muitas horas. Tinha sabedoria suficiente para reconhecer
que, naquela localidade, não poderia conseguir uma subsistência imediata com sua arte. Sim, a sua educação, o seu curso universitário e grau de bacharel deviam certamente
capacitá-lo para alguma modesta posição na qual pudesse ganhar dinheiro suficiente para se manter em pé. E até mesmo o bastante para pagar a conta de Chester ainda
lhe doía a farpa final lançada pelo proprietário da estalagem - e voltar a Paris, encontrar-se lá com Peyrat, tendo uma boa quantia, antes do inverno. Se ao menos
estivesse menos indisposto! Aquela tosse, que desde a travessia do Canal lhe abalava o peito, era um grande incómodo. Mas um ferrenho desejo de experimentar-se levou-o
novamente ao centro da cidade.
Lá chegando, fez um exame perspectivo do logradouro principal, a Rue de la Republique. As lojas, embora pequenas, tinham, em sua maioria, um aspecto de sólida prosperidade
associado a uma ativa região agrícola. Pás, garfos, foices, baldes de zinco, grades de dentes vermelhos, tudo isso e mais estava exposto nas casas de ferragem; havia
guloseimas também - deliciosos petits fours e almôndegas doces, arranjados como buquês de noiva, enfeitavam a vitrine de uma pâtisserie, ao passo que na leiteria
da esquina se via um monte amarelo de manteiga da Normandia, ladeado por dois jarros de leite cheios até a borda.
Na frente de uma papelaria, viu uma caixa de vidro com alguns anúncios e avisos escritos à mão. Leu-os cuidadosamente e depois afastou-se. Ele não podia afinar pianos
nem remendar cadeiras de palhinha, não precisava da metade de uma vila à beira dos rochedos litorâneos de Granville. Mais abaixo da rua chegou à redação de um jornal
semanal, Courier de Netiers. Lá dentro, o número em circulação podia ser lido. Mas as suas magras colunas, devotadas principalmente às fases da lua, venda de gado
e cal, cobertura de vacas e éguas, horário das marés no Mont St. Michel, nada lhe ofereciam.
E agora? Era evidente que precisava de conselho. Obedecendo a um impulso, entrou na mairie e, escolhendo um funcionário de ar simpático, sondou-o discretamente sobre
as possibilidades de emprego na cidade. O jovem,
embora surpreso com semelhante indagação, mostrou-se inteligente e bem-intencionado. Pensou muito, e depois abanou lentamente a cabeça:
- É muito difícil... numa comunidade pequena como esta, as pessoas - sorriu, em desaprovação, ajeitou os punhos de papel - ... não são amáveis com estrangeiros.
Por mais uma hora, Stephen palmilhou a cidade sem sucesso. Quando caiu a noite, voltou, cansado e desanimado, ao seu alojamento. Revistando os bolsos, contou a soma
dos seus recursos: 1 franco e 50 soldos. À vista daquelas minguadas moedas na palma da sua mão, sentiu uma onda de orgulho. Não podia, não devia render-se.
No dia seguinte, na esperança de achar um trabalho manual, deu uma volta, a pé, pelas granjas das redondezas. Ao todo, devia ter andado uma distância de 20 quilómetros.
E em vão. Não havia escassez de mão-de-obra agrícola. Em vários lugares foi tomado por um vagabundo, e soltaram os cães contra ele. Um camponês caridoso, de garfo
em punho, fazendo a provisão anual de feno, pareceu hesitar, comovido talvez pela intensidade do pedido de Stephen, mas no fim prevaleceu a sólida cabeça normanda:
- Você não é muito forte, mon petit, pequeno... oh, muito pequeno. Mas, espere. - Chamou para a cozinha. - Jeanne, traga alguma coisa de comer para este rapaz.
Uma bonita mulher, de braços nus, vermelhos, saiu da porta dos fundos com o barulho dos seus tamancos. Dali a pouco, tendo examinado Stephen, trouxe-lhe um pedação
de torta de carne e uma caneca de sidra. Enquanto ele comia esse repasto, sentado num banquinho de ordenhar, na varanda, o granjeiro e a mulher, observando juntos,
discutiam em voz baixa, enquanto um meninozinho de guarda-pó preto espiava-o curiosamente por trás das saias da mSe. Stephen estava hirto de vergonha. Oh, meu Deus,
gemia ele consigo, sou exatamente como alguém de uma gravura de Cotman... cheguei realmente a isto! Mas a torta era boa, com um molho forte e gostoso, e a bebida
ácida lhe trouxe um novo ânimo para caminhar de volta a Netiers.
Escurecia quando chegou à Rue de la Cathédrale. E agora, embora mantido o ânimo muito bem durante todo o dia, um terrível abatimento o prostrava. A mortal estranheza
daquele quartinho apertado, cheirando a madeira velha, bolor e cânfora, estalando a cada passo que dava; a sensação de estar tão completamente só, enganado por Chester,
encurralado num futuro sem esperança; a suspeita, também, de que a sua senhoria começava a olhá-lo com dubiedade - tudo isso se acumulava para derrotá-lo. Sem querer,
atirou-se na cama e, voltando o rosto para a parede caiada, chorou como uma criança.
Esse acesso durou pouco, mas infelizmente tinha provocado a tosse. A noite inteira, ela o castigou severamente, desde que, na sua ansiedade para
não perturbar a casa, suprimia os espasmos e assim aumentava a sua frequência. Por fim, perto do amanhecer, com a cabeça embaixo das cobertas, caiu no sono.
Era tarde, quase 11 horas da manhã, quando acordou - primeiro para um breve momento de descansada alegria, depois para a sombria consciência da sua entalada. Levantou-se,
vestiu-se sem fazer a barba, e foi para a cidade. A agitação do espírito comunicava uma curiosa fraqueza às suas pernas. Estava andando sem rumo ou objetivo. Subitamente,
quando começava a atravessar pela segunda vez a praça do mercado, ouviu que alguém corria atrás dele. E então sentiu uma mão no ombro. Terrivelmente sobressaltado,
voltou-se. Era o funcionário da mairie.
- Desculpe-me, monsieur. - O moço interrompeu-se para respirar. Estive olhando o senhor durante toda a minha hora de almoço. Olhe, desde que foi embora andei fazendo
algumas perguntas para o senhor. E Madame Cruchot, que juntamente com o seu marido tem a sua épicerie ali - e apontou para o outro lado da rua - tem duas filhas
pequenas que ela quer que aprendam inglês. É possível que ela se agrade do senhor. Nesse caso, vale a pena tentar.
- Muito obrigado - gaguejou Stephen, emocionado. - Muitíssimo obrigado.
O jovem funcionário sorriu.
- Boa sorte. - Pronunciou as palavras entre os dentes, cuidadosamente, em inglês, e depois, como se satisfeito com sua proeza, apertou-lhe a mão, tirou o chapéu
e ficou observando-o atravessar apressadamente a rua.
A mercearia Cruchot, ocupando uma posição de destaque na praça, com duplas vitrines de vidro plano e uma brilhante tabuleta que dizia ALIMENTATION DE RENNES, dava
toda a indicação de ser um próspero estabelecimento, negociando com um grande e tentador sortimento de alimentos. Um constante fluxo de fregueses entrava e saía
pela porta, estreitada por presuntos pendurados, redes de limões, um cacho de banana e várias cestas de verduras escolhidas. Dentro, as prateleiras estavam cheias
dos generosos produtos da terra e do mar, com salsichas e fígado de ganso, sardinhas e enchovas, toucinho, azeite de oliva, queijo, frutas em conserva, conhaques
antigos também, vinhos e licores, café, especiarias, dobradinhas, pés de porco, e vidros e garrafas dispostos em pirâmides brilhantes no chão coberto de serragem.
Entrando, Stephen estacou menos por seu próprio nervosismo do que pelo barulho e movimento, gritos de pedidos, a movimentação de dois auxiliares de paletó branco:
uma moça normanda de ombros pesados e um homem coxo de olhar aborrecido.
Todavia, em pouco sentiu-se escolhido por uma voz de timbre penetrante.
- Que deseja, m'sieur?
Presidindo de uma mesinha, controlando o lufa-lufa, parecendo a dona pela amplidão do seu busto e ousadia do olho, uma mulher de cabelos amarelos, de uns 38 anos,
com a sua figura curva e bem coberta, pele lisa, orelhas rosadas suportando pesados brincos de ouro. Usava um vestido malva da última moda provinciana - com uma
aplicação de renda no decote - vários anéis e pulseiras, e um broche de camafeu.
- Perdoe-me - falou Stephen em voz baixa, aproximando-se. - Meu nome é Desmonde. Soube que a senhora talvez precise de um tutor inglês para as suas crianças.
A verificação de que ele não era um freguês afastara o sorriso maquinal dos lábios de Madame Cruchot; seus olhos apertaram-se na fria apreciação de alguém que, no
mercado, é capaz de avaliar, por um simples cabelo o peso e a qualidade de um porco cevado. Mas a palavra tutor, que ele por sorte tinha usado, lisonjeou-lhe a vaidade,
que predominava entre as muitas e fortes características que possuía, e que aliás era o verdadeiro motivo por trás da ideia de que as suas filhas deviam aprender
o idioma inglês. Também aquele jovem que tinha diante de si parecia simpático, "refinado" e tímido o bastante para lhe trazer algum problema.
- M'sieur pode me dizer quem é?
Muito francamente, Stephen lhe disse.
- Então m'sieur é estudante da universidade de Oxford. - Um lampejo iluminou o olho azul de porcelana de Madame Cruchot, mas no interesse da barganha foi rapidamente
suprimido. Duvidosa, encolheu os ombros. - Naturalmente, temos apenas a palavra de m'sieur quanto a isso.
- Asseguro-lhe que...
- Oh, la, la... estou disposta a confiar no senhor. Mas, naturalmente, considerando a idade das minhas filhinhas, exijo o mais alto padrão de conduta e moralidade.
- Naturalmente, madame...
- Então, quando... - interrompeu-se, com uma ordem aguda, suas palavras ressoando como uma pequena salva de artilharia: - Não, não, Marie, esses ovos não, estúpida,
já estão encomendados por Madame Oulard... e, Joseph, até quando preciso dizer que tire açúcar do saco aberto? Qual o salário que pede, m'sieur?
Stephen tratou de calcular rapidamente o menor estipêndio capaz de sustentá-lo.
- Digamos, com lições diárias, 30 francos por semana?
Com um gesto de consternação, Madame Cruchot ergueu as suas mãos gordas e cheias de anéis. Depois sorriu gentilmente, mostrando-lhe um dente de ouro que era como
uma bala.
- M'sieur está brincando.
- Não, realmente... - Empurrado e acotovelado pelo redemoinho de fregueses, Stephen ficou rubro. - Estou falando sério.
- Também somos gente honesta, Monsieur Crochet e eu, m'sieur, mas longe, oh, muito longe, de ser rica. - Feriu uma nota patética. - O máximo que meu marido me autoriza
a oferecer são 20 francos.
- Mas, madame... eu tenho que viver.
Madame Cruchot sacudiu o seu chinó amarelo tristemente.
- Nós também, m'sieur.
Stephen mordeu o lábio, com raiva e orgulho no peito. O aluguel semanal do seu quarto era de 12 francos. Como diabo poderia manter-se com os oito francos que lhe
restariam depois de pagar a sua senhoria? Não, por grande que fosse a sua necessidade, não poderia submeter-se a semelhante imposição. Deu meia-volta para retirar-se.
Mas Madame Cruchot, que não queria perdê-lo e que, no intervalo, tinha-o observado de soslaio da cabeça aos pés, deteve-o com um gesto delicado.
- Talvez... - Inclinou-se para diante, falando com um ar solícito. Talvez se servíssemos aqui o almoço para m'sieur, isso ajudasse um pouco a situação. Uma refeição
boa e substancial.
Apanhado desse modo, Stephen hesitou. Profundamente humilhado, não podia erguer os olhos.
- Muito bem... aceito - murmurou ele.
- Ótimo. Nosso negócio está fechado. Começará amanhã. Não esqueça que exigirei instrução da mais alta classe. E, sem dúvida, no futuro, m'sieur não esquecerá de
barbear-se.
Stephen inclinou a cabeça. Não podia falar. Contudo, a despeito da sua humilhação, por ignominiosa que fosse a sua situação, só podia experimentar uma sensação de
alívio. Com 20 francos e um almoço diário, estava salvo, ao menos por enquanto.
Ao sair da mercearia, ouviu a voz de Madame Cruchot proclamando em altos brados para as regiões do mundo:
- Marie-Louise, Victorine... Sua bondosa mamã acaba de contratar um tutor inglês.


CAPÍTULO III

AGORA, NA ABAFANTE MONOTONIA de uma cidadezinha provinciana, começava para Stephen uma estranha existência. Todas as manhãs, era acordado pelo sino da catedral,
que badalava três vezes, pesadamente, na Consagração das sete horas, afugentando as pombas, quebrando o silêncio eclesiástico da praça vazia. Uma vez vestido, descia
descuidadamente a escada - pelo menos podia sair de casa sem medo de encontrar a sua senhoria. Atravessando a praça para o Café des Ouvriers, que ficava a curta
distância do jardim de muros altos do convento, encontrava sempre as mesmas mulheres pias, vestidas de preto, e algumas freiras, aos pares, emergindo - flutuantes,
parecia, sobre as largas abas das suas toucas - da igreja. O café, assinalado por um ramo murcho na ombreira da porta, não era um lugar especialmente reputado, não
mais do que a cozinha de pedra de uma casa baixa mobiliada com uma mesa tosca e alguns bancos de madeira. Ali, por cinco soldos, tomava o desjejum habitual da casa:
uma xícara de café preto cheio de borra, lavado por um golinho de vinho branco num copo grosso com um dedo, uma espantosa combinação em seu poder restaurativo. Às
vezes havia um jornal da noite passada, Intelligence de Rennes, que o mantinha ocupado por meia hora. Podia conversar um pouco com Mie, a fille de comptoir de olhos
negros, quieta, que atendia o bar primitivo com discrição e que aparentemente tinha outras funções e obrigações, ou com outro cliente, talvez um mascate, um carregador
da estação, ou um entregador de carvão.
Pontualmente às 11 horas, apresentava-se na casa dos Cruchots, situada atrás da mercearia, e se dirigia a uma porta na parede lateral. Ali, na latada contígua a
uma pequena área fechada de relva, ou, nos dias de chuva, na sala abundantemente enfeitada a que Madame se referia como o "salon", Stephen dava sua atenção às menininhas
Cruchot; Victorine, de onze anos, e Marie-Louise, que tinha apenas nove.
Não eram, de um modo geral, crianças desagradáveis, um tanto estragadas por mimos, mas com toda atração da sua tenra idade. Às vezes, eram mesmo muito meigas à sua
maneira, especialmente a mais nova, uma coisinha bonita de cachos castanhos e faces de maçã". Stephen não as achou difícil de levar e logo ficou gostando delas.
Contudo, já os atributos herdados começavam
a se manifestar - sabiam o preço de tudo, calculavam como matemática, podiam recitar fluentemente aforismos morais sobre a virtude da economia. Cada uma tinha o
seu cofrezinho de metal, com a forma da Torre Eiffel, para depositarem as suas economias, e traziam a chave presa, com a medalha de um santo, a uma fita azul no
pescoço. Às vezes, repetiam, muito inocentemente, observações que tinham ouvido.
- Monsieur Stephen - ele insistia em que o chamassem pelo seu nome de batismo - mamã disse a papá que o senhor deve ser muito pobre.
- Bem, Victorine, devo confessar que ela estava certa.
- Mas papá disse que pelo menos o senhor não era um beberrão.
- bom... papá é meu amigo.
- Ah, sim, Monsieur Stephen. Porque ele também disse que, embora o senhor com certeza tenha feito alguma coisa errada na sua terra, sendo obrigado a fugir, não deve
ter sido um crime sério.
Stephen riu-se, um tanto secamente.
- Vamos... já é tempo de começarem a leitura.
Tão rápido tinha sido o progresso das suas ágeis inteligências, que ele acabara por trazer Alice no País das Maravilhas, e o interesse delas pela história tornava
possíveis até as palavras mais difíceis.
Embora, à maneira de um proprietário, ocasionalmente enfiasse a cabeça na porta, Monsieur Gruchot não vinha muito às lições. Era um homem de estatura média, com
modos inquietos, olhos cor de café, vivos, com os cantos injetados de amarelo, e um bigode preto, cheio, de pontas reviradas, que usava polainas e, dentro ou fora
de casa, exceto no sagrado recinto do "salon", um brilhante chapéu de palha reto. O seu lugar, naturalmente, era na loja, mas passava dois dias por semana fazendo
compras no mercado da vizinha cidade de Rennes, de onde, aliás, ele e sua mulher tinham vindo originalmente. Ligado a Madame Cruchot por uma ostensiva felicidade,
pelos dois lindos penhores da sua afeição, e acima de tudo pelo seu apaixonado desejo de ganho, Albert Cruchot tinha, contudo, em certos momentos, um certo ar, como
se as proporções físicas da sua esposa, seu riso agudo e voz penetrante fossem uma opressão maior do que um homem do seu porte pudesse razoavelmente aguentar. Ele
não encolhia exatamente, porém seus pés empolainados se moviam inquietos e a sua pupila café-au-lait bruxuleava num brilho de impaciência.
Na verdade, por trás do seu sorriso, dos seus modos amáveis e do brilho especioso do seu dente de ouro, Madame Cruchot era uma tirana. Todos os dias ela vinha verificar
"por si mesma" o andamento da lição, sentando-se rígida, numa postura de supervisão, os olhos sem compreensão mas alerta, indo de Stephen para as crianças, perturbando-as,
fazendo que cometessem erros.
- O senhor compreende, m'sieur... desejo que elas não só leiam mas falem coloquialmente... e recitem poesias... como fazemos em sociedade.
Atendendo às suas repetidas exigências, Stephen ensinou as crianças as duas primeiras estrofes de A uma Cotovia. Então, no dia indicado para mostrar o progresso
das suas pupilas, madame apareceu com três amigas íntimas, esposas de lojistas preeminentes, membros da haute bourgeoisie de Netiers, que se aboletaram expectantes
nas cadeiras douradas do salão.
Marie-Louise, escolhida para a primeira prova, foi colocada sozinha na falsa ilha de Aubusson.
- Salve, ó tu, espírito jovial... - começou ela; depois parou, olhou em torno e suprimiu um risinho.
- Comece de novo, Marie-Louise - disse Stephen bondosamente.
- Sabe, ó tu, espírito jovial... - Novamente a criança se interrompeu, piscou, torceu a cinta e olhou timidamente para a mãe.
- Continue - disse Madame Cruchot numa voz estranha. Marie-Louise lançou um olhar súplice para o seu professor. Um leve
suor começava surgir na testa de Stephen. Num tom de lisonja, que o desagradava, disse:
- Vamos, minha querida. Salve, ó tu, espírito jovial...
Um breve silêncio, durante o qual Madame Cruchot pareceu ter virado pedra: depois, sem aviso, levantou-se e deu um tapa na cara da menina. Imediatamente Marie-Louise
debulhou-se em pranto. No momento de consternação que se seguiu, olhares indignados foram lançados para Stephen, a criança soluçante, agora agarrada ao seio materno,
foi confortada com um bombom, e ouviu-se a voz de Mane gritando lá da loja:
- Venha depressa, madame... o fígado está chegando do matadouro. Na confusão que acompanhou a retirada de Madame Cruchot, Stephen ficou desamparado, prevendo com
sardónico fatalismo a possibilidade da sua demissão. Contudo, quando a mãe reapareceu, Marie-Louise correu através da sala, pegou a mão dele e despejou instantaneamente
a poesia, que recitou por inteiro, de um só fôlego. Victorine, para não ficar atrás, seguiu-a, por sua conta, com um perfeito desempenho.
Imediatamente o aspecto da reunião mudou, houve gritinhos de aclamação, sorrisos e acenos de cabeça foram dispensados a Stephen. Madame Cruchot resplandecia de perdoável
triunfo. Na verdade, depois de acompanhar as senhoras até a porta, voltou para Stephen com uma disposição de curiosa indulgência. Em vez da costumeira fina fatia
de presunto, deu-lhe no almoço um prato quente de carne ensopada, guarnecida de rabanetes e cebolas de Bordéus. Sentando-se diante da mesa da copa, observou:
- Afinal de contas, as coisas correram bem.
- Sim - disse Stephen sem levantar os olhos. - No começo, foi apenas o medo do palco.
Por um momento, ela continuou a vê-lo comer.
- Minhas amigas ficaram muito satisfeitas com o senhor - disse ela de repente. - Madame Oulard... a esposa do nosso primeiro pharmacien, uma senhora de certa posição
na cidade, embora naturalmente não possa pagar um tutor para as suas crianças, considera-o très sympathique... um perfeito cavalheiro.
- Sou muito grato por sua boa opinião.
- Acha que ela é uma mulher bonita?
- Deus do céu, não - disse Stephen com um ar ausente. - Eu mal a notei.
Madame Cruchot afagou as suas pastas de cabelo amarelo e, esticando o corpete, bateu nas suas firmes ancas com um gesto significativo.
- Deixe-me servir-lhe mais ensopado.
Nos dias que se seguiram, a qualidade e aliás a quantidade da refeição do meio-dia do tutor inglês melhoraram misteriosamente, e de várias outras maneiras a dona
da casa continuou a sua atitude diferente, e até se poderia dizer, o seu favor. Era uma mudança afortunada para Stephen, em quem a falta de alimentação adequada
e aquela tosse que não o deixava tinham causado considerável dano físico. Começou a sentir-se mais forte, novas correntes de vida movendo-se lentamente nas suas
veias, e um dia, de repente, sentiu, pela primeira vez desde que chegara a Netiers, um vivo desejo de pintar.
O impulso era irresistível, e ao deixar a mercearia apanhou um bloco de papel da Índia e alguns bastões de giz colorido. Quando a lição estava quase terminada, pôs
as duas crianças a ler no mesmo livro, juntas, na latada, e então, com o anseio de uma paixão contida, com linhas ligeiras, firmes e felizes, fez um pastel das suas
cabeças. A coisa foi feita rapidamente, tão veemente era a inspiração - em questão de menos de meia hora. Nunca tinha executado algo tão vívido, tão fresco na sua
composição impressionista. Até ele, que sempre subestimava o seu trabalho, estava comovido, sobressaltado, e excitado por aquela coisa adorável que tinha ganho vida,
misteriosamente, vinda do nada, ao seu toque.
Estava com a cabeça inclinada apontando para o fundo com um creiom amarelo, quando ouviu um som atrás dele: Madame Cruchot, por cima do seu ombro, estava olhando
para o pastel.
- Foi o senhor quem fez isso, m'sieur?
A sua expressão de pasmada incredulidade provocou-lhe um sorriso.
- Gosta?
Talvez ela não compreendesse plenamente a pintura. Mas via nela as suas duas crianças, belamente sugeridas em poucas linhas, umas poucas sombras de cor pura e brilhante.
Não entendia nada de arte. Contudo, o seu astuto instinto comercial tornou-a de imediato - ainda que subconscientemente, advertida de que ali estava algo raro e
delicado, algo da mais alta qualidade. Cobiçou-a
imediatamente. Mas além disso experimentou um singular afluxo dos seus sentimentos por aquele jovem inglês desconhecido, aquela emoção que começara quando, no dia
da recitação, o nevoeiro da sua indiferença se dissipara e ela o vira, através da tagarelice das suas amigas, como realmente era, um homem jovem muito atraente,
com a figura franzina e rosto sensível, os olhos negros e a delicada palidez. As menininhas ainda estavam soletrando no seu livro. Ela passou por trás do sofá e
sentou-se ao lado de Stephen.
- Não percebi - disse ela num cochicho confidencial - que m'sieur era um verdadeiro artista.
- Mas eu lhe disse quando a senhora me empregou.
A referência àquela primeira entrevista, quando ela o tratara tão rispidamente, provocou-lhe um rubor profundo até o seu queixo redondo e sólido e a coluna muscular
do pescoço.
- Ah - disse ela - não fiz muito caso do que me disse naquela ocasião. Eu não tinha o prazer de conhecer m'sieur como conheço agora... após estas semanas de agradável
intimidade, quando tem ensinado às minhas filhas, participado comigo da minha casa, e sempre com a polidez e reserva que só vem da verdadeira distinção. M'sieur
Stephen... - era a primeira vez que ela se dirigia a ele pelo nome, e o fazia com um frémito que endurecia a pele dos seus sólidos seios... - mesmo que não tivesse
me dito nada, eu saberia, por esta pintura, que o senhor tem grande talento.
Suas palavras de mau gosto eram embaraçosas, mas ele disse, gentilmente:
- Talvez queira ficar com ela...
A sugestão, com as suas implicações de compra, levou-a a recuar ligeiramente, mas só por um instante. Respondeu, séria:
- Quero sim, M'sieur Stephen, e vou falar a esse respeito com meu marido esta noite. Naturalmente, é possível que ele diga que o trabalho foi feito na hora da aula,
pelo que o senhor já estava pago, e nesse caso...
- Minha cara Madame Cruchot - interpôs apressadamente Stephen - a senhora absolutamente não me entendeu. Ofereço-lhe a pintura de presente.
Os olhos dela brilharam, não de cupidez agora, mas de uma emoção mais suave e confusa. Suprimiu um suspiro, olhou para ele com uma expressão terna, dizendo:
- Obrigada, M'sieur Stephen. Garanto-lhe que não se arrependerá.
A singularidade de estar sentada tão junto dele punha-lhe a cabeça a girar, uma sensação bem diferente da que lhe dava a proximidade de Cruchot. Mas as menininhas
começavam a exigir atenção, e ela ficou com medo de comprometer-se mais. Com um olhar de soslaio, rápido mas intenso, no qual tentava, em vão, mostrar o seu coração,
que batia rapidamente, levantou-se, disse-lhe au revoir, e voltou para a mercearia.


CAPÍTULO IV

APÓS SEMANAS DE aNIMADA APATIA, Stephen achou que podia pintar novamente. Era como despertar para uma nova vida na qual ele se descobria possuído de uma capacidade
maior, de uma visão mais penetrante do que antes. A cidadezinha, com seus insípidos habitantes, até aqui um deserto de esterilidade, transfigurou-se de repente numa
palpitante fonte de inspiração. Pintou o hotel de ville; a praça de armas do quartel; os telhados da cidade, vistos da sua janela, estranhamente pitorescos; uma
bela composição em cinza e negro das irmãs do convento voltando da missa na chuva, embaixo dos seus guarda-chuvas. As telas que tinha trazido de Napoleon Campo foram
uma a uma transformadas, pregadas no canto do quarto do sótão.
Havia cartas também, de Peyrat e Glyn, para alegrá-lo. Jerome propunha-se continuar em Puy de Dome no inverno e Glyn voltaria a Londres para uma breve estada no
outono. Ambos instavam para que fosse juntar-se a eles. Mas era claro que ele não iria. Estava pintando aqui, e feliz. Nesse estado de ressurreição, a lição diária
para as meninas Cruchot perdeu seu aspecto normal de necessidade. Na verdade, muitas vezes era penoso para Stephen pôr de lado os seus pincéis e correr à mercearia,
justamente quando a luz era a melhor. E embora, na linguagem do estabelecimento, ele continuasse tendo um valor, a sua mente não estava inteiramente no ensino, nem
após a aula era motivado por outro pensamento que não o ir-se dali.
Por causa da sua distração, continuou mais ou menos esquecido das mudanças, sempre crescentes, na atitude de Madame Cruchot para com ele. O vasto melhoramento na
cozinha era, sem dúvida, evidente, mas ele creditava-o à gratidão da proprietária pelo presente do quadro. A esta também atribuía os outros sinais de atenção que
lhe eram dispensados. Tornara-se agora costume de madame presidir o seu almoço e impor-lhe a sua hospitalidade. Na verdade, a sua dedicação foi além.
- M'sieur Stephen - ponderou ela um dia, com uma nota de solicitude. - estou preocupada com o seu conforto. O senhor pode não ser bem-visto em casa de Madame Clouet.
- Mas sou - contrariou ele. - Ela é uma alma muito decente.
- Mas é um quarto tão pobre.
- Conhece-o? - surpreendeu-se ele.
- Bem - disse ela enrubescendo. - Passei pela casa muitas vezes... no meu caminho para a igreja, naturalmente. Se ao menos alguém de gosto acrescentasse umas poucas
coisas... e as arranjasse, ficaria muito mais agradável para o senhor.
- Não, realmente - sorriu ele. - Agrada-me como está... despido e arejado.
- Mas não é bom para o senhor - insistiu ela. - Não posso deixar de notar que a sua tosse ainda o incomoda.
- Oh, não é nada... foi só esta manhã.
- Meu caro M'sieur Stephen. - Olhou-o com terna censura. - Não me contrarie em tudo. Se não posso melhorar o seu quarto, deixe-me ao menos restaurar a sua saúde.
No dia seguinte, para seu embaraço, um frasco de sirop pectoral do estabelecimento de Monsieur Oulard estava na mesa ao lado do seu prato, e madame, medindo uma
colherada, administrou-lhe a dose com ambas as mãos. Victorine e Marie-Louise divertiram-se vendo o seu professor ter que engolir remédio à força. E, no fim, Stephen
também riu.
Quando as crianças correram para brincar no jardim, Madame Cruchot, após um olhar demorado, soltou um suspiro:
- Naturalmente... uma coisa posso ver muito bem. O senhor encontrou na cidade alguma moça insignificante que o atrai.
- O quê! Em Netiers?
- Por que não? Não vai todos os dias ao Café des Ouvriers, e aquela Julie Grosette... eles por lá não têm grandes escrúpulos, posso lhe garantir...
Na verdade, ela conhecia todos os falatórios, mexericos e pequenas intrigas da cidadezinha. Mas o olhar atónito de Stephen era tamanho, que ela parou de falar. Forçou
um risinho.
- Não me olhe assim, meu amigo. Só estou pensando no seu bem-estar. E afinal de contas, embora eu seja uma boa mulher, também sou uma mulher do mundo. Então não
tem ninguém?
- Não - disse ele brevemente.
O olhar de expectativa, de ciúme, desapareceu dos seus olhos e foi substituído por um ar de coqueteria.
- Diga-me se gosta do meu vestido.
Colocou-se ligeiramente de quadril, exibindo o seu novo vestido, de um verde um tanto agressivo, com trancelins amarelos embaixo, que davam um efeito de juventude.
E o cabelo, recém-lavado, fora ondulado com um brilho mais metálico. Madame tinha apego aos vestidos, era uma cliente regular das galleries de Rennes, e ultimamente
exibia para Stephen as suas mais elaboradas toilettes, que, ai!, ele nunca parecia notar. Era essa indiferença que aumentava
os seus anseios, essa completa inconsciência de que ela era uma mulher, e talvez ele fosse assim com qualquer mulher, de uma inocência comparável à do jovem cura
que uma vez servira na paróquia e que ela admirava à distância, sonhando com ele todas as noites ao lado do merceeiro, que, com a carne aplacada pelo seu insensível
traseiro, roncava musicalmente. Mas isso não tinha sido nada, o mero sopro das asas de uma borboleta ao lado deste desejo que agora lhe corria nas veias, fazendo-a
arder de vontade de apertar Stephen nos braços e cobri-lo de beijos.
Ela estava cega para a comédia da sua situação: uma mulher de quase
40 anos, metida de corpo e alma nas atribulações de um negócio banal, de punhos fechados, uma tirana que passava a vida, de voz estrídula e metálica, pondo areia
no açúcar, água na sidra, extorquindo o último soldo das palmas renitentes de um camponês - ela, entre todas as mulheres, sendo amaciada, liquefeita por aquela devastadora
paixão por um rapazinho que talvez pudesse ter sido seu filho. Perdeu o interesse nas suas crianças, nas suas amigas, na busca da riqueza. O marido tornou-se-lhe
odioso. Os seus maneirismos burgueses, a maneira de comer, de soltar ventosidades baixinho após a sua cerveja, despertavam nela uma tempestade de ódio.
- Je te défends de passer le gaz en bas! - gritava ela, encolerizada.
E com tudo isso o seu próprio refinamento aumentava. Banhava-se com mais frequência, usava um perfume mais forte, chupava pastilhas para perfumar o hálito, mudava
a rroupa branca mais seguidamente. Se não pudesse tê-lo, sentia que deixaria de viver.
Subitamente veio uma resposta às suas preces mudas, uma ideia de brilho surpreendente. Como é que ela não tinha pensado nisso antes? Quando Stephen entrou nesse
dia, ela o interceptou no corredor.
- Meu amigo - disse ela alegremente. - Tenho uma boa notícia para o senhor, em suma, uma incumbência. Monsieur Cruchot insiste em que o senhor deve pintar-me.
Desconcertado, Stephen olhou para ela em silêncio.
- Sim - acenou ela. - Cruchot está cheio de entusiasmo. Não falou em outra coisa ontem à noite... De corpo inteiro... a óleo.
- Mas, madame. - Stephen franziu o cenho hesitante, procurando uma desculpa. - Eu... eu não pinto retratos... estou trabalhando em outro tema...
Ela sorriu para ele tranquilizadoramente.
- Não se preocupe, mon petit, farei com que seja pago. Na terça-feira, então, começamos. Está combinado.
Antes que ele pudesse terminar, ela bateu-lhe no braço, com um olhar arqueado, e saiu depressa da sala.
Terça-feira era meio feriado para os comerciantes. Como sempre, a loja
fechava ao meio-dia e tudo ficava tranquilo. Contudo, no momento em que entrou, Stephen sentiu, nos postigos fechados, uma calma sobrenatural. Madame Cruchot recebeu-o
na porta.
- Nada de lição hoje - anunciou ela efusivamente. - As meninas foram para o campo com Marie.
Ao admiti-lo na loja, explicou que a empregada fazia uma visita por mês aos seus pais em St. Vallé, e que, às vezes, como grande favor, ela lhe permitia que levasse
as crianças.
- E naturalmente - acrescentou sem cerimónia - meu marido está em Rennes, no mercado. Não seremos perturbados.
Novamente o silêncio incomum perturbou-o; nenhum rumor na adega, onde Joseph, o auxiliar, passava duas horas cuidando do estoque. Na casa, a não ser eles, não havia
ninguém. Mas foi a mesa, na sala de almoço, posta para dois, com toalha engomada e os melhores talheres, adornada com um vaso de rosas vermelhas, que o pôs em guarda.
- Se não se incomoda, almoçaremos juntos. Será muito mais conveniente.
Falando voluvelmente, naquela mesma maneira descuidada, trouxe da copa um poulet de Bresse assado, com cogumelos e salada, um paté de Estrasburgo, pêssegos em calda,
e uma garrafa de champanhe. Somente depois de abarrotar o seu prato, permitiu-se olhar para ele.
- Estamos bem aconchegados aqui. Não é agradável almoçarmos tête-à-tête? Sabe, deve comer antes de trabalhar. - Lançou-lhe um olhar pudico. Deixe-me servir-rlhe
o champanhe. É o melhor que vendemos. Cinco francos a garrafa.
Ele sentia-se confuso, desconcertado e inquieto. Mas no seu estado empobrecido, tinha para com a comida uma espécie de oportunismo. Comeu o que foi posto diante
dele, certo de que não estava em posição de recusar, mas foi se tornando cada vez mais consciente daqueles olhares lânguidos que pousavam nele. Do seu busto também,
que subia com esforço cada vez que ela respirava com esforço, fazendo os seios pularem e o queixo afundar no pescoço, parecendo aproximar-se mais dele a cada respiração.
Ao contrário do seu costume habitual, ela não estava comendo, servindo-se, com um ar de refinamento, apenas de uma asa de frango, e agora já partindo para o segundo
copo de vinho. Seus olhinhos redondos brilhavam como bolinhas de gude. Sentia um forte impulso para estender o braço por sobre a mesa e apertar-lhe a mão. Ele nunca
adivinharia que delicados favores ela estava preparada para lhe oferecer? Quanto menos ele entendia, mais a seduzia.
- Meu amigo - exclamou ela - não pode fazer uma ideia do que tem sido a minha vida nestes últimos 15 anos aqui em Netiers.
- Infelizmente não a conheço há tanto tempo.
- Não - refletiu ela, e numa voz sumida: - Contudo, devo ao senhor o fato de ter descoberto o vazio da minha existência.
- Isso seria um mísero retorno, madame... se fosse verdade.
- É verdade. - Como ele nada dissesse, ela moveu a cabeça enfaticamente. - Sim, ao senhor, meu amigo, que me abriu os olhos para novos horizontes, com os quais antes
eu nem sonhava. Monsieur Cruchot, embora sem excessiva ternura ou delicadeza, é um homem digno. E naturalmente eu sou uma mulher virtuosa. Mas há momentos em que
a solidão me invade o coração, quando tenho necessidade de um confidente. Ah, meu amigo - suspirou ela
- quando o coração pede, quem é que pode negar? É errado procurar a realização... uma vez que seja discreta?
Sentado em silêncio, constrangido, uma rude explicação para aquele comportamento atravessou-lhe de fato o espíriro. Mas despediu-a como absurda. Contudo, sentia-se
obrigado a começar o trabalho sem demora e executá-lo o mais depressa possível. Empurrou o prato.
- E agora, madame, se lhe for agradável, podemos começar. Pensei que seria melhor fazer um esboço preliminar. A senhora posará para mim? No salão?
Ela olhou para ele e tomou um fôlego convulsivo.
- Não - replicou numa voz indistinta. - Lá em cima a luz é melhor. Levantou-se da mesa e dirigiu-se para a porta. - Eu me apronto logo. Termine o seu vinho. E depois
suba.
Ele nunca tinha estado antes no andar de cima. Após esperar cinco minutos, encaminhou-se para a escada. Estava frouxamente iluminada, e os degraus, cobertos de tapete
fino, estalavam aos seus pés. O cheiro dos queijos, postos a amadurecer no armário do corredor encheu o ar. Ao chegar à porta, encontrou-a aberta. Imaginou que dava
acesso à sala de estar, mas antes que pudesse bater, ela o chamou:
- Entre, mon ami.
Ele entrou.
Madame Cruchot estava junto à cama dupla, pedindo a sua aprovação. Tinha tirado o vestido e usava um penhoar, que, numa pose vulgar, com uma das mãos no quadril,
ela mantinha meio aberto, revelando os calções listrados, com um babado de renda pesada, que caía abaixo dos seus joelhos grossos, e uma camisola cor-de-rosa umedecida
por uma mancha de perfume que acabara de pôr, enrugada pelo espartilho.
Um suor frio inundou Stephen. Suas pupilas ardiam com cada detalhe do ostentoso mas desmazelado dormitório, o tapete ornado e as cortinas com colgadura, a cómoda
manchada, o utensílio de louça embaixo da cama, e até a camisa de dormir de Cruchot enfiada às pressas embaixo de um travesseiro. Empalideceu. Interpretando mal
os seus olhos dilatados, ela agitou a cabeça,
fingindo tremer, e então, com uma terrível coqueteria, veio para ele. Era demais. Ele recuou com uma expressão de repulsa, furioso consigo por ter caído em tal situação,
que, embora participasse dos elementos da farsa era abjetamente humilhante. Sem uma palavra, voltou-se e precipitou-se para fora do quarto.
Nessa noite, sentado no seu sótão, ouviu fortes pancadas na porta da frente, seguidas de passos pesados na escada, e logo Monsieur Cruchot invadia o seu quarto.
O merceeiro, ainda vestindo o seu melhor terno, encontrava-se num estado de cólera fabricada.
- Como se atreve a fazer propostas amorosas a minha esposa... miserável insignificante... no instante em que dou as costas? Tenho a intenção de ir diretamente à
polícia. Sempre pensei que você era uma cobrinha inglesa. Mas morder a mão que o sustenta... uma mulher de coração puro... uma mãe! Que ultraje... uma atrocidade!
Jamais torne a mostrar o seu focinho no meu estabelecimento. Mas, além disso, deve haver uma compensação... por danos... no mínimo uma pintura.
Stephen sabia que Cruchot não gostava dele, no entanto era evidente que aquela exibição era instigada pela esposa, o marido era o mensageiro da mulher despeitada.
E com uma onda de amargura, como Cruchot continuasse a ameaçá-lo, Stephen arrancou uma página do bloco que estava na mesa dele e entregou-a ao merceeiro. Era um
esboço que ele acabara de fazer de memória de madame, obesa e afetada, de calções, no quarto de dormir.
Monsieur Cruchot, silenciado pelo gesto inesperado, olhou para o desenho fatal. Sua face tornou-se lívida. Ia rasgá-lo, mas, com a esperteza nativa, considerou-o
novamente, enrolou-o cuidadosamente e colocou-o dentro do chapéu. Depois, com um olhar furtivo, voltou-se e foi embora.


CAPÍTULO V

NA MANHÃ SEGUINTE, Stephen fez a sua mochila, amarrou as suas telas num canudo e, pondo a carga ao ombro, partiu de Netiers a pé. Seu objetivo era Fougères, situada
na route nacional, a 30 quilómetros de distância, e às cinco horas da tarde, após uma sufocante caminhada através dos campos, alcançou, a cidade, erguida em ambos
os lados de uma colina cortada pela estrada principal
para Paris. Lá, encontrou um restaurante barato que lhe pareceu um ponto de parada para caminhoneiros. O garçom, ao qual pediu ajuda, tinha certeza de que surgiria
uma oportunidade, e na verdade, justamente antes das nove, parou um camion da Compagnie Atlantique com um reboque e dele desceram dois homens de macacão e entraram
no bar. Poucos minutos depois, o garçom fez um sinal, houve apresentações, explicações transitórias e um geral aperto de mãos - tudo arranjado. As coisas de Stephen
foram colocadas embaixo do assento e eles partiram.
A noite chegou quente e serena. Rodaram através de aldeias adormecidas, cidades desertas onde brilhavam apenas umas poucas luzes, passando Vire, Argentan, Dreux.
O ar quente assobiava ao lado deles, os paralelepípedos estrondejando embaixo, a lua mergulhou por trás das alamedas nevoentas de álamos. Finalmente, quando rompeu
o amanhecer pálido e escorrido, atravessaram o Sena em Neully, entraram em Paris pela Pote Neully e pararam no mercado Les Halles. Lá, Stephen agradeceu aos seus
dois amigos e deixou-os.
A cidade, ainda não acordada de todo, tinha um ar cinzento e triste, mas quando atravessou a Ponte Nova, Stephen respirou fundamente o ar úmido. Estava de volta
a Paris. Depois de Netiers sentia-se mais forte, acima de tudo cheio de uma firme determinação de demonstrar o seu talento ao mundo.
Quando o mont-de-piété da Rue Madrigal abriu as portas, ele estava à espera do lado de fora. Entrando, empenhou o relógio - um presente do pai no dia do seu vigésimo
primeiro aniversário - pelo qual recebeu 180 francos. A seguir, após uma demorada procura, achou uma acomodação numa rua lateral próxima da Place St. Séverin, um
bairro frequentado por artistas como último recurso. Era um quarteirão pobre e um quarto ainda mais pobre, escassamente mobiliado e terrivelmente sujo - somente
10 francos por semana. Imediatamente se pôs ao trabalho e, pedindo emprestados uma vassoura e um balde, limpou o cómodo. Até lavou as paredes, a fim de que parecessem
recomendáveis, embora ainda permanecessem algumas manchas de insetos.
Passava das duas; sem pensar em comida, escolheu quatro das suas pinturas e dirigiu-se rapidamente pelos quais à loja de Napoleon Campo. O vendedor de tintas estava
sentado no seu caixote costumeiro atrás do balcão, balançando as pernas curtas, usando uma jaqueta azul de piloto e boné amarelo de tricô, com as orelhas gretadas
de fora, o rosto púrpura com a barba por fazer, mãos cruzadas sobre a barriga. Saudou Stephen amavelmente, como se o tivesse visto na véspera.
- Bem, Monsieur l'Abbé, que posso fazer pelo senhor?
- Antes de tudo, deixe-me liquidar o que lhe devo.
- Obrigado, o senhor é um homem honesto.
Recebeu os 50 francos que Stephen lhe deu e enfiou-os numa velha bolsa de couro.
- E agora, Monsieur Campo, quero uma tela bem larga, 2,00 x 0,80cm.
- Ora! Tem um trabalho tão grande assim em vista? Naturalmente pode pagar?
- Em dinheiro não, monsieur. Com estes.
- Endoideceu, Abbé? Deus do céu, meu porão está abarrotado de pinturas, refugo impróprio até para a lata de lixo, que recebi por ter um coração bondoso.
- Nem tudo é lixo, Campo. Você recebeu pinturas de Pissarro, e Boudin, e Degas.
- Você é um Degas, meu pequeno Abbé?
- Um dia, talvez.
- Meu Deus, é sempre o mesmo conto de fadas. Então a sua tela especialmente grande é para pendurar no Salon, com multidões diante dela. Terá fama e fortuna da noite
para o dia. Bah!
- Então aceite 20 francos por conta e estas pinturas como penhor do restante.
Os insignificantes olhinhos azuis de Napoleon procuraram o rosto pálido e sério diante dele. Tantos, tantos rostos tinham passado por sua loja nos últimos 30 anos,
que afogavam a sua memória. Era um homem fleumático, que não se comovia facilmente, e a idade o tinha tornado ainda mais impassível. Mas ocasionalmente, embora isso
fosse raro, havia nos modos e no aspecto de algum aspirante necessitado, como agora nas curiosas feições daquele inglesinho, um tipo de intensidade que o impressionava.
Hesitou, depois desceu do seu assento e começou a remexer nas prateleiras. Quando a tela que Stephen queria - um fino linho de grão fino - estava em cima do balcão,
houve uma pausa.
- Disse 20 francos?
- Sim, Monsieur Campo. Stephen contou as moedas.
Napoleon Campo tomou uma pitada de rapé, limpando meditativamente o nariz carnudo com o punho da sua jaqueta de piloto.
- E agora, naturalmente, vai passar fome.
Houve outra pausa. Subitamente Campo empurrou as moedas que estavam em cima do balcão.
- Devolva estas à sua caixa de coleta, Abbé. E me dê os seus miseráveis borrões.
Surpreso, Stephen entregou-lhe as suas pinturas. Sem ao menos uma olhada por alto, Napoleon colocou-as embaixo do balcão.
- Mas. . . não quer vê-las?... São... as melhores que eu fiz.
- Não julgo pinturas e sim gente - replicou Campo rispidamente. bom dia, monsieur. E boa sorte.
Stephen voltou ao seu quarto com a tela às três horas, e sem demora saiu imediatamente para a loja de bicicleta da Rue de Bièvre. Até agora as coisas tinham ido
bem, mas ao se aproximar do estabelecimento de Berthelot sentiu-se nervoso e inseguro de si mesmo, embora cheio de uma viva expectativa que fazia o seu coração bater
depressa. Muitas vezes, durante os últimos meses, tinha pensado em Emmy; a recordação daqueles momentos na escuridão do corredor estreito lhe vinha de tempos em
tempos sem aviso, ainda que com uma esquisita inconsistência.
Encontrou-a no pátio atrás da oficina, curvada sobre uma bicicleta niquelada, reforçada e pintada de vermelho e ouro. Vê-la outra vez deu-lhe uma sensação de calor
por dentro. Ela ergueu os olhos quando ele apareceu, aceitou a sua saudação sem surpresa e continuou a acertar os rolamentos. O pulso dele ainda estava absurdamente
desigual; contudo, desde as suas excursões juntos, sabia muito bem que ela abafava qualquer mostra de afeição.
- É uma linda máquina - disse ele após alguns momentos.
- É minha. Vou usá-la em breve. - Endireitou-se, atirou uma mecha de cabelo para trás. - Então está na cidade de novo?
- Desde esta manhã.
- Quer alugar uma?
Ele abanou a cabeça.
- Tenho coisas mais importantes para fazer.
Houve uma pausa. Ela sempre fora um tanto curiosa a respeito dele, e agora, como ele pretendia, o seu interesse tinha aumentado.
- Está metido em quê?
Ele respirou rápido.
- Já ouviu falar do Prix de Luxembourg, Emmy? É uma competição aberta a todos os que nunca estiveram no Salon. Pretendo arriscar. - Depois, como se ela se voltasse
indiferente, acrescentou: - Foi por isso que voltei. Quero que você pose para mim.
- Quer dizer... - interrompeu-se, olhando para ele - ... fazer o meu retrato?
- Isso mesmo. - Procurou falar num tom casual. - Você nunca foi pintada, foi?
- Não, apesar de que já devia ter sido há muito tempo, considerando quem sou.
- Então, esta é a sua oportunidade. Pode ser muito bom para você. Os melhores trabalhos serão exibidos no Orangerie. Você certamente seria reconhecida.
Ele podia ver que a sua vaidade estava lisonjeada, mas ela hesitava, olhando-o de cima a baixo como que calculando a sua capacidade.
- Você pode mesmo pintar? Quero dizer, poderia fazer um bom retrato?
- Pode contar comigo. Porei tudo o que tenho nessa pintura.
- Sim, suponho que poria, para o seu próprio bem. - Uma ideia lhe ocorreu. - Mas eu vou excursionar no mês que vem.
- Até lá há tempo suficiente. Se você vier todos os dias durante três semanas, posso pintar os detalhes depois que você for.
Novamente podia ver que ela debatia as possibilidades.
- Bem - disse ela, por fim, na sua maneira desgraciosa. - Não me importo. Acho que não vou perder nada.
Ele reprimiu uma exclamação de satisfação e alívio - não somente tinha querido pintá-la desde o começo, mas ela seria perfeita para o assunto que naquelas últimas
e poucas horas havia se apoderado dele. Rapidamente, deu-lhe o seu novo endereço, pediu-lhe que estivesse lá às 10 da manhã seguinte, usando o seu suéter preto e
a saia pregueada, e despediu-se antes que ela pudesse mudar de ideia.
Vagabundeando pela avenida, sentia-se excitado pelo que tinha realizado nesse dia. Só então se lembrou que não comia desde que dividira um sanduíche com o motorista
do camion na noite passada. A fome o atacou como um tapa. Mergulhou numa épicerie, onde comprou um pão comprido e uma tranche de salsicha. Não conseguia ficar quieto.
Andando pela rua escurecida diante do Jardin des Plantes, mordia alternadamente o pão estalante e o suculento patê embutido no seu branco envoltório de toucinho.
Como era gostoso. Sentia-se feliz, livre, e estranhamente exaltado.


CAPÍTULO VI

No DIA SEGUINTE, ele estava pronto e esperando impacientemente, a tela preparada, quando ela chegou, com uns 20 minutos de atraso.
- Aí está você! - exclamou ele. - Pensei que não viesse mais.
Ela não respondeu, mas da porta olhou em torno para o quartinho miserável com as pranchas nuas, uma cadeira de bambu quebrada e uma cama sobre roletes, afundada
no meio.
- Você está quebrado, não?
- Mais ou menos.
- Você tem topete. Trazer-me para um trou destes. Nem ao menos tem onde pendurar as minhas coisas.
Ele corou, mas forçou um sorriso.
- Admito que não seja o Elysée, mas nío é mau lugar para pintar. Dê-me uma chance e eu prometo que não se arrependerá.
Ela baixou o lábio numa espécie de careta, mas, com um dar de ombros, entrou e deixou que ele lhe tirasse o casaco e a postasse diante da janela.
A luz era boa, e, cheio de um súbito hausto de força, ele começou a tracejar a composição que agora o obcecava. Como as regras do concurso exigiam uma pintura "clássica",
seu tema seria alegórico, embora moderno na composição, e o assunto era: Circe e Seus Amantes. Poderia a sua absurda aventura com Madame Cruchot, trabalhando no
fundo do seu inconsciente, inflamar uma centelha que incendiasse essa estranha visão? Símbolos e imagens enchiam a tela da sua vista, cativando os sentidos. Na sua
imaginação, o prazer lutava com a virtude, e a luxúria se revelava na forma dos seios à espreita. Tudo ainda era uma miragem; no entanto, nos íntimos e misteriosos
recessos da sua alma, sentia a força para fazer aquele sonho existir.
Embora pudesse ter continuado o dia inteiro, ao meio-dia, advertido pela expressão da moça, Stephen lhe disse que talvez fosse o bastante para aquele dia. Imediatamente,
ela atravessou o quarto e examinou a tela, onde, usando carvão, ele já tinha feito seu esboço, de corpo inteiro e bem definido. As sobrancelhas ergueram-se e o olhar
amuado deixou o seu rosto quando ela se viu ocupando o centro da tela, de pernas separadas, mãos plantadas nos quadris, uma atitude que era toda sua. Não disse nada
enquanto permitia que ele a ajudasse a vestir o casaco, mas na porta se voltou e acenou a cabeça.
- À mesma hora, amanhã.
Durante a tarde, enquanto a luz durou, ele trabalhou no plano de fundo. E no dia seguinte, e nos que se seguiram, continuou, nem sempre de ânimo elevado, mas com
um propósito que o transportara através de momentânea melancolia para novos transes. Ao mesmo tempo, à medida que prosseguiam as sessões e ele entrava em contato
mais íntimo com Emmy, não mais podia ficar cego ao aprofundamento dos seus sentimentos por ela. A cada dia, terminada a sessão, dava consigo a sentir falta dela,
mais e mais. Na ausência de Peyrat e Glyn, estava sozinho. Mas isso explicaria o seu constante desejo pela companhia dela? Zangado consigo mesmo, lembrou o quanto
não gostara dela no seu primeiro encontro, e como ela às vezes o irritava com a sua grosseria e falta de educação. Quando ela estava de mau humor e ele tentava conversar
com ela, as suas respostas eram monossilábicas, e quando lhe dizia que descansasse, ela continuava a ignorá-lo, deitava-se de barriga na cama, acendia um Caporal
e mergulhava numa revista esportiva amarrotada. Percebeu que ela não tinha atenção para com ele e que somente a vaidade a trazia regularmente ao seu quarto. Uma
dúzia de vezes por dia ela ia observar a marcha do trabalho, e embora nunca o elogiasse, congratulava-se consigo mesma.
- Estou saindo bem, não é?
A lenda da Odisseia, da filha de Helios e da ninfa do oceano Perse, que ele explicou para ela, mexeu-lhe com a fantasia. A ideia de que tivesse o poder de transformar
seres humanos em formas animais provocou-lhe um sorriso.
- Bem feito, pra eles aprenderem.
Essa vulgaridade estremeceu-o. E contudo não era inibidora. Que haveria naquela moça para provocar o seu premente interesse? Procurou descobrir. Que sabia realmente
dela? Muito pouco, exceto que era comum, dura e insignificante - uma pequena nulidade, desinteligente, sem imaginação, completamente empedernida. Não sabia nada
de arte, não tinha interesse pelo seu trabalho, e se entediava quando ele falava. Mas a sua figura era esquisita - não estava reproduzindo cada linha sutil dos seus
membros fortes e esbeltos, o ventre chato e os seios firmes? - e acima de tudo ela era pequena. Embora pudesse admirar na tela a carne voluptuosa das mulheres de
Rubens, o seu gosto sempre fora por uma perfeição menos arredondada. E ela possuía essa nitidez física, uma figura que ele sempre comparava à Maja de Goya. Contudo,
ninguém poderia chamá-la de bela. Tinha um encanto travesso, mas os seus lábios eram finos, as narinas um tanto puxadas, e a sua expressão, quando não alerta e vigilante,
era quase carrancuda. Curioso é que, todas as suas imperfeições eram aparentes para ele. Contudo, não afetavam em nada aquela estranha emoção que, a despeito de
todos os seus esforços para suprimi-la, crescia nele.
Desejava estar ao lado dela e sentia-se inquieto e nervoso quando ela se retirava. Desordenadamente afetado pelos seus humores variáveis, respondia a eles de uma
maneira que o fazia desprezar a si mesmo. Em raras ocasiões, quando ela se mostrava agradável, o seu coração se animava. Às vezes, nessa disposição tagarela, ela
fazia perguntas sobre o único assunto que, entre todos os outros ligados a ele, parecia interessá-la.
- É verdade que os seus pais têm uma grande proprieté em Sussex, com muitos acres de boa terra?
- Não muitos - sorriu ele. - Se Glyn lhe disse isso, exagerou.
- E você ia ser um padrezinho... até que eles o tiraram do seminário.
- Você sabe que eu saí por minha vontade.
- Para viver num quarto como este? - perguntou, incrédula.
Encolheu os ombros, mas sem desprezo - lisonja que o gratificou. Essa afabilidade, embora não causasse alívio, era um agradável contraste com a mortificante indiferença
com que ela geralmente recebia as suas tentativas para agradá-la. E enquanto ela posava, indolente como um gato, ele começou a contar-lhe, sem parar de pintar, histórias
sobre Stillwater que achava pudesse entretê-la e diverti-la. Quando finalmente esgotou o repertório, ela refletiu por alguns momentos, e então declarou:
- É certo que vivi com, isto é - corrigiu-se - entre artistas toda a minha vida. Eu própria sou uma artista. Compreendo que se abandone alguma coisa pela arte, quando
isso não é nada. Mas você está numa categoria diferente. E abandonar a sua bonne proprieté, que você poderia herdar... - fez pausa e encolheu os ombros - ... foi
imbécile.
- Não completamente - sorriu ele - ou eu não a teria encontrado. Veio-lhe uma súbita onda de anseio. Deteve-se, não ousando olhar para
ela.
- Você não percebe, Emmy?... que estou gostando terrivelmente de você?
Ela riu-se brevemente e levantou um dedo avisador,
- Nada disso, Abbé. Isso não faz parte do nosso acordo.
Derrotado, retomou o trabalho. E por toda a noite sentiu a dor da rejeição. Se ao menos pudesse sair com ela à noite - ela, que apreciava diversões vulgares - achava
que podia conquistar sua simpatia. Mas sua falta de recursos o impedia. Vivia com pouco mais de meio franco por dia, subsistindo com um pão ou uma maçã até às seis
horas, quando tomava sua solitária refeição no café mais barato das redondezas.
Certa tarde, quando suas sessões de pose já estavam terminando, ela chegou, mais atrasada do que de costume. Aparentava ótimo humor. Usava um fichu amarelo novo
com uma curta jaqueta vermelha ataviada de rendas, e seu cabelo estava recém-lavado.
- Você está muito bem - cumprimentou Stephen. - Eu quase desisti de esperá-la.
- Tenho um encontro com Peroz. O escritório dele fica bem longe... no Boulevard Jules Ferry. Mas consegui o contrato que eu queria.
- Ótimo - sorriu ele, sem mencionar que a sua partida o deprimia. Quando parte?
- A 14 de outubro. Houve um adiamento de duas semanas.
- vou sentir a sua falta, Emmy. - E inclinando-se para ela: - Mais do que você pensa.
Ela riu de novo e ele notou que os seus dentes eram agudos e regulares, com espaços definidos entre eles. Então, com vivacidade, acentuando as suas observações,
ela começou a descrever como conseguira o melhor de Peroz ao estabelecerem os termos do seu contrato.
- Dizem que ele tem bom coração - concluiu ela. - Acho que ele é apenas um gobeur... um mole.
Sabendo que a sua conversa geralmente a aborrecia, Stephen encorajou-a a continuar falando sobre si mesma. Então, como não houvesse mais luz, guardou os seus pincéis.
- Deixe-me andar com você - disse ele. - Está uma bela noite.
- Muito bem, se quiser - concordou ela, dando de ombros.
Quando ela apanhou as suas coisas, eles desceram a escada e dali a pouco chegaram ao Boulevard Gavranche, onde uma escuridão quente lançava um halo em torno das
lâmpadas da rua, envolvendo a cidade muda em misteriosa beleza. Casais passavam lentamente, de braço dado, nas calçadas tranquilas a noite parecia feita para os
namorados. Numa rua lateral perto do rio, passaram por um café, onde com a música de um acordeom, havia gente dançando sob uma pérgula, com lanternas chinesas penduradas
nos ramos dos plátanos. A cena estava cheia de luz e alegria, e Stephen podia sentir os olhares interrogativos de Emmy lançados para ele.
- Gostaria de dançar?
Tomado por um demorado embaraço, consciente da sua inépcia, ele abanou a cabeça.
- Eu não seria muito bom nisso.
Era verdade. Ela encolheu os ombros.
- Você não é bom em muita coisa, não é? - disse ela.
Chegaram às sombras dos quais. O Sena fluía em silêncio, uma corrente lisa e verde, sob o vão baixo da Pont de l'Alma. Como se estivesse entediada pelo seu silêncio,
ela caminhava um pouco adiante, começando a trautear a canção tocada pelo acordeom no cabaré.
- Espere, Emmy. - Ele se chegou para o abrigo de um arco. Ela o Olhou de lado, por sobre o ombro.
- Que é que tem na cabeça, Abbé?
- Você não vê... o quanto significa para mim?
Pôs um braço em torno dela, atraindo-a para si. Durante uns poucos momentos, insensível como o poste de iluminação, ela deixou que ele a abraçasse, e depois, com
um movimento brusco de impaciência, empurrou-o.
- Você não entende nada disso.
Havia desprezo na sua voz.
Ferido e humilhado, fraco de emoção frustrada, sentindo a verdade da observação, ele a seguiu para a rua. Caminharam para a Rue de Bièvre. Diante da loja de bicicletas,
ela olhou para ele como se nada tivesse acontecido.
- Posso ir amanhã de manhã?
- Não - disse ele amargamente. - Não será necessário. Voltou-se, furioso com ela e enojado consigo mesmo.
- Não se esqueça - gritou ela. - Quero ver o quadro quando estiver terminado.
Ele a odiava por sua dureza, sua falta de generosidade comum - ela sequer tivera pena dele. Disse a si mesmo que nunca mais tornaria a vê-la.
Na manhã seguinte, quando acordou de uma noite inquieta, lançou-se apaixonadamente na contemplação do quadro. Até agora, só a figura central
tinha tomado forma, havia ainda o tema a ser desenvolvido. O tempo se tornara úmido e sombrio, a luz era pouca, o seu estúdio improvisado varrido por correntes de
ar, mas nenhuma dificuldade parecia tão grande que ele não pudesse vencer. Na sua busca de realismo, ia todas as tardes ao Jardim Zoológico; depois, voltando para
o seu quarto, transferia as abjetas criaturas para a tela, com algo da sua própria tristeza e sujeição. No fim dessa semana, o seu dinheiro acabou - procurando uma
moeda para comprar o seu petit pain, não pôde achar um único soldo. Sem se abater, continuou a pintar o dia todo com uma espécie de fúria.
Na manhã seguinte, sentiu-se fraco e tonto, mas ainda assim forçou-se a prosseguir no trabalho. Quando chegou a tarde, porém, um raio de razão se infiltrou pelas
névoas que agora obscureciam o seu cérebro. Percebeu que se não comesse para viver, simplesmente isso, nunca terminaria a Circe - a menos que pudesse achar algum
meio de sustento. Sentado na beira da cama, refletiu por um instante e depois foi ao canto onde estavam as suas pinturas de Netiers, selecionando três que eram especialmente
brilhantes e coloridas. Eram boas, satisfaziam-no, davam-lhe confiança. Embrulhou-as em papel pardo e, com o rolo debaixo do braço, saiu para atravessar o Sena ao
longo dos Champs Elysées para o Faubourg Saint Honoré. Era um ato de coragem. Contudo, o tempo para meias medidas tinha passado. Estava resolvido a oferecer o seu
trabalho ao melhor negociante de arte da França.
Na esquina da Avenue Marigny, um logradouro principalmente ocupado por pequenos edifícios de apartamentos e suntuosas lojas de haute couture, deteve-se diante de
uma rica mas comedida fachada de pilares paládicos e pedra branca talhada. Depois, retesando-se decididamente, passou pela porta veneziana dourada e entrou num vestíbulo
calçado de mármore, com painéis de jacarandá e colgaduras de veludo vermelho, onde se achou diante de um jovem de paletó com abas abertas, sentado atrás de uma escrivaninha
Luís XVI laqueada e com ouropel. Através do cortinado lá atrás, via-se um amplo salão, igualmente esplêndido, embelezado por grandes buques de lírios em vasos de
alabastro e cheio de quadros belamente iluminados, diante dos quais gente elegante se movia, e misturava, consultando os seus catálogos, conversando em voz baixa.
- O senhor tem convite para o vernissage, monsieur?
Stephen devolveu o olhar do jovem maneiroso, que, por baixo do seu sorriso profissional, examinava-o com extrema cautela.
- Não. Eu ignorava que havia uma exibição. Vim para ver Monsieur Tessier.
- Qual o assunto, monsieur?lis
- Pessoal.
O sorriso, de inefável polidez, não vacilou.
- Receio que Monsieur Tessier não se encontre na casa. Contudo, se quiser tomar uma cadeira, irei verificar.
Quando Stephen sentou-se, o jovem levantou-se graciosamente e deslizou para dentro. Mas quase ao mesmo tempo uma porta lateral se abriu e três pessoas entraram na
sobreloja - uma mulher, muito elegante, de preto, carregando uma miniatura de poodle, enfitado e fantasticamente frisado; seu acompanhante, um homem idoso, entediado
e distinto, impecavelmente vestido, dos sapatos marrons ao chapéu; e Tessier, que Stephen reconheceu imediatamente, uma figura cortês, de rosto moreno, barbeado,
com o lábio inferior saliente e olhos de bistre. O marchand estava falando, sensatamente com reservada animação e movimentos comedidos das mãos.
- Asseguro-lhe que é uma perfeita gema. A mais fina que me chegou em vários anos.
- É linda - disse a dama.
- Mas o preço! - interpelou o seu companheiro um tanto soturno.
- Já lhe disse, cavalheiro. Por 100 mil, é inquestionavelmente um preço de ocasião. Mas se não o deseja para o senhor, tem somente que me dizer. Virtualmente, tenho
compromisso com outro cliente.
Houve uma pausa, um toque na manga do acompanhante, um murmúrio de conversação íntima, e então:
- Pode considerar a pintura vendida.
Uma inclinação de cabeça, não obsequiosa, mas gravemente aprovando semelhante bom gosto, foi a única resposta de Tessier. Contudo, não os levou até a porta, e quando
se voltou, parecendo meditativo, de cabeça baixa, mãos cruzadas atrás das costas, Stephen foi ao seu encontro.
- Monsieur Tessier, peço-lhe que me desculpe pela intrusão. Poderá dar-me cinco minutos apenas do seu tempo?
O negociante ergueu os olhos vivamente, perturbado nos seus pensamentos, certamente relacionados com cálculos e seu olho empapuçado, com a imediata percepção de
algo encontrado com desagrado em ocasiões anteriores, apreciou a figura maltrapilha que tinha diante de si, dos sapatos enlameados e encharcados ao embrulho malfeito
que trazia debaixo do braço.
- Não - murmurou ele. - Agora não. Como vê, estou inteiramente ocupado.
- Mas monsieur - insistiu Stephen, abalado mas com determinação. - Só lhe peço que veja o meu trabalho. Será demais um artista solicitar-lhe isso?
- Então o senhor é um artista? - O lábio de Tessier reentrou. - Felicito-o. Sabe que cada semana sou assediado, atacado e importunado por pessoas que se intitulam
génios e imaginam que eu desmaiarei num êxtase quando contemplar os seus execráveis esforços? Mas nunca tinha encontrado um com o atrevimento de me procurar aqui,
no auge da minha exibição de outono.
- Lamento perturbá-lo... mas o assunto é um tanto urgente.
- Urgente para mim... ou para o senhor?
- Para ambos. - Stephen engoliu convulsivamente. Na sua agitação, falou sem controle. - O senhor acaba de vender um Millet por uma soma considerável. Perdoe-me,
não pude deixar de ouvir. Dê-me uma oportunidade e eu lhe mostrarei um trabalho tão fino como qualquer coisa vinda de Barbizon.
Tessier relanceou os olhos para Stephen, notou a sua aparência perturbada, a dilatação dos seus olhos.
- Por favor - disse ele de maneira fatigada, abandonando o argumento.
- Mais uma vez, rogo-lhe.
Afastou-se para um lado, entrou no salão e um instante depois perdia-se de vista. Stephen, que tinha começado, com pressa nervosa, a desfazer o embrulho, ficou por
um momento muito pálido; depois, com uma expressão estranha, andou para a porta. Ao chegar à rua, o barbante, mal amarrado, desatou-se e as três telas caíram na
calçada molhada e escorregaram para a sarjeta.
Apanhou-as com cuidado, com uma ternura quase ridícula. O simples ato de abaixar-se fez-lhe a cabeça dar voltas. Mas teimosamente, com uma intensidade quase fanática,
disse a si mesmo que não seria derrotado. Havia outros negociantes de quadros em Paris, menos arrogantes, certamente mais acessíveis do que esse intolerável Tessier.
Vagarosamente, caminhou, através do tráfego, para a Rue de la Boétie.
Duas horas depois, molhado e ainda atrapalhado pelos três quadros, estava de volta à Place St. Séverin, tão exausto que mal pôde subir para o seu quarto. Na verdade,
na metade da escada sentou-se num degrau para recobrar o fôlego. Ao fazê-lo, a porta junto ao patamar abriu-se e apareceu, vestido para sair, de tamancos, camisa
sem colarinho e um sobretudo surrado, um homem de cerca de 30 anos, alto e moreno, com uma pele descorada e olhos fundos de semita. Ao descer, quase tropeçou em
Stephen, recuou e estudou-o com um sorriso amargo, peculiar.
- Não teve sorte? - exclamou.
- Não.
- Tentou com quem?
- A maioria deles... de Tessier para baixo.
- Salamon?
- Não me lembro.
- Ele não é mau. Mas nenhum deles está comprando agora.
- Tive uma oferta. Duzentos francos para falsificar um Breughel.
- E você aceitou?
- Não.
- Ah, a vida tem seus pequenos vexames. - E depois de uma pausa: - Como se chama?
- Stephen Desmonde.
- Chamo-me Amédée Modigliani. Venha tomar um drinque.
Dirigiu o caminho de volta ao patamar e abriu a porta do seu quarto. O seu apartamento era quase idêntico ao de Stephen, mas talvez mais sórdido. Num canto, ao lado
da cama por fazer, havia uma pilha suja de garrafas vazias, e no centro um cavalete com uma pintura quase terminada, um nu reclinado.
- Gosta? - Servindo dois Pernods de uma garrafa que tirara do armário, Modigliani inclinou a cabeça para a tela.
- Sim - disse Stephen após um momento.
Havia na pintura um estilo pessoal, marcado por seus esforços numa linha arabesca, algo de monumental e puro.
- bom - disse Modigliani, passando-lhe o copo - mas esse quadro porá o comissário de polícia atrás de mim. Ele já proclamou que os meus nus são escandalosos.
O absinto, fortalecendo Stephen, clareando o seu cérebro, evocou uma nota de recordação.
- Você não exibiu nos Indépendants? Le Joueur de Violoncello?
O outro fez um gesto afirmativo.
- Não era o meu melhor trabalho. Mas foi vendido. Agora eles não comprarão nada. Na verdade, se não fosse o meu talento para plongeur no Hotel Monarque, eu teria
sido gentil com os meus críticos e deixado de existir.
- Um plongeur? - Stephen não compreendia.
- Sim, gostaria de experimentar o trabalho? vou para lá agora. É um emprego fascinante. Um leve sorriso, saturnino, apareceu nas suas feições impassíveis, cor de
oliva. - E eles sempre apreciam um empregado novo.
- Tentarei qualquer coisa.
Saíram juntos e começaram a andar em direção à Etoile. O Grand Monarque, um dos famosos hotéis parisienses, era uma imensa construção palacial no estilo Terceiro
Império, ocupando um quarteirão inteiro, logo depois dos Grands Boulevards. Imponente e digno, um tanto fora de moda, com degraus de mármore, tapetes vermelhos,
as vastas salas públicas com lustres cintilantes, um bando de atendentes esvoaçando atrás das portas de metal polido, como sentinelas, para receber os embaixadores,
dignitários estrangeiros e príncipes nativos, que estavam entre os seus visitantes, dava uma sensação de opulenta magnificência. Modigliani, contudo, quando chegaram
ao pórtico central, não tentou uma entrada, mas guiou o caminho em torno de um canto escuro e por uma passagem que dava para as dependências dos fundos, flanqueada
por uma bateria de latas de lixo amassadas; um lance de escadas admitiu-os no subsolo.
Era menos um subsolo do que uma imensa adega subterrânea, com o teto úmido e pingando, atravessada por uma confusão de tubos de ferro, de paredes
escamadas, pegajosas de bolor, o chão de pedra-britada com água de despejos até os tornozelos, tudo fracamente iluminado por umas poucas lâmpadas elétricas nuas,
cheio de vapor, barulho e uma confusão babélica de vozes. Ali, numa comprida calha, uma fila de homens, arrebanhados, parecia, na ralé de Paris, estava febrilmente
lavando pratos que uma turma de ajudantes de cozinha continuava trazendo apressadamente, embraçadas, das cozinhas contíguas. Agora, pensou Stephen, após acomodar
os olhos àquela visão de pesadelo, sei o que significa um plongeur.
Entrementes, Amédée tinha se aproximado do contremaître, que, com um olhar indiferente para Stephen, entregou-lhe um disco de metal com um número estampado e marcou
o tempo a giz, diante desse mesmo número, numa ardósia que pendia do seu cubículo, ao lado de um aviso que advertia que se alguém fosse apanhado tirando porções
de alimento seria sumariamente processado.
E agora, imitando seu companheiro, Stephen tirou a sua jaqueta e, tomando lugar na fila, começou a lavar os pratos do jantar empilhados na pia. Não era trabalho
fácil, curvado sobre a calha baixa, e não havia interrupção. O odor da água espumosa nunca mudava, o mau cheiro da graxa e restos de comida era nauseante. Periodicamente,
a pasta de restos entupia o ralo e tinha que ser retirada com a mão. Era estranho, durante esse processo, ouvir um leve sopro de música polida vindo da orquestra
no pátio de palmeiras lá em cima.
Cerca das 11 horas, o ritmo diminuiu, e antes da meia-noite houve uma parada definitiva, que indicava que as damas e cavalheiros lá de cima tinham Sido alimentados.
Amédée, que durante todo o tempo não pronunciara uma única palavra, pôs o seu casaco, acendeu um cigarro e, com um movimento da cabeça, chamou Stephen para a porta,
onde o contramestre, após uma olhadela na pedra do tempo, pagou a cada um 2 francos e 50.
Lá fora, ainda em silêncio, ele caminhou de ombros caídos pelas ruas escuras e, cinco minutos depois, guiou o caminho para um bistro que ficava aberto a noite toda.
Ali, enquanto Amédée bebia vários Pernods, Stephen consumiu um pratarrão de pot-au-feu, grosso de boas verduras e pedaços de carne de carneiro. Era a sua primeira
refeição satisfatória em muitos dias, e sentiu-se melhor.
- Não quer alguma coisa? - perguntou ele.
- Isto é carne e pão para mim. - Amédée olhava com dura indiferença para o fluido esverdeado e opalescente do seu copo, que segurava com os dedos manchados de nicotina.
- Tem sido a minha dieta há muito tempo.
Sentado no café deserto, as luzes amortecidas, a mesa de bilhar lá atrás, protegida para a noite, o garçom solitário, semi-adormecido, com o seu guardanapo sobre
a cabeça, atrás do balcão, Amédée revelou alguma coisa de si mesmo em frases lacónicas.
Nascido na Itália, provinha de uma família de judeus italianos, estudara, a despeito das interrupções causadas por doenças, em Florença, e na Academia de Veneza.
Nos últimos sete anos, inspirado pelos primitivos e pela arte negra, tinha trabalhado em Paris, às vezes com o seu amigo Picasso, e ocasionalmente com Gris. Não
tinha vendido praticamente nada.
- Assim é que agora - concluiu ele, com o seu sorriso sombrio mas inquieto - me vê enfraquecido pela pobreza, pelo excesso de álcool, e pelo uso de drogas nocivas.
Sozinho, a não ser por uma moça que teve a desgraça de me conhecer. Despido de qualquer reputação. - Emborcou o resto da bebida e levantou-se. - Mas alegre pelo
fato de que jamais aviltei a minha arte.
Disse boa-noite, sem ênfase, na escada que levava aos seus aposentos.
Por breve que tivesse sido, aquele estranho encontro foi providencial para Stephen. Agora, aguentando todas as noites cinco horas de trabalho suado nos porões fumegantes
do Grand Monarque, podia sobreviver e, o que lhe parecia mais importante, continuar a trabalhar com toda a sua força na Circe.
Finalmente, cerca de três semanas depois, numa tarde seca e fria, terminava o trabalho. Lá estava ela, naquela atitude familiar de descuidada insolência, indiferente
mas aliciante, com seu rosto pálido e olhos enigmáticos, aquela moderna filha de Helios, tendo como fundo não o palácio de Aiaia, mas a rua de um bairro miserável
de Paris onde se agrupavam os seus amantes vencidos, mudados e degradados na forma de bestas, e que, domados e abatidos, olhavam para ela com um desejo servil, como
se ainda estivessem sedentos por suas carícias.
Exaurido por esse esforço final, Stephen foi incapaz de avaliar sua obra, que tomara uma forma fantástica por força de uma compulsão a que ele não pudera resistir.
Sabia apenas que nada mais podia acrescentar, e, em um espasmo de impaciência nervosa, embrulhou o quadro no mesmo papel pardo amassado que já usara antes e o levou
para o Institut des Arts Graphiques, na Place Redon. Lá, um funcionário idoso tomou o seu nome e anotou meticulosamente todos os detalhes em um livro; depois, constatando
que a tela não tinha moldura, relutou em aceitá-la.
- O senhor vê, monsieur, a especificação é de montage.
- Não notei.
- Mas é evidente. Olhe, monsieur, todas as outras peças estão corretamente montadas.
Stephen, relanceando os olhos por uma comprida galeria com dezenas de pinturas, sentiu uma súbita apatia. De uma maneira ou de outra, não se importava.
- Não posso comprar uma moldura. Aceite como está ou não aceite.
- Isso é muito irregular, monsieur. Mas, se quiser, deixe-a.
De volta ao seu sótão, sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, tomado
por uma letargia de pós-criação. E agora... que faria? Impossível continuar no Monarque - sua alma revoltava-se com essa ideia - contudo estava à beira da indigência.
Tirante as roupas que usava, o equipamento de pintura, e 15 soldos, não possuía nada de valor material. Tudo mais tinha empenhado. Levantou-se e olhou no armário.
Continha a metade de um pão, duro como pedra, e uma fatia de queijo. Lá embaixo, Amédée estava ausente há três dias, submerso numa das farras em que periodicamente
sucumbia, e da qual emergiria, entontecido, em alguma remota região da cidade. Atrás da divisão de madeira, o casal da porta ao lado tinha começado uma briga, gritando
um para o outro. Crianças brincando, discutindo, aumentavam a barulheira. Apesar da janela aberta, o quarto estava abafado pelo ar viciado da cidade, e nos lambris
rachados começava a usual procissão noturna de baratas.
Tudo isso, bastante difícil de aguentar, não era nada porém comparado com a insuportável sensação de solidão e privação que lhe torturava o peito. Não mais amortecido
pelo analgésico do trabalho, o seu desejo de que Emmy voltasse era mais forte do que antes. Ao contrário de Ulisses, nSo tinha uma erva mágica para proteger-se contra
o seu encanto. Culpava-se por não a ter convidado para ver o quadro. No dia seguinte ela tinha partido, indo para o sul com a troupe de Peroz - não a veria antes
de pelo menos seis meses, se é que tornaria a vê-la. Lembrando-se da enfatuação que Madame Cruchot tivera por ele, tremeu com a peça que o destino lhe tinha pregado
- agora era ele quem assumia o ridículo papel.
Não tinha nada em que se ocupar, nem ao menos um livro para ler; sentia-se inteiramente mole para se aventurar às ruas. Quando anoiteceu, deitou-se na cama, mas
não pôde dormir. O dia seguinte era terça-feira, e surgiu com um suave e límpido amanhecer. Ele se levantou e se vestiu. A ideia dos veículos do circo partindo naquela
tarde para o campo aberto e a ensolarada Côte d'Azur atormentava-o novamente. De repente, sem quê nem por quê, veio-lhe uma ideia. Por um momento, ficou imóvel,
parado no meio do soalho. Seria capaz disso? Ao menos poderia tentar. Apanhando o chapéu, saiu rapidamente do quarto e tomou, trémulo, a direção do Boulevard Jules Ferry.


CAPÍTULO VII

NUMA EXTENSÃO DE TERRENO COMUM, logo após os taludes de Angeres, naquela tarde de sol muito brilhante para o fim de outubro, o Circo Peroz armou
a sua cidade de lona vermelho vivo. As barracas de espetáculos secundários já estavam em ação, uma musiquinha vinha do carrossel das crianças, e os aboyers começavam
as suas exortações aos poucos espectadores presentes.
No seu stand, no fim de uma linha de barracas, vestido com uma blusa azul, boina, uma frouxa gravata preta, vestuário composto para sugerir às mentes rústicas a
altura da arte parisiense, Stephen respirava longamente o ar do campo, aromatizado com a fumaça de lenha, cascas de laranja, serragem fresca, tanino, e o cheiro
dos cavalos. A seu lado aprumava-se um cavalete enfeitado com uma tabuleta que o exaltava como Grand Maître des Academies de Londres et Paris, e prometia uma semelhança
exata, feita à mão, de perfil ou de frente, em carvão de primeira qualidade, por apenas cinco francos, em cores ricas e permanentes por sete francos e cinquenta,
cortesia e serviço iguais aos dispensados às cabeças coroadas da Europa, satisfação assegurada.
Ouviu-se o relincho de um garanhão, o agudo clangor de uma corneta e o grunhido fraco de uma leoa velha. Com a sua tosse praticamente desaparecida, Stephen experimentava
uma súbita recuperação do seu bem-estar físico. Não lamentava o impulso que o levara a Peroz três semanas antes.
- Aproxime-se, aproxime-se, cavalheiro. Vamos, senhor, convença mademoiselle a ter o seu lindo rosto pintado. Não seja modesto. Deixe um retrato para os seus netos.
Um casal de campônios, de braço dado, vestido com as suas roupas domingueiras, hesitava à sua frente, e então corando, a moça tomou coragem e aproximou-se. Não era
bonita, mas ele, em poucos e rápidos traços, esboçou a sua figura na folha que estava no cavalete, deu relevo à sua coifa de renda fina, aos bordados à mão dos seus
punhos, e, ensinado pela experiência, não esqueceu o broche de camafeu, um óbvio tesouro de família, que ela usava no corpete.
Enquanto isso, uma pequena multidão se juntava, ouvindo-se murmúrios de aprovação pelo retrato terminado, e logo ele estava trabalhando bastante. Para ele, não era
mais que um processo mecânico executado sem pensar; contudo, divertia-se em dar a alguns dos seus retratos uma individualidade irónica, detendo-se no detalhe de
uma feição particular, um olho bovino, uma orelha grande, um nariz bulboso, como acontecia às vezes nas noites de sábado, quando um cliente era ofensivo, desenhando
com malícia uma caricatura que, as mais das vezes, provocava o riso dos outros.
Às seis horas, a multidão diminuía, como sempre, antes da função principal do circo, e apanhando a sua tabuleta e tirando a blusa e gravata, Stephen entrava por
um labirinto de cordas e lonas para um pequeno recinto atrás da barraca contígua. Ali, acocorado diante de um vivo braseiro, um homenzinho enrugado, de perneiras
gretadas e culotes sujos de veludo cotelê, estava cozinhando o jantar. De pernas tortas, cabelo cortado rente, tinha feições nítidas,
castigadas pelo tempo, exceto o nariz, que era chato e quebrado. Seus olhos eram miúdos como contas, parados, e o fulgor do braseiro lhes dava calor.
- Que temos esta noite, Jo-jo?
- O de sempre. - Jo-jo olhou para cima. - Mas também um pouco de salsicha de carne de porco fresca, de Angers, que achei na Tur Toussaint. É uma das duas especialidades
desta cidade.
- E a outra?
- Cointreau, naturalmente, mon brave. É feito aqui.
As salsichas, respingando numa frigideira, pareciam cheias de promessas. promissoras. Jo-jo, que na sua mocidade tinha sido jóquei, depois vendedor de barbadas,
depois cavalariço, e depois bookmaker, e que finalmente tinha sido aconselhado a sair de Longchamps, era um cavador perito. Conhecia todas as tramóias da França.
Ninguém gostava mais de regatear no mercado ou de pegar uma galinha extraviada de uma granja à beira da estrada.
- Gostei destas duas noites aqui. - Stephen deu lugar no braseiro para o coador de folha do café. - Amanhã estamos de folga até as três. Pretendo dar uma olhada
no rio.
- O Loire é um bom rio - disse Jo-jo com um ar de quem sabe das coisas. - Fundo bom de areia, com muito peixe bom. Vou deixar umas iscas de noite e ver se temos
sorte. De fato, todo o país é bom para nós - Tours, Bolis, e especialmente Nevers. O vinho é um tanto fraco, mas a bóia é de primeira, e as mulheres... essas putas
da Touraine, grandes atrás e na frente... - Assobiou e revirou os olhos.
Enquanto ele falava, a aba da barraca se abriu e entrou um homem de aspecto estranho, com calças de xadrez e suéter caqui de gola rulê. Era alto e franzino, tão
dolorosamente magro que parecia um esqueleto, e o rosto e mãos - únicas partes visíveis do seu corpo - estavam cobertos por uma espessa crosta de escamas cor de
cobre. Era Jean-Baptiste, que participava de um dos mais pobres caminhões com Stephen e Jo-jo. Manso, taciturno e melancólico, era um caso extremo de psoríase crónica,
uma doença da pele, indolor mas incurável, sendo exibido aos curiosos como o Crocodilo Humano, produto da união de um sáurio feroz e de uma nadadora do Rio Amazonas,
com o que ganhava uma modesta subsistência.
- Teve uma tarde boa, Croc? - perguntou Stephen.
- Não muito - respondeu Baptiste sombriamente. - Nem um íntimo.
Essa era a parte mais proveitosa da técnica de Croc em descobrir-se lentamente, das extremidades para baixo; quando chegava ao umbigo, fazia uma pausa e, deixando
seus olhos correrem pela plateia, exclamava dramaticamente, com uma espécie de sedução macabra:
- Para revelações mais íntimas, estou à disposição na tenda dos fundos. Ingresso especial para essas revelações privadas, apenas cinco francos.
Quando a comida ficou pronta, sentaram-se em volta do braseiro - uma grande caneca de sopa fumegante, seguida pelas salsichas, duras mas suculentas, temperadas com
ervas do campo, um molho com pedaços de pão fresco cortados com uma faca dobradiça. Somente depois que se juntara à troupe, Stephen aprendeu a saborear os aumentos
comidos ao ar livre. Depois houve café, quente, forte e arenoso, servido na caneca de sopa. Então Jo-jo enrolou um cigarro e, com o ar de um mágico, tirou do bolso
dos quadris uma garrafa do límpido licor da região.
- Que tal um gole de vinho do altar, Abbé?
O apelido tinha seguido Stephen de Paris - ele não se importava. Passaram a garrafa de mão em mão, bebendo o claro e ardente licor sem copos. Jo-jo enrolava-o na
língua.
- Você pode confiar nele. Feito com as melhores laranjas de Valença.
- Uma vez me aconselharam a nunca comer frutas. Outra vez me disseram que não comesse outra coisa - disse Baptiste, que gostava de falar no assunto da sua doença.
- Ao todo consultei 19 médicos. Cada um deles mais tolo do que o outro.
- Então tome outra dose do meu remédio.
- Ah, isto é que é remédio para mim!
- Você não pode se queixar, Croc. Não tem uma existência rica e interessante? Você experimenta as delícias de viajar. Em suma, você é famoso.
- É fora de dúvida que muitas pessoas têm viajado 50 quilómetros para
me ver.
- E não tem um grande sucesso com as damas?
- Tenho mesmo. Exerço um certo fascínio sobre elas.
Diante desta séria admissão, Jo-jo soltou uma risada. Depois, apagando o cigarro, levantou-se para ver os cavalos.
Era a vez de Stephen lavar as panelas. Quando terminou, ao lusco-fusco, as luzes produzidas pelo gerador brilhavam como vaga-lumes sobre a feira. Olhando, sentia
todos os seus sentidos despertados. Não tinha visto Emmy todo o dia. Mas ela não gostava de ser perturbada antes do espetáculo, e o povo já convergia para a grande
tenda. Guardou o cavalete e o resto da tralha numa caixa, debaixo do seu beliche no caminhão, vestiu as suas roupas comuns e caminhava para a entrada dos fundos
do picadeiro. De acordo com o seu contrato, era seu dever acompanhar os membros de terra da companhia, que indicavam aos espectadores os seus lugares, vendiam programas,
sorvetes, citronade, e aquela marca de nugá feita especialmente em Paris para o Circo Peroz.
Parecia a Stephen uma excelente "casa" - o circo tinha uma reputação merecidamente popular através das províncias, e, com bom tempo, a mercadoria dos stands era
em geral totalmente vendida. Esta noite, fila após fila de rostos expectantes e rosados se ergueram da serragem do picadeiro. Subitamente,
na sua alta plataforma, vestido de vermelho e dourado, quando a charanga atacava uma grande marcha, o mestre do picadeiro, o próprio Peroz, apareceu de cartola,
alamares brancos e capa escarlate, dirigindo um cortejo de póneis que entraram na arena a meio-galope, atirando as crinas para os lados, e o espetáculo começou.
Embora, a esse tempo, conhecesse os números de cor, acocorado junto à grade do corredor da entrada dos artistas, com um bloco de esboços no joelho, Stephen acompanhava
cada fase, cada movimento do espetáculo com absorvido interesse, notando, vezes e mais vezes, os ritmos da coordenação muscular, o jogo de luzes e tons das cores
no vasto caleidoscópio cintilante, e mesmo as reações individuais, às vezes cómicas e bizarras, das pessoas da plateia.
Era fascinante, aquele novo mundo que ele havia descoberto, com os seus soberbos cavalos de alta escola, montanhosos elefantes e sinuosos leões de olhos amarelos,
seus acrobatas às cambalhotas, jograis prestidigitadores, funâmbulos da corda bamba sob os seus pára-sóis de papel. Observando, Stephen pensava na famosa peça de
circo de Manet, Lola no Arame, e na sua atual disposição melhorada sentia que podia desenhar aquele campo com igual riqueza. Desenho, sem dúvida, haveria, mas acima
de tudo a cor seria o instrumento da sua expressão. Via na sua paleta as cores puras, os ultramarinos, ocres e vermelhões, via como podia humanizá-lo sem reduzir
a sua intensidade. Criaria um novo mundo, um mundo que só ele percebia, um mundo somente para ele. Curvado no seu canto, desenhava e desenhava. Este era o seu verdadeiro
trabalho; os retratos que pintava de dia não eram mais que um meio de vida, e na pasta em sua caixa fechada já tinha dezenas de estudos que usaria numa formidável
composição.
Após o intervalo, davam entrada os artistas mais importantes - a troupe Dorando, de trapezistas; Chico, o engolidor de espadas; Max e Montz, os palhaços famosos.
A seguir, um soalho de madeira era rapidamente montado no centro do picadeiro e ouvia-se a fanfarra que conhecia tão bem, e que sempre fazia o seu coração bater.
Então, embaixo, via Emmy pedalando, usando uma blusa de cetim branco, calções brancos e compridas botas brancas. Ao chegar ao assoalhado, começava a executar, à
luz da bicicleta niquelada, uma série de evoluções que deixavam o espectador tonto, circulando e recuando e avançando, sempre no pequeno espaço, mudando de posição,
até que dirigia de cabeça para baixo segura no guidom, finalmente desmontando em movimento e fazendo complexas configurações numa roda só.
Talvez essas manobras fossem menos difíceis do que pareciam, mas o culto da bicicleta, uma paixão nacional que anualmente chegava ao auge nas agitadas semanas devotadas
ao Tour de France, tornava-a popular junto ao público. Uma tempestade de aplausos reboava embaixo da grande cúpula, seguida por um silêncio enquanto Emmy caminhava
para uma curiosa estrutura na
extremidade do picadeiro. Era um elevado escorregador, uma estreita fita de metal pintada de vermelho, branco e azul, que descia que descia quase verticalmente do
teto da tenda e terminava numa curva que subia bruscamente.
Alterando o seu ritmo, a banda exagerava a expectativa, enquanto Emmy, subindo lentamente por uma escada de corda, alcançava a minúscula plataforma do topo. Lá,
entrevista nas últimas espirais de fumaça, ela desenganchava uma bicicleta mais pesada das travas que a sustinham e segurava-a, testava o quadro, espichava os membros,
passava giz nas mãos, montava na máquina sobre a plataforma e, por um longo momento, parecia estar suspensa, quase flutuando na névoa de vapor. Os metais, que tinham
gradativamente diminuído para um profético murmúrio, vinham agora novamente à vida, apoiados por um estaccato de tambores que rufavam e reverberavam cada vez mais
alto. Era o instante que fazia Stephen desejar fechar os olhos. Jo-jo lhe dissera que, havendo perícia e coragem, o perigo era limitado; a estria branca do centro,
na qual as rodas deviam andar precisamente, tinha menos de 15 centímetros de largura, e depois da chuva, ou quando a umidade era grande, a superfície escorregadia,
apesar de enxugada, era traiçoeira. Contudo, não havia tempo para pensar - numa tempestade final de som, Emmy soltou-se, caiu parecendo uma pluma, projetou-se para
cima na curva e pousou na plataforma de madeira com uma velocidade que a carregava para fora da tenda como um raio.
No meio dos aplausos, embora não pudesse sair, Stephen escapou e rodeou para a barraca onde os artistas se vestiam. Teve que esperar 15 minutos até que ela saísse,
e imediatamente sentiu que ela não estava de humor muito amável.
- Então? - perguntou ela.
- Você esteve ótima... notável - afirmou ele.
- A pista estava molhada - um orvalho pesado - e esses fripons preguiçosos não enxugaram nem a metade. Então não sabem que é suicídio deslizar numa pista úmida?
Eu quase não desci. - Em várias ocasiões, por causa disso, tinha cancelado o número - de fato, tinha um acordo com Peroz que lhe permitia tomar essa resolução. Mas
a queixa deixou-lhe a voz. - Mas esta noite eu queria mesmo.
- Por quê?
Ela não pareceu ouvi-lo. Então, indiferente, respondeu:
- Por causa daqueles militares.
- Soldados?
- Não, estúpido, oficiais, naturalmente. Havia aqui uma escola de cadetes do primeiro ano. Não viu o grupo na frente da tribune?
- Acho que não.
- Uma turma elegante, isso era, nas suas túnicas. Eu gosto de uniforme.
E eles estavam querendo que eu os visse. Não que eu notasse, naturalmente. - A sua expressão amuada afastou-se um pouco. - Eu fiz um extra para eles.
Ele mordeu o lábio, procurando abafar o ciúme que ela tinha tanta capacidade de despertar nele. Após o calor sufocante da tenda, o ar era leve e fresco.
- Vamos caminhar até os muros da cidade... lá é muito bonito.
- Não. Não estou com disposição.
- Mas está uma noite tão linda. Olhe, a lua acaba de sair.
- E eu vou entrar.
- Não vi você o dia todo.
Nenhum músculo do seu rosto Se moveu.
- Já me viu agora.
- Apenas um momento. Venha.
- Já não lhe disse que fico cansada depois do meu número? A tensão é muito violenta. Pra você, tudo muito bem, vendendo programas e nugá lá embaixo.
Ele viu que era inútil insistir mais. Escondeu estoicamente o seu desapontamento. Chegaram ao caminhão que ela partilhava com Madame Armande, a mulher que cuidava
do vestuário da troupe. Ele tinha pensado nela o dia inteiro, sentia-se faminto por sua companhia, por um sinal da sua afeição. E ela estava ali, a sua figura ao
luar, rija, sedutora; queria agarrá-la e beijar à força o seu rosto pálido e indiferente, a sua boca ligeiramente entreaberta. Mas não fez nada disso, limitando-Se
a dizer:
- Não se esqueça de amanhã. Venho buscá-la às 10.
Viu-a subir as escadas a correr e desaparecer no caminhão.
Ao voltar, a função tinha terminado e a multidão se despejava pela saída da grande tenda, falando, gesticulando, rindo. Todos pareciam felizes, satisfeitos com a
vida e consigo próprios, ao voltarem aos seus lugares comuns e confortáveis. Stephen perdeu aquela sua primeira disposição alegre. Inquieto e perturbado, não podia
voltar ao seu canto, enfrentar as caçoadas de Jo-jo e os roncos de Baptiste. Saiu para as muralhas sozinho.


CAPÍTULO VIII

NA MANHÃ SEGUINTE, trazida por uma alvorada mansa e cinzenta, ela o surpreendeu e alegrou por sua pontualidade. Estava quase pronta quando ele chegou,
e pouco depois estavam nos seus vélos, rumando para o Loire, no belo contorno de Angeres, com as suas muralhas romanas, a Catedral de St. Maurice com suas agulhas
e as arcarias da préfecture atrás deles. Como sempre, ela imprimia um ritmo muito veloz, curvada sobre o guidom, as pernas movimentando-se como pistons, com o firme
propósito de deixá-lo para trás. A bicicleta dele, comprada barato com o seu primeiro pagamento semanal, era um modelo antigo; contudo, o ar fresco e a comida do
campo tinham-no robustecido. Embora lhe custasse um esforço contínuo ladeira acima, mantinha o seu lugar pouco atrás do ombro dela.
Atravessaram, dali a pouco, um arvoredo à esquerda e imediatamente se descortinou todo o esplendor do vale - o rio grande e largo brilhando na luz plácida, movendo-se
preguiçoso entre as ribanceiras e sobre baixios de areia dourada, passando por altos tufos de vimeiros, barcos de fundo chato atracados e ilhotas verdes. Na estrada
serpenteante, pesada pela areia, diminuíram a velocidade. Por trás de uma cortina de faias, Stephen avistou as torres pontudas e a fachada musguenta de um antigo
castelo. A beleza da região era inebriante para o seu espírito. Soerguido, olhou para a sua companheira, fez como se fosse falar, mas, depois, sabiamente, absteve-se.
Por volta do meio-dia, chegaram a um staminet à beira do rio, onde, acima da porta, um peixe monstruoso, enredado em algas, nadava numa caixa de vidro. Primeiro,
Stephen tinha proposto um piquenique, mas isso tinha pouca atração para Emmy, que sempre preferia parar em algum café provavelmente freqüentado pela confraria esportiva,
onde, numa atmosfera de camaradagem, havia livre companheirismo, vivas conversas em gíria e a música de um acordeom. A estalagem, todavia, embora possuísse um considerável
encanto, estava vazia de clientes - um fato que não desagradou Stephen, que sofria com a admiração demasiado franca que a sua companheira gostava de provocar. Atravessaram
o soalho de pedra limpo com areia, sentaram-se à mesa esfregada com escova e sabão junto a uma janela, da qual pendia um banco, e, após consultarem a proprietária,
escolheram um prato de peixe local que ela recomendara muito. Este chegou pouco depois, numa enorme travessa de madeira, um fritto de minúsculas espadilhas do Loire,
cada uma não maior do que um filhote de arenque, cozidas tão secas que se quebravam ao toque do garfo. Com eles vieram pommes frites e uma jarra de Bière Navarin,
preferida por Emmy.
- Isto é bom - disse Stephen, olhando por cima da mesa.
- Não é mau.
- Gostaria de pedir uma garrafa de vinho para mim - disse ele em tom de pedido.
- Eu gosto desta cerveja. Faz-me lembrar de Paris.
- Num dia como este?
- Em qualquer dia Paris me basta.
- Ainda assim... você não se importa de estar aqui não é?
- Podia ser pior.
Emmy não era afeita a superlativos, mas neste momento estava de excelente humor, e dali a pouco pôs-se a rir.
- Você não adivinha o que eu recebi esta manhã. Flores. Rosas. E um billet-doux de um dos oficiais.
- Ah, sim? - A sua expressão tornou-se ligeiramente rígida.
- Aqui está. Monograma gravado e tudo. Com outra risada, apalpou o bolso e tirou um bilhete cor-de-rosa amarrotado. - Dê uma olhada.
Ele não tinha vontade de ler o bilhete, mas também não queria ofendê-la. Passou rapidamente os olhos, notando o duplo sentido das frases polidas que a convidavam
a ir tomar um aperitivo na Terrasse e depois jantar no Le Vert d'Eau. Devolveu-o sem comentário.
- Ele é capitão, parece. Acho que o vi no grupo de ontem à noite. Alto e bonito, de bigode.
- Você vai? - perguntou ele, mascarando os seus sentimentos com um tom inexpressivo.
A fria ironia da sua maneira atravessou a sua auto-estima. Ela raramente corava, agora uma leve cor apareceu por baixo da sua pele branco-azulada.
- Quem é que você pensa que eu sou? Conheço essas guarnições da cidade e o que se pode arranjar com elas. Pra mim não, obrigada.
Stephen ficou silencioso. Embora se desprezasse por isso, e em vão tentasse combatê-lo, de tempos em tempos o ciúme lhe vinha num impulso dominador. A simples ideia
de que ela pudesse sair sozinha com aquele oficial desconhecido causava-lhe um sofrimento penoso. Contudo, ela declarara categoricamente que iria ignorar o convite;
assim, obrigando-se a ser razoável, forçou um sorriso conciliatório.
- Vamos descer até o rio. - Quando brigavam, era sempre ele quem procurava fazer as pazes.
Pagou a conta, e desceram à beira da água. O sol, geralmente quente para aquela época do ano, tinha esmaecido e, lançando reflexos da água que faziam fechar os olhos,
envolveu-os num banho de luz. Ele amava o sol - sol e água eram os deuses gémeos que poderia adorar. E enquanto ela acendia um Caporal e, com os olhos fechados,
relaxava numa postura cómoda na sombra de um salgueiro, ele sentou-se na claridade aberta e começou a desenhá-la. Já tinha feito dezenas de desenhos, nos quais se
refletia não apenas a intensidade do seu sentimento por ela, mas também a complexa interação de angústia, desejo e, por vezes, quase ódio que o compunha.
Não estava cego àquela forma de egoísmo, crueldade e vaidade, que em outra pessoa teria provocado o seu desprezo. Sabia que ela apenas o tolerava
- talvez porque a sua mentalidade gaulesa se detivesse nas possibilidades da grande proprieté, mas principalmente, e disso tinha certeza, porque o seu evidente desejo
a lisonjeava, dava-lhe uma sensação de poder apreciada por sua natureza. Ela lhe trazia mais sofrimento que felicidade. Contudo, nada podia fazer. Desejava-a com
uma necessidade física que, não sendo por ela satisfeita, aumentava de dia para dia.
Dali a pouco, erguendo os olhos do bloco, viu que ela estava dormindo. Deixou escapar, involuntariamente, um suspiro nervoso e irritante. Soltando o seu bloco e
creions, aproximou-se mais da margem, e então, num impulso, tirou a roupa e mergulhou no rio. Sabia, pelas excursões anteriores, que ela não gostava daquilo - tinha
uma aversão felina pela água fria - mas para ele o choque daquelas águas vindas de fontes era uma revigorante delícia.
Quando voltou, ela estava em pé, sacudindo o capim do cabelo cheio e curto.
- Você sabe deixar os outros sozinhos.
- Pensei que estivesse dormindo.
- Que horas são?
- Ainda é cedo - disse ele, aproximando-se e enlaçando-a pela cintura.
- Ainda temos mais uma hora.
- Oh, deixe-me! - Inclinou-se para trás e empurrou-lhe o peito com as mãos. - Você está molhado.
- Mas Emmy...
- Não, não. Não devemos chegar atrasados. Você não vai querer perder o seu emprego. É tão agradável e conveniente para você, não é?
- Sim, claro - respondeu ele com voz tensa. Ela já estava voltando para a estalagem e Stephen a acompanhou.
Aquele raro interesse pelo seu bem-estar intrigava-o. E não se dissipou pela sua disposição animada, quando voltavam a Augers. Em voz alta, ela ia cantando trechos
da última canção do teatro de variedades:
Les jolis soirs dans les jardins de l'Alhambra Ou donc sont les belles?
Que l'amour appelle?...
Et le rendez-vous, de l'amour très fou.
E seguindo seu hábito quando estava alegre, deixava os habitantes locais de boca aberta, com uma exibição de ciclismo difícil ao passarem rapidamente pelas aldeias
ribeiras.
Ainda não eram três horas quando chegaram ao circo, e poucas pessoas estavam diante dele. Stephen trocou de roupa e armou o seu cavalete. Trabalhou toda a tarde,
de um modo ausente, sorumbático, com as linhas da testa
cada vez mais fundas. Embora lutasse contra a ideia de que ela abreviara a excursão a fim de ir ao encontro na Terrasse, essa ideia só fazia aumentar. O crepúsculo
não lhe trouxe nenhum alívio, e durante o jantar mal trocou uma palavra com Jo-jo e Croc.
Por fim, levantou-se bruscamente e foi para o outro lado do campo, onde estava o caminhão de Emmy. Madame Armande estava sentada nos degraus, com um balde entre
os joelhos gordos, lavando meias. Em certa época, ela fizera parte de um número de trapézio, mas quebrara o quadril numa queda e desde então caminhava coxeando.
Agora, aos 50 anos, pesada e sem formas, de pernas hidrópicas e papada, era conhecida como a mexeriqueira da companhia Jo-jo, que cuspia ao ouvir o nome dela, dizia
que durante o recesso de inverno ela gerenciava um estabelecimento de reputação duvidosa no porto do Havre.
- Boa noite - disse Stephen, tentando manter a voz calma. - Emmy está?
Madame Armande mediu-o de esguelha com os seus olhos miudinhos.
- Mas Abbé, você sabe muito bem que ela não vê ninguém antes do espetáculo.
- É só um instante.
Ela abanou a cabeça encaixada num lenço estampado com bolinhas.
- Eu não me atrevo a perturbá-la.
- Então... - Hesitou, ansioso por acreditar nela. - Está descansando?
- A mulher levantou os braços.
- E que mais? Nom de Dieu, acha que sou mentirosa?
A sua indignação era real ou fingida? Ele queria entrar no caminhão, mas a mulher e o balde bloqueavam a entrada. Não devia tornar-se completamente ridículo. Forçou-se
a fazer algumas observações convencionais, e voltou para a escuridão.
O povo chegava aos bandos, a função começava, risadas estrepitosas e aplausos enchiam a grande tenda. Ela estava atrasada. Seria por simples coincidência? Não podia
ter certeza. Procurou tranquilizar-se. Quando ela finalmente apareceu, a impressão, conforme sua fantasia superexcitada, foi de que estava mais aparatosa, mais espetacularmente
viva do que o usual. Gritos prolongados de "bravo!" vinham da tribune quando ela deixou o picadeiro.
Depois disso, na confusão de arrancar as estacas, não pôde vê-la. Melancolicamente, juntou-se a Jo-jo e Croc na tarefa de desmontar os stands. Trabalhando sem atenção,
cortou a mão num gancho de ferro. Não se importou. Um vento frio começava a fustigar o campo. O gerador foi desligado, as luzes elétricas se apagaram. Em toda a
volta, à luz de fogachos vermelhos, entre gritos e imprecações, homens trabalhavam como demónios, desencravando pontaletes, puxando cordas, lutando com grandes abas
de lona. Como sempre
acontecia na primeira hora de movimentação, os animais estavam nervosos, soltando em todos os tons, nas suas jaulas móveis, sinistros uivos de protesto. Os engenhos
de tração, pulsando e roncando, com os volantes girando, aumentavam o tumulto. Para Stephen, parecia que a cena vinha diretamente das gravuras do Inferno de Doré,
e que ele também estava sofrendo as torturas das almas danadas.


CAPÍTULO IX

DE ANGERS, O Circo PEROZ deslocou-se para Tours, depois para Blois, e então para Bourges e Nevers. O tempo se mantinha bom, o negócio prosperava, o velho Peroz usava
o seu chapéu num ângulo elegante. Após uma estada de três dias em Dijon, viraram para o sul e chegaram a Côte d'Or, detendo-se uma noite nas velhas cidades muradas,
com portões de acesso estendidas entre vinhedos, ao longo do vale do Ouche.
A princípio, Stephen era olhado com reserva pela companhia. Mas como a "retirada" semanal dos seus retratos era satisfatória, e uma percentagem fixa dessa soma ia
para o tronc, do qual todos os artistas participavam quando era distribuído em Nice, ele começou a ganhar importância. Além disso, as suas maneiras agradáveis e
disposição tranquila logo o puseram em termos amistosos com a maioria da troupe.
Formavam um painel humano. Fernand, o domador de leões que passeava destemido na jaula circular de ferro das feras, como um hussardo no seu uniforme azul e prateado,
com uma manga dramaticamente rasgada em pedaços, era o mais tímido dos homens, sofrendo agudamente de dispepsia nervosa e sendo mimado com uma dieta de leite por
sua devotada esposa. Os próprios leões eram inofensivos como vacas, na maior parte muito velhos, os machos castrados rugiam somente porque queriam o seu jantar,
e todo o aparato de cercar a jaula de auxiliares com ferros em brasa era pura encenação.
"Não tivemos um acidente em 20 anos", observava complacentemente Peroz no boletim que antecipava ao jornal local da próxima cidade do circuito.
ESCAPOU POR UM TRIZ NO CIRCO PEROZ
LEOA ATACADA DE LOUCURA
Fernand gravemente machucado
Max e Montz, ambos anões, eram os dois palhaços principais, um par internacionalmente famoso, cujo número maior era chamado "O Rapto", um esquete no qual Max, ataviado
em rendas grotescamente fora de moda, desempenhava o papel de noiva velhota. A rotina, executada num antigo automóvel Panhard que enguiçava e se recusava a funcionar,
caindo finalmente aos pedaços, era ruidosamente cómica. Max, com o seu beicinho de criança, fazia a platéia morrer de rir. Contudo, fora do picadeiro mostrava uma
melancolia mais profunda que a de Hamlet, tendo confiado a Stephen que a paixão de toda a sua vida era o violino.
Com tais incoerências diante de si, Stephen ficou menos surpreso ao descobrir que o equilibrista japonês era um adepto da Ciência Cristã, que Nina D'Amora, que cavalgava
em pêlo, era alérgica a cavalos e em consequência sofria cronicamente de asma, ao passo que Philippe, que todas as noites corria riscos espetaculares no trapézio
alto, passava a maior parte do seu tempo de folga tricotando meias.
Por formar um grupo com Jo-jo e Croc, Stephen via-os mais do que aos outros. Jean Baptiste, por baixo da sua aparente apatia, era um homem sensível e inteligente
- Stephen fez dele vários esboços notáveis, em pé na sua plataforma, diante da multidão boquiaberta. Fora bem educado no lycée de Rouen, e chegara a assumir uma
posição com boas perspectivas numa excelente firma, La Nationale. Então lhe viera aquela afecção incurável, transformando-o gradualmente de um ser normal em um monstro
medonho - um irremediável desenvolvimento - e levando-o ao desespero final de um show secundário no Circo Peroz.
Mas era a Jo-jo que Stephen dispensava uma particular atenção. O ex-jóquei era um rematado patife que roubava em qualquer oportunidade, trapaceava pelo interior
e embebedava-se até cair e ficar no chão estuporado, "curando" a bebedeira. Contudo, na sua duplicidade havia uma qualidade curiosamente humana de que se gabava:
jamais em sua vida ter deixado um amigo sem ajuda. Às vezes, de noite, depois de ter visto Emmy, quando vinha ao camion adaptado onde ele e os outros dois moravam,
Stephen surpreendia Jo-jo com o olhar peculiarmente fixo nele - menos por simpatia, uma emoção que Jo-jo era incapaz de sentir, do que por uma espécie de cínica
compreensão, levemente tingida de escárnio.
- Saiu com a sua garota?
- Parece, não?
- Divertiram-se?
Stephen não respondia.
Em várias ocasiões, o ex-jóquei parecia querer tratar do assunto, mas em vez disso encolhia os ombros e voltava-se para Jean Baptiste, iniciando com ele uma discussão
que tornava intencionalmente grosseira, como agora:
- Qual é a sua opinião sobre as mulheres, Croc?
- Considero-as com tolerante desprezo.
- Você fala como um marido.
- Sim... já fui casado. Minha esposa agora opera a passage à niveau em Croiset, no Chemin de Fer du Nord. A minha mais cara esperança é que um dia o expresso de
Paris, correndo 90 quilómetros por hora, atinja-a numa parte vulnerável.
- De minha parte, apesar de nunca ter me casado, gosto de mulheres. Mas só para dormir com elas. Para o resto, são piores que uma gonorréia.
- Mas a gente consegue isso dormindo com elas.
- Não com as minhas mulheres. Nunca escolho putas. Somente boas e honestas esposas camponesas que encontro no mercado e estão à procura de alguma ligeira variedade.
- Ah, variedade! Essa é a verdadeira palavra - à qual devo muito do meu último sucesso.
- Você, escamado?!
- Mas certamente. Tenho feito muitas conquistas com meus íntimos através da curiosidade. Mulheres entediadas com o leito matrimonial fazem qualquer coisa por uma
novidade. Li uma vez que um assassino condenado à guilhotina pode escolher dezenas de mulheres.
- Sacré bleu! Embora mereça, você não vai perder essa cabeça feia.
- Não. Mas exerço a mesma atração. Refletindo sobre a força da cauda do crocodilo, as mulheres acreditam que sou dotado de um formidável poder fálico.
- Mas você as decepciona, farceur.
- Isso só aconteceu uma vez, Jo-jo. Era uma gorda, solteirona, sem ligações, que durante meses me seguia na esperança de que os nossos repetidos enlaces produzissem
um jacaré. Infelizmente a criança nasceu normal.
Uma gargalhada profana encheu o caminhão, mas Stephen não participou dela. Sabia que o diálogo era dirigido a ele, não por qualquer intenção maldosa, mas como um
remédio administrado à vítima de uma febre renitente. Contudo, a sua doença já progredira tanto, que parecia incurável, intensificada pelos humores e incoerências
de Emmy. Às vezes ela o tratava bem, sentava-se nos degraus do caminhão, lisonjeada por suas atenções, cheia de sua própria importância, balançando os pés nus ao
sol. E conquanto não fosse pródiga com os seus favores, vez por outra, quando passeavam juntos no escuro, deixava que ele a beijasse antes de se afastar rapidamente.
Em vão ele dizia consigo mesmo que, numa natureza tão carente de profundidade, jamais despertaria uma paixão correspondente. Voltejava em torno dela como um marimbondo
em torno de uma nectarina, mas sem penetrar uma única vez na carne macia do fruto.
Numa tarde chuvosa, quando tinham deixado o agradável distrito do Saône pelo território estéril do Pays de Dombres, foram até uma pequena e dispersa comunidade de
Moulin-les-Drages. O seu destino inicial era St. Etienne, mas o trator principal quebrou na estrada, detendo uma longa fila de carros rebocados, e uma vez que o
conserto demoraria pelo menos 24 horas, era forçoso fazer um alto. Peroz, muito aborrecido por perder uma data importante, resolveu, após considerável debate, oferecer
um espetáculo em Les Drages e assim diminuir um pouco o seu prejuízo.
Mas tendo começado com má sorte, o dia continuou de mal a pior. Cartazes não tinham sido previamente afixados; a cidade, investigada, mostrou ser mesquinha e pobre,
sendo a única indústria uma olaria decadente. E a chuva aumentava continuamente. Quando chegou a noite, não havia mais de 100 pessoas na tenda gotejante.
Honrando a tradição Peroz, a maior parte dos artistas apresentou os seus números em bom estilo, voltando depois para a grande estufa da sala de estar. Emmy, contudo,
foi menos afortunada. Duas vezes, durante as suas evoluções preliminares, as rodas derraparam e ela foi atirada no chão molhado. Como resultado, cortou a parte principal
do seu número e saiu do picadeiro pedalando com a cabeça no ar. A primeira queda provocara risadas na plateia aborrecida; a segunda, uma positiva zombaria, seguida
de uma vaia com miados de gato.
Quando Stephen a viu depois, fora da tenda, ela ainda estava pálida com o vexame. Ele sabia que não devia falar, e por isso saiu com ela pela estrada em direção
ao acampamento, cerca de um quilómetro e meio distante, onde os carros estavam estacionados. Para piorar as coisas, não tinham andado muito quando desabou um forte
aguaceiro, forçando-os a se abrigar num celeiro ao lado de um campo aberto de restolho.
Quando seus olhos se habituaram à escuridão, Stephen olhou em torno, observando que o lugar estava cheio de palha. Rompeu o silêncio.
- Aqui pelo menos está seco. - E acrescentou: - Estou contente porque não apresentou hoje a parte final. Aquela gente não merecia.
- Que quer dizer?
- Bem... - Corou ligeiramente. - Eram gente um tanto antipática.
- Não notei. Eu sempre domino a minha plateia.
- Então por que não desceu?
- Porque a pista estava ensopada. Você não entende que na chuva isso é suicídio? - Num ataque de mau humor, seus olhos cintilaram para ele. Quem é você para ficar
aí me criticando? Sabe lá os riscos que eu corro todas as noites, enquanto você fica sentado lá atrás, rabiscando numa folha de papel, com menos coragem do que um
piolho? Eu desço ou não desço exatamente quando resolvo. E não vou quebrar o pescoço por nenhum padrezinho.
Ele a encarou por um momento, agora tão pálido quanto ela; depois, furioso, agarrou-a subitamente pela cintura.
- Não me fale assim!
- Largue-me.
- Só se me pedir desculpa.
- Fiche-toi le camp.
No próximo instante estavam lutando. Cego de raiva, recordando todos os insultos e desfeitas que ela acumulara nele, resolvido a vencê-la fisicamente, fechando ambos
os braços em torno dela como um lutador, tentou levá-la ao chão. Mas ela lutava como um gato selvagem, torcendo-se e revolvendo-se na palha fofa, malhando-o com
os cotovelos. Ela era mais forte do que ele julgava, com músculos curtos e poderosos de felina agilidade. Começou a respirar pesadamente, sentindo a pressão do seu
corpo contra ele. Retesando cada músculo, ele resistia. Rolaram por aqui e ali, sem decisão, até que ela, encolhendo a perna por trás dele, atirou-o longe com uma
rápida distensão.
- Está vendo? - disse ela. - Que isso lhe sirva de lição.
Ele se levantou devagar. Estava menos escuro do que antes; através da
clarabóia do celeiro, a lua era visível correndo entre as nuvens. Com um esforço, ainda tentando recuperar o fôlego, forçou-se a olhar para ela e viu, com confusa
surpresa, que ela não havia levantado; estava deitada de costas sobre a palha, com o vestido ainda desarranjado pela luta, observando-o através dos olhos apertados
com uma curiosa expressão especulativa, excitada, mas, ainda vagamente zombeteira. No seu rosto, geralmente de uma palidez fria, havia uma orla de cor, nos seus
lábios pálidos um sorriso ligeiramente mau. Por um momento, sustentou o olhar dele; depois, colocando ambos os braços embaixo da cabeça, numa atitude menos de sedução
que de expectativa, fez um movimento impaciente.
- Então, estúpido... que está esperando?
O convite que ele tanto havia procurado era inconfundível, contudo tão descarado, tão despido da menor semelhança de afeição, que ele não podia se mover. Petrificado
e repelido, mirava-a, e, girando, saiu do celeiro sem uma palavra.
- Molenga! - gritou-lhe ela. - Espèce de crétin.
Ele caminhou talvez uns 30 metros antes que o desejo lhe surgisse novamente, mais desesperado do que antes. Pouco se importava, queria-a, e haveria de possuí-la
de qualquer maneira. Virou-se e voltou.
- Emmy... - Estava fraco, encolhido de desejo por ela. Mas agora ela estava fria e dura como uma pedra.
- Vá para o inferno - disse ela outra vez zangada. - Agora espere outra oportunidade.
A expressão dos seus olhos dizia-lhe que era inútil insistir. Novamente
saiu do celeiro. Sem saber aonde ia, caminhava direto para a frente, com os olhos contraídos e os lábios apertados. Naquelas últimas semanas, vitimado por seu desejo
insaciável, reduzido a uma perpétua atitude de propiciação, já tinha sido bem humilhado. Mas agora, ferido em sua sensibilidade, sentia-se no mais baixo nível de
abjeção. Não podia, não devia submeter-se a isso.
Seus pensamentos não tomaram uma forma coerente até chegar de volta ao acampamento do circo. Uma vez que o motor enguiçado não seria reparado antes da manhã seguinte,
nada tinha sido desmontado, e no campo enlameado a grande tenda se erguia deserta e vazia. Alguma coisa buliu dentro dele. A luz brilhando através da abertura do
topo do dossel banhava o picadeiro com uma luz espectral, mostrava a pista inclinada, que não fora desmontada, brilhando de umidade. Um estranho impulso, um senso
de dever para consigo mesmo, lentamente foi tomando forma no seu espírito atormentado. Olhando para cima, viu que o equipamento ainda estava no lugar. Incapaz de
reprimir um arrepio, dirigiu-se para a escada de corda, seus pés deixando pegadas na serragem molhada. Segurou a corda e começou a subir vagarosamente. Momentaneamente
uma vertigem paralisou-o. O vento naquela altura tinha mais força, fazendo a pista oscilar, e o grande toldo, panejando e agitando-se, aumentava a sua impressão
de insegurança. Ele compeliu os seus músculos rígidos ação. Olhando para cima e usando uma mão, desenganchou a bicicleta da trava e, ainda seguro firmemente ao mastro
com o outro braço, alinhou as rodas. Montou trémulo na máquina e forçou-se a olhar para baixo.
O picadeiro, lá embaixo, era impossivelmente pequeno, um distante disco amarelo. A pista na qual ele estava pousado não tinha mais substância que uma simples fita.
Outro violento tremor lhe percorreu o corpo. Continuava seguro, podia voltar atrás. O medo petrificava-o. Lutou com ele. O que quer que acontecesse, tinha que descer.
Respirou fundo, firmou a sua posição na bicicleta, curvou-se para diante. Ao fazer isso, teve a vaga consciência de um grito, de uma figura encurtada e escura que
acenava lá de baixo. Se pretendia avisar, era demasiado tarde. Focando o olhar na lista branca central, com um supremo esforço da vontade, soltou a mão que o segurava.
Veio uma fração de segundo de voo, uma descida incrível, um empuxão para cima que o catapultou para o ar, e no mesmo instante, com um salto ruidoso, estava embaixo,
atirado com tremenda velocidade para fora do campo, estatelado na lama mole da vala que o margeava.
Por um momento lá ficou, imóvel, surpreso por estar vivo. Até que ouviu alguém correr para ele.
- Nom de Dieu... Está querendo se matar? - Era Jo-jo, desta vez em considerável estado de agitação.
- Não - disse Stephen, levantando-se tonto. - Mas acho que vou ficar enjoado.
- Seu filho da puta maluco. Que bicho lhe mordeu?
- Precisava de um pouco de exercício.
- Você está louco. Quando vi você lá em cima, pensei que estava liquidado.
- E que diferença isso teria feito?
Jo-jo encarou-o.
- Pelo amor de Deus, venha tomar um drinque.
- Muito bem - disse Stephen, e acrescentou: - Não comente isso com ninguém.
Foram até o café da aldeia. Depois de um bom copo de Calvados, a mão de Stephen parou de tremer. Lá ficou bebendo com Jo-jo, quase em silêncio, até que o lugar fechou.
O conhaque pesava-lhe na cabeça, fazendo-o sentir-se embotado e entorpecido. Mas na verdade não tinha realizado nada. A dor no coração ainda estava lá.


CAPÍTULO X

DUAS SEMANAS SE PASSARAM. Estavam em Nice. A cidade, iniciada pelos terraços de mimosas de La Burnette, era maior do que Stephen imaginava. A Promenade de Anglais,
a cintilante orla marítima, com os seus canteiros formais e hotéis ostentosos, dava uma desagradável nota pretensiosa. Mas o terreno do circo ficava bem para o interior,
na direção de Cimiez, atrás da Place Carabacel, cercado de ruas estreitas com feiras ao ar livre e pequenas barraquinhas de frutas, verduras e uma profusão de flores,
uma rede de coloridas e ruidosas passagens que tinham o encanto íntimo de Paris acrescido do calor do Sul.
- Nada mau, hein? - disse Jo-jo, expandindo o seu magro peito embaixo do colete rasgado.
- Gosta daqui?
- Muito. E você também vai gostar. - Fez um gesto abrangente. - Há muito interesse para um artista na Carabacel.
Em outro momento teria sido um entretenimento para Stephen explorar aquele bairro. Agora, tenso e inquieto, sentia que não poderia trabalhar. Mas obrigou-se a tal
com o seu bloco Ingres e fez alguns estudos dos nicenses - uma velha de touca branca vendendo alcachofras, um homem do campo
com uma rede de galinhas vivas, trabalhadores tapando um buraco na estrada. Contudo, o seu coração não estava naquilo, e ao calor do meio-dia voltou para o acampamento
a fim de descansar um pouco antes de começar o trabalho na sua barraca.
Na tarde seguinte, diante do seu cavalete na feira, completava o seu último retrato da sessão quando notou que havia um espectador atrás dele, ligeiramente inclinado
sobre uma bengala de rotim. Algo na sua postura despertou-lhe um eco na memória. Voltou-se.
- Chester!
- Como está, meu velho? - Harry rompeu no seu riso contagiante, descalçou uma luva de couro lavável e estendeu-lhe a mão. - Soube que você tinha entrado para o Peroz.
Mas por que diabo está com essa fantasia?
- Faz parte do trabalho.
- Claro, uma maneira de atrair os nativos. Mas não o faz sentir-se com cara de tolo?
- Ora, estou acostumado. Espere, que já estarei com você.
Enquanto Stephen dava rapidamente os toques finais no retrato, Chester tirou uma cigarreira e acendeu um cigarro. Espremido num traje de linho branco, sapatos marrons
e um chapéu panamá, tinha um ar abastado. Calças bem vincadas, camisa de tussor de seda, exibia uma elegante gravata-borboleta. O rosto estava bem queimado.
- Não posso acreditar que você esteja aqui. Embora tivesse dito que ia para Nice. Você parece estar bem.
- Estou em ótima forma, obrigado.
- Suponho que teve alguma sorte nas mesas.
- Para dizer o mínimo, tive. - O sorriso de Chester escureceu. - Eu estava nas últimas e apostei os 50 francos que me restavam no duplo zero. Por quê? Porque sabia
que teria menos que zero se perdesse. Deu o duplo zero. Deixei tudo. Por quê? Só Deus sabe. E deu o duplo zero outra vez. Meu Deus, você nunca viu semelhante pilha
de grandes e lindas fichas quadradas vermelhas em sua vida. Fui apanhá-la. Não pude. Alguma coisa dentro de mim dizia sorte pela terceira vez. Quando a roda girou,
quase morri. O duplo zero deu de novo. E desta vez recolhi tudo rapidamente e fui trocar no guichê do caixa. No dia seguinte mudei-me do prejuízo para Villefranche,
um pequeno apartamento. Desde então estou vivendo como um lorde. - Tomou o braço de Stephen. - Agora fale-me de você. Como vai o trabalho?
- Assim-assim.
- Vamos vê-lo.
Stephen guiou-o até o seu caminhão, apanhou algumas telas e inclinou-as, uma depois da outra, contra a calota da roda, enquanto Harry, com uma expressão profissional,
estudava cada uma a seu turno.
- Bem - declarou ele afinal. - Você pode ter algo aí, mas não compreendi bem o que é. Perspectiva? As suas pinceladas não são muito rudes?
- São intencionalmente rudes... para dar uma impressão de vida.
- Esses cavalos não são particularmente reais.
Harry apontou com a sua bengala para uma composição a têmpera de cavalos correndo como loucos numa tempestade.
- Não estou procurando expressar o óbvio.
- Obviamente não. Contudo... gosto que um cavalo se pareça com um cavalo.
- E quando você vê um homem montado nele, então tem certeza disse Stephen secamente, e empilhou as telas, percebendo que Chester não tinha a menor ideia do que ele
buscava. - Você ainda está pintando?
- Oh, naturalmente. Quando tenho tempo. Estou fazendo uma vista geral da Promenade. Às vezes saio com Lambert. Ele e Elise estão aqui. Ele pegou uma viúva americana
rica no Ambassadeurs e está dando expediente inteiro com ela.
Enquanto ele falava, soaram passos, e por trás da lona do caminhão apareceu Emmy. Quando se dirigia para Stephen, recuou de súbito, tendo notado a presença de Chester.
Uma expressão curiosa lhe assomou ao rosto.
- Que é que está fazendo aqui?
- Eu geralmente apareço quando menos se espera.
- Como um cêntimo falso?
- Desta vez como uma bela nota de mil francos - respondeu Chester amavelmente, sem se deixar diminuir. - Sentiu a minha falta?
- A privação foi insuportável.
- Não seja rude com o tio Harry. Você sabe que os seus nervos são fracos. - Consultou o relógio. - Tenho que partir. Devo estar no Negresco às seis. Mas quero que
vocês venham almoçar amanhã no meu apartamento Rue des Lilas, 11-B - ao largo do Boulevard General Leclerc. Os Lamberts também estarão lá. Os dois estão livres?
Ótimo. São apenas uns poucos quilómetros pela Corniche, o bonde passa na minha porta.
Sorrindo e acenando com a bengala, chamou um fiacre no fim do acampamento, saltou nele, reclinou-se no encosto acolchoado e mandou tocar a galope. Emmy acompanhou-o
com olhos ressentidos.
- Voyou metido a sebo. Mandando a gente tomar o bonde enquanto ele vai de carruagem.
- Não devemos invejá-lo. Ele também já teve os seus maus momentos.
- Não acredito que ele tenha acertado um coup. Deve estar vivendo com alguma velha.
- Não mesmo. Chester é o tipo de sujeito com sorte para ganhar uma bolada. Além disso, só se interessa por moças bonitas.
- Um dia ele vai ver o que é bom. - Mostrou os seus dentinhos agudos.
- Sale type. Nunca fui com a cara dele.
- Então você não irá lá amanhã...
- Claro que irei. Não seja tão fou. Faremos com que ele se arrependa da sua pretensão.
Ele a olhou perplexo. Obviamente detestava Chester. Por que, então, aceitar o seu convite? Talvez quisesse ver os Lamberts. Jamais soube o que ela tinha em mente.
No dia seguinte, quando veio ao seu encontro, ela usava um vestidinho amarelo de musselina bordada e uma fita da mesma cor em volta do cabelo cheio e curto. Deu-lhe
um pequeno sorriso com os lábios apertados.
- Podemos pegar um fiacre?
- Isso mesmo. Nada de bonde para nós.
Ela escolheu a mais elegante vitória da fila. Sentou-se confortavelmente.
- Como estou?
- Maravilhosa.
- Eu precisava de um vestido novo. Comprei este hoje de manhã na Galerie Mondial.
- É encantador - disse ele. - E assenta-lhe perfeitamente.
- Gosto de mostrar a essa gente que não sou uma coisa embaixo dos pés deles. Chester especialmente. Ele é muito cheio de si.
- Talvez, mas não é um mau sujeito. Acho-o apenas um pouco mimado. É bonito demais.
- Acha-o atraente?
- Acho que muita mulher tola já tem caído pelos seus belos olhos azuis e cabelos crespos.
Ela lançou-lhe um penetrante olhar de soslaio.
- Pelo menos eu não sou uma delas.
- Não - sorriu Stephen. - Estou um tanto aliviado por você detestá-lo. Rodaram pela Avenue Raspail, um largo logradouro sombreado de catalpas, ao longo do Boulevard
Carnot, e depois pela curva da baía para Beaulieu. O céu estava azul, uma brisa de deliciosa fragrância soprava das colinas. Ele apertou-lhe a mão, feliz - ela se
deixou segurar por um momento. Ultimamente, as atenções que ele tinha para com ela, os pequenos presentes que continuamente lhe dava, as restrições que por um esforço
de vontade impunha a si mesmo pareciam estar causando alguma impressão nela.
- Você está sendo gentil comigo - murmurou ela.
Essa ligeira observação tornou-o ridiculamente feliz. Talvez, por fim, ela pudesse aprender a amá-lo.
Dali a pouco rodavam por Villefranche. O apartamento de Chester, na Rue des Lilas, uma rua em ângulo reto com a avenida, integrava uma série de
suítes que abriam sob um balcão comum em torno de um pátio, atendidas por um pequeno hotel, o Hotel des Lilas. Um pequeno chafariz cercado de cactos gorgolejava
no centro do pátio, e tubos verdes de oleandros floridos decoravam a varanda. O lugar parecia limpo, agradável e discreto - exatamente a espécie de pied-à-terre
que Chester, com a sua inclinação para se tratar bem, acharia sem o menor esforço.
Foram os primeiros a chegar, e Harry recebeu-os efusivamente.
- Bem-vindos ao castelo ancestral. Não é grande, mas tem história.
- Má, sem dúvida - disse Emmy.
Chester riu. Vestia calças de flanela branca e um blazer azul com botões de metal amarelo. Seu farto cabelo castanho, recém-ondulado, tinha uma listra de cor mais
clara na testa.
- Se é isso o que você pensa, não posso deixá-la mentir.
Enquanto ele levou Emmy ao dormitório para deixar a sua echarpe e luvas, Stephen relanceou os olhos em torno da pequena sala de estar. Era mobiliada convencionalmente,
mas nas paredes havia duas aquarelas emolduradas que reconheceu como sendo trabalho de Lambert. Examinou-as de perto - uma era um arranjo de ervilhas-de-cheiro num
vaso Ming, a outra um bando de cegonhas paradas num lago nevoento - e ao olhá-las imaginava como jamais poderia ele ter apreciado semelhante beleza. Belamente executadas,
com uma delicadeza quase feminina, eram contudo vazias e insípidas, despidas de toda vitalidade ou intenção. Podiam ter sido feitas por uma hábil professora de arte
de uma escola superior para moças. Faziam-no avaliar que longa estrada tinha percorrido desde aqueles primeiros dias em Paris. Se a jornada fora áspera, pelo menos
lhe tinha ensinado em que consistia realmente uma obra de arte.
- Boas, não? - Chester tinha voltado com Emmy. - Lambert, num gesto muito decente, me emprestou as duas. O preço está nas costas. Há sempre uma chance de que os
meus visitantes queiram comprá-las.
Trouxe uma garrafa de Dubonnet e serviu três copos, depois passando uma bandeja de camarões frescos.
- Posso tentá-la, mademoiselle Rouquet de la baie.
- Você mesmo os apanhou?
- Claro. Levantei-me antes do desjejum.
Rearranjando o cabelo, ela olhou para ele, mas pela primeira vez com menos animosidade.
- Que grande mentiroso!
Harry riu-se gostosamente.
- Também sou muito bom nisso.
A campainha tocou e os Lamberts entraram. Pareciam pouco mudados, embora Philip estivesse mais gordo, mais lânguido nas suas maneiras. Usava
um terno cinza com um cravo azul na lapela e trazia pendurada no indicador uma caixinha de pâtisserie amarrada com uma fita.
- Trouxe-lhe alguns bolinhos do Henri, Chester. Acompanharão o café. Naturalmente, você está lembrado da minha gulodice, Desmonde. - Espichou-se comodamente no divã
e delicadamente aproximou as suas finas narinas da flor que tinha na lapela. Elise, que vestia o inevitável verde, e cujo sorriso parecia um tanto mais fixo do que
antes, estava conversando com Emmy.
- Agora, conte-me tudo como um bom menino.
Stephen começou um relato a seu respeito, mas antes que fosse muito longe viu que Lambert não estava prestando atenção, e interrompeu-se.
- Você sabe, Desmonde - disse Philip num tom ligeiro e divertido eu desejaria, pelo seu próprio bem, que você não se tivesse metido nessas coisas pesadas. Você não
pode atacar a arte com uma picareta. Por que suar como um britador de pedras? Faça como eu e use um pouco de delicadeza, um pouco de habilidade. Eu nunca trabalhei
demais, e no entanto clientes não me faltam. E eu vendo. Admito que tenho talento, e isso torna as coisas mais fáceis para mim.
Stephen ficou silencioso. Podia muito bem adivinhar a facilidade de Lambert. Mas o anúncio de Chester, dizendo que o almoço estava servido, salvou-o da resposta.
A refeição fornecida pelo hotel lá de baixo era esplêndida, servida por um jovem garçom que, para apresentar uma comida tão quente, devia ter executado estranhas
proezas de agilidade nas escadas. Uma lagosta cozida à moda da terra, seguida de um risotto de frango, e depois um queijo soufflé; antes, Harry, com o toque de um
perito, tinha feito saltar a rolha de uma garrafa de Veuve Cliquot. Quanto mais alegre a mesa, porém, mais Stephen se sentia completamente alheio a ela. Em certa
época tinha apreciado aquela sociedade, mas agora, apesar do enorme esforço para se coadunar com ela, fracassava tristemente. Que lhe tinha acontecido para que se
sentasse ali, mudo, com a consciência mortal de que não mais pertencia a ela? Emmy, bebendo mais champanhe do que devia, exibia tolas personificações de Max e Monx
que faziam Chester, agora mais ruidoso do que nunca, estourar de riso. Lambert, a quem Stephen tinha antes admirado, parecia-lhe agora exatamente como Glyn o via
- um poseur e diletante, um amador fracamente dotado. Perfeitamente amaneirado, bem-educado, garantido por sua pequena renda regular, recusando-se a ser perturbado
ou excitado, flutuava a esmo, nunca se exercendo a sério, tocando de leve o creme da vida. Cultivando mulheres, arranjava clientes que lhe encomendavam retratos
ou que pagavam bons preços por seus leques e aquarelas. Elise, com o seu sorriso fixo e perfil nítido, mostrava sinais dessa existência. Sua aparência começava a
murchar e as rugas a juntar-se embaixo dos seus
olhos verdes e pestanudos; contudo, embora a sua capacidade de lisonjeá-lo já estivesse um tanto gasta, a sua inexaurível devoção fazia dela, cada vez mais, uma
parceira complacente naquele jogo de blefe artístico, cujo mero pensamento levava Stephen a remexer-se mais inquieto na cadeira.
Depois do café e bolinhos, dos quais Philip, desculpando-se com uma delicada alusão literária ao jovem com as bombas de creme de Stevenson, comeu cinco, sentaram-se
na sacada. Continuando a monopolizar a conversação, descreveu, com irónica meticulosidade, as deficiências faciais e sociais da mulher idosa que retratava atualmente.
- De fato - concluiu ele aereamente - não se poderia esperar mais da viúva de um enlatador de carne de porco de Chicago.
- Imagino que o cheque dela foi bom.
- Bem... naturalmente.
Embora tentasse livrar-se da sua apatia, Stephen via o tempo passar com interminável lentidão. Por fim, cerca de três horas, aproveitando um intervalo na conversação,
olhou para Emmy.
- Acho que temos de ir agora.
- Oh, tolice - protestou Chester. - A tarde ainda é jovem. Vocês não podem nos deixar agora, de modo nenhum.
- Se eu não for chegarei tarde no meu emprego.
- Então por que você não fica, Emmy? - sorriu Harry afavelmente. Houve uma pausa. Stephen notou sua hesitação, mas ela logo sacudiu
bruscamente a cabeça.
- Não. Eu vou agora.
Despediram-se, o porteiro lá embaixo conseguiu-lhes um fiacre. Ao dobrarem a esquina, fora da vista do hotel, Stephen inclinou-se para ela.
- Foi bondade da sua parte vir comigo. Gostei disso.
- E eu não gosto de me tornar fácil.
Não era a resposta que ele esperava; no entanto, animado pela recente mostra de sua consideração, chegou-se mais perto, sob a coberta do avental da carruagem, e
procurou-lhe a mão.
- Não - disse ela, empurrando-o irritada. - Não está vendo como me sinto?
E ao voltar-se surpreso, ela, com franqueza vulgar, deu uma desculpa que, se fosse verdade, teria talvez causado a sua prematura partida.


CAPÍTULO XI

APÓS O TUMULTO E EXCITAÇÃO das viagens através das estradas do país, muitos membros do Circo Peroz acharam agradável estabelecer os seus alojamentos de inverno na
Côte d'Azur. Ali era a sua base; muitos tinham relações em Nice, Toulouse e Marselha, e com mais tempo disponível, poderiam visitá-las. Embora o negócio continuasse
firme, o programa tinha sido reduzido para cinco espetáculos por semana, e após a grande noite de domingo, segunda e terça-feira, ficavam livres.
Os amigos de Stephen já haviam Se acomodado à nova rotina. Max reiniciara as suas lições de violino e podia ser visto, todas as tardes, com a caixa preta em forma
de pêra debaixo do braço, partindo no trote miudinho forçado por suas diminutas pernas. Croc, por outro lado, passava a maior parte do seu tempo na Bibliothèque
Nationale, curvado sobre grossos volumes, expondo na volta, a Stephen e Jo-jo, uma nova versão de Schopenhauer, ao passo que Fernand, parecendo gasto e sonhador,
ia todas as manhãs, de braço dado com a esposa, a um homeopata de Cimiez para a irrigação diária prescrita para o seu flux intestinal. Mais prático, Jo-jo tinha
achado uma ocupação subsidiária nas cavalariças do Negresco, onde, a pretexto de lavar as carruagens, passava a maior parte do tempo tagarelando com cocheiros e
motoristas, levando um livrinho sobre as corridas locais e comentando sarcasticamente, com o canto da sua boca de ratoeira, os visitantes que entravam e saíam do
hotel.
Stephen, por sua vez, tinha começado o desenho preliminar para uma pintura na qual pretendia utilizar os estudos individuais feitos na grande tenda, a que pretendia
chamar Grcus. Esse arranjo complexo, um agrupamento de inumeráveis figuras com as suas cores combinadas e contrastantes, era difícil e, desde que ele não tinha estúdio
nem tela suficientemente grandes, propunha-se seguir o precedente dos antigos mestres e construir a sua composição, primeiro que tudo, numa escala menor e menos
rigorosa. A ideia lhe surgiu à medida que progredia, e ele começou a sentir que semelhante material, recolhido em semanas de paciente observação, devia dar um magnífico
resultado.
Desde o dia do almoço no Hotel des Lilas, o barómetro dos humores de Emmy tinha lentamente chegado a "bom tempo". Após esse evento, não tinham
mais visto Chester ou os Lamberts, e parecia que essa ligação estava finalmente rompida.
No fundo do espírito de Stephen, talvez por uma observação de Glyn, sempre havia a ideia de uma afeição entre Chester e Emmy. Era-lhe gratificante o fato de que
Emmy tivesse aceito a brusca interrupção de sua amizade com tão pouco interesse. Ela, como os outros, tinha voltado a sua atenção para Nice. A irmã de Madame Armande,
que morava nos arredores, logo após o subúrbio de St. Roch, tinha uma pequena chapelaria dedicada principalmente à produção e venda de chapéus de palha de carnaval.
Emmy, como muitas moças francesas, tinha talento para os trabalhos de agulha, e todas as tardes tomava modestamente o bonde para ganhar algum dinheirinho na oficina
do Chapeau de Paille. Como resultado, Stephen via-a menos do que o usual. Contudo, experimentava um certo conforto íntimo com esse aspecto inesperadamente sossegado
da sua natureza. Tal atividade, no entanto, devia ser terrivelmente monótona, e ele disse para si mesmo que devia procurar quebrar essa monotonia. No Clarion de
Nice, descobriu que uma companhia lírica, cumprindo um contrato no Casino Municipal, faria uma representação de La Bohême na segunda-feira seguinte. Esse romance
ultrapassado da vida de estudante em Paris talvez a entretivesse, e no seu encontro seguinte ele falou no assunto.
- Você quer ir ao teatro na segunda?
- Teatro? - Pareceu ligeiramente perturbada. - Você não está ocupado com a sua pintura?
- Não de noite, com certeza.
- Bem... se você quiser.
- bom. vou comprar as entradas hoje.
Andou todo o caminho até o Casino e comprou duas cadeiras no grand circle, e então, sabendo o quanto ela gostava de "uma noite fora", reservou uma mesa no restaurante
para a ceia nessa mesma noite. Começou a esperar o evento com aquela antecipação que tão dolorosamente o afetava sempre que pensava em ficar a sós com ela.
Segunda-feira chegou. Quando terminou a sua sessão na barraca, banhou-se com água da bacia no lado de fora do seu alojamento e vestiu o seu terno e uma camisa limpa
que lavara na véspera. Justamente quando se aprontou, ouviu passos atrás dele. Voltou-se e viu uma expressão de pesar nos olhos de Emmy.
- Que houve?
- Não posso ir com você esta noite.
- Não pode?
- A irmã de Madame Armande está de cama, com l agrippe. Tenho que ficar com ela.
- Madame Armande pode fazer isso.
- Sim, mas há pedidos de urgência para atender.
- Talvez...
- Não. Tenho obrigação de ir.
Houve uma longa pausa.
- Bem... suponho que não tenha jeito.
Ficou terrivelmente abatido, mas não se importava em mostrá-lo.
- Você deve convidar alguém. Não desperdice as entradas.
- Ora, para o diabo os bilhetes! Que importam eles?
- Sinto muito. - Deu-lhe um tapinha condoído.
- Outra noite, quem sabe.
Aquele ar de interesse preocupado diminuiu a sua decepção. Todavia, ao vê-la apressar-se, indo em seguida despejar lentamente a água cheia de espuma de sabão da
bacia, a sua tristeza era tão grande, que Jo-jo, que acabava de voltar, descansando com os cotovelos no degrau, tendo testemunhado a recente cena, veio fazer perguntas.
- Como vai a coisa? - Falava sem tirar a palha que tinha entre os dentes.
- Muito bem.
- Você está todo emperequetado.
- Estou vestido, se é isso que quer dizer.
- Aonde ia?
- Ao teatro. Venha comigo. É La Bohême.
- Variedades?
- Não, ópera.
- Ópera? Ah, não. Mas vamos tomar um drinque no Mas Provençal. Atravessaram a praça em direção a um café das proximidades. Era um lugar reles mas agradável, com
compridos bancos e mesas na calçada. No interior obscuro, um piano mecânico estava tocando, e o pessoal se achava sentado em mangas de camisa. Jo-jo acenou para
alguns operários que, a caminho de casa, tinham parado para uma caneca de cerveja.
- Qual é o seu veneno, Abbé?
- Qualquer coisa... Vermute.
- Vermute Quelle blague. Você vai tomar é um conhaque. - Pediu em voz alta um Pernod e um conhaque.
As bebidas foram trazidas por uma raparigona de braços nus, vermelhos, e seios redondos, cheios debaixo da blusa, como cocos.
- Aí está uma garota para você. - com mão prática, Jo-jo filtrou o Pernod através de um torrão de açúcar, e tomou um gole confortante do líquido opalescente. - O
nome é Suzie. E não é poule. Por que não experimenta a sorte? Essas mulheres grandalhonas gostam de homens pequenos.
- Ora, vá pró inferno!
Jo-jo riu brevemente.
- Isso é melhor. O problema com você, Abbé, é que nunca se entrega.
- Que quer dizer?
- Sacré bleu! Você pode se desamarrar um pouco. Então nlo fiquei sabendo que você tem tutano - aquela noite... quando desceu na pista? Voando com todo o seu corpo.
Fique alegre, embebede-se e divirta-se.
- Já tentei isso. Comigo não dá resultado.
- Há um chá dançante todas as noites no Negresco. De muita classe. Pode ser interessante.
Havia uma intenção esquisita na voz de Jo-jo, mas Stephen simplesmente abanou a cabeça.
Jo-jo abriu os braços resignado. E depois disse:
- Que aconteceu com a beleza da bicicleta?
- Teve que ficar com a irmã de Madame Armande.
- Armande tem irmã? Haverá duas cadelas iguais neste mundo infeliz?
- Ela tem uma chapelaria em Lunel, atrás de St. Roch. E está doente.
- Uma obra de caridade - fez Jo-jo, baixando a cabeça. - Uma segunda Mademoiselle Nightingale.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual ele continuou a olhar para Stephen com um satírico aperto nos lábios. Uma vez, pareceu que ia falar, mas em vez disso encolheu
ligeiramente os ombros, pediu novas bebidas com um gesto, e começou a falar sobre as corridas do dia seguinte.
Às sete horas, deixaram o café; Jo-jo foi dar água e comida aos seus árabes, e Stephen ficou só. Sentia-se melhor, aquecido e mais alegre depois de três conhaques,
mas ainda assim tinha pouca disposição para ir sozinho ao Casino. A noite era deliciosamente linda - e seria uma pena gastá-la num teatro abafado. De repente lhe
veio uma ideia, Lunel não ficava muito longe, apenas uma viagem de bonde de 20 cêntimos. Por que não dar um pulo até a oficina de Madame Armande e, mesmo que fosse
obrigado a esperar até que ela terminasse o seu trabalho, voltar com Emmy? Com sorte, poderiam até chegar a tempo para o jantar.
A perspectiva apressou os seus passos e ele atravessou o Boulevard Risso para a Place Pigalle, onde, sem dificuldade, achou um bonde para a zona norte. A viagem
foi lenta, e mais longa do que ele supunha, mas não eram oito horas e ainda havia luz quando ele chegou ao seu destino. Lunel, como cidade, era surpreendentemente
pequena e pouco desenvolvida, o terreno plano quase todo ocupado por hortas, pouco mais que uma coleção de casinhas novas de estuque margeando uma única rua não
calçada. Stephen subiu e desceu duas vezes essa rua sem encontrar o Chapeau de Paille. Na verdade, as poucas lojas que lá havia em nada se pareciam com uma fábrica
de chapéus. Intrigado e confundido, Stephen ficou um momento parado, enquanto rajadas de vento
levantavam poeira em toda parte, e então foi à agência do correio, que, funcionando na mesma casa de uma épicerie, ainda estava aberta. Ali, em resposta às suas
indagações, ficou sabendo que não havia modista, e positivamente nenhuma fábrica de chapéus, em Lunel.
Com uma expressão curiosa na face, sentado no canto de um bonde quase vazio, Stephen voltou para Nice. O veículo sacolejante deixou-o meio tonto. Teria cometido
um engano estúpido por ouvir mal o nome do lugar que ela lhe tinha dito? Não, estava certo de que ela dissera Lunel, não uma, mas diversas vezes. Não o teria despistado,
inventando aquela desculpa à última hora? Isso também era impossível - ela vinha visitando a irmã de Madame Armande diariamente nos últimos 15 dias. Sua expressão,
se havia, tornou-se ainda mais fixa. Estava bem escuro quando chegou a Carabacel. Tudo tranquilo e deserto no acampamento. Teve um impulso de ir ao seu alojamento
e ver se ela tinha regressado, mas o orgulho e uma sensação de cansaço físico o contiveram. Já tinha se tornado suficientemente ridículo sem fazer uma cena àquela
hora. Entrou no seu caminhão, deitou-se no beliche e fechou os olhos. Tiraria tudo a limpo com ela de manhã.


CAPÍTULO XII

No DIA SEGUINTE, embora acordasse cedo, não a viu até as 11 horas, quando ela apareceu nos degraus do vagão de chinelos e um penhoar de algodão azul e branco. Sentou-se
no primeiro degrau, segurando uma xícara de café. Ele foi até ela.
- bom dia... Como deixou a sua doente?
- Oh, bem melhor.
- Chamou o médico?
- Naturalmente.
- Espero que não tenha sido nada sério.
Ela tomou um gole de café.
- Eu lhe disse que era uma gripe.
- Mas isso não é contagioso? - disse solícito. - Você deve se cuidar.
- Eu me cuido.
- Estou falando sério... venta muito em Lunel. E o bonde demora muito a chegar.
Ela olhou para ele em silêncio sobre a beira da xícara.
- Que é que você sabe de Lunel?
- Estive lá ontem à noite.
Ela o olhou desconfiada, e deu uma risada.
- Não brinque comigo. Você foi ao teatro.
- Não, eu fui a Lunel.
- Por quê?
- Pensei que podia comprar um chapéu. Infelizmente, não pude achar nenhuma chapelaria.
- Aonde é que você quer chegar.
- E também não encontrei nenhuma irmã de Madame Armande.
- Quem diabo você pensa que é, metendo o nariz nos assuntos dos outros? Saindo para me espionar. Seu rato sujo.
- Pelo menos não sou mentiroso.
- E quem é que mentiu? Falei a verdade. Se eu quisesse, poderia ter levado você lá. Onde você andou zanzando ontem à noite, não sei. Mas o lugar existe sim. Além
do mais - ajuntou ela com um toque final - a irmã de madame é viúva; o nome dela não é Armande. E agora talvez você vá cantar noutra freguesia e me deixe tomar o
meu café em paz.
Com o coração batendo como um martelo, Stephen olhou para ela com um misto de raiva e desespero. Sentia que ela estava mentindo - quando a ocasião exigia, ela podia
ser escorregadia como uma enguia. Mas a sua própria veemência era suspeita. Contudo, era até possível que falasse a verdade. Queria com toda a sua alma acreditar
nela. Sempre pronto a imputar a falta a si próprio, ponderou que aquele terrível aperto que sentia no coração poderia tê-lo levado a julgá-la mal. O desejo de reconciliação
apoderou-se dele e o enfraqueceu.
- Eu esperava tanto a nossa noite juntos.. . - murmurou ele.
- Isso não é desculpa.
- Seja como for, vamos esquecer isso.
- Só se me pedir desculpas por ter me chamado de mentirosa. Pede?
Ele hesitou, mordendo nervosamente os lábios, de olhos baixos. Seu orgulho impedia-o de aceitar aquela humilhação por parte dela. Mas a necessidade que tinha dela
tornava-o abjeto.
- Está bem... se quiser. Sinto tê-la ofendido - disse ele, extraindo à força as palavras que o faziam sentir-se desprezível.
Passou o resto do dia dilacerado pela indecisão, desejando estar com ela. Serviu-lhe de algum consolo observar que ela não saíra do acampamento. À noite, retirou-se
para o seu alojamento imediatamente depois do espetáculo. Mas sabia que não poderia continuar daquele modo, isso era impossível; de uma maneira ou outra, precisava
certificar-se.
No dia seguinte, após o almoço, quando ela saiu para a Place Pigalle, ele a seguiu. Ao saber de casos semelhantes, sempre desprezara o marido desconfiado ou o amante
ciumento que espionava a mulher que lhe causava suspeitas. Agora não podia evitá-lo. Mas ele não era nenhum especialista no assunto e, no seu esforço para não ser
visto, perdeu a sua presa no terminal da Pigalle. Contudo, vira que ela tinha tomado um bonde na direção do passeio público, e como outro estava no ponto, embarcou
nele. Em 15 minutos estava diante da costa. Procurou Emmy apressadamente em torno, andou até a esplanada e voltou, contornando o Casino, mas não viu nenhum sinal
dela. Então, como estava indeciso, de repente se lembrou do jeito de Jo-jo ao falar no chá dançante do Negresco. Embora a possibilidade parecesse remota, atravessou
a rua, entrou nos jardins do Musée Masséna e olhou por cima das grades de pontas douradas, através da Rue Rivoli, para o terraço coberto do hotel. Ao lado, sob um
toldo estendido do saguão até uma pequena plataforma com mesas de chá, uma orquestra, escondida entre as palmeiras, executava uma marcha que alguns casais dançavam.
A princípio, pensou que ela não estava lá. Então, por trás do biombo da folhagem, outra parelha saiu para a pista. A moça sorria quando, com um gesto prático, estendeu
os braços para o companheiro, que a enlaçou pela cintura. Deslizaram juntos - Chester e Emmy.
Imóvel, com a face estranhamente inexpressiva, Stephen ficou a olhá-los, observando como se moviam graciosamente. Seus passos combinavam perfeitamente. Quando a
música parou, permaneceram de pé, juntos, e quando o bis começou, prosseguiram sozinhos. Tão perfeita era a sua exibição, que os deixaram monopolizar a pista, e
quando afinal foram sentar-se, receberam um murmúrio polido de aplausos.
Stephen arrancou-se dali, caminhou lentamente para o passeio público e sentou-se num banco do qual podia ver a entrada do hotel. A dor no seu coração era quase insuportável.
Apertava os olhos ao pensar em como ela o havia enganado. Como ela e Chester deviam ter rido juntos com a invenção da chapelaria fictícia, e a sua crença inteiramente
falsa de que ela estava modesta, industriosamente trabalhando com a agulha, quando durante todo o tempo tinha estado com Harry. Madame Armande era inquestionavelmente
outra parceira daquela peça burlesca e tinha sem dúvida espalhado a notícia entre os membros da companhia. Certamente Jo-jo sabia que ele estava sendo um grandíssimo
tolo, embora, por pena, nada tivesse dito.
No entanto, tudo isso não era nada diante da angústia e da amarga fome da alma que agora o possuíam. Maior ainda que a sua raiva e mortificação, era aquela frenética
intensificação dos ciúmes e do desejo. Através da mágoa e da humilhação, ainda a queria; através do ódio, ainda tinha necessidade dela. E sentado ali, com a cabeça
entre as mãos, procurara achar desculpas para racionalizar
a conduta de Emmy. Afinal de contas, ela estava apenas dançando com Harry, e isso decerto não era um crime. Conhecem-se muitos parceiros de dança que não sentem
nada um pelo outro e estão unidos por não mais que um prazer puramente impessoal pela arte.
A música continuou a tocar intermitentemente até as seis horas, e quando a pista esvaziou, ele viu os músicos saírem com os seus instrumentos. Seguiu-se um demorado
intervalo. Com toda a certeza, Harry e Emmy tinha ido ao bar - imaginava-os muito juntos nos bancos altos, Harry à vontade e descansando, na maior intimidade com
o barman.
Demoraram tanto a reaparecer que ele começou a temer que tivessem deixado o hotel por outra saída. Mas, por fim, já quase noite, filas de luzes coloridas se acenderam
na frente e eles apareceram, descendo os largos degraus do pórtico, e se dirigindo para o passeio. Falando junto, animadamente, passaram tão perto que ele poderia
tê-los chamado. Mas manteve os lábios apertados, e quando já estavam uns 30 metros adiante, levantou-se, quase automaticamente, e seguiu-os.
Não foram muito longe. A uma pequena distância do Casino, deixaram o passeio público, tomaram a rua lateral do Marche aux Fleurs, na Cidade Velha, e entraram num
pequeno restaurante - a Brasserie Lutétia. Jantar para dois, pensou Stephen sombriamente, e teve um impulso hesitante, doentio, de entrar e sentar-se na mesa deles
- em vez disso, abotoou a gola do paletó e postou-se na sombra de um portal.
Não muitas pessoas entravam na brasserie - era um desses lugares sossegados, onde se podia ter completa intimidade. Uma vez, um garçom saiu à porta, olhou para cima
e para baixo, como se esperasse fregueses, e entrou novamente. Um gato passou de mansinho pela calçada. Do portal, sobre os telhados no fim da rua, Stephen podia
distinguir a massa escura das montanhas e altos pontinhos de luz que talvez fossem estrelas.
Teve que esperar até depois das nove, antes que eles emergissem. Somente a grande premência da sua necessidade de descobrir a verdade ajudou-o a manter-se naquela
triste e degradante vigília. E o momento se aproximava - um tremor o percorreu ao vê-los em pé sob as luzes da marquise. Com certeza, Chester estava para se despedir,
ou então ia levá-la de volta à Place Pigalle.
Estavam agora falando com o garçom, o mesmo que vira sair com eles, e Harry disse alguma coisa que os fez rir. Um fiacre chegou ruidoso, chamado da fila na praça,
lá embaixo, uma gorjeta foi dada, Emmy e Chester entraram. Rapidamente, ao se afastarem, Stephen andou até a praça, saltou noutra carruagem e disse ao cocheiro que
os seguisse.
Rodaram pelo Mercado das Flores deserto, entraram num labirinto de ruas antigas e viraram para a costa; então, com o coração encolhido, Stephen
viu que eles se dirigiam diretamente para Villefranche. Logo estavam lá. No fim da Rue des Lilas, Stephen mandou o cocheiro parar e pagou a corrida. Mais adiante,
na rua tranquila, viu o outro veículo parar. Ambos os seus ocupantes desceram, desaparecendo no pátio. Agora as duas carruagens tinham sumido, e ele ficara só na
rua deserta. Instintivamente olhou para o relógio - o mostrador luminoso indicava 10:30. Lentamente, andou para o Hotel des Lilas e ergueu os olhos para a sacada
do apartamento de Chester. A luz de um quarto estava acesa, e ele o identificou como o dormitório, podendo ver duas figuras se moverem por trás da cortina amarela.
A luz permaneceu por mais alguns minutos, e depois se apagou.
Quanto tempo ficou ali, olhando tristemente para o apartamento escuro, Stephen não poderia dizer. Por fim, deu as costas e afastou-se.


CAPÍTULO XIII

VOLTOU À PLACE CARABACEL antes da meia-noite. Através da dor surda que sentia na testa, sabia que deveria ir embora. Metodicamente, sem perturbar Jo-jo e Croc, ambos
adormecidos, reuniu os seus pertences na mochila. Amarrando as telas juntas, prendeu-as nas costas e, com um último olhar para os seus companheiros, saiu na sua
bicicleta. Dirigiu-se para o norte, pedalando velozmente na estrada plana que levava a St. Agustin, com a vaga intenção de pegar a route nationale que finalmente
o levaria a Auvergne. Sentia necessidade de estar com Peyrat - devia ter feito aquilo semanas antes. Mas sobretudo era premido pelo desejo de escapar, de obliterar
da memória aquelas últimas e intoleráveis semanas.
Quase pela manhã, desmontou, estendeu-se num espaço da charneca à beira da estrada e fechou os olhos. Não pôde dormir, mas, tendo descansado até que o sol despontara,
pôs-se novamente em marcha. E agora via pela sinalização que não estava na grande route, mas numa estrada secundária que corria entre as gargantas rochosas do Var
e subia serpeando para Touet e Colmars. Todavia, não quis desandar caminho. Todo o dia e no seguinte trabalhou nos pedais, mais do que a sua força lhe permitia,
no esforço para esquecer. Em Entrevaux, entrou erradamente numa estrada secundária, mais inclinada, que coleava para as montanhas através de um pinheiral. A pavimentação
era má, o progresso ali era mais difícil, havia um opressivo fragor de água se despejando
à medida que a torrente estrondeava sobre o seu leito de pedregulhos; contudo, o estranho medo de voltar mantinha-o tocando para a frente, comendo às pressas quando
podia, dormindo no chão nu, atrás de montes de feno, em estábulos desertos, com a sua capa dobrada como travesseiro. Uma aversão mórbida a qualquer contato humano
afastava-o das mais humildes estalagens.
O tempo piorara, e entre as colinas era úmido e nevoento. Na manhã de domingo, chegou a Annot, uma cidadezinha agrícola construída num planalto, com um vento frio
soprando dos Alpes. Sabia que era domingo pelo repicar dos sinos da igreja e pelo desfile de habitantes sérios, vestidos de preto, que olhavam para ele com desconfiança.
Doente de fadiga e esgotado como estava, essa hostilidade todavia o atingiu, e embora tivesse uma desesperada necessidade de tomar um café quente e pensasse em se
deter ali, não o fez, baixando a cabeça sobre o guidom e pedalando para fora da cidade. A chuva começou a cair. Ele foi obrigado a descansar. Ao desmontar, quase
caiu da sua máquina. Acocorado debaixo de uma cerca gotejante, comendo os restos de comida fria que tinha comprado na noite anterior, sentia-se inteiramente sem
lar, sem um lugar ou abrigo, irreal e desligado como um fantasma.
A chuva não parou, mas ele continuou, agora mais devagar do que antes e com uma falta de fôlego que o obrigava a desmontar nos aclives mais fortes. Seu nariz começou
a sangrar intermitentemente, e embora atribuísse o fato à altitude e lhe desse pouca atenção, era uma sensação esquisita o sangue a refluir quente sobre a sua garganta.
Cerca do meio-dia, começou a sentir-se extremamente indisposto, e, através do entorpecimento que o oprimia, penetrou-lhe um raio de razão. Nunca chegaria a Auvergne
daquela maneira, era loucura continuar; devia procurar uma estrada de ferro ou algum centro próximo sem demora. Desdobrando o seu mapa em grande escala, e protegendo-se
com a sua capa gotejante, viu que, atalhando para oeste, por Barréme, podia alcançar o entroncamento de Digne, não mais que 35 quilómetros além. Digne talvez não
fosse grande, mas ficava numa planície, o que lhe permitiria escapar destas montanhas impossíveis.
Tomou pelo atalho. Era escabroso, mais difícil do que antes, coberto de um cascalho áspero que fazia os seus pneus saltarem e derraparem. Tinha menos força do que
antes nos aclives, e com o esforço adicional seu nariz recomeçou a sangrar. O céu lá adiante era baixo e encoberto, a chuva aumentava rapidamente, e dali a pouco
um dilúvio desabou sobre ele. Ensopado, na escuridão que descia rapidamente, alarmou-se, acendeu com dificuldade a sua pequena lanterna de carbureto e novamente
consultou o mapa.
Não tinha examinado a folha por mais de um minuto, quando um gemido se lhe escapou. Oh, Deus... que tolo... que idiota cego e insensato. Acompanhando com o dedo,
viu que estava no caminho errado. Lá atrás, em
St. André, a curva devia ter sido para a esquerda, não para a direita. E agora examinou o sinal, route acidentés, fort montée, isolée - encontrava-se num beco sem
saída que levava direto acima, ao Col d'Allos.
Um ataque de nervos, quase de pânico, sacudiu-o. Aproximou mais o mapa. Devia haver alguma espécie de aldeia na vizinhança. Então, com alívio, decifrou o nome de
St. Jérõme. Era aparentemente um povoado, mas por sorte estava cercado por uma Cruz de Lorena vermelha, indicando a presença de uma hospedaria arrolada pelo Touring
Club da França como oferecendo acomodações para ciclistas e onde ao menos poderia achar abrigo para a noite. Se não estava completamente perdido, devia alcançá-la
em uma hora.
Pedalou, curvado, contra o vento. O gosto de sal na sua boca aumentou, e passando o lenço nos lábios sentiu que estavam inchados e flácidos. Suas pernas não mais
lhe pertenciam, um martelo batia na sua cabeça, mas quando sentiu que não podia avançar mais, viu tremeluzir, no socavão adiante, um grupo de luzes.
Ficaram mais próximas: uma grande construção cercada por casas menores tomava formas indistintamente, lá embaixo. Completamente esgotado, deixou a sua bicicleta
rodar e subiu aos tropeções a trilha para a primeira casa
- parecia a choupana de um trabalhador. Suas batidas permaneceram sem resposta por um interminável intervalo, e então a porta foi aberta por uma criancinha que ficou
olhando para ele e depois voltou-se e correu. Ele entrou num corredor, ouvindo vozes numa peça dos fundos da casa. Respirava irregularmente, e embora estivesse ensopado,
morria de sede. Devem receber-me, pensou, vou adoecer... aliás, já estou desgraçadamente doente.
Um trabalhador de camisa azul dirigiu-se para ele, seguido de uma mulher com uma lâmpada Argand e, atrás dela, a criança. Ele viu os seus rostos sobressaltados através
do nevoeiro que passava.
- Sinto muito. - com terrível dificuldade, como se do fundo de um poço, pronunciava as palavras. - Perdi o caminho. Podem me receber?
- Mas monsieur...
- Por favor... posso me sentar?... uma bebida.
Antes que ele pudesse falar outra vez, o homem chegou mais perto, sacudindo excitadamente o braço.
- Não aqui - disse. - O senhor deve continuar.
- Deixe-me ficar. - Novamente o terrível problema da articulação. Não posso continuar.
- Não, não... mais adiante.. . não aqui.
O homem segurou-o pelo ombro e levou-o para fora da casa. Julgando que estava sendo enxotado para a estrada, incapaz de resistir ou sequer protestar, tomado de uma
desesperança final, sentiu uma ardência nos olhos, e então, ao chegarem ao portão, percebeu que o homem não o tinha soltado,
mas o ajudava, amparando-o por um corredor rua abaixo. Na verdade, ao avançarem, ele murmurou algumas palavras de encorajamento:
- Está vendo? Não é longe... estamos quase lá.
No fim, alcançaram a grande construção. Havia árvores de espessa folhagem em ambos os lados. O homem puxou a corda de uma sineta e, após um momento, abriu-se uma
grade na porta tacheada. Seguiu-se uma breve conversação e depois ele foi admitido num pequeno saguão caiado, com um chão de pedra nua e bancos lustrosos junto às
paredes.
À beira do colapso, Stephen olhou em torno, tonto. Tudo estava fora de foco. Todas as linhas do saguão corriam juntas e depois se afastavam, como círculos num lago.
Até o porteiro que o deixara entrar parecia fantasticamente indistinto, vestido num paletó comprido e com capuz que lhe dava um aspecto de mulher. Outro homem, ou
mulher, tinha aparecido. Então, imediatamente, todas as linhas se dissolveram. O trabalhador da choupana, voltando-se para esse recém-chegado, retirou atabalhoadamente
o braço que o amparava. Stephen caiu de rosto para baixo, com o embrulho de telas molhadas ainda amarrado às costas.


CAPÍTULO XIV

O SOL DA MANHÃ, incidindo na única e funda janela à cabeceira da tarimba armada sobre cavaletes, acordou-o. Ele deixou-se ficar passivamente, o olhar percorrendo
os poucos objetos da pequena ermida da qual, durante as últimas três semanas, tinha se tornado íntimo e familiar - a solitária cadeira de assento empalhado, o armário
provençal, o genuflexório de madeira num canto, o crucifixo preto na parede branca. Especulativamente, examinou a sua mão, levantando-a contra a luz, achando os
dedos ainda brancos, mas talvez menos translúcidos do que na véspera. Esse era um teste que ele fazia todas as manhãs. Passos leves, rangendo no corredor coberto
de areia, fizeram que ele, sem querer, movesse o corpo e voltasse a cabeça. Estava olhando para a porta quando ela se abriu e o enfermeiro entrou, trazendo o seu
desjejum numa bandeja.
- Como dormiu?
- Muito bem.
- A nossa cantoria não o perturbou?
- Não, agora já estou acostumado.
- bom - disse Dom Arthaud, depondo a bandeja.
Tirou um termómetro dos recessos do seu hábito branco, sacudiu-o e, com um sorriso, colocou-o entre os lábios de Stephen. - Isto não é mais necessário. Mas como
você vai se levantar hoje, queremos ter certeza.
Era um homem de uns 50 anos, de estatura média, vigoroso, ombros quadrados, com uma cara grande e agradável, ligeiramente azulada em torno do queixo, e inteligente,
de olhos castanhos com óculos, a cabeça raspada e tonsurada; usava sandálias de tiras nos pés nus. Ao cabo de um minuto, retirou o termómetro, leu-o e, com um aceno
tranquilizador, puxou a cadeira com a bandeja para junto da cama.
- Não esqueça o seu remédio.
Depois de tomar, com um canudinho de vidro, o líquido escuro de sabor metálico, Stephen começou o seu desjejum - uma caneca de café au lait, manteiga fresca numa
tigela de barro, pão cortado em fatias e frutas. O café com leite estava quente, cheirando a chicória. Depois de molhar o pão na caneca, Stephen olhou compungido
para o que estava em pé - ele nunca sentava-se na extremidade da cama.
- Por que não come comigo? Aqui há mais do que suficiente para dois.
- De modo nenhum. Fazemos a nossa refeição ao meio-dia.
- Mas... isto está muito gostoso.
O enfermeiro sorriu alegremente.
- Sim... a nossa comida é perfeitamente horrível. Mas estamos habituados a ela. E depois, não estivemos doentes.
Stephen apanhou outra fatia de pão.
- Isso é que eu estava querendo lhe perguntar. Que foi exatamente que eu tive? O senhor nunca disse.
- Você teve uma inflamação dos pulmões... por exposição à intempérie. Além disso, fez um esforço demasiado grande. Como resultado, teve a complicação de uma hemorragia.
Muito grave.
- Pensei que o sangue fosse do nariz.
- Não, era dos pulmões. - Fez uma pausa, olhando por cima dos óculos de aros metálicos. - Já teve algo parecido antes?
Stephen refletiu um momento, depois abanou a cabeça.
- Tive um resfriado há alguns meses. Bronquite, imagino. Mas podia ter sido por causa disso.
O enfermeiro baixou os olhos.
- Eu não poderia responder. Não sou médico.
- Mas o senhor me salvou desta muito bem.
- Com a ajuda de Deus.
- E muita habilidade. Não acredito que o senhor não seja qualificado.
- Estudei medicina em Lions com o Professor Rolland. No último ano, assim como você foi chamado para ser um pintor, recebi o chamado para ser um monge.
- Muito afortunadamente para mim.
Dom Arthaud inclinou a cabeça, e então, quando Stephen terminou, apanhou a bandeja. Na porta, fez uma pausa.
- Não se levante ainda. Esta manhã, o Reverendo Prior vem visitá-lo. Quando ele saiu, Stephen recostou-se, com as mãos cruzadas atrás da cabeça. Ainda se sentia
atrozmente fraco. Contudo, quase já não tinha tosse e nem sentia mais aquela pontada aguda do lado. Como era bom o sol no seu rosto - a atividade da convalescença
começava. Não se preocupava com a sua situação. A persistência do enfermeiro em tirar-lhe a temperatura de manhã e à noite não era palpavelmente mais do que uma
rotina. Na verdade, imaginava, calmamente, se a sua doença, com aquele estranho depauperamento, não teria sido peculiarmente oportuno. Já ouvira falar de sangria
como remédio para a febre. Pelo menos sentia-se curado daquelas dores cruciantes que tão intoleravelmente o atormentavam.
Olhando para trás, admirava-se de que, durante todos aqueles meses, tivesse permanecido naquele estado de tamanha sujeição, aniquilado por uma única palavra, arrastando-se
pelo favor de Emmy. A simples ideia daquilo fazia-o estremecer. Rejubilava-se em ser ele mesmo outra vez, e jurou que jamais se submeteria a semelhante escravidão
- na verdade, foi mais longe, e fez um voto solene de que no futuro nenhuma mulher participaria da sua vida. Somente o seu trabalho o interessaria agora, e a ele
se aplicaria com rigorosa autodisciplina.
Às 11 horas chegou o seu visitante. O Prior, uma figura alta e imponente, na sua vestimenta branca encapuzada, sentou-se tranquilamente na cadeira e estudou Stephen
com grave reflexão.
- Então, afinal vai sair da sua cama, meu filho. Alegro-me.
- E eu estou agradecido - murmurou Stephen. - Foi sorte minha encontrar a sua cruz no meu mapa.
- É verdade que temos uma cruz. Mas não figuramos no mapa - disse o Prior com um leve sorriso. - Aquela marca é para uma hospedaria de ciclistas no vale vizinho.
Você se extraviou no caminho, meu filho. Ou, desde que a Providência o trouxe aqui, poderíamos dizer que o achou?
Uma esquisita inflexão na voz do Prior trouxe uma ligeira cor ao rosto pálido de Stephen. Teria deixado escapar alguma coisa a seu respeito nos primeiros dias da
doença?
- De qualquer maneira - respondeu ele - já era tempo de eu ficar bom. Dei-lhe um grande trabalho. Os senhores devem estar querendo se livrar de mim.
- Ao contrário, você é muito bem-vindo aqui. Sofreu um grande abalo, e Dom Arthaud acha que antes de várias semanas não estará apto para viajar.
- Mas... receio que não possa pagar.
- Nós lhe pedimos o seu dinheiro, meu filho? Aliás, quem o esperaria de um artista que luta? Fique conosco por uns tempos. Sente-se ao sol no jardim. Quando estiver
mais forte, a vida terá um aspecto diferente. Será capaz de enfrentar melhor o mundo.
O Prior pousou delicadamente a mão no braço de Stephen, e então levantou-se e saiu.
Stephen teve que se esforçar para reprimir as lágrimas dos olhos. Levantou-se. Suas roupas, lavadas e cuidadosamente dobradas, estavam no armário, com os seus outros
pertences. O dinheiro, cerca de 30 francos, achava-se numa pilha precisa ao lado do seu relógio, que estava funcionando; ele adivinhou que lhe tinham dado corda
todos os dias. Depois de se vestir, deixou o quarto e andou ao longo de um corredor estranho, lajeado de pedra, que o levou ao jardim, nos fundos.
Não era um recinto grande, umas poucas trilhas em torno de roseiras separadas, que levavam a uma gruta com uma estátua no fundo. Um muro de andebol quebrava o contorno
da cerca em volta. Além, alguns campos. Por suas conversações com Dom Arthaud, Stephen soubera que, graças à doação de uma pequena casa de campo, a comunidade, devotada
à instrução de cerca de 20 noviços, tinha sido recentemente estabelecida e estava crescendo unicamente devido aos esforços dos próprios monges, que haviam construído
com as suas mãos a pequena capela contígua à antiga mansão. Podia vê-la agora, branca e um tanto grosseira, aprumando-se contra o céu lanoso.
Após ter andado pelas trilhas, foi obrigado a descansar num dos bancos que flanqueavam a quadra de andebol. Um velho, com o hábito castanho de irmão leigo, estava
ordenhando uma vaca no pasto. Dali a pouco, começou um ofício na capela, e o cantochão, carregado pela brisa suave, era mais do que ele podia suportar. Levantou-se
e arrastou-se para o seu quarto.
Lá, encontrou uma carta, colocada bem à vista no peitoril da janela. Uma semana antes, sentindo-se terrivelmente só, soerguera-se no travesseiro e garatujara umas
linhas ao morador do nº 15 da Rue Castel, pedindo-lhe que remetesse qualquer correspondência que chegasse para ele àquele endereço. Este era, presumivelmente, o
resultado. Rasgou o envelope. Era de Stillwater, uma breve nota escrita havia dois meses.
CARO STEPHEN
Não sei se esta lhe chegará às mãos. Se chegar, é para informá-lo da morte de Lady Broughton, em outubro. Isso não foi inesperado. Algumas semanas antes, o noivado
de Claire e Geoffrey fora anunciado. Vão casar-se muito em breve. Não há outras notícias de importância para lhe dar, a não ser que papai
continua muito triste com a sua ausência. Suplico-lhe que volte e aceite suas responsabilidades como filho obediente.
Sua, Caroline.
Ainda com a carta na mão, Stephen sentou na cama. Em outros tempos, aquela notícia de casa não o teria afetado tão profundamente. Sabia da doença de Lady Broughton,
e seu amor por Claire nunca tinha sido mais que uma afeição fraternal. Contudo, aqui, neste ambiente estranho e remoto, abatido pela doença, a morte de uma e o próximo
casamento de outra - com Geoffrey, entre todos os homens! - parecia aumentar a sua sensação de exílio, cortá-lo mais fundamente de toda aquela vida agradável que
normalmente ainda seria sua. O tom da carta de Caroline, breve, cheio de calada amargura e implícitas censuras pelo que poderia ter sido, fazia-o mais do que nunca
sentir-se uma criatura à parte, cuja própria natureza o punha em conflito com a família, a pátria e a sociedade.
Com o decorrer das semanas, ele ficava mais forte. A região em torno, coberta de pinheiros baixos, sem beleza e sem qualidade, dava-lhe pouco incentivo para sair
do recinto. Fez amizade com os dois filhos de Pierre, o trabalhador da choupana que o trouxera ao mosteiro, levava-os encarapitados no selim da sua bicicleta. Ajudava
o velho Irmão Ludovic na horta, jogava andebol com os noviços na hora do recreio. Eram um alegre grupo de jovens, recrutados principalmente em boas casas burguesas
em Garonde e nas cidades vizinhas. Talvez por ele ser um estranho, e de uma raça diferente, eles se davam ao trabalho de lhe dedicar pequenas atenções matizadas
de um espírito de proselitismo que, embora o deixasse insensível, comovia-o e divertia-o. Seus corações estavam naquela nova pequena comunidade, e quando não mergulhados
em oração, entregavam-se sem poupar-se ao duro trabalho manual nos seus esforços para melhorá-la.
Um dia, no jogo de andebol, fizeram-lhe uma observação, meio rindo, meio sérios.
- Monsieur Desmonde... Uma vez que o senhor é um artista, por que não pinta um belo quadro para a nossa igreja?
Stephen, com a atenção presa, olhou para o proponente.
- E por que não? - respondeu com um ar sério.
A ideia, que não lhe ocorrera, pareceu-lhe um admirável meio de expressar a sua gratidão, de dar alguma retribuição tangível pela bondade que tinha recebido. Além
disso, a vadiagem forçada começara a pesar-lhe.
Nessa mesma tarde, conversou com seu amigo Dom Arthaud, que recebeu a sugestão calorosamente e prometeu falar com o Prior. A princípio, o Prior hesitou. A capela,
embora reconhecidamente inacabada por dentro,
era o produto de um prolongado e árduo esforço e cara ao seu coração. Seria sensato colocar aquela prezada e duramente ganha possessão nas mãos de um pintor desconhecido,
cujas poucas telas, embora estranhamente compulsivas, não davam indicação de competência ortodoxa? No fim, a fé, que era o sustentáculo da sua existência, moveu-o
a uma decisão. Mandou chamar Stephen.
- Diga-me, meu filho, o que pretende fazer.
- Gostaria de pintar um afresco acima do altar, na parede de fundo da abside.
- Tema religioso?
- Naturalmente. Pensei na Transfiguração. Iluminaria toda a capela.
- Você está certo de que poderia produzir algo que aprovássemos?
- Eu tentaria. Não tenho tintas nem pincéis bastante largos. O senhor teria que arranjá-los para mim. Teria que confiar em mim. Se o fizer, prometo dar o melhor
de mim.
Na manhã seguinte, dois dos padres partiram para Garonde, voltando à tarde com vários pacotes embrulhados em papel pardo. Nesse meio tempo, os noviços tinham armado
um andaime atrás do altar. Cedo, no dia seguinte, com aquele alvoroço que sempre sentia ao começar um novo trabalho, Stephen pegou o seu pincel.
Contudo, o seu estado de espírito era muito insólito. De corpo relaxado, não de todo livre da lassidão da convalescença, parecia banhado de um fofo langor. Suas
emoções ainda eram instáveis, a umidade lhe vinha prontamente aos olhos. O ambiente da capela, a entonação dos monges, a sensação de estar separado do mundo induziam
nele emoções inteiramente alheias à sua natureza. Embora não dispusesse de modelos, o trabalho tomou corpo com uma surpreendente facilidade, para quem estava acostumado
a um esforço sobrehumano nas primeiras horas de criação. Já tinha esboçado a figura central do Senhor, vestido de trajes brancos, radiante com uma nuvem de luz,
e começava a traçar as feições de Moisés e Elias.
Ao progredir com tamanha facilidade, experimentou esquisitos momentos de desconfiança, imaginando-se, em vez de projetar as suas próprias ideias, não estaria reproduzindo
inconscientemente uma compósita de primitivos pintores religiosos. Aplicadas em têmpera, as suas cores, usualmente tão duras, eram macias e lisas, suas formas pareciam
perturbadoramente convencionais. No entanto, contra essas dúvidas, crescia a aprovação da comunidade.
No começo, fora olhado com ansiedade, talvez até com desconfiança. Mas logo isso deu lugar a uma franca admiração. Às vezes, ao voltar-se no andaime para limpar
os pincéis, observava nos olhos de algum noviço que tinha vindo ostensivamente para rezar, mas na verdade para incorrer no pecado da distração, um olhar de perfeito
transe. Aquilo não era suficientemente tranquilizador? E, afinal de contas, ele não se comprometera a agradar?
O afresco, ocupando todo o espaço acima dos retábulos, ficou terminado em três semanas, e quando o andaime foi retirado, toda a comunidade reunida olhava-o com aclamação.
- Meu filho - disse o Prior a Stephen - agora sei que a sua vinda aqui foi providencial. Deu-nos um memento da sua estada que durará muito além da existência de
todos nós. Agora somos nós quem lhe devemos muito. - E continuou: - Amanhã celebraremos a Missa Solene para consagrar a sua obra. Embora não seja membro da nossa
fé, espero que nos agrade com a sua presença.
Na manhã seguinte, o altar estava enfeitado de flores, chamejante de velas. O Superior, em paramentos brancos, assistido por Dom Arthaud, cantou a Missa, enquanto
o coro entoava as respostas. Para Stephen, sentado na galeria, a pintura, brilhando à luz dos círios, tornada mística por uma nuvem de incenso, parecia uma esplêndida
realização. Nunca antes tivera tamanho sucesso.
Um repasto especial foi servido após a cerimónia, com um vinho da região de tal vigor que Stephen deu um passeio à aldeia para clarear a cabeça.
À tarde, quando voltava, Dom Arthaud o recebeu à porta com uma curiosa expressão.
- Há um visitante que deseja vê-lo. Um cavalheiro que diz ter vindo para levá-lo de volta a Paris.
Stephen entrou no seu quarto. Lá, reclinado na cama, usando chapéu e paletó, e soprando furiosamente no seu cachimbo, estava Peyrat. Pulou imediatamente quando Stephen
entrou e beijou-o em ambas as faces.
- Que é que andou fazendo? Não uma, mas uma dúzia de vezes procurei alcançá-lo. Agora, por casualidade, consegui o seu endereço na Rue Chancel. Por que está enterrado
aqui?
- Estive pintando - sorriu Stephen, ainda vibrando com a inesperada presença de Peyrat.
- Sorte ingrata - disse Peyrat, com fingida braveza. - Enquanto eu esperava, me arrastaram para a igreja. Que coisa terrível essa que você fez, cher ami. Oh, que
miserável cópia de del Sarto. Que terrível refundição de Luini. Embora eles gostem e vão se ajoelhar diante daquela pintura durante séculos, é indesculpavelmente
chocante, e para você, especialmente neste momento, uma desgraça.
- Por que neste momento? - perguntou Stephen, um tanto desconcertado.
- Por causa do anúncio feito no mês passado, e que me fez caçá-lo por toda a França.
- Que diabo está querendo dizer?
- Um anúncio - continuou Peyrat imperturbável, rolando as palavras
na língua como se gostasse do seu sabor - que lhe colocava uma medalha no peito, 1.500 francos no bolso e ainda nos permitirá, espero, fazer uma viagem juntos à
Espanha.
Subitamente atirou os braços em torno de Stephen e mais uma vez o abraçou.
- Não se importe com a sua doença, ou aquele medonho Moisés e Elias. A sua Circe ganhou o Prix de Luxembourg.


CONTINUA

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

DOVER, NA CHUVA, era uma triste porta dos fundos para fugir da Inglaterra. Quando o navio de carreira deixou o porto sujo, as ruas enlameadas, os edifícios amarelos
da encosta, os rochedos de um branco encardido, tudo mergulhou igualmente num dilúvio cinzento.
Na terceira classe, o espaço limitado estava abarrotado de passageiros, e Stephen, deixando aquele ar pesado de umidade e ruidosa camaradagem, voltou para o convés
molhado e atravancado de cabos. Ficou solitário na popa, abrigando-se, o melhor que podia, atrás da lona que cobria um guincho, com os olhos na costa amorfa, os
pensamentos tão equilibrados entre a amargura e a tristeza que fixavam nele uma atitude de completa imobilidade.
Dali a pouco foi sentar-se num braço do guincho, indiferente ao balanço do navio, ao vento e aos esguichos que assobiavam junto daquela ligeira proteção; tirou do
bolso o seu bloco de esboços. Era um movimento reflexo, um grito do coração. Contudo, uma vez que o seu lápis começou a andar pelas páginas agitadas na beira pela
ventania, perdeu-se, desenhando, com grande rapidez, fases do mar agitado, ondas estranhas e pressagas, a que ele insuflava uma qualidade de vida, vendo nos seus
contornos rotos, no laço intrincado das suas cristas, selvagens rostos humanos, cabeças atormentadas e torsos retorcidos, figuras de homens e de monstros, de cabelos
escorrendo e membros contraídos, tudo perdido e arrastado pela invencível força do mar.
Foi talvez uma espécie de loucura, uma vertigem, que o deixou amolecido e exausto. Tiritava quando o vapor diminuiu a sua marcha arfante para entrar cautelosamente
nos braços do quebra-mar de Calis, e, consciente do seu rosto gotejante e roupas ensopadas, guardou o bloco no bolso com um ar furtivo. Cabos eram lançados, pranchas
de desembarque empurradas, a douane era rapidamente passada. Mas algum ligeiro acidente na linha tinha atrasado o trem para Paris, que ainda não chegara.
Stephen tiritava novamente, batendo os pés sobre a plataforma a fim de restabelecer a circulação. Embora a chuva fosse menos impiedosa em terra, o vento, enfiando-se
pela curva dos trilhos, parecia mais violento, mais cortante. A maioria dos seus companheiros de viagem estava aproveitando o atraso para um almoço à la carte no
restaurante da estação. Mas, diante de um
futuro de completa incerteza, um exame mais detido do estado das suas finanças absteve-se desse luxo. Tinha, para ser preciso, 5 libras e 6 xelins, tudo que lhe
restava das 10 libras que trazia consigo quando chegara a Stillwater.
Por fim, o trem entrou resfolegando; após várias conferências e muita gesticulação, apitos agudos, jatos de vapor, e as notas melodiosas de uma trompa, a marcha
foi invertida e o vapor esguichou novamente. Para Stephen, encolhido no canto de um compartimento ventoso, foi uma viagem miserável. Tiritava frequentemente, sabia
que tinha apanhado um resfriado, e acusava-se de ter sido um tolo.
Na Gare du Nord hesitou, e então, aceitando o risco, e não sem uma certa recordação melancólica da sua prévia entrada na cidade de coração leve, tomou o metro para
a Rue Gastei. No seu presente estado de espírito ansiava, acima de tudo, pela simplicidade e firme amizade de Peyrat. Mas o novo inquilino do apartamento, incompreensivo
e desconfiado, apareceu na porta, respondendo que não havia cartas nem recados... acreditava que Monsieur Peyrat estaria no Puy de Dome, em Auvergne, até o fim do
ano, e além disso não sabia mais nada.
Os passos seguintes de Stephen levaram-no ao estúdio de Glyn. Estava fechado. Do mesmo modo, o pavilhão dos Lamberts, com as janelas fechadas, foi uma nova decepção.
Stephen voltou para o alojamento de Chester. Embora não tivesse acertado exatamente o montante da dívida, sabia que Harry, com seus repetidos pedidos de empréstimo,
devia-lhe pelo menos umas 30 libras, soma que agora adquiria uma importância muito maior do que antes. Mas também aquele quarto estava fechado, aliás, trancado com
um cadeado. Todavia, ao descer as escadas, foi reconhecido pelo concierge e obteve dele o atual endereço de Chester, enviado num cartão-postal recebido dois dias
antes: Hotel du Lion d'Or, Netiers, Normandia.
Animado, Stephen entrou no primeiro bureau de poste e passou um telegrama, explicando a sua situação e pedindo que Chester lhe mandasse por cheque telegráfico, se
não todo, ao menos parte do dinheiro que lhe devia, aos cuidados de Adolf Bisque na Rue Castel. Quando a moça de blusa de alpaca atrás do guichê terminou, a tinta,
uma soma complicada, um processo que a ocupou durante alguns minutos, Stephen pagou e dirigiu-se para o DuvaPs, onde pediu chocolate quente e um brioche.
Depois dessa ligeira refeição, como a chuva caísse mais forte e as sarjetas transbordassem, ele decidiu encontrar, o mais depressa possível, um alojamento para a
noite. Por causa da sua conveniência, e não na esperança de encontrar conforto, ficou num hotel barato das proximidades, a Pension de
l'Ouest, diante da qual passara tantas vezes a caminho do estúdio de Glyn.
Alcançado por escadas sem passadeira, seu quarto não era mais que um estreito, cubículo, mas era seco, e a cama, embora os lençóis estivessem encardidos,
tinha uma ampla provisão de cobertores estampados de azul - aqueles cobertores grosseiros usados pelos recrutas durante as manobras do Exército e vendidos depois
pelos contratantes do governo. Após alguns tremores iniciais, aqueceu-se e dormiu pesadamente. Na realidade, ao acordar na manhã seguinte sentia-se melhor, embora
não se surpreendesse com a tosse, agora piorando. Tomou café com um pãozinho, outra vez no DuvaTs, às 11 horas, e dirigiu-se para a loja de Monsieur Bisque.
Ali o esperava uma agradável surpresa. O pasteleiro recebeu-o cordialmente, com a sua cara de lua cheia enrugada de sorrisos, e, tendo repreendido Stephen por não
o ter visitado no dia anterior, apresentou com modos de prestidigitador o telegrama de resposta de Chester. Este, embora não trouxesse dinheiro, era de natureza
a animar o seu destinatário.
DELICIADO SEU TELEGRAMA. VENHA PARA CÁ. TEMPO E HOTEL EXCELENTES. BELO LUGAR PARA PINTAR. ABRAÇOS
HARRY
A perspectiva aberta por aquele amistoso convite, a ideia de estar com uma paleta e pincéis, diante de um cavalete, na Normandia, fazia brilhar os olhos de Stephen.
Bisque tinha um guia que, embora de páginas esfarrapadas e um tanto antigas, parecia provar que o rapide Granville, o trem mais ou menos direto, já tinha partido
- às 10 horas, para ser exato, daquela manhã. Stephen decidiu adiar a viagem até o dia seguinte. Passou à tarde na loja de Napoleon Campo, onde, além de receber
o cavalete e equipamento lá depositados, comprou novos tubos de tinta e algumas telas. Pagou a metade, 50 francos, e prometeu mandar o restante quando chegasse a
Netiers.
A manhã seguinte trouxe um límpido céu azul, e Stephen saiu com os seus pertences para a estação de Montparnasse. O rapide na Plataforma 2 não estava muito cheio
e ele conseguiu, sem dificuldade, um compartimento vazio na parte dianteira do vagão. Ao partirem, não podia afirmar que se sentia bem, pois experimentava uma sensação
de abafamento, com uma pontada no lado direito. Apesar disso, depois que o trem furou o seu caminho através dos túneis e cortes murados e escuros que davam saída
da cidade, perdeu a lassidão, olhando a paisagem em desfilada: vastos campos de restolho com poças de água da chuva, flanqueados por longas fileiras de olmos - sentinelas
intermináveis; uma agulha distante, delgada, graciosa; parelhas de grandes cavalos, com corvos assistentes, arrastando o arado; velhas construções rurais, de telhas
ocres, as empenas salpicadas de anúncios - Byrrh, Cinzano, Dubonnet.
Ao meio-dia, comeu uma maçã e uma barra de chocolate. Gradualmente, a configuração do terreno havia se alterado. Lutando contra a sonolência, ele
notou as azinhagas ondulantes e pequenos pomares cercados, um bando de gansos em lenta procissão para um lago lodoso, seguido de uma menina de pernas nuas com uma
vara de aveleira, um renque de salgueiros podados cercemente, e depois uma dama idosa, de coifa branca, tangendo uma vaca pela relva da beira da estrada, parando
de quando em vez para tricotar. Até a natureza da bebida tinha mudado. Attendez, exclamavam os anúncios, buvez le cidre moissoné!
Cerca de três horas, o trem alcançou o topo de um longo aclive e entrou na pequena estação de Netiers. Apressadamente, Stephen reuniu as suas coisas e pulou do alto
estribo. Uma rápida inspeção mostrou que Harry não estava lá para recebê-lo. Raciocinando que Chester podia não ter calculado bem a hora da sua chegada, Stephen
começou a andar para a cidade, que se podia avistar mais abaixo da colina, coisa de um quilómetro. A expectativa, ao se aproximar, aumentava a sua ansiedade - passou
um muro valado com fortificações, entrou nas ruas tortuosas, de paralelepípedos, tão estreitos que as casas de pedra cinzenta, muito inclinadas, pareciam estar acima
da sua cabeça. E então, no centro da praça do mercado, em frente à fachada de terracota desbotada do antigo hotel de ville, discerniu a tabuleta dourada do Lion
d'Or.
A estalagem era maciça, solidamente confortável, de alta classe. Stephen percebeu isso de relance, ao se dirigir para o balcão de recepção situado no vão de uma
escada de carvalho.
- Sim, monsieur!
- Meu nome é Desmonde. Tenha a bondade de dizer ao Sr. Chester que acabo de chegar.
Uma pausa.
- Está perguntando por Monsieur Chester?
- Sim. Ele me espera.
O empregado, um rapaz de ombros altos e cabeça rapada, estudou Stephen por um momento e depois disse:
- Tenha a bondade de aguardar, cavalheiro.
Desapareceu por trás da cortina que fechava o fundo do bureau; então, após um breve intervalo, voltou com um homem mais velho, uma figura sólida, de pescoço grosso,
vestido com a roupa listrada da profissão.
- O senhor está procurando Monsieur Chester Harry? O tom, embora cortês, tinha uma qualidade intimidante.
- Sim, por quê? Sou amigo dele. Ele não está hospedado aqui? Uma pausa gélida.
- Ele estava residindo aqui, monsieur. Até ontem à tarde, quando apresentamos a sua conta. Desde esse momento não vimos mais o seu famoso Monsieur Chester.
Stephen olhou para o proprietário, estupefato. Pois não viera por convite expresso de Harry, gastando o seu último soldo na passagem de trem? E de súbito lhe veio
uma ideia, contundente como um golpe. Chester, mais uma vez em apuros financeiros, convidara-o a vir somente na esperança de pedir-lhe mais uma quantia emprestada.
- Se monsieur é realmente Monsieur Desmonde - o sarcasmo era cortante - eis aqui uma carta que seu amigo lhe deixou.
MEU VELHO,
Eles podem não lhe entregar esta. Se entregarem, saberá que, com muito pesar, fui obrigado, encore, a cair fora. Pensei que podíamos resolver o caso juntos - baseados
no princípio de que duas cabeças pensam melhor do que uma - mas o departamento de contabilidade daqui estava um passo à minha frente. Provavelmente vou filar minha
viagem para o Sul, ficar um tempo em Nice, tentar a sorte nas mesas: De qualquer modo, eu com certeza o verei mais cedo ou mais tarde... Sinto muitíssimo e todas
essas coisas... mas quando o diabo aperta...
Seu,
HARRY
P.S. Nenhuma mulher decente na cidade. Mas não deixe de provar a sidra local. É excelente.
Stephen amarrotou o bilhete, escrito a lápis e às pressas, entre os dedos tensos. Sabia que Chester não merecia confiança, mas agora, por baixo do encanto, da alegria,
da amizade efusiva, sentia o âmago do seu total egoísmo.
O estalajadeiro e seu empregado olhavam para ele por detrás do balcão com manifesto desprezo.
- Naturalmente monsieur compreende que não temos acomodações para o senhor nesta casa.
- Compreendo perfeitamente - disse Stephen, girando nos calcanhares e saindo para a rua.


CAPÍTULO II

ALI, SEM DINHEIRO E SOZINHO, parado na praça do mercado de uma desconhecida cidade francesa, Stephen avaliava inquietamente a sua situação. Nunca antes estivera
sem dinheiro. Sua pensão, como o amanhecer, era algo
que tinha como certo, a consequência natural da sua posição na sociedade, do seu próprio direito de nascimento. Agora, com um amargo esgar nos lábios, percebia como
era poderosa a arma que seu pai tinha usado. No entanto, a sua renitência nata mantinha-lhe o prumo. Saiu imediatamente à procura de algum abrigo.
Isso, numa cidade sempre cheia de turistas, foi menos difícil do que ele temia, e antes do entardecer ele estava instalado num quartinho do alto, no fundo de um
pátio da Rue de la Cathédrale. Ao entregar a bagagem para a senhoria, uma velha digna, que não lhe pediu pagamento adiantado por ser de apenas 12 francos por semana
o aluguel, resolveu que, houvesse o que houvesse, estaria em condições de pagar-lhe antes que se passassem muitas horas. Tinha sabedoria suficiente para reconhecer
que, naquela localidade, não poderia conseguir uma subsistência imediata com sua arte. Sim, a sua educação, o seu curso universitário e grau de bacharel deviam certamente
capacitá-lo para alguma modesta posição na qual pudesse ganhar dinheiro suficiente para se manter em pé. E até mesmo o bastante para pagar a conta de Chester ainda
lhe doía a farpa final lançada pelo proprietário da estalagem - e voltar a Paris, encontrar-se lá com Peyrat, tendo uma boa quantia, antes do inverno. Se ao menos
estivesse menos indisposto! Aquela tosse, que desde a travessia do Canal lhe abalava o peito, era um grande incómodo. Mas um ferrenho desejo de experimentar-se levou-o
novamente ao centro da cidade.
Lá chegando, fez um exame perspectivo do logradouro principal, a Rue de la Republique. As lojas, embora pequenas, tinham, em sua maioria, um aspecto de sólida prosperidade
associado a uma ativa região agrícola. Pás, garfos, foices, baldes de zinco, grades de dentes vermelhos, tudo isso e mais estava exposto nas casas de ferragem; havia
guloseimas também - deliciosos petits fours e almôndegas doces, arranjados como buquês de noiva, enfeitavam a vitrine de uma pâtisserie, ao passo que na leiteria
da esquina se via um monte amarelo de manteiga da Normandia, ladeado por dois jarros de leite cheios até a borda.
Na frente de uma papelaria, viu uma caixa de vidro com alguns anúncios e avisos escritos à mão. Leu-os cuidadosamente e depois afastou-se. Ele não podia afinar pianos
nem remendar cadeiras de palhinha, não precisava da metade de uma vila à beira dos rochedos litorâneos de Granville. Mais abaixo da rua chegou à redação de um jornal
semanal, Courier de Netiers. Lá dentro, o número em circulação podia ser lido. Mas as suas magras colunas, devotadas principalmente às fases da lua, venda de gado
e cal, cobertura de vacas e éguas, horário das marés no Mont St. Michel, nada lhe ofereciam.
E agora? Era evidente que precisava de conselho. Obedecendo a um impulso, entrou na mairie e, escolhendo um funcionário de ar simpático, sondou-o discretamente sobre
as possibilidades de emprego na cidade. O jovem,
embora surpreso com semelhante indagação, mostrou-se inteligente e bem-intencionado. Pensou muito, e depois abanou lentamente a cabeça:
- É muito difícil... numa comunidade pequena como esta, as pessoas - sorriu, em desaprovação, ajeitou os punhos de papel - ... não são amáveis com estrangeiros.
Por mais uma hora, Stephen palmilhou a cidade sem sucesso. Quando caiu a noite, voltou, cansado e desanimado, ao seu alojamento. Revistando os bolsos, contou a soma
dos seus recursos: 1 franco e 50 soldos. À vista daquelas minguadas moedas na palma da sua mão, sentiu uma onda de orgulho. Não podia, não devia render-se.
No dia seguinte, na esperança de achar um trabalho manual, deu uma volta, a pé, pelas granjas das redondezas. Ao todo, devia ter andado uma distância de 20 quilómetros.
E em vão. Não havia escassez de mão-de-obra agrícola. Em vários lugares foi tomado por um vagabundo, e soltaram os cães contra ele. Um camponês caridoso, de garfo
em punho, fazendo a provisão anual de feno, pareceu hesitar, comovido talvez pela intensidade do pedido de Stephen, mas no fim prevaleceu a sólida cabeça normanda:
- Você não é muito forte, mon petit, pequeno... oh, muito pequeno. Mas, espere. - Chamou para a cozinha. - Jeanne, traga alguma coisa de comer para este rapaz.
Uma bonita mulher, de braços nus, vermelhos, saiu da porta dos fundos com o barulho dos seus tamancos. Dali a pouco, tendo examinado Stephen, trouxe-lhe um pedação
de torta de carne e uma caneca de sidra. Enquanto ele comia esse repasto, sentado num banquinho de ordenhar, na varanda, o granjeiro e a mulher, observando juntos,
discutiam em voz baixa, enquanto um meninozinho de guarda-pó preto espiava-o curiosamente por trás das saias da mSe. Stephen estava hirto de vergonha. Oh, meu Deus,
gemia ele consigo, sou exatamente como alguém de uma gravura de Cotman... cheguei realmente a isto! Mas a torta era boa, com um molho forte e gostoso, e a bebida
ácida lhe trouxe um novo ânimo para caminhar de volta a Netiers.
Escurecia quando chegou à Rue de la Cathédrale. E agora, embora mantido o ânimo muito bem durante todo o dia, um terrível abatimento o prostrava. A mortal estranheza
daquele quartinho apertado, cheirando a madeira velha, bolor e cânfora, estalando a cada passo que dava; a sensação de estar tão completamente só, enganado por Chester,
encurralado num futuro sem esperança; a suspeita, também, de que a sua senhoria começava a olhá-lo com dubiedade - tudo isso se acumulava para derrotá-lo. Sem querer,
atirou-se na cama e, voltando o rosto para a parede caiada, chorou como uma criança.
Esse acesso durou pouco, mas infelizmente tinha provocado a tosse. A noite inteira, ela o castigou severamente, desde que, na sua ansiedade para
não perturbar a casa, suprimia os espasmos e assim aumentava a sua frequência. Por fim, perto do amanhecer, com a cabeça embaixo das cobertas, caiu no sono.
Era tarde, quase 11 horas da manhã, quando acordou - primeiro para um breve momento de descansada alegria, depois para a sombria consciência da sua entalada. Levantou-se,
vestiu-se sem fazer a barba, e foi para a cidade. A agitação do espírito comunicava uma curiosa fraqueza às suas pernas. Estava andando sem rumo ou objetivo. Subitamente,
quando começava a atravessar pela segunda vez a praça do mercado, ouviu que alguém corria atrás dele. E então sentiu uma mão no ombro. Terrivelmente sobressaltado,
voltou-se. Era o funcionário da mairie.
- Desculpe-me, monsieur. - O moço interrompeu-se para respirar. Estive olhando o senhor durante toda a minha hora de almoço. Olhe, desde que foi embora andei fazendo
algumas perguntas para o senhor. E Madame Cruchot, que juntamente com o seu marido tem a sua épicerie ali - e apontou para o outro lado da rua - tem duas filhas
pequenas que ela quer que aprendam inglês. É possível que ela se agrade do senhor. Nesse caso, vale a pena tentar.
- Muito obrigado - gaguejou Stephen, emocionado. - Muitíssimo obrigado.
O jovem funcionário sorriu.
- Boa sorte. - Pronunciou as palavras entre os dentes, cuidadosamente, em inglês, e depois, como se satisfeito com sua proeza, apertou-lhe a mão, tirou o chapéu
e ficou observando-o atravessar apressadamente a rua.
A mercearia Cruchot, ocupando uma posição de destaque na praça, com duplas vitrines de vidro plano e uma brilhante tabuleta que dizia ALIMENTATION DE RENNES, dava
toda a indicação de ser um próspero estabelecimento, negociando com um grande e tentador sortimento de alimentos. Um constante fluxo de fregueses entrava e saía
pela porta, estreitada por presuntos pendurados, redes de limões, um cacho de banana e várias cestas de verduras escolhidas. Dentro, as prateleiras estavam cheias
dos generosos produtos da terra e do mar, com salsichas e fígado de ganso, sardinhas e enchovas, toucinho, azeite de oliva, queijo, frutas em conserva, conhaques
antigos também, vinhos e licores, café, especiarias, dobradinhas, pés de porco, e vidros e garrafas dispostos em pirâmides brilhantes no chão coberto de serragem.
Entrando, Stephen estacou menos por seu próprio nervosismo do que pelo barulho e movimento, gritos de pedidos, a movimentação de dois auxiliares de paletó branco:
uma moça normanda de ombros pesados e um homem coxo de olhar aborrecido.
Todavia, em pouco sentiu-se escolhido por uma voz de timbre penetrante.
- Que deseja, m'sieur?
Presidindo de uma mesinha, controlando o lufa-lufa, parecendo a dona pela amplidão do seu busto e ousadia do olho, uma mulher de cabelos amarelos, de uns 38 anos,
com a sua figura curva e bem coberta, pele lisa, orelhas rosadas suportando pesados brincos de ouro. Usava um vestido malva da última moda provinciana - com uma
aplicação de renda no decote - vários anéis e pulseiras, e um broche de camafeu.
- Perdoe-me - falou Stephen em voz baixa, aproximando-se. - Meu nome é Desmonde. Soube que a senhora talvez precise de um tutor inglês para as suas crianças.
A verificação de que ele não era um freguês afastara o sorriso maquinal dos lábios de Madame Cruchot; seus olhos apertaram-se na fria apreciação de alguém que, no
mercado, é capaz de avaliar, por um simples cabelo o peso e a qualidade de um porco cevado. Mas a palavra tutor, que ele por sorte tinha usado, lisonjeou-lhe a vaidade,
que predominava entre as muitas e fortes características que possuía, e que aliás era o verdadeiro motivo por trás da ideia de que as suas filhas deviam aprender
o idioma inglês. Também aquele jovem que tinha diante de si parecia simpático, "refinado" e tímido o bastante para lhe trazer algum problema.
- M'sieur pode me dizer quem é?
Muito francamente, Stephen lhe disse.
- Então m'sieur é estudante da universidade de Oxford. - Um lampejo iluminou o olho azul de porcelana de Madame Cruchot, mas no interesse da barganha foi rapidamente
suprimido. Duvidosa, encolheu os ombros. - Naturalmente, temos apenas a palavra de m'sieur quanto a isso.
- Asseguro-lhe que...
- Oh, la, la... estou disposta a confiar no senhor. Mas, naturalmente, considerando a idade das minhas filhinhas, exijo o mais alto padrão de conduta e moralidade.
- Naturalmente, madame...
- Então, quando... - interrompeu-se, com uma ordem aguda, suas palavras ressoando como uma pequena salva de artilharia: - Não, não, Marie, esses ovos não, estúpida,
já estão encomendados por Madame Oulard... e, Joseph, até quando preciso dizer que tire açúcar do saco aberto? Qual o salário que pede, m'sieur?
Stephen tratou de calcular rapidamente o menor estipêndio capaz de sustentá-lo.
- Digamos, com lições diárias, 30 francos por semana?
Com um gesto de consternação, Madame Cruchot ergueu as suas mãos gordas e cheias de anéis. Depois sorriu gentilmente, mostrando-lhe um dente de ouro que era como
uma bala.
- M'sieur está brincando.
- Não, realmente... - Empurrado e acotovelado pelo redemoinho de fregueses, Stephen ficou rubro. - Estou falando sério.
- Também somos gente honesta, Monsieur Crochet e eu, m'sieur, mas longe, oh, muito longe, de ser rica. - Feriu uma nota patética. - O máximo que meu marido me autoriza
a oferecer são 20 francos.
- Mas, madame... eu tenho que viver.
Madame Cruchot sacudiu o seu chinó amarelo tristemente.
- Nós também, m'sieur.
Stephen mordeu o lábio, com raiva e orgulho no peito. O aluguel semanal do seu quarto era de 12 francos. Como diabo poderia manter-se com os oito francos que lhe
restariam depois de pagar a sua senhoria? Não, por grande que fosse a sua necessidade, não poderia submeter-se a semelhante imposição. Deu meia-volta para retirar-se.
Mas Madame Cruchot, que não queria perdê-lo e que, no intervalo, tinha-o observado de soslaio da cabeça aos pés, deteve-o com um gesto delicado.
- Talvez... - Inclinou-se para diante, falando com um ar solícito. Talvez se servíssemos aqui o almoço para m'sieur, isso ajudasse um pouco a situação. Uma refeição
boa e substancial.
Apanhado desse modo, Stephen hesitou. Profundamente humilhado, não podia erguer os olhos.
- Muito bem... aceito - murmurou ele.
- Ótimo. Nosso negócio está fechado. Começará amanhã. Não esqueça que exigirei instrução da mais alta classe. E, sem dúvida, no futuro, m'sieur não esquecerá de
barbear-se.
Stephen inclinou a cabeça. Não podia falar. Contudo, a despeito da sua humilhação, por ignominiosa que fosse a sua situação, só podia experimentar uma sensação de
alívio. Com 20 francos e um almoço diário, estava salvo, ao menos por enquanto.
Ao sair da mercearia, ouviu a voz de Madame Cruchot proclamando em altos brados para as regiões do mundo:
- Marie-Louise, Victorine... Sua bondosa mamã acaba de contratar um tutor inglês.


CAPÍTULO III

AGORA, NA ABAFANTE MONOTONIA de uma cidadezinha provinciana, começava para Stephen uma estranha existência. Todas as manhãs, era acordado pelo sino da catedral,
que badalava três vezes, pesadamente, na Consagração das sete horas, afugentando as pombas, quebrando o silêncio eclesiástico da praça vazia. Uma vez vestido, descia
descuidadamente a escada - pelo menos podia sair de casa sem medo de encontrar a sua senhoria. Atravessando a praça para o Café des Ouvriers, que ficava a curta
distância do jardim de muros altos do convento, encontrava sempre as mesmas mulheres pias, vestidas de preto, e algumas freiras, aos pares, emergindo - flutuantes,
parecia, sobre as largas abas das suas toucas - da igreja. O café, assinalado por um ramo murcho na ombreira da porta, não era um lugar especialmente reputado, não
mais do que a cozinha de pedra de uma casa baixa mobiliada com uma mesa tosca e alguns bancos de madeira. Ali, por cinco soldos, tomava o desjejum habitual da casa:
uma xícara de café preto cheio de borra, lavado por um golinho de vinho branco num copo grosso com um dedo, uma espantosa combinação em seu poder restaurativo. Às
vezes havia um jornal da noite passada, Intelligence de Rennes, que o mantinha ocupado por meia hora. Podia conversar um pouco com Mie, a fille de comptoir de olhos
negros, quieta, que atendia o bar primitivo com discrição e que aparentemente tinha outras funções e obrigações, ou com outro cliente, talvez um mascate, um carregador
da estação, ou um entregador de carvão.
Pontualmente às 11 horas, apresentava-se na casa dos Cruchots, situada atrás da mercearia, e se dirigia a uma porta na parede lateral. Ali, na latada contígua a
uma pequena área fechada de relva, ou, nos dias de chuva, na sala abundantemente enfeitada a que Madame se referia como o "salon", Stephen dava sua atenção às menininhas
Cruchot; Victorine, de onze anos, e Marie-Louise, que tinha apenas nove.
Não eram, de um modo geral, crianças desagradáveis, um tanto estragadas por mimos, mas com toda atração da sua tenra idade. Às vezes, eram mesmo muito meigas à sua
maneira, especialmente a mais nova, uma coisinha bonita de cachos castanhos e faces de maçã". Stephen não as achou difícil de levar e logo ficou gostando delas.
Contudo, já os atributos herdados começavam
a se manifestar - sabiam o preço de tudo, calculavam como matemática, podiam recitar fluentemente aforismos morais sobre a virtude da economia. Cada uma tinha o
seu cofrezinho de metal, com a forma da Torre Eiffel, para depositarem as suas economias, e traziam a chave presa, com a medalha de um santo, a uma fita azul no
pescoço. Às vezes, repetiam, muito inocentemente, observações que tinham ouvido.
- Monsieur Stephen - ele insistia em que o chamassem pelo seu nome de batismo - mamã disse a papá que o senhor deve ser muito pobre.
- Bem, Victorine, devo confessar que ela estava certa.
- Mas papá disse que pelo menos o senhor não era um beberrão.
- bom... papá é meu amigo.
- Ah, sim, Monsieur Stephen. Porque ele também disse que, embora o senhor com certeza tenha feito alguma coisa errada na sua terra, sendo obrigado a fugir, não deve
ter sido um crime sério.
Stephen riu-se, um tanto secamente.
- Vamos... já é tempo de começarem a leitura.
Tão rápido tinha sido o progresso das suas ágeis inteligências, que ele acabara por trazer Alice no País das Maravilhas, e o interesse delas pela história tornava
possíveis até as palavras mais difíceis.
Embora, à maneira de um proprietário, ocasionalmente enfiasse a cabeça na porta, Monsieur Gruchot não vinha muito às lições. Era um homem de estatura média, com
modos inquietos, olhos cor de café, vivos, com os cantos injetados de amarelo, e um bigode preto, cheio, de pontas reviradas, que usava polainas e, dentro ou fora
de casa, exceto no sagrado recinto do "salon", um brilhante chapéu de palha reto. O seu lugar, naturalmente, era na loja, mas passava dois dias por semana fazendo
compras no mercado da vizinha cidade de Rennes, de onde, aliás, ele e sua mulher tinham vindo originalmente. Ligado a Madame Cruchot por uma ostensiva felicidade,
pelos dois lindos penhores da sua afeição, e acima de tudo pelo seu apaixonado desejo de ganho, Albert Cruchot tinha, contudo, em certos momentos, um certo ar, como
se as proporções físicas da sua esposa, seu riso agudo e voz penetrante fossem uma opressão maior do que um homem do seu porte pudesse razoavelmente aguentar. Ele
não encolhia exatamente, porém seus pés empolainados se moviam inquietos e a sua pupila café-au-lait bruxuleava num brilho de impaciência.
Na verdade, por trás do seu sorriso, dos seus modos amáveis e do brilho especioso do seu dente de ouro, Madame Cruchot era uma tirana. Todos os dias ela vinha verificar
"por si mesma" o andamento da lição, sentando-se rígida, numa postura de supervisão, os olhos sem compreensão mas alerta, indo de Stephen para as crianças, perturbando-as,
fazendo que cometessem erros.
- O senhor compreende, m'sieur... desejo que elas não só leiam mas falem coloquialmente... e recitem poesias... como fazemos em sociedade.
Atendendo às suas repetidas exigências, Stephen ensinou as crianças as duas primeiras estrofes de A uma Cotovia. Então, no dia indicado para mostrar o progresso
das suas pupilas, madame apareceu com três amigas íntimas, esposas de lojistas preeminentes, membros da haute bourgeoisie de Netiers, que se aboletaram expectantes
nas cadeiras douradas do salão.
Marie-Louise, escolhida para a primeira prova, foi colocada sozinha na falsa ilha de Aubusson.
- Salve, ó tu, espírito jovial... - começou ela; depois parou, olhou em torno e suprimiu um risinho.
- Comece de novo, Marie-Louise - disse Stephen bondosamente.
- Sabe, ó tu, espírito jovial... - Novamente a criança se interrompeu, piscou, torceu a cinta e olhou timidamente para a mãe.
- Continue - disse Madame Cruchot numa voz estranha. Marie-Louise lançou um olhar súplice para o seu professor. Um leve
suor começava surgir na testa de Stephen. Num tom de lisonja, que o desagradava, disse:
- Vamos, minha querida. Salve, ó tu, espírito jovial...
Um breve silêncio, durante o qual Madame Cruchot pareceu ter virado pedra: depois, sem aviso, levantou-se e deu um tapa na cara da menina. Imediatamente Marie-Louise
debulhou-se em pranto. No momento de consternação que se seguiu, olhares indignados foram lançados para Stephen, a criança soluçante, agora agarrada ao seio materno,
foi confortada com um bombom, e ouviu-se a voz de Mane gritando lá da loja:
- Venha depressa, madame... o fígado está chegando do matadouro. Na confusão que acompanhou a retirada de Madame Cruchot, Stephen ficou desamparado, prevendo com
sardónico fatalismo a possibilidade da sua demissão. Contudo, quando a mãe reapareceu, Marie-Louise correu através da sala, pegou a mão dele e despejou instantaneamente
a poesia, que recitou por inteiro, de um só fôlego. Victorine, para não ficar atrás, seguiu-a, por sua conta, com um perfeito desempenho.
Imediatamente o aspecto da reunião mudou, houve gritinhos de aclamação, sorrisos e acenos de cabeça foram dispensados a Stephen. Madame Cruchot resplandecia de perdoável
triunfo. Na verdade, depois de acompanhar as senhoras até a porta, voltou para Stephen com uma disposição de curiosa indulgência. Em vez da costumeira fina fatia
de presunto, deu-lhe no almoço um prato quente de carne ensopada, guarnecida de rabanetes e cebolas de Bordéus. Sentando-se diante da mesa da copa, observou:
- Afinal de contas, as coisas correram bem.
- Sim - disse Stephen sem levantar os olhos. - No começo, foi apenas o medo do palco.
Por um momento, ela continuou a vê-lo comer.
- Minhas amigas ficaram muito satisfeitas com o senhor - disse ela de repente. - Madame Oulard... a esposa do nosso primeiro pharmacien, uma senhora de certa posição
na cidade, embora naturalmente não possa pagar um tutor para as suas crianças, considera-o très sympathique... um perfeito cavalheiro.
- Sou muito grato por sua boa opinião.
- Acha que ela é uma mulher bonita?
- Deus do céu, não - disse Stephen com um ar ausente. - Eu mal a notei.
Madame Cruchot afagou as suas pastas de cabelo amarelo e, esticando o corpete, bateu nas suas firmes ancas com um gesto significativo.
- Deixe-me servir-lhe mais ensopado.
Nos dias que se seguiram, a qualidade e aliás a quantidade da refeição do meio-dia do tutor inglês melhoraram misteriosamente, e de várias outras maneiras a dona
da casa continuou a sua atitude diferente, e até se poderia dizer, o seu favor. Era uma mudança afortunada para Stephen, em quem a falta de alimentação adequada
e aquela tosse que não o deixava tinham causado considerável dano físico. Começou a sentir-se mais forte, novas correntes de vida movendo-se lentamente nas suas
veias, e um dia, de repente, sentiu, pela primeira vez desde que chegara a Netiers, um vivo desejo de pintar.
O impulso era irresistível, e ao deixar a mercearia apanhou um bloco de papel da Índia e alguns bastões de giz colorido. Quando a lição estava quase terminada, pôs
as duas crianças a ler no mesmo livro, juntas, na latada, e então, com o anseio de uma paixão contida, com linhas ligeiras, firmes e felizes, fez um pastel das suas
cabeças. A coisa foi feita rapidamente, tão veemente era a inspiração - em questão de menos de meia hora. Nunca tinha executado algo tão vívido, tão fresco na sua
composição impressionista. Até ele, que sempre subestimava o seu trabalho, estava comovido, sobressaltado, e excitado por aquela coisa adorável que tinha ganho vida,
misteriosamente, vinda do nada, ao seu toque.
Estava com a cabeça inclinada apontando para o fundo com um creiom amarelo, quando ouviu um som atrás dele: Madame Cruchot, por cima do seu ombro, estava olhando
para o pastel.
- Foi o senhor quem fez isso, m'sieur?
A sua expressão de pasmada incredulidade provocou-lhe um sorriso.
- Gosta?
Talvez ela não compreendesse plenamente a pintura. Mas via nela as suas duas crianças, belamente sugeridas em poucas linhas, umas poucas sombras de cor pura e brilhante.
Não entendia nada de arte. Contudo, o seu astuto instinto comercial tornou-a de imediato - ainda que subconscientemente, advertida de que ali estava algo raro e
delicado, algo da mais alta qualidade. Cobiçou-a
imediatamente. Mas além disso experimentou um singular afluxo dos seus sentimentos por aquele jovem inglês desconhecido, aquela emoção que começara quando, no dia
da recitação, o nevoeiro da sua indiferença se dissipara e ela o vira, através da tagarelice das suas amigas, como realmente era, um homem jovem muito atraente,
com a figura franzina e rosto sensível, os olhos negros e a delicada palidez. As menininhas ainda estavam soletrando no seu livro. Ela passou por trás do sofá e
sentou-se ao lado de Stephen.
- Não percebi - disse ela num cochicho confidencial - que m'sieur era um verdadeiro artista.
- Mas eu lhe disse quando a senhora me empregou.
A referência àquela primeira entrevista, quando ela o tratara tão rispidamente, provocou-lhe um rubor profundo até o seu queixo redondo e sólido e a coluna muscular
do pescoço.
- Ah - disse ela - não fiz muito caso do que me disse naquela ocasião. Eu não tinha o prazer de conhecer m'sieur como conheço agora... após estas semanas de agradável
intimidade, quando tem ensinado às minhas filhas, participado comigo da minha casa, e sempre com a polidez e reserva que só vem da verdadeira distinção. M'sieur
Stephen... - era a primeira vez que ela se dirigia a ele pelo nome, e o fazia com um frémito que endurecia a pele dos seus sólidos seios... - mesmo que não tivesse
me dito nada, eu saberia, por esta pintura, que o senhor tem grande talento.
Suas palavras de mau gosto eram embaraçosas, mas ele disse, gentilmente:
- Talvez queira ficar com ela...
A sugestão, com as suas implicações de compra, levou-a a recuar ligeiramente, mas só por um instante. Respondeu, séria:
- Quero sim, M'sieur Stephen, e vou falar a esse respeito com meu marido esta noite. Naturalmente, é possível que ele diga que o trabalho foi feito na hora da aula,
pelo que o senhor já estava pago, e nesse caso...
- Minha cara Madame Cruchot - interpôs apressadamente Stephen - a senhora absolutamente não me entendeu. Ofereço-lhe a pintura de presente.
Os olhos dela brilharam, não de cupidez agora, mas de uma emoção mais suave e confusa. Suprimiu um suspiro, olhou para ele com uma expressão terna, dizendo:
- Obrigada, M'sieur Stephen. Garanto-lhe que não se arrependerá.
A singularidade de estar sentada tão junto dele punha-lhe a cabeça a girar, uma sensação bem diferente da que lhe dava a proximidade de Cruchot. Mas as menininhas
começavam a exigir atenção, e ela ficou com medo de comprometer-se mais. Com um olhar de soslaio, rápido mas intenso, no qual tentava, em vão, mostrar o seu coração,
que batia rapidamente, levantou-se, disse-lhe au revoir, e voltou para a mercearia.


CAPÍTULO IV

APÓS SEMANAS DE aNIMADA APATIA, Stephen achou que podia pintar novamente. Era como despertar para uma nova vida na qual ele se descobria possuído de uma capacidade
maior, de uma visão mais penetrante do que antes. A cidadezinha, com seus insípidos habitantes, até aqui um deserto de esterilidade, transfigurou-se de repente numa
palpitante fonte de inspiração. Pintou o hotel de ville; a praça de armas do quartel; os telhados da cidade, vistos da sua janela, estranhamente pitorescos; uma
bela composição em cinza e negro das irmãs do convento voltando da missa na chuva, embaixo dos seus guarda-chuvas. As telas que tinha trazido de Napoleon Campo foram
uma a uma transformadas, pregadas no canto do quarto do sótão.
Havia cartas também, de Peyrat e Glyn, para alegrá-lo. Jerome propunha-se continuar em Puy de Dome no inverno e Glyn voltaria a Londres para uma breve estada no
outono. Ambos instavam para que fosse juntar-se a eles. Mas era claro que ele não iria. Estava pintando aqui, e feliz. Nesse estado de ressurreição, a lição diária
para as meninas Cruchot perdeu seu aspecto normal de necessidade. Na verdade, muitas vezes era penoso para Stephen pôr de lado os seus pincéis e correr à mercearia,
justamente quando a luz era a melhor. E embora, na linguagem do estabelecimento, ele continuasse tendo um valor, a sua mente não estava inteiramente no ensino, nem
após a aula era motivado por outro pensamento que não o ir-se dali.
Por causa da sua distração, continuou mais ou menos esquecido das mudanças, sempre crescentes, na atitude de Madame Cruchot para com ele. O vasto melhoramento na
cozinha era, sem dúvida, evidente, mas ele creditava-o à gratidão da proprietária pelo presente do quadro. A esta também atribuía os outros sinais de atenção que
lhe eram dispensados. Tornara-se agora costume de madame presidir o seu almoço e impor-lhe a sua hospitalidade. Na verdade, a sua dedicação foi além.
- M'sieur Stephen - ponderou ela um dia, com uma nota de solicitude. - estou preocupada com o seu conforto. O senhor pode não ser bem-visto em casa de Madame Clouet.
- Mas sou - contrariou ele. - Ela é uma alma muito decente.
- Mas é um quarto tão pobre.
- Conhece-o? - surpreendeu-se ele.
- Bem - disse ela enrubescendo. - Passei pela casa muitas vezes... no meu caminho para a igreja, naturalmente. Se ao menos alguém de gosto acrescentasse umas poucas
coisas... e as arranjasse, ficaria muito mais agradável para o senhor.
- Não, realmente - sorriu ele. - Agrada-me como está... despido e arejado.
- Mas não é bom para o senhor - insistiu ela. - Não posso deixar de notar que a sua tosse ainda o incomoda.
- Oh, não é nada... foi só esta manhã.
- Meu caro M'sieur Stephen. - Olhou-o com terna censura. - Não me contrarie em tudo. Se não posso melhorar o seu quarto, deixe-me ao menos restaurar a sua saúde.
No dia seguinte, para seu embaraço, um frasco de sirop pectoral do estabelecimento de Monsieur Oulard estava na mesa ao lado do seu prato, e madame, medindo uma
colherada, administrou-lhe a dose com ambas as mãos. Victorine e Marie-Louise divertiram-se vendo o seu professor ter que engolir remédio à força. E, no fim, Stephen
também riu.
Quando as crianças correram para brincar no jardim, Madame Cruchot, após um olhar demorado, soltou um suspiro:
- Naturalmente... uma coisa posso ver muito bem. O senhor encontrou na cidade alguma moça insignificante que o atrai.
- O quê! Em Netiers?
- Por que não? Não vai todos os dias ao Café des Ouvriers, e aquela Julie Grosette... eles por lá não têm grandes escrúpulos, posso lhe garantir...
Na verdade, ela conhecia todos os falatórios, mexericos e pequenas intrigas da cidadezinha. Mas o olhar atónito de Stephen era tamanho, que ela parou de falar. Forçou
um risinho.
- Não me olhe assim, meu amigo. Só estou pensando no seu bem-estar. E afinal de contas, embora eu seja uma boa mulher, também sou uma mulher do mundo. Então não
tem ninguém?
- Não - disse ele brevemente.
O olhar de expectativa, de ciúme, desapareceu dos seus olhos e foi substituído por um ar de coqueteria.
- Diga-me se gosta do meu vestido.
Colocou-se ligeiramente de quadril, exibindo o seu novo vestido, de um verde um tanto agressivo, com trancelins amarelos embaixo, que davam um efeito de juventude.
E o cabelo, recém-lavado, fora ondulado com um brilho mais metálico. Madame tinha apego aos vestidos, era uma cliente regular das galleries de Rennes, e ultimamente
exibia para Stephen as suas mais elaboradas toilettes, que, ai!, ele nunca parecia notar. Era essa indiferença que aumentava
os seus anseios, essa completa inconsciência de que ela era uma mulher, e talvez ele fosse assim com qualquer mulher, de uma inocência comparável à do jovem cura
que uma vez servira na paróquia e que ela admirava à distância, sonhando com ele todas as noites ao lado do merceeiro, que, com a carne aplacada pelo seu insensível
traseiro, roncava musicalmente. Mas isso não tinha sido nada, o mero sopro das asas de uma borboleta ao lado deste desejo que agora lhe corria nas veias, fazendo-a
arder de vontade de apertar Stephen nos braços e cobri-lo de beijos.
Ela estava cega para a comédia da sua situação: uma mulher de quase
40 anos, metida de corpo e alma nas atribulações de um negócio banal, de punhos fechados, uma tirana que passava a vida, de voz estrídula e metálica, pondo areia
no açúcar, água na sidra, extorquindo o último soldo das palmas renitentes de um camponês - ela, entre todas as mulheres, sendo amaciada, liquefeita por aquela devastadora
paixão por um rapazinho que talvez pudesse ter sido seu filho. Perdeu o interesse nas suas crianças, nas suas amigas, na busca da riqueza. O marido tornou-se-lhe
odioso. Os seus maneirismos burgueses, a maneira de comer, de soltar ventosidades baixinho após a sua cerveja, despertavam nela uma tempestade de ódio.
- Je te défends de passer le gaz en bas! - gritava ela, encolerizada.
E com tudo isso o seu próprio refinamento aumentava. Banhava-se com mais frequência, usava um perfume mais forte, chupava pastilhas para perfumar o hálito, mudava
a rroupa branca mais seguidamente. Se não pudesse tê-lo, sentia que deixaria de viver.
Subitamente veio uma resposta às suas preces mudas, uma ideia de brilho surpreendente. Como é que ela não tinha pensado nisso antes? Quando Stephen entrou nesse
dia, ela o interceptou no corredor.
- Meu amigo - disse ela alegremente. - Tenho uma boa notícia para o senhor, em suma, uma incumbência. Monsieur Cruchot insiste em que o senhor deve pintar-me.
Desconcertado, Stephen olhou para ela em silêncio.
- Sim - acenou ela. - Cruchot está cheio de entusiasmo. Não falou em outra coisa ontem à noite... De corpo inteiro... a óleo.
- Mas, madame. - Stephen franziu o cenho hesitante, procurando uma desculpa. - Eu... eu não pinto retratos... estou trabalhando em outro tema...
Ela sorriu para ele tranquilizadoramente.
- Não se preocupe, mon petit, farei com que seja pago. Na terça-feira, então, começamos. Está combinado.
Antes que ele pudesse terminar, ela bateu-lhe no braço, com um olhar arqueado, e saiu depressa da sala.
Terça-feira era meio feriado para os comerciantes. Como sempre, a loja
fechava ao meio-dia e tudo ficava tranquilo. Contudo, no momento em que entrou, Stephen sentiu, nos postigos fechados, uma calma sobrenatural. Madame Cruchot recebeu-o
na porta.
- Nada de lição hoje - anunciou ela efusivamente. - As meninas foram para o campo com Marie.
Ao admiti-lo na loja, explicou que a empregada fazia uma visita por mês aos seus pais em St. Vallé, e que, às vezes, como grande favor, ela lhe permitia que levasse
as crianças.
- E naturalmente - acrescentou sem cerimónia - meu marido está em Rennes, no mercado. Não seremos perturbados.
Novamente o silêncio incomum perturbou-o; nenhum rumor na adega, onde Joseph, o auxiliar, passava duas horas cuidando do estoque. Na casa, a não ser eles, não havia
ninguém. Mas foi a mesa, na sala de almoço, posta para dois, com toalha engomada e os melhores talheres, adornada com um vaso de rosas vermelhas, que o pôs em guarda.
- Se não se incomoda, almoçaremos juntos. Será muito mais conveniente.
Falando voluvelmente, naquela mesma maneira descuidada, trouxe da copa um poulet de Bresse assado, com cogumelos e salada, um paté de Estrasburgo, pêssegos em calda,
e uma garrafa de champanhe. Somente depois de abarrotar o seu prato, permitiu-se olhar para ele.
- Estamos bem aconchegados aqui. Não é agradável almoçarmos tête-à-tête? Sabe, deve comer antes de trabalhar. - Lançou-lhe um olhar pudico. Deixe-me servir-rlhe
o champanhe. É o melhor que vendemos. Cinco francos a garrafa.
Ele sentia-se confuso, desconcertado e inquieto. Mas no seu estado empobrecido, tinha para com a comida uma espécie de oportunismo. Comeu o que foi posto diante
dele, certo de que não estava em posição de recusar, mas foi se tornando cada vez mais consciente daqueles olhares lânguidos que pousavam nele. Do seu busto também,
que subia com esforço cada vez que ela respirava com esforço, fazendo os seios pularem e o queixo afundar no pescoço, parecendo aproximar-se mais dele a cada respiração.
Ao contrário do seu costume habitual, ela não estava comendo, servindo-se, com um ar de refinamento, apenas de uma asa de frango, e agora já partindo para o segundo
copo de vinho. Seus olhinhos redondos brilhavam como bolinhas de gude. Sentia um forte impulso para estender o braço por sobre a mesa e apertar-lhe a mão. Ele nunca
adivinharia que delicados favores ela estava preparada para lhe oferecer? Quanto menos ele entendia, mais a seduzia.
- Meu amigo - exclamou ela - não pode fazer uma ideia do que tem sido a minha vida nestes últimos 15 anos aqui em Netiers.
- Infelizmente não a conheço há tanto tempo.
- Não - refletiu ela, e numa voz sumida: - Contudo, devo ao senhor o fato de ter descoberto o vazio da minha existência.
- Isso seria um mísero retorno, madame... se fosse verdade.
- É verdade. - Como ele nada dissesse, ela moveu a cabeça enfaticamente. - Sim, ao senhor, meu amigo, que me abriu os olhos para novos horizontes, com os quais antes
eu nem sonhava. Monsieur Cruchot, embora sem excessiva ternura ou delicadeza, é um homem digno. E naturalmente eu sou uma mulher virtuosa. Mas há momentos em que
a solidão me invade o coração, quando tenho necessidade de um confidente. Ah, meu amigo - suspirou ela
- quando o coração pede, quem é que pode negar? É errado procurar a realização... uma vez que seja discreta?
Sentado em silêncio, constrangido, uma rude explicação para aquele comportamento atravessou-lhe de fato o espíriro. Mas despediu-a como absurda. Contudo, sentia-se
obrigado a começar o trabalho sem demora e executá-lo o mais depressa possível. Empurrou o prato.
- E agora, madame, se lhe for agradável, podemos começar. Pensei que seria melhor fazer um esboço preliminar. A senhora posará para mim? No salão?
Ela olhou para ele e tomou um fôlego convulsivo.
- Não - replicou numa voz indistinta. - Lá em cima a luz é melhor. Levantou-se da mesa e dirigiu-se para a porta. - Eu me apronto logo. Termine o seu vinho. E depois
suba.
Ele nunca tinha estado antes no andar de cima. Após esperar cinco minutos, encaminhou-se para a escada. Estava frouxamente iluminada, e os degraus, cobertos de tapete
fino, estalavam aos seus pés. O cheiro dos queijos, postos a amadurecer no armário do corredor encheu o ar. Ao chegar à porta, encontrou-a aberta. Imaginou que dava
acesso à sala de estar, mas antes que pudesse bater, ela o chamou:
- Entre, mon ami.
Ele entrou.
Madame Cruchot estava junto à cama dupla, pedindo a sua aprovação. Tinha tirado o vestido e usava um penhoar, que, numa pose vulgar, com uma das mãos no quadril,
ela mantinha meio aberto, revelando os calções listrados, com um babado de renda pesada, que caía abaixo dos seus joelhos grossos, e uma camisola cor-de-rosa umedecida
por uma mancha de perfume que acabara de pôr, enrugada pelo espartilho.
Um suor frio inundou Stephen. Suas pupilas ardiam com cada detalhe do ostentoso mas desmazelado dormitório, o tapete ornado e as cortinas com colgadura, a cómoda
manchada, o utensílio de louça embaixo da cama, e até a camisa de dormir de Cruchot enfiada às pressas embaixo de um travesseiro. Empalideceu. Interpretando mal
os seus olhos dilatados, ela agitou a cabeça,
fingindo tremer, e então, com uma terrível coqueteria, veio para ele. Era demais. Ele recuou com uma expressão de repulsa, furioso consigo por ter caído em tal situação,
que, embora participasse dos elementos da farsa era abjetamente humilhante. Sem uma palavra, voltou-se e precipitou-se para fora do quarto.
Nessa noite, sentado no seu sótão, ouviu fortes pancadas na porta da frente, seguidas de passos pesados na escada, e logo Monsieur Cruchot invadia o seu quarto.
O merceeiro, ainda vestindo o seu melhor terno, encontrava-se num estado de cólera fabricada.
- Como se atreve a fazer propostas amorosas a minha esposa... miserável insignificante... no instante em que dou as costas? Tenho a intenção de ir diretamente à
polícia. Sempre pensei que você era uma cobrinha inglesa. Mas morder a mão que o sustenta... uma mulher de coração puro... uma mãe! Que ultraje... uma atrocidade!
Jamais torne a mostrar o seu focinho no meu estabelecimento. Mas, além disso, deve haver uma compensação... por danos... no mínimo uma pintura.
Stephen sabia que Cruchot não gostava dele, no entanto era evidente que aquela exibição era instigada pela esposa, o marido era o mensageiro da mulher despeitada.
E com uma onda de amargura, como Cruchot continuasse a ameaçá-lo, Stephen arrancou uma página do bloco que estava na mesa dele e entregou-a ao merceeiro. Era um
esboço que ele acabara de fazer de memória de madame, obesa e afetada, de calções, no quarto de dormir.
Monsieur Cruchot, silenciado pelo gesto inesperado, olhou para o desenho fatal. Sua face tornou-se lívida. Ia rasgá-lo, mas, com a esperteza nativa, considerou-o
novamente, enrolou-o cuidadosamente e colocou-o dentro do chapéu. Depois, com um olhar furtivo, voltou-se e foi embora.


CAPÍTULO V

NA MANHÃ SEGUINTE, Stephen fez a sua mochila, amarrou as suas telas num canudo e, pondo a carga ao ombro, partiu de Netiers a pé. Seu objetivo era Fougères, situada
na route nacional, a 30 quilómetros de distância, e às cinco horas da tarde, após uma sufocante caminhada através dos campos, alcançou, a cidade, erguida em ambos
os lados de uma colina cortada pela estrada principal
para Paris. Lá, encontrou um restaurante barato que lhe pareceu um ponto de parada para caminhoneiros. O garçom, ao qual pediu ajuda, tinha certeza de que surgiria
uma oportunidade, e na verdade, justamente antes das nove, parou um camion da Compagnie Atlantique com um reboque e dele desceram dois homens de macacão e entraram
no bar. Poucos minutos depois, o garçom fez um sinal, houve apresentações, explicações transitórias e um geral aperto de mãos - tudo arranjado. As coisas de Stephen
foram colocadas embaixo do assento e eles partiram.
A noite chegou quente e serena. Rodaram através de aldeias adormecidas, cidades desertas onde brilhavam apenas umas poucas luzes, passando Vire, Argentan, Dreux.
O ar quente assobiava ao lado deles, os paralelepípedos estrondejando embaixo, a lua mergulhou por trás das alamedas nevoentas de álamos. Finalmente, quando rompeu
o amanhecer pálido e escorrido, atravessaram o Sena em Neully, entraram em Paris pela Pote Neully e pararam no mercado Les Halles. Lá, Stephen agradeceu aos seus
dois amigos e deixou-os.
A cidade, ainda não acordada de todo, tinha um ar cinzento e triste, mas quando atravessou a Ponte Nova, Stephen respirou fundamente o ar úmido. Estava de volta
a Paris. Depois de Netiers sentia-se mais forte, acima de tudo cheio de uma firme determinação de demonstrar o seu talento ao mundo.
Quando o mont-de-piété da Rue Madrigal abriu as portas, ele estava à espera do lado de fora. Entrando, empenhou o relógio - um presente do pai no dia do seu vigésimo
primeiro aniversário - pelo qual recebeu 180 francos. A seguir, após uma demorada procura, achou uma acomodação numa rua lateral próxima da Place St. Séverin, um
bairro frequentado por artistas como último recurso. Era um quarteirão pobre e um quarto ainda mais pobre, escassamente mobiliado e terrivelmente sujo - somente
10 francos por semana. Imediatamente se pôs ao trabalho e, pedindo emprestados uma vassoura e um balde, limpou o cómodo. Até lavou as paredes, a fim de que parecessem
recomendáveis, embora ainda permanecessem algumas manchas de insetos.
Passava das duas; sem pensar em comida, escolheu quatro das suas pinturas e dirigiu-se rapidamente pelos quais à loja de Napoleon Campo. O vendedor de tintas estava
sentado no seu caixote costumeiro atrás do balcão, balançando as pernas curtas, usando uma jaqueta azul de piloto e boné amarelo de tricô, com as orelhas gretadas
de fora, o rosto púrpura com a barba por fazer, mãos cruzadas sobre a barriga. Saudou Stephen amavelmente, como se o tivesse visto na véspera.
- Bem, Monsieur l'Abbé, que posso fazer pelo senhor?
- Antes de tudo, deixe-me liquidar o que lhe devo.
- Obrigado, o senhor é um homem honesto.
Recebeu os 50 francos que Stephen lhe deu e enfiou-os numa velha bolsa de couro.
- E agora, Monsieur Campo, quero uma tela bem larga, 2,00 x 0,80cm.
- Ora! Tem um trabalho tão grande assim em vista? Naturalmente pode pagar?
- Em dinheiro não, monsieur. Com estes.
- Endoideceu, Abbé? Deus do céu, meu porão está abarrotado de pinturas, refugo impróprio até para a lata de lixo, que recebi por ter um coração bondoso.
- Nem tudo é lixo, Campo. Você recebeu pinturas de Pissarro, e Boudin, e Degas.
- Você é um Degas, meu pequeno Abbé?
- Um dia, talvez.
- Meu Deus, é sempre o mesmo conto de fadas. Então a sua tela especialmente grande é para pendurar no Salon, com multidões diante dela. Terá fama e fortuna da noite
para o dia. Bah!
- Então aceite 20 francos por conta e estas pinturas como penhor do restante.
Os insignificantes olhinhos azuis de Napoleon procuraram o rosto pálido e sério diante dele. Tantos, tantos rostos tinham passado por sua loja nos últimos 30 anos,
que afogavam a sua memória. Era um homem fleumático, que não se comovia facilmente, e a idade o tinha tornado ainda mais impassível. Mas ocasionalmente, embora isso
fosse raro, havia nos modos e no aspecto de algum aspirante necessitado, como agora nas curiosas feições daquele inglesinho, um tipo de intensidade que o impressionava.
Hesitou, depois desceu do seu assento e começou a remexer nas prateleiras. Quando a tela que Stephen queria - um fino linho de grão fino - estava em cima do balcão,
houve uma pausa.
- Disse 20 francos?
- Sim, Monsieur Campo. Stephen contou as moedas.
Napoleon Campo tomou uma pitada de rapé, limpando meditativamente o nariz carnudo com o punho da sua jaqueta de piloto.
- E agora, naturalmente, vai passar fome.
Houve outra pausa. Subitamente Campo empurrou as moedas que estavam em cima do balcão.
- Devolva estas à sua caixa de coleta, Abbé. E me dê os seus miseráveis borrões.
Surpreso, Stephen entregou-lhe as suas pinturas. Sem ao menos uma olhada por alto, Napoleon colocou-as embaixo do balcão.
- Mas. . . não quer vê-las?... São... as melhores que eu fiz.
- Não julgo pinturas e sim gente - replicou Campo rispidamente. bom dia, monsieur. E boa sorte.
Stephen voltou ao seu quarto com a tela às três horas, e sem demora saiu imediatamente para a loja de bicicleta da Rue de Bièvre. Até agora as coisas tinham ido
bem, mas ao se aproximar do estabelecimento de Berthelot sentiu-se nervoso e inseguro de si mesmo, embora cheio de uma viva expectativa que fazia o seu coração bater
depressa. Muitas vezes, durante os últimos meses, tinha pensado em Emmy; a recordação daqueles momentos na escuridão do corredor estreito lhe vinha de tempos em
tempos sem aviso, ainda que com uma esquisita inconsistência.
Encontrou-a no pátio atrás da oficina, curvada sobre uma bicicleta niquelada, reforçada e pintada de vermelho e ouro. Vê-la outra vez deu-lhe uma sensação de calor
por dentro. Ela ergueu os olhos quando ele apareceu, aceitou a sua saudação sem surpresa e continuou a acertar os rolamentos. O pulso dele ainda estava absurdamente
desigual; contudo, desde as suas excursões juntos, sabia muito bem que ela abafava qualquer mostra de afeição.
- É uma linda máquina - disse ele após alguns momentos.
- É minha. Vou usá-la em breve. - Endireitou-se, atirou uma mecha de cabelo para trás. - Então está na cidade de novo?
- Desde esta manhã.
- Quer alugar uma?
Ele abanou a cabeça.
- Tenho coisas mais importantes para fazer.
Houve uma pausa. Ela sempre fora um tanto curiosa a respeito dele, e agora, como ele pretendia, o seu interesse tinha aumentado.
- Está metido em quê?
Ele respirou rápido.
- Já ouviu falar do Prix de Luxembourg, Emmy? É uma competição aberta a todos os que nunca estiveram no Salon. Pretendo arriscar. - Depois, como se ela se voltasse
indiferente, acrescentou: - Foi por isso que voltei. Quero que você pose para mim.
- Quer dizer... - interrompeu-se, olhando para ele - ... fazer o meu retrato?
- Isso mesmo. - Procurou falar num tom casual. - Você nunca foi pintada, foi?
- Não, apesar de que já devia ter sido há muito tempo, considerando quem sou.
- Então, esta é a sua oportunidade. Pode ser muito bom para você. Os melhores trabalhos serão exibidos no Orangerie. Você certamente seria reconhecida.
Ele podia ver que a sua vaidade estava lisonjeada, mas ela hesitava, olhando-o de cima a baixo como que calculando a sua capacidade.
- Você pode mesmo pintar? Quero dizer, poderia fazer um bom retrato?
- Pode contar comigo. Porei tudo o que tenho nessa pintura.
- Sim, suponho que poria, para o seu próprio bem. - Uma ideia lhe ocorreu. - Mas eu vou excursionar no mês que vem.
- Até lá há tempo suficiente. Se você vier todos os dias durante três semanas, posso pintar os detalhes depois que você for.
Novamente podia ver que ela debatia as possibilidades.
- Bem - disse ela, por fim, na sua maneira desgraciosa. - Não me importo. Acho que não vou perder nada.
Ele reprimiu uma exclamação de satisfação e alívio - não somente tinha querido pintá-la desde o começo, mas ela seria perfeita para o assunto que naquelas últimas
e poucas horas havia se apoderado dele. Rapidamente, deu-lhe o seu novo endereço, pediu-lhe que estivesse lá às 10 da manhã seguinte, usando o seu suéter preto e
a saia pregueada, e despediu-se antes que ela pudesse mudar de ideia.
Vagabundeando pela avenida, sentia-se excitado pelo que tinha realizado nesse dia. Só então se lembrou que não comia desde que dividira um sanduíche com o motorista
do camion na noite passada. A fome o atacou como um tapa. Mergulhou numa épicerie, onde comprou um pão comprido e uma tranche de salsicha. Não conseguia ficar quieto.
Andando pela rua escurecida diante do Jardin des Plantes, mordia alternadamente o pão estalante e o suculento patê embutido no seu branco envoltório de toucinho.
Como era gostoso. Sentia-se feliz, livre, e estranhamente exaltado.


CAPÍTULO VI

No DIA SEGUINTE, ele estava pronto e esperando impacientemente, a tela preparada, quando ela chegou, com uns 20 minutos de atraso.
- Aí está você! - exclamou ele. - Pensei que não viesse mais.
Ela não respondeu, mas da porta olhou em torno para o quartinho miserável com as pranchas nuas, uma cadeira de bambu quebrada e uma cama sobre roletes, afundada
no meio.
- Você está quebrado, não?
- Mais ou menos.
- Você tem topete. Trazer-me para um trou destes. Nem ao menos tem onde pendurar as minhas coisas.
Ele corou, mas forçou um sorriso.
- Admito que não seja o Elysée, mas nío é mau lugar para pintar. Dê-me uma chance e eu prometo que não se arrependerá.
Ela baixou o lábio numa espécie de careta, mas, com um dar de ombros, entrou e deixou que ele lhe tirasse o casaco e a postasse diante da janela.
A luz era boa, e, cheio de um súbito hausto de força, ele começou a tracejar a composição que agora o obcecava. Como as regras do concurso exigiam uma pintura "clássica",
seu tema seria alegórico, embora moderno na composição, e o assunto era: Circe e Seus Amantes. Poderia a sua absurda aventura com Madame Cruchot, trabalhando no
fundo do seu inconsciente, inflamar uma centelha que incendiasse essa estranha visão? Símbolos e imagens enchiam a tela da sua vista, cativando os sentidos. Na sua
imaginação, o prazer lutava com a virtude, e a luxúria se revelava na forma dos seios à espreita. Tudo ainda era uma miragem; no entanto, nos íntimos e misteriosos
recessos da sua alma, sentia a força para fazer aquele sonho existir.
Embora pudesse ter continuado o dia inteiro, ao meio-dia, advertido pela expressão da moça, Stephen lhe disse que talvez fosse o bastante para aquele dia. Imediatamente,
ela atravessou o quarto e examinou a tela, onde, usando carvão, ele já tinha feito seu esboço, de corpo inteiro e bem definido. As sobrancelhas ergueram-se e o olhar
amuado deixou o seu rosto quando ela se viu ocupando o centro da tela, de pernas separadas, mãos plantadas nos quadris, uma atitude que era toda sua. Não disse nada
enquanto permitia que ele a ajudasse a vestir o casaco, mas na porta se voltou e acenou a cabeça.
- À mesma hora, amanhã.
Durante a tarde, enquanto a luz durou, ele trabalhou no plano de fundo. E no dia seguinte, e nos que se seguiram, continuou, nem sempre de ânimo elevado, mas com
um propósito que o transportara através de momentânea melancolia para novos transes. Ao mesmo tempo, à medida que prosseguiam as sessões e ele entrava em contato
mais íntimo com Emmy, não mais podia ficar cego ao aprofundamento dos seus sentimentos por ela. A cada dia, terminada a sessão, dava consigo a sentir falta dela,
mais e mais. Na ausência de Peyrat e Glyn, estava sozinho. Mas isso explicaria o seu constante desejo pela companhia dela? Zangado consigo mesmo, lembrou o quanto
não gostara dela no seu primeiro encontro, e como ela às vezes o irritava com a sua grosseria e falta de educação. Quando ela estava de mau humor e ele tentava conversar
com ela, as suas respostas eram monossilábicas, e quando lhe dizia que descansasse, ela continuava a ignorá-lo, deitava-se de barriga na cama, acendia um Caporal
e mergulhava numa revista esportiva amarrotada. Percebeu que ela não tinha atenção para com ele e que somente a vaidade a trazia regularmente ao seu quarto. Uma
dúzia de vezes por dia ela ia observar a marcha do trabalho, e embora nunca o elogiasse, congratulava-se consigo mesma.
- Estou saindo bem, não é?
A lenda da Odisseia, da filha de Helios e da ninfa do oceano Perse, que ele explicou para ela, mexeu-lhe com a fantasia. A ideia de que tivesse o poder de transformar
seres humanos em formas animais provocou-lhe um sorriso.
- Bem feito, pra eles aprenderem.
Essa vulgaridade estremeceu-o. E contudo não era inibidora. Que haveria naquela moça para provocar o seu premente interesse? Procurou descobrir. Que sabia realmente
dela? Muito pouco, exceto que era comum, dura e insignificante - uma pequena nulidade, desinteligente, sem imaginação, completamente empedernida. Não sabia nada
de arte, não tinha interesse pelo seu trabalho, e se entediava quando ele falava. Mas a sua figura era esquisita - não estava reproduzindo cada linha sutil dos seus
membros fortes e esbeltos, o ventre chato e os seios firmes? - e acima de tudo ela era pequena. Embora pudesse admirar na tela a carne voluptuosa das mulheres de
Rubens, o seu gosto sempre fora por uma perfeição menos arredondada. E ela possuía essa nitidez física, uma figura que ele sempre comparava à Maja de Goya. Contudo,
ninguém poderia chamá-la de bela. Tinha um encanto travesso, mas os seus lábios eram finos, as narinas um tanto puxadas, e a sua expressão, quando não alerta e vigilante,
era quase carrancuda. Curioso é que, todas as suas imperfeições eram aparentes para ele. Contudo, não afetavam em nada aquela estranha emoção que, a despeito de
todos os seus esforços para suprimi-la, crescia nele.
Desejava estar ao lado dela e sentia-se inquieto e nervoso quando ela se retirava. Desordenadamente afetado pelos seus humores variáveis, respondia a eles de uma
maneira que o fazia desprezar a si mesmo. Em raras ocasiões, quando ela se mostrava agradável, o seu coração se animava. Às vezes, nessa disposição tagarela, ela
fazia perguntas sobre o único assunto que, entre todos os outros ligados a ele, parecia interessá-la.
- É verdade que os seus pais têm uma grande proprieté em Sussex, com muitos acres de boa terra?
- Não muitos - sorriu ele. - Se Glyn lhe disse isso, exagerou.
- E você ia ser um padrezinho... até que eles o tiraram do seminário.
- Você sabe que eu saí por minha vontade.
- Para viver num quarto como este? - perguntou, incrédula.
Encolheu os ombros, mas sem desprezo - lisonja que o gratificou. Essa afabilidade, embora não causasse alívio, era um agradável contraste com a mortificante indiferença
com que ela geralmente recebia as suas tentativas para agradá-la. E enquanto ela posava, indolente como um gato, ele começou a contar-lhe, sem parar de pintar, histórias
sobre Stillwater que achava pudesse entretê-la e diverti-la. Quando finalmente esgotou o repertório, ela refletiu por alguns momentos, e então declarou:
- É certo que vivi com, isto é - corrigiu-se - entre artistas toda a minha vida. Eu própria sou uma artista. Compreendo que se abandone alguma coisa pela arte, quando
isso não é nada. Mas você está numa categoria diferente. E abandonar a sua bonne proprieté, que você poderia herdar... - fez pausa e encolheu os ombros - ... foi
imbécile.
- Não completamente - sorriu ele - ou eu não a teria encontrado. Veio-lhe uma súbita onda de anseio. Deteve-se, não ousando olhar para
ela.
- Você não percebe, Emmy?... que estou gostando terrivelmente de você?
Ela riu-se brevemente e levantou um dedo avisador,
- Nada disso, Abbé. Isso não faz parte do nosso acordo.
Derrotado, retomou o trabalho. E por toda a noite sentiu a dor da rejeição. Se ao menos pudesse sair com ela à noite - ela, que apreciava diversões vulgares - achava
que podia conquistar sua simpatia. Mas sua falta de recursos o impedia. Vivia com pouco mais de meio franco por dia, subsistindo com um pão ou uma maçã até às seis
horas, quando tomava sua solitária refeição no café mais barato das redondezas.
Certa tarde, quando suas sessões de pose já estavam terminando, ela chegou, mais atrasada do que de costume. Aparentava ótimo humor. Usava um fichu amarelo novo
com uma curta jaqueta vermelha ataviada de rendas, e seu cabelo estava recém-lavado.
- Você está muito bem - cumprimentou Stephen. - Eu quase desisti de esperá-la.
- Tenho um encontro com Peroz. O escritório dele fica bem longe... no Boulevard Jules Ferry. Mas consegui o contrato que eu queria.
- Ótimo - sorriu ele, sem mencionar que a sua partida o deprimia. Quando parte?
- A 14 de outubro. Houve um adiamento de duas semanas.
- vou sentir a sua falta, Emmy. - E inclinando-se para ela: - Mais do que você pensa.
Ela riu de novo e ele notou que os seus dentes eram agudos e regulares, com espaços definidos entre eles. Então, com vivacidade, acentuando as suas observações,
ela começou a descrever como conseguira o melhor de Peroz ao estabelecerem os termos do seu contrato.
- Dizem que ele tem bom coração - concluiu ela. - Acho que ele é apenas um gobeur... um mole.
Sabendo que a sua conversa geralmente a aborrecia, Stephen encorajou-a a continuar falando sobre si mesma. Então, como não houvesse mais luz, guardou os seus pincéis.
- Deixe-me andar com você - disse ele. - Está uma bela noite.
- Muito bem, se quiser - concordou ela, dando de ombros.
Quando ela apanhou as suas coisas, eles desceram a escada e dali a pouco chegaram ao Boulevard Gavranche, onde uma escuridão quente lançava um halo em torno das
lâmpadas da rua, envolvendo a cidade muda em misteriosa beleza. Casais passavam lentamente, de braço dado, nas calçadas tranquilas a noite parecia feita para os
namorados. Numa rua lateral perto do rio, passaram por um café, onde com a música de um acordeom, havia gente dançando sob uma pérgula, com lanternas chinesas penduradas
nos ramos dos plátanos. A cena estava cheia de luz e alegria, e Stephen podia sentir os olhares interrogativos de Emmy lançados para ele.
- Gostaria de dançar?
Tomado por um demorado embaraço, consciente da sua inépcia, ele abanou a cabeça.
- Eu não seria muito bom nisso.
Era verdade. Ela encolheu os ombros.
- Você não é bom em muita coisa, não é? - disse ela.
Chegaram às sombras dos quais. O Sena fluía em silêncio, uma corrente lisa e verde, sob o vão baixo da Pont de l'Alma. Como se estivesse entediada pelo seu silêncio,
ela caminhava um pouco adiante, começando a trautear a canção tocada pelo acordeom no cabaré.
- Espere, Emmy. - Ele se chegou para o abrigo de um arco. Ela o Olhou de lado, por sobre o ombro.
- Que é que tem na cabeça, Abbé?
- Você não vê... o quanto significa para mim?
Pôs um braço em torno dela, atraindo-a para si. Durante uns poucos momentos, insensível como o poste de iluminação, ela deixou que ele a abraçasse, e depois, com
um movimento brusco de impaciência, empurrou-o.
- Você não entende nada disso.
Havia desprezo na sua voz.
Ferido e humilhado, fraco de emoção frustrada, sentindo a verdade da observação, ele a seguiu para a rua. Caminharam para a Rue de Bièvre. Diante da loja de bicicletas,
ela olhou para ele como se nada tivesse acontecido.
- Posso ir amanhã de manhã?
- Não - disse ele amargamente. - Não será necessário. Voltou-se, furioso com ela e enojado consigo mesmo.
- Não se esqueça - gritou ela. - Quero ver o quadro quando estiver terminado.
Ele a odiava por sua dureza, sua falta de generosidade comum - ela sequer tivera pena dele. Disse a si mesmo que nunca mais tornaria a vê-la.
Na manhã seguinte, quando acordou de uma noite inquieta, lançou-se apaixonadamente na contemplação do quadro. Até agora, só a figura central
tinha tomado forma, havia ainda o tema a ser desenvolvido. O tempo se tornara úmido e sombrio, a luz era pouca, o seu estúdio improvisado varrido por correntes de
ar, mas nenhuma dificuldade parecia tão grande que ele não pudesse vencer. Na sua busca de realismo, ia todas as tardes ao Jardim Zoológico; depois, voltando para
o seu quarto, transferia as abjetas criaturas para a tela, com algo da sua própria tristeza e sujeição. No fim dessa semana, o seu dinheiro acabou - procurando uma
moeda para comprar o seu petit pain, não pôde achar um único soldo. Sem se abater, continuou a pintar o dia todo com uma espécie de fúria.
Na manhã seguinte, sentiu-se fraco e tonto, mas ainda assim forçou-se a prosseguir no trabalho. Quando chegou a tarde, porém, um raio de razão se infiltrou pelas
névoas que agora obscureciam o seu cérebro. Percebeu que se não comesse para viver, simplesmente isso, nunca terminaria a Circe - a menos que pudesse achar algum
meio de sustento. Sentado na beira da cama, refletiu por um instante e depois foi ao canto onde estavam as suas pinturas de Netiers, selecionando três que eram especialmente
brilhantes e coloridas. Eram boas, satisfaziam-no, davam-lhe confiança. Embrulhou-as em papel pardo e, com o rolo debaixo do braço, saiu para atravessar o Sena ao
longo dos Champs Elysées para o Faubourg Saint Honoré. Era um ato de coragem. Contudo, o tempo para meias medidas tinha passado. Estava resolvido a oferecer o seu
trabalho ao melhor negociante de arte da França.
Na esquina da Avenue Marigny, um logradouro principalmente ocupado por pequenos edifícios de apartamentos e suntuosas lojas de haute couture, deteve-se diante de
uma rica mas comedida fachada de pilares paládicos e pedra branca talhada. Depois, retesando-se decididamente, passou pela porta veneziana dourada e entrou num vestíbulo
calçado de mármore, com painéis de jacarandá e colgaduras de veludo vermelho, onde se achou diante de um jovem de paletó com abas abertas, sentado atrás de uma escrivaninha
Luís XVI laqueada e com ouropel. Através do cortinado lá atrás, via-se um amplo salão, igualmente esplêndido, embelezado por grandes buques de lírios em vasos de
alabastro e cheio de quadros belamente iluminados, diante dos quais gente elegante se movia, e misturava, consultando os seus catálogos, conversando em voz baixa.
- O senhor tem convite para o vernissage, monsieur?
Stephen devolveu o olhar do jovem maneiroso, que, por baixo do seu sorriso profissional, examinava-o com extrema cautela.
- Não. Eu ignorava que havia uma exibição. Vim para ver Monsieur Tessier.
- Qual o assunto, monsieur?lis
- Pessoal.
O sorriso, de inefável polidez, não vacilou.
- Receio que Monsieur Tessier não se encontre na casa. Contudo, se quiser tomar uma cadeira, irei verificar.
Quando Stephen sentou-se, o jovem levantou-se graciosamente e deslizou para dentro. Mas quase ao mesmo tempo uma porta lateral se abriu e três pessoas entraram na
sobreloja - uma mulher, muito elegante, de preto, carregando uma miniatura de poodle, enfitado e fantasticamente frisado; seu acompanhante, um homem idoso, entediado
e distinto, impecavelmente vestido, dos sapatos marrons ao chapéu; e Tessier, que Stephen reconheceu imediatamente, uma figura cortês, de rosto moreno, barbeado,
com o lábio inferior saliente e olhos de bistre. O marchand estava falando, sensatamente com reservada animação e movimentos comedidos das mãos.
- Asseguro-lhe que é uma perfeita gema. A mais fina que me chegou em vários anos.
- É linda - disse a dama.
- Mas o preço! - interpelou o seu companheiro um tanto soturno.
- Já lhe disse, cavalheiro. Por 100 mil, é inquestionavelmente um preço de ocasião. Mas se não o deseja para o senhor, tem somente que me dizer. Virtualmente, tenho
compromisso com outro cliente.
Houve uma pausa, um toque na manga do acompanhante, um murmúrio de conversação íntima, e então:
- Pode considerar a pintura vendida.
Uma inclinação de cabeça, não obsequiosa, mas gravemente aprovando semelhante bom gosto, foi a única resposta de Tessier. Contudo, não os levou até a porta, e quando
se voltou, parecendo meditativo, de cabeça baixa, mãos cruzadas atrás das costas, Stephen foi ao seu encontro.
- Monsieur Tessier, peço-lhe que me desculpe pela intrusão. Poderá dar-me cinco minutos apenas do seu tempo?
O negociante ergueu os olhos vivamente, perturbado nos seus pensamentos, certamente relacionados com cálculos e seu olho empapuçado, com a imediata percepção de
algo encontrado com desagrado em ocasiões anteriores, apreciou a figura maltrapilha que tinha diante de si, dos sapatos enlameados e encharcados ao embrulho malfeito
que trazia debaixo do braço.
- Não - murmurou ele. - Agora não. Como vê, estou inteiramente ocupado.
- Mas monsieur - insistiu Stephen, abalado mas com determinação. - Só lhe peço que veja o meu trabalho. Será demais um artista solicitar-lhe isso?
- Então o senhor é um artista? - O lábio de Tessier reentrou. - Felicito-o. Sabe que cada semana sou assediado, atacado e importunado por pessoas que se intitulam
génios e imaginam que eu desmaiarei num êxtase quando contemplar os seus execráveis esforços? Mas nunca tinha encontrado um com o atrevimento de me procurar aqui,
no auge da minha exibição de outono.
- Lamento perturbá-lo... mas o assunto é um tanto urgente.
- Urgente para mim... ou para o senhor?
- Para ambos. - Stephen engoliu convulsivamente. Na sua agitação, falou sem controle. - O senhor acaba de vender um Millet por uma soma considerável. Perdoe-me,
não pude deixar de ouvir. Dê-me uma oportunidade e eu lhe mostrarei um trabalho tão fino como qualquer coisa vinda de Barbizon.
Tessier relanceou os olhos para Stephen, notou a sua aparência perturbada, a dilatação dos seus olhos.
- Por favor - disse ele de maneira fatigada, abandonando o argumento.
- Mais uma vez, rogo-lhe.
Afastou-se para um lado, entrou no salão e um instante depois perdia-se de vista. Stephen, que tinha começado, com pressa nervosa, a desfazer o embrulho, ficou por
um momento muito pálido; depois, com uma expressão estranha, andou para a porta. Ao chegar à rua, o barbante, mal amarrado, desatou-se e as três telas caíram na
calçada molhada e escorregaram para a sarjeta.
Apanhou-as com cuidado, com uma ternura quase ridícula. O simples ato de abaixar-se fez-lhe a cabeça dar voltas. Mas teimosamente, com uma intensidade quase fanática,
disse a si mesmo que não seria derrotado. Havia outros negociantes de quadros em Paris, menos arrogantes, certamente mais acessíveis do que esse intolerável Tessier.
Vagarosamente, caminhou, através do tráfego, para a Rue de la Boétie.
Duas horas depois, molhado e ainda atrapalhado pelos três quadros, estava de volta à Place St. Séverin, tão exausto que mal pôde subir para o seu quarto. Na verdade,
na metade da escada sentou-se num degrau para recobrar o fôlego. Ao fazê-lo, a porta junto ao patamar abriu-se e apareceu, vestido para sair, de tamancos, camisa
sem colarinho e um sobretudo surrado, um homem de cerca de 30 anos, alto e moreno, com uma pele descorada e olhos fundos de semita. Ao descer, quase tropeçou em
Stephen, recuou e estudou-o com um sorriso amargo, peculiar.
- Não teve sorte? - exclamou.
- Não.
- Tentou com quem?
- A maioria deles... de Tessier para baixo.
- Salamon?
- Não me lembro.
- Ele não é mau. Mas nenhum deles está comprando agora.
- Tive uma oferta. Duzentos francos para falsificar um Breughel.
- E você aceitou?
- Não.
- Ah, a vida tem seus pequenos vexames. - E depois de uma pausa: - Como se chama?
- Stephen Desmonde.
- Chamo-me Amédée Modigliani. Venha tomar um drinque.
Dirigiu o caminho de volta ao patamar e abriu a porta do seu quarto. O seu apartamento era quase idêntico ao de Stephen, mas talvez mais sórdido. Num canto, ao lado
da cama por fazer, havia uma pilha suja de garrafas vazias, e no centro um cavalete com uma pintura quase terminada, um nu reclinado.
- Gosta? - Servindo dois Pernods de uma garrafa que tirara do armário, Modigliani inclinou a cabeça para a tela.
- Sim - disse Stephen após um momento.
Havia na pintura um estilo pessoal, marcado por seus esforços numa linha arabesca, algo de monumental e puro.
- bom - disse Modigliani, passando-lhe o copo - mas esse quadro porá o comissário de polícia atrás de mim. Ele já proclamou que os meus nus são escandalosos.
O absinto, fortalecendo Stephen, clareando o seu cérebro, evocou uma nota de recordação.
- Você não exibiu nos Indépendants? Le Joueur de Violoncello?
O outro fez um gesto afirmativo.
- Não era o meu melhor trabalho. Mas foi vendido. Agora eles não comprarão nada. Na verdade, se não fosse o meu talento para plongeur no Hotel Monarque, eu teria
sido gentil com os meus críticos e deixado de existir.
- Um plongeur? - Stephen não compreendia.
- Sim, gostaria de experimentar o trabalho? vou para lá agora. É um emprego fascinante. Um leve sorriso, saturnino, apareceu nas suas feições impassíveis, cor de
oliva. - E eles sempre apreciam um empregado novo.
- Tentarei qualquer coisa.
Saíram juntos e começaram a andar em direção à Etoile. O Grand Monarque, um dos famosos hotéis parisienses, era uma imensa construção palacial no estilo Terceiro
Império, ocupando um quarteirão inteiro, logo depois dos Grands Boulevards. Imponente e digno, um tanto fora de moda, com degraus de mármore, tapetes vermelhos,
as vastas salas públicas com lustres cintilantes, um bando de atendentes esvoaçando atrás das portas de metal polido, como sentinelas, para receber os embaixadores,
dignitários estrangeiros e príncipes nativos, que estavam entre os seus visitantes, dava uma sensação de opulenta magnificência. Modigliani, contudo, quando chegaram
ao pórtico central, não tentou uma entrada, mas guiou o caminho em torno de um canto escuro e por uma passagem que dava para as dependências dos fundos, flanqueada
por uma bateria de latas de lixo amassadas; um lance de escadas admitiu-os no subsolo.
Era menos um subsolo do que uma imensa adega subterrânea, com o teto úmido e pingando, atravessada por uma confusão de tubos de ferro, de paredes
escamadas, pegajosas de bolor, o chão de pedra-britada com água de despejos até os tornozelos, tudo fracamente iluminado por umas poucas lâmpadas elétricas nuas,
cheio de vapor, barulho e uma confusão babélica de vozes. Ali, numa comprida calha, uma fila de homens, arrebanhados, parecia, na ralé de Paris, estava febrilmente
lavando pratos que uma turma de ajudantes de cozinha continuava trazendo apressadamente, embraçadas, das cozinhas contíguas. Agora, pensou Stephen, após acomodar
os olhos àquela visão de pesadelo, sei o que significa um plongeur.
Entrementes, Amédée tinha se aproximado do contremaître, que, com um olhar indiferente para Stephen, entregou-lhe um disco de metal com um número estampado e marcou
o tempo a giz, diante desse mesmo número, numa ardósia que pendia do seu cubículo, ao lado de um aviso que advertia que se alguém fosse apanhado tirando porções
de alimento seria sumariamente processado.
E agora, imitando seu companheiro, Stephen tirou a sua jaqueta e, tomando lugar na fila, começou a lavar os pratos do jantar empilhados na pia. Não era trabalho
fácil, curvado sobre a calha baixa, e não havia interrupção. O odor da água espumosa nunca mudava, o mau cheiro da graxa e restos de comida era nauseante. Periodicamente,
a pasta de restos entupia o ralo e tinha que ser retirada com a mão. Era estranho, durante esse processo, ouvir um leve sopro de música polida vindo da orquestra
no pátio de palmeiras lá em cima.
Cerca das 11 horas, o ritmo diminuiu, e antes da meia-noite houve uma parada definitiva, que indicava que as damas e cavalheiros lá de cima tinham Sido alimentados.
Amédée, que durante todo o tempo não pronunciara uma única palavra, pôs o seu casaco, acendeu um cigarro e, com um movimento da cabeça, chamou Stephen para a porta,
onde o contramestre, após uma olhadela na pedra do tempo, pagou a cada um 2 francos e 50.
Lá fora, ainda em silêncio, ele caminhou de ombros caídos pelas ruas escuras e, cinco minutos depois, guiou o caminho para um bistro que ficava aberto a noite toda.
Ali, enquanto Amédée bebia vários Pernods, Stephen consumiu um pratarrão de pot-au-feu, grosso de boas verduras e pedaços de carne de carneiro. Era a sua primeira
refeição satisfatória em muitos dias, e sentiu-se melhor.
- Não quer alguma coisa? - perguntou ele.
- Isto é carne e pão para mim. - Amédée olhava com dura indiferença para o fluido esverdeado e opalescente do seu copo, que segurava com os dedos manchados de nicotina.
- Tem sido a minha dieta há muito tempo.
Sentado no café deserto, as luzes amortecidas, a mesa de bilhar lá atrás, protegida para a noite, o garçom solitário, semi-adormecido, com o seu guardanapo sobre
a cabeça, atrás do balcão, Amédée revelou alguma coisa de si mesmo em frases lacónicas.
Nascido na Itália, provinha de uma família de judeus italianos, estudara, a despeito das interrupções causadas por doenças, em Florença, e na Academia de Veneza.
Nos últimos sete anos, inspirado pelos primitivos e pela arte negra, tinha trabalhado em Paris, às vezes com o seu amigo Picasso, e ocasionalmente com Gris. Não
tinha vendido praticamente nada.
- Assim é que agora - concluiu ele, com o seu sorriso sombrio mas inquieto - me vê enfraquecido pela pobreza, pelo excesso de álcool, e pelo uso de drogas nocivas.
Sozinho, a não ser por uma moça que teve a desgraça de me conhecer. Despido de qualquer reputação. - Emborcou o resto da bebida e levantou-se. - Mas alegre pelo
fato de que jamais aviltei a minha arte.
Disse boa-noite, sem ênfase, na escada que levava aos seus aposentos.
Por breve que tivesse sido, aquele estranho encontro foi providencial para Stephen. Agora, aguentando todas as noites cinco horas de trabalho suado nos porões fumegantes
do Grand Monarque, podia sobreviver e, o que lhe parecia mais importante, continuar a trabalhar com toda a sua força na Circe.
Finalmente, cerca de três semanas depois, numa tarde seca e fria, terminava o trabalho. Lá estava ela, naquela atitude familiar de descuidada insolência, indiferente
mas aliciante, com seu rosto pálido e olhos enigmáticos, aquela moderna filha de Helios, tendo como fundo não o palácio de Aiaia, mas a rua de um bairro miserável
de Paris onde se agrupavam os seus amantes vencidos, mudados e degradados na forma de bestas, e que, domados e abatidos, olhavam para ela com um desejo servil, como
se ainda estivessem sedentos por suas carícias.
Exaurido por esse esforço final, Stephen foi incapaz de avaliar sua obra, que tomara uma forma fantástica por força de uma compulsão a que ele não pudera resistir.
Sabia apenas que nada mais podia acrescentar, e, em um espasmo de impaciência nervosa, embrulhou o quadro no mesmo papel pardo amassado que já usara antes e o levou
para o Institut des Arts Graphiques, na Place Redon. Lá, um funcionário idoso tomou o seu nome e anotou meticulosamente todos os detalhes em um livro; depois, constatando
que a tela não tinha moldura, relutou em aceitá-la.
- O senhor vê, monsieur, a especificação é de montage.
- Não notei.
- Mas é evidente. Olhe, monsieur, todas as outras peças estão corretamente montadas.
Stephen, relanceando os olhos por uma comprida galeria com dezenas de pinturas, sentiu uma súbita apatia. De uma maneira ou de outra, não se importava.
- Não posso comprar uma moldura. Aceite como está ou não aceite.
- Isso é muito irregular, monsieur. Mas, se quiser, deixe-a.
De volta ao seu sótão, sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, tomado
por uma letargia de pós-criação. E agora... que faria? Impossível continuar no Monarque - sua alma revoltava-se com essa ideia - contudo estava à beira da indigência.
Tirante as roupas que usava, o equipamento de pintura, e 15 soldos, não possuía nada de valor material. Tudo mais tinha empenhado. Levantou-se e olhou no armário.
Continha a metade de um pão, duro como pedra, e uma fatia de queijo. Lá embaixo, Amédée estava ausente há três dias, submerso numa das farras em que periodicamente
sucumbia, e da qual emergiria, entontecido, em alguma remota região da cidade. Atrás da divisão de madeira, o casal da porta ao lado tinha começado uma briga, gritando
um para o outro. Crianças brincando, discutindo, aumentavam a barulheira. Apesar da janela aberta, o quarto estava abafado pelo ar viciado da cidade, e nos lambris
rachados começava a usual procissão noturna de baratas.
Tudo isso, bastante difícil de aguentar, não era nada porém comparado com a insuportável sensação de solidão e privação que lhe torturava o peito. Não mais amortecido
pelo analgésico do trabalho, o seu desejo de que Emmy voltasse era mais forte do que antes. Ao contrário de Ulisses, nSo tinha uma erva mágica para proteger-se contra
o seu encanto. Culpava-se por não a ter convidado para ver o quadro. No dia seguinte ela tinha partido, indo para o sul com a troupe de Peroz - não a veria antes
de pelo menos seis meses, se é que tornaria a vê-la. Lembrando-se da enfatuação que Madame Cruchot tivera por ele, tremeu com a peça que o destino lhe tinha pregado
- agora era ele quem assumia o ridículo papel.
Não tinha nada em que se ocupar, nem ao menos um livro para ler; sentia-se inteiramente mole para se aventurar às ruas. Quando anoiteceu, deitou-se na cama, mas
não pôde dormir. O dia seguinte era terça-feira, e surgiu com um suave e límpido amanhecer. Ele se levantou e se vestiu. A ideia dos veículos do circo partindo naquela
tarde para o campo aberto e a ensolarada Côte d'Azur atormentava-o novamente. De repente, sem quê nem por quê, veio-lhe uma ideia. Por um momento, ficou imóvel,
parado no meio do soalho. Seria capaz disso? Ao menos poderia tentar. Apanhando o chapéu, saiu rapidamente do quarto e tomou, trémulo, a direção do Boulevard Jules Ferry.


CAPÍTULO VII

NUMA EXTENSÃO DE TERRENO COMUM, logo após os taludes de Angeres, naquela tarde de sol muito brilhante para o fim de outubro, o Circo Peroz armou
a sua cidade de lona vermelho vivo. As barracas de espetáculos secundários já estavam em ação, uma musiquinha vinha do carrossel das crianças, e os aboyers começavam
as suas exortações aos poucos espectadores presentes.
No seu stand, no fim de uma linha de barracas, vestido com uma blusa azul, boina, uma frouxa gravata preta, vestuário composto para sugerir às mentes rústicas a
altura da arte parisiense, Stephen respirava longamente o ar do campo, aromatizado com a fumaça de lenha, cascas de laranja, serragem fresca, tanino, e o cheiro
dos cavalos. A seu lado aprumava-se um cavalete enfeitado com uma tabuleta que o exaltava como Grand Maître des Academies de Londres et Paris, e prometia uma semelhança
exata, feita à mão, de perfil ou de frente, em carvão de primeira qualidade, por apenas cinco francos, em cores ricas e permanentes por sete francos e cinquenta,
cortesia e serviço iguais aos dispensados às cabeças coroadas da Europa, satisfação assegurada.
Ouviu-se o relincho de um garanhão, o agudo clangor de uma corneta e o grunhido fraco de uma leoa velha. Com a sua tosse praticamente desaparecida, Stephen experimentava
uma súbita recuperação do seu bem-estar físico. Não lamentava o impulso que o levara a Peroz três semanas antes.
- Aproxime-se, aproxime-se, cavalheiro. Vamos, senhor, convença mademoiselle a ter o seu lindo rosto pintado. Não seja modesto. Deixe um retrato para os seus netos.
Um casal de campônios, de braço dado, vestido com as suas roupas domingueiras, hesitava à sua frente, e então corando, a moça tomou coragem e aproximou-se. Não era
bonita, mas ele, em poucos e rápidos traços, esboçou a sua figura na folha que estava no cavalete, deu relevo à sua coifa de renda fina, aos bordados à mão dos seus
punhos, e, ensinado pela experiência, não esqueceu o broche de camafeu, um óbvio tesouro de família, que ela usava no corpete.
Enquanto isso, uma pequena multidão se juntava, ouvindo-se murmúrios de aprovação pelo retrato terminado, e logo ele estava trabalhando bastante. Para ele, não era
mais que um processo mecânico executado sem pensar; contudo, divertia-se em dar a alguns dos seus retratos uma individualidade irónica, detendo-se no detalhe de
uma feição particular, um olho bovino, uma orelha grande, um nariz bulboso, como acontecia às vezes nas noites de sábado, quando um cliente era ofensivo, desenhando
com malícia uma caricatura que, as mais das vezes, provocava o riso dos outros.
Às seis horas, a multidão diminuía, como sempre, antes da função principal do circo, e apanhando a sua tabuleta e tirando a blusa e gravata, Stephen entrava por
um labirinto de cordas e lonas para um pequeno recinto atrás da barraca contígua. Ali, acocorado diante de um vivo braseiro, um homenzinho enrugado, de perneiras
gretadas e culotes sujos de veludo cotelê, estava cozinhando o jantar. De pernas tortas, cabelo cortado rente, tinha feições nítidas,
castigadas pelo tempo, exceto o nariz, que era chato e quebrado. Seus olhos eram miúdos como contas, parados, e o fulgor do braseiro lhes dava calor.
- Que temos esta noite, Jo-jo?
- O de sempre. - Jo-jo olhou para cima. - Mas também um pouco de salsicha de carne de porco fresca, de Angers, que achei na Tur Toussaint. É uma das duas especialidades
desta cidade.
- E a outra?
- Cointreau, naturalmente, mon brave. É feito aqui.
As salsichas, respingando numa frigideira, pareciam cheias de promessas. promissoras. Jo-jo, que na sua mocidade tinha sido jóquei, depois vendedor de barbadas,
depois cavalariço, e depois bookmaker, e que finalmente tinha sido aconselhado a sair de Longchamps, era um cavador perito. Conhecia todas as tramóias da França.
Ninguém gostava mais de regatear no mercado ou de pegar uma galinha extraviada de uma granja à beira da estrada.
- Gostei destas duas noites aqui. - Stephen deu lugar no braseiro para o coador de folha do café. - Amanhã estamos de folga até as três. Pretendo dar uma olhada
no rio.
- O Loire é um bom rio - disse Jo-jo com um ar de quem sabe das coisas. - Fundo bom de areia, com muito peixe bom. Vou deixar umas iscas de noite e ver se temos
sorte. De fato, todo o país é bom para nós - Tours, Bolis, e especialmente Nevers. O vinho é um tanto fraco, mas a bóia é de primeira, e as mulheres... essas putas
da Touraine, grandes atrás e na frente... - Assobiou e revirou os olhos.
Enquanto ele falava, a aba da barraca se abriu e entrou um homem de aspecto estranho, com calças de xadrez e suéter caqui de gola rulê. Era alto e franzino, tão
dolorosamente magro que parecia um esqueleto, e o rosto e mãos - únicas partes visíveis do seu corpo - estavam cobertos por uma espessa crosta de escamas cor de
cobre. Era Jean-Baptiste, que participava de um dos mais pobres caminhões com Stephen e Jo-jo. Manso, taciturno e melancólico, era um caso extremo de psoríase crónica,
uma doença da pele, indolor mas incurável, sendo exibido aos curiosos como o Crocodilo Humano, produto da união de um sáurio feroz e de uma nadadora do Rio Amazonas,
com o que ganhava uma modesta subsistência.
- Teve uma tarde boa, Croc? - perguntou Stephen.
- Não muito - respondeu Baptiste sombriamente. - Nem um íntimo.
Essa era a parte mais proveitosa da técnica de Croc em descobrir-se lentamente, das extremidades para baixo; quando chegava ao umbigo, fazia uma pausa e, deixando
seus olhos correrem pela plateia, exclamava dramaticamente, com uma espécie de sedução macabra:
- Para revelações mais íntimas, estou à disposição na tenda dos fundos. Ingresso especial para essas revelações privadas, apenas cinco francos.
Quando a comida ficou pronta, sentaram-se em volta do braseiro - uma grande caneca de sopa fumegante, seguida pelas salsichas, duras mas suculentas, temperadas com
ervas do campo, um molho com pedaços de pão fresco cortados com uma faca dobradiça. Somente depois que se juntara à troupe, Stephen aprendeu a saborear os aumentos
comidos ao ar livre. Depois houve café, quente, forte e arenoso, servido na caneca de sopa. Então Jo-jo enrolou um cigarro e, com o ar de um mágico, tirou do bolso
dos quadris uma garrafa do límpido licor da região.
- Que tal um gole de vinho do altar, Abbé?
O apelido tinha seguido Stephen de Paris - ele não se importava. Passaram a garrafa de mão em mão, bebendo o claro e ardente licor sem copos. Jo-jo enrolava-o na
língua.
- Você pode confiar nele. Feito com as melhores laranjas de Valença.
- Uma vez me aconselharam a nunca comer frutas. Outra vez me disseram que não comesse outra coisa - disse Baptiste, que gostava de falar no assunto da sua doença.
- Ao todo consultei 19 médicos. Cada um deles mais tolo do que o outro.
- Então tome outra dose do meu remédio.
- Ah, isto é que é remédio para mim!
- Você não pode se queixar, Croc. Não tem uma existência rica e interessante? Você experimenta as delícias de viajar. Em suma, você é famoso.
- É fora de dúvida que muitas pessoas têm viajado 50 quilómetros para
me ver.
- E não tem um grande sucesso com as damas?
- Tenho mesmo. Exerço um certo fascínio sobre elas.
Diante desta séria admissão, Jo-jo soltou uma risada. Depois, apagando o cigarro, levantou-se para ver os cavalos.
Era a vez de Stephen lavar as panelas. Quando terminou, ao lusco-fusco, as luzes produzidas pelo gerador brilhavam como vaga-lumes sobre a feira. Olhando, sentia
todos os seus sentidos despertados. Não tinha visto Emmy todo o dia. Mas ela não gostava de ser perturbada antes do espetáculo, e o povo já convergia para a grande
tenda. Guardou o cavalete e o resto da tralha numa caixa, debaixo do seu beliche no caminhão, vestiu as suas roupas comuns e caminhava para a entrada dos fundos
do picadeiro. De acordo com o seu contrato, era seu dever acompanhar os membros de terra da companhia, que indicavam aos espectadores os seus lugares, vendiam programas,
sorvetes, citronade, e aquela marca de nugá feita especialmente em Paris para o Circo Peroz.
Parecia a Stephen uma excelente "casa" - o circo tinha uma reputação merecidamente popular através das províncias, e, com bom tempo, a mercadoria dos stands era
em geral totalmente vendida. Esta noite, fila após fila de rostos expectantes e rosados se ergueram da serragem do picadeiro. Subitamente,
na sua alta plataforma, vestido de vermelho e dourado, quando a charanga atacava uma grande marcha, o mestre do picadeiro, o próprio Peroz, apareceu de cartola,
alamares brancos e capa escarlate, dirigindo um cortejo de póneis que entraram na arena a meio-galope, atirando as crinas para os lados, e o espetáculo começou.
Embora, a esse tempo, conhecesse os números de cor, acocorado junto à grade do corredor da entrada dos artistas, com um bloco de esboços no joelho, Stephen acompanhava
cada fase, cada movimento do espetáculo com absorvido interesse, notando, vezes e mais vezes, os ritmos da coordenação muscular, o jogo de luzes e tons das cores
no vasto caleidoscópio cintilante, e mesmo as reações individuais, às vezes cómicas e bizarras, das pessoas da plateia.
Era fascinante, aquele novo mundo que ele havia descoberto, com os seus soberbos cavalos de alta escola, montanhosos elefantes e sinuosos leões de olhos amarelos,
seus acrobatas às cambalhotas, jograis prestidigitadores, funâmbulos da corda bamba sob os seus pára-sóis de papel. Observando, Stephen pensava na famosa peça de
circo de Manet, Lola no Arame, e na sua atual disposição melhorada sentia que podia desenhar aquele campo com igual riqueza. Desenho, sem dúvida, haveria, mas acima
de tudo a cor seria o instrumento da sua expressão. Via na sua paleta as cores puras, os ultramarinos, ocres e vermelhões, via como podia humanizá-lo sem reduzir
a sua intensidade. Criaria um novo mundo, um mundo que só ele percebia, um mundo somente para ele. Curvado no seu canto, desenhava e desenhava. Este era o seu verdadeiro
trabalho; os retratos que pintava de dia não eram mais que um meio de vida, e na pasta em sua caixa fechada já tinha dezenas de estudos que usaria numa formidável
composição.
Após o intervalo, davam entrada os artistas mais importantes - a troupe Dorando, de trapezistas; Chico, o engolidor de espadas; Max e Montz, os palhaços famosos.
A seguir, um soalho de madeira era rapidamente montado no centro do picadeiro e ouvia-se a fanfarra que conhecia tão bem, e que sempre fazia o seu coração bater.
Então, embaixo, via Emmy pedalando, usando uma blusa de cetim branco, calções brancos e compridas botas brancas. Ao chegar ao assoalhado, começava a executar, à
luz da bicicleta niquelada, uma série de evoluções que deixavam o espectador tonto, circulando e recuando e avançando, sempre no pequeno espaço, mudando de posição,
até que dirigia de cabeça para baixo segura no guidom, finalmente desmontando em movimento e fazendo complexas configurações numa roda só.
Talvez essas manobras fossem menos difíceis do que pareciam, mas o culto da bicicleta, uma paixão nacional que anualmente chegava ao auge nas agitadas semanas devotadas
ao Tour de France, tornava-a popular junto ao público. Uma tempestade de aplausos reboava embaixo da grande cúpula, seguida por um silêncio enquanto Emmy caminhava
para uma curiosa estrutura na
extremidade do picadeiro. Era um elevado escorregador, uma estreita fita de metal pintada de vermelho, branco e azul, que descia que descia quase verticalmente do
teto da tenda e terminava numa curva que subia bruscamente.
Alterando o seu ritmo, a banda exagerava a expectativa, enquanto Emmy, subindo lentamente por uma escada de corda, alcançava a minúscula plataforma do topo. Lá,
entrevista nas últimas espirais de fumaça, ela desenganchava uma bicicleta mais pesada das travas que a sustinham e segurava-a, testava o quadro, espichava os membros,
passava giz nas mãos, montava na máquina sobre a plataforma e, por um longo momento, parecia estar suspensa, quase flutuando na névoa de vapor. Os metais, que tinham
gradativamente diminuído para um profético murmúrio, vinham agora novamente à vida, apoiados por um estaccato de tambores que rufavam e reverberavam cada vez mais
alto. Era o instante que fazia Stephen desejar fechar os olhos. Jo-jo lhe dissera que, havendo perícia e coragem, o perigo era limitado; a estria branca do centro,
na qual as rodas deviam andar precisamente, tinha menos de 15 centímetros de largura, e depois da chuva, ou quando a umidade era grande, a superfície escorregadia,
apesar de enxugada, era traiçoeira. Contudo, não havia tempo para pensar - numa tempestade final de som, Emmy soltou-se, caiu parecendo uma pluma, projetou-se para
cima na curva e pousou na plataforma de madeira com uma velocidade que a carregava para fora da tenda como um raio.
No meio dos aplausos, embora não pudesse sair, Stephen escapou e rodeou para a barraca onde os artistas se vestiam. Teve que esperar 15 minutos até que ela saísse,
e imediatamente sentiu que ela não estava de humor muito amável.
- Então? - perguntou ela.
- Você esteve ótima... notável - afirmou ele.
- A pista estava molhada - um orvalho pesado - e esses fripons preguiçosos não enxugaram nem a metade. Então não sabem que é suicídio deslizar numa pista úmida?
Eu quase não desci. - Em várias ocasiões, por causa disso, tinha cancelado o número - de fato, tinha um acordo com Peroz que lhe permitia tomar essa resolução. Mas
a queixa deixou-lhe a voz. - Mas esta noite eu queria mesmo.
- Por quê?
Ela não pareceu ouvi-lo. Então, indiferente, respondeu:
- Por causa daqueles militares.
- Soldados?
- Não, estúpido, oficiais, naturalmente. Havia aqui uma escola de cadetes do primeiro ano. Não viu o grupo na frente da tribune?
- Acho que não.
- Uma turma elegante, isso era, nas suas túnicas. Eu gosto de uniforme.
E eles estavam querendo que eu os visse. Não que eu notasse, naturalmente. - A sua expressão amuada afastou-se um pouco. - Eu fiz um extra para eles.
Ele mordeu o lábio, procurando abafar o ciúme que ela tinha tanta capacidade de despertar nele. Após o calor sufocante da tenda, o ar era leve e fresco.
- Vamos caminhar até os muros da cidade... lá é muito bonito.
- Não. Não estou com disposição.
- Mas está uma noite tão linda. Olhe, a lua acaba de sair.
- E eu vou entrar.
- Não vi você o dia todo.
Nenhum músculo do seu rosto Se moveu.
- Já me viu agora.
- Apenas um momento. Venha.
- Já não lhe disse que fico cansada depois do meu número? A tensão é muito violenta. Pra você, tudo muito bem, vendendo programas e nugá lá embaixo.
Ele viu que era inútil insistir mais. Escondeu estoicamente o seu desapontamento. Chegaram ao caminhão que ela partilhava com Madame Armande, a mulher que cuidava
do vestuário da troupe. Ele tinha pensado nela o dia inteiro, sentia-se faminto por sua companhia, por um sinal da sua afeição. E ela estava ali, a sua figura ao
luar, rija, sedutora; queria agarrá-la e beijar à força o seu rosto pálido e indiferente, a sua boca ligeiramente entreaberta. Mas não fez nada disso, limitando-Se
a dizer:
- Não se esqueça de amanhã. Venho buscá-la às 10.
Viu-a subir as escadas a correr e desaparecer no caminhão.
Ao voltar, a função tinha terminado e a multidão se despejava pela saída da grande tenda, falando, gesticulando, rindo. Todos pareciam felizes, satisfeitos com a
vida e consigo próprios, ao voltarem aos seus lugares comuns e confortáveis. Stephen perdeu aquela sua primeira disposição alegre. Inquieto e perturbado, não podia
voltar ao seu canto, enfrentar as caçoadas de Jo-jo e os roncos de Baptiste. Saiu para as muralhas sozinho.


CAPÍTULO VIII

NA MANHÃ SEGUINTE, trazida por uma alvorada mansa e cinzenta, ela o surpreendeu e alegrou por sua pontualidade. Estava quase pronta quando ele chegou,
e pouco depois estavam nos seus vélos, rumando para o Loire, no belo contorno de Angeres, com as suas muralhas romanas, a Catedral de St. Maurice com suas agulhas
e as arcarias da préfecture atrás deles. Como sempre, ela imprimia um ritmo muito veloz, curvada sobre o guidom, as pernas movimentando-se como pistons, com o firme
propósito de deixá-lo para trás. A bicicleta dele, comprada barato com o seu primeiro pagamento semanal, era um modelo antigo; contudo, o ar fresco e a comida do
campo tinham-no robustecido. Embora lhe custasse um esforço contínuo ladeira acima, mantinha o seu lugar pouco atrás do ombro dela.
Atravessaram, dali a pouco, um arvoredo à esquerda e imediatamente se descortinou todo o esplendor do vale - o rio grande e largo brilhando na luz plácida, movendo-se
preguiçoso entre as ribanceiras e sobre baixios de areia dourada, passando por altos tufos de vimeiros, barcos de fundo chato atracados e ilhotas verdes. Na estrada
serpenteante, pesada pela areia, diminuíram a velocidade. Por trás de uma cortina de faias, Stephen avistou as torres pontudas e a fachada musguenta de um antigo
castelo. A beleza da região era inebriante para o seu espírito. Soerguido, olhou para a sua companheira, fez como se fosse falar, mas, depois, sabiamente, absteve-se.
Por volta do meio-dia, chegaram a um staminet à beira do rio, onde, acima da porta, um peixe monstruoso, enredado em algas, nadava numa caixa de vidro. Primeiro,
Stephen tinha proposto um piquenique, mas isso tinha pouca atração para Emmy, que sempre preferia parar em algum café provavelmente freqüentado pela confraria esportiva,
onde, numa atmosfera de camaradagem, havia livre companheirismo, vivas conversas em gíria e a música de um acordeom. A estalagem, todavia, embora possuísse um considerável
encanto, estava vazia de clientes - um fato que não desagradou Stephen, que sofria com a admiração demasiado franca que a sua companheira gostava de provocar. Atravessaram
o soalho de pedra limpo com areia, sentaram-se à mesa esfregada com escova e sabão junto a uma janela, da qual pendia um banco, e, após consultarem a proprietária,
escolheram um prato de peixe local que ela recomendara muito. Este chegou pouco depois, numa enorme travessa de madeira, um fritto de minúsculas espadilhas do Loire,
cada uma não maior do que um filhote de arenque, cozidas tão secas que se quebravam ao toque do garfo. Com eles vieram pommes frites e uma jarra de Bière Navarin,
preferida por Emmy.
- Isto é bom - disse Stephen, olhando por cima da mesa.
- Não é mau.
- Gostaria de pedir uma garrafa de vinho para mim - disse ele em tom de pedido.
- Eu gosto desta cerveja. Faz-me lembrar de Paris.
- Num dia como este?
- Em qualquer dia Paris me basta.
- Ainda assim... você não se importa de estar aqui não é?
- Podia ser pior.
Emmy não era afeita a superlativos, mas neste momento estava de excelente humor, e dali a pouco pôs-se a rir.
- Você não adivinha o que eu recebi esta manhã. Flores. Rosas. E um billet-doux de um dos oficiais.
- Ah, sim? - A sua expressão tornou-se ligeiramente rígida.
- Aqui está. Monograma gravado e tudo. Com outra risada, apalpou o bolso e tirou um bilhete cor-de-rosa amarrotado. - Dê uma olhada.
Ele não tinha vontade de ler o bilhete, mas também não queria ofendê-la. Passou rapidamente os olhos, notando o duplo sentido das frases polidas que a convidavam
a ir tomar um aperitivo na Terrasse e depois jantar no Le Vert d'Eau. Devolveu-o sem comentário.
- Ele é capitão, parece. Acho que o vi no grupo de ontem à noite. Alto e bonito, de bigode.
- Você vai? - perguntou ele, mascarando os seus sentimentos com um tom inexpressivo.
A fria ironia da sua maneira atravessou a sua auto-estima. Ela raramente corava, agora uma leve cor apareceu por baixo da sua pele branco-azulada.
- Quem é que você pensa que eu sou? Conheço essas guarnições da cidade e o que se pode arranjar com elas. Pra mim não, obrigada.
Stephen ficou silencioso. Embora se desprezasse por isso, e em vão tentasse combatê-lo, de tempos em tempos o ciúme lhe vinha num impulso dominador. A simples ideia
de que ela pudesse sair sozinha com aquele oficial desconhecido causava-lhe um sofrimento penoso. Contudo, ela declarara categoricamente que iria ignorar o convite;
assim, obrigando-se a ser razoável, forçou um sorriso conciliatório.
- Vamos descer até o rio. - Quando brigavam, era sempre ele quem procurava fazer as pazes.
Pagou a conta, e desceram à beira da água. O sol, geralmente quente para aquela época do ano, tinha esmaecido e, lançando reflexos da água que faziam fechar os olhos,
envolveu-os num banho de luz. Ele amava o sol - sol e água eram os deuses gémeos que poderia adorar. E enquanto ela acendia um Caporal e, com os olhos fechados,
relaxava numa postura cómoda na sombra de um salgueiro, ele sentou-se na claridade aberta e começou a desenhá-la. Já tinha feito dezenas de desenhos, nos quais se
refletia não apenas a intensidade do seu sentimento por ela, mas também a complexa interação de angústia, desejo e, por vezes, quase ódio que o compunha.
Não estava cego àquela forma de egoísmo, crueldade e vaidade, que em outra pessoa teria provocado o seu desprezo. Sabia que ela apenas o tolerava
- talvez porque a sua mentalidade gaulesa se detivesse nas possibilidades da grande proprieté, mas principalmente, e disso tinha certeza, porque o seu evidente desejo
a lisonjeava, dava-lhe uma sensação de poder apreciada por sua natureza. Ela lhe trazia mais sofrimento que felicidade. Contudo, nada podia fazer. Desejava-a com
uma necessidade física que, não sendo por ela satisfeita, aumentava de dia para dia.
Dali a pouco, erguendo os olhos do bloco, viu que ela estava dormindo. Deixou escapar, involuntariamente, um suspiro nervoso e irritante. Soltando o seu bloco e
creions, aproximou-se mais da margem, e então, num impulso, tirou a roupa e mergulhou no rio. Sabia, pelas excursões anteriores, que ela não gostava daquilo - tinha
uma aversão felina pela água fria - mas para ele o choque daquelas águas vindas de fontes era uma revigorante delícia.
Quando voltou, ela estava em pé, sacudindo o capim do cabelo cheio e curto.
- Você sabe deixar os outros sozinhos.
- Pensei que estivesse dormindo.
- Que horas são?
- Ainda é cedo - disse ele, aproximando-se e enlaçando-a pela cintura.
- Ainda temos mais uma hora.
- Oh, deixe-me! - Inclinou-se para trás e empurrou-lhe o peito com as mãos. - Você está molhado.
- Mas Emmy...
- Não, não. Não devemos chegar atrasados. Você não vai querer perder o seu emprego. É tão agradável e conveniente para você, não é?
- Sim, claro - respondeu ele com voz tensa. Ela já estava voltando para a estalagem e Stephen a acompanhou.
Aquele raro interesse pelo seu bem-estar intrigava-o. E não se dissipou pela sua disposição animada, quando voltavam a Augers. Em voz alta, ela ia cantando trechos
da última canção do teatro de variedades:
Les jolis soirs dans les jardins de l'Alhambra Ou donc sont les belles?
Que l'amour appelle?...
Et le rendez-vous, de l'amour très fou.
E seguindo seu hábito quando estava alegre, deixava os habitantes locais de boca aberta, com uma exibição de ciclismo difícil ao passarem rapidamente pelas aldeias
ribeiras.
Ainda não eram três horas quando chegaram ao circo, e poucas pessoas estavam diante dele. Stephen trocou de roupa e armou o seu cavalete. Trabalhou toda a tarde,
de um modo ausente, sorumbático, com as linhas da testa
cada vez mais fundas. Embora lutasse contra a ideia de que ela abreviara a excursão a fim de ir ao encontro na Terrasse, essa ideia só fazia aumentar. O crepúsculo
não lhe trouxe nenhum alívio, e durante o jantar mal trocou uma palavra com Jo-jo e Croc.
Por fim, levantou-se bruscamente e foi para o outro lado do campo, onde estava o caminhão de Emmy. Madame Armande estava sentada nos degraus, com um balde entre
os joelhos gordos, lavando meias. Em certa época, ela fizera parte de um número de trapézio, mas quebrara o quadril numa queda e desde então caminhava coxeando.
Agora, aos 50 anos, pesada e sem formas, de pernas hidrópicas e papada, era conhecida como a mexeriqueira da companhia Jo-jo, que cuspia ao ouvir o nome dela, dizia
que durante o recesso de inverno ela gerenciava um estabelecimento de reputação duvidosa no porto do Havre.
- Boa noite - disse Stephen, tentando manter a voz calma. - Emmy está?
Madame Armande mediu-o de esguelha com os seus olhos miudinhos.
- Mas Abbé, você sabe muito bem que ela não vê ninguém antes do espetáculo.
- É só um instante.
Ela abanou a cabeça encaixada num lenço estampado com bolinhas.
- Eu não me atrevo a perturbá-la.
- Então... - Hesitou, ansioso por acreditar nela. - Está descansando?
- A mulher levantou os braços.
- E que mais? Nom de Dieu, acha que sou mentirosa?
A sua indignação era real ou fingida? Ele queria entrar no caminhão, mas a mulher e o balde bloqueavam a entrada. Não devia tornar-se completamente ridículo. Forçou-se
a fazer algumas observações convencionais, e voltou para a escuridão.
O povo chegava aos bandos, a função começava, risadas estrepitosas e aplausos enchiam a grande tenda. Ela estava atrasada. Seria por simples coincidência? Não podia
ter certeza. Procurou tranquilizar-se. Quando ela finalmente apareceu, a impressão, conforme sua fantasia superexcitada, foi de que estava mais aparatosa, mais espetacularmente
viva do que o usual. Gritos prolongados de "bravo!" vinham da tribune quando ela deixou o picadeiro.
Depois disso, na confusão de arrancar as estacas, não pôde vê-la. Melancolicamente, juntou-se a Jo-jo e Croc na tarefa de desmontar os stands. Trabalhando sem atenção,
cortou a mão num gancho de ferro. Não se importou. Um vento frio começava a fustigar o campo. O gerador foi desligado, as luzes elétricas se apagaram. Em toda a
volta, à luz de fogachos vermelhos, entre gritos e imprecações, homens trabalhavam como demónios, desencravando pontaletes, puxando cordas, lutando com grandes abas
de lona. Como sempre
acontecia na primeira hora de movimentação, os animais estavam nervosos, soltando em todos os tons, nas suas jaulas móveis, sinistros uivos de protesto. Os engenhos
de tração, pulsando e roncando, com os volantes girando, aumentavam o tumulto. Para Stephen, parecia que a cena vinha diretamente das gravuras do Inferno de Doré,
e que ele também estava sofrendo as torturas das almas danadas.


CAPÍTULO IX

DE ANGERS, O Circo PEROZ deslocou-se para Tours, depois para Blois, e então para Bourges e Nevers. O tempo se mantinha bom, o negócio prosperava, o velho Peroz usava
o seu chapéu num ângulo elegante. Após uma estada de três dias em Dijon, viraram para o sul e chegaram a Côte d'Or, detendo-se uma noite nas velhas cidades muradas,
com portões de acesso estendidas entre vinhedos, ao longo do vale do Ouche.
A princípio, Stephen era olhado com reserva pela companhia. Mas como a "retirada" semanal dos seus retratos era satisfatória, e uma percentagem fixa dessa soma ia
para o tronc, do qual todos os artistas participavam quando era distribuído em Nice, ele começou a ganhar importância. Além disso, as suas maneiras agradáveis e
disposição tranquila logo o puseram em termos amistosos com a maioria da troupe.
Formavam um painel humano. Fernand, o domador de leões que passeava destemido na jaula circular de ferro das feras, como um hussardo no seu uniforme azul e prateado,
com uma manga dramaticamente rasgada em pedaços, era o mais tímido dos homens, sofrendo agudamente de dispepsia nervosa e sendo mimado com uma dieta de leite por
sua devotada esposa. Os próprios leões eram inofensivos como vacas, na maior parte muito velhos, os machos castrados rugiam somente porque queriam o seu jantar,
e todo o aparato de cercar a jaula de auxiliares com ferros em brasa era pura encenação.
"Não tivemos um acidente em 20 anos", observava complacentemente Peroz no boletim que antecipava ao jornal local da próxima cidade do circuito.
ESCAPOU POR UM TRIZ NO CIRCO PEROZ
LEOA ATACADA DE LOUCURA
Fernand gravemente machucado
Max e Montz, ambos anões, eram os dois palhaços principais, um par internacionalmente famoso, cujo número maior era chamado "O Rapto", um esquete no qual Max, ataviado
em rendas grotescamente fora de moda, desempenhava o papel de noiva velhota. A rotina, executada num antigo automóvel Panhard que enguiçava e se recusava a funcionar,
caindo finalmente aos pedaços, era ruidosamente cómica. Max, com o seu beicinho de criança, fazia a platéia morrer de rir. Contudo, fora do picadeiro mostrava uma
melancolia mais profunda que a de Hamlet, tendo confiado a Stephen que a paixão de toda a sua vida era o violino.
Com tais incoerências diante de si, Stephen ficou menos surpreso ao descobrir que o equilibrista japonês era um adepto da Ciência Cristã, que Nina D'Amora, que cavalgava
em pêlo, era alérgica a cavalos e em consequência sofria cronicamente de asma, ao passo que Philippe, que todas as noites corria riscos espetaculares no trapézio
alto, passava a maior parte do seu tempo de folga tricotando meias.
Por formar um grupo com Jo-jo e Croc, Stephen via-os mais do que aos outros. Jean Baptiste, por baixo da sua aparente apatia, era um homem sensível e inteligente
- Stephen fez dele vários esboços notáveis, em pé na sua plataforma, diante da multidão boquiaberta. Fora bem educado no lycée de Rouen, e chegara a assumir uma
posição com boas perspectivas numa excelente firma, La Nationale. Então lhe viera aquela afecção incurável, transformando-o gradualmente de um ser normal em um monstro
medonho - um irremediável desenvolvimento - e levando-o ao desespero final de um show secundário no Circo Peroz.
Mas era a Jo-jo que Stephen dispensava uma particular atenção. O ex-jóquei era um rematado patife que roubava em qualquer oportunidade, trapaceava pelo interior
e embebedava-se até cair e ficar no chão estuporado, "curando" a bebedeira. Contudo, na sua duplicidade havia uma qualidade curiosamente humana de que se gabava:
jamais em sua vida ter deixado um amigo sem ajuda. Às vezes, de noite, depois de ter visto Emmy, quando vinha ao camion adaptado onde ele e os outros dois moravam,
Stephen surpreendia Jo-jo com o olhar peculiarmente fixo nele - menos por simpatia, uma emoção que Jo-jo era incapaz de sentir, do que por uma espécie de cínica
compreensão, levemente tingida de escárnio.
- Saiu com a sua garota?
- Parece, não?
- Divertiram-se?
Stephen não respondia.
Em várias ocasiões, o ex-jóquei parecia querer tratar do assunto, mas em vez disso encolhia os ombros e voltava-se para Jean Baptiste, iniciando com ele uma discussão
que tornava intencionalmente grosseira, como agora:
- Qual é a sua opinião sobre as mulheres, Croc?
- Considero-as com tolerante desprezo.
- Você fala como um marido.
- Sim... já fui casado. Minha esposa agora opera a passage à niveau em Croiset, no Chemin de Fer du Nord. A minha mais cara esperança é que um dia o expresso de
Paris, correndo 90 quilómetros por hora, atinja-a numa parte vulnerável.
- De minha parte, apesar de nunca ter me casado, gosto de mulheres. Mas só para dormir com elas. Para o resto, são piores que uma gonorréia.
- Mas a gente consegue isso dormindo com elas.
- Não com as minhas mulheres. Nunca escolho putas. Somente boas e honestas esposas camponesas que encontro no mercado e estão à procura de alguma ligeira variedade.
- Ah, variedade! Essa é a verdadeira palavra - à qual devo muito do meu último sucesso.
- Você, escamado?!
- Mas certamente. Tenho feito muitas conquistas com meus íntimos através da curiosidade. Mulheres entediadas com o leito matrimonial fazem qualquer coisa por uma
novidade. Li uma vez que um assassino condenado à guilhotina pode escolher dezenas de mulheres.
- Sacré bleu! Embora mereça, você não vai perder essa cabeça feia.
- Não. Mas exerço a mesma atração. Refletindo sobre a força da cauda do crocodilo, as mulheres acreditam que sou dotado de um formidável poder fálico.
- Mas você as decepciona, farceur.
- Isso só aconteceu uma vez, Jo-jo. Era uma gorda, solteirona, sem ligações, que durante meses me seguia na esperança de que os nossos repetidos enlaces produzissem
um jacaré. Infelizmente a criança nasceu normal.
Uma gargalhada profana encheu o caminhão, mas Stephen não participou dela. Sabia que o diálogo era dirigido a ele, não por qualquer intenção maldosa, mas como um
remédio administrado à vítima de uma febre renitente. Contudo, a sua doença já progredira tanto, que parecia incurável, intensificada pelos humores e incoerências
de Emmy. Às vezes ela o tratava bem, sentava-se nos degraus do caminhão, lisonjeada por suas atenções, cheia de sua própria importância, balançando os pés nus ao
sol. E conquanto não fosse pródiga com os seus favores, vez por outra, quando passeavam juntos no escuro, deixava que ele a beijasse antes de se afastar rapidamente.
Em vão ele dizia consigo mesmo que, numa natureza tão carente de profundidade, jamais despertaria uma paixão correspondente. Voltejava em torno dela como um marimbondo
em torno de uma nectarina, mas sem penetrar uma única vez na carne macia do fruto.
Numa tarde chuvosa, quando tinham deixado o agradável distrito do Saône pelo território estéril do Pays de Dombres, foram até uma pequena e dispersa comunidade de
Moulin-les-Drages. O seu destino inicial era St. Etienne, mas o trator principal quebrou na estrada, detendo uma longa fila de carros rebocados, e uma vez que o
conserto demoraria pelo menos 24 horas, era forçoso fazer um alto. Peroz, muito aborrecido por perder uma data importante, resolveu, após considerável debate, oferecer
um espetáculo em Les Drages e assim diminuir um pouco o seu prejuízo.
Mas tendo começado com má sorte, o dia continuou de mal a pior. Cartazes não tinham sido previamente afixados; a cidade, investigada, mostrou ser mesquinha e pobre,
sendo a única indústria uma olaria decadente. E a chuva aumentava continuamente. Quando chegou a noite, não havia mais de 100 pessoas na tenda gotejante.
Honrando a tradição Peroz, a maior parte dos artistas apresentou os seus números em bom estilo, voltando depois para a grande estufa da sala de estar. Emmy, contudo,
foi menos afortunada. Duas vezes, durante as suas evoluções preliminares, as rodas derraparam e ela foi atirada no chão molhado. Como resultado, cortou a parte principal
do seu número e saiu do picadeiro pedalando com a cabeça no ar. A primeira queda provocara risadas na plateia aborrecida; a segunda, uma positiva zombaria, seguida
de uma vaia com miados de gato.
Quando Stephen a viu depois, fora da tenda, ela ainda estava pálida com o vexame. Ele sabia que não devia falar, e por isso saiu com ela pela estrada em direção
ao acampamento, cerca de um quilómetro e meio distante, onde os carros estavam estacionados. Para piorar as coisas, não tinham andado muito quando desabou um forte
aguaceiro, forçando-os a se abrigar num celeiro ao lado de um campo aberto de restolho.
Quando seus olhos se habituaram à escuridão, Stephen olhou em torno, observando que o lugar estava cheio de palha. Rompeu o silêncio.
- Aqui pelo menos está seco. - E acrescentou: - Estou contente porque não apresentou hoje a parte final. Aquela gente não merecia.
- Que quer dizer?
- Bem... - Corou ligeiramente. - Eram gente um tanto antipática.
- Não notei. Eu sempre domino a minha plateia.
- Então por que não desceu?
- Porque a pista estava ensopada. Você não entende que na chuva isso é suicídio? - Num ataque de mau humor, seus olhos cintilaram para ele. Quem é você para ficar
aí me criticando? Sabe lá os riscos que eu corro todas as noites, enquanto você fica sentado lá atrás, rabiscando numa folha de papel, com menos coragem do que um
piolho? Eu desço ou não desço exatamente quando resolvo. E não vou quebrar o pescoço por nenhum padrezinho.
Ele a encarou por um momento, agora tão pálido quanto ela; depois, furioso, agarrou-a subitamente pela cintura.
- Não me fale assim!
- Largue-me.
- Só se me pedir desculpa.
- Fiche-toi le camp.
No próximo instante estavam lutando. Cego de raiva, recordando todos os insultos e desfeitas que ela acumulara nele, resolvido a vencê-la fisicamente, fechando ambos
os braços em torno dela como um lutador, tentou levá-la ao chão. Mas ela lutava como um gato selvagem, torcendo-se e revolvendo-se na palha fofa, malhando-o com
os cotovelos. Ela era mais forte do que ele julgava, com músculos curtos e poderosos de felina agilidade. Começou a respirar pesadamente, sentindo a pressão do seu
corpo contra ele. Retesando cada músculo, ele resistia. Rolaram por aqui e ali, sem decisão, até que ela, encolhendo a perna por trás dele, atirou-o longe com uma
rápida distensão.
- Está vendo? - disse ela. - Que isso lhe sirva de lição.
Ele se levantou devagar. Estava menos escuro do que antes; através da
clarabóia do celeiro, a lua era visível correndo entre as nuvens. Com um esforço, ainda tentando recuperar o fôlego, forçou-se a olhar para ela e viu, com confusa
surpresa, que ela não havia levantado; estava deitada de costas sobre a palha, com o vestido ainda desarranjado pela luta, observando-o através dos olhos apertados
com uma curiosa expressão especulativa, excitada, mas, ainda vagamente zombeteira. No seu rosto, geralmente de uma palidez fria, havia uma orla de cor, nos seus
lábios pálidos um sorriso ligeiramente mau. Por um momento, sustentou o olhar dele; depois, colocando ambos os braços embaixo da cabeça, numa atitude menos de sedução
que de expectativa, fez um movimento impaciente.
- Então, estúpido... que está esperando?
O convite que ele tanto havia procurado era inconfundível, contudo tão descarado, tão despido da menor semelhança de afeição, que ele não podia se mover. Petrificado
e repelido, mirava-a, e, girando, saiu do celeiro sem uma palavra.
- Molenga! - gritou-lhe ela. - Espèce de crétin.
Ele caminhou talvez uns 30 metros antes que o desejo lhe surgisse novamente, mais desesperado do que antes. Pouco se importava, queria-a, e haveria de possuí-la
de qualquer maneira. Virou-se e voltou.
- Emmy... - Estava fraco, encolhido de desejo por ela. Mas agora ela estava fria e dura como uma pedra.
- Vá para o inferno - disse ela outra vez zangada. - Agora espere outra oportunidade.
A expressão dos seus olhos dizia-lhe que era inútil insistir. Novamente
saiu do celeiro. Sem saber aonde ia, caminhava direto para a frente, com os olhos contraídos e os lábios apertados. Naquelas últimas semanas, vitimado por seu desejo
insaciável, reduzido a uma perpétua atitude de propiciação, já tinha sido bem humilhado. Mas agora, ferido em sua sensibilidade, sentia-se no mais baixo nível de
abjeção. Não podia, não devia submeter-se a isso.
Seus pensamentos não tomaram uma forma coerente até chegar de volta ao acampamento do circo. Uma vez que o motor enguiçado não seria reparado antes da manhã seguinte,
nada tinha sido desmontado, e no campo enlameado a grande tenda se erguia deserta e vazia. Alguma coisa buliu dentro dele. A luz brilhando através da abertura do
topo do dossel banhava o picadeiro com uma luz espectral, mostrava a pista inclinada, que não fora desmontada, brilhando de umidade. Um estranho impulso, um senso
de dever para consigo mesmo, lentamente foi tomando forma no seu espírito atormentado. Olhando para cima, viu que o equipamento ainda estava no lugar. Incapaz de
reprimir um arrepio, dirigiu-se para a escada de corda, seus pés deixando pegadas na serragem molhada. Segurou a corda e começou a subir vagarosamente. Momentaneamente
uma vertigem paralisou-o. O vento naquela altura tinha mais força, fazendo a pista oscilar, e o grande toldo, panejando e agitando-se, aumentava a sua impressão
de insegurança. Ele compeliu os seus músculos rígidos ação. Olhando para cima e usando uma mão, desenganchou a bicicleta da trava e, ainda seguro firmemente ao mastro
com o outro braço, alinhou as rodas. Montou trémulo na máquina e forçou-se a olhar para baixo.
O picadeiro, lá embaixo, era impossivelmente pequeno, um distante disco amarelo. A pista na qual ele estava pousado não tinha mais substância que uma simples fita.
Outro violento tremor lhe percorreu o corpo. Continuava seguro, podia voltar atrás. O medo petrificava-o. Lutou com ele. O que quer que acontecesse, tinha que descer.
Respirou fundo, firmou a sua posição na bicicleta, curvou-se para diante. Ao fazer isso, teve a vaga consciência de um grito, de uma figura encurtada e escura que
acenava lá de baixo. Se pretendia avisar, era demasiado tarde. Focando o olhar na lista branca central, com um supremo esforço da vontade, soltou a mão que o segurava.
Veio uma fração de segundo de voo, uma descida incrível, um empuxão para cima que o catapultou para o ar, e no mesmo instante, com um salto ruidoso, estava embaixo,
atirado com tremenda velocidade para fora do campo, estatelado na lama mole da vala que o margeava.
Por um momento lá ficou, imóvel, surpreso por estar vivo. Até que ouviu alguém correr para ele.
- Nom de Dieu... Está querendo se matar? - Era Jo-jo, desta vez em considerável estado de agitação.
- Não - disse Stephen, levantando-se tonto. - Mas acho que vou ficar enjoado.
- Seu filho da puta maluco. Que bicho lhe mordeu?
- Precisava de um pouco de exercício.
- Você está louco. Quando vi você lá em cima, pensei que estava liquidado.
- E que diferença isso teria feito?
Jo-jo encarou-o.
- Pelo amor de Deus, venha tomar um drinque.
- Muito bem - disse Stephen, e acrescentou: - Não comente isso com ninguém.
Foram até o café da aldeia. Depois de um bom copo de Calvados, a mão de Stephen parou de tremer. Lá ficou bebendo com Jo-jo, quase em silêncio, até que o lugar fechou.
O conhaque pesava-lhe na cabeça, fazendo-o sentir-se embotado e entorpecido. Mas na verdade não tinha realizado nada. A dor no coração ainda estava lá.


CAPÍTULO X

DUAS SEMANAS SE PASSARAM. Estavam em Nice. A cidade, iniciada pelos terraços de mimosas de La Burnette, era maior do que Stephen imaginava. A Promenade de Anglais,
a cintilante orla marítima, com os seus canteiros formais e hotéis ostentosos, dava uma desagradável nota pretensiosa. Mas o terreno do circo ficava bem para o interior,
na direção de Cimiez, atrás da Place Carabacel, cercado de ruas estreitas com feiras ao ar livre e pequenas barraquinhas de frutas, verduras e uma profusão de flores,
uma rede de coloridas e ruidosas passagens que tinham o encanto íntimo de Paris acrescido do calor do Sul.
- Nada mau, hein? - disse Jo-jo, expandindo o seu magro peito embaixo do colete rasgado.
- Gosta daqui?
- Muito. E você também vai gostar. - Fez um gesto abrangente. - Há muito interesse para um artista na Carabacel.
Em outro momento teria sido um entretenimento para Stephen explorar aquele bairro. Agora, tenso e inquieto, sentia que não poderia trabalhar. Mas obrigou-se a tal
com o seu bloco Ingres e fez alguns estudos dos nicenses - uma velha de touca branca vendendo alcachofras, um homem do campo
com uma rede de galinhas vivas, trabalhadores tapando um buraco na estrada. Contudo, o seu coração não estava naquilo, e ao calor do meio-dia voltou para o acampamento
a fim de descansar um pouco antes de começar o trabalho na sua barraca.
Na tarde seguinte, diante do seu cavalete na feira, completava o seu último retrato da sessão quando notou que havia um espectador atrás dele, ligeiramente inclinado
sobre uma bengala de rotim. Algo na sua postura despertou-lhe um eco na memória. Voltou-se.
- Chester!
- Como está, meu velho? - Harry rompeu no seu riso contagiante, descalçou uma luva de couro lavável e estendeu-lhe a mão. - Soube que você tinha entrado para o Peroz.
Mas por que diabo está com essa fantasia?
- Faz parte do trabalho.
- Claro, uma maneira de atrair os nativos. Mas não o faz sentir-se com cara de tolo?
- Ora, estou acostumado. Espere, que já estarei com você.
Enquanto Stephen dava rapidamente os toques finais no retrato, Chester tirou uma cigarreira e acendeu um cigarro. Espremido num traje de linho branco, sapatos marrons
e um chapéu panamá, tinha um ar abastado. Calças bem vincadas, camisa de tussor de seda, exibia uma elegante gravata-borboleta. O rosto estava bem queimado.
- Não posso acreditar que você esteja aqui. Embora tivesse dito que ia para Nice. Você parece estar bem.
- Estou em ótima forma, obrigado.
- Suponho que teve alguma sorte nas mesas.
- Para dizer o mínimo, tive. - O sorriso de Chester escureceu. - Eu estava nas últimas e apostei os 50 francos que me restavam no duplo zero. Por quê? Porque sabia
que teria menos que zero se perdesse. Deu o duplo zero. Deixei tudo. Por quê? Só Deus sabe. E deu o duplo zero outra vez. Meu Deus, você nunca viu semelhante pilha
de grandes e lindas fichas quadradas vermelhas em sua vida. Fui apanhá-la. Não pude. Alguma coisa dentro de mim dizia sorte pela terceira vez. Quando a roda girou,
quase morri. O duplo zero deu de novo. E desta vez recolhi tudo rapidamente e fui trocar no guichê do caixa. No dia seguinte mudei-me do prejuízo para Villefranche,
um pequeno apartamento. Desde então estou vivendo como um lorde. - Tomou o braço de Stephen. - Agora fale-me de você. Como vai o trabalho?
- Assim-assim.
- Vamos vê-lo.
Stephen guiou-o até o seu caminhão, apanhou algumas telas e inclinou-as, uma depois da outra, contra a calota da roda, enquanto Harry, com uma expressão profissional,
estudava cada uma a seu turno.
- Bem - declarou ele afinal. - Você pode ter algo aí, mas não compreendi bem o que é. Perspectiva? As suas pinceladas não são muito rudes?
- São intencionalmente rudes... para dar uma impressão de vida.
- Esses cavalos não são particularmente reais.
Harry apontou com a sua bengala para uma composição a têmpera de cavalos correndo como loucos numa tempestade.
- Não estou procurando expressar o óbvio.
- Obviamente não. Contudo... gosto que um cavalo se pareça com um cavalo.
- E quando você vê um homem montado nele, então tem certeza disse Stephen secamente, e empilhou as telas, percebendo que Chester não tinha a menor ideia do que ele
buscava. - Você ainda está pintando?
- Oh, naturalmente. Quando tenho tempo. Estou fazendo uma vista geral da Promenade. Às vezes saio com Lambert. Ele e Elise estão aqui. Ele pegou uma viúva americana
rica no Ambassadeurs e está dando expediente inteiro com ela.
Enquanto ele falava, soaram passos, e por trás da lona do caminhão apareceu Emmy. Quando se dirigia para Stephen, recuou de súbito, tendo notado a presença de Chester.
Uma expressão curiosa lhe assomou ao rosto.
- Que é que está fazendo aqui?
- Eu geralmente apareço quando menos se espera.
- Como um cêntimo falso?
- Desta vez como uma bela nota de mil francos - respondeu Chester amavelmente, sem se deixar diminuir. - Sentiu a minha falta?
- A privação foi insuportável.
- Não seja rude com o tio Harry. Você sabe que os seus nervos são fracos. - Consultou o relógio. - Tenho que partir. Devo estar no Negresco às seis. Mas quero que
vocês venham almoçar amanhã no meu apartamento Rue des Lilas, 11-B - ao largo do Boulevard General Leclerc. Os Lamberts também estarão lá. Os dois estão livres?
Ótimo. São apenas uns poucos quilómetros pela Corniche, o bonde passa na minha porta.
Sorrindo e acenando com a bengala, chamou um fiacre no fim do acampamento, saltou nele, reclinou-se no encosto acolchoado e mandou tocar a galope. Emmy acompanhou-o
com olhos ressentidos.
- Voyou metido a sebo. Mandando a gente tomar o bonde enquanto ele vai de carruagem.
- Não devemos invejá-lo. Ele também já teve os seus maus momentos.
- Não acredito que ele tenha acertado um coup. Deve estar vivendo com alguma velha.
- Não mesmo. Chester é o tipo de sujeito com sorte para ganhar uma bolada. Além disso, só se interessa por moças bonitas.
- Um dia ele vai ver o que é bom. - Mostrou os seus dentinhos agudos.
- Sale type. Nunca fui com a cara dele.
- Então você não irá lá amanhã...
- Claro que irei. Não seja tão fou. Faremos com que ele se arrependa da sua pretensão.
Ele a olhou perplexo. Obviamente detestava Chester. Por que, então, aceitar o seu convite? Talvez quisesse ver os Lamberts. Jamais soube o que ela tinha em mente.
No dia seguinte, quando veio ao seu encontro, ela usava um vestidinho amarelo de musselina bordada e uma fita da mesma cor em volta do cabelo cheio e curto. Deu-lhe
um pequeno sorriso com os lábios apertados.
- Podemos pegar um fiacre?
- Isso mesmo. Nada de bonde para nós.
Ela escolheu a mais elegante vitória da fila. Sentou-se confortavelmente.
- Como estou?
- Maravilhosa.
- Eu precisava de um vestido novo. Comprei este hoje de manhã na Galerie Mondial.
- É encantador - disse ele. - E assenta-lhe perfeitamente.
- Gosto de mostrar a essa gente que não sou uma coisa embaixo dos pés deles. Chester especialmente. Ele é muito cheio de si.
- Talvez, mas não é um mau sujeito. Acho-o apenas um pouco mimado. É bonito demais.
- Acha-o atraente?
- Acho que muita mulher tola já tem caído pelos seus belos olhos azuis e cabelos crespos.
Ela lançou-lhe um penetrante olhar de soslaio.
- Pelo menos eu não sou uma delas.
- Não - sorriu Stephen. - Estou um tanto aliviado por você detestá-lo. Rodaram pela Avenue Raspail, um largo logradouro sombreado de catalpas, ao longo do Boulevard
Carnot, e depois pela curva da baía para Beaulieu. O céu estava azul, uma brisa de deliciosa fragrância soprava das colinas. Ele apertou-lhe a mão, feliz - ela se
deixou segurar por um momento. Ultimamente, as atenções que ele tinha para com ela, os pequenos presentes que continuamente lhe dava, as restrições que por um esforço
de vontade impunha a si mesmo pareciam estar causando alguma impressão nela.
- Você está sendo gentil comigo - murmurou ela.
Essa ligeira observação tornou-o ridiculamente feliz. Talvez, por fim, ela pudesse aprender a amá-lo.
Dali a pouco rodavam por Villefranche. O apartamento de Chester, na Rue des Lilas, uma rua em ângulo reto com a avenida, integrava uma série de
suítes que abriam sob um balcão comum em torno de um pátio, atendidas por um pequeno hotel, o Hotel des Lilas. Um pequeno chafariz cercado de cactos gorgolejava
no centro do pátio, e tubos verdes de oleandros floridos decoravam a varanda. O lugar parecia limpo, agradável e discreto - exatamente a espécie de pied-à-terre
que Chester, com a sua inclinação para se tratar bem, acharia sem o menor esforço.
Foram os primeiros a chegar, e Harry recebeu-os efusivamente.
- Bem-vindos ao castelo ancestral. Não é grande, mas tem história.
- Má, sem dúvida - disse Emmy.
Chester riu. Vestia calças de flanela branca e um blazer azul com botões de metal amarelo. Seu farto cabelo castanho, recém-ondulado, tinha uma listra de cor mais
clara na testa.
- Se é isso o que você pensa, não posso deixá-la mentir.
Enquanto ele levou Emmy ao dormitório para deixar a sua echarpe e luvas, Stephen relanceou os olhos em torno da pequena sala de estar. Era mobiliada convencionalmente,
mas nas paredes havia duas aquarelas emolduradas que reconheceu como sendo trabalho de Lambert. Examinou-as de perto - uma era um arranjo de ervilhas-de-cheiro num
vaso Ming, a outra um bando de cegonhas paradas num lago nevoento - e ao olhá-las imaginava como jamais poderia ele ter apreciado semelhante beleza. Belamente executadas,
com uma delicadeza quase feminina, eram contudo vazias e insípidas, despidas de toda vitalidade ou intenção. Podiam ter sido feitas por uma hábil professora de arte
de uma escola superior para moças. Faziam-no avaliar que longa estrada tinha percorrido desde aqueles primeiros dias em Paris. Se a jornada fora áspera, pelo menos
lhe tinha ensinado em que consistia realmente uma obra de arte.
- Boas, não? - Chester tinha voltado com Emmy. - Lambert, num gesto muito decente, me emprestou as duas. O preço está nas costas. Há sempre uma chance de que os
meus visitantes queiram comprá-las.
Trouxe uma garrafa de Dubonnet e serviu três copos, depois passando uma bandeja de camarões frescos.
- Posso tentá-la, mademoiselle Rouquet de la baie.
- Você mesmo os apanhou?
- Claro. Levantei-me antes do desjejum.
Rearranjando o cabelo, ela olhou para ele, mas pela primeira vez com menos animosidade.
- Que grande mentiroso!
Harry riu-se gostosamente.
- Também sou muito bom nisso.
A campainha tocou e os Lamberts entraram. Pareciam pouco mudados, embora Philip estivesse mais gordo, mais lânguido nas suas maneiras. Usava
um terno cinza com um cravo azul na lapela e trazia pendurada no indicador uma caixinha de pâtisserie amarrada com uma fita.
- Trouxe-lhe alguns bolinhos do Henri, Chester. Acompanharão o café. Naturalmente, você está lembrado da minha gulodice, Desmonde. - Espichou-se comodamente no divã
e delicadamente aproximou as suas finas narinas da flor que tinha na lapela. Elise, que vestia o inevitável verde, e cujo sorriso parecia um tanto mais fixo do que
antes, estava conversando com Emmy.
- Agora, conte-me tudo como um bom menino.
Stephen começou um relato a seu respeito, mas antes que fosse muito longe viu que Lambert não estava prestando atenção, e interrompeu-se.
- Você sabe, Desmonde - disse Philip num tom ligeiro e divertido eu desejaria, pelo seu próprio bem, que você não se tivesse metido nessas coisas pesadas. Você não
pode atacar a arte com uma picareta. Por que suar como um britador de pedras? Faça como eu e use um pouco de delicadeza, um pouco de habilidade. Eu nunca trabalhei
demais, e no entanto clientes não me faltam. E eu vendo. Admito que tenho talento, e isso torna as coisas mais fáceis para mim.
Stephen ficou silencioso. Podia muito bem adivinhar a facilidade de Lambert. Mas o anúncio de Chester, dizendo que o almoço estava servido, salvou-o da resposta.
A refeição fornecida pelo hotel lá de baixo era esplêndida, servida por um jovem garçom que, para apresentar uma comida tão quente, devia ter executado estranhas
proezas de agilidade nas escadas. Uma lagosta cozida à moda da terra, seguida de um risotto de frango, e depois um queijo soufflé; antes, Harry, com o toque de um
perito, tinha feito saltar a rolha de uma garrafa de Veuve Cliquot. Quanto mais alegre a mesa, porém, mais Stephen se sentia completamente alheio a ela. Em certa
época tinha apreciado aquela sociedade, mas agora, apesar do enorme esforço para se coadunar com ela, fracassava tristemente. Que lhe tinha acontecido para que se
sentasse ali, mudo, com a consciência mortal de que não mais pertencia a ela? Emmy, bebendo mais champanhe do que devia, exibia tolas personificações de Max e Monx
que faziam Chester, agora mais ruidoso do que nunca, estourar de riso. Lambert, a quem Stephen tinha antes admirado, parecia-lhe agora exatamente como Glyn o via
- um poseur e diletante, um amador fracamente dotado. Perfeitamente amaneirado, bem-educado, garantido por sua pequena renda regular, recusando-se a ser perturbado
ou excitado, flutuava a esmo, nunca se exercendo a sério, tocando de leve o creme da vida. Cultivando mulheres, arranjava clientes que lhe encomendavam retratos
ou que pagavam bons preços por seus leques e aquarelas. Elise, com o seu sorriso fixo e perfil nítido, mostrava sinais dessa existência. Sua aparência começava a
murchar e as rugas a juntar-se embaixo dos seus
olhos verdes e pestanudos; contudo, embora a sua capacidade de lisonjeá-lo já estivesse um tanto gasta, a sua inexaurível devoção fazia dela, cada vez mais, uma
parceira complacente naquele jogo de blefe artístico, cujo mero pensamento levava Stephen a remexer-se mais inquieto na cadeira.
Depois do café e bolinhos, dos quais Philip, desculpando-se com uma delicada alusão literária ao jovem com as bombas de creme de Stevenson, comeu cinco, sentaram-se
na sacada. Continuando a monopolizar a conversação, descreveu, com irónica meticulosidade, as deficiências faciais e sociais da mulher idosa que retratava atualmente.
- De fato - concluiu ele aereamente - não se poderia esperar mais da viúva de um enlatador de carne de porco de Chicago.
- Imagino que o cheque dela foi bom.
- Bem... naturalmente.
Embora tentasse livrar-se da sua apatia, Stephen via o tempo passar com interminável lentidão. Por fim, cerca de três horas, aproveitando um intervalo na conversação,
olhou para Emmy.
- Acho que temos de ir agora.
- Oh, tolice - protestou Chester. - A tarde ainda é jovem. Vocês não podem nos deixar agora, de modo nenhum.
- Se eu não for chegarei tarde no meu emprego.
- Então por que você não fica, Emmy? - sorriu Harry afavelmente. Houve uma pausa. Stephen notou sua hesitação, mas ela logo sacudiu
bruscamente a cabeça.
- Não. Eu vou agora.
Despediram-se, o porteiro lá embaixo conseguiu-lhes um fiacre. Ao dobrarem a esquina, fora da vista do hotel, Stephen inclinou-se para ela.
- Foi bondade da sua parte vir comigo. Gostei disso.
- E eu não gosto de me tornar fácil.
Não era a resposta que ele esperava; no entanto, animado pela recente mostra de sua consideração, chegou-se mais perto, sob a coberta do avental da carruagem, e
procurou-lhe a mão.
- Não - disse ela, empurrando-o irritada. - Não está vendo como me sinto?
E ao voltar-se surpreso, ela, com franqueza vulgar, deu uma desculpa que, se fosse verdade, teria talvez causado a sua prematura partida.


CAPÍTULO XI

APÓS O TUMULTO E EXCITAÇÃO das viagens através das estradas do país, muitos membros do Circo Peroz acharam agradável estabelecer os seus alojamentos de inverno na
Côte d'Azur. Ali era a sua base; muitos tinham relações em Nice, Toulouse e Marselha, e com mais tempo disponível, poderiam visitá-las. Embora o negócio continuasse
firme, o programa tinha sido reduzido para cinco espetáculos por semana, e após a grande noite de domingo, segunda e terça-feira, ficavam livres.
Os amigos de Stephen já haviam Se acomodado à nova rotina. Max reiniciara as suas lições de violino e podia ser visto, todas as tardes, com a caixa preta em forma
de pêra debaixo do braço, partindo no trote miudinho forçado por suas diminutas pernas. Croc, por outro lado, passava a maior parte do seu tempo na Bibliothèque
Nationale, curvado sobre grossos volumes, expondo na volta, a Stephen e Jo-jo, uma nova versão de Schopenhauer, ao passo que Fernand, parecendo gasto e sonhador,
ia todas as manhãs, de braço dado com a esposa, a um homeopata de Cimiez para a irrigação diária prescrita para o seu flux intestinal. Mais prático, Jo-jo tinha
achado uma ocupação subsidiária nas cavalariças do Negresco, onde, a pretexto de lavar as carruagens, passava a maior parte do tempo tagarelando com cocheiros e
motoristas, levando um livrinho sobre as corridas locais e comentando sarcasticamente, com o canto da sua boca de ratoeira, os visitantes que entravam e saíam do
hotel.
Stephen, por sua vez, tinha começado o desenho preliminar para uma pintura na qual pretendia utilizar os estudos individuais feitos na grande tenda, a que pretendia
chamar Grcus. Esse arranjo complexo, um agrupamento de inumeráveis figuras com as suas cores combinadas e contrastantes, era difícil e, desde que ele não tinha estúdio
nem tela suficientemente grandes, propunha-se seguir o precedente dos antigos mestres e construir a sua composição, primeiro que tudo, numa escala menor e menos
rigorosa. A ideia lhe surgiu à medida que progredia, e ele começou a sentir que semelhante material, recolhido em semanas de paciente observação, devia dar um magnífico
resultado.
Desde o dia do almoço no Hotel des Lilas, o barómetro dos humores de Emmy tinha lentamente chegado a "bom tempo". Após esse evento, não tinham
mais visto Chester ou os Lamberts, e parecia que essa ligação estava finalmente rompida.
No fundo do espírito de Stephen, talvez por uma observação de Glyn, sempre havia a ideia de uma afeição entre Chester e Emmy. Era-lhe gratificante o fato de que
Emmy tivesse aceito a brusca interrupção de sua amizade com tão pouco interesse. Ela, como os outros, tinha voltado a sua atenção para Nice. A irmã de Madame Armande,
que morava nos arredores, logo após o subúrbio de St. Roch, tinha uma pequena chapelaria dedicada principalmente à produção e venda de chapéus de palha de carnaval.
Emmy, como muitas moças francesas, tinha talento para os trabalhos de agulha, e todas as tardes tomava modestamente o bonde para ganhar algum dinheirinho na oficina
do Chapeau de Paille. Como resultado, Stephen via-a menos do que o usual. Contudo, experimentava um certo conforto íntimo com esse aspecto inesperadamente sossegado
da sua natureza. Tal atividade, no entanto, devia ser terrivelmente monótona, e ele disse para si mesmo que devia procurar quebrar essa monotonia. No Clarion de
Nice, descobriu que uma companhia lírica, cumprindo um contrato no Casino Municipal, faria uma representação de La Bohême na segunda-feira seguinte. Esse romance
ultrapassado da vida de estudante em Paris talvez a entretivesse, e no seu encontro seguinte ele falou no assunto.
- Você quer ir ao teatro na segunda?
- Teatro? - Pareceu ligeiramente perturbada. - Você não está ocupado com a sua pintura?
- Não de noite, com certeza.
- Bem... se você quiser.
- bom. vou comprar as entradas hoje.
Andou todo o caminho até o Casino e comprou duas cadeiras no grand circle, e então, sabendo o quanto ela gostava de "uma noite fora", reservou uma mesa no restaurante
para a ceia nessa mesma noite. Começou a esperar o evento com aquela antecipação que tão dolorosamente o afetava sempre que pensava em ficar a sós com ela.
Segunda-feira chegou. Quando terminou a sua sessão na barraca, banhou-se com água da bacia no lado de fora do seu alojamento e vestiu o seu terno e uma camisa limpa
que lavara na véspera. Justamente quando se aprontou, ouviu passos atrás dele. Voltou-se e viu uma expressão de pesar nos olhos de Emmy.
- Que houve?
- Não posso ir com você esta noite.
- Não pode?
- A irmã de Madame Armande está de cama, com l agrippe. Tenho que ficar com ela.
- Madame Armande pode fazer isso.
- Sim, mas há pedidos de urgência para atender.
- Talvez...
- Não. Tenho obrigação de ir.
Houve uma longa pausa.
- Bem... suponho que não tenha jeito.
Ficou terrivelmente abatido, mas não se importava em mostrá-lo.
- Você deve convidar alguém. Não desperdice as entradas.
- Ora, para o diabo os bilhetes! Que importam eles?
- Sinto muito. - Deu-lhe um tapinha condoído.
- Outra noite, quem sabe.
Aquele ar de interesse preocupado diminuiu a sua decepção. Todavia, ao vê-la apressar-se, indo em seguida despejar lentamente a água cheia de espuma de sabão da
bacia, a sua tristeza era tão grande, que Jo-jo, que acabava de voltar, descansando com os cotovelos no degrau, tendo testemunhado a recente cena, veio fazer perguntas.
- Como vai a coisa? - Falava sem tirar a palha que tinha entre os dentes.
- Muito bem.
- Você está todo emperequetado.
- Estou vestido, se é isso que quer dizer.
- Aonde ia?
- Ao teatro. Venha comigo. É La Bohême.
- Variedades?
- Não, ópera.
- Ópera? Ah, não. Mas vamos tomar um drinque no Mas Provençal. Atravessaram a praça em direção a um café das proximidades. Era um lugar reles mas agradável, com
compridos bancos e mesas na calçada. No interior obscuro, um piano mecânico estava tocando, e o pessoal se achava sentado em mangas de camisa. Jo-jo acenou para
alguns operários que, a caminho de casa, tinham parado para uma caneca de cerveja.
- Qual é o seu veneno, Abbé?
- Qualquer coisa... Vermute.
- Vermute Quelle blague. Você vai tomar é um conhaque. - Pediu em voz alta um Pernod e um conhaque.
As bebidas foram trazidas por uma raparigona de braços nus, vermelhos, e seios redondos, cheios debaixo da blusa, como cocos.
- Aí está uma garota para você. - com mão prática, Jo-jo filtrou o Pernod através de um torrão de açúcar, e tomou um gole confortante do líquido opalescente. - O
nome é Suzie. E não é poule. Por que não experimenta a sorte? Essas mulheres grandalhonas gostam de homens pequenos.
- Ora, vá pró inferno!
Jo-jo riu brevemente.
- Isso é melhor. O problema com você, Abbé, é que nunca se entrega.
- Que quer dizer?
- Sacré bleu! Você pode se desamarrar um pouco. Então nlo fiquei sabendo que você tem tutano - aquela noite... quando desceu na pista? Voando com todo o seu corpo.
Fique alegre, embebede-se e divirta-se.
- Já tentei isso. Comigo não dá resultado.
- Há um chá dançante todas as noites no Negresco. De muita classe. Pode ser interessante.
Havia uma intenção esquisita na voz de Jo-jo, mas Stephen simplesmente abanou a cabeça.
Jo-jo abriu os braços resignado. E depois disse:
- Que aconteceu com a beleza da bicicleta?
- Teve que ficar com a irmã de Madame Armande.
- Armande tem irmã? Haverá duas cadelas iguais neste mundo infeliz?
- Ela tem uma chapelaria em Lunel, atrás de St. Roch. E está doente.
- Uma obra de caridade - fez Jo-jo, baixando a cabeça. - Uma segunda Mademoiselle Nightingale.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual ele continuou a olhar para Stephen com um satírico aperto nos lábios. Uma vez, pareceu que ia falar, mas em vez disso encolheu
ligeiramente os ombros, pediu novas bebidas com um gesto, e começou a falar sobre as corridas do dia seguinte.
Às sete horas, deixaram o café; Jo-jo foi dar água e comida aos seus árabes, e Stephen ficou só. Sentia-se melhor, aquecido e mais alegre depois de três conhaques,
mas ainda assim tinha pouca disposição para ir sozinho ao Casino. A noite era deliciosamente linda - e seria uma pena gastá-la num teatro abafado. De repente lhe
veio uma ideia, Lunel não ficava muito longe, apenas uma viagem de bonde de 20 cêntimos. Por que não dar um pulo até a oficina de Madame Armande e, mesmo que fosse
obrigado a esperar até que ela terminasse o seu trabalho, voltar com Emmy? Com sorte, poderiam até chegar a tempo para o jantar.
A perspectiva apressou os seus passos e ele atravessou o Boulevard Risso para a Place Pigalle, onde, sem dificuldade, achou um bonde para a zona norte. A viagem
foi lenta, e mais longa do que ele supunha, mas não eram oito horas e ainda havia luz quando ele chegou ao seu destino. Lunel, como cidade, era surpreendentemente
pequena e pouco desenvolvida, o terreno plano quase todo ocupado por hortas, pouco mais que uma coleção de casinhas novas de estuque margeando uma única rua não
calçada. Stephen subiu e desceu duas vezes essa rua sem encontrar o Chapeau de Paille. Na verdade, as poucas lojas que lá havia em nada se pareciam com uma fábrica
de chapéus. Intrigado e confundido, Stephen ficou um momento parado, enquanto rajadas de vento
levantavam poeira em toda parte, e então foi à agência do correio, que, funcionando na mesma casa de uma épicerie, ainda estava aberta. Ali, em resposta às suas
indagações, ficou sabendo que não havia modista, e positivamente nenhuma fábrica de chapéus, em Lunel.
Com uma expressão curiosa na face, sentado no canto de um bonde quase vazio, Stephen voltou para Nice. O veículo sacolejante deixou-o meio tonto. Teria cometido
um engano estúpido por ouvir mal o nome do lugar que ela lhe tinha dito? Não, estava certo de que ela dissera Lunel, não uma, mas diversas vezes. Não o teria despistado,
inventando aquela desculpa à última hora? Isso também era impossível - ela vinha visitando a irmã de Madame Armande diariamente nos últimos 15 dias. Sua expressão,
se havia, tornou-se ainda mais fixa. Estava bem escuro quando chegou a Carabacel. Tudo tranquilo e deserto no acampamento. Teve um impulso de ir ao seu alojamento
e ver se ela tinha regressado, mas o orgulho e uma sensação de cansaço físico o contiveram. Já tinha se tornado suficientemente ridículo sem fazer uma cena àquela
hora. Entrou no seu caminhão, deitou-se no beliche e fechou os olhos. Tiraria tudo a limpo com ela de manhã.


CAPÍTULO XII

No DIA SEGUINTE, embora acordasse cedo, não a viu até as 11 horas, quando ela apareceu nos degraus do vagão de chinelos e um penhoar de algodão azul e branco. Sentou-se
no primeiro degrau, segurando uma xícara de café. Ele foi até ela.
- bom dia... Como deixou a sua doente?
- Oh, bem melhor.
- Chamou o médico?
- Naturalmente.
- Espero que não tenha sido nada sério.
Ela tomou um gole de café.
- Eu lhe disse que era uma gripe.
- Mas isso não é contagioso? - disse solícito. - Você deve se cuidar.
- Eu me cuido.
- Estou falando sério... venta muito em Lunel. E o bonde demora muito a chegar.
Ela olhou para ele em silêncio sobre a beira da xícara.
- Que é que você sabe de Lunel?
- Estive lá ontem à noite.
Ela o olhou desconfiada, e deu uma risada.
- Não brinque comigo. Você foi ao teatro.
- Não, eu fui a Lunel.
- Por quê?
- Pensei que podia comprar um chapéu. Infelizmente, não pude achar nenhuma chapelaria.
- Aonde é que você quer chegar.
- E também não encontrei nenhuma irmã de Madame Armande.
- Quem diabo você pensa que é, metendo o nariz nos assuntos dos outros? Saindo para me espionar. Seu rato sujo.
- Pelo menos não sou mentiroso.
- E quem é que mentiu? Falei a verdade. Se eu quisesse, poderia ter levado você lá. Onde você andou zanzando ontem à noite, não sei. Mas o lugar existe sim. Além
do mais - ajuntou ela com um toque final - a irmã de madame é viúva; o nome dela não é Armande. E agora talvez você vá cantar noutra freguesia e me deixe tomar o
meu café em paz.
Com o coração batendo como um martelo, Stephen olhou para ela com um misto de raiva e desespero. Sentia que ela estava mentindo - quando a ocasião exigia, ela podia
ser escorregadia como uma enguia. Mas a sua própria veemência era suspeita. Contudo, era até possível que falasse a verdade. Queria com toda a sua alma acreditar
nela. Sempre pronto a imputar a falta a si próprio, ponderou que aquele terrível aperto que sentia no coração poderia tê-lo levado a julgá-la mal. O desejo de reconciliação
apoderou-se dele e o enfraqueceu.
- Eu esperava tanto a nossa noite juntos.. . - murmurou ele.
- Isso não é desculpa.
- Seja como for, vamos esquecer isso.
- Só se me pedir desculpas por ter me chamado de mentirosa. Pede?
Ele hesitou, mordendo nervosamente os lábios, de olhos baixos. Seu orgulho impedia-o de aceitar aquela humilhação por parte dela. Mas a necessidade que tinha dela
tornava-o abjeto.
- Está bem... se quiser. Sinto tê-la ofendido - disse ele, extraindo à força as palavras que o faziam sentir-se desprezível.
Passou o resto do dia dilacerado pela indecisão, desejando estar com ela. Serviu-lhe de algum consolo observar que ela não saíra do acampamento. À noite, retirou-se
para o seu alojamento imediatamente depois do espetáculo. Mas sabia que não poderia continuar daquele modo, isso era impossível; de uma maneira ou outra, precisava
certificar-se.
No dia seguinte, após o almoço, quando ela saiu para a Place Pigalle, ele a seguiu. Ao saber de casos semelhantes, sempre desprezara o marido desconfiado ou o amante
ciumento que espionava a mulher que lhe causava suspeitas. Agora não podia evitá-lo. Mas ele não era nenhum especialista no assunto e, no seu esforço para não ser
visto, perdeu a sua presa no terminal da Pigalle. Contudo, vira que ela tinha tomado um bonde na direção do passeio público, e como outro estava no ponto, embarcou
nele. Em 15 minutos estava diante da costa. Procurou Emmy apressadamente em torno, andou até a esplanada e voltou, contornando o Casino, mas não viu nenhum sinal
dela. Então, como estava indeciso, de repente se lembrou do jeito de Jo-jo ao falar no chá dançante do Negresco. Embora a possibilidade parecesse remota, atravessou
a rua, entrou nos jardins do Musée Masséna e olhou por cima das grades de pontas douradas, através da Rue Rivoli, para o terraço coberto do hotel. Ao lado, sob um
toldo estendido do saguão até uma pequena plataforma com mesas de chá, uma orquestra, escondida entre as palmeiras, executava uma marcha que alguns casais dançavam.
A princípio, pensou que ela não estava lá. Então, por trás do biombo da folhagem, outra parelha saiu para a pista. A moça sorria quando, com um gesto prático, estendeu
os braços para o companheiro, que a enlaçou pela cintura. Deslizaram juntos - Chester e Emmy.
Imóvel, com a face estranhamente inexpressiva, Stephen ficou a olhá-los, observando como se moviam graciosamente. Seus passos combinavam perfeitamente. Quando a
música parou, permaneceram de pé, juntos, e quando o bis começou, prosseguiram sozinhos. Tão perfeita era a sua exibição, que os deixaram monopolizar a pista, e
quando afinal foram sentar-se, receberam um murmúrio polido de aplausos.
Stephen arrancou-se dali, caminhou lentamente para o passeio público e sentou-se num banco do qual podia ver a entrada do hotel. A dor no seu coração era quase insuportável.
Apertava os olhos ao pensar em como ela o havia enganado. Como ela e Chester deviam ter rido juntos com a invenção da chapelaria fictícia, e a sua crença inteiramente
falsa de que ela estava modesta, industriosamente trabalhando com a agulha, quando durante todo o tempo tinha estado com Harry. Madame Armande era inquestionavelmente
outra parceira daquela peça burlesca e tinha sem dúvida espalhado a notícia entre os membros da companhia. Certamente Jo-jo sabia que ele estava sendo um grandíssimo
tolo, embora, por pena, nada tivesse dito.
No entanto, tudo isso não era nada diante da angústia e da amarga fome da alma que agora o possuíam. Maior ainda que a sua raiva e mortificação, era aquela frenética
intensificação dos ciúmes e do desejo. Através da mágoa e da humilhação, ainda a queria; através do ódio, ainda tinha necessidade dela. E sentado ali, com a cabeça
entre as mãos, procurara achar desculpas para racionalizar
a conduta de Emmy. Afinal de contas, ela estava apenas dançando com Harry, e isso decerto não era um crime. Conhecem-se muitos parceiros de dança que não sentem
nada um pelo outro e estão unidos por não mais que um prazer puramente impessoal pela arte.
A música continuou a tocar intermitentemente até as seis horas, e quando a pista esvaziou, ele viu os músicos saírem com os seus instrumentos. Seguiu-se um demorado
intervalo. Com toda a certeza, Harry e Emmy tinha ido ao bar - imaginava-os muito juntos nos bancos altos, Harry à vontade e descansando, na maior intimidade com
o barman.
Demoraram tanto a reaparecer que ele começou a temer que tivessem deixado o hotel por outra saída. Mas, por fim, já quase noite, filas de luzes coloridas se acenderam
na frente e eles apareceram, descendo os largos degraus do pórtico, e se dirigindo para o passeio. Falando junto, animadamente, passaram tão perto que ele poderia
tê-los chamado. Mas manteve os lábios apertados, e quando já estavam uns 30 metros adiante, levantou-se, quase automaticamente, e seguiu-os.
Não foram muito longe. A uma pequena distância do Casino, deixaram o passeio público, tomaram a rua lateral do Marche aux Fleurs, na Cidade Velha, e entraram num
pequeno restaurante - a Brasserie Lutétia. Jantar para dois, pensou Stephen sombriamente, e teve um impulso hesitante, doentio, de entrar e sentar-se na mesa deles
- em vez disso, abotoou a gola do paletó e postou-se na sombra de um portal.
Não muitas pessoas entravam na brasserie - era um desses lugares sossegados, onde se podia ter completa intimidade. Uma vez, um garçom saiu à porta, olhou para cima
e para baixo, como se esperasse fregueses, e entrou novamente. Um gato passou de mansinho pela calçada. Do portal, sobre os telhados no fim da rua, Stephen podia
distinguir a massa escura das montanhas e altos pontinhos de luz que talvez fossem estrelas.
Teve que esperar até depois das nove, antes que eles emergissem. Somente a grande premência da sua necessidade de descobrir a verdade ajudou-o a manter-se naquela
triste e degradante vigília. E o momento se aproximava - um tremor o percorreu ao vê-los em pé sob as luzes da marquise. Com certeza, Chester estava para se despedir,
ou então ia levá-la de volta à Place Pigalle.
Estavam agora falando com o garçom, o mesmo que vira sair com eles, e Harry disse alguma coisa que os fez rir. Um fiacre chegou ruidoso, chamado da fila na praça,
lá embaixo, uma gorjeta foi dada, Emmy e Chester entraram. Rapidamente, ao se afastarem, Stephen andou até a praça, saltou noutra carruagem e disse ao cocheiro que
os seguisse.
Rodaram pelo Mercado das Flores deserto, entraram num labirinto de ruas antigas e viraram para a costa; então, com o coração encolhido, Stephen
viu que eles se dirigiam diretamente para Villefranche. Logo estavam lá. No fim da Rue des Lilas, Stephen mandou o cocheiro parar e pagou a corrida. Mais adiante,
na rua tranquila, viu o outro veículo parar. Ambos os seus ocupantes desceram, desaparecendo no pátio. Agora as duas carruagens tinham sumido, e ele ficara só na
rua deserta. Instintivamente olhou para o relógio - o mostrador luminoso indicava 10:30. Lentamente, andou para o Hotel des Lilas e ergueu os olhos para a sacada
do apartamento de Chester. A luz de um quarto estava acesa, e ele o identificou como o dormitório, podendo ver duas figuras se moverem por trás da cortina amarela.
A luz permaneceu por mais alguns minutos, e depois se apagou.
Quanto tempo ficou ali, olhando tristemente para o apartamento escuro, Stephen não poderia dizer. Por fim, deu as costas e afastou-se.


CAPÍTULO XIII

VOLTOU À PLACE CARABACEL antes da meia-noite. Através da dor surda que sentia na testa, sabia que deveria ir embora. Metodicamente, sem perturbar Jo-jo e Croc, ambos
adormecidos, reuniu os seus pertences na mochila. Amarrando as telas juntas, prendeu-as nas costas e, com um último olhar para os seus companheiros, saiu na sua
bicicleta. Dirigiu-se para o norte, pedalando velozmente na estrada plana que levava a St. Agustin, com a vaga intenção de pegar a route nationale que finalmente
o levaria a Auvergne. Sentia necessidade de estar com Peyrat - devia ter feito aquilo semanas antes. Mas sobretudo era premido pelo desejo de escapar, de obliterar
da memória aquelas últimas e intoleráveis semanas.
Quase pela manhã, desmontou, estendeu-se num espaço da charneca à beira da estrada e fechou os olhos. Não pôde dormir, mas, tendo descansado até que o sol despontara,
pôs-se novamente em marcha. E agora via pela sinalização que não estava na grande route, mas numa estrada secundária que corria entre as gargantas rochosas do Var
e subia serpeando para Touet e Colmars. Todavia, não quis desandar caminho. Todo o dia e no seguinte trabalhou nos pedais, mais do que a sua força lhe permitia,
no esforço para esquecer. Em Entrevaux, entrou erradamente numa estrada secundária, mais inclinada, que coleava para as montanhas através de um pinheiral. A pavimentação
era má, o progresso ali era mais difícil, havia um opressivo fragor de água se despejando
à medida que a torrente estrondeava sobre o seu leito de pedregulhos; contudo, o estranho medo de voltar mantinha-o tocando para a frente, comendo às pressas quando
podia, dormindo no chão nu, atrás de montes de feno, em estábulos desertos, com a sua capa dobrada como travesseiro. Uma aversão mórbida a qualquer contato humano
afastava-o das mais humildes estalagens.
O tempo piorara, e entre as colinas era úmido e nevoento. Na manhã de domingo, chegou a Annot, uma cidadezinha agrícola construída num planalto, com um vento frio
soprando dos Alpes. Sabia que era domingo pelo repicar dos sinos da igreja e pelo desfile de habitantes sérios, vestidos de preto, que olhavam para ele com desconfiança.
Doente de fadiga e esgotado como estava, essa hostilidade todavia o atingiu, e embora tivesse uma desesperada necessidade de tomar um café quente e pensasse em se
deter ali, não o fez, baixando a cabeça sobre o guidom e pedalando para fora da cidade. A chuva começou a cair. Ele foi obrigado a descansar. Ao desmontar, quase
caiu da sua máquina. Acocorado debaixo de uma cerca gotejante, comendo os restos de comida fria que tinha comprado na noite anterior, sentia-se inteiramente sem
lar, sem um lugar ou abrigo, irreal e desligado como um fantasma.
A chuva não parou, mas ele continuou, agora mais devagar do que antes e com uma falta de fôlego que o obrigava a desmontar nos aclives mais fortes. Seu nariz começou
a sangrar intermitentemente, e embora atribuísse o fato à altitude e lhe desse pouca atenção, era uma sensação esquisita o sangue a refluir quente sobre a sua garganta.
Cerca do meio-dia, começou a sentir-se extremamente indisposto, e, através do entorpecimento que o oprimia, penetrou-lhe um raio de razão. Nunca chegaria a Auvergne
daquela maneira, era loucura continuar; devia procurar uma estrada de ferro ou algum centro próximo sem demora. Desdobrando o seu mapa em grande escala, e protegendo-se
com a sua capa gotejante, viu que, atalhando para oeste, por Barréme, podia alcançar o entroncamento de Digne, não mais que 35 quilómetros além. Digne talvez não
fosse grande, mas ficava numa planície, o que lhe permitiria escapar destas montanhas impossíveis.
Tomou pelo atalho. Era escabroso, mais difícil do que antes, coberto de um cascalho áspero que fazia os seus pneus saltarem e derraparem. Tinha menos força do que
antes nos aclives, e com o esforço adicional seu nariz recomeçou a sangrar. O céu lá adiante era baixo e encoberto, a chuva aumentava rapidamente, e dali a pouco
um dilúvio desabou sobre ele. Ensopado, na escuridão que descia rapidamente, alarmou-se, acendeu com dificuldade a sua pequena lanterna de carbureto e novamente
consultou o mapa.
Não tinha examinado a folha por mais de um minuto, quando um gemido se lhe escapou. Oh, Deus... que tolo... que idiota cego e insensato. Acompanhando com o dedo,
viu que estava no caminho errado. Lá atrás, em
St. André, a curva devia ter sido para a esquerda, não para a direita. E agora examinou o sinal, route acidentés, fort montée, isolée - encontrava-se num beco sem
saída que levava direto acima, ao Col d'Allos.
Um ataque de nervos, quase de pânico, sacudiu-o. Aproximou mais o mapa. Devia haver alguma espécie de aldeia na vizinhança. Então, com alívio, decifrou o nome de
St. Jérõme. Era aparentemente um povoado, mas por sorte estava cercado por uma Cruz de Lorena vermelha, indicando a presença de uma hospedaria arrolada pelo Touring
Club da França como oferecendo acomodações para ciclistas e onde ao menos poderia achar abrigo para a noite. Se não estava completamente perdido, devia alcançá-la
em uma hora.
Pedalou, curvado, contra o vento. O gosto de sal na sua boca aumentou, e passando o lenço nos lábios sentiu que estavam inchados e flácidos. Suas pernas não mais
lhe pertenciam, um martelo batia na sua cabeça, mas quando sentiu que não podia avançar mais, viu tremeluzir, no socavão adiante, um grupo de luzes.
Ficaram mais próximas: uma grande construção cercada por casas menores tomava formas indistintamente, lá embaixo. Completamente esgotado, deixou a sua bicicleta
rodar e subiu aos tropeções a trilha para a primeira casa
- parecia a choupana de um trabalhador. Suas batidas permaneceram sem resposta por um interminável intervalo, e então a porta foi aberta por uma criancinha que ficou
olhando para ele e depois voltou-se e correu. Ele entrou num corredor, ouvindo vozes numa peça dos fundos da casa. Respirava irregularmente, e embora estivesse ensopado,
morria de sede. Devem receber-me, pensou, vou adoecer... aliás, já estou desgraçadamente doente.
Um trabalhador de camisa azul dirigiu-se para ele, seguido de uma mulher com uma lâmpada Argand e, atrás dela, a criança. Ele viu os seus rostos sobressaltados através
do nevoeiro que passava.
- Sinto muito. - com terrível dificuldade, como se do fundo de um poço, pronunciava as palavras. - Perdi o caminho. Podem me receber?
- Mas monsieur...
- Por favor... posso me sentar?... uma bebida.
Antes que ele pudesse falar outra vez, o homem chegou mais perto, sacudindo excitadamente o braço.
- Não aqui - disse. - O senhor deve continuar.
- Deixe-me ficar. - Novamente o terrível problema da articulação. Não posso continuar.
- Não, não... mais adiante.. . não aqui.
O homem segurou-o pelo ombro e levou-o para fora da casa. Julgando que estava sendo enxotado para a estrada, incapaz de resistir ou sequer protestar, tomado de uma
desesperança final, sentiu uma ardência nos olhos, e então, ao chegarem ao portão, percebeu que o homem não o tinha soltado,
mas o ajudava, amparando-o por um corredor rua abaixo. Na verdade, ao avançarem, ele murmurou algumas palavras de encorajamento:
- Está vendo? Não é longe... estamos quase lá.
No fim, alcançaram a grande construção. Havia árvores de espessa folhagem em ambos os lados. O homem puxou a corda de uma sineta e, após um momento, abriu-se uma
grade na porta tacheada. Seguiu-se uma breve conversação e depois ele foi admitido num pequeno saguão caiado, com um chão de pedra nua e bancos lustrosos junto às
paredes.
À beira do colapso, Stephen olhou em torno, tonto. Tudo estava fora de foco. Todas as linhas do saguão corriam juntas e depois se afastavam, como círculos num lago.
Até o porteiro que o deixara entrar parecia fantasticamente indistinto, vestido num paletó comprido e com capuz que lhe dava um aspecto de mulher. Outro homem, ou
mulher, tinha aparecido. Então, imediatamente, todas as linhas se dissolveram. O trabalhador da choupana, voltando-se para esse recém-chegado, retirou atabalhoadamente
o braço que o amparava. Stephen caiu de rosto para baixo, com o embrulho de telas molhadas ainda amarrado às costas.


CAPÍTULO XIV

O SOL DA MANHÃ, incidindo na única e funda janela à cabeceira da tarimba armada sobre cavaletes, acordou-o. Ele deixou-se ficar passivamente, o olhar percorrendo
os poucos objetos da pequena ermida da qual, durante as últimas três semanas, tinha se tornado íntimo e familiar - a solitária cadeira de assento empalhado, o armário
provençal, o genuflexório de madeira num canto, o crucifixo preto na parede branca. Especulativamente, examinou a sua mão, levantando-a contra a luz, achando os
dedos ainda brancos, mas talvez menos translúcidos do que na véspera. Esse era um teste que ele fazia todas as manhãs. Passos leves, rangendo no corredor coberto
de areia, fizeram que ele, sem querer, movesse o corpo e voltasse a cabeça. Estava olhando para a porta quando ela se abriu e o enfermeiro entrou, trazendo o seu
desjejum numa bandeja.
- Como dormiu?
- Muito bem.
- A nossa cantoria não o perturbou?
- Não, agora já estou acostumado.
- bom - disse Dom Arthaud, depondo a bandeja.
Tirou um termómetro dos recessos do seu hábito branco, sacudiu-o e, com um sorriso, colocou-o entre os lábios de Stephen. - Isto não é mais necessário. Mas como
você vai se levantar hoje, queremos ter certeza.
Era um homem de uns 50 anos, de estatura média, vigoroso, ombros quadrados, com uma cara grande e agradável, ligeiramente azulada em torno do queixo, e inteligente,
de olhos castanhos com óculos, a cabeça raspada e tonsurada; usava sandálias de tiras nos pés nus. Ao cabo de um minuto, retirou o termómetro, leu-o e, com um aceno
tranquilizador, puxou a cadeira com a bandeja para junto da cama.
- Não esqueça o seu remédio.
Depois de tomar, com um canudinho de vidro, o líquido escuro de sabor metálico, Stephen começou o seu desjejum - uma caneca de café au lait, manteiga fresca numa
tigela de barro, pão cortado em fatias e frutas. O café com leite estava quente, cheirando a chicória. Depois de molhar o pão na caneca, Stephen olhou compungido
para o que estava em pé - ele nunca sentava-se na extremidade da cama.
- Por que não come comigo? Aqui há mais do que suficiente para dois.
- De modo nenhum. Fazemos a nossa refeição ao meio-dia.
- Mas... isto está muito gostoso.
O enfermeiro sorriu alegremente.
- Sim... a nossa comida é perfeitamente horrível. Mas estamos habituados a ela. E depois, não estivemos doentes.
Stephen apanhou outra fatia de pão.
- Isso é que eu estava querendo lhe perguntar. Que foi exatamente que eu tive? O senhor nunca disse.
- Você teve uma inflamação dos pulmões... por exposição à intempérie. Além disso, fez um esforço demasiado grande. Como resultado, teve a complicação de uma hemorragia.
Muito grave.
- Pensei que o sangue fosse do nariz.
- Não, era dos pulmões. - Fez uma pausa, olhando por cima dos óculos de aros metálicos. - Já teve algo parecido antes?
Stephen refletiu um momento, depois abanou a cabeça.
- Tive um resfriado há alguns meses. Bronquite, imagino. Mas podia ter sido por causa disso.
O enfermeiro baixou os olhos.
- Eu não poderia responder. Não sou médico.
- Mas o senhor me salvou desta muito bem.
- Com a ajuda de Deus.
- E muita habilidade. Não acredito que o senhor não seja qualificado.
- Estudei medicina em Lions com o Professor Rolland. No último ano, assim como você foi chamado para ser um pintor, recebi o chamado para ser um monge.
- Muito afortunadamente para mim.
Dom Arthaud inclinou a cabeça, e então, quando Stephen terminou, apanhou a bandeja. Na porta, fez uma pausa.
- Não se levante ainda. Esta manhã, o Reverendo Prior vem visitá-lo. Quando ele saiu, Stephen recostou-se, com as mãos cruzadas atrás da cabeça. Ainda se sentia
atrozmente fraco. Contudo, quase já não tinha tosse e nem sentia mais aquela pontada aguda do lado. Como era bom o sol no seu rosto - a atividade da convalescença
começava. Não se preocupava com a sua situação. A persistência do enfermeiro em tirar-lhe a temperatura de manhã e à noite não era palpavelmente mais do que uma
rotina. Na verdade, imaginava, calmamente, se a sua doença, com aquele estranho depauperamento, não teria sido peculiarmente oportuno. Já ouvira falar de sangria
como remédio para a febre. Pelo menos sentia-se curado daquelas dores cruciantes que tão intoleravelmente o atormentavam.
Olhando para trás, admirava-se de que, durante todos aqueles meses, tivesse permanecido naquele estado de tamanha sujeição, aniquilado por uma única palavra, arrastando-se
pelo favor de Emmy. A simples ideia daquilo fazia-o estremecer. Rejubilava-se em ser ele mesmo outra vez, e jurou que jamais se submeteria a semelhante escravidão
- na verdade, foi mais longe, e fez um voto solene de que no futuro nenhuma mulher participaria da sua vida. Somente o seu trabalho o interessaria agora, e a ele
se aplicaria com rigorosa autodisciplina.
Às 11 horas chegou o seu visitante. O Prior, uma figura alta e imponente, na sua vestimenta branca encapuzada, sentou-se tranquilamente na cadeira e estudou Stephen
com grave reflexão.
- Então, afinal vai sair da sua cama, meu filho. Alegro-me.
- E eu estou agradecido - murmurou Stephen. - Foi sorte minha encontrar a sua cruz no meu mapa.
- É verdade que temos uma cruz. Mas não figuramos no mapa - disse o Prior com um leve sorriso. - Aquela marca é para uma hospedaria de ciclistas no vale vizinho.
Você se extraviou no caminho, meu filho. Ou, desde que a Providência o trouxe aqui, poderíamos dizer que o achou?
Uma esquisita inflexão na voz do Prior trouxe uma ligeira cor ao rosto pálido de Stephen. Teria deixado escapar alguma coisa a seu respeito nos primeiros dias da
doença?
- De qualquer maneira - respondeu ele - já era tempo de eu ficar bom. Dei-lhe um grande trabalho. Os senhores devem estar querendo se livrar de mim.
- Ao contrário, você é muito bem-vindo aqui. Sofreu um grande abalo, e Dom Arthaud acha que antes de várias semanas não estará apto para viajar.
- Mas... receio que não possa pagar.
- Nós lhe pedimos o seu dinheiro, meu filho? Aliás, quem o esperaria de um artista que luta? Fique conosco por uns tempos. Sente-se ao sol no jardim. Quando estiver
mais forte, a vida terá um aspecto diferente. Será capaz de enfrentar melhor o mundo.
O Prior pousou delicadamente a mão no braço de Stephen, e então levantou-se e saiu.
Stephen teve que se esforçar para reprimir as lágrimas dos olhos. Levantou-se. Suas roupas, lavadas e cuidadosamente dobradas, estavam no armário, com os seus outros
pertences. O dinheiro, cerca de 30 francos, achava-se numa pilha precisa ao lado do seu relógio, que estava funcionando; ele adivinhou que lhe tinham dado corda
todos os dias. Depois de se vestir, deixou o quarto e andou ao longo de um corredor estranho, lajeado de pedra, que o levou ao jardim, nos fundos.
Não era um recinto grande, umas poucas trilhas em torno de roseiras separadas, que levavam a uma gruta com uma estátua no fundo. Um muro de andebol quebrava o contorno
da cerca em volta. Além, alguns campos. Por suas conversações com Dom Arthaud, Stephen soubera que, graças à doação de uma pequena casa de campo, a comunidade, devotada
à instrução de cerca de 20 noviços, tinha sido recentemente estabelecida e estava crescendo unicamente devido aos esforços dos próprios monges, que haviam construído
com as suas mãos a pequena capela contígua à antiga mansão. Podia vê-la agora, branca e um tanto grosseira, aprumando-se contra o céu lanoso.
Após ter andado pelas trilhas, foi obrigado a descansar num dos bancos que flanqueavam a quadra de andebol. Um velho, com o hábito castanho de irmão leigo, estava
ordenhando uma vaca no pasto. Dali a pouco, começou um ofício na capela, e o cantochão, carregado pela brisa suave, era mais do que ele podia suportar. Levantou-se
e arrastou-se para o seu quarto.
Lá, encontrou uma carta, colocada bem à vista no peitoril da janela. Uma semana antes, sentindo-se terrivelmente só, soerguera-se no travesseiro e garatujara umas
linhas ao morador do nº 15 da Rue Castel, pedindo-lhe que remetesse qualquer correspondência que chegasse para ele àquele endereço. Este era, presumivelmente, o
resultado. Rasgou o envelope. Era de Stillwater, uma breve nota escrita havia dois meses.
CARO STEPHEN
Não sei se esta lhe chegará às mãos. Se chegar, é para informá-lo da morte de Lady Broughton, em outubro. Isso não foi inesperado. Algumas semanas antes, o noivado
de Claire e Geoffrey fora anunciado. Vão casar-se muito em breve. Não há outras notícias de importância para lhe dar, a não ser que papai
continua muito triste com a sua ausência. Suplico-lhe que volte e aceite suas responsabilidades como filho obediente.
Sua, Caroline.
Ainda com a carta na mão, Stephen sentou na cama. Em outros tempos, aquela notícia de casa não o teria afetado tão profundamente. Sabia da doença de Lady Broughton,
e seu amor por Claire nunca tinha sido mais que uma afeição fraternal. Contudo, aqui, neste ambiente estranho e remoto, abatido pela doença, a morte de uma e o próximo
casamento de outra - com Geoffrey, entre todos os homens! - parecia aumentar a sua sensação de exílio, cortá-lo mais fundamente de toda aquela vida agradável que
normalmente ainda seria sua. O tom da carta de Caroline, breve, cheio de calada amargura e implícitas censuras pelo que poderia ter sido, fazia-o mais do que nunca
sentir-se uma criatura à parte, cuja própria natureza o punha em conflito com a família, a pátria e a sociedade.
Com o decorrer das semanas, ele ficava mais forte. A região em torno, coberta de pinheiros baixos, sem beleza e sem qualidade, dava-lhe pouco incentivo para sair
do recinto. Fez amizade com os dois filhos de Pierre, o trabalhador da choupana que o trouxera ao mosteiro, levava-os encarapitados no selim da sua bicicleta. Ajudava
o velho Irmão Ludovic na horta, jogava andebol com os noviços na hora do recreio. Eram um alegre grupo de jovens, recrutados principalmente em boas casas burguesas
em Garonde e nas cidades vizinhas. Talvez por ele ser um estranho, e de uma raça diferente, eles se davam ao trabalho de lhe dedicar pequenas atenções matizadas
de um espírito de proselitismo que, embora o deixasse insensível, comovia-o e divertia-o. Seus corações estavam naquela nova pequena comunidade, e quando não mergulhados
em oração, entregavam-se sem poupar-se ao duro trabalho manual nos seus esforços para melhorá-la.
Um dia, no jogo de andebol, fizeram-lhe uma observação, meio rindo, meio sérios.
- Monsieur Desmonde... Uma vez que o senhor é um artista, por que não pinta um belo quadro para a nossa igreja?
Stephen, com a atenção presa, olhou para o proponente.
- E por que não? - respondeu com um ar sério.
A ideia, que não lhe ocorrera, pareceu-lhe um admirável meio de expressar a sua gratidão, de dar alguma retribuição tangível pela bondade que tinha recebido. Além
disso, a vadiagem forçada começara a pesar-lhe.
Nessa mesma tarde, conversou com seu amigo Dom Arthaud, que recebeu a sugestão calorosamente e prometeu falar com o Prior. A princípio, o Prior hesitou. A capela,
embora reconhecidamente inacabada por dentro,
era o produto de um prolongado e árduo esforço e cara ao seu coração. Seria sensato colocar aquela prezada e duramente ganha possessão nas mãos de um pintor desconhecido,
cujas poucas telas, embora estranhamente compulsivas, não davam indicação de competência ortodoxa? No fim, a fé, que era o sustentáculo da sua existência, moveu-o
a uma decisão. Mandou chamar Stephen.
- Diga-me, meu filho, o que pretende fazer.
- Gostaria de pintar um afresco acima do altar, na parede de fundo da abside.
- Tema religioso?
- Naturalmente. Pensei na Transfiguração. Iluminaria toda a capela.
- Você está certo de que poderia produzir algo que aprovássemos?
- Eu tentaria. Não tenho tintas nem pincéis bastante largos. O senhor teria que arranjá-los para mim. Teria que confiar em mim. Se o fizer, prometo dar o melhor
de mim.
Na manhã seguinte, dois dos padres partiram para Garonde, voltando à tarde com vários pacotes embrulhados em papel pardo. Nesse meio tempo, os noviços tinham armado
um andaime atrás do altar. Cedo, no dia seguinte, com aquele alvoroço que sempre sentia ao começar um novo trabalho, Stephen pegou o seu pincel.
Contudo, o seu estado de espírito era muito insólito. De corpo relaxado, não de todo livre da lassidão da convalescença, parecia banhado de um fofo langor. Suas
emoções ainda eram instáveis, a umidade lhe vinha prontamente aos olhos. O ambiente da capela, a entonação dos monges, a sensação de estar separado do mundo induziam
nele emoções inteiramente alheias à sua natureza. Embora não dispusesse de modelos, o trabalho tomou corpo com uma surpreendente facilidade, para quem estava acostumado
a um esforço sobrehumano nas primeiras horas de criação. Já tinha esboçado a figura central do Senhor, vestido de trajes brancos, radiante com uma nuvem de luz,
e começava a traçar as feições de Moisés e Elias.
Ao progredir com tamanha facilidade, experimentou esquisitos momentos de desconfiança, imaginando-se, em vez de projetar as suas próprias ideias, não estaria reproduzindo
inconscientemente uma compósita de primitivos pintores religiosos. Aplicadas em têmpera, as suas cores, usualmente tão duras, eram macias e lisas, suas formas pareciam
perturbadoramente convencionais. No entanto, contra essas dúvidas, crescia a aprovação da comunidade.
No começo, fora olhado com ansiedade, talvez até com desconfiança. Mas logo isso deu lugar a uma franca admiração. Às vezes, ao voltar-se no andaime para limpar
os pincéis, observava nos olhos de algum noviço que tinha vindo ostensivamente para rezar, mas na verdade para incorrer no pecado da distração, um olhar de perfeito
transe. Aquilo não era suficientemente tranquilizador? E, afinal de contas, ele não se comprometera a agradar?
O afresco, ocupando todo o espaço acima dos retábulos, ficou terminado em três semanas, e quando o andaime foi retirado, toda a comunidade reunida olhava-o com aclamação.
- Meu filho - disse o Prior a Stephen - agora sei que a sua vinda aqui foi providencial. Deu-nos um memento da sua estada que durará muito além da existência de
todos nós. Agora somos nós quem lhe devemos muito. - E continuou: - Amanhã celebraremos a Missa Solene para consagrar a sua obra. Embora não seja membro da nossa
fé, espero que nos agrade com a sua presença.
Na manhã seguinte, o altar estava enfeitado de flores, chamejante de velas. O Superior, em paramentos brancos, assistido por Dom Arthaud, cantou a Missa, enquanto
o coro entoava as respostas. Para Stephen, sentado na galeria, a pintura, brilhando à luz dos círios, tornada mística por uma nuvem de incenso, parecia uma esplêndida
realização. Nunca antes tivera tamanho sucesso.
Um repasto especial foi servido após a cerimónia, com um vinho da região de tal vigor que Stephen deu um passeio à aldeia para clarear a cabeça.
À tarde, quando voltava, Dom Arthaud o recebeu à porta com uma curiosa expressão.
- Há um visitante que deseja vê-lo. Um cavalheiro que diz ter vindo para levá-lo de volta a Paris.
Stephen entrou no seu quarto. Lá, reclinado na cama, usando chapéu e paletó, e soprando furiosamente no seu cachimbo, estava Peyrat. Pulou imediatamente quando Stephen
entrou e beijou-o em ambas as faces.
- Que é que andou fazendo? Não uma, mas uma dúzia de vezes procurei alcançá-lo. Agora, por casualidade, consegui o seu endereço na Rue Chancel. Por que está enterrado
aqui?
- Estive pintando - sorriu Stephen, ainda vibrando com a inesperada presença de Peyrat.
- Sorte ingrata - disse Peyrat, com fingida braveza. - Enquanto eu esperava, me arrastaram para a igreja. Que coisa terrível essa que você fez, cher ami. Oh, que
miserável cópia de del Sarto. Que terrível refundição de Luini. Embora eles gostem e vão se ajoelhar diante daquela pintura durante séculos, é indesculpavelmente
chocante, e para você, especialmente neste momento, uma desgraça.
- Por que neste momento? - perguntou Stephen, um tanto desconcertado.
- Por causa do anúncio feito no mês passado, e que me fez caçá-lo por toda a França.
- Que diabo está querendo dizer?
- Um anúncio - continuou Peyrat imperturbável, rolando as palavras
na língua como se gostasse do seu sabor - que lhe colocava uma medalha no peito, 1.500 francos no bolso e ainda nos permitirá, espero, fazer uma viagem juntos à
Espanha.
Subitamente atirou os braços em torno de Stephen e mais uma vez o abraçou.
- Não se importe com a sua doença, ou aquele medonho Moisés e Elias. A sua Circe ganhou o Prix de Luxembourg.


CONTINUA

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

DOVER, NA CHUVA, era uma triste porta dos fundos para fugir da Inglaterra. Quando o navio de carreira deixou o porto sujo, as ruas enlameadas, os edifícios amarelos
da encosta, os rochedos de um branco encardido, tudo mergulhou igualmente num dilúvio cinzento.
Na terceira classe, o espaço limitado estava abarrotado de passageiros, e Stephen, deixando aquele ar pesado de umidade e ruidosa camaradagem, voltou para o convés
molhado e atravancado de cabos. Ficou solitário na popa, abrigando-se, o melhor que podia, atrás da lona que cobria um guincho, com os olhos na costa amorfa, os
pensamentos tão equilibrados entre a amargura e a tristeza que fixavam nele uma atitude de completa imobilidade.
Dali a pouco foi sentar-se num braço do guincho, indiferente ao balanço do navio, ao vento e aos esguichos que assobiavam junto daquela ligeira proteção; tirou do
bolso o seu bloco de esboços. Era um movimento reflexo, um grito do coração. Contudo, uma vez que o seu lápis começou a andar pelas páginas agitadas na beira pela
ventania, perdeu-se, desenhando, com grande rapidez, fases do mar agitado, ondas estranhas e pressagas, a que ele insuflava uma qualidade de vida, vendo nos seus
contornos rotos, no laço intrincado das suas cristas, selvagens rostos humanos, cabeças atormentadas e torsos retorcidos, figuras de homens e de monstros, de cabelos
escorrendo e membros contraídos, tudo perdido e arrastado pela invencível força do mar.
Foi talvez uma espécie de loucura, uma vertigem, que o deixou amolecido e exausto. Tiritava quando o vapor diminuiu a sua marcha arfante para entrar cautelosamente
nos braços do quebra-mar de Calis, e, consciente do seu rosto gotejante e roupas ensopadas, guardou o bloco no bolso com um ar furtivo. Cabos eram lançados, pranchas
de desembarque empurradas, a douane era rapidamente passada. Mas algum ligeiro acidente na linha tinha atrasado o trem para Paris, que ainda não chegara.
Stephen tiritava novamente, batendo os pés sobre a plataforma a fim de restabelecer a circulação. Embora a chuva fosse menos impiedosa em terra, o vento, enfiando-se
pela curva dos trilhos, parecia mais violento, mais cortante. A maioria dos seus companheiros de viagem estava aproveitando o atraso para um almoço à la carte no
restaurante da estação. Mas, diante de um
futuro de completa incerteza, um exame mais detido do estado das suas finanças absteve-se desse luxo. Tinha, para ser preciso, 5 libras e 6 xelins, tudo que lhe
restava das 10 libras que trazia consigo quando chegara a Stillwater.
Por fim, o trem entrou resfolegando; após várias conferências e muita gesticulação, apitos agudos, jatos de vapor, e as notas melodiosas de uma trompa, a marcha
foi invertida e o vapor esguichou novamente. Para Stephen, encolhido no canto de um compartimento ventoso, foi uma viagem miserável. Tiritava frequentemente, sabia
que tinha apanhado um resfriado, e acusava-se de ter sido um tolo.
Na Gare du Nord hesitou, e então, aceitando o risco, e não sem uma certa recordação melancólica da sua prévia entrada na cidade de coração leve, tomou o metro para
a Rue Gastei. No seu presente estado de espírito ansiava, acima de tudo, pela simplicidade e firme amizade de Peyrat. Mas o novo inquilino do apartamento, incompreensivo
e desconfiado, apareceu na porta, respondendo que não havia cartas nem recados... acreditava que Monsieur Peyrat estaria no Puy de Dome, em Auvergne, até o fim do
ano, e além disso não sabia mais nada.
Os passos seguintes de Stephen levaram-no ao estúdio de Glyn. Estava fechado. Do mesmo modo, o pavilhão dos Lamberts, com as janelas fechadas, foi uma nova decepção.
Stephen voltou para o alojamento de Chester. Embora não tivesse acertado exatamente o montante da dívida, sabia que Harry, com seus repetidos pedidos de empréstimo,
devia-lhe pelo menos umas 30 libras, soma que agora adquiria uma importância muito maior do que antes. Mas também aquele quarto estava fechado, aliás, trancado com
um cadeado. Todavia, ao descer as escadas, foi reconhecido pelo concierge e obteve dele o atual endereço de Chester, enviado num cartão-postal recebido dois dias
antes: Hotel du Lion d'Or, Netiers, Normandia.
Animado, Stephen entrou no primeiro bureau de poste e passou um telegrama, explicando a sua situação e pedindo que Chester lhe mandasse por cheque telegráfico, se
não todo, ao menos parte do dinheiro que lhe devia, aos cuidados de Adolf Bisque na Rue Castel. Quando a moça de blusa de alpaca atrás do guichê terminou, a tinta,
uma soma complicada, um processo que a ocupou durante alguns minutos, Stephen pagou e dirigiu-se para o DuvaPs, onde pediu chocolate quente e um brioche.
Depois dessa ligeira refeição, como a chuva caísse mais forte e as sarjetas transbordassem, ele decidiu encontrar, o mais depressa possível, um alojamento para a
noite. Por causa da sua conveniência, e não na esperança de encontrar conforto, ficou num hotel barato das proximidades, a Pension de
l'Ouest, diante da qual passara tantas vezes a caminho do estúdio de Glyn.
Alcançado por escadas sem passadeira, seu quarto não era mais que um estreito, cubículo, mas era seco, e a cama, embora os lençóis estivessem encardidos,
tinha uma ampla provisão de cobertores estampados de azul - aqueles cobertores grosseiros usados pelos recrutas durante as manobras do Exército e vendidos depois
pelos contratantes do governo. Após alguns tremores iniciais, aqueceu-se e dormiu pesadamente. Na realidade, ao acordar na manhã seguinte sentia-se melhor, embora
não se surpreendesse com a tosse, agora piorando. Tomou café com um pãozinho, outra vez no DuvaTs, às 11 horas, e dirigiu-se para a loja de Monsieur Bisque.
Ali o esperava uma agradável surpresa. O pasteleiro recebeu-o cordialmente, com a sua cara de lua cheia enrugada de sorrisos, e, tendo repreendido Stephen por não
o ter visitado no dia anterior, apresentou com modos de prestidigitador o telegrama de resposta de Chester. Este, embora não trouxesse dinheiro, era de natureza
a animar o seu destinatário.
DELICIADO SEU TELEGRAMA. VENHA PARA CÁ. TEMPO E HOTEL EXCELENTES. BELO LUGAR PARA PINTAR. ABRAÇOS
HARRY
A perspectiva aberta por aquele amistoso convite, a ideia de estar com uma paleta e pincéis, diante de um cavalete, na Normandia, fazia brilhar os olhos de Stephen.
Bisque tinha um guia que, embora de páginas esfarrapadas e um tanto antigas, parecia provar que o rapide Granville, o trem mais ou menos direto, já tinha partido
- às 10 horas, para ser exato, daquela manhã. Stephen decidiu adiar a viagem até o dia seguinte. Passou à tarde na loja de Napoleon Campo, onde, além de receber
o cavalete e equipamento lá depositados, comprou novos tubos de tinta e algumas telas. Pagou a metade, 50 francos, e prometeu mandar o restante quando chegasse a
Netiers.
A manhã seguinte trouxe um límpido céu azul, e Stephen saiu com os seus pertences para a estação de Montparnasse. O rapide na Plataforma 2 não estava muito cheio
e ele conseguiu, sem dificuldade, um compartimento vazio na parte dianteira do vagão. Ao partirem, não podia afirmar que se sentia bem, pois experimentava uma sensação
de abafamento, com uma pontada no lado direito. Apesar disso, depois que o trem furou o seu caminho através dos túneis e cortes murados e escuros que davam saída
da cidade, perdeu a lassidão, olhando a paisagem em desfilada: vastos campos de restolho com poças de água da chuva, flanqueados por longas fileiras de olmos - sentinelas
intermináveis; uma agulha distante, delgada, graciosa; parelhas de grandes cavalos, com corvos assistentes, arrastando o arado; velhas construções rurais, de telhas
ocres, as empenas salpicadas de anúncios - Byrrh, Cinzano, Dubonnet.
Ao meio-dia, comeu uma maçã e uma barra de chocolate. Gradualmente, a configuração do terreno havia se alterado. Lutando contra a sonolência, ele
notou as azinhagas ondulantes e pequenos pomares cercados, um bando de gansos em lenta procissão para um lago lodoso, seguido de uma menina de pernas nuas com uma
vara de aveleira, um renque de salgueiros podados cercemente, e depois uma dama idosa, de coifa branca, tangendo uma vaca pela relva da beira da estrada, parando
de quando em vez para tricotar. Até a natureza da bebida tinha mudado. Attendez, exclamavam os anúncios, buvez le cidre moissoné!
Cerca de três horas, o trem alcançou o topo de um longo aclive e entrou na pequena estação de Netiers. Apressadamente, Stephen reuniu as suas coisas e pulou do alto
estribo. Uma rápida inspeção mostrou que Harry não estava lá para recebê-lo. Raciocinando que Chester podia não ter calculado bem a hora da sua chegada, Stephen
começou a andar para a cidade, que se podia avistar mais abaixo da colina, coisa de um quilómetro. A expectativa, ao se aproximar, aumentava a sua ansiedade - passou
um muro valado com fortificações, entrou nas ruas tortuosas, de paralelepípedos, tão estreitos que as casas de pedra cinzenta, muito inclinadas, pareciam estar acima
da sua cabeça. E então, no centro da praça do mercado, em frente à fachada de terracota desbotada do antigo hotel de ville, discerniu a tabuleta dourada do Lion
d'Or.
A estalagem era maciça, solidamente confortável, de alta classe. Stephen percebeu isso de relance, ao se dirigir para o balcão de recepção situado no vão de uma
escada de carvalho.
- Sim, monsieur!
- Meu nome é Desmonde. Tenha a bondade de dizer ao Sr. Chester que acabo de chegar.
Uma pausa.
- Está perguntando por Monsieur Chester?
- Sim. Ele me espera.
O empregado, um rapaz de ombros altos e cabeça rapada, estudou Stephen por um momento e depois disse:
- Tenha a bondade de aguardar, cavalheiro.
Desapareceu por trás da cortina que fechava o fundo do bureau; então, após um breve intervalo, voltou com um homem mais velho, uma figura sólida, de pescoço grosso,
vestido com a roupa listrada da profissão.
- O senhor está procurando Monsieur Chester Harry? O tom, embora cortês, tinha uma qualidade intimidante.
- Sim, por quê? Sou amigo dele. Ele não está hospedado aqui? Uma pausa gélida.
- Ele estava residindo aqui, monsieur. Até ontem à tarde, quando apresentamos a sua conta. Desde esse momento não vimos mais o seu famoso Monsieur Chester.
Stephen olhou para o proprietário, estupefato. Pois não viera por convite expresso de Harry, gastando o seu último soldo na passagem de trem? E de súbito lhe veio
uma ideia, contundente como um golpe. Chester, mais uma vez em apuros financeiros, convidara-o a vir somente na esperança de pedir-lhe mais uma quantia emprestada.
- Se monsieur é realmente Monsieur Desmonde - o sarcasmo era cortante - eis aqui uma carta que seu amigo lhe deixou.
MEU VELHO,
Eles podem não lhe entregar esta. Se entregarem, saberá que, com muito pesar, fui obrigado, encore, a cair fora. Pensei que podíamos resolver o caso juntos - baseados
no princípio de que duas cabeças pensam melhor do que uma - mas o departamento de contabilidade daqui estava um passo à minha frente. Provavelmente vou filar minha
viagem para o Sul, ficar um tempo em Nice, tentar a sorte nas mesas: De qualquer modo, eu com certeza o verei mais cedo ou mais tarde... Sinto muitíssimo e todas
essas coisas... mas quando o diabo aperta...
Seu,
HARRY
P.S. Nenhuma mulher decente na cidade. Mas não deixe de provar a sidra local. É excelente.
Stephen amarrotou o bilhete, escrito a lápis e às pressas, entre os dedos tensos. Sabia que Chester não merecia confiança, mas agora, por baixo do encanto, da alegria,
da amizade efusiva, sentia o âmago do seu total egoísmo.
O estalajadeiro e seu empregado olhavam para ele por detrás do balcão com manifesto desprezo.
- Naturalmente monsieur compreende que não temos acomodações para o senhor nesta casa.
- Compreendo perfeitamente - disse Stephen, girando nos calcanhares e saindo para a rua.


CAPÍTULO II

ALI, SEM DINHEIRO E SOZINHO, parado na praça do mercado de uma desconhecida cidade francesa, Stephen avaliava inquietamente a sua situação. Nunca antes estivera
sem dinheiro. Sua pensão, como o amanhecer, era algo
que tinha como certo, a consequência natural da sua posição na sociedade, do seu próprio direito de nascimento. Agora, com um amargo esgar nos lábios, percebia como
era poderosa a arma que seu pai tinha usado. No entanto, a sua renitência nata mantinha-lhe o prumo. Saiu imediatamente à procura de algum abrigo.
Isso, numa cidade sempre cheia de turistas, foi menos difícil do que ele temia, e antes do entardecer ele estava instalado num quartinho do alto, no fundo de um
pátio da Rue de la Cathédrale. Ao entregar a bagagem para a senhoria, uma velha digna, que não lhe pediu pagamento adiantado por ser de apenas 12 francos por semana
o aluguel, resolveu que, houvesse o que houvesse, estaria em condições de pagar-lhe antes que se passassem muitas horas. Tinha sabedoria suficiente para reconhecer
que, naquela localidade, não poderia conseguir uma subsistência imediata com sua arte. Sim, a sua educação, o seu curso universitário e grau de bacharel deviam certamente
capacitá-lo para alguma modesta posição na qual pudesse ganhar dinheiro suficiente para se manter em pé. E até mesmo o bastante para pagar a conta de Chester ainda
lhe doía a farpa final lançada pelo proprietário da estalagem - e voltar a Paris, encontrar-se lá com Peyrat, tendo uma boa quantia, antes do inverno. Se ao menos
estivesse menos indisposto! Aquela tosse, que desde a travessia do Canal lhe abalava o peito, era um grande incómodo. Mas um ferrenho desejo de experimentar-se levou-o
novamente ao centro da cidade.
Lá chegando, fez um exame perspectivo do logradouro principal, a Rue de la Republique. As lojas, embora pequenas, tinham, em sua maioria, um aspecto de sólida prosperidade
associado a uma ativa região agrícola. Pás, garfos, foices, baldes de zinco, grades de dentes vermelhos, tudo isso e mais estava exposto nas casas de ferragem; havia
guloseimas também - deliciosos petits fours e almôndegas doces, arranjados como buquês de noiva, enfeitavam a vitrine de uma pâtisserie, ao passo que na leiteria
da esquina se via um monte amarelo de manteiga da Normandia, ladeado por dois jarros de leite cheios até a borda.
Na frente de uma papelaria, viu uma caixa de vidro com alguns anúncios e avisos escritos à mão. Leu-os cuidadosamente e depois afastou-se. Ele não podia afinar pianos
nem remendar cadeiras de palhinha, não precisava da metade de uma vila à beira dos rochedos litorâneos de Granville. Mais abaixo da rua chegou à redação de um jornal
semanal, Courier de Netiers. Lá dentro, o número em circulação podia ser lido. Mas as suas magras colunas, devotadas principalmente às fases da lua, venda de gado
e cal, cobertura de vacas e éguas, horário das marés no Mont St. Michel, nada lhe ofereciam.
E agora? Era evidente que precisava de conselho. Obedecendo a um impulso, entrou na mairie e, escolhendo um funcionário de ar simpático, sondou-o discretamente sobre
as possibilidades de emprego na cidade. O jovem,
embora surpreso com semelhante indagação, mostrou-se inteligente e bem-intencionado. Pensou muito, e depois abanou lentamente a cabeça:
- É muito difícil... numa comunidade pequena como esta, as pessoas - sorriu, em desaprovação, ajeitou os punhos de papel - ... não são amáveis com estrangeiros.
Por mais uma hora, Stephen palmilhou a cidade sem sucesso. Quando caiu a noite, voltou, cansado e desanimado, ao seu alojamento. Revistando os bolsos, contou a soma
dos seus recursos: 1 franco e 50 soldos. À vista daquelas minguadas moedas na palma da sua mão, sentiu uma onda de orgulho. Não podia, não devia render-se.
No dia seguinte, na esperança de achar um trabalho manual, deu uma volta, a pé, pelas granjas das redondezas. Ao todo, devia ter andado uma distância de 20 quilómetros.
E em vão. Não havia escassez de mão-de-obra agrícola. Em vários lugares foi tomado por um vagabundo, e soltaram os cães contra ele. Um camponês caridoso, de garfo
em punho, fazendo a provisão anual de feno, pareceu hesitar, comovido talvez pela intensidade do pedido de Stephen, mas no fim prevaleceu a sólida cabeça normanda:
- Você não é muito forte, mon petit, pequeno... oh, muito pequeno. Mas, espere. - Chamou para a cozinha. - Jeanne, traga alguma coisa de comer para este rapaz.
Uma bonita mulher, de braços nus, vermelhos, saiu da porta dos fundos com o barulho dos seus tamancos. Dali a pouco, tendo examinado Stephen, trouxe-lhe um pedação
de torta de carne e uma caneca de sidra. Enquanto ele comia esse repasto, sentado num banquinho de ordenhar, na varanda, o granjeiro e a mulher, observando juntos,
discutiam em voz baixa, enquanto um meninozinho de guarda-pó preto espiava-o curiosamente por trás das saias da mSe. Stephen estava hirto de vergonha. Oh, meu Deus,
gemia ele consigo, sou exatamente como alguém de uma gravura de Cotman... cheguei realmente a isto! Mas a torta era boa, com um molho forte e gostoso, e a bebida
ácida lhe trouxe um novo ânimo para caminhar de volta a Netiers.
Escurecia quando chegou à Rue de la Cathédrale. E agora, embora mantido o ânimo muito bem durante todo o dia, um terrível abatimento o prostrava. A mortal estranheza
daquele quartinho apertado, cheirando a madeira velha, bolor e cânfora, estalando a cada passo que dava; a sensação de estar tão completamente só, enganado por Chester,
encurralado num futuro sem esperança; a suspeita, também, de que a sua senhoria começava a olhá-lo com dubiedade - tudo isso se acumulava para derrotá-lo. Sem querer,
atirou-se na cama e, voltando o rosto para a parede caiada, chorou como uma criança.
Esse acesso durou pouco, mas infelizmente tinha provocado a tosse. A noite inteira, ela o castigou severamente, desde que, na sua ansiedade para
não perturbar a casa, suprimia os espasmos e assim aumentava a sua frequência. Por fim, perto do amanhecer, com a cabeça embaixo das cobertas, caiu no sono.
Era tarde, quase 11 horas da manhã, quando acordou - primeiro para um breve momento de descansada alegria, depois para a sombria consciência da sua entalada. Levantou-se,
vestiu-se sem fazer a barba, e foi para a cidade. A agitação do espírito comunicava uma curiosa fraqueza às suas pernas. Estava andando sem rumo ou objetivo. Subitamente,
quando começava a atravessar pela segunda vez a praça do mercado, ouviu que alguém corria atrás dele. E então sentiu uma mão no ombro. Terrivelmente sobressaltado,
voltou-se. Era o funcionário da mairie.
- Desculpe-me, monsieur. - O moço interrompeu-se para respirar. Estive olhando o senhor durante toda a minha hora de almoço. Olhe, desde que foi embora andei fazendo
algumas perguntas para o senhor. E Madame Cruchot, que juntamente com o seu marido tem a sua épicerie ali - e apontou para o outro lado da rua - tem duas filhas
pequenas que ela quer que aprendam inglês. É possível que ela se agrade do senhor. Nesse caso, vale a pena tentar.
- Muito obrigado - gaguejou Stephen, emocionado. - Muitíssimo obrigado.
O jovem funcionário sorriu.
- Boa sorte. - Pronunciou as palavras entre os dentes, cuidadosamente, em inglês, e depois, como se satisfeito com sua proeza, apertou-lhe a mão, tirou o chapéu
e ficou observando-o atravessar apressadamente a rua.
A mercearia Cruchot, ocupando uma posição de destaque na praça, com duplas vitrines de vidro plano e uma brilhante tabuleta que dizia ALIMENTATION DE RENNES, dava
toda a indicação de ser um próspero estabelecimento, negociando com um grande e tentador sortimento de alimentos. Um constante fluxo de fregueses entrava e saía
pela porta, estreitada por presuntos pendurados, redes de limões, um cacho de banana e várias cestas de verduras escolhidas. Dentro, as prateleiras estavam cheias
dos generosos produtos da terra e do mar, com salsichas e fígado de ganso, sardinhas e enchovas, toucinho, azeite de oliva, queijo, frutas em conserva, conhaques
antigos também, vinhos e licores, café, especiarias, dobradinhas, pés de porco, e vidros e garrafas dispostos em pirâmides brilhantes no chão coberto de serragem.
Entrando, Stephen estacou menos por seu próprio nervosismo do que pelo barulho e movimento, gritos de pedidos, a movimentação de dois auxiliares de paletó branco:
uma moça normanda de ombros pesados e um homem coxo de olhar aborrecido.
Todavia, em pouco sentiu-se escolhido por uma voz de timbre penetrante.
- Que deseja, m'sieur?
Presidindo de uma mesinha, controlando o lufa-lufa, parecendo a dona pela amplidão do seu busto e ousadia do olho, uma mulher de cabelos amarelos, de uns 38 anos,
com a sua figura curva e bem coberta, pele lisa, orelhas rosadas suportando pesados brincos de ouro. Usava um vestido malva da última moda provinciana - com uma
aplicação de renda no decote - vários anéis e pulseiras, e um broche de camafeu.
- Perdoe-me - falou Stephen em voz baixa, aproximando-se. - Meu nome é Desmonde. Soube que a senhora talvez precise de um tutor inglês para as suas crianças.
A verificação de que ele não era um freguês afastara o sorriso maquinal dos lábios de Madame Cruchot; seus olhos apertaram-se na fria apreciação de alguém que, no
mercado, é capaz de avaliar, por um simples cabelo o peso e a qualidade de um porco cevado. Mas a palavra tutor, que ele por sorte tinha usado, lisonjeou-lhe a vaidade,
que predominava entre as muitas e fortes características que possuía, e que aliás era o verdadeiro motivo por trás da ideia de que as suas filhas deviam aprender
o idioma inglês. Também aquele jovem que tinha diante de si parecia simpático, "refinado" e tímido o bastante para lhe trazer algum problema.
- M'sieur pode me dizer quem é?
Muito francamente, Stephen lhe disse.
- Então m'sieur é estudante da universidade de Oxford. - Um lampejo iluminou o olho azul de porcelana de Madame Cruchot, mas no interesse da barganha foi rapidamente
suprimido. Duvidosa, encolheu os ombros. - Naturalmente, temos apenas a palavra de m'sieur quanto a isso.
- Asseguro-lhe que...
- Oh, la, la... estou disposta a confiar no senhor. Mas, naturalmente, considerando a idade das minhas filhinhas, exijo o mais alto padrão de conduta e moralidade.
- Naturalmente, madame...
- Então, quando... - interrompeu-se, com uma ordem aguda, suas palavras ressoando como uma pequena salva de artilharia: - Não, não, Marie, esses ovos não, estúpida,
já estão encomendados por Madame Oulard... e, Joseph, até quando preciso dizer que tire açúcar do saco aberto? Qual o salário que pede, m'sieur?
Stephen tratou de calcular rapidamente o menor estipêndio capaz de sustentá-lo.
- Digamos, com lições diárias, 30 francos por semana?
Com um gesto de consternação, Madame Cruchot ergueu as suas mãos gordas e cheias de anéis. Depois sorriu gentilmente, mostrando-lhe um dente de ouro que era como
uma bala.
- M'sieur está brincando.
- Não, realmente... - Empurrado e acotovelado pelo redemoinho de fregueses, Stephen ficou rubro. - Estou falando sério.
- Também somos gente honesta, Monsieur Crochet e eu, m'sieur, mas longe, oh, muito longe, de ser rica. - Feriu uma nota patética. - O máximo que meu marido me autoriza
a oferecer são 20 francos.
- Mas, madame... eu tenho que viver.
Madame Cruchot sacudiu o seu chinó amarelo tristemente.
- Nós também, m'sieur.
Stephen mordeu o lábio, com raiva e orgulho no peito. O aluguel semanal do seu quarto era de 12 francos. Como diabo poderia manter-se com os oito francos que lhe
restariam depois de pagar a sua senhoria? Não, por grande que fosse a sua necessidade, não poderia submeter-se a semelhante imposição. Deu meia-volta para retirar-se.
Mas Madame Cruchot, que não queria perdê-lo e que, no intervalo, tinha-o observado de soslaio da cabeça aos pés, deteve-o com um gesto delicado.
- Talvez... - Inclinou-se para diante, falando com um ar solícito. Talvez se servíssemos aqui o almoço para m'sieur, isso ajudasse um pouco a situação. Uma refeição
boa e substancial.
Apanhado desse modo, Stephen hesitou. Profundamente humilhado, não podia erguer os olhos.
- Muito bem... aceito - murmurou ele.
- Ótimo. Nosso negócio está fechado. Começará amanhã. Não esqueça que exigirei instrução da mais alta classe. E, sem dúvida, no futuro, m'sieur não esquecerá de
barbear-se.
Stephen inclinou a cabeça. Não podia falar. Contudo, a despeito da sua humilhação, por ignominiosa que fosse a sua situação, só podia experimentar uma sensação de
alívio. Com 20 francos e um almoço diário, estava salvo, ao menos por enquanto.
Ao sair da mercearia, ouviu a voz de Madame Cruchot proclamando em altos brados para as regiões do mundo:
- Marie-Louise, Victorine... Sua bondosa mamã acaba de contratar um tutor inglês.


CAPÍTULO III

AGORA, NA ABAFANTE MONOTONIA de uma cidadezinha provinciana, começava para Stephen uma estranha existência. Todas as manhãs, era acordado pelo sino da catedral,
que badalava três vezes, pesadamente, na Consagração das sete horas, afugentando as pombas, quebrando o silêncio eclesiástico da praça vazia. Uma vez vestido, descia
descuidadamente a escada - pelo menos podia sair de casa sem medo de encontrar a sua senhoria. Atravessando a praça para o Café des Ouvriers, que ficava a curta
distância do jardim de muros altos do convento, encontrava sempre as mesmas mulheres pias, vestidas de preto, e algumas freiras, aos pares, emergindo - flutuantes,
parecia, sobre as largas abas das suas toucas - da igreja. O café, assinalado por um ramo murcho na ombreira da porta, não era um lugar especialmente reputado, não
mais do que a cozinha de pedra de uma casa baixa mobiliada com uma mesa tosca e alguns bancos de madeira. Ali, por cinco soldos, tomava o desjejum habitual da casa:
uma xícara de café preto cheio de borra, lavado por um golinho de vinho branco num copo grosso com um dedo, uma espantosa combinação em seu poder restaurativo. Às
vezes havia um jornal da noite passada, Intelligence de Rennes, que o mantinha ocupado por meia hora. Podia conversar um pouco com Mie, a fille de comptoir de olhos
negros, quieta, que atendia o bar primitivo com discrição e que aparentemente tinha outras funções e obrigações, ou com outro cliente, talvez um mascate, um carregador
da estação, ou um entregador de carvão.
Pontualmente às 11 horas, apresentava-se na casa dos Cruchots, situada atrás da mercearia, e se dirigia a uma porta na parede lateral. Ali, na latada contígua a
uma pequena área fechada de relva, ou, nos dias de chuva, na sala abundantemente enfeitada a que Madame se referia como o "salon", Stephen dava sua atenção às menininhas
Cruchot; Victorine, de onze anos, e Marie-Louise, que tinha apenas nove.
Não eram, de um modo geral, crianças desagradáveis, um tanto estragadas por mimos, mas com toda atração da sua tenra idade. Às vezes, eram mesmo muito meigas à sua
maneira, especialmente a mais nova, uma coisinha bonita de cachos castanhos e faces de maçã". Stephen não as achou difícil de levar e logo ficou gostando delas.
Contudo, já os atributos herdados começavam
a se manifestar - sabiam o preço de tudo, calculavam como matemática, podiam recitar fluentemente aforismos morais sobre a virtude da economia. Cada uma tinha o
seu cofrezinho de metal, com a forma da Torre Eiffel, para depositarem as suas economias, e traziam a chave presa, com a medalha de um santo, a uma fita azul no
pescoço. Às vezes, repetiam, muito inocentemente, observações que tinham ouvido.
- Monsieur Stephen - ele insistia em que o chamassem pelo seu nome de batismo - mamã disse a papá que o senhor deve ser muito pobre.
- Bem, Victorine, devo confessar que ela estava certa.
- Mas papá disse que pelo menos o senhor não era um beberrão.
- bom... papá é meu amigo.
- Ah, sim, Monsieur Stephen. Porque ele também disse que, embora o senhor com certeza tenha feito alguma coisa errada na sua terra, sendo obrigado a fugir, não deve
ter sido um crime sério.
Stephen riu-se, um tanto secamente.
- Vamos... já é tempo de começarem a leitura.
Tão rápido tinha sido o progresso das suas ágeis inteligências, que ele acabara por trazer Alice no País das Maravilhas, e o interesse delas pela história tornava
possíveis até as palavras mais difíceis.
Embora, à maneira de um proprietário, ocasionalmente enfiasse a cabeça na porta, Monsieur Gruchot não vinha muito às lições. Era um homem de estatura média, com
modos inquietos, olhos cor de café, vivos, com os cantos injetados de amarelo, e um bigode preto, cheio, de pontas reviradas, que usava polainas e, dentro ou fora
de casa, exceto no sagrado recinto do "salon", um brilhante chapéu de palha reto. O seu lugar, naturalmente, era na loja, mas passava dois dias por semana fazendo
compras no mercado da vizinha cidade de Rennes, de onde, aliás, ele e sua mulher tinham vindo originalmente. Ligado a Madame Cruchot por uma ostensiva felicidade,
pelos dois lindos penhores da sua afeição, e acima de tudo pelo seu apaixonado desejo de ganho, Albert Cruchot tinha, contudo, em certos momentos, um certo ar, como
se as proporções físicas da sua esposa, seu riso agudo e voz penetrante fossem uma opressão maior do que um homem do seu porte pudesse razoavelmente aguentar. Ele
não encolhia exatamente, porém seus pés empolainados se moviam inquietos e a sua pupila café-au-lait bruxuleava num brilho de impaciência.
Na verdade, por trás do seu sorriso, dos seus modos amáveis e do brilho especioso do seu dente de ouro, Madame Cruchot era uma tirana. Todos os dias ela vinha verificar
"por si mesma" o andamento da lição, sentando-se rígida, numa postura de supervisão, os olhos sem compreensão mas alerta, indo de Stephen para as crianças, perturbando-as,
fazendo que cometessem erros.
- O senhor compreende, m'sieur... desejo que elas não só leiam mas falem coloquialmente... e recitem poesias... como fazemos em sociedade.
Atendendo às suas repetidas exigências, Stephen ensinou as crianças as duas primeiras estrofes de A uma Cotovia. Então, no dia indicado para mostrar o progresso
das suas pupilas, madame apareceu com três amigas íntimas, esposas de lojistas preeminentes, membros da haute bourgeoisie de Netiers, que se aboletaram expectantes
nas cadeiras douradas do salão.
Marie-Louise, escolhida para a primeira prova, foi colocada sozinha na falsa ilha de Aubusson.
- Salve, ó tu, espírito jovial... - começou ela; depois parou, olhou em torno e suprimiu um risinho.
- Comece de novo, Marie-Louise - disse Stephen bondosamente.
- Sabe, ó tu, espírito jovial... - Novamente a criança se interrompeu, piscou, torceu a cinta e olhou timidamente para a mãe.
- Continue - disse Madame Cruchot numa voz estranha. Marie-Louise lançou um olhar súplice para o seu professor. Um leve
suor começava surgir na testa de Stephen. Num tom de lisonja, que o desagradava, disse:
- Vamos, minha querida. Salve, ó tu, espírito jovial...
Um breve silêncio, durante o qual Madame Cruchot pareceu ter virado pedra: depois, sem aviso, levantou-se e deu um tapa na cara da menina. Imediatamente Marie-Louise
debulhou-se em pranto. No momento de consternação que se seguiu, olhares indignados foram lançados para Stephen, a criança soluçante, agora agarrada ao seio materno,
foi confortada com um bombom, e ouviu-se a voz de Mane gritando lá da loja:
- Venha depressa, madame... o fígado está chegando do matadouro. Na confusão que acompanhou a retirada de Madame Cruchot, Stephen ficou desamparado, prevendo com
sardónico fatalismo a possibilidade da sua demissão. Contudo, quando a mãe reapareceu, Marie-Louise correu através da sala, pegou a mão dele e despejou instantaneamente
a poesia, que recitou por inteiro, de um só fôlego. Victorine, para não ficar atrás, seguiu-a, por sua conta, com um perfeito desempenho.
Imediatamente o aspecto da reunião mudou, houve gritinhos de aclamação, sorrisos e acenos de cabeça foram dispensados a Stephen. Madame Cruchot resplandecia de perdoável
triunfo. Na verdade, depois de acompanhar as senhoras até a porta, voltou para Stephen com uma disposição de curiosa indulgência. Em vez da costumeira fina fatia
de presunto, deu-lhe no almoço um prato quente de carne ensopada, guarnecida de rabanetes e cebolas de Bordéus. Sentando-se diante da mesa da copa, observou:
- Afinal de contas, as coisas correram bem.
- Sim - disse Stephen sem levantar os olhos. - No começo, foi apenas o medo do palco.
Por um momento, ela continuou a vê-lo comer.
- Minhas amigas ficaram muito satisfeitas com o senhor - disse ela de repente. - Madame Oulard... a esposa do nosso primeiro pharmacien, uma senhora de certa posição
na cidade, embora naturalmente não possa pagar um tutor para as suas crianças, considera-o très sympathique... um perfeito cavalheiro.
- Sou muito grato por sua boa opinião.
- Acha que ela é uma mulher bonita?
- Deus do céu, não - disse Stephen com um ar ausente. - Eu mal a notei.
Madame Cruchot afagou as suas pastas de cabelo amarelo e, esticando o corpete, bateu nas suas firmes ancas com um gesto significativo.
- Deixe-me servir-lhe mais ensopado.
Nos dias que se seguiram, a qualidade e aliás a quantidade da refeição do meio-dia do tutor inglês melhoraram misteriosamente, e de várias outras maneiras a dona
da casa continuou a sua atitude diferente, e até se poderia dizer, o seu favor. Era uma mudança afortunada para Stephen, em quem a falta de alimentação adequada
e aquela tosse que não o deixava tinham causado considerável dano físico. Começou a sentir-se mais forte, novas correntes de vida movendo-se lentamente nas suas
veias, e um dia, de repente, sentiu, pela primeira vez desde que chegara a Netiers, um vivo desejo de pintar.
O impulso era irresistível, e ao deixar a mercearia apanhou um bloco de papel da Índia e alguns bastões de giz colorido. Quando a lição estava quase terminada, pôs
as duas crianças a ler no mesmo livro, juntas, na latada, e então, com o anseio de uma paixão contida, com linhas ligeiras, firmes e felizes, fez um pastel das suas
cabeças. A coisa foi feita rapidamente, tão veemente era a inspiração - em questão de menos de meia hora. Nunca tinha executado algo tão vívido, tão fresco na sua
composição impressionista. Até ele, que sempre subestimava o seu trabalho, estava comovido, sobressaltado, e excitado por aquela coisa adorável que tinha ganho vida,
misteriosamente, vinda do nada, ao seu toque.
Estava com a cabeça inclinada apontando para o fundo com um creiom amarelo, quando ouviu um som atrás dele: Madame Cruchot, por cima do seu ombro, estava olhando
para o pastel.
- Foi o senhor quem fez isso, m'sieur?
A sua expressão de pasmada incredulidade provocou-lhe um sorriso.
- Gosta?
Talvez ela não compreendesse plenamente a pintura. Mas via nela as suas duas crianças, belamente sugeridas em poucas linhas, umas poucas sombras de cor pura e brilhante.
Não entendia nada de arte. Contudo, o seu astuto instinto comercial tornou-a de imediato - ainda que subconscientemente, advertida de que ali estava algo raro e
delicado, algo da mais alta qualidade. Cobiçou-a
imediatamente. Mas além disso experimentou um singular afluxo dos seus sentimentos por aquele jovem inglês desconhecido, aquela emoção que começara quando, no dia
da recitação, o nevoeiro da sua indiferença se dissipara e ela o vira, através da tagarelice das suas amigas, como realmente era, um homem jovem muito atraente,
com a figura franzina e rosto sensível, os olhos negros e a delicada palidez. As menininhas ainda estavam soletrando no seu livro. Ela passou por trás do sofá e
sentou-se ao lado de Stephen.
- Não percebi - disse ela num cochicho confidencial - que m'sieur era um verdadeiro artista.
- Mas eu lhe disse quando a senhora me empregou.
A referência àquela primeira entrevista, quando ela o tratara tão rispidamente, provocou-lhe um rubor profundo até o seu queixo redondo e sólido e a coluna muscular
do pescoço.
- Ah - disse ela - não fiz muito caso do que me disse naquela ocasião. Eu não tinha o prazer de conhecer m'sieur como conheço agora... após estas semanas de agradável
intimidade, quando tem ensinado às minhas filhas, participado comigo da minha casa, e sempre com a polidez e reserva que só vem da verdadeira distinção. M'sieur
Stephen... - era a primeira vez que ela se dirigia a ele pelo nome, e o fazia com um frémito que endurecia a pele dos seus sólidos seios... - mesmo que não tivesse
me dito nada, eu saberia, por esta pintura, que o senhor tem grande talento.
Suas palavras de mau gosto eram embaraçosas, mas ele disse, gentilmente:
- Talvez queira ficar com ela...
A sugestão, com as suas implicações de compra, levou-a a recuar ligeiramente, mas só por um instante. Respondeu, séria:
- Quero sim, M'sieur Stephen, e vou falar a esse respeito com meu marido esta noite. Naturalmente, é possível que ele diga que o trabalho foi feito na hora da aula,
pelo que o senhor já estava pago, e nesse caso...
- Minha cara Madame Cruchot - interpôs apressadamente Stephen - a senhora absolutamente não me entendeu. Ofereço-lhe a pintura de presente.
Os olhos dela brilharam, não de cupidez agora, mas de uma emoção mais suave e confusa. Suprimiu um suspiro, olhou para ele com uma expressão terna, dizendo:
- Obrigada, M'sieur Stephen. Garanto-lhe que não se arrependerá.
A singularidade de estar sentada tão junto dele punha-lhe a cabeça a girar, uma sensação bem diferente da que lhe dava a proximidade de Cruchot. Mas as menininhas
começavam a exigir atenção, e ela ficou com medo de comprometer-se mais. Com um olhar de soslaio, rápido mas intenso, no qual tentava, em vão, mostrar o seu coração,
que batia rapidamente, levantou-se, disse-lhe au revoir, e voltou para a mercearia.


CAPÍTULO IV

APÓS SEMANAS DE aNIMADA APATIA, Stephen achou que podia pintar novamente. Era como despertar para uma nova vida na qual ele se descobria possuído de uma capacidade
maior, de uma visão mais penetrante do que antes. A cidadezinha, com seus insípidos habitantes, até aqui um deserto de esterilidade, transfigurou-se de repente numa
palpitante fonte de inspiração. Pintou o hotel de ville; a praça de armas do quartel; os telhados da cidade, vistos da sua janela, estranhamente pitorescos; uma
bela composição em cinza e negro das irmãs do convento voltando da missa na chuva, embaixo dos seus guarda-chuvas. As telas que tinha trazido de Napoleon Campo foram
uma a uma transformadas, pregadas no canto do quarto do sótão.
Havia cartas também, de Peyrat e Glyn, para alegrá-lo. Jerome propunha-se continuar em Puy de Dome no inverno e Glyn voltaria a Londres para uma breve estada no
outono. Ambos instavam para que fosse juntar-se a eles. Mas era claro que ele não iria. Estava pintando aqui, e feliz. Nesse estado de ressurreição, a lição diária
para as meninas Cruchot perdeu seu aspecto normal de necessidade. Na verdade, muitas vezes era penoso para Stephen pôr de lado os seus pincéis e correr à mercearia,
justamente quando a luz era a melhor. E embora, na linguagem do estabelecimento, ele continuasse tendo um valor, a sua mente não estava inteiramente no ensino, nem
após a aula era motivado por outro pensamento que não o ir-se dali.
Por causa da sua distração, continuou mais ou menos esquecido das mudanças, sempre crescentes, na atitude de Madame Cruchot para com ele. O vasto melhoramento na
cozinha era, sem dúvida, evidente, mas ele creditava-o à gratidão da proprietária pelo presente do quadro. A esta também atribuía os outros sinais de atenção que
lhe eram dispensados. Tornara-se agora costume de madame presidir o seu almoço e impor-lhe a sua hospitalidade. Na verdade, a sua dedicação foi além.
- M'sieur Stephen - ponderou ela um dia, com uma nota de solicitude. - estou preocupada com o seu conforto. O senhor pode não ser bem-visto em casa de Madame Clouet.
- Mas sou - contrariou ele. - Ela é uma alma muito decente.
- Mas é um quarto tão pobre.
- Conhece-o? - surpreendeu-se ele.
- Bem - disse ela enrubescendo. - Passei pela casa muitas vezes... no meu caminho para a igreja, naturalmente. Se ao menos alguém de gosto acrescentasse umas poucas
coisas... e as arranjasse, ficaria muito mais agradável para o senhor.
- Não, realmente - sorriu ele. - Agrada-me como está... despido e arejado.
- Mas não é bom para o senhor - insistiu ela. - Não posso deixar de notar que a sua tosse ainda o incomoda.
- Oh, não é nada... foi só esta manhã.
- Meu caro M'sieur Stephen. - Olhou-o com terna censura. - Não me contrarie em tudo. Se não posso melhorar o seu quarto, deixe-me ao menos restaurar a sua saúde.
No dia seguinte, para seu embaraço, um frasco de sirop pectoral do estabelecimento de Monsieur Oulard estava na mesa ao lado do seu prato, e madame, medindo uma
colherada, administrou-lhe a dose com ambas as mãos. Victorine e Marie-Louise divertiram-se vendo o seu professor ter que engolir remédio à força. E, no fim, Stephen
também riu.
Quando as crianças correram para brincar no jardim, Madame Cruchot, após um olhar demorado, soltou um suspiro:
- Naturalmente... uma coisa posso ver muito bem. O senhor encontrou na cidade alguma moça insignificante que o atrai.
- O quê! Em Netiers?
- Por que não? Não vai todos os dias ao Café des Ouvriers, e aquela Julie Grosette... eles por lá não têm grandes escrúpulos, posso lhe garantir...
Na verdade, ela conhecia todos os falatórios, mexericos e pequenas intrigas da cidadezinha. Mas o olhar atónito de Stephen era tamanho, que ela parou de falar. Forçou
um risinho.
- Não me olhe assim, meu amigo. Só estou pensando no seu bem-estar. E afinal de contas, embora eu seja uma boa mulher, também sou uma mulher do mundo. Então não
tem ninguém?
- Não - disse ele brevemente.
O olhar de expectativa, de ciúme, desapareceu dos seus olhos e foi substituído por um ar de coqueteria.
- Diga-me se gosta do meu vestido.
Colocou-se ligeiramente de quadril, exibindo o seu novo vestido, de um verde um tanto agressivo, com trancelins amarelos embaixo, que davam um efeito de juventude.
E o cabelo, recém-lavado, fora ondulado com um brilho mais metálico. Madame tinha apego aos vestidos, era uma cliente regular das galleries de Rennes, e ultimamente
exibia para Stephen as suas mais elaboradas toilettes, que, ai!, ele nunca parecia notar. Era essa indiferença que aumentava
os seus anseios, essa completa inconsciência de que ela era uma mulher, e talvez ele fosse assim com qualquer mulher, de uma inocência comparável à do jovem cura
que uma vez servira na paróquia e que ela admirava à distância, sonhando com ele todas as noites ao lado do merceeiro, que, com a carne aplacada pelo seu insensível
traseiro, roncava musicalmente. Mas isso não tinha sido nada, o mero sopro das asas de uma borboleta ao lado deste desejo que agora lhe corria nas veias, fazendo-a
arder de vontade de apertar Stephen nos braços e cobri-lo de beijos.
Ela estava cega para a comédia da sua situação: uma mulher de quase
40 anos, metida de corpo e alma nas atribulações de um negócio banal, de punhos fechados, uma tirana que passava a vida, de voz estrídula e metálica, pondo areia
no açúcar, água na sidra, extorquindo o último soldo das palmas renitentes de um camponês - ela, entre todas as mulheres, sendo amaciada, liquefeita por aquela devastadora
paixão por um rapazinho que talvez pudesse ter sido seu filho. Perdeu o interesse nas suas crianças, nas suas amigas, na busca da riqueza. O marido tornou-se-lhe
odioso. Os seus maneirismos burgueses, a maneira de comer, de soltar ventosidades baixinho após a sua cerveja, despertavam nela uma tempestade de ódio.
- Je te défends de passer le gaz en bas! - gritava ela, encolerizada.
E com tudo isso o seu próprio refinamento aumentava. Banhava-se com mais frequência, usava um perfume mais forte, chupava pastilhas para perfumar o hálito, mudava
a rroupa branca mais seguidamente. Se não pudesse tê-lo, sentia que deixaria de viver.
Subitamente veio uma resposta às suas preces mudas, uma ideia de brilho surpreendente. Como é que ela não tinha pensado nisso antes? Quando Stephen entrou nesse
dia, ela o interceptou no corredor.
- Meu amigo - disse ela alegremente. - Tenho uma boa notícia para o senhor, em suma, uma incumbência. Monsieur Cruchot insiste em que o senhor deve pintar-me.
Desconcertado, Stephen olhou para ela em silêncio.
- Sim - acenou ela. - Cruchot está cheio de entusiasmo. Não falou em outra coisa ontem à noite... De corpo inteiro... a óleo.
- Mas, madame. - Stephen franziu o cenho hesitante, procurando uma desculpa. - Eu... eu não pinto retratos... estou trabalhando em outro tema...
Ela sorriu para ele tranquilizadoramente.
- Não se preocupe, mon petit, farei com que seja pago. Na terça-feira, então, começamos. Está combinado.
Antes que ele pudesse terminar, ela bateu-lhe no braço, com um olhar arqueado, e saiu depressa da sala.
Terça-feira era meio feriado para os comerciantes. Como sempre, a loja
fechava ao meio-dia e tudo ficava tranquilo. Contudo, no momento em que entrou, Stephen sentiu, nos postigos fechados, uma calma sobrenatural. Madame Cruchot recebeu-o
na porta.
- Nada de lição hoje - anunciou ela efusivamente. - As meninas foram para o campo com Marie.
Ao admiti-lo na loja, explicou que a empregada fazia uma visita por mês aos seus pais em St. Vallé, e que, às vezes, como grande favor, ela lhe permitia que levasse
as crianças.
- E naturalmente - acrescentou sem cerimónia - meu marido está em Rennes, no mercado. Não seremos perturbados.
Novamente o silêncio incomum perturbou-o; nenhum rumor na adega, onde Joseph, o auxiliar, passava duas horas cuidando do estoque. Na casa, a não ser eles, não havia
ninguém. Mas foi a mesa, na sala de almoço, posta para dois, com toalha engomada e os melhores talheres, adornada com um vaso de rosas vermelhas, que o pôs em guarda.
- Se não se incomoda, almoçaremos juntos. Será muito mais conveniente.
Falando voluvelmente, naquela mesma maneira descuidada, trouxe da copa um poulet de Bresse assado, com cogumelos e salada, um paté de Estrasburgo, pêssegos em calda,
e uma garrafa de champanhe. Somente depois de abarrotar o seu prato, permitiu-se olhar para ele.
- Estamos bem aconchegados aqui. Não é agradável almoçarmos tête-à-tête? Sabe, deve comer antes de trabalhar. - Lançou-lhe um olhar pudico. Deixe-me servir-rlhe
o champanhe. É o melhor que vendemos. Cinco francos a garrafa.
Ele sentia-se confuso, desconcertado e inquieto. Mas no seu estado empobrecido, tinha para com a comida uma espécie de oportunismo. Comeu o que foi posto diante
dele, certo de que não estava em posição de recusar, mas foi se tornando cada vez mais consciente daqueles olhares lânguidos que pousavam nele. Do seu busto também,
que subia com esforço cada vez que ela respirava com esforço, fazendo os seios pularem e o queixo afundar no pescoço, parecendo aproximar-se mais dele a cada respiração.
Ao contrário do seu costume habitual, ela não estava comendo, servindo-se, com um ar de refinamento, apenas de uma asa de frango, e agora já partindo para o segundo
copo de vinho. Seus olhinhos redondos brilhavam como bolinhas de gude. Sentia um forte impulso para estender o braço por sobre a mesa e apertar-lhe a mão. Ele nunca
adivinharia que delicados favores ela estava preparada para lhe oferecer? Quanto menos ele entendia, mais a seduzia.
- Meu amigo - exclamou ela - não pode fazer uma ideia do que tem sido a minha vida nestes últimos 15 anos aqui em Netiers.
- Infelizmente não a conheço há tanto tempo.
- Não - refletiu ela, e numa voz sumida: - Contudo, devo ao senhor o fato de ter descoberto o vazio da minha existência.
- Isso seria um mísero retorno, madame... se fosse verdade.
- É verdade. - Como ele nada dissesse, ela moveu a cabeça enfaticamente. - Sim, ao senhor, meu amigo, que me abriu os olhos para novos horizontes, com os quais antes
eu nem sonhava. Monsieur Cruchot, embora sem excessiva ternura ou delicadeza, é um homem digno. E naturalmente eu sou uma mulher virtuosa. Mas há momentos em que
a solidão me invade o coração, quando tenho necessidade de um confidente. Ah, meu amigo - suspirou ela
- quando o coração pede, quem é que pode negar? É errado procurar a realização... uma vez que seja discreta?
Sentado em silêncio, constrangido, uma rude explicação para aquele comportamento atravessou-lhe de fato o espíriro. Mas despediu-a como absurda. Contudo, sentia-se
obrigado a começar o trabalho sem demora e executá-lo o mais depressa possível. Empurrou o prato.
- E agora, madame, se lhe for agradável, podemos começar. Pensei que seria melhor fazer um esboço preliminar. A senhora posará para mim? No salão?
Ela olhou para ele e tomou um fôlego convulsivo.
- Não - replicou numa voz indistinta. - Lá em cima a luz é melhor. Levantou-se da mesa e dirigiu-se para a porta. - Eu me apronto logo. Termine o seu vinho. E depois
suba.
Ele nunca tinha estado antes no andar de cima. Após esperar cinco minutos, encaminhou-se para a escada. Estava frouxamente iluminada, e os degraus, cobertos de tapete
fino, estalavam aos seus pés. O cheiro dos queijos, postos a amadurecer no armário do corredor encheu o ar. Ao chegar à porta, encontrou-a aberta. Imaginou que dava
acesso à sala de estar, mas antes que pudesse bater, ela o chamou:
- Entre, mon ami.
Ele entrou.
Madame Cruchot estava junto à cama dupla, pedindo a sua aprovação. Tinha tirado o vestido e usava um penhoar, que, numa pose vulgar, com uma das mãos no quadril,
ela mantinha meio aberto, revelando os calções listrados, com um babado de renda pesada, que caía abaixo dos seus joelhos grossos, e uma camisola cor-de-rosa umedecida
por uma mancha de perfume que acabara de pôr, enrugada pelo espartilho.
Um suor frio inundou Stephen. Suas pupilas ardiam com cada detalhe do ostentoso mas desmazelado dormitório, o tapete ornado e as cortinas com colgadura, a cómoda
manchada, o utensílio de louça embaixo da cama, e até a camisa de dormir de Cruchot enfiada às pressas embaixo de um travesseiro. Empalideceu. Interpretando mal
os seus olhos dilatados, ela agitou a cabeça,
fingindo tremer, e então, com uma terrível coqueteria, veio para ele. Era demais. Ele recuou com uma expressão de repulsa, furioso consigo por ter caído em tal situação,
que, embora participasse dos elementos da farsa era abjetamente humilhante. Sem uma palavra, voltou-se e precipitou-se para fora do quarto.
Nessa noite, sentado no seu sótão, ouviu fortes pancadas na porta da frente, seguidas de passos pesados na escada, e logo Monsieur Cruchot invadia o seu quarto.
O merceeiro, ainda vestindo o seu melhor terno, encontrava-se num estado de cólera fabricada.
- Como se atreve a fazer propostas amorosas a minha esposa... miserável insignificante... no instante em que dou as costas? Tenho a intenção de ir diretamente à
polícia. Sempre pensei que você era uma cobrinha inglesa. Mas morder a mão que o sustenta... uma mulher de coração puro... uma mãe! Que ultraje... uma atrocidade!
Jamais torne a mostrar o seu focinho no meu estabelecimento. Mas, além disso, deve haver uma compensação... por danos... no mínimo uma pintura.
Stephen sabia que Cruchot não gostava dele, no entanto era evidente que aquela exibição era instigada pela esposa, o marido era o mensageiro da mulher despeitada.
E com uma onda de amargura, como Cruchot continuasse a ameaçá-lo, Stephen arrancou uma página do bloco que estava na mesa dele e entregou-a ao merceeiro. Era um
esboço que ele acabara de fazer de memória de madame, obesa e afetada, de calções, no quarto de dormir.
Monsieur Cruchot, silenciado pelo gesto inesperado, olhou para o desenho fatal. Sua face tornou-se lívida. Ia rasgá-lo, mas, com a esperteza nativa, considerou-o
novamente, enrolou-o cuidadosamente e colocou-o dentro do chapéu. Depois, com um olhar furtivo, voltou-se e foi embora.


CAPÍTULO V

NA MANHÃ SEGUINTE, Stephen fez a sua mochila, amarrou as suas telas num canudo e, pondo a carga ao ombro, partiu de Netiers a pé. Seu objetivo era Fougères, situada
na route nacional, a 30 quilómetros de distância, e às cinco horas da tarde, após uma sufocante caminhada através dos campos, alcançou, a cidade, erguida em ambos
os lados de uma colina cortada pela estrada principal
para Paris. Lá, encontrou um restaurante barato que lhe pareceu um ponto de parada para caminhoneiros. O garçom, ao qual pediu ajuda, tinha certeza de que surgiria
uma oportunidade, e na verdade, justamente antes das nove, parou um camion da Compagnie Atlantique com um reboque e dele desceram dois homens de macacão e entraram
no bar. Poucos minutos depois, o garçom fez um sinal, houve apresentações, explicações transitórias e um geral aperto de mãos - tudo arranjado. As coisas de Stephen
foram colocadas embaixo do assento e eles partiram.
A noite chegou quente e serena. Rodaram através de aldeias adormecidas, cidades desertas onde brilhavam apenas umas poucas luzes, passando Vire, Argentan, Dreux.
O ar quente assobiava ao lado deles, os paralelepípedos estrondejando embaixo, a lua mergulhou por trás das alamedas nevoentas de álamos. Finalmente, quando rompeu
o amanhecer pálido e escorrido, atravessaram o Sena em Neully, entraram em Paris pela Pote Neully e pararam no mercado Les Halles. Lá, Stephen agradeceu aos seus
dois amigos e deixou-os.
A cidade, ainda não acordada de todo, tinha um ar cinzento e triste, mas quando atravessou a Ponte Nova, Stephen respirou fundamente o ar úmido. Estava de volta
a Paris. Depois de Netiers sentia-se mais forte, acima de tudo cheio de uma firme determinação de demonstrar o seu talento ao mundo.
Quando o mont-de-piété da Rue Madrigal abriu as portas, ele estava à espera do lado de fora. Entrando, empenhou o relógio - um presente do pai no dia do seu vigésimo
primeiro aniversário - pelo qual recebeu 180 francos. A seguir, após uma demorada procura, achou uma acomodação numa rua lateral próxima da Place St. Séverin, um
bairro frequentado por artistas como último recurso. Era um quarteirão pobre e um quarto ainda mais pobre, escassamente mobiliado e terrivelmente sujo - somente
10 francos por semana. Imediatamente se pôs ao trabalho e, pedindo emprestados uma vassoura e um balde, limpou o cómodo. Até lavou as paredes, a fim de que parecessem
recomendáveis, embora ainda permanecessem algumas manchas de insetos.
Passava das duas; sem pensar em comida, escolheu quatro das suas pinturas e dirigiu-se rapidamente pelos quais à loja de Napoleon Campo. O vendedor de tintas estava
sentado no seu caixote costumeiro atrás do balcão, balançando as pernas curtas, usando uma jaqueta azul de piloto e boné amarelo de tricô, com as orelhas gretadas
de fora, o rosto púrpura com a barba por fazer, mãos cruzadas sobre a barriga. Saudou Stephen amavelmente, como se o tivesse visto na véspera.
- Bem, Monsieur l'Abbé, que posso fazer pelo senhor?
- Antes de tudo, deixe-me liquidar o que lhe devo.
- Obrigado, o senhor é um homem honesto.
Recebeu os 50 francos que Stephen lhe deu e enfiou-os numa velha bolsa de couro.
- E agora, Monsieur Campo, quero uma tela bem larga, 2,00 x 0,80cm.
- Ora! Tem um trabalho tão grande assim em vista? Naturalmente pode pagar?
- Em dinheiro não, monsieur. Com estes.
- Endoideceu, Abbé? Deus do céu, meu porão está abarrotado de pinturas, refugo impróprio até para a lata de lixo, que recebi por ter um coração bondoso.
- Nem tudo é lixo, Campo. Você recebeu pinturas de Pissarro, e Boudin, e Degas.
- Você é um Degas, meu pequeno Abbé?
- Um dia, talvez.
- Meu Deus, é sempre o mesmo conto de fadas. Então a sua tela especialmente grande é para pendurar no Salon, com multidões diante dela. Terá fama e fortuna da noite
para o dia. Bah!
- Então aceite 20 francos por conta e estas pinturas como penhor do restante.
Os insignificantes olhinhos azuis de Napoleon procuraram o rosto pálido e sério diante dele. Tantos, tantos rostos tinham passado por sua loja nos últimos 30 anos,
que afogavam a sua memória. Era um homem fleumático, que não se comovia facilmente, e a idade o tinha tornado ainda mais impassível. Mas ocasionalmente, embora isso
fosse raro, havia nos modos e no aspecto de algum aspirante necessitado, como agora nas curiosas feições daquele inglesinho, um tipo de intensidade que o impressionava.
Hesitou, depois desceu do seu assento e começou a remexer nas prateleiras. Quando a tela que Stephen queria - um fino linho de grão fino - estava em cima do balcão,
houve uma pausa.
- Disse 20 francos?
- Sim, Monsieur Campo. Stephen contou as moedas.
Napoleon Campo tomou uma pitada de rapé, limpando meditativamente o nariz carnudo com o punho da sua jaqueta de piloto.
- E agora, naturalmente, vai passar fome.
Houve outra pausa. Subitamente Campo empurrou as moedas que estavam em cima do balcão.
- Devolva estas à sua caixa de coleta, Abbé. E me dê os seus miseráveis borrões.
Surpreso, Stephen entregou-lhe as suas pinturas. Sem ao menos uma olhada por alto, Napoleon colocou-as embaixo do balcão.
- Mas. . . não quer vê-las?... São... as melhores que eu fiz.
- Não julgo pinturas e sim gente - replicou Campo rispidamente. bom dia, monsieur. E boa sorte.
Stephen voltou ao seu quarto com a tela às três horas, e sem demora saiu imediatamente para a loja de bicicleta da Rue de Bièvre. Até agora as coisas tinham ido
bem, mas ao se aproximar do estabelecimento de Berthelot sentiu-se nervoso e inseguro de si mesmo, embora cheio de uma viva expectativa que fazia o seu coração bater
depressa. Muitas vezes, durante os últimos meses, tinha pensado em Emmy; a recordação daqueles momentos na escuridão do corredor estreito lhe vinha de tempos em
tempos sem aviso, ainda que com uma esquisita inconsistência.
Encontrou-a no pátio atrás da oficina, curvada sobre uma bicicleta niquelada, reforçada e pintada de vermelho e ouro. Vê-la outra vez deu-lhe uma sensação de calor
por dentro. Ela ergueu os olhos quando ele apareceu, aceitou a sua saudação sem surpresa e continuou a acertar os rolamentos. O pulso dele ainda estava absurdamente
desigual; contudo, desde as suas excursões juntos, sabia muito bem que ela abafava qualquer mostra de afeição.
- É uma linda máquina - disse ele após alguns momentos.
- É minha. Vou usá-la em breve. - Endireitou-se, atirou uma mecha de cabelo para trás. - Então está na cidade de novo?
- Desde esta manhã.
- Quer alugar uma?
Ele abanou a cabeça.
- Tenho coisas mais importantes para fazer.
Houve uma pausa. Ela sempre fora um tanto curiosa a respeito dele, e agora, como ele pretendia, o seu interesse tinha aumentado.
- Está metido em quê?
Ele respirou rápido.
- Já ouviu falar do Prix de Luxembourg, Emmy? É uma competição aberta a todos os que nunca estiveram no Salon. Pretendo arriscar. - Depois, como se ela se voltasse
indiferente, acrescentou: - Foi por isso que voltei. Quero que você pose para mim.
- Quer dizer... - interrompeu-se, olhando para ele - ... fazer o meu retrato?
- Isso mesmo. - Procurou falar num tom casual. - Você nunca foi pintada, foi?
- Não, apesar de que já devia ter sido há muito tempo, considerando quem sou.
- Então, esta é a sua oportunidade. Pode ser muito bom para você. Os melhores trabalhos serão exibidos no Orangerie. Você certamente seria reconhecida.
Ele podia ver que a sua vaidade estava lisonjeada, mas ela hesitava, olhando-o de cima a baixo como que calculando a sua capacidade.
- Você pode mesmo pintar? Quero dizer, poderia fazer um bom retrato?
- Pode contar comigo. Porei tudo o que tenho nessa pintura.
- Sim, suponho que poria, para o seu próprio bem. - Uma ideia lhe ocorreu. - Mas eu vou excursionar no mês que vem.
- Até lá há tempo suficiente. Se você vier todos os dias durante três semanas, posso pintar os detalhes depois que você for.
Novamente podia ver que ela debatia as possibilidades.
- Bem - disse ela, por fim, na sua maneira desgraciosa. - Não me importo. Acho que não vou perder nada.
Ele reprimiu uma exclamação de satisfação e alívio - não somente tinha querido pintá-la desde o começo, mas ela seria perfeita para o assunto que naquelas últimas
e poucas horas havia se apoderado dele. Rapidamente, deu-lhe o seu novo endereço, pediu-lhe que estivesse lá às 10 da manhã seguinte, usando o seu suéter preto e
a saia pregueada, e despediu-se antes que ela pudesse mudar de ideia.
Vagabundeando pela avenida, sentia-se excitado pelo que tinha realizado nesse dia. Só então se lembrou que não comia desde que dividira um sanduíche com o motorista
do camion na noite passada. A fome o atacou como um tapa. Mergulhou numa épicerie, onde comprou um pão comprido e uma tranche de salsicha. Não conseguia ficar quieto.
Andando pela rua escurecida diante do Jardin des Plantes, mordia alternadamente o pão estalante e o suculento patê embutido no seu branco envoltório de toucinho.
Como era gostoso. Sentia-se feliz, livre, e estranhamente exaltado.


CAPÍTULO VI

No DIA SEGUINTE, ele estava pronto e esperando impacientemente, a tela preparada, quando ela chegou, com uns 20 minutos de atraso.
- Aí está você! - exclamou ele. - Pensei que não viesse mais.
Ela não respondeu, mas da porta olhou em torno para o quartinho miserável com as pranchas nuas, uma cadeira de bambu quebrada e uma cama sobre roletes, afundada
no meio.
- Você está quebrado, não?
- Mais ou menos.
- Você tem topete. Trazer-me para um trou destes. Nem ao menos tem onde pendurar as minhas coisas.
Ele corou, mas forçou um sorriso.
- Admito que não seja o Elysée, mas nío é mau lugar para pintar. Dê-me uma chance e eu prometo que não se arrependerá.
Ela baixou o lábio numa espécie de careta, mas, com um dar de ombros, entrou e deixou que ele lhe tirasse o casaco e a postasse diante da janela.
A luz era boa, e, cheio de um súbito hausto de força, ele começou a tracejar a composição que agora o obcecava. Como as regras do concurso exigiam uma pintura "clássica",
seu tema seria alegórico, embora moderno na composição, e o assunto era: Circe e Seus Amantes. Poderia a sua absurda aventura com Madame Cruchot, trabalhando no
fundo do seu inconsciente, inflamar uma centelha que incendiasse essa estranha visão? Símbolos e imagens enchiam a tela da sua vista, cativando os sentidos. Na sua
imaginação, o prazer lutava com a virtude, e a luxúria se revelava na forma dos seios à espreita. Tudo ainda era uma miragem; no entanto, nos íntimos e misteriosos
recessos da sua alma, sentia a força para fazer aquele sonho existir.
Embora pudesse ter continuado o dia inteiro, ao meio-dia, advertido pela expressão da moça, Stephen lhe disse que talvez fosse o bastante para aquele dia. Imediatamente,
ela atravessou o quarto e examinou a tela, onde, usando carvão, ele já tinha feito seu esboço, de corpo inteiro e bem definido. As sobrancelhas ergueram-se e o olhar
amuado deixou o seu rosto quando ela se viu ocupando o centro da tela, de pernas separadas, mãos plantadas nos quadris, uma atitude que era toda sua. Não disse nada
enquanto permitia que ele a ajudasse a vestir o casaco, mas na porta se voltou e acenou a cabeça.
- À mesma hora, amanhã.
Durante a tarde, enquanto a luz durou, ele trabalhou no plano de fundo. E no dia seguinte, e nos que se seguiram, continuou, nem sempre de ânimo elevado, mas com
um propósito que o transportara através de momentânea melancolia para novos transes. Ao mesmo tempo, à medida que prosseguiam as sessões e ele entrava em contato
mais íntimo com Emmy, não mais podia ficar cego ao aprofundamento dos seus sentimentos por ela. A cada dia, terminada a sessão, dava consigo a sentir falta dela,
mais e mais. Na ausência de Peyrat e Glyn, estava sozinho. Mas isso explicaria o seu constante desejo pela companhia dela? Zangado consigo mesmo, lembrou o quanto
não gostara dela no seu primeiro encontro, e como ela às vezes o irritava com a sua grosseria e falta de educação. Quando ela estava de mau humor e ele tentava conversar
com ela, as suas respostas eram monossilábicas, e quando lhe dizia que descansasse, ela continuava a ignorá-lo, deitava-se de barriga na cama, acendia um Caporal
e mergulhava numa revista esportiva amarrotada. Percebeu que ela não tinha atenção para com ele e que somente a vaidade a trazia regularmente ao seu quarto. Uma
dúzia de vezes por dia ela ia observar a marcha do trabalho, e embora nunca o elogiasse, congratulava-se consigo mesma.
- Estou saindo bem, não é?
A lenda da Odisseia, da filha de Helios e da ninfa do oceano Perse, que ele explicou para ela, mexeu-lhe com a fantasia. A ideia de que tivesse o poder de transformar
seres humanos em formas animais provocou-lhe um sorriso.
- Bem feito, pra eles aprenderem.
Essa vulgaridade estremeceu-o. E contudo não era inibidora. Que haveria naquela moça para provocar o seu premente interesse? Procurou descobrir. Que sabia realmente
dela? Muito pouco, exceto que era comum, dura e insignificante - uma pequena nulidade, desinteligente, sem imaginação, completamente empedernida. Não sabia nada
de arte, não tinha interesse pelo seu trabalho, e se entediava quando ele falava. Mas a sua figura era esquisita - não estava reproduzindo cada linha sutil dos seus
membros fortes e esbeltos, o ventre chato e os seios firmes? - e acima de tudo ela era pequena. Embora pudesse admirar na tela a carne voluptuosa das mulheres de
Rubens, o seu gosto sempre fora por uma perfeição menos arredondada. E ela possuía essa nitidez física, uma figura que ele sempre comparava à Maja de Goya. Contudo,
ninguém poderia chamá-la de bela. Tinha um encanto travesso, mas os seus lábios eram finos, as narinas um tanto puxadas, e a sua expressão, quando não alerta e vigilante,
era quase carrancuda. Curioso é que, todas as suas imperfeições eram aparentes para ele. Contudo, não afetavam em nada aquela estranha emoção que, a despeito de
todos os seus esforços para suprimi-la, crescia nele.
Desejava estar ao lado dela e sentia-se inquieto e nervoso quando ela se retirava. Desordenadamente afetado pelos seus humores variáveis, respondia a eles de uma
maneira que o fazia desprezar a si mesmo. Em raras ocasiões, quando ela se mostrava agradável, o seu coração se animava. Às vezes, nessa disposição tagarela, ela
fazia perguntas sobre o único assunto que, entre todos os outros ligados a ele, parecia interessá-la.
- É verdade que os seus pais têm uma grande proprieté em Sussex, com muitos acres de boa terra?
- Não muitos - sorriu ele. - Se Glyn lhe disse isso, exagerou.
- E você ia ser um padrezinho... até que eles o tiraram do seminário.
- Você sabe que eu saí por minha vontade.
- Para viver num quarto como este? - perguntou, incrédula.
Encolheu os ombros, mas sem desprezo - lisonja que o gratificou. Essa afabilidade, embora não causasse alívio, era um agradável contraste com a mortificante indiferença
com que ela geralmente recebia as suas tentativas para agradá-la. E enquanto ela posava, indolente como um gato, ele começou a contar-lhe, sem parar de pintar, histórias
sobre Stillwater que achava pudesse entretê-la e diverti-la. Quando finalmente esgotou o repertório, ela refletiu por alguns momentos, e então declarou:
- É certo que vivi com, isto é - corrigiu-se - entre artistas toda a minha vida. Eu própria sou uma artista. Compreendo que se abandone alguma coisa pela arte, quando
isso não é nada. Mas você está numa categoria diferente. E abandonar a sua bonne proprieté, que você poderia herdar... - fez pausa e encolheu os ombros - ... foi
imbécile.
- Não completamente - sorriu ele - ou eu não a teria encontrado. Veio-lhe uma súbita onda de anseio. Deteve-se, não ousando olhar para
ela.
- Você não percebe, Emmy?... que estou gostando terrivelmente de você?
Ela riu-se brevemente e levantou um dedo avisador,
- Nada disso, Abbé. Isso não faz parte do nosso acordo.
Derrotado, retomou o trabalho. E por toda a noite sentiu a dor da rejeição. Se ao menos pudesse sair com ela à noite - ela, que apreciava diversões vulgares - achava
que podia conquistar sua simpatia. Mas sua falta de recursos o impedia. Vivia com pouco mais de meio franco por dia, subsistindo com um pão ou uma maçã até às seis
horas, quando tomava sua solitária refeição no café mais barato das redondezas.
Certa tarde, quando suas sessões de pose já estavam terminando, ela chegou, mais atrasada do que de costume. Aparentava ótimo humor. Usava um fichu amarelo novo
com uma curta jaqueta vermelha ataviada de rendas, e seu cabelo estava recém-lavado.
- Você está muito bem - cumprimentou Stephen. - Eu quase desisti de esperá-la.
- Tenho um encontro com Peroz. O escritório dele fica bem longe... no Boulevard Jules Ferry. Mas consegui o contrato que eu queria.
- Ótimo - sorriu ele, sem mencionar que a sua partida o deprimia. Quando parte?
- A 14 de outubro. Houve um adiamento de duas semanas.
- vou sentir a sua falta, Emmy. - E inclinando-se para ela: - Mais do que você pensa.
Ela riu de novo e ele notou que os seus dentes eram agudos e regulares, com espaços definidos entre eles. Então, com vivacidade, acentuando as suas observações,
ela começou a descrever como conseguira o melhor de Peroz ao estabelecerem os termos do seu contrato.
- Dizem que ele tem bom coração - concluiu ela. - Acho que ele é apenas um gobeur... um mole.
Sabendo que a sua conversa geralmente a aborrecia, Stephen encorajou-a a continuar falando sobre si mesma. Então, como não houvesse mais luz, guardou os seus pincéis.
- Deixe-me andar com você - disse ele. - Está uma bela noite.
- Muito bem, se quiser - concordou ela, dando de ombros.
Quando ela apanhou as suas coisas, eles desceram a escada e dali a pouco chegaram ao Boulevard Gavranche, onde uma escuridão quente lançava um halo em torno das
lâmpadas da rua, envolvendo a cidade muda em misteriosa beleza. Casais passavam lentamente, de braço dado, nas calçadas tranquilas a noite parecia feita para os
namorados. Numa rua lateral perto do rio, passaram por um café, onde com a música de um acordeom, havia gente dançando sob uma pérgula, com lanternas chinesas penduradas
nos ramos dos plátanos. A cena estava cheia de luz e alegria, e Stephen podia sentir os olhares interrogativos de Emmy lançados para ele.
- Gostaria de dançar?
Tomado por um demorado embaraço, consciente da sua inépcia, ele abanou a cabeça.
- Eu não seria muito bom nisso.
Era verdade. Ela encolheu os ombros.
- Você não é bom em muita coisa, não é? - disse ela.
Chegaram às sombras dos quais. O Sena fluía em silêncio, uma corrente lisa e verde, sob o vão baixo da Pont de l'Alma. Como se estivesse entediada pelo seu silêncio,
ela caminhava um pouco adiante, começando a trautear a canção tocada pelo acordeom no cabaré.
- Espere, Emmy. - Ele se chegou para o abrigo de um arco. Ela o Olhou de lado, por sobre o ombro.
- Que é que tem na cabeça, Abbé?
- Você não vê... o quanto significa para mim?
Pôs um braço em torno dela, atraindo-a para si. Durante uns poucos momentos, insensível como o poste de iluminação, ela deixou que ele a abraçasse, e depois, com
um movimento brusco de impaciência, empurrou-o.
- Você não entende nada disso.
Havia desprezo na sua voz.
Ferido e humilhado, fraco de emoção frustrada, sentindo a verdade da observação, ele a seguiu para a rua. Caminharam para a Rue de Bièvre. Diante da loja de bicicletas,
ela olhou para ele como se nada tivesse acontecido.
- Posso ir amanhã de manhã?
- Não - disse ele amargamente. - Não será necessário. Voltou-se, furioso com ela e enojado consigo mesmo.
- Não se esqueça - gritou ela. - Quero ver o quadro quando estiver terminado.
Ele a odiava por sua dureza, sua falta de generosidade comum - ela sequer tivera pena dele. Disse a si mesmo que nunca mais tornaria a vê-la.
Na manhã seguinte, quando acordou de uma noite inquieta, lançou-se apaixonadamente na contemplação do quadro. Até agora, só a figura central
tinha tomado forma, havia ainda o tema a ser desenvolvido. O tempo se tornara úmido e sombrio, a luz era pouca, o seu estúdio improvisado varrido por correntes de
ar, mas nenhuma dificuldade parecia tão grande que ele não pudesse vencer. Na sua busca de realismo, ia todas as tardes ao Jardim Zoológico; depois, voltando para
o seu quarto, transferia as abjetas criaturas para a tela, com algo da sua própria tristeza e sujeição. No fim dessa semana, o seu dinheiro acabou - procurando uma
moeda para comprar o seu petit pain, não pôde achar um único soldo. Sem se abater, continuou a pintar o dia todo com uma espécie de fúria.
Na manhã seguinte, sentiu-se fraco e tonto, mas ainda assim forçou-se a prosseguir no trabalho. Quando chegou a tarde, porém, um raio de razão se infiltrou pelas
névoas que agora obscureciam o seu cérebro. Percebeu que se não comesse para viver, simplesmente isso, nunca terminaria a Circe - a menos que pudesse achar algum
meio de sustento. Sentado na beira da cama, refletiu por um instante e depois foi ao canto onde estavam as suas pinturas de Netiers, selecionando três que eram especialmente
brilhantes e coloridas. Eram boas, satisfaziam-no, davam-lhe confiança. Embrulhou-as em papel pardo e, com o rolo debaixo do braço, saiu para atravessar o Sena ao
longo dos Champs Elysées para o Faubourg Saint Honoré. Era um ato de coragem. Contudo, o tempo para meias medidas tinha passado. Estava resolvido a oferecer o seu
trabalho ao melhor negociante de arte da França.
Na esquina da Avenue Marigny, um logradouro principalmente ocupado por pequenos edifícios de apartamentos e suntuosas lojas de haute couture, deteve-se diante de
uma rica mas comedida fachada de pilares paládicos e pedra branca talhada. Depois, retesando-se decididamente, passou pela porta veneziana dourada e entrou num vestíbulo
calçado de mármore, com painéis de jacarandá e colgaduras de veludo vermelho, onde se achou diante de um jovem de paletó com abas abertas, sentado atrás de uma escrivaninha
Luís XVI laqueada e com ouropel. Através do cortinado lá atrás, via-se um amplo salão, igualmente esplêndido, embelezado por grandes buques de lírios em vasos de
alabastro e cheio de quadros belamente iluminados, diante dos quais gente elegante se movia, e misturava, consultando os seus catálogos, conversando em voz baixa.
- O senhor tem convite para o vernissage, monsieur?
Stephen devolveu o olhar do jovem maneiroso, que, por baixo do seu sorriso profissional, examinava-o com extrema cautela.
- Não. Eu ignorava que havia uma exibição. Vim para ver Monsieur Tessier.
- Qual o assunto, monsieur?lis
- Pessoal.
O sorriso, de inefável polidez, não vacilou.
- Receio que Monsieur Tessier não se encontre na casa. Contudo, se quiser tomar uma cadeira, irei verificar.
Quando Stephen sentou-se, o jovem levantou-se graciosamente e deslizou para dentro. Mas quase ao mesmo tempo uma porta lateral se abriu e três pessoas entraram na
sobreloja - uma mulher, muito elegante, de preto, carregando uma miniatura de poodle, enfitado e fantasticamente frisado; seu acompanhante, um homem idoso, entediado
e distinto, impecavelmente vestido, dos sapatos marrons ao chapéu; e Tessier, que Stephen reconheceu imediatamente, uma figura cortês, de rosto moreno, barbeado,
com o lábio inferior saliente e olhos de bistre. O marchand estava falando, sensatamente com reservada animação e movimentos comedidos das mãos.
- Asseguro-lhe que é uma perfeita gema. A mais fina que me chegou em vários anos.
- É linda - disse a dama.
- Mas o preço! - interpelou o seu companheiro um tanto soturno.
- Já lhe disse, cavalheiro. Por 100 mil, é inquestionavelmente um preço de ocasião. Mas se não o deseja para o senhor, tem somente que me dizer. Virtualmente, tenho
compromisso com outro cliente.
Houve uma pausa, um toque na manga do acompanhante, um murmúrio de conversação íntima, e então:
- Pode considerar a pintura vendida.
Uma inclinação de cabeça, não obsequiosa, mas gravemente aprovando semelhante bom gosto, foi a única resposta de Tessier. Contudo, não os levou até a porta, e quando
se voltou, parecendo meditativo, de cabeça baixa, mãos cruzadas atrás das costas, Stephen foi ao seu encontro.
- Monsieur Tessier, peço-lhe que me desculpe pela intrusão. Poderá dar-me cinco minutos apenas do seu tempo?
O negociante ergueu os olhos vivamente, perturbado nos seus pensamentos, certamente relacionados com cálculos e seu olho empapuçado, com a imediata percepção de
algo encontrado com desagrado em ocasiões anteriores, apreciou a figura maltrapilha que tinha diante de si, dos sapatos enlameados e encharcados ao embrulho malfeito
que trazia debaixo do braço.
- Não - murmurou ele. - Agora não. Como vê, estou inteiramente ocupado.
- Mas monsieur - insistiu Stephen, abalado mas com determinação. - Só lhe peço que veja o meu trabalho. Será demais um artista solicitar-lhe isso?
- Então o senhor é um artista? - O lábio de Tessier reentrou. - Felicito-o. Sabe que cada semana sou assediado, atacado e importunado por pessoas que se intitulam
génios e imaginam que eu desmaiarei num êxtase quando contemplar os seus execráveis esforços? Mas nunca tinha encontrado um com o atrevimento de me procurar aqui,
no auge da minha exibição de outono.
- Lamento perturbá-lo... mas o assunto é um tanto urgente.
- Urgente para mim... ou para o senhor?
- Para ambos. - Stephen engoliu convulsivamente. Na sua agitação, falou sem controle. - O senhor acaba de vender um Millet por uma soma considerável. Perdoe-me,
não pude deixar de ouvir. Dê-me uma oportunidade e eu lhe mostrarei um trabalho tão fino como qualquer coisa vinda de Barbizon.
Tessier relanceou os olhos para Stephen, notou a sua aparência perturbada, a dilatação dos seus olhos.
- Por favor - disse ele de maneira fatigada, abandonando o argumento.
- Mais uma vez, rogo-lhe.
Afastou-se para um lado, entrou no salão e um instante depois perdia-se de vista. Stephen, que tinha começado, com pressa nervosa, a desfazer o embrulho, ficou por
um momento muito pálido; depois, com uma expressão estranha, andou para a porta. Ao chegar à rua, o barbante, mal amarrado, desatou-se e as três telas caíram na
calçada molhada e escorregaram para a sarjeta.
Apanhou-as com cuidado, com uma ternura quase ridícula. O simples ato de abaixar-se fez-lhe a cabeça dar voltas. Mas teimosamente, com uma intensidade quase fanática,
disse a si mesmo que não seria derrotado. Havia outros negociantes de quadros em Paris, menos arrogantes, certamente mais acessíveis do que esse intolerável Tessier.
Vagarosamente, caminhou, através do tráfego, para a Rue de la Boétie.
Duas horas depois, molhado e ainda atrapalhado pelos três quadros, estava de volta à Place St. Séverin, tão exausto que mal pôde subir para o seu quarto. Na verdade,
na metade da escada sentou-se num degrau para recobrar o fôlego. Ao fazê-lo, a porta junto ao patamar abriu-se e apareceu, vestido para sair, de tamancos, camisa
sem colarinho e um sobretudo surrado, um homem de cerca de 30 anos, alto e moreno, com uma pele descorada e olhos fundos de semita. Ao descer, quase tropeçou em
Stephen, recuou e estudou-o com um sorriso amargo, peculiar.
- Não teve sorte? - exclamou.
- Não.
- Tentou com quem?
- A maioria deles... de Tessier para baixo.
- Salamon?
- Não me lembro.
- Ele não é mau. Mas nenhum deles está comprando agora.
- Tive uma oferta. Duzentos francos para falsificar um Breughel.
- E você aceitou?
- Não.
- Ah, a vida tem seus pequenos vexames. - E depois de uma pausa: - Como se chama?
- Stephen Desmonde.
- Chamo-me Amédée Modigliani. Venha tomar um drinque.
Dirigiu o caminho de volta ao patamar e abriu a porta do seu quarto. O seu apartamento era quase idêntico ao de Stephen, mas talvez mais sórdido. Num canto, ao lado
da cama por fazer, havia uma pilha suja de garrafas vazias, e no centro um cavalete com uma pintura quase terminada, um nu reclinado.
- Gosta? - Servindo dois Pernods de uma garrafa que tirara do armário, Modigliani inclinou a cabeça para a tela.
- Sim - disse Stephen após um momento.
Havia na pintura um estilo pessoal, marcado por seus esforços numa linha arabesca, algo de monumental e puro.
- bom - disse Modigliani, passando-lhe o copo - mas esse quadro porá o comissário de polícia atrás de mim. Ele já proclamou que os meus nus são escandalosos.
O absinto, fortalecendo Stephen, clareando o seu cérebro, evocou uma nota de recordação.
- Você não exibiu nos Indépendants? Le Joueur de Violoncello?
O outro fez um gesto afirmativo.
- Não era o meu melhor trabalho. Mas foi vendido. Agora eles não comprarão nada. Na verdade, se não fosse o meu talento para plongeur no Hotel Monarque, eu teria
sido gentil com os meus críticos e deixado de existir.
- Um plongeur? - Stephen não compreendia.
- Sim, gostaria de experimentar o trabalho? vou para lá agora. É um emprego fascinante. Um leve sorriso, saturnino, apareceu nas suas feições impassíveis, cor de
oliva. - E eles sempre apreciam um empregado novo.
- Tentarei qualquer coisa.
Saíram juntos e começaram a andar em direção à Etoile. O Grand Monarque, um dos famosos hotéis parisienses, era uma imensa construção palacial no estilo Terceiro
Império, ocupando um quarteirão inteiro, logo depois dos Grands Boulevards. Imponente e digno, um tanto fora de moda, com degraus de mármore, tapetes vermelhos,
as vastas salas públicas com lustres cintilantes, um bando de atendentes esvoaçando atrás das portas de metal polido, como sentinelas, para receber os embaixadores,
dignitários estrangeiros e príncipes nativos, que estavam entre os seus visitantes, dava uma sensação de opulenta magnificência. Modigliani, contudo, quando chegaram
ao pórtico central, não tentou uma entrada, mas guiou o caminho em torno de um canto escuro e por uma passagem que dava para as dependências dos fundos, flanqueada
por uma bateria de latas de lixo amassadas; um lance de escadas admitiu-os no subsolo.
Era menos um subsolo do que uma imensa adega subterrânea, com o teto úmido e pingando, atravessada por uma confusão de tubos de ferro, de paredes
escamadas, pegajosas de bolor, o chão de pedra-britada com água de despejos até os tornozelos, tudo fracamente iluminado por umas poucas lâmpadas elétricas nuas,
cheio de vapor, barulho e uma confusão babélica de vozes. Ali, numa comprida calha, uma fila de homens, arrebanhados, parecia, na ralé de Paris, estava febrilmente
lavando pratos que uma turma de ajudantes de cozinha continuava trazendo apressadamente, embraçadas, das cozinhas contíguas. Agora, pensou Stephen, após acomodar
os olhos àquela visão de pesadelo, sei o que significa um plongeur.
Entrementes, Amédée tinha se aproximado do contremaître, que, com um olhar indiferente para Stephen, entregou-lhe um disco de metal com um número estampado e marcou
o tempo a giz, diante desse mesmo número, numa ardósia que pendia do seu cubículo, ao lado de um aviso que advertia que se alguém fosse apanhado tirando porções
de alimento seria sumariamente processado.
E agora, imitando seu companheiro, Stephen tirou a sua jaqueta e, tomando lugar na fila, começou a lavar os pratos do jantar empilhados na pia. Não era trabalho
fácil, curvado sobre a calha baixa, e não havia interrupção. O odor da água espumosa nunca mudava, o mau cheiro da graxa e restos de comida era nauseante. Periodicamente,
a pasta de restos entupia o ralo e tinha que ser retirada com a mão. Era estranho, durante esse processo, ouvir um leve sopro de música polida vindo da orquestra
no pátio de palmeiras lá em cima.
Cerca das 11 horas, o ritmo diminuiu, e antes da meia-noite houve uma parada definitiva, que indicava que as damas e cavalheiros lá de cima tinham Sido alimentados.
Amédée, que durante todo o tempo não pronunciara uma única palavra, pôs o seu casaco, acendeu um cigarro e, com um movimento da cabeça, chamou Stephen para a porta,
onde o contramestre, após uma olhadela na pedra do tempo, pagou a cada um 2 francos e 50.
Lá fora, ainda em silêncio, ele caminhou de ombros caídos pelas ruas escuras e, cinco minutos depois, guiou o caminho para um bistro que ficava aberto a noite toda.
Ali, enquanto Amédée bebia vários Pernods, Stephen consumiu um pratarrão de pot-au-feu, grosso de boas verduras e pedaços de carne de carneiro. Era a sua primeira
refeição satisfatória em muitos dias, e sentiu-se melhor.
- Não quer alguma coisa? - perguntou ele.
- Isto é carne e pão para mim. - Amédée olhava com dura indiferença para o fluido esverdeado e opalescente do seu copo, que segurava com os dedos manchados de nicotina.
- Tem sido a minha dieta há muito tempo.
Sentado no café deserto, as luzes amortecidas, a mesa de bilhar lá atrás, protegida para a noite, o garçom solitário, semi-adormecido, com o seu guardanapo sobre
a cabeça, atrás do balcão, Amédée revelou alguma coisa de si mesmo em frases lacónicas.
Nascido na Itália, provinha de uma família de judeus italianos, estudara, a despeito das interrupções causadas por doenças, em Florença, e na Academia de Veneza.
Nos últimos sete anos, inspirado pelos primitivos e pela arte negra, tinha trabalhado em Paris, às vezes com o seu amigo Picasso, e ocasionalmente com Gris. Não
tinha vendido praticamente nada.
- Assim é que agora - concluiu ele, com o seu sorriso sombrio mas inquieto - me vê enfraquecido pela pobreza, pelo excesso de álcool, e pelo uso de drogas nocivas.
Sozinho, a não ser por uma moça que teve a desgraça de me conhecer. Despido de qualquer reputação. - Emborcou o resto da bebida e levantou-se. - Mas alegre pelo
fato de que jamais aviltei a minha arte.
Disse boa-noite, sem ênfase, na escada que levava aos seus aposentos.
Por breve que tivesse sido, aquele estranho encontro foi providencial para Stephen. Agora, aguentando todas as noites cinco horas de trabalho suado nos porões fumegantes
do Grand Monarque, podia sobreviver e, o que lhe parecia mais importante, continuar a trabalhar com toda a sua força na Circe.
Finalmente, cerca de três semanas depois, numa tarde seca e fria, terminava o trabalho. Lá estava ela, naquela atitude familiar de descuidada insolência, indiferente
mas aliciante, com seu rosto pálido e olhos enigmáticos, aquela moderna filha de Helios, tendo como fundo não o palácio de Aiaia, mas a rua de um bairro miserável
de Paris onde se agrupavam os seus amantes vencidos, mudados e degradados na forma de bestas, e que, domados e abatidos, olhavam para ela com um desejo servil, como
se ainda estivessem sedentos por suas carícias.
Exaurido por esse esforço final, Stephen foi incapaz de avaliar sua obra, que tomara uma forma fantástica por força de uma compulsão a que ele não pudera resistir.
Sabia apenas que nada mais podia acrescentar, e, em um espasmo de impaciência nervosa, embrulhou o quadro no mesmo papel pardo amassado que já usara antes e o levou
para o Institut des Arts Graphiques, na Place Redon. Lá, um funcionário idoso tomou o seu nome e anotou meticulosamente todos os detalhes em um livro; depois, constatando
que a tela não tinha moldura, relutou em aceitá-la.
- O senhor vê, monsieur, a especificação é de montage.
- Não notei.
- Mas é evidente. Olhe, monsieur, todas as outras peças estão corretamente montadas.
Stephen, relanceando os olhos por uma comprida galeria com dezenas de pinturas, sentiu uma súbita apatia. De uma maneira ou de outra, não se importava.
- Não posso comprar uma moldura. Aceite como está ou não aceite.
- Isso é muito irregular, monsieur. Mas, se quiser, deixe-a.
De volta ao seu sótão, sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, tomado
por uma letargia de pós-criação. E agora... que faria? Impossível continuar no Monarque - sua alma revoltava-se com essa ideia - contudo estava à beira da indigência.
Tirante as roupas que usava, o equipamento de pintura, e 15 soldos, não possuía nada de valor material. Tudo mais tinha empenhado. Levantou-se e olhou no armário.
Continha a metade de um pão, duro como pedra, e uma fatia de queijo. Lá embaixo, Amédée estava ausente há três dias, submerso numa das farras em que periodicamente
sucumbia, e da qual emergiria, entontecido, em alguma remota região da cidade. Atrás da divisão de madeira, o casal da porta ao lado tinha começado uma briga, gritando
um para o outro. Crianças brincando, discutindo, aumentavam a barulheira. Apesar da janela aberta, o quarto estava abafado pelo ar viciado da cidade, e nos lambris
rachados começava a usual procissão noturna de baratas.
Tudo isso, bastante difícil de aguentar, não era nada porém comparado com a insuportável sensação de solidão e privação que lhe torturava o peito. Não mais amortecido
pelo analgésico do trabalho, o seu desejo de que Emmy voltasse era mais forte do que antes. Ao contrário de Ulisses, nSo tinha uma erva mágica para proteger-se contra
o seu encanto. Culpava-se por não a ter convidado para ver o quadro. No dia seguinte ela tinha partido, indo para o sul com a troupe de Peroz - não a veria antes
de pelo menos seis meses, se é que tornaria a vê-la. Lembrando-se da enfatuação que Madame Cruchot tivera por ele, tremeu com a peça que o destino lhe tinha pregado
- agora era ele quem assumia o ridículo papel.
Não tinha nada em que se ocupar, nem ao menos um livro para ler; sentia-se inteiramente mole para se aventurar às ruas. Quando anoiteceu, deitou-se na cama, mas
não pôde dormir. O dia seguinte era terça-feira, e surgiu com um suave e límpido amanhecer. Ele se levantou e se vestiu. A ideia dos veículos do circo partindo naquela
tarde para o campo aberto e a ensolarada Côte d'Azur atormentava-o novamente. De repente, sem quê nem por quê, veio-lhe uma ideia. Por um momento, ficou imóvel,
parado no meio do soalho. Seria capaz disso? Ao menos poderia tentar. Apanhando o chapéu, saiu rapidamente do quarto e tomou, trémulo, a direção do Boulevard Jules Ferry.


CAPÍTULO VII

NUMA EXTENSÃO DE TERRENO COMUM, logo após os taludes de Angeres, naquela tarde de sol muito brilhante para o fim de outubro, o Circo Peroz armou
a sua cidade de lona vermelho vivo. As barracas de espetáculos secundários já estavam em ação, uma musiquinha vinha do carrossel das crianças, e os aboyers começavam
as suas exortações aos poucos espectadores presentes.
No seu stand, no fim de uma linha de barracas, vestido com uma blusa azul, boina, uma frouxa gravata preta, vestuário composto para sugerir às mentes rústicas a
altura da arte parisiense, Stephen respirava longamente o ar do campo, aromatizado com a fumaça de lenha, cascas de laranja, serragem fresca, tanino, e o cheiro
dos cavalos. A seu lado aprumava-se um cavalete enfeitado com uma tabuleta que o exaltava como Grand Maître des Academies de Londres et Paris, e prometia uma semelhança
exata, feita à mão, de perfil ou de frente, em carvão de primeira qualidade, por apenas cinco francos, em cores ricas e permanentes por sete francos e cinquenta,
cortesia e serviço iguais aos dispensados às cabeças coroadas da Europa, satisfação assegurada.
Ouviu-se o relincho de um garanhão, o agudo clangor de uma corneta e o grunhido fraco de uma leoa velha. Com a sua tosse praticamente desaparecida, Stephen experimentava
uma súbita recuperação do seu bem-estar físico. Não lamentava o impulso que o levara a Peroz três semanas antes.
- Aproxime-se, aproxime-se, cavalheiro. Vamos, senhor, convença mademoiselle a ter o seu lindo rosto pintado. Não seja modesto. Deixe um retrato para os seus netos.
Um casal de campônios, de braço dado, vestido com as suas roupas domingueiras, hesitava à sua frente, e então corando, a moça tomou coragem e aproximou-se. Não era
bonita, mas ele, em poucos e rápidos traços, esboçou a sua figura na folha que estava no cavalete, deu relevo à sua coifa de renda fina, aos bordados à mão dos seus
punhos, e, ensinado pela experiência, não esqueceu o broche de camafeu, um óbvio tesouro de família, que ela usava no corpete.
Enquanto isso, uma pequena multidão se juntava, ouvindo-se murmúrios de aprovação pelo retrato terminado, e logo ele estava trabalhando bastante. Para ele, não era
mais que um processo mecânico executado sem pensar; contudo, divertia-se em dar a alguns dos seus retratos uma individualidade irónica, detendo-se no detalhe de
uma feição particular, um olho bovino, uma orelha grande, um nariz bulboso, como acontecia às vezes nas noites de sábado, quando um cliente era ofensivo, desenhando
com malícia uma caricatura que, as mais das vezes, provocava o riso dos outros.
Às seis horas, a multidão diminuía, como sempre, antes da função principal do circo, e apanhando a sua tabuleta e tirando a blusa e gravata, Stephen entrava por
um labirinto de cordas e lonas para um pequeno recinto atrás da barraca contígua. Ali, acocorado diante de um vivo braseiro, um homenzinho enrugado, de perneiras
gretadas e culotes sujos de veludo cotelê, estava cozinhando o jantar. De pernas tortas, cabelo cortado rente, tinha feições nítidas,
castigadas pelo tempo, exceto o nariz, que era chato e quebrado. Seus olhos eram miúdos como contas, parados, e o fulgor do braseiro lhes dava calor.
- Que temos esta noite, Jo-jo?
- O de sempre. - Jo-jo olhou para cima. - Mas também um pouco de salsicha de carne de porco fresca, de Angers, que achei na Tur Toussaint. É uma das duas especialidades
desta cidade.
- E a outra?
- Cointreau, naturalmente, mon brave. É feito aqui.
As salsichas, respingando numa frigideira, pareciam cheias de promessas. promissoras. Jo-jo, que na sua mocidade tinha sido jóquei, depois vendedor de barbadas,
depois cavalariço, e depois bookmaker, e que finalmente tinha sido aconselhado a sair de Longchamps, era um cavador perito. Conhecia todas as tramóias da França.
Ninguém gostava mais de regatear no mercado ou de pegar uma galinha extraviada de uma granja à beira da estrada.
- Gostei destas duas noites aqui. - Stephen deu lugar no braseiro para o coador de folha do café. - Amanhã estamos de folga até as três. Pretendo dar uma olhada
no rio.
- O Loire é um bom rio - disse Jo-jo com um ar de quem sabe das coisas. - Fundo bom de areia, com muito peixe bom. Vou deixar umas iscas de noite e ver se temos
sorte. De fato, todo o país é bom para nós - Tours, Bolis, e especialmente Nevers. O vinho é um tanto fraco, mas a bóia é de primeira, e as mulheres... essas putas
da Touraine, grandes atrás e na frente... - Assobiou e revirou os olhos.
Enquanto ele falava, a aba da barraca se abriu e entrou um homem de aspecto estranho, com calças de xadrez e suéter caqui de gola rulê. Era alto e franzino, tão
dolorosamente magro que parecia um esqueleto, e o rosto e mãos - únicas partes visíveis do seu corpo - estavam cobertos por uma espessa crosta de escamas cor de
cobre. Era Jean-Baptiste, que participava de um dos mais pobres caminhões com Stephen e Jo-jo. Manso, taciturno e melancólico, era um caso extremo de psoríase crónica,
uma doença da pele, indolor mas incurável, sendo exibido aos curiosos como o Crocodilo Humano, produto da união de um sáurio feroz e de uma nadadora do Rio Amazonas,
com o que ganhava uma modesta subsistência.
- Teve uma tarde boa, Croc? - perguntou Stephen.
- Não muito - respondeu Baptiste sombriamente. - Nem um íntimo.
Essa era a parte mais proveitosa da técnica de Croc em descobrir-se lentamente, das extremidades para baixo; quando chegava ao umbigo, fazia uma pausa e, deixando
seus olhos correrem pela plateia, exclamava dramaticamente, com uma espécie de sedução macabra:
- Para revelações mais íntimas, estou à disposição na tenda dos fundos. Ingresso especial para essas revelações privadas, apenas cinco francos.
Quando a comida ficou pronta, sentaram-se em volta do braseiro - uma grande caneca de sopa fumegante, seguida pelas salsichas, duras mas suculentas, temperadas com
ervas do campo, um molho com pedaços de pão fresco cortados com uma faca dobradiça. Somente depois que se juntara à troupe, Stephen aprendeu a saborear os aumentos
comidos ao ar livre. Depois houve café, quente, forte e arenoso, servido na caneca de sopa. Então Jo-jo enrolou um cigarro e, com o ar de um mágico, tirou do bolso
dos quadris uma garrafa do límpido licor da região.
- Que tal um gole de vinho do altar, Abbé?
O apelido tinha seguido Stephen de Paris - ele não se importava. Passaram a garrafa de mão em mão, bebendo o claro e ardente licor sem copos. Jo-jo enrolava-o na
língua.
- Você pode confiar nele. Feito com as melhores laranjas de Valença.
- Uma vez me aconselharam a nunca comer frutas. Outra vez me disseram que não comesse outra coisa - disse Baptiste, que gostava de falar no assunto da sua doença.
- Ao todo consultei 19 médicos. Cada um deles mais tolo do que o outro.
- Então tome outra dose do meu remédio.
- Ah, isto é que é remédio para mim!
- Você não pode se queixar, Croc. Não tem uma existência rica e interessante? Você experimenta as delícias de viajar. Em suma, você é famoso.
- É fora de dúvida que muitas pessoas têm viajado 50 quilómetros para
me ver.
- E não tem um grande sucesso com as damas?
- Tenho mesmo. Exerço um certo fascínio sobre elas.
Diante desta séria admissão, Jo-jo soltou uma risada. Depois, apagando o cigarro, levantou-se para ver os cavalos.
Era a vez de Stephen lavar as panelas. Quando terminou, ao lusco-fusco, as luzes produzidas pelo gerador brilhavam como vaga-lumes sobre a feira. Olhando, sentia
todos os seus sentidos despertados. Não tinha visto Emmy todo o dia. Mas ela não gostava de ser perturbada antes do espetáculo, e o povo já convergia para a grande
tenda. Guardou o cavalete e o resto da tralha numa caixa, debaixo do seu beliche no caminhão, vestiu as suas roupas comuns e caminhava para a entrada dos fundos
do picadeiro. De acordo com o seu contrato, era seu dever acompanhar os membros de terra da companhia, que indicavam aos espectadores os seus lugares, vendiam programas,
sorvetes, citronade, e aquela marca de nugá feita especialmente em Paris para o Circo Peroz.
Parecia a Stephen uma excelente "casa" - o circo tinha uma reputação merecidamente popular através das províncias, e, com bom tempo, a mercadoria dos stands era
em geral totalmente vendida. Esta noite, fila após fila de rostos expectantes e rosados se ergueram da serragem do picadeiro. Subitamente,
na sua alta plataforma, vestido de vermelho e dourado, quando a charanga atacava uma grande marcha, o mestre do picadeiro, o próprio Peroz, apareceu de cartola,
alamares brancos e capa escarlate, dirigindo um cortejo de póneis que entraram na arena a meio-galope, atirando as crinas para os lados, e o espetáculo começou.
Embora, a esse tempo, conhecesse os números de cor, acocorado junto à grade do corredor da entrada dos artistas, com um bloco de esboços no joelho, Stephen acompanhava
cada fase, cada movimento do espetáculo com absorvido interesse, notando, vezes e mais vezes, os ritmos da coordenação muscular, o jogo de luzes e tons das cores
no vasto caleidoscópio cintilante, e mesmo as reações individuais, às vezes cómicas e bizarras, das pessoas da plateia.
Era fascinante, aquele novo mundo que ele havia descoberto, com os seus soberbos cavalos de alta escola, montanhosos elefantes e sinuosos leões de olhos amarelos,
seus acrobatas às cambalhotas, jograis prestidigitadores, funâmbulos da corda bamba sob os seus pára-sóis de papel. Observando, Stephen pensava na famosa peça de
circo de Manet, Lola no Arame, e na sua atual disposição melhorada sentia que podia desenhar aquele campo com igual riqueza. Desenho, sem dúvida, haveria, mas acima
de tudo a cor seria o instrumento da sua expressão. Via na sua paleta as cores puras, os ultramarinos, ocres e vermelhões, via como podia humanizá-lo sem reduzir
a sua intensidade. Criaria um novo mundo, um mundo que só ele percebia, um mundo somente para ele. Curvado no seu canto, desenhava e desenhava. Este era o seu verdadeiro
trabalho; os retratos que pintava de dia não eram mais que um meio de vida, e na pasta em sua caixa fechada já tinha dezenas de estudos que usaria numa formidável
composição.
Após o intervalo, davam entrada os artistas mais importantes - a troupe Dorando, de trapezistas; Chico, o engolidor de espadas; Max e Montz, os palhaços famosos.
A seguir, um soalho de madeira era rapidamente montado no centro do picadeiro e ouvia-se a fanfarra que conhecia tão bem, e que sempre fazia o seu coração bater.
Então, embaixo, via Emmy pedalando, usando uma blusa de cetim branco, calções brancos e compridas botas brancas. Ao chegar ao assoalhado, começava a executar, à
luz da bicicleta niquelada, uma série de evoluções que deixavam o espectador tonto, circulando e recuando e avançando, sempre no pequeno espaço, mudando de posição,
até que dirigia de cabeça para baixo segura no guidom, finalmente desmontando em movimento e fazendo complexas configurações numa roda só.
Talvez essas manobras fossem menos difíceis do que pareciam, mas o culto da bicicleta, uma paixão nacional que anualmente chegava ao auge nas agitadas semanas devotadas
ao Tour de France, tornava-a popular junto ao público. Uma tempestade de aplausos reboava embaixo da grande cúpula, seguida por um silêncio enquanto Emmy caminhava
para uma curiosa estrutura na
extremidade do picadeiro. Era um elevado escorregador, uma estreita fita de metal pintada de vermelho, branco e azul, que descia que descia quase verticalmente do
teto da tenda e terminava numa curva que subia bruscamente.
Alterando o seu ritmo, a banda exagerava a expectativa, enquanto Emmy, subindo lentamente por uma escada de corda, alcançava a minúscula plataforma do topo. Lá,
entrevista nas últimas espirais de fumaça, ela desenganchava uma bicicleta mais pesada das travas que a sustinham e segurava-a, testava o quadro, espichava os membros,
passava giz nas mãos, montava na máquina sobre a plataforma e, por um longo momento, parecia estar suspensa, quase flutuando na névoa de vapor. Os metais, que tinham
gradativamente diminuído para um profético murmúrio, vinham agora novamente à vida, apoiados por um estaccato de tambores que rufavam e reverberavam cada vez mais
alto. Era o instante que fazia Stephen desejar fechar os olhos. Jo-jo lhe dissera que, havendo perícia e coragem, o perigo era limitado; a estria branca do centro,
na qual as rodas deviam andar precisamente, tinha menos de 15 centímetros de largura, e depois da chuva, ou quando a umidade era grande, a superfície escorregadia,
apesar de enxugada, era traiçoeira. Contudo, não havia tempo para pensar - numa tempestade final de som, Emmy soltou-se, caiu parecendo uma pluma, projetou-se para
cima na curva e pousou na plataforma de madeira com uma velocidade que a carregava para fora da tenda como um raio.
No meio dos aplausos, embora não pudesse sair, Stephen escapou e rodeou para a barraca onde os artistas se vestiam. Teve que esperar 15 minutos até que ela saísse,
e imediatamente sentiu que ela não estava de humor muito amável.
- Então? - perguntou ela.
- Você esteve ótima... notável - afirmou ele.
- A pista estava molhada - um orvalho pesado - e esses fripons preguiçosos não enxugaram nem a metade. Então não sabem que é suicídio deslizar numa pista úmida?
Eu quase não desci. - Em várias ocasiões, por causa disso, tinha cancelado o número - de fato, tinha um acordo com Peroz que lhe permitia tomar essa resolução. Mas
a queixa deixou-lhe a voz. - Mas esta noite eu queria mesmo.
- Por quê?
Ela não pareceu ouvi-lo. Então, indiferente, respondeu:
- Por causa daqueles militares.
- Soldados?
- Não, estúpido, oficiais, naturalmente. Havia aqui uma escola de cadetes do primeiro ano. Não viu o grupo na frente da tribune?
- Acho que não.
- Uma turma elegante, isso era, nas suas túnicas. Eu gosto de uniforme.
E eles estavam querendo que eu os visse. Não que eu notasse, naturalmente. - A sua expressão amuada afastou-se um pouco. - Eu fiz um extra para eles.
Ele mordeu o lábio, procurando abafar o ciúme que ela tinha tanta capacidade de despertar nele. Após o calor sufocante da tenda, o ar era leve e fresco.
- Vamos caminhar até os muros da cidade... lá é muito bonito.
- Não. Não estou com disposição.
- Mas está uma noite tão linda. Olhe, a lua acaba de sair.
- E eu vou entrar.
- Não vi você o dia todo.
Nenhum músculo do seu rosto Se moveu.
- Já me viu agora.
- Apenas um momento. Venha.
- Já não lhe disse que fico cansada depois do meu número? A tensão é muito violenta. Pra você, tudo muito bem, vendendo programas e nugá lá embaixo.
Ele viu que era inútil insistir mais. Escondeu estoicamente o seu desapontamento. Chegaram ao caminhão que ela partilhava com Madame Armande, a mulher que cuidava
do vestuário da troupe. Ele tinha pensado nela o dia inteiro, sentia-se faminto por sua companhia, por um sinal da sua afeição. E ela estava ali, a sua figura ao
luar, rija, sedutora; queria agarrá-la e beijar à força o seu rosto pálido e indiferente, a sua boca ligeiramente entreaberta. Mas não fez nada disso, limitando-Se
a dizer:
- Não se esqueça de amanhã. Venho buscá-la às 10.
Viu-a subir as escadas a correr e desaparecer no caminhão.
Ao voltar, a função tinha terminado e a multidão se despejava pela saída da grande tenda, falando, gesticulando, rindo. Todos pareciam felizes, satisfeitos com a
vida e consigo próprios, ao voltarem aos seus lugares comuns e confortáveis. Stephen perdeu aquela sua primeira disposição alegre. Inquieto e perturbado, não podia
voltar ao seu canto, enfrentar as caçoadas de Jo-jo e os roncos de Baptiste. Saiu para as muralhas sozinho.


CAPÍTULO VIII

NA MANHÃ SEGUINTE, trazida por uma alvorada mansa e cinzenta, ela o surpreendeu e alegrou por sua pontualidade. Estava quase pronta quando ele chegou,
e pouco depois estavam nos seus vélos, rumando para o Loire, no belo contorno de Angeres, com as suas muralhas romanas, a Catedral de St. Maurice com suas agulhas
e as arcarias da préfecture atrás deles. Como sempre, ela imprimia um ritmo muito veloz, curvada sobre o guidom, as pernas movimentando-se como pistons, com o firme
propósito de deixá-lo para trás. A bicicleta dele, comprada barato com o seu primeiro pagamento semanal, era um modelo antigo; contudo, o ar fresco e a comida do
campo tinham-no robustecido. Embora lhe custasse um esforço contínuo ladeira acima, mantinha o seu lugar pouco atrás do ombro dela.
Atravessaram, dali a pouco, um arvoredo à esquerda e imediatamente se descortinou todo o esplendor do vale - o rio grande e largo brilhando na luz plácida, movendo-se
preguiçoso entre as ribanceiras e sobre baixios de areia dourada, passando por altos tufos de vimeiros, barcos de fundo chato atracados e ilhotas verdes. Na estrada
serpenteante, pesada pela areia, diminuíram a velocidade. Por trás de uma cortina de faias, Stephen avistou as torres pontudas e a fachada musguenta de um antigo
castelo. A beleza da região era inebriante para o seu espírito. Soerguido, olhou para a sua companheira, fez como se fosse falar, mas, depois, sabiamente, absteve-se.
Por volta do meio-dia, chegaram a um staminet à beira do rio, onde, acima da porta, um peixe monstruoso, enredado em algas, nadava numa caixa de vidro. Primeiro,
Stephen tinha proposto um piquenique, mas isso tinha pouca atração para Emmy, que sempre preferia parar em algum café provavelmente freqüentado pela confraria esportiva,
onde, numa atmosfera de camaradagem, havia livre companheirismo, vivas conversas em gíria e a música de um acordeom. A estalagem, todavia, embora possuísse um considerável
encanto, estava vazia de clientes - um fato que não desagradou Stephen, que sofria com a admiração demasiado franca que a sua companheira gostava de provocar. Atravessaram
o soalho de pedra limpo com areia, sentaram-se à mesa esfregada com escova e sabão junto a uma janela, da qual pendia um banco, e, após consultarem a proprietária,
escolheram um prato de peixe local que ela recomendara muito. Este chegou pouco depois, numa enorme travessa de madeira, um fritto de minúsculas espadilhas do Loire,
cada uma não maior do que um filhote de arenque, cozidas tão secas que se quebravam ao toque do garfo. Com eles vieram pommes frites e uma jarra de Bière Navarin,
preferida por Emmy.
- Isto é bom - disse Stephen, olhando por cima da mesa.
- Não é mau.
- Gostaria de pedir uma garrafa de vinho para mim - disse ele em tom de pedido.
- Eu gosto desta cerveja. Faz-me lembrar de Paris.
- Num dia como este?
- Em qualquer dia Paris me basta.
- Ainda assim... você não se importa de estar aqui não é?
- Podia ser pior.
Emmy não era afeita a superlativos, mas neste momento estava de excelente humor, e dali a pouco pôs-se a rir.
- Você não adivinha o que eu recebi esta manhã. Flores. Rosas. E um billet-doux de um dos oficiais.
- Ah, sim? - A sua expressão tornou-se ligeiramente rígida.
- Aqui está. Monograma gravado e tudo. Com outra risada, apalpou o bolso e tirou um bilhete cor-de-rosa amarrotado. - Dê uma olhada.
Ele não tinha vontade de ler o bilhete, mas também não queria ofendê-la. Passou rapidamente os olhos, notando o duplo sentido das frases polidas que a convidavam
a ir tomar um aperitivo na Terrasse e depois jantar no Le Vert d'Eau. Devolveu-o sem comentário.
- Ele é capitão, parece. Acho que o vi no grupo de ontem à noite. Alto e bonito, de bigode.
- Você vai? - perguntou ele, mascarando os seus sentimentos com um tom inexpressivo.
A fria ironia da sua maneira atravessou a sua auto-estima. Ela raramente corava, agora uma leve cor apareceu por baixo da sua pele branco-azulada.
- Quem é que você pensa que eu sou? Conheço essas guarnições da cidade e o que se pode arranjar com elas. Pra mim não, obrigada.
Stephen ficou silencioso. Embora se desprezasse por isso, e em vão tentasse combatê-lo, de tempos em tempos o ciúme lhe vinha num impulso dominador. A simples ideia
de que ela pudesse sair sozinha com aquele oficial desconhecido causava-lhe um sofrimento penoso. Contudo, ela declarara categoricamente que iria ignorar o convite;
assim, obrigando-se a ser razoável, forçou um sorriso conciliatório.
- Vamos descer até o rio. - Quando brigavam, era sempre ele quem procurava fazer as pazes.
Pagou a conta, e desceram à beira da água. O sol, geralmente quente para aquela época do ano, tinha esmaecido e, lançando reflexos da água que faziam fechar os olhos,
envolveu-os num banho de luz. Ele amava o sol - sol e água eram os deuses gémeos que poderia adorar. E enquanto ela acendia um Caporal e, com os olhos fechados,
relaxava numa postura cómoda na sombra de um salgueiro, ele sentou-se na claridade aberta e começou a desenhá-la. Já tinha feito dezenas de desenhos, nos quais se
refletia não apenas a intensidade do seu sentimento por ela, mas também a complexa interação de angústia, desejo e, por vezes, quase ódio que o compunha.
Não estava cego àquela forma de egoísmo, crueldade e vaidade, que em outra pessoa teria provocado o seu desprezo. Sabia que ela apenas o tolerava
- talvez porque a sua mentalidade gaulesa se detivesse nas possibilidades da grande proprieté, mas principalmente, e disso tinha certeza, porque o seu evidente desejo
a lisonjeava, dava-lhe uma sensação de poder apreciada por sua natureza. Ela lhe trazia mais sofrimento que felicidade. Contudo, nada podia fazer. Desejava-a com
uma necessidade física que, não sendo por ela satisfeita, aumentava de dia para dia.
Dali a pouco, erguendo os olhos do bloco, viu que ela estava dormindo. Deixou escapar, involuntariamente, um suspiro nervoso e irritante. Soltando o seu bloco e
creions, aproximou-se mais da margem, e então, num impulso, tirou a roupa e mergulhou no rio. Sabia, pelas excursões anteriores, que ela não gostava daquilo - tinha
uma aversão felina pela água fria - mas para ele o choque daquelas águas vindas de fontes era uma revigorante delícia.
Quando voltou, ela estava em pé, sacudindo o capim do cabelo cheio e curto.
- Você sabe deixar os outros sozinhos.
- Pensei que estivesse dormindo.
- Que horas são?
- Ainda é cedo - disse ele, aproximando-se e enlaçando-a pela cintura.
- Ainda temos mais uma hora.
- Oh, deixe-me! - Inclinou-se para trás e empurrou-lhe o peito com as mãos. - Você está molhado.
- Mas Emmy...
- Não, não. Não devemos chegar atrasados. Você não vai querer perder o seu emprego. É tão agradável e conveniente para você, não é?
- Sim, claro - respondeu ele com voz tensa. Ela já estava voltando para a estalagem e Stephen a acompanhou.
Aquele raro interesse pelo seu bem-estar intrigava-o. E não se dissipou pela sua disposição animada, quando voltavam a Augers. Em voz alta, ela ia cantando trechos
da última canção do teatro de variedades:
Les jolis soirs dans les jardins de l'Alhambra Ou donc sont les belles?
Que l'amour appelle?...
Et le rendez-vous, de l'amour très fou.
E seguindo seu hábito quando estava alegre, deixava os habitantes locais de boca aberta, com uma exibição de ciclismo difícil ao passarem rapidamente pelas aldeias
ribeiras.
Ainda não eram três horas quando chegaram ao circo, e poucas pessoas estavam diante dele. Stephen trocou de roupa e armou o seu cavalete. Trabalhou toda a tarde,
de um modo ausente, sorumbático, com as linhas da testa
cada vez mais fundas. Embora lutasse contra a ideia de que ela abreviara a excursão a fim de ir ao encontro na Terrasse, essa ideia só fazia aumentar. O crepúsculo
não lhe trouxe nenhum alívio, e durante o jantar mal trocou uma palavra com Jo-jo e Croc.
Por fim, levantou-se bruscamente e foi para o outro lado do campo, onde estava o caminhão de Emmy. Madame Armande estava sentada nos degraus, com um balde entre
os joelhos gordos, lavando meias. Em certa época, ela fizera parte de um número de trapézio, mas quebrara o quadril numa queda e desde então caminhava coxeando.
Agora, aos 50 anos, pesada e sem formas, de pernas hidrópicas e papada, era conhecida como a mexeriqueira da companhia Jo-jo, que cuspia ao ouvir o nome dela, dizia
que durante o recesso de inverno ela gerenciava um estabelecimento de reputação duvidosa no porto do Havre.
- Boa noite - disse Stephen, tentando manter a voz calma. - Emmy está?
Madame Armande mediu-o de esguelha com os seus olhos miudinhos.
- Mas Abbé, você sabe muito bem que ela não vê ninguém antes do espetáculo.
- É só um instante.
Ela abanou a cabeça encaixada num lenço estampado com bolinhas.
- Eu não me atrevo a perturbá-la.
- Então... - Hesitou, ansioso por acreditar nela. - Está descansando?
- A mulher levantou os braços.
- E que mais? Nom de Dieu, acha que sou mentirosa?
A sua indignação era real ou fingida? Ele queria entrar no caminhão, mas a mulher e o balde bloqueavam a entrada. Não devia tornar-se completamente ridículo. Forçou-se
a fazer algumas observações convencionais, e voltou para a escuridão.
O povo chegava aos bandos, a função começava, risadas estrepitosas e aplausos enchiam a grande tenda. Ela estava atrasada. Seria por simples coincidência? Não podia
ter certeza. Procurou tranquilizar-se. Quando ela finalmente apareceu, a impressão, conforme sua fantasia superexcitada, foi de que estava mais aparatosa, mais espetacularmente
viva do que o usual. Gritos prolongados de "bravo!" vinham da tribune quando ela deixou o picadeiro.
Depois disso, na confusão de arrancar as estacas, não pôde vê-la. Melancolicamente, juntou-se a Jo-jo e Croc na tarefa de desmontar os stands. Trabalhando sem atenção,
cortou a mão num gancho de ferro. Não se importou. Um vento frio começava a fustigar o campo. O gerador foi desligado, as luzes elétricas se apagaram. Em toda a
volta, à luz de fogachos vermelhos, entre gritos e imprecações, homens trabalhavam como demónios, desencravando pontaletes, puxando cordas, lutando com grandes abas
de lona. Como sempre
acontecia na primeira hora de movimentação, os animais estavam nervosos, soltando em todos os tons, nas suas jaulas móveis, sinistros uivos de protesto. Os engenhos
de tração, pulsando e roncando, com os volantes girando, aumentavam o tumulto. Para Stephen, parecia que a cena vinha diretamente das gravuras do Inferno de Doré,
e que ele também estava sofrendo as torturas das almas danadas.


CAPÍTULO IX

DE ANGERS, O Circo PEROZ deslocou-se para Tours, depois para Blois, e então para Bourges e Nevers. O tempo se mantinha bom, o negócio prosperava, o velho Peroz usava
o seu chapéu num ângulo elegante. Após uma estada de três dias em Dijon, viraram para o sul e chegaram a Côte d'Or, detendo-se uma noite nas velhas cidades muradas,
com portões de acesso estendidas entre vinhedos, ao longo do vale do Ouche.
A princípio, Stephen era olhado com reserva pela companhia. Mas como a "retirada" semanal dos seus retratos era satisfatória, e uma percentagem fixa dessa soma ia
para o tronc, do qual todos os artistas participavam quando era distribuído em Nice, ele começou a ganhar importância. Além disso, as suas maneiras agradáveis e
disposição tranquila logo o puseram em termos amistosos com a maioria da troupe.
Formavam um painel humano. Fernand, o domador de leões que passeava destemido na jaula circular de ferro das feras, como um hussardo no seu uniforme azul e prateado,
com uma manga dramaticamente rasgada em pedaços, era o mais tímido dos homens, sofrendo agudamente de dispepsia nervosa e sendo mimado com uma dieta de leite por
sua devotada esposa. Os próprios leões eram inofensivos como vacas, na maior parte muito velhos, os machos castrados rugiam somente porque queriam o seu jantar,
e todo o aparato de cercar a jaula de auxiliares com ferros em brasa era pura encenação.
"Não tivemos um acidente em 20 anos", observava complacentemente Peroz no boletim que antecipava ao jornal local da próxima cidade do circuito.
ESCAPOU POR UM TRIZ NO CIRCO PEROZ
LEOA ATACADA DE LOUCURA
Fernand gravemente machucado
Max e Montz, ambos anões, eram os dois palhaços principais, um par internacionalmente famoso, cujo número maior era chamado "O Rapto", um esquete no qual Max, ataviado
em rendas grotescamente fora de moda, desempenhava o papel de noiva velhota. A rotina, executada num antigo automóvel Panhard que enguiçava e se recusava a funcionar,
caindo finalmente aos pedaços, era ruidosamente cómica. Max, com o seu beicinho de criança, fazia a platéia morrer de rir. Contudo, fora do picadeiro mostrava uma
melancolia mais profunda que a de Hamlet, tendo confiado a Stephen que a paixão de toda a sua vida era o violino.
Com tais incoerências diante de si, Stephen ficou menos surpreso ao descobrir que o equilibrista japonês era um adepto da Ciência Cristã, que Nina D'Amora, que cavalgava
em pêlo, era alérgica a cavalos e em consequência sofria cronicamente de asma, ao passo que Philippe, que todas as noites corria riscos espetaculares no trapézio
alto, passava a maior parte do seu tempo de folga tricotando meias.
Por formar um grupo com Jo-jo e Croc, Stephen via-os mais do que aos outros. Jean Baptiste, por baixo da sua aparente apatia, era um homem sensível e inteligente
- Stephen fez dele vários esboços notáveis, em pé na sua plataforma, diante da multidão boquiaberta. Fora bem educado no lycée de Rouen, e chegara a assumir uma
posição com boas perspectivas numa excelente firma, La Nationale. Então lhe viera aquela afecção incurável, transformando-o gradualmente de um ser normal em um monstro
medonho - um irremediável desenvolvimento - e levando-o ao desespero final de um show secundário no Circo Peroz.
Mas era a Jo-jo que Stephen dispensava uma particular atenção. O ex-jóquei era um rematado patife que roubava em qualquer oportunidade, trapaceava pelo interior
e embebedava-se até cair e ficar no chão estuporado, "curando" a bebedeira. Contudo, na sua duplicidade havia uma qualidade curiosamente humana de que se gabava:
jamais em sua vida ter deixado um amigo sem ajuda. Às vezes, de noite, depois de ter visto Emmy, quando vinha ao camion adaptado onde ele e os outros dois moravam,
Stephen surpreendia Jo-jo com o olhar peculiarmente fixo nele - menos por simpatia, uma emoção que Jo-jo era incapaz de sentir, do que por uma espécie de cínica
compreensão, levemente tingida de escárnio.
- Saiu com a sua garota?
- Parece, não?
- Divertiram-se?
Stephen não respondia.
Em várias ocasiões, o ex-jóquei parecia querer tratar do assunto, mas em vez disso encolhia os ombros e voltava-se para Jean Baptiste, iniciando com ele uma discussão
que tornava intencionalmente grosseira, como agora:
- Qual é a sua opinião sobre as mulheres, Croc?
- Considero-as com tolerante desprezo.
- Você fala como um marido.
- Sim... já fui casado. Minha esposa agora opera a passage à niveau em Croiset, no Chemin de Fer du Nord. A minha mais cara esperança é que um dia o expresso de
Paris, correndo 90 quilómetros por hora, atinja-a numa parte vulnerável.
- De minha parte, apesar de nunca ter me casado, gosto de mulheres. Mas só para dormir com elas. Para o resto, são piores que uma gonorréia.
- Mas a gente consegue isso dormindo com elas.
- Não com as minhas mulheres. Nunca escolho putas. Somente boas e honestas esposas camponesas que encontro no mercado e estão à procura de alguma ligeira variedade.
- Ah, variedade! Essa é a verdadeira palavra - à qual devo muito do meu último sucesso.
- Você, escamado?!
- Mas certamente. Tenho feito muitas conquistas com meus íntimos através da curiosidade. Mulheres entediadas com o leito matrimonial fazem qualquer coisa por uma
novidade. Li uma vez que um assassino condenado à guilhotina pode escolher dezenas de mulheres.
- Sacré bleu! Embora mereça, você não vai perder essa cabeça feia.
- Não. Mas exerço a mesma atração. Refletindo sobre a força da cauda do crocodilo, as mulheres acreditam que sou dotado de um formidável poder fálico.
- Mas você as decepciona, farceur.
- Isso só aconteceu uma vez, Jo-jo. Era uma gorda, solteirona, sem ligações, que durante meses me seguia na esperança de que os nossos repetidos enlaces produzissem
um jacaré. Infelizmente a criança nasceu normal.
Uma gargalhada profana encheu o caminhão, mas Stephen não participou dela. Sabia que o diálogo era dirigido a ele, não por qualquer intenção maldosa, mas como um
remédio administrado à vítima de uma febre renitente. Contudo, a sua doença já progredira tanto, que parecia incurável, intensificada pelos humores e incoerências
de Emmy. Às vezes ela o tratava bem, sentava-se nos degraus do caminhão, lisonjeada por suas atenções, cheia de sua própria importância, balançando os pés nus ao
sol. E conquanto não fosse pródiga com os seus favores, vez por outra, quando passeavam juntos no escuro, deixava que ele a beijasse antes de se afastar rapidamente.
Em vão ele dizia consigo mesmo que, numa natureza tão carente de profundidade, jamais despertaria uma paixão correspondente. Voltejava em torno dela como um marimbondo
em torno de uma nectarina, mas sem penetrar uma única vez na carne macia do fruto.
Numa tarde chuvosa, quando tinham deixado o agradável distrito do Saône pelo território estéril do Pays de Dombres, foram até uma pequena e dispersa comunidade de
Moulin-les-Drages. O seu destino inicial era St. Etienne, mas o trator principal quebrou na estrada, detendo uma longa fila de carros rebocados, e uma vez que o
conserto demoraria pelo menos 24 horas, era forçoso fazer um alto. Peroz, muito aborrecido por perder uma data importante, resolveu, após considerável debate, oferecer
um espetáculo em Les Drages e assim diminuir um pouco o seu prejuízo.
Mas tendo começado com má sorte, o dia continuou de mal a pior. Cartazes não tinham sido previamente afixados; a cidade, investigada, mostrou ser mesquinha e pobre,
sendo a única indústria uma olaria decadente. E a chuva aumentava continuamente. Quando chegou a noite, não havia mais de 100 pessoas na tenda gotejante.
Honrando a tradição Peroz, a maior parte dos artistas apresentou os seus números em bom estilo, voltando depois para a grande estufa da sala de estar. Emmy, contudo,
foi menos afortunada. Duas vezes, durante as suas evoluções preliminares, as rodas derraparam e ela foi atirada no chão molhado. Como resultado, cortou a parte principal
do seu número e saiu do picadeiro pedalando com a cabeça no ar. A primeira queda provocara risadas na plateia aborrecida; a segunda, uma positiva zombaria, seguida
de uma vaia com miados de gato.
Quando Stephen a viu depois, fora da tenda, ela ainda estava pálida com o vexame. Ele sabia que não devia falar, e por isso saiu com ela pela estrada em direção
ao acampamento, cerca de um quilómetro e meio distante, onde os carros estavam estacionados. Para piorar as coisas, não tinham andado muito quando desabou um forte
aguaceiro, forçando-os a se abrigar num celeiro ao lado de um campo aberto de restolho.
Quando seus olhos se habituaram à escuridão, Stephen olhou em torno, observando que o lugar estava cheio de palha. Rompeu o silêncio.
- Aqui pelo menos está seco. - E acrescentou: - Estou contente porque não apresentou hoje a parte final. Aquela gente não merecia.
- Que quer dizer?
- Bem... - Corou ligeiramente. - Eram gente um tanto antipática.
- Não notei. Eu sempre domino a minha plateia.
- Então por que não desceu?
- Porque a pista estava ensopada. Você não entende que na chuva isso é suicídio? - Num ataque de mau humor, seus olhos cintilaram para ele. Quem é você para ficar
aí me criticando? Sabe lá os riscos que eu corro todas as noites, enquanto você fica sentado lá atrás, rabiscando numa folha de papel, com menos coragem do que um
piolho? Eu desço ou não desço exatamente quando resolvo. E não vou quebrar o pescoço por nenhum padrezinho.
Ele a encarou por um momento, agora tão pálido quanto ela; depois, furioso, agarrou-a subitamente pela cintura.
- Não me fale assim!
- Largue-me.
- Só se me pedir desculpa.
- Fiche-toi le camp.
No próximo instante estavam lutando. Cego de raiva, recordando todos os insultos e desfeitas que ela acumulara nele, resolvido a vencê-la fisicamente, fechando ambos
os braços em torno dela como um lutador, tentou levá-la ao chão. Mas ela lutava como um gato selvagem, torcendo-se e revolvendo-se na palha fofa, malhando-o com
os cotovelos. Ela era mais forte do que ele julgava, com músculos curtos e poderosos de felina agilidade. Começou a respirar pesadamente, sentindo a pressão do seu
corpo contra ele. Retesando cada músculo, ele resistia. Rolaram por aqui e ali, sem decisão, até que ela, encolhendo a perna por trás dele, atirou-o longe com uma
rápida distensão.
- Está vendo? - disse ela. - Que isso lhe sirva de lição.
Ele se levantou devagar. Estava menos escuro do que antes; através da
clarabóia do celeiro, a lua era visível correndo entre as nuvens. Com um esforço, ainda tentando recuperar o fôlego, forçou-se a olhar para ela e viu, com confusa
surpresa, que ela não havia levantado; estava deitada de costas sobre a palha, com o vestido ainda desarranjado pela luta, observando-o através dos olhos apertados
com uma curiosa expressão especulativa, excitada, mas, ainda vagamente zombeteira. No seu rosto, geralmente de uma palidez fria, havia uma orla de cor, nos seus
lábios pálidos um sorriso ligeiramente mau. Por um momento, sustentou o olhar dele; depois, colocando ambos os braços embaixo da cabeça, numa atitude menos de sedução
que de expectativa, fez um movimento impaciente.
- Então, estúpido... que está esperando?
O convite que ele tanto havia procurado era inconfundível, contudo tão descarado, tão despido da menor semelhança de afeição, que ele não podia se mover. Petrificado
e repelido, mirava-a, e, girando, saiu do celeiro sem uma palavra.
- Molenga! - gritou-lhe ela. - Espèce de crétin.
Ele caminhou talvez uns 30 metros antes que o desejo lhe surgisse novamente, mais desesperado do que antes. Pouco se importava, queria-a, e haveria de possuí-la
de qualquer maneira. Virou-se e voltou.
- Emmy... - Estava fraco, encolhido de desejo por ela. Mas agora ela estava fria e dura como uma pedra.
- Vá para o inferno - disse ela outra vez zangada. - Agora espere outra oportunidade.
A expressão dos seus olhos dizia-lhe que era inútil insistir. Novamente
saiu do celeiro. Sem saber aonde ia, caminhava direto para a frente, com os olhos contraídos e os lábios apertados. Naquelas últimas semanas, vitimado por seu desejo
insaciável, reduzido a uma perpétua atitude de propiciação, já tinha sido bem humilhado. Mas agora, ferido em sua sensibilidade, sentia-se no mais baixo nível de
abjeção. Não podia, não devia submeter-se a isso.
Seus pensamentos não tomaram uma forma coerente até chegar de volta ao acampamento do circo. Uma vez que o motor enguiçado não seria reparado antes da manhã seguinte,
nada tinha sido desmontado, e no campo enlameado a grande tenda se erguia deserta e vazia. Alguma coisa buliu dentro dele. A luz brilhando através da abertura do
topo do dossel banhava o picadeiro com uma luz espectral, mostrava a pista inclinada, que não fora desmontada, brilhando de umidade. Um estranho impulso, um senso
de dever para consigo mesmo, lentamente foi tomando forma no seu espírito atormentado. Olhando para cima, viu que o equipamento ainda estava no lugar. Incapaz de
reprimir um arrepio, dirigiu-se para a escada de corda, seus pés deixando pegadas na serragem molhada. Segurou a corda e começou a subir vagarosamente. Momentaneamente
uma vertigem paralisou-o. O vento naquela altura tinha mais força, fazendo a pista oscilar, e o grande toldo, panejando e agitando-se, aumentava a sua impressão
de insegurança. Ele compeliu os seus músculos rígidos ação. Olhando para cima e usando uma mão, desenganchou a bicicleta da trava e, ainda seguro firmemente ao mastro
com o outro braço, alinhou as rodas. Montou trémulo na máquina e forçou-se a olhar para baixo.
O picadeiro, lá embaixo, era impossivelmente pequeno, um distante disco amarelo. A pista na qual ele estava pousado não tinha mais substância que uma simples fita.
Outro violento tremor lhe percorreu o corpo. Continuava seguro, podia voltar atrás. O medo petrificava-o. Lutou com ele. O que quer que acontecesse, tinha que descer.
Respirou fundo, firmou a sua posição na bicicleta, curvou-se para diante. Ao fazer isso, teve a vaga consciência de um grito, de uma figura encurtada e escura que
acenava lá de baixo. Se pretendia avisar, era demasiado tarde. Focando o olhar na lista branca central, com um supremo esforço da vontade, soltou a mão que o segurava.
Veio uma fração de segundo de voo, uma descida incrível, um empuxão para cima que o catapultou para o ar, e no mesmo instante, com um salto ruidoso, estava embaixo,
atirado com tremenda velocidade para fora do campo, estatelado na lama mole da vala que o margeava.
Por um momento lá ficou, imóvel, surpreso por estar vivo. Até que ouviu alguém correr para ele.
- Nom de Dieu... Está querendo se matar? - Era Jo-jo, desta vez em considerável estado de agitação.
- Não - disse Stephen, levantando-se tonto. - Mas acho que vou ficar enjoado.
- Seu filho da puta maluco. Que bicho lhe mordeu?
- Precisava de um pouco de exercício.
- Você está louco. Quando vi você lá em cima, pensei que estava liquidado.
- E que diferença isso teria feito?
Jo-jo encarou-o.
- Pelo amor de Deus, venha tomar um drinque.
- Muito bem - disse Stephen, e acrescentou: - Não comente isso com ninguém.
Foram até o café da aldeia. Depois de um bom copo de Calvados, a mão de Stephen parou de tremer. Lá ficou bebendo com Jo-jo, quase em silêncio, até que o lugar fechou.
O conhaque pesava-lhe na cabeça, fazendo-o sentir-se embotado e entorpecido. Mas na verdade não tinha realizado nada. A dor no coração ainda estava lá.


CAPÍTULO X

DUAS SEMANAS SE PASSARAM. Estavam em Nice. A cidade, iniciada pelos terraços de mimosas de La Burnette, era maior do que Stephen imaginava. A Promenade de Anglais,
a cintilante orla marítima, com os seus canteiros formais e hotéis ostentosos, dava uma desagradável nota pretensiosa. Mas o terreno do circo ficava bem para o interior,
na direção de Cimiez, atrás da Place Carabacel, cercado de ruas estreitas com feiras ao ar livre e pequenas barraquinhas de frutas, verduras e uma profusão de flores,
uma rede de coloridas e ruidosas passagens que tinham o encanto íntimo de Paris acrescido do calor do Sul.
- Nada mau, hein? - disse Jo-jo, expandindo o seu magro peito embaixo do colete rasgado.
- Gosta daqui?
- Muito. E você também vai gostar. - Fez um gesto abrangente. - Há muito interesse para um artista na Carabacel.
Em outro momento teria sido um entretenimento para Stephen explorar aquele bairro. Agora, tenso e inquieto, sentia que não poderia trabalhar. Mas obrigou-se a tal
com o seu bloco Ingres e fez alguns estudos dos nicenses - uma velha de touca branca vendendo alcachofras, um homem do campo
com uma rede de galinhas vivas, trabalhadores tapando um buraco na estrada. Contudo, o seu coração não estava naquilo, e ao calor do meio-dia voltou para o acampamento
a fim de descansar um pouco antes de começar o trabalho na sua barraca.
Na tarde seguinte, diante do seu cavalete na feira, completava o seu último retrato da sessão quando notou que havia um espectador atrás dele, ligeiramente inclinado
sobre uma bengala de rotim. Algo na sua postura despertou-lhe um eco na memória. Voltou-se.
- Chester!
- Como está, meu velho? - Harry rompeu no seu riso contagiante, descalçou uma luva de couro lavável e estendeu-lhe a mão. - Soube que você tinha entrado para o Peroz.
Mas por que diabo está com essa fantasia?
- Faz parte do trabalho.
- Claro, uma maneira de atrair os nativos. Mas não o faz sentir-se com cara de tolo?
- Ora, estou acostumado. Espere, que já estarei com você.
Enquanto Stephen dava rapidamente os toques finais no retrato, Chester tirou uma cigarreira e acendeu um cigarro. Espremido num traje de linho branco, sapatos marrons
e um chapéu panamá, tinha um ar abastado. Calças bem vincadas, camisa de tussor de seda, exibia uma elegante gravata-borboleta. O rosto estava bem queimado.
- Não posso acreditar que você esteja aqui. Embora tivesse dito que ia para Nice. Você parece estar bem.
- Estou em ótima forma, obrigado.
- Suponho que teve alguma sorte nas mesas.
- Para dizer o mínimo, tive. - O sorriso de Chester escureceu. - Eu estava nas últimas e apostei os 50 francos que me restavam no duplo zero. Por quê? Porque sabia
que teria menos que zero se perdesse. Deu o duplo zero. Deixei tudo. Por quê? Só Deus sabe. E deu o duplo zero outra vez. Meu Deus, você nunca viu semelhante pilha
de grandes e lindas fichas quadradas vermelhas em sua vida. Fui apanhá-la. Não pude. Alguma coisa dentro de mim dizia sorte pela terceira vez. Quando a roda girou,
quase morri. O duplo zero deu de novo. E desta vez recolhi tudo rapidamente e fui trocar no guichê do caixa. No dia seguinte mudei-me do prejuízo para Villefranche,
um pequeno apartamento. Desde então estou vivendo como um lorde. - Tomou o braço de Stephen. - Agora fale-me de você. Como vai o trabalho?
- Assim-assim.
- Vamos vê-lo.
Stephen guiou-o até o seu caminhão, apanhou algumas telas e inclinou-as, uma depois da outra, contra a calota da roda, enquanto Harry, com uma expressão profissional,
estudava cada uma a seu turno.
- Bem - declarou ele afinal. - Você pode ter algo aí, mas não compreendi bem o que é. Perspectiva? As suas pinceladas não são muito rudes?
- São intencionalmente rudes... para dar uma impressão de vida.
- Esses cavalos não são particularmente reais.
Harry apontou com a sua bengala para uma composição a têmpera de cavalos correndo como loucos numa tempestade.
- Não estou procurando expressar o óbvio.
- Obviamente não. Contudo... gosto que um cavalo se pareça com um cavalo.
- E quando você vê um homem montado nele, então tem certeza disse Stephen secamente, e empilhou as telas, percebendo que Chester não tinha a menor ideia do que ele
buscava. - Você ainda está pintando?
- Oh, naturalmente. Quando tenho tempo. Estou fazendo uma vista geral da Promenade. Às vezes saio com Lambert. Ele e Elise estão aqui. Ele pegou uma viúva americana
rica no Ambassadeurs e está dando expediente inteiro com ela.
Enquanto ele falava, soaram passos, e por trás da lona do caminhão apareceu Emmy. Quando se dirigia para Stephen, recuou de súbito, tendo notado a presença de Chester.
Uma expressão curiosa lhe assomou ao rosto.
- Que é que está fazendo aqui?
- Eu geralmente apareço quando menos se espera.
- Como um cêntimo falso?
- Desta vez como uma bela nota de mil francos - respondeu Chester amavelmente, sem se deixar diminuir. - Sentiu a minha falta?
- A privação foi insuportável.
- Não seja rude com o tio Harry. Você sabe que os seus nervos são fracos. - Consultou o relógio. - Tenho que partir. Devo estar no Negresco às seis. Mas quero que
vocês venham almoçar amanhã no meu apartamento Rue des Lilas, 11-B - ao largo do Boulevard General Leclerc. Os Lamberts também estarão lá. Os dois estão livres?
Ótimo. São apenas uns poucos quilómetros pela Corniche, o bonde passa na minha porta.
Sorrindo e acenando com a bengala, chamou um fiacre no fim do acampamento, saltou nele, reclinou-se no encosto acolchoado e mandou tocar a galope. Emmy acompanhou-o
com olhos ressentidos.
- Voyou metido a sebo. Mandando a gente tomar o bonde enquanto ele vai de carruagem.
- Não devemos invejá-lo. Ele também já teve os seus maus momentos.
- Não acredito que ele tenha acertado um coup. Deve estar vivendo com alguma velha.
- Não mesmo. Chester é o tipo de sujeito com sorte para ganhar uma bolada. Além disso, só se interessa por moças bonitas.
- Um dia ele vai ver o que é bom. - Mostrou os seus dentinhos agudos.
- Sale type. Nunca fui com a cara dele.
- Então você não irá lá amanhã...
- Claro que irei. Não seja tão fou. Faremos com que ele se arrependa da sua pretensão.
Ele a olhou perplexo. Obviamente detestava Chester. Por que, então, aceitar o seu convite? Talvez quisesse ver os Lamberts. Jamais soube o que ela tinha em mente.
No dia seguinte, quando veio ao seu encontro, ela usava um vestidinho amarelo de musselina bordada e uma fita da mesma cor em volta do cabelo cheio e curto. Deu-lhe
um pequeno sorriso com os lábios apertados.
- Podemos pegar um fiacre?
- Isso mesmo. Nada de bonde para nós.
Ela escolheu a mais elegante vitória da fila. Sentou-se confortavelmente.
- Como estou?
- Maravilhosa.
- Eu precisava de um vestido novo. Comprei este hoje de manhã na Galerie Mondial.
- É encantador - disse ele. - E assenta-lhe perfeitamente.
- Gosto de mostrar a essa gente que não sou uma coisa embaixo dos pés deles. Chester especialmente. Ele é muito cheio de si.
- Talvez, mas não é um mau sujeito. Acho-o apenas um pouco mimado. É bonito demais.
- Acha-o atraente?
- Acho que muita mulher tola já tem caído pelos seus belos olhos azuis e cabelos crespos.
Ela lançou-lhe um penetrante olhar de soslaio.
- Pelo menos eu não sou uma delas.
- Não - sorriu Stephen. - Estou um tanto aliviado por você detestá-lo. Rodaram pela Avenue Raspail, um largo logradouro sombreado de catalpas, ao longo do Boulevard
Carnot, e depois pela curva da baía para Beaulieu. O céu estava azul, uma brisa de deliciosa fragrância soprava das colinas. Ele apertou-lhe a mão, feliz - ela se
deixou segurar por um momento. Ultimamente, as atenções que ele tinha para com ela, os pequenos presentes que continuamente lhe dava, as restrições que por um esforço
de vontade impunha a si mesmo pareciam estar causando alguma impressão nela.
- Você está sendo gentil comigo - murmurou ela.
Essa ligeira observação tornou-o ridiculamente feliz. Talvez, por fim, ela pudesse aprender a amá-lo.
Dali a pouco rodavam por Villefranche. O apartamento de Chester, na Rue des Lilas, uma rua em ângulo reto com a avenida, integrava uma série de
suítes que abriam sob um balcão comum em torno de um pátio, atendidas por um pequeno hotel, o Hotel des Lilas. Um pequeno chafariz cercado de cactos gorgolejava
no centro do pátio, e tubos verdes de oleandros floridos decoravam a varanda. O lugar parecia limpo, agradável e discreto - exatamente a espécie de pied-à-terre
que Chester, com a sua inclinação para se tratar bem, acharia sem o menor esforço.
Foram os primeiros a chegar, e Harry recebeu-os efusivamente.
- Bem-vindos ao castelo ancestral. Não é grande, mas tem história.
- Má, sem dúvida - disse Emmy.
Chester riu. Vestia calças de flanela branca e um blazer azul com botões de metal amarelo. Seu farto cabelo castanho, recém-ondulado, tinha uma listra de cor mais
clara na testa.
- Se é isso o que você pensa, não posso deixá-la mentir.
Enquanto ele levou Emmy ao dormitório para deixar a sua echarpe e luvas, Stephen relanceou os olhos em torno da pequena sala de estar. Era mobiliada convencionalmente,
mas nas paredes havia duas aquarelas emolduradas que reconheceu como sendo trabalho de Lambert. Examinou-as de perto - uma era um arranjo de ervilhas-de-cheiro num
vaso Ming, a outra um bando de cegonhas paradas num lago nevoento - e ao olhá-las imaginava como jamais poderia ele ter apreciado semelhante beleza. Belamente executadas,
com uma delicadeza quase feminina, eram contudo vazias e insípidas, despidas de toda vitalidade ou intenção. Podiam ter sido feitas por uma hábil professora de arte
de uma escola superior para moças. Faziam-no avaliar que longa estrada tinha percorrido desde aqueles primeiros dias em Paris. Se a jornada fora áspera, pelo menos
lhe tinha ensinado em que consistia realmente uma obra de arte.
- Boas, não? - Chester tinha voltado com Emmy. - Lambert, num gesto muito decente, me emprestou as duas. O preço está nas costas. Há sempre uma chance de que os
meus visitantes queiram comprá-las.
Trouxe uma garrafa de Dubonnet e serviu três copos, depois passando uma bandeja de camarões frescos.
- Posso tentá-la, mademoiselle Rouquet de la baie.
- Você mesmo os apanhou?
- Claro. Levantei-me antes do desjejum.
Rearranjando o cabelo, ela olhou para ele, mas pela primeira vez com menos animosidade.
- Que grande mentiroso!
Harry riu-se gostosamente.
- Também sou muito bom nisso.
A campainha tocou e os Lamberts entraram. Pareciam pouco mudados, embora Philip estivesse mais gordo, mais lânguido nas suas maneiras. Usava
um terno cinza com um cravo azul na lapela e trazia pendurada no indicador uma caixinha de pâtisserie amarrada com uma fita.
- Trouxe-lhe alguns bolinhos do Henri, Chester. Acompanharão o café. Naturalmente, você está lembrado da minha gulodice, Desmonde. - Espichou-se comodamente no divã
e delicadamente aproximou as suas finas narinas da flor que tinha na lapela. Elise, que vestia o inevitável verde, e cujo sorriso parecia um tanto mais fixo do que
antes, estava conversando com Emmy.
- Agora, conte-me tudo como um bom menino.
Stephen começou um relato a seu respeito, mas antes que fosse muito longe viu que Lambert não estava prestando atenção, e interrompeu-se.
- Você sabe, Desmonde - disse Philip num tom ligeiro e divertido eu desejaria, pelo seu próprio bem, que você não se tivesse metido nessas coisas pesadas. Você não
pode atacar a arte com uma picareta. Por que suar como um britador de pedras? Faça como eu e use um pouco de delicadeza, um pouco de habilidade. Eu nunca trabalhei
demais, e no entanto clientes não me faltam. E eu vendo. Admito que tenho talento, e isso torna as coisas mais fáceis para mim.
Stephen ficou silencioso. Podia muito bem adivinhar a facilidade de Lambert. Mas o anúncio de Chester, dizendo que o almoço estava servido, salvou-o da resposta.
A refeição fornecida pelo hotel lá de baixo era esplêndida, servida por um jovem garçom que, para apresentar uma comida tão quente, devia ter executado estranhas
proezas de agilidade nas escadas. Uma lagosta cozida à moda da terra, seguida de um risotto de frango, e depois um queijo soufflé; antes, Harry, com o toque de um
perito, tinha feito saltar a rolha de uma garrafa de Veuve Cliquot. Quanto mais alegre a mesa, porém, mais Stephen se sentia completamente alheio a ela. Em certa
época tinha apreciado aquela sociedade, mas agora, apesar do enorme esforço para se coadunar com ela, fracassava tristemente. Que lhe tinha acontecido para que se
sentasse ali, mudo, com a consciência mortal de que não mais pertencia a ela? Emmy, bebendo mais champanhe do que devia, exibia tolas personificações de Max e Monx
que faziam Chester, agora mais ruidoso do que nunca, estourar de riso. Lambert, a quem Stephen tinha antes admirado, parecia-lhe agora exatamente como Glyn o via
- um poseur e diletante, um amador fracamente dotado. Perfeitamente amaneirado, bem-educado, garantido por sua pequena renda regular, recusando-se a ser perturbado
ou excitado, flutuava a esmo, nunca se exercendo a sério, tocando de leve o creme da vida. Cultivando mulheres, arranjava clientes que lhe encomendavam retratos
ou que pagavam bons preços por seus leques e aquarelas. Elise, com o seu sorriso fixo e perfil nítido, mostrava sinais dessa existência. Sua aparência começava a
murchar e as rugas a juntar-se embaixo dos seus
olhos verdes e pestanudos; contudo, embora a sua capacidade de lisonjeá-lo já estivesse um tanto gasta, a sua inexaurível devoção fazia dela, cada vez mais, uma
parceira complacente naquele jogo de blefe artístico, cujo mero pensamento levava Stephen a remexer-se mais inquieto na cadeira.
Depois do café e bolinhos, dos quais Philip, desculpando-se com uma delicada alusão literária ao jovem com as bombas de creme de Stevenson, comeu cinco, sentaram-se
na sacada. Continuando a monopolizar a conversação, descreveu, com irónica meticulosidade, as deficiências faciais e sociais da mulher idosa que retratava atualmente.
- De fato - concluiu ele aereamente - não se poderia esperar mais da viúva de um enlatador de carne de porco de Chicago.
- Imagino que o cheque dela foi bom.
- Bem... naturalmente.
Embora tentasse livrar-se da sua apatia, Stephen via o tempo passar com interminável lentidão. Por fim, cerca de três horas, aproveitando um intervalo na conversação,
olhou para Emmy.
- Acho que temos de ir agora.
- Oh, tolice - protestou Chester. - A tarde ainda é jovem. Vocês não podem nos deixar agora, de modo nenhum.
- Se eu não for chegarei tarde no meu emprego.
- Então por que você não fica, Emmy? - sorriu Harry afavelmente. Houve uma pausa. Stephen notou sua hesitação, mas ela logo sacudiu
bruscamente a cabeça.
- Não. Eu vou agora.
Despediram-se, o porteiro lá embaixo conseguiu-lhes um fiacre. Ao dobrarem a esquina, fora da vista do hotel, Stephen inclinou-se para ela.
- Foi bondade da sua parte vir comigo. Gostei disso.
- E eu não gosto de me tornar fácil.
Não era a resposta que ele esperava; no entanto, animado pela recente mostra de sua consideração, chegou-se mais perto, sob a coberta do avental da carruagem, e
procurou-lhe a mão.
- Não - disse ela, empurrando-o irritada. - Não está vendo como me sinto?
E ao voltar-se surpreso, ela, com franqueza vulgar, deu uma desculpa que, se fosse verdade, teria talvez causado a sua prematura partida.


CAPÍTULO XI

APÓS O TUMULTO E EXCITAÇÃO das viagens através das estradas do país, muitos membros do Circo Peroz acharam agradável estabelecer os seus alojamentos de inverno na
Côte d'Azur. Ali era a sua base; muitos tinham relações em Nice, Toulouse e Marselha, e com mais tempo disponível, poderiam visitá-las. Embora o negócio continuasse
firme, o programa tinha sido reduzido para cinco espetáculos por semana, e após a grande noite de domingo, segunda e terça-feira, ficavam livres.
Os amigos de Stephen já haviam Se acomodado à nova rotina. Max reiniciara as suas lições de violino e podia ser visto, todas as tardes, com a caixa preta em forma
de pêra debaixo do braço, partindo no trote miudinho forçado por suas diminutas pernas. Croc, por outro lado, passava a maior parte do seu tempo na Bibliothèque
Nationale, curvado sobre grossos volumes, expondo na volta, a Stephen e Jo-jo, uma nova versão de Schopenhauer, ao passo que Fernand, parecendo gasto e sonhador,
ia todas as manhãs, de braço dado com a esposa, a um homeopata de Cimiez para a irrigação diária prescrita para o seu flux intestinal. Mais prático, Jo-jo tinha
achado uma ocupação subsidiária nas cavalariças do Negresco, onde, a pretexto de lavar as carruagens, passava a maior parte do tempo tagarelando com cocheiros e
motoristas, levando um livrinho sobre as corridas locais e comentando sarcasticamente, com o canto da sua boca de ratoeira, os visitantes que entravam e saíam do
hotel.
Stephen, por sua vez, tinha começado o desenho preliminar para uma pintura na qual pretendia utilizar os estudos individuais feitos na grande tenda, a que pretendia
chamar Grcus. Esse arranjo complexo, um agrupamento de inumeráveis figuras com as suas cores combinadas e contrastantes, era difícil e, desde que ele não tinha estúdio
nem tela suficientemente grandes, propunha-se seguir o precedente dos antigos mestres e construir a sua composição, primeiro que tudo, numa escala menor e menos
rigorosa. A ideia lhe surgiu à medida que progredia, e ele começou a sentir que semelhante material, recolhido em semanas de paciente observação, devia dar um magnífico
resultado.
Desde o dia do almoço no Hotel des Lilas, o barómetro dos humores de Emmy tinha lentamente chegado a "bom tempo". Após esse evento, não tinham
mais visto Chester ou os Lamberts, e parecia que essa ligação estava finalmente rompida.
No fundo do espírito de Stephen, talvez por uma observação de Glyn, sempre havia a ideia de uma afeição entre Chester e Emmy. Era-lhe gratificante o fato de que
Emmy tivesse aceito a brusca interrupção de sua amizade com tão pouco interesse. Ela, como os outros, tinha voltado a sua atenção para Nice. A irmã de Madame Armande,
que morava nos arredores, logo após o subúrbio de St. Roch, tinha uma pequena chapelaria dedicada principalmente à produção e venda de chapéus de palha de carnaval.
Emmy, como muitas moças francesas, tinha talento para os trabalhos de agulha, e todas as tardes tomava modestamente o bonde para ganhar algum dinheirinho na oficina
do Chapeau de Paille. Como resultado, Stephen via-a menos do que o usual. Contudo, experimentava um certo conforto íntimo com esse aspecto inesperadamente sossegado
da sua natureza. Tal atividade, no entanto, devia ser terrivelmente monótona, e ele disse para si mesmo que devia procurar quebrar essa monotonia. No Clarion de
Nice, descobriu que uma companhia lírica, cumprindo um contrato no Casino Municipal, faria uma representação de La Bohême na segunda-feira seguinte. Esse romance
ultrapassado da vida de estudante em Paris talvez a entretivesse, e no seu encontro seguinte ele falou no assunto.
- Você quer ir ao teatro na segunda?
- Teatro? - Pareceu ligeiramente perturbada. - Você não está ocupado com a sua pintura?
- Não de noite, com certeza.
- Bem... se você quiser.
- bom. vou comprar as entradas hoje.
Andou todo o caminho até o Casino e comprou duas cadeiras no grand circle, e então, sabendo o quanto ela gostava de "uma noite fora", reservou uma mesa no restaurante
para a ceia nessa mesma noite. Começou a esperar o evento com aquela antecipação que tão dolorosamente o afetava sempre que pensava em ficar a sós com ela.
Segunda-feira chegou. Quando terminou a sua sessão na barraca, banhou-se com água da bacia no lado de fora do seu alojamento e vestiu o seu terno e uma camisa limpa
que lavara na véspera. Justamente quando se aprontou, ouviu passos atrás dele. Voltou-se e viu uma expressão de pesar nos olhos de Emmy.
- Que houve?
- Não posso ir com você esta noite.
- Não pode?
- A irmã de Madame Armande está de cama, com l agrippe. Tenho que ficar com ela.
- Madame Armande pode fazer isso.
- Sim, mas há pedidos de urgência para atender.
- Talvez...
- Não. Tenho obrigação de ir.
Houve uma longa pausa.
- Bem... suponho que não tenha jeito.
Ficou terrivelmente abatido, mas não se importava em mostrá-lo.
- Você deve convidar alguém. Não desperdice as entradas.
- Ora, para o diabo os bilhetes! Que importam eles?
- Sinto muito. - Deu-lhe um tapinha condoído.
- Outra noite, quem sabe.
Aquele ar de interesse preocupado diminuiu a sua decepção. Todavia, ao vê-la apressar-se, indo em seguida despejar lentamente a água cheia de espuma de sabão da
bacia, a sua tristeza era tão grande, que Jo-jo, que acabava de voltar, descansando com os cotovelos no degrau, tendo testemunhado a recente cena, veio fazer perguntas.
- Como vai a coisa? - Falava sem tirar a palha que tinha entre os dentes.
- Muito bem.
- Você está todo emperequetado.
- Estou vestido, se é isso que quer dizer.
- Aonde ia?
- Ao teatro. Venha comigo. É La Bohême.
- Variedades?
- Não, ópera.
- Ópera? Ah, não. Mas vamos tomar um drinque no Mas Provençal. Atravessaram a praça em direção a um café das proximidades. Era um lugar reles mas agradável, com
compridos bancos e mesas na calçada. No interior obscuro, um piano mecânico estava tocando, e o pessoal se achava sentado em mangas de camisa. Jo-jo acenou para
alguns operários que, a caminho de casa, tinham parado para uma caneca de cerveja.
- Qual é o seu veneno, Abbé?
- Qualquer coisa... Vermute.
- Vermute Quelle blague. Você vai tomar é um conhaque. - Pediu em voz alta um Pernod e um conhaque.
As bebidas foram trazidas por uma raparigona de braços nus, vermelhos, e seios redondos, cheios debaixo da blusa, como cocos.
- Aí está uma garota para você. - com mão prática, Jo-jo filtrou o Pernod através de um torrão de açúcar, e tomou um gole confortante do líquido opalescente. - O
nome é Suzie. E não é poule. Por que não experimenta a sorte? Essas mulheres grandalhonas gostam de homens pequenos.
- Ora, vá pró inferno!
Jo-jo riu brevemente.
- Isso é melhor. O problema com você, Abbé, é que nunca se entrega.
- Que quer dizer?
- Sacré bleu! Você pode se desamarrar um pouco. Então nlo fiquei sabendo que você tem tutano - aquela noite... quando desceu na pista? Voando com todo o seu corpo.
Fique alegre, embebede-se e divirta-se.
- Já tentei isso. Comigo não dá resultado.
- Há um chá dançante todas as noites no Negresco. De muita classe. Pode ser interessante.
Havia uma intenção esquisita na voz de Jo-jo, mas Stephen simplesmente abanou a cabeça.
Jo-jo abriu os braços resignado. E depois disse:
- Que aconteceu com a beleza da bicicleta?
- Teve que ficar com a irmã de Madame Armande.
- Armande tem irmã? Haverá duas cadelas iguais neste mundo infeliz?
- Ela tem uma chapelaria em Lunel, atrás de St. Roch. E está doente.
- Uma obra de caridade - fez Jo-jo, baixando a cabeça. - Uma segunda Mademoiselle Nightingale.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual ele continuou a olhar para Stephen com um satírico aperto nos lábios. Uma vez, pareceu que ia falar, mas em vez disso encolheu
ligeiramente os ombros, pediu novas bebidas com um gesto, e começou a falar sobre as corridas do dia seguinte.
Às sete horas, deixaram o café; Jo-jo foi dar água e comida aos seus árabes, e Stephen ficou só. Sentia-se melhor, aquecido e mais alegre depois de três conhaques,
mas ainda assim tinha pouca disposição para ir sozinho ao Casino. A noite era deliciosamente linda - e seria uma pena gastá-la num teatro abafado. De repente lhe
veio uma ideia, Lunel não ficava muito longe, apenas uma viagem de bonde de 20 cêntimos. Por que não dar um pulo até a oficina de Madame Armande e, mesmo que fosse
obrigado a esperar até que ela terminasse o seu trabalho, voltar com Emmy? Com sorte, poderiam até chegar a tempo para o jantar.
A perspectiva apressou os seus passos e ele atravessou o Boulevard Risso para a Place Pigalle, onde, sem dificuldade, achou um bonde para a zona norte. A viagem
foi lenta, e mais longa do que ele supunha, mas não eram oito horas e ainda havia luz quando ele chegou ao seu destino. Lunel, como cidade, era surpreendentemente
pequena e pouco desenvolvida, o terreno plano quase todo ocupado por hortas, pouco mais que uma coleção de casinhas novas de estuque margeando uma única rua não
calçada. Stephen subiu e desceu duas vezes essa rua sem encontrar o Chapeau de Paille. Na verdade, as poucas lojas que lá havia em nada se pareciam com uma fábrica
de chapéus. Intrigado e confundido, Stephen ficou um momento parado, enquanto rajadas de vento
levantavam poeira em toda parte, e então foi à agência do correio, que, funcionando na mesma casa de uma épicerie, ainda estava aberta. Ali, em resposta às suas
indagações, ficou sabendo que não havia modista, e positivamente nenhuma fábrica de chapéus, em Lunel.
Com uma expressão curiosa na face, sentado no canto de um bonde quase vazio, Stephen voltou para Nice. O veículo sacolejante deixou-o meio tonto. Teria cometido
um engano estúpido por ouvir mal o nome do lugar que ela lhe tinha dito? Não, estava certo de que ela dissera Lunel, não uma, mas diversas vezes. Não o teria despistado,
inventando aquela desculpa à última hora? Isso também era impossível - ela vinha visitando a irmã de Madame Armande diariamente nos últimos 15 dias. Sua expressão,
se havia, tornou-se ainda mais fixa. Estava bem escuro quando chegou a Carabacel. Tudo tranquilo e deserto no acampamento. Teve um impulso de ir ao seu alojamento
e ver se ela tinha regressado, mas o orgulho e uma sensação de cansaço físico o contiveram. Já tinha se tornado suficientemente ridículo sem fazer uma cena àquela
hora. Entrou no seu caminhão, deitou-se no beliche e fechou os olhos. Tiraria tudo a limpo com ela de manhã.


CAPÍTULO XII

No DIA SEGUINTE, embora acordasse cedo, não a viu até as 11 horas, quando ela apareceu nos degraus do vagão de chinelos e um penhoar de algodão azul e branco. Sentou-se
no primeiro degrau, segurando uma xícara de café. Ele foi até ela.
- bom dia... Como deixou a sua doente?
- Oh, bem melhor.
- Chamou o médico?
- Naturalmente.
- Espero que não tenha sido nada sério.
Ela tomou um gole de café.
- Eu lhe disse que era uma gripe.
- Mas isso não é contagioso? - disse solícito. - Você deve se cuidar.
- Eu me cuido.
- Estou falando sério... venta muito em Lunel. E o bonde demora muito a chegar.
Ela olhou para ele em silêncio sobre a beira da xícara.
- Que é que você sabe de Lunel?
- Estive lá ontem à noite.
Ela o olhou desconfiada, e deu uma risada.
- Não brinque comigo. Você foi ao teatro.
- Não, eu fui a Lunel.
- Por quê?
- Pensei que podia comprar um chapéu. Infelizmente, não pude achar nenhuma chapelaria.
- Aonde é que você quer chegar.
- E também não encontrei nenhuma irmã de Madame Armande.
- Quem diabo você pensa que é, metendo o nariz nos assuntos dos outros? Saindo para me espionar. Seu rato sujo.
- Pelo menos não sou mentiroso.
- E quem é que mentiu? Falei a verdade. Se eu quisesse, poderia ter levado você lá. Onde você andou zanzando ontem à noite, não sei. Mas o lugar existe sim. Além
do mais - ajuntou ela com um toque final - a irmã de madame é viúva; o nome dela não é Armande. E agora talvez você vá cantar noutra freguesia e me deixe tomar o
meu café em paz.
Com o coração batendo como um martelo, Stephen olhou para ela com um misto de raiva e desespero. Sentia que ela estava mentindo - quando a ocasião exigia, ela podia
ser escorregadia como uma enguia. Mas a sua própria veemência era suspeita. Contudo, era até possível que falasse a verdade. Queria com toda a sua alma acreditar
nela. Sempre pronto a imputar a falta a si próprio, ponderou que aquele terrível aperto que sentia no coração poderia tê-lo levado a julgá-la mal. O desejo de reconciliação
apoderou-se dele e o enfraqueceu.
- Eu esperava tanto a nossa noite juntos.. . - murmurou ele.
- Isso não é desculpa.
- Seja como for, vamos esquecer isso.
- Só se me pedir desculpas por ter me chamado de mentirosa. Pede?
Ele hesitou, mordendo nervosamente os lábios, de olhos baixos. Seu orgulho impedia-o de aceitar aquela humilhação por parte dela. Mas a necessidade que tinha dela
tornava-o abjeto.
- Está bem... se quiser. Sinto tê-la ofendido - disse ele, extraindo à força as palavras que o faziam sentir-se desprezível.
Passou o resto do dia dilacerado pela indecisão, desejando estar com ela. Serviu-lhe de algum consolo observar que ela não saíra do acampamento. À noite, retirou-se
para o seu alojamento imediatamente depois do espetáculo. Mas sabia que não poderia continuar daquele modo, isso era impossível; de uma maneira ou outra, precisava
certificar-se.
No dia seguinte, após o almoço, quando ela saiu para a Place Pigalle, ele a seguiu. Ao saber de casos semelhantes, sempre desprezara o marido desconfiado ou o amante
ciumento que espionava a mulher que lhe causava suspeitas. Agora não podia evitá-lo. Mas ele não era nenhum especialista no assunto e, no seu esforço para não ser
visto, perdeu a sua presa no terminal da Pigalle. Contudo, vira que ela tinha tomado um bonde na direção do passeio público, e como outro estava no ponto, embarcou
nele. Em 15 minutos estava diante da costa. Procurou Emmy apressadamente em torno, andou até a esplanada e voltou, contornando o Casino, mas não viu nenhum sinal
dela. Então, como estava indeciso, de repente se lembrou do jeito de Jo-jo ao falar no chá dançante do Negresco. Embora a possibilidade parecesse remota, atravessou
a rua, entrou nos jardins do Musée Masséna e olhou por cima das grades de pontas douradas, através da Rue Rivoli, para o terraço coberto do hotel. Ao lado, sob um
toldo estendido do saguão até uma pequena plataforma com mesas de chá, uma orquestra, escondida entre as palmeiras, executava uma marcha que alguns casais dançavam.
A princípio, pensou que ela não estava lá. Então, por trás do biombo da folhagem, outra parelha saiu para a pista. A moça sorria quando, com um gesto prático, estendeu
os braços para o companheiro, que a enlaçou pela cintura. Deslizaram juntos - Chester e Emmy.
Imóvel, com a face estranhamente inexpressiva, Stephen ficou a olhá-los, observando como se moviam graciosamente. Seus passos combinavam perfeitamente. Quando a
música parou, permaneceram de pé, juntos, e quando o bis começou, prosseguiram sozinhos. Tão perfeita era a sua exibição, que os deixaram monopolizar a pista, e
quando afinal foram sentar-se, receberam um murmúrio polido de aplausos.
Stephen arrancou-se dali, caminhou lentamente para o passeio público e sentou-se num banco do qual podia ver a entrada do hotel. A dor no seu coração era quase insuportável.
Apertava os olhos ao pensar em como ela o havia enganado. Como ela e Chester deviam ter rido juntos com a invenção da chapelaria fictícia, e a sua crença inteiramente
falsa de que ela estava modesta, industriosamente trabalhando com a agulha, quando durante todo o tempo tinha estado com Harry. Madame Armande era inquestionavelmente
outra parceira daquela peça burlesca e tinha sem dúvida espalhado a notícia entre os membros da companhia. Certamente Jo-jo sabia que ele estava sendo um grandíssimo
tolo, embora, por pena, nada tivesse dito.
No entanto, tudo isso não era nada diante da angústia e da amarga fome da alma que agora o possuíam. Maior ainda que a sua raiva e mortificação, era aquela frenética
intensificação dos ciúmes e do desejo. Através da mágoa e da humilhação, ainda a queria; através do ódio, ainda tinha necessidade dela. E sentado ali, com a cabeça
entre as mãos, procurara achar desculpas para racionalizar
a conduta de Emmy. Afinal de contas, ela estava apenas dançando com Harry, e isso decerto não era um crime. Conhecem-se muitos parceiros de dança que não sentem
nada um pelo outro e estão unidos por não mais que um prazer puramente impessoal pela arte.
A música continuou a tocar intermitentemente até as seis horas, e quando a pista esvaziou, ele viu os músicos saírem com os seus instrumentos. Seguiu-se um demorado
intervalo. Com toda a certeza, Harry e Emmy tinha ido ao bar - imaginava-os muito juntos nos bancos altos, Harry à vontade e descansando, na maior intimidade com
o barman.
Demoraram tanto a reaparecer que ele começou a temer que tivessem deixado o hotel por outra saída. Mas, por fim, já quase noite, filas de luzes coloridas se acenderam
na frente e eles apareceram, descendo os largos degraus do pórtico, e se dirigindo para o passeio. Falando junto, animadamente, passaram tão perto que ele poderia
tê-los chamado. Mas manteve os lábios apertados, e quando já estavam uns 30 metros adiante, levantou-se, quase automaticamente, e seguiu-os.
Não foram muito longe. A uma pequena distância do Casino, deixaram o passeio público, tomaram a rua lateral do Marche aux Fleurs, na Cidade Velha, e entraram num
pequeno restaurante - a Brasserie Lutétia. Jantar para dois, pensou Stephen sombriamente, e teve um impulso hesitante, doentio, de entrar e sentar-se na mesa deles
- em vez disso, abotoou a gola do paletó e postou-se na sombra de um portal.
Não muitas pessoas entravam na brasserie - era um desses lugares sossegados, onde se podia ter completa intimidade. Uma vez, um garçom saiu à porta, olhou para cima
e para baixo, como se esperasse fregueses, e entrou novamente. Um gato passou de mansinho pela calçada. Do portal, sobre os telhados no fim da rua, Stephen podia
distinguir a massa escura das montanhas e altos pontinhos de luz que talvez fossem estrelas.
Teve que esperar até depois das nove, antes que eles emergissem. Somente a grande premência da sua necessidade de descobrir a verdade ajudou-o a manter-se naquela
triste e degradante vigília. E o momento se aproximava - um tremor o percorreu ao vê-los em pé sob as luzes da marquise. Com certeza, Chester estava para se despedir,
ou então ia levá-la de volta à Place Pigalle.
Estavam agora falando com o garçom, o mesmo que vira sair com eles, e Harry disse alguma coisa que os fez rir. Um fiacre chegou ruidoso, chamado da fila na praça,
lá embaixo, uma gorjeta foi dada, Emmy e Chester entraram. Rapidamente, ao se afastarem, Stephen andou até a praça, saltou noutra carruagem e disse ao cocheiro que
os seguisse.
Rodaram pelo Mercado das Flores deserto, entraram num labirinto de ruas antigas e viraram para a costa; então, com o coração encolhido, Stephen
viu que eles se dirigiam diretamente para Villefranche. Logo estavam lá. No fim da Rue des Lilas, Stephen mandou o cocheiro parar e pagou a corrida. Mais adiante,
na rua tranquila, viu o outro veículo parar. Ambos os seus ocupantes desceram, desaparecendo no pátio. Agora as duas carruagens tinham sumido, e ele ficara só na
rua deserta. Instintivamente olhou para o relógio - o mostrador luminoso indicava 10:30. Lentamente, andou para o Hotel des Lilas e ergueu os olhos para a sacada
do apartamento de Chester. A luz de um quarto estava acesa, e ele o identificou como o dormitório, podendo ver duas figuras se moverem por trás da cortina amarela.
A luz permaneceu por mais alguns minutos, e depois se apagou.
Quanto tempo ficou ali, olhando tristemente para o apartamento escuro, Stephen não poderia dizer. Por fim, deu as costas e afastou-se.


CAPÍTULO XIII

VOLTOU À PLACE CARABACEL antes da meia-noite. Através da dor surda que sentia na testa, sabia que deveria ir embora. Metodicamente, sem perturbar Jo-jo e Croc, ambos
adormecidos, reuniu os seus pertences na mochila. Amarrando as telas juntas, prendeu-as nas costas e, com um último olhar para os seus companheiros, saiu na sua
bicicleta. Dirigiu-se para o norte, pedalando velozmente na estrada plana que levava a St. Agustin, com a vaga intenção de pegar a route nationale que finalmente
o levaria a Auvergne. Sentia necessidade de estar com Peyrat - devia ter feito aquilo semanas antes. Mas sobretudo era premido pelo desejo de escapar, de obliterar
da memória aquelas últimas e intoleráveis semanas.
Quase pela manhã, desmontou, estendeu-se num espaço da charneca à beira da estrada e fechou os olhos. Não pôde dormir, mas, tendo descansado até que o sol despontara,
pôs-se novamente em marcha. E agora via pela sinalização que não estava na grande route, mas numa estrada secundária que corria entre as gargantas rochosas do Var
e subia serpeando para Touet e Colmars. Todavia, não quis desandar caminho. Todo o dia e no seguinte trabalhou nos pedais, mais do que a sua força lhe permitia,
no esforço para esquecer. Em Entrevaux, entrou erradamente numa estrada secundária, mais inclinada, que coleava para as montanhas através de um pinheiral. A pavimentação
era má, o progresso ali era mais difícil, havia um opressivo fragor de água se despejando
à medida que a torrente estrondeava sobre o seu leito de pedregulhos; contudo, o estranho medo de voltar mantinha-o tocando para a frente, comendo às pressas quando
podia, dormindo no chão nu, atrás de montes de feno, em estábulos desertos, com a sua capa dobrada como travesseiro. Uma aversão mórbida a qualquer contato humano
afastava-o das mais humildes estalagens.
O tempo piorara, e entre as colinas era úmido e nevoento. Na manhã de domingo, chegou a Annot, uma cidadezinha agrícola construída num planalto, com um vento frio
soprando dos Alpes. Sabia que era domingo pelo repicar dos sinos da igreja e pelo desfile de habitantes sérios, vestidos de preto, que olhavam para ele com desconfiança.
Doente de fadiga e esgotado como estava, essa hostilidade todavia o atingiu, e embora tivesse uma desesperada necessidade de tomar um café quente e pensasse em se
deter ali, não o fez, baixando a cabeça sobre o guidom e pedalando para fora da cidade. A chuva começou a cair. Ele foi obrigado a descansar. Ao desmontar, quase
caiu da sua máquina. Acocorado debaixo de uma cerca gotejante, comendo os restos de comida fria que tinha comprado na noite anterior, sentia-se inteiramente sem
lar, sem um lugar ou abrigo, irreal e desligado como um fantasma.
A chuva não parou, mas ele continuou, agora mais devagar do que antes e com uma falta de fôlego que o obrigava a desmontar nos aclives mais fortes. Seu nariz começou
a sangrar intermitentemente, e embora atribuísse o fato à altitude e lhe desse pouca atenção, era uma sensação esquisita o sangue a refluir quente sobre a sua garganta.
Cerca do meio-dia, começou a sentir-se extremamente indisposto, e, através do entorpecimento que o oprimia, penetrou-lhe um raio de razão. Nunca chegaria a Auvergne
daquela maneira, era loucura continuar; devia procurar uma estrada de ferro ou algum centro próximo sem demora. Desdobrando o seu mapa em grande escala, e protegendo-se
com a sua capa gotejante, viu que, atalhando para oeste, por Barréme, podia alcançar o entroncamento de Digne, não mais que 35 quilómetros além. Digne talvez não
fosse grande, mas ficava numa planície, o que lhe permitiria escapar destas montanhas impossíveis.
Tomou pelo atalho. Era escabroso, mais difícil do que antes, coberto de um cascalho áspero que fazia os seus pneus saltarem e derraparem. Tinha menos força do que
antes nos aclives, e com o esforço adicional seu nariz recomeçou a sangrar. O céu lá adiante era baixo e encoberto, a chuva aumentava rapidamente, e dali a pouco
um dilúvio desabou sobre ele. Ensopado, na escuridão que descia rapidamente, alarmou-se, acendeu com dificuldade a sua pequena lanterna de carbureto e novamente
consultou o mapa.
Não tinha examinado a folha por mais de um minuto, quando um gemido se lhe escapou. Oh, Deus... que tolo... que idiota cego e insensato. Acompanhando com o dedo,
viu que estava no caminho errado. Lá atrás, em
St. André, a curva devia ter sido para a esquerda, não para a direita. E agora examinou o sinal, route acidentés, fort montée, isolée - encontrava-se num beco sem
saída que levava direto acima, ao Col d'Allos.
Um ataque de nervos, quase de pânico, sacudiu-o. Aproximou mais o mapa. Devia haver alguma espécie de aldeia na vizinhança. Então, com alívio, decifrou o nome de
St. Jérõme. Era aparentemente um povoado, mas por sorte estava cercado por uma Cruz de Lorena vermelha, indicando a presença de uma hospedaria arrolada pelo Touring
Club da França como oferecendo acomodações para ciclistas e onde ao menos poderia achar abrigo para a noite. Se não estava completamente perdido, devia alcançá-la
em uma hora.
Pedalou, curvado, contra o vento. O gosto de sal na sua boca aumentou, e passando o lenço nos lábios sentiu que estavam inchados e flácidos. Suas pernas não mais
lhe pertenciam, um martelo batia na sua cabeça, mas quando sentiu que não podia avançar mais, viu tremeluzir, no socavão adiante, um grupo de luzes.
Ficaram mais próximas: uma grande construção cercada por casas menores tomava formas indistintamente, lá embaixo. Completamente esgotado, deixou a sua bicicleta
rodar e subiu aos tropeções a trilha para a primeira casa
- parecia a choupana de um trabalhador. Suas batidas permaneceram sem resposta por um interminável intervalo, e então a porta foi aberta por uma criancinha que ficou
olhando para ele e depois voltou-se e correu. Ele entrou num corredor, ouvindo vozes numa peça dos fundos da casa. Respirava irregularmente, e embora estivesse ensopado,
morria de sede. Devem receber-me, pensou, vou adoecer... aliás, já estou desgraçadamente doente.
Um trabalhador de camisa azul dirigiu-se para ele, seguido de uma mulher com uma lâmpada Argand e, atrás dela, a criança. Ele viu os seus rostos sobressaltados através
do nevoeiro que passava.
- Sinto muito. - com terrível dificuldade, como se do fundo de um poço, pronunciava as palavras. - Perdi o caminho. Podem me receber?
- Mas monsieur...
- Por favor... posso me sentar?... uma bebida.
Antes que ele pudesse falar outra vez, o homem chegou mais perto, sacudindo excitadamente o braço.
- Não aqui - disse. - O senhor deve continuar.
- Deixe-me ficar. - Novamente o terrível problema da articulação. Não posso continuar.
- Não, não... mais adiante.. . não aqui.
O homem segurou-o pelo ombro e levou-o para fora da casa. Julgando que estava sendo enxotado para a estrada, incapaz de resistir ou sequer protestar, tomado de uma
desesperança final, sentiu uma ardência nos olhos, e então, ao chegarem ao portão, percebeu que o homem não o tinha soltado,
mas o ajudava, amparando-o por um corredor rua abaixo. Na verdade, ao avançarem, ele murmurou algumas palavras de encorajamento:
- Está vendo? Não é longe... estamos quase lá.
No fim, alcançaram a grande construção. Havia árvores de espessa folhagem em ambos os lados. O homem puxou a corda de uma sineta e, após um momento, abriu-se uma
grade na porta tacheada. Seguiu-se uma breve conversação e depois ele foi admitido num pequeno saguão caiado, com um chão de pedra nua e bancos lustrosos junto às
paredes.
À beira do colapso, Stephen olhou em torno, tonto. Tudo estava fora de foco. Todas as linhas do saguão corriam juntas e depois se afastavam, como círculos num lago.
Até o porteiro que o deixara entrar parecia fantasticamente indistinto, vestido num paletó comprido e com capuz que lhe dava um aspecto de mulher. Outro homem, ou
mulher, tinha aparecido. Então, imediatamente, todas as linhas se dissolveram. O trabalhador da choupana, voltando-se para esse recém-chegado, retirou atabalhoadamente
o braço que o amparava. Stephen caiu de rosto para baixo, com o embrulho de telas molhadas ainda amarrado às costas.


CAPÍTULO XIV

O SOL DA MANHÃ, incidindo na única e funda janela à cabeceira da tarimba armada sobre cavaletes, acordou-o. Ele deixou-se ficar passivamente, o olhar percorrendo
os poucos objetos da pequena ermida da qual, durante as últimas três semanas, tinha se tornado íntimo e familiar - a solitária cadeira de assento empalhado, o armário
provençal, o genuflexório de madeira num canto, o crucifixo preto na parede branca. Especulativamente, examinou a sua mão, levantando-a contra a luz, achando os
dedos ainda brancos, mas talvez menos translúcidos do que na véspera. Esse era um teste que ele fazia todas as manhãs. Passos leves, rangendo no corredor coberto
de areia, fizeram que ele, sem querer, movesse o corpo e voltasse a cabeça. Estava olhando para a porta quando ela se abriu e o enfermeiro entrou, trazendo o seu
desjejum numa bandeja.
- Como dormiu?
- Muito bem.
- A nossa cantoria não o perturbou?
- Não, agora já estou acostumado.
- bom - disse Dom Arthaud, depondo a bandeja.
Tirou um termómetro dos recessos do seu hábito branco, sacudiu-o e, com um sorriso, colocou-o entre os lábios de Stephen. - Isto não é mais necessário. Mas como
você vai se levantar hoje, queremos ter certeza.
Era um homem de uns 50 anos, de estatura média, vigoroso, ombros quadrados, com uma cara grande e agradável, ligeiramente azulada em torno do queixo, e inteligente,
de olhos castanhos com óculos, a cabeça raspada e tonsurada; usava sandálias de tiras nos pés nus. Ao cabo de um minuto, retirou o termómetro, leu-o e, com um aceno
tranquilizador, puxou a cadeira com a bandeja para junto da cama.
- Não esqueça o seu remédio.
Depois de tomar, com um canudinho de vidro, o líquido escuro de sabor metálico, Stephen começou o seu desjejum - uma caneca de café au lait, manteiga fresca numa
tigela de barro, pão cortado em fatias e frutas. O café com leite estava quente, cheirando a chicória. Depois de molhar o pão na caneca, Stephen olhou compungido
para o que estava em pé - ele nunca sentava-se na extremidade da cama.
- Por que não come comigo? Aqui há mais do que suficiente para dois.
- De modo nenhum. Fazemos a nossa refeição ao meio-dia.
- Mas... isto está muito gostoso.
O enfermeiro sorriu alegremente.
- Sim... a nossa comida é perfeitamente horrível. Mas estamos habituados a ela. E depois, não estivemos doentes.
Stephen apanhou outra fatia de pão.
- Isso é que eu estava querendo lhe perguntar. Que foi exatamente que eu tive? O senhor nunca disse.
- Você teve uma inflamação dos pulmões... por exposição à intempérie. Além disso, fez um esforço demasiado grande. Como resultado, teve a complicação de uma hemorragia.
Muito grave.
- Pensei que o sangue fosse do nariz.
- Não, era dos pulmões. - Fez uma pausa, olhando por cima dos óculos de aros metálicos. - Já teve algo parecido antes?
Stephen refletiu um momento, depois abanou a cabeça.
- Tive um resfriado há alguns meses. Bronquite, imagino. Mas podia ter sido por causa disso.
O enfermeiro baixou os olhos.
- Eu não poderia responder. Não sou médico.
- Mas o senhor me salvou desta muito bem.
- Com a ajuda de Deus.
- E muita habilidade. Não acredito que o senhor não seja qualificado.
- Estudei medicina em Lions com o Professor Rolland. No último ano, assim como você foi chamado para ser um pintor, recebi o chamado para ser um monge.
- Muito afortunadamente para mim.
Dom Arthaud inclinou a cabeça, e então, quando Stephen terminou, apanhou a bandeja. Na porta, fez uma pausa.
- Não se levante ainda. Esta manhã, o Reverendo Prior vem visitá-lo. Quando ele saiu, Stephen recostou-se, com as mãos cruzadas atrás da cabeça. Ainda se sentia
atrozmente fraco. Contudo, quase já não tinha tosse e nem sentia mais aquela pontada aguda do lado. Como era bom o sol no seu rosto - a atividade da convalescença
começava. Não se preocupava com a sua situação. A persistência do enfermeiro em tirar-lhe a temperatura de manhã e à noite não era palpavelmente mais do que uma
rotina. Na verdade, imaginava, calmamente, se a sua doença, com aquele estranho depauperamento, não teria sido peculiarmente oportuno. Já ouvira falar de sangria
como remédio para a febre. Pelo menos sentia-se curado daquelas dores cruciantes que tão intoleravelmente o atormentavam.
Olhando para trás, admirava-se de que, durante todos aqueles meses, tivesse permanecido naquele estado de tamanha sujeição, aniquilado por uma única palavra, arrastando-se
pelo favor de Emmy. A simples ideia daquilo fazia-o estremecer. Rejubilava-se em ser ele mesmo outra vez, e jurou que jamais se submeteria a semelhante escravidão
- na verdade, foi mais longe, e fez um voto solene de que no futuro nenhuma mulher participaria da sua vida. Somente o seu trabalho o interessaria agora, e a ele
se aplicaria com rigorosa autodisciplina.
Às 11 horas chegou o seu visitante. O Prior, uma figura alta e imponente, na sua vestimenta branca encapuzada, sentou-se tranquilamente na cadeira e estudou Stephen
com grave reflexão.
- Então, afinal vai sair da sua cama, meu filho. Alegro-me.
- E eu estou agradecido - murmurou Stephen. - Foi sorte minha encontrar a sua cruz no meu mapa.
- É verdade que temos uma cruz. Mas não figuramos no mapa - disse o Prior com um leve sorriso. - Aquela marca é para uma hospedaria de ciclistas no vale vizinho.
Você se extraviou no caminho, meu filho. Ou, desde que a Providência o trouxe aqui, poderíamos dizer que o achou?
Uma esquisita inflexão na voz do Prior trouxe uma ligeira cor ao rosto pálido de Stephen. Teria deixado escapar alguma coisa a seu respeito nos primeiros dias da
doença?
- De qualquer maneira - respondeu ele - já era tempo de eu ficar bom. Dei-lhe um grande trabalho. Os senhores devem estar querendo se livrar de mim.
- Ao contrário, você é muito bem-vindo aqui. Sofreu um grande abalo, e Dom Arthaud acha que antes de várias semanas não estará apto para viajar.
- Mas... receio que não possa pagar.
- Nós lhe pedimos o seu dinheiro, meu filho? Aliás, quem o esperaria de um artista que luta? Fique conosco por uns tempos. Sente-se ao sol no jardim. Quando estiver
mais forte, a vida terá um aspecto diferente. Será capaz de enfrentar melhor o mundo.
O Prior pousou delicadamente a mão no braço de Stephen, e então levantou-se e saiu.
Stephen teve que se esforçar para reprimir as lágrimas dos olhos. Levantou-se. Suas roupas, lavadas e cuidadosamente dobradas, estavam no armário, com os seus outros
pertences. O dinheiro, cerca de 30 francos, achava-se numa pilha precisa ao lado do seu relógio, que estava funcionando; ele adivinhou que lhe tinham dado corda
todos os dias. Depois de se vestir, deixou o quarto e andou ao longo de um corredor estranho, lajeado de pedra, que o levou ao jardim, nos fundos.
Não era um recinto grande, umas poucas trilhas em torno de roseiras separadas, que levavam a uma gruta com uma estátua no fundo. Um muro de andebol quebrava o contorno
da cerca em volta. Além, alguns campos. Por suas conversações com Dom Arthaud, Stephen soubera que, graças à doação de uma pequena casa de campo, a comunidade, devotada
à instrução de cerca de 20 noviços, tinha sido recentemente estabelecida e estava crescendo unicamente devido aos esforços dos próprios monges, que haviam construído
com as suas mãos a pequena capela contígua à antiga mansão. Podia vê-la agora, branca e um tanto grosseira, aprumando-se contra o céu lanoso.
Após ter andado pelas trilhas, foi obrigado a descansar num dos bancos que flanqueavam a quadra de andebol. Um velho, com o hábito castanho de irmão leigo, estava
ordenhando uma vaca no pasto. Dali a pouco, começou um ofício na capela, e o cantochão, carregado pela brisa suave, era mais do que ele podia suportar. Levantou-se
e arrastou-se para o seu quarto.
Lá, encontrou uma carta, colocada bem à vista no peitoril da janela. Uma semana antes, sentindo-se terrivelmente só, soerguera-se no travesseiro e garatujara umas
linhas ao morador do nº 15 da Rue Castel, pedindo-lhe que remetesse qualquer correspondência que chegasse para ele àquele endereço. Este era, presumivelmente, o
resultado. Rasgou o envelope. Era de Stillwater, uma breve nota escrita havia dois meses.
CARO STEPHEN
Não sei se esta lhe chegará às mãos. Se chegar, é para informá-lo da morte de Lady Broughton, em outubro. Isso não foi inesperado. Algumas semanas antes, o noivado
de Claire e Geoffrey fora anunciado. Vão casar-se muito em breve. Não há outras notícias de importância para lhe dar, a não ser que papai
continua muito triste com a sua ausência. Suplico-lhe que volte e aceite suas responsabilidades como filho obediente.
Sua, Caroline.
Ainda com a carta na mão, Stephen sentou na cama. Em outros tempos, aquela notícia de casa não o teria afetado tão profundamente. Sabia da doença de Lady Broughton,
e seu amor por Claire nunca tinha sido mais que uma afeição fraternal. Contudo, aqui, neste ambiente estranho e remoto, abatido pela doença, a morte de uma e o próximo
casamento de outra - com Geoffrey, entre todos os homens! - parecia aumentar a sua sensação de exílio, cortá-lo mais fundamente de toda aquela vida agradável que
normalmente ainda seria sua. O tom da carta de Caroline, breve, cheio de calada amargura e implícitas censuras pelo que poderia ter sido, fazia-o mais do que nunca
sentir-se uma criatura à parte, cuja própria natureza o punha em conflito com a família, a pátria e a sociedade.
Com o decorrer das semanas, ele ficava mais forte. A região em torno, coberta de pinheiros baixos, sem beleza e sem qualidade, dava-lhe pouco incentivo para sair
do recinto. Fez amizade com os dois filhos de Pierre, o trabalhador da choupana que o trouxera ao mosteiro, levava-os encarapitados no selim da sua bicicleta. Ajudava
o velho Irmão Ludovic na horta, jogava andebol com os noviços na hora do recreio. Eram um alegre grupo de jovens, recrutados principalmente em boas casas burguesas
em Garonde e nas cidades vizinhas. Talvez por ele ser um estranho, e de uma raça diferente, eles se davam ao trabalho de lhe dedicar pequenas atenções matizadas
de um espírito de proselitismo que, embora o deixasse insensível, comovia-o e divertia-o. Seus corações estavam naquela nova pequena comunidade, e quando não mergulhados
em oração, entregavam-se sem poupar-se ao duro trabalho manual nos seus esforços para melhorá-la.
Um dia, no jogo de andebol, fizeram-lhe uma observação, meio rindo, meio sérios.
- Monsieur Desmonde... Uma vez que o senhor é um artista, por que não pinta um belo quadro para a nossa igreja?
Stephen, com a atenção presa, olhou para o proponente.
- E por que não? - respondeu com um ar sério.
A ideia, que não lhe ocorrera, pareceu-lhe um admirável meio de expressar a sua gratidão, de dar alguma retribuição tangível pela bondade que tinha recebido. Além
disso, a vadiagem forçada começara a pesar-lhe.
Nessa mesma tarde, conversou com seu amigo Dom Arthaud, que recebeu a sugestão calorosamente e prometeu falar com o Prior. A princípio, o Prior hesitou. A capela,
embora reconhecidamente inacabada por dentro,
era o produto de um prolongado e árduo esforço e cara ao seu coração. Seria sensato colocar aquela prezada e duramente ganha possessão nas mãos de um pintor desconhecido,
cujas poucas telas, embora estranhamente compulsivas, não davam indicação de competência ortodoxa? No fim, a fé, que era o sustentáculo da sua existência, moveu-o
a uma decisão. Mandou chamar Stephen.
- Diga-me, meu filho, o que pretende fazer.
- Gostaria de pintar um afresco acima do altar, na parede de fundo da abside.
- Tema religioso?
- Naturalmente. Pensei na Transfiguração. Iluminaria toda a capela.
- Você está certo de que poderia produzir algo que aprovássemos?
- Eu tentaria. Não tenho tintas nem pincéis bastante largos. O senhor teria que arranjá-los para mim. Teria que confiar em mim. Se o fizer, prometo dar o melhor
de mim.
Na manhã seguinte, dois dos padres partiram para Garonde, voltando à tarde com vários pacotes embrulhados em papel pardo. Nesse meio tempo, os noviços tinham armado
um andaime atrás do altar. Cedo, no dia seguinte, com aquele alvoroço que sempre sentia ao começar um novo trabalho, Stephen pegou o seu pincel.
Contudo, o seu estado de espírito era muito insólito. De corpo relaxado, não de todo livre da lassidão da convalescença, parecia banhado de um fofo langor. Suas
emoções ainda eram instáveis, a umidade lhe vinha prontamente aos olhos. O ambiente da capela, a entonação dos monges, a sensação de estar separado do mundo induziam
nele emoções inteiramente alheias à sua natureza. Embora não dispusesse de modelos, o trabalho tomou corpo com uma surpreendente facilidade, para quem estava acostumado
a um esforço sobrehumano nas primeiras horas de criação. Já tinha esboçado a figura central do Senhor, vestido de trajes brancos, radiante com uma nuvem de luz,
e começava a traçar as feições de Moisés e Elias.
Ao progredir com tamanha facilidade, experimentou esquisitos momentos de desconfiança, imaginando-se, em vez de projetar as suas próprias ideias, não estaria reproduzindo
inconscientemente uma compósita de primitivos pintores religiosos. Aplicadas em têmpera, as suas cores, usualmente tão duras, eram macias e lisas, suas formas pareciam
perturbadoramente convencionais. No entanto, contra essas dúvidas, crescia a aprovação da comunidade.
No começo, fora olhado com ansiedade, talvez até com desconfiança. Mas logo isso deu lugar a uma franca admiração. Às vezes, ao voltar-se no andaime para limpar
os pincéis, observava nos olhos de algum noviço que tinha vindo ostensivamente para rezar, mas na verdade para incorrer no pecado da distração, um olhar de perfeito
transe. Aquilo não era suficientemente tranquilizador? E, afinal de contas, ele não se comprometera a agradar?
O afresco, ocupando todo o espaço acima dos retábulos, ficou terminado em três semanas, e quando o andaime foi retirado, toda a comunidade reunida olhava-o com aclamação.
- Meu filho - disse o Prior a Stephen - agora sei que a sua vinda aqui foi providencial. Deu-nos um memento da sua estada que durará muito além da existência de
todos nós. Agora somos nós quem lhe devemos muito. - E continuou: - Amanhã celebraremos a Missa Solene para consagrar a sua obra. Embora não seja membro da nossa
fé, espero que nos agrade com a sua presença.
Na manhã seguinte, o altar estava enfeitado de flores, chamejante de velas. O Superior, em paramentos brancos, assistido por Dom Arthaud, cantou a Missa, enquanto
o coro entoava as respostas. Para Stephen, sentado na galeria, a pintura, brilhando à luz dos círios, tornada mística por uma nuvem de incenso, parecia uma esplêndida
realização. Nunca antes tivera tamanho sucesso.
Um repasto especial foi servido após a cerimónia, com um vinho da região de tal vigor que Stephen deu um passeio à aldeia para clarear a cabeça.
À tarde, quando voltava, Dom Arthaud o recebeu à porta com uma curiosa expressão.
- Há um visitante que deseja vê-lo. Um cavalheiro que diz ter vindo para levá-lo de volta a Paris.
Stephen entrou no seu quarto. Lá, reclinado na cama, usando chapéu e paletó, e soprando furiosamente no seu cachimbo, estava Peyrat. Pulou imediatamente quando Stephen
entrou e beijou-o em ambas as faces.
- Que é que andou fazendo? Não uma, mas uma dúzia de vezes procurei alcançá-lo. Agora, por casualidade, consegui o seu endereço na Rue Chancel. Por que está enterrado
aqui?
- Estive pintando - sorriu Stephen, ainda vibrando com a inesperada presença de Peyrat.
- Sorte ingrata - disse Peyrat, com fingida braveza. - Enquanto eu esperava, me arrastaram para a igreja. Que coisa terrível essa que você fez, cher ami. Oh, que
miserável cópia de del Sarto. Que terrível refundição de Luini. Embora eles gostem e vão se ajoelhar diante daquela pintura durante séculos, é indesculpavelmente
chocante, e para você, especialmente neste momento, uma desgraça.
- Por que neste momento? - perguntou Stephen, um tanto desconcertado.
- Por causa do anúncio feito no mês passado, e que me fez caçá-lo por toda a França.
- Que diabo está querendo dizer?
- Um anúncio - continuou Peyrat imperturbável, rolando as palavras
na língua como se gostasse do seu sabor - que lhe colocava uma medalha no peito, 1.500 francos no bolso e ainda nos permitirá, espero, fazer uma viagem juntos à
Espanha.
Subitamente atirou os braços em torno de Stephen e mais uma vez o abraçou.
- Não se importe com a sua doença, ou aquele medonho Moisés e Elias. A sua Circe ganhou o Prix de Luxembourg.


CONTINUA

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

DOVER, NA CHUVA, era uma triste porta dos fundos para fugir da Inglaterra. Quando o navio de carreira deixou o porto sujo, as ruas enlameadas, os edifícios amarelos
da encosta, os rochedos de um branco encardido, tudo mergulhou igualmente num dilúvio cinzento.
Na terceira classe, o espaço limitado estava abarrotado de passageiros, e Stephen, deixando aquele ar pesado de umidade e ruidosa camaradagem, voltou para o convés
molhado e atravancado de cabos. Ficou solitário na popa, abrigando-se, o melhor que podia, atrás da lona que cobria um guincho, com os olhos na costa amorfa, os
pensamentos tão equilibrados entre a amargura e a tristeza que fixavam nele uma atitude de completa imobilidade.
Dali a pouco foi sentar-se num braço do guincho, indiferente ao balanço do navio, ao vento e aos esguichos que assobiavam junto daquela ligeira proteção; tirou do
bolso o seu bloco de esboços. Era um movimento reflexo, um grito do coração. Contudo, uma vez que o seu lápis começou a andar pelas páginas agitadas na beira pela
ventania, perdeu-se, desenhando, com grande rapidez, fases do mar agitado, ondas estranhas e pressagas, a que ele insuflava uma qualidade de vida, vendo nos seus
contornos rotos, no laço intrincado das suas cristas, selvagens rostos humanos, cabeças atormentadas e torsos retorcidos, figuras de homens e de monstros, de cabelos
escorrendo e membros contraídos, tudo perdido e arrastado pela invencível força do mar.
Foi talvez uma espécie de loucura, uma vertigem, que o deixou amolecido e exausto. Tiritava quando o vapor diminuiu a sua marcha arfante para entrar cautelosamente
nos braços do quebra-mar de Calis, e, consciente do seu rosto gotejante e roupas ensopadas, guardou o bloco no bolso com um ar furtivo. Cabos eram lançados, pranchas
de desembarque empurradas, a douane era rapidamente passada. Mas algum ligeiro acidente na linha tinha atrasado o trem para Paris, que ainda não chegara.
Stephen tiritava novamente, batendo os pés sobre a plataforma a fim de restabelecer a circulação. Embora a chuva fosse menos impiedosa em terra, o vento, enfiando-se
pela curva dos trilhos, parecia mais violento, mais cortante. A maioria dos seus companheiros de viagem estava aproveitando o atraso para um almoço à la carte no
restaurante da estação. Mas, diante de um
futuro de completa incerteza, um exame mais detido do estado das suas finanças absteve-se desse luxo. Tinha, para ser preciso, 5 libras e 6 xelins, tudo que lhe
restava das 10 libras que trazia consigo quando chegara a Stillwater.
Por fim, o trem entrou resfolegando; após várias conferências e muita gesticulação, apitos agudos, jatos de vapor, e as notas melodiosas de uma trompa, a marcha
foi invertida e o vapor esguichou novamente. Para Stephen, encolhido no canto de um compartimento ventoso, foi uma viagem miserável. Tiritava frequentemente, sabia
que tinha apanhado um resfriado, e acusava-se de ter sido um tolo.
Na Gare du Nord hesitou, e então, aceitando o risco, e não sem uma certa recordação melancólica da sua prévia entrada na cidade de coração leve, tomou o metro para
a Rue Gastei. No seu presente estado de espírito ansiava, acima de tudo, pela simplicidade e firme amizade de Peyrat. Mas o novo inquilino do apartamento, incompreensivo
e desconfiado, apareceu na porta, respondendo que não havia cartas nem recados... acreditava que Monsieur Peyrat estaria no Puy de Dome, em Auvergne, até o fim do
ano, e além disso não sabia mais nada.
Os passos seguintes de Stephen levaram-no ao estúdio de Glyn. Estava fechado. Do mesmo modo, o pavilhão dos Lamberts, com as janelas fechadas, foi uma nova decepção.
Stephen voltou para o alojamento de Chester. Embora não tivesse acertado exatamente o montante da dívida, sabia que Harry, com seus repetidos pedidos de empréstimo,
devia-lhe pelo menos umas 30 libras, soma que agora adquiria uma importância muito maior do que antes. Mas também aquele quarto estava fechado, aliás, trancado com
um cadeado. Todavia, ao descer as escadas, foi reconhecido pelo concierge e obteve dele o atual endereço de Chester, enviado num cartão-postal recebido dois dias
antes: Hotel du Lion d'Or, Netiers, Normandia.
Animado, Stephen entrou no primeiro bureau de poste e passou um telegrama, explicando a sua situação e pedindo que Chester lhe mandasse por cheque telegráfico, se
não todo, ao menos parte do dinheiro que lhe devia, aos cuidados de Adolf Bisque na Rue Castel. Quando a moça de blusa de alpaca atrás do guichê terminou, a tinta,
uma soma complicada, um processo que a ocupou durante alguns minutos, Stephen pagou e dirigiu-se para o DuvaPs, onde pediu chocolate quente e um brioche.
Depois dessa ligeira refeição, como a chuva caísse mais forte e as sarjetas transbordassem, ele decidiu encontrar, o mais depressa possível, um alojamento para a
noite. Por causa da sua conveniência, e não na esperança de encontrar conforto, ficou num hotel barato das proximidades, a Pension de
l'Ouest, diante da qual passara tantas vezes a caminho do estúdio de Glyn.
Alcançado por escadas sem passadeira, seu quarto não era mais que um estreito, cubículo, mas era seco, e a cama, embora os lençóis estivessem encardidos,
tinha uma ampla provisão de cobertores estampados de azul - aqueles cobertores grosseiros usados pelos recrutas durante as manobras do Exército e vendidos depois
pelos contratantes do governo. Após alguns tremores iniciais, aqueceu-se e dormiu pesadamente. Na realidade, ao acordar na manhã seguinte sentia-se melhor, embora
não se surpreendesse com a tosse, agora piorando. Tomou café com um pãozinho, outra vez no DuvaTs, às 11 horas, e dirigiu-se para a loja de Monsieur Bisque.
Ali o esperava uma agradável surpresa. O pasteleiro recebeu-o cordialmente, com a sua cara de lua cheia enrugada de sorrisos, e, tendo repreendido Stephen por não
o ter visitado no dia anterior, apresentou com modos de prestidigitador o telegrama de resposta de Chester. Este, embora não trouxesse dinheiro, era de natureza
a animar o seu destinatário.
DELICIADO SEU TELEGRAMA. VENHA PARA CÁ. TEMPO E HOTEL EXCELENTES. BELO LUGAR PARA PINTAR. ABRAÇOS
HARRY
A perspectiva aberta por aquele amistoso convite, a ideia de estar com uma paleta e pincéis, diante de um cavalete, na Normandia, fazia brilhar os olhos de Stephen.
Bisque tinha um guia que, embora de páginas esfarrapadas e um tanto antigas, parecia provar que o rapide Granville, o trem mais ou menos direto, já tinha partido
- às 10 horas, para ser exato, daquela manhã. Stephen decidiu adiar a viagem até o dia seguinte. Passou à tarde na loja de Napoleon Campo, onde, além de receber
o cavalete e equipamento lá depositados, comprou novos tubos de tinta e algumas telas. Pagou a metade, 50 francos, e prometeu mandar o restante quando chegasse a
Netiers.
A manhã seguinte trouxe um límpido céu azul, e Stephen saiu com os seus pertences para a estação de Montparnasse. O rapide na Plataforma 2 não estava muito cheio
e ele conseguiu, sem dificuldade, um compartimento vazio na parte dianteira do vagão. Ao partirem, não podia afirmar que se sentia bem, pois experimentava uma sensação
de abafamento, com uma pontada no lado direito. Apesar disso, depois que o trem furou o seu caminho através dos túneis e cortes murados e escuros que davam saída
da cidade, perdeu a lassidão, olhando a paisagem em desfilada: vastos campos de restolho com poças de água da chuva, flanqueados por longas fileiras de olmos - sentinelas
intermináveis; uma agulha distante, delgada, graciosa; parelhas de grandes cavalos, com corvos assistentes, arrastando o arado; velhas construções rurais, de telhas
ocres, as empenas salpicadas de anúncios - Byrrh, Cinzano, Dubonnet.
Ao meio-dia, comeu uma maçã e uma barra de chocolate. Gradualmente, a configuração do terreno havia se alterado. Lutando contra a sonolência, ele
notou as azinhagas ondulantes e pequenos pomares cercados, um bando de gansos em lenta procissão para um lago lodoso, seguido de uma menina de pernas nuas com uma
vara de aveleira, um renque de salgueiros podados cercemente, e depois uma dama idosa, de coifa branca, tangendo uma vaca pela relva da beira da estrada, parando
de quando em vez para tricotar. Até a natureza da bebida tinha mudado. Attendez, exclamavam os anúncios, buvez le cidre moissoné!
Cerca de três horas, o trem alcançou o topo de um longo aclive e entrou na pequena estação de Netiers. Apressadamente, Stephen reuniu as suas coisas e pulou do alto
estribo. Uma rápida inspeção mostrou que Harry não estava lá para recebê-lo. Raciocinando que Chester podia não ter calculado bem a hora da sua chegada, Stephen
começou a andar para a cidade, que se podia avistar mais abaixo da colina, coisa de um quilómetro. A expectativa, ao se aproximar, aumentava a sua ansiedade - passou
um muro valado com fortificações, entrou nas ruas tortuosas, de paralelepípedos, tão estreitos que as casas de pedra cinzenta, muito inclinadas, pareciam estar acima
da sua cabeça. E então, no centro da praça do mercado, em frente à fachada de terracota desbotada do antigo hotel de ville, discerniu a tabuleta dourada do Lion
d'Or.
A estalagem era maciça, solidamente confortável, de alta classe. Stephen percebeu isso de relance, ao se dirigir para o balcão de recepção situado no vão de uma
escada de carvalho.
- Sim, monsieur!
- Meu nome é Desmonde. Tenha a bondade de dizer ao Sr. Chester que acabo de chegar.
Uma pausa.
- Está perguntando por Monsieur Chester?
- Sim. Ele me espera.
O empregado, um rapaz de ombros altos e cabeça rapada, estudou Stephen por um momento e depois disse:
- Tenha a bondade de aguardar, cavalheiro.
Desapareceu por trás da cortina que fechava o fundo do bureau; então, após um breve intervalo, voltou com um homem mais velho, uma figura sólida, de pescoço grosso,
vestido com a roupa listrada da profissão.
- O senhor está procurando Monsieur Chester Harry? O tom, embora cortês, tinha uma qualidade intimidante.
- Sim, por quê? Sou amigo dele. Ele não está hospedado aqui? Uma pausa gélida.
- Ele estava residindo aqui, monsieur. Até ontem à tarde, quando apresentamos a sua conta. Desde esse momento não vimos mais o seu famoso Monsieur Chester.
Stephen olhou para o proprietário, estupefato. Pois não viera por convite expresso de Harry, gastando o seu último soldo na passagem de trem? E de súbito lhe veio
uma ideia, contundente como um golpe. Chester, mais uma vez em apuros financeiros, convidara-o a vir somente na esperança de pedir-lhe mais uma quantia emprestada.
- Se monsieur é realmente Monsieur Desmonde - o sarcasmo era cortante - eis aqui uma carta que seu amigo lhe deixou.
MEU VELHO,
Eles podem não lhe entregar esta. Se entregarem, saberá que, com muito pesar, fui obrigado, encore, a cair fora. Pensei que podíamos resolver o caso juntos - baseados
no princípio de que duas cabeças pensam melhor do que uma - mas o departamento de contabilidade daqui estava um passo à minha frente. Provavelmente vou filar minha
viagem para o Sul, ficar um tempo em Nice, tentar a sorte nas mesas: De qualquer modo, eu com certeza o verei mais cedo ou mais tarde... Sinto muitíssimo e todas
essas coisas... mas quando o diabo aperta...
Seu,
HARRY
P.S. Nenhuma mulher decente na cidade. Mas não deixe de provar a sidra local. É excelente.
Stephen amarrotou o bilhete, escrito a lápis e às pressas, entre os dedos tensos. Sabia que Chester não merecia confiança, mas agora, por baixo do encanto, da alegria,
da amizade efusiva, sentia o âmago do seu total egoísmo.
O estalajadeiro e seu empregado olhavam para ele por detrás do balcão com manifesto desprezo.
- Naturalmente monsieur compreende que não temos acomodações para o senhor nesta casa.
- Compreendo perfeitamente - disse Stephen, girando nos calcanhares e saindo para a rua.


CAPÍTULO II

ALI, SEM DINHEIRO E SOZINHO, parado na praça do mercado de uma desconhecida cidade francesa, Stephen avaliava inquietamente a sua situação. Nunca antes estivera
sem dinheiro. Sua pensão, como o amanhecer, era algo
que tinha como certo, a consequência natural da sua posição na sociedade, do seu próprio direito de nascimento. Agora, com um amargo esgar nos lábios, percebia como
era poderosa a arma que seu pai tinha usado. No entanto, a sua renitência nata mantinha-lhe o prumo. Saiu imediatamente à procura de algum abrigo.
Isso, numa cidade sempre cheia de turistas, foi menos difícil do que ele temia, e antes do entardecer ele estava instalado num quartinho do alto, no fundo de um
pátio da Rue de la Cathédrale. Ao entregar a bagagem para a senhoria, uma velha digna, que não lhe pediu pagamento adiantado por ser de apenas 12 francos por semana
o aluguel, resolveu que, houvesse o que houvesse, estaria em condições de pagar-lhe antes que se passassem muitas horas. Tinha sabedoria suficiente para reconhecer
que, naquela localidade, não poderia conseguir uma subsistência imediata com sua arte. Sim, a sua educação, o seu curso universitário e grau de bacharel deviam certamente
capacitá-lo para alguma modesta posição na qual pudesse ganhar dinheiro suficiente para se manter em pé. E até mesmo o bastante para pagar a conta de Chester ainda
lhe doía a farpa final lançada pelo proprietário da estalagem - e voltar a Paris, encontrar-se lá com Peyrat, tendo uma boa quantia, antes do inverno. Se ao menos
estivesse menos indisposto! Aquela tosse, que desde a travessia do Canal lhe abalava o peito, era um grande incómodo. Mas um ferrenho desejo de experimentar-se levou-o
novamente ao centro da cidade.
Lá chegando, fez um exame perspectivo do logradouro principal, a Rue de la Republique. As lojas, embora pequenas, tinham, em sua maioria, um aspecto de sólida prosperidade
associado a uma ativa região agrícola. Pás, garfos, foices, baldes de zinco, grades de dentes vermelhos, tudo isso e mais estava exposto nas casas de ferragem; havia
guloseimas também - deliciosos petits fours e almôndegas doces, arranjados como buquês de noiva, enfeitavam a vitrine de uma pâtisserie, ao passo que na leiteria
da esquina se via um monte amarelo de manteiga da Normandia, ladeado por dois jarros de leite cheios até a borda.
Na frente de uma papelaria, viu uma caixa de vidro com alguns anúncios e avisos escritos à mão. Leu-os cuidadosamente e depois afastou-se. Ele não podia afinar pianos
nem remendar cadeiras de palhinha, não precisava da metade de uma vila à beira dos rochedos litorâneos de Granville. Mais abaixo da rua chegou à redação de um jornal
semanal, Courier de Netiers. Lá dentro, o número em circulação podia ser lido. Mas as suas magras colunas, devotadas principalmente às fases da lua, venda de gado
e cal, cobertura de vacas e éguas, horário das marés no Mont St. Michel, nada lhe ofereciam.
E agora? Era evidente que precisava de conselho. Obedecendo a um impulso, entrou na mairie e, escolhendo um funcionário de ar simpático, sondou-o discretamente sobre
as possibilidades de emprego na cidade. O jovem,
embora surpreso com semelhante indagação, mostrou-se inteligente e bem-intencionado. Pensou muito, e depois abanou lentamente a cabeça:
- É muito difícil... numa comunidade pequena como esta, as pessoas - sorriu, em desaprovação, ajeitou os punhos de papel - ... não são amáveis com estrangeiros.
Por mais uma hora, Stephen palmilhou a cidade sem sucesso. Quando caiu a noite, voltou, cansado e desanimado, ao seu alojamento. Revistando os bolsos, contou a soma
dos seus recursos: 1 franco e 50 soldos. À vista daquelas minguadas moedas na palma da sua mão, sentiu uma onda de orgulho. Não podia, não devia render-se.
No dia seguinte, na esperança de achar um trabalho manual, deu uma volta, a pé, pelas granjas das redondezas. Ao todo, devia ter andado uma distância de 20 quilómetros.
E em vão. Não havia escassez de mão-de-obra agrícola. Em vários lugares foi tomado por um vagabundo, e soltaram os cães contra ele. Um camponês caridoso, de garfo
em punho, fazendo a provisão anual de feno, pareceu hesitar, comovido talvez pela intensidade do pedido de Stephen, mas no fim prevaleceu a sólida cabeça normanda:
- Você não é muito forte, mon petit, pequeno... oh, muito pequeno. Mas, espere. - Chamou para a cozinha. - Jeanne, traga alguma coisa de comer para este rapaz.
Uma bonita mulher, de braços nus, vermelhos, saiu da porta dos fundos com o barulho dos seus tamancos. Dali a pouco, tendo examinado Stephen, trouxe-lhe um pedação
de torta de carne e uma caneca de sidra. Enquanto ele comia esse repasto, sentado num banquinho de ordenhar, na varanda, o granjeiro e a mulher, observando juntos,
discutiam em voz baixa, enquanto um meninozinho de guarda-pó preto espiava-o curiosamente por trás das saias da mSe. Stephen estava hirto de vergonha. Oh, meu Deus,
gemia ele consigo, sou exatamente como alguém de uma gravura de Cotman... cheguei realmente a isto! Mas a torta era boa, com um molho forte e gostoso, e a bebida
ácida lhe trouxe um novo ânimo para caminhar de volta a Netiers.
Escurecia quando chegou à Rue de la Cathédrale. E agora, embora mantido o ânimo muito bem durante todo o dia, um terrível abatimento o prostrava. A mortal estranheza
daquele quartinho apertado, cheirando a madeira velha, bolor e cânfora, estalando a cada passo que dava; a sensação de estar tão completamente só, enganado por Chester,
encurralado num futuro sem esperança; a suspeita, também, de que a sua senhoria começava a olhá-lo com dubiedade - tudo isso se acumulava para derrotá-lo. Sem querer,
atirou-se na cama e, voltando o rosto para a parede caiada, chorou como uma criança.
Esse acesso durou pouco, mas infelizmente tinha provocado a tosse. A noite inteira, ela o castigou severamente, desde que, na sua ansiedade para
não perturbar a casa, suprimia os espasmos e assim aumentava a sua frequência. Por fim, perto do amanhecer, com a cabeça embaixo das cobertas, caiu no sono.
Era tarde, quase 11 horas da manhã, quando acordou - primeiro para um breve momento de descansada alegria, depois para a sombria consciência da sua entalada. Levantou-se,
vestiu-se sem fazer a barba, e foi para a cidade. A agitação do espírito comunicava uma curiosa fraqueza às suas pernas. Estava andando sem rumo ou objetivo. Subitamente,
quando começava a atravessar pela segunda vez a praça do mercado, ouviu que alguém corria atrás dele. E então sentiu uma mão no ombro. Terrivelmente sobressaltado,
voltou-se. Era o funcionário da mairie.
- Desculpe-me, monsieur. - O moço interrompeu-se para respirar. Estive olhando o senhor durante toda a minha hora de almoço. Olhe, desde que foi embora andei fazendo
algumas perguntas para o senhor. E Madame Cruchot, que juntamente com o seu marido tem a sua épicerie ali - e apontou para o outro lado da rua - tem duas filhas
pequenas que ela quer que aprendam inglês. É possível que ela se agrade do senhor. Nesse caso, vale a pena tentar.
- Muito obrigado - gaguejou Stephen, emocionado. - Muitíssimo obrigado.
O jovem funcionário sorriu.
- Boa sorte. - Pronunciou as palavras entre os dentes, cuidadosamente, em inglês, e depois, como se satisfeito com sua proeza, apertou-lhe a mão, tirou o chapéu
e ficou observando-o atravessar apressadamente a rua.
A mercearia Cruchot, ocupando uma posição de destaque na praça, com duplas vitrines de vidro plano e uma brilhante tabuleta que dizia ALIMENTATION DE RENNES, dava
toda a indicação de ser um próspero estabelecimento, negociando com um grande e tentador sortimento de alimentos. Um constante fluxo de fregueses entrava e saía
pela porta, estreitada por presuntos pendurados, redes de limões, um cacho de banana e várias cestas de verduras escolhidas. Dentro, as prateleiras estavam cheias
dos generosos produtos da terra e do mar, com salsichas e fígado de ganso, sardinhas e enchovas, toucinho, azeite de oliva, queijo, frutas em conserva, conhaques
antigos também, vinhos e licores, café, especiarias, dobradinhas, pés de porco, e vidros e garrafas dispostos em pirâmides brilhantes no chão coberto de serragem.
Entrando, Stephen estacou menos por seu próprio nervosismo do que pelo barulho e movimento, gritos de pedidos, a movimentação de dois auxiliares de paletó branco:
uma moça normanda de ombros pesados e um homem coxo de olhar aborrecido.
Todavia, em pouco sentiu-se escolhido por uma voz de timbre penetrante.
- Que deseja, m'sieur?
Presidindo de uma mesinha, controlando o lufa-lufa, parecendo a dona pela amplidão do seu busto e ousadia do olho, uma mulher de cabelos amarelos, de uns 38 anos,
com a sua figura curva e bem coberta, pele lisa, orelhas rosadas suportando pesados brincos de ouro. Usava um vestido malva da última moda provinciana - com uma
aplicação de renda no decote - vários anéis e pulseiras, e um broche de camafeu.
- Perdoe-me - falou Stephen em voz baixa, aproximando-se. - Meu nome é Desmonde. Soube que a senhora talvez precise de um tutor inglês para as suas crianças.
A verificação de que ele não era um freguês afastara o sorriso maquinal dos lábios de Madame Cruchot; seus olhos apertaram-se na fria apreciação de alguém que, no
mercado, é capaz de avaliar, por um simples cabelo o peso e a qualidade de um porco cevado. Mas a palavra tutor, que ele por sorte tinha usado, lisonjeou-lhe a vaidade,
que predominava entre as muitas e fortes características que possuía, e que aliás era o verdadeiro motivo por trás da ideia de que as suas filhas deviam aprender
o idioma inglês. Também aquele jovem que tinha diante de si parecia simpático, "refinado" e tímido o bastante para lhe trazer algum problema.
- M'sieur pode me dizer quem é?
Muito francamente, Stephen lhe disse.
- Então m'sieur é estudante da universidade de Oxford. - Um lampejo iluminou o olho azul de porcelana de Madame Cruchot, mas no interesse da barganha foi rapidamente
suprimido. Duvidosa, encolheu os ombros. - Naturalmente, temos apenas a palavra de m'sieur quanto a isso.
- Asseguro-lhe que...
- Oh, la, la... estou disposta a confiar no senhor. Mas, naturalmente, considerando a idade das minhas filhinhas, exijo o mais alto padrão de conduta e moralidade.
- Naturalmente, madame...
- Então, quando... - interrompeu-se, com uma ordem aguda, suas palavras ressoando como uma pequena salva de artilharia: - Não, não, Marie, esses ovos não, estúpida,
já estão encomendados por Madame Oulard... e, Joseph, até quando preciso dizer que tire açúcar do saco aberto? Qual o salário que pede, m'sieur?
Stephen tratou de calcular rapidamente o menor estipêndio capaz de sustentá-lo.
- Digamos, com lições diárias, 30 francos por semana?
Com um gesto de consternação, Madame Cruchot ergueu as suas mãos gordas e cheias de anéis. Depois sorriu gentilmente, mostrando-lhe um dente de ouro que era como
uma bala.
- M'sieur está brincando.
- Não, realmente... - Empurrado e acotovelado pelo redemoinho de fregueses, Stephen ficou rubro. - Estou falando sério.
- Também somos gente honesta, Monsieur Crochet e eu, m'sieur, mas longe, oh, muito longe, de ser rica. - Feriu uma nota patética. - O máximo que meu marido me autoriza
a oferecer são 20 francos.
- Mas, madame... eu tenho que viver.
Madame Cruchot sacudiu o seu chinó amarelo tristemente.
- Nós também, m'sieur.
Stephen mordeu o lábio, com raiva e orgulho no peito. O aluguel semanal do seu quarto era de 12 francos. Como diabo poderia manter-se com os oito francos que lhe
restariam depois de pagar a sua senhoria? Não, por grande que fosse a sua necessidade, não poderia submeter-se a semelhante imposição. Deu meia-volta para retirar-se.
Mas Madame Cruchot, que não queria perdê-lo e que, no intervalo, tinha-o observado de soslaio da cabeça aos pés, deteve-o com um gesto delicado.
- Talvez... - Inclinou-se para diante, falando com um ar solícito. Talvez se servíssemos aqui o almoço para m'sieur, isso ajudasse um pouco a situação. Uma refeição
boa e substancial.
Apanhado desse modo, Stephen hesitou. Profundamente humilhado, não podia erguer os olhos.
- Muito bem... aceito - murmurou ele.
- Ótimo. Nosso negócio está fechado. Começará amanhã. Não esqueça que exigirei instrução da mais alta classe. E, sem dúvida, no futuro, m'sieur não esquecerá de
barbear-se.
Stephen inclinou a cabeça. Não podia falar. Contudo, a despeito da sua humilhação, por ignominiosa que fosse a sua situação, só podia experimentar uma sensação de
alívio. Com 20 francos e um almoço diário, estava salvo, ao menos por enquanto.
Ao sair da mercearia, ouviu a voz de Madame Cruchot proclamando em altos brados para as regiões do mundo:
- Marie-Louise, Victorine... Sua bondosa mamã acaba de contratar um tutor inglês.


CAPÍTULO III

AGORA, NA ABAFANTE MONOTONIA de uma cidadezinha provinciana, começava para Stephen uma estranha existência. Todas as manhãs, era acordado pelo sino da catedral,
que badalava três vezes, pesadamente, na Consagração das sete horas, afugentando as pombas, quebrando o silêncio eclesiástico da praça vazia. Uma vez vestido, descia
descuidadamente a escada - pelo menos podia sair de casa sem medo de encontrar a sua senhoria. Atravessando a praça para o Café des Ouvriers, que ficava a curta
distância do jardim de muros altos do convento, encontrava sempre as mesmas mulheres pias, vestidas de preto, e algumas freiras, aos pares, emergindo - flutuantes,
parecia, sobre as largas abas das suas toucas - da igreja. O café, assinalado por um ramo murcho na ombreira da porta, não era um lugar especialmente reputado, não
mais do que a cozinha de pedra de uma casa baixa mobiliada com uma mesa tosca e alguns bancos de madeira. Ali, por cinco soldos, tomava o desjejum habitual da casa:
uma xícara de café preto cheio de borra, lavado por um golinho de vinho branco num copo grosso com um dedo, uma espantosa combinação em seu poder restaurativo. Às
vezes havia um jornal da noite passada, Intelligence de Rennes, que o mantinha ocupado por meia hora. Podia conversar um pouco com Mie, a fille de comptoir de olhos
negros, quieta, que atendia o bar primitivo com discrição e que aparentemente tinha outras funções e obrigações, ou com outro cliente, talvez um mascate, um carregador
da estação, ou um entregador de carvão.
Pontualmente às 11 horas, apresentava-se na casa dos Cruchots, situada atrás da mercearia, e se dirigia a uma porta na parede lateral. Ali, na latada contígua a
uma pequena área fechada de relva, ou, nos dias de chuva, na sala abundantemente enfeitada a que Madame se referia como o "salon", Stephen dava sua atenção às menininhas
Cruchot; Victorine, de onze anos, e Marie-Louise, que tinha apenas nove.
Não eram, de um modo geral, crianças desagradáveis, um tanto estragadas por mimos, mas com toda atração da sua tenra idade. Às vezes, eram mesmo muito meigas à sua
maneira, especialmente a mais nova, uma coisinha bonita de cachos castanhos e faces de maçã". Stephen não as achou difícil de levar e logo ficou gostando delas.
Contudo, já os atributos herdados começavam
a se manifestar - sabiam o preço de tudo, calculavam como matemática, podiam recitar fluentemente aforismos morais sobre a virtude da economia. Cada uma tinha o
seu cofrezinho de metal, com a forma da Torre Eiffel, para depositarem as suas economias, e traziam a chave presa, com a medalha de um santo, a uma fita azul no
pescoço. Às vezes, repetiam, muito inocentemente, observações que tinham ouvido.
- Monsieur Stephen - ele insistia em que o chamassem pelo seu nome de batismo - mamã disse a papá que o senhor deve ser muito pobre.
- Bem, Victorine, devo confessar que ela estava certa.
- Mas papá disse que pelo menos o senhor não era um beberrão.
- bom... papá é meu amigo.
- Ah, sim, Monsieur Stephen. Porque ele também disse que, embora o senhor com certeza tenha feito alguma coisa errada na sua terra, sendo obrigado a fugir, não deve
ter sido um crime sério.
Stephen riu-se, um tanto secamente.
- Vamos... já é tempo de começarem a leitura.
Tão rápido tinha sido o progresso das suas ágeis inteligências, que ele acabara por trazer Alice no País das Maravilhas, e o interesse delas pela história tornava
possíveis até as palavras mais difíceis.
Embora, à maneira de um proprietário, ocasionalmente enfiasse a cabeça na porta, Monsieur Gruchot não vinha muito às lições. Era um homem de estatura média, com
modos inquietos, olhos cor de café, vivos, com os cantos injetados de amarelo, e um bigode preto, cheio, de pontas reviradas, que usava polainas e, dentro ou fora
de casa, exceto no sagrado recinto do "salon", um brilhante chapéu de palha reto. O seu lugar, naturalmente, era na loja, mas passava dois dias por semana fazendo
compras no mercado da vizinha cidade de Rennes, de onde, aliás, ele e sua mulher tinham vindo originalmente. Ligado a Madame Cruchot por uma ostensiva felicidade,
pelos dois lindos penhores da sua afeição, e acima de tudo pelo seu apaixonado desejo de ganho, Albert Cruchot tinha, contudo, em certos momentos, um certo ar, como
se as proporções físicas da sua esposa, seu riso agudo e voz penetrante fossem uma opressão maior do que um homem do seu porte pudesse razoavelmente aguentar. Ele
não encolhia exatamente, porém seus pés empolainados se moviam inquietos e a sua pupila café-au-lait bruxuleava num brilho de impaciência.
Na verdade, por trás do seu sorriso, dos seus modos amáveis e do brilho especioso do seu dente de ouro, Madame Cruchot era uma tirana. Todos os dias ela vinha verificar
"por si mesma" o andamento da lição, sentando-se rígida, numa postura de supervisão, os olhos sem compreensão mas alerta, indo de Stephen para as crianças, perturbando-as,
fazendo que cometessem erros.
- O senhor compreende, m'sieur... desejo que elas não só leiam mas falem coloquialmente... e recitem poesias... como fazemos em sociedade.
Atendendo às suas repetidas exigências, Stephen ensinou as crianças as duas primeiras estrofes de A uma Cotovia. Então, no dia indicado para mostrar o progresso
das suas pupilas, madame apareceu com três amigas íntimas, esposas de lojistas preeminentes, membros da haute bourgeoisie de Netiers, que se aboletaram expectantes
nas cadeiras douradas do salão.
Marie-Louise, escolhida para a primeira prova, foi colocada sozinha na falsa ilha de Aubusson.
- Salve, ó tu, espírito jovial... - começou ela; depois parou, olhou em torno e suprimiu um risinho.
- Comece de novo, Marie-Louise - disse Stephen bondosamente.
- Sabe, ó tu, espírito jovial... - Novamente a criança se interrompeu, piscou, torceu a cinta e olhou timidamente para a mãe.
- Continue - disse Madame Cruchot numa voz estranha. Marie-Louise lançou um olhar súplice para o seu professor. Um leve
suor começava surgir na testa de Stephen. Num tom de lisonja, que o desagradava, disse:
- Vamos, minha querida. Salve, ó tu, espírito jovial...
Um breve silêncio, durante o qual Madame Cruchot pareceu ter virado pedra: depois, sem aviso, levantou-se e deu um tapa na cara da menina. Imediatamente Marie-Louise
debulhou-se em pranto. No momento de consternação que se seguiu, olhares indignados foram lançados para Stephen, a criança soluçante, agora agarrada ao seio materno,
foi confortada com um bombom, e ouviu-se a voz de Mane gritando lá da loja:
- Venha depressa, madame... o fígado está chegando do matadouro. Na confusão que acompanhou a retirada de Madame Cruchot, Stephen ficou desamparado, prevendo com
sardónico fatalismo a possibilidade da sua demissão. Contudo, quando a mãe reapareceu, Marie-Louise correu através da sala, pegou a mão dele e despejou instantaneamente
a poesia, que recitou por inteiro, de um só fôlego. Victorine, para não ficar atrás, seguiu-a, por sua conta, com um perfeito desempenho.
Imediatamente o aspecto da reunião mudou, houve gritinhos de aclamação, sorrisos e acenos de cabeça foram dispensados a Stephen. Madame Cruchot resplandecia de perdoável
triunfo. Na verdade, depois de acompanhar as senhoras até a porta, voltou para Stephen com uma disposição de curiosa indulgência. Em vez da costumeira fina fatia
de presunto, deu-lhe no almoço um prato quente de carne ensopada, guarnecida de rabanetes e cebolas de Bordéus. Sentando-se diante da mesa da copa, observou:
- Afinal de contas, as coisas correram bem.
- Sim - disse Stephen sem levantar os olhos. - No começo, foi apenas o medo do palco.
Por um momento, ela continuou a vê-lo comer.
- Minhas amigas ficaram muito satisfeitas com o senhor - disse ela de repente. - Madame Oulard... a esposa do nosso primeiro pharmacien, uma senhora de certa posição
na cidade, embora naturalmente não possa pagar um tutor para as suas crianças, considera-o très sympathique... um perfeito cavalheiro.
- Sou muito grato por sua boa opinião.
- Acha que ela é uma mulher bonita?
- Deus do céu, não - disse Stephen com um ar ausente. - Eu mal a notei.
Madame Cruchot afagou as suas pastas de cabelo amarelo e, esticando o corpete, bateu nas suas firmes ancas com um gesto significativo.
- Deixe-me servir-lhe mais ensopado.
Nos dias que se seguiram, a qualidade e aliás a quantidade da refeição do meio-dia do tutor inglês melhoraram misteriosamente, e de várias outras maneiras a dona
da casa continuou a sua atitude diferente, e até se poderia dizer, o seu favor. Era uma mudança afortunada para Stephen, em quem a falta de alimentação adequada
e aquela tosse que não o deixava tinham causado considerável dano físico. Começou a sentir-se mais forte, novas correntes de vida movendo-se lentamente nas suas
veias, e um dia, de repente, sentiu, pela primeira vez desde que chegara a Netiers, um vivo desejo de pintar.
O impulso era irresistível, e ao deixar a mercearia apanhou um bloco de papel da Índia e alguns bastões de giz colorido. Quando a lição estava quase terminada, pôs
as duas crianças a ler no mesmo livro, juntas, na latada, e então, com o anseio de uma paixão contida, com linhas ligeiras, firmes e felizes, fez um pastel das suas
cabeças. A coisa foi feita rapidamente, tão veemente era a inspiração - em questão de menos de meia hora. Nunca tinha executado algo tão vívido, tão fresco na sua
composição impressionista. Até ele, que sempre subestimava o seu trabalho, estava comovido, sobressaltado, e excitado por aquela coisa adorável que tinha ganho vida,
misteriosamente, vinda do nada, ao seu toque.
Estava com a cabeça inclinada apontando para o fundo com um creiom amarelo, quando ouviu um som atrás dele: Madame Cruchot, por cima do seu ombro, estava olhando
para o pastel.
- Foi o senhor quem fez isso, m'sieur?
A sua expressão de pasmada incredulidade provocou-lhe um sorriso.
- Gosta?
Talvez ela não compreendesse plenamente a pintura. Mas via nela as suas duas crianças, belamente sugeridas em poucas linhas, umas poucas sombras de cor pura e brilhante.
Não entendia nada de arte. Contudo, o seu astuto instinto comercial tornou-a de imediato - ainda que subconscientemente, advertida de que ali estava algo raro e
delicado, algo da mais alta qualidade. Cobiçou-a
imediatamente. Mas além disso experimentou um singular afluxo dos seus sentimentos por aquele jovem inglês desconhecido, aquela emoção que começara quando, no dia
da recitação, o nevoeiro da sua indiferença se dissipara e ela o vira, através da tagarelice das suas amigas, como realmente era, um homem jovem muito atraente,
com a figura franzina e rosto sensível, os olhos negros e a delicada palidez. As menininhas ainda estavam soletrando no seu livro. Ela passou por trás do sofá e
sentou-se ao lado de Stephen.
- Não percebi - disse ela num cochicho confidencial - que m'sieur era um verdadeiro artista.
- Mas eu lhe disse quando a senhora me empregou.
A referência àquela primeira entrevista, quando ela o tratara tão rispidamente, provocou-lhe um rubor profundo até o seu queixo redondo e sólido e a coluna muscular
do pescoço.
- Ah - disse ela - não fiz muito caso do que me disse naquela ocasião. Eu não tinha o prazer de conhecer m'sieur como conheço agora... após estas semanas de agradável
intimidade, quando tem ensinado às minhas filhas, participado comigo da minha casa, e sempre com a polidez e reserva que só vem da verdadeira distinção. M'sieur
Stephen... - era a primeira vez que ela se dirigia a ele pelo nome, e o fazia com um frémito que endurecia a pele dos seus sólidos seios... - mesmo que não tivesse
me dito nada, eu saberia, por esta pintura, que o senhor tem grande talento.
Suas palavras de mau gosto eram embaraçosas, mas ele disse, gentilmente:
- Talvez queira ficar com ela...
A sugestão, com as suas implicações de compra, levou-a a recuar ligeiramente, mas só por um instante. Respondeu, séria:
- Quero sim, M'sieur Stephen, e vou falar a esse respeito com meu marido esta noite. Naturalmente, é possível que ele diga que o trabalho foi feito na hora da aula,
pelo que o senhor já estava pago, e nesse caso...
- Minha cara Madame Cruchot - interpôs apressadamente Stephen - a senhora absolutamente não me entendeu. Ofereço-lhe a pintura de presente.
Os olhos dela brilharam, não de cupidez agora, mas de uma emoção mais suave e confusa. Suprimiu um suspiro, olhou para ele com uma expressão terna, dizendo:
- Obrigada, M'sieur Stephen. Garanto-lhe que não se arrependerá.
A singularidade de estar sentada tão junto dele punha-lhe a cabeça a girar, uma sensação bem diferente da que lhe dava a proximidade de Cruchot. Mas as menininhas
começavam a exigir atenção, e ela ficou com medo de comprometer-se mais. Com um olhar de soslaio, rápido mas intenso, no qual tentava, em vão, mostrar o seu coração,
que batia rapidamente, levantou-se, disse-lhe au revoir, e voltou para a mercearia.


CAPÍTULO IV

APÓS SEMANAS DE aNIMADA APATIA, Stephen achou que podia pintar novamente. Era como despertar para uma nova vida na qual ele se descobria possuído de uma capacidade
maior, de uma visão mais penetrante do que antes. A cidadezinha, com seus insípidos habitantes, até aqui um deserto de esterilidade, transfigurou-se de repente numa
palpitante fonte de inspiração. Pintou o hotel de ville; a praça de armas do quartel; os telhados da cidade, vistos da sua janela, estranhamente pitorescos; uma
bela composição em cinza e negro das irmãs do convento voltando da missa na chuva, embaixo dos seus guarda-chuvas. As telas que tinha trazido de Napoleon Campo foram
uma a uma transformadas, pregadas no canto do quarto do sótão.
Havia cartas também, de Peyrat e Glyn, para alegrá-lo. Jerome propunha-se continuar em Puy de Dome no inverno e Glyn voltaria a Londres para uma breve estada no
outono. Ambos instavam para que fosse juntar-se a eles. Mas era claro que ele não iria. Estava pintando aqui, e feliz. Nesse estado de ressurreição, a lição diária
para as meninas Cruchot perdeu seu aspecto normal de necessidade. Na verdade, muitas vezes era penoso para Stephen pôr de lado os seus pincéis e correr à mercearia,
justamente quando a luz era a melhor. E embora, na linguagem do estabelecimento, ele continuasse tendo um valor, a sua mente não estava inteiramente no ensino, nem
após a aula era motivado por outro pensamento que não o ir-se dali.
Por causa da sua distração, continuou mais ou menos esquecido das mudanças, sempre crescentes, na atitude de Madame Cruchot para com ele. O vasto melhoramento na
cozinha era, sem dúvida, evidente, mas ele creditava-o à gratidão da proprietária pelo presente do quadro. A esta também atribuía os outros sinais de atenção que
lhe eram dispensados. Tornara-se agora costume de madame presidir o seu almoço e impor-lhe a sua hospitalidade. Na verdade, a sua dedicação foi além.
- M'sieur Stephen - ponderou ela um dia, com uma nota de solicitude. - estou preocupada com o seu conforto. O senhor pode não ser bem-visto em casa de Madame Clouet.
- Mas sou - contrariou ele. - Ela é uma alma muito decente.
- Mas é um quarto tão pobre.
- Conhece-o? - surpreendeu-se ele.
- Bem - disse ela enrubescendo. - Passei pela casa muitas vezes... no meu caminho para a igreja, naturalmente. Se ao menos alguém de gosto acrescentasse umas poucas
coisas... e as arranjasse, ficaria muito mais agradável para o senhor.
- Não, realmente - sorriu ele. - Agrada-me como está... despido e arejado.
- Mas não é bom para o senhor - insistiu ela. - Não posso deixar de notar que a sua tosse ainda o incomoda.
- Oh, não é nada... foi só esta manhã.
- Meu caro M'sieur Stephen. - Olhou-o com terna censura. - Não me contrarie em tudo. Se não posso melhorar o seu quarto, deixe-me ao menos restaurar a sua saúde.
No dia seguinte, para seu embaraço, um frasco de sirop pectoral do estabelecimento de Monsieur Oulard estava na mesa ao lado do seu prato, e madame, medindo uma
colherada, administrou-lhe a dose com ambas as mãos. Victorine e Marie-Louise divertiram-se vendo o seu professor ter que engolir remédio à força. E, no fim, Stephen
também riu.
Quando as crianças correram para brincar no jardim, Madame Cruchot, após um olhar demorado, soltou um suspiro:
- Naturalmente... uma coisa posso ver muito bem. O senhor encontrou na cidade alguma moça insignificante que o atrai.
- O quê! Em Netiers?
- Por que não? Não vai todos os dias ao Café des Ouvriers, e aquela Julie Grosette... eles por lá não têm grandes escrúpulos, posso lhe garantir...
Na verdade, ela conhecia todos os falatórios, mexericos e pequenas intrigas da cidadezinha. Mas o olhar atónito de Stephen era tamanho, que ela parou de falar. Forçou
um risinho.
- Não me olhe assim, meu amigo. Só estou pensando no seu bem-estar. E afinal de contas, embora eu seja uma boa mulher, também sou uma mulher do mundo. Então não
tem ninguém?
- Não - disse ele brevemente.
O olhar de expectativa, de ciúme, desapareceu dos seus olhos e foi substituído por um ar de coqueteria.
- Diga-me se gosta do meu vestido.
Colocou-se ligeiramente de quadril, exibindo o seu novo vestido, de um verde um tanto agressivo, com trancelins amarelos embaixo, que davam um efeito de juventude.
E o cabelo, recém-lavado, fora ondulado com um brilho mais metálico. Madame tinha apego aos vestidos, era uma cliente regular das galleries de Rennes, e ultimamente
exibia para Stephen as suas mais elaboradas toilettes, que, ai!, ele nunca parecia notar. Era essa indiferença que aumentava
os seus anseios, essa completa inconsciência de que ela era uma mulher, e talvez ele fosse assim com qualquer mulher, de uma inocência comparável à do jovem cura
que uma vez servira na paróquia e que ela admirava à distância, sonhando com ele todas as noites ao lado do merceeiro, que, com a carne aplacada pelo seu insensível
traseiro, roncava musicalmente. Mas isso não tinha sido nada, o mero sopro das asas de uma borboleta ao lado deste desejo que agora lhe corria nas veias, fazendo-a
arder de vontade de apertar Stephen nos braços e cobri-lo de beijos.
Ela estava cega para a comédia da sua situação: uma mulher de quase
40 anos, metida de corpo e alma nas atribulações de um negócio banal, de punhos fechados, uma tirana que passava a vida, de voz estrídula e metálica, pondo areia
no açúcar, água na sidra, extorquindo o último soldo das palmas renitentes de um camponês - ela, entre todas as mulheres, sendo amaciada, liquefeita por aquela devastadora
paixão por um rapazinho que talvez pudesse ter sido seu filho. Perdeu o interesse nas suas crianças, nas suas amigas, na busca da riqueza. O marido tornou-se-lhe
odioso. Os seus maneirismos burgueses, a maneira de comer, de soltar ventosidades baixinho após a sua cerveja, despertavam nela uma tempestade de ódio.
- Je te défends de passer le gaz en bas! - gritava ela, encolerizada.
E com tudo isso o seu próprio refinamento aumentava. Banhava-se com mais frequência, usava um perfume mais forte, chupava pastilhas para perfumar o hálito, mudava
a rroupa branca mais seguidamente. Se não pudesse tê-lo, sentia que deixaria de viver.
Subitamente veio uma resposta às suas preces mudas, uma ideia de brilho surpreendente. Como é que ela não tinha pensado nisso antes? Quando Stephen entrou nesse
dia, ela o interceptou no corredor.
- Meu amigo - disse ela alegremente. - Tenho uma boa notícia para o senhor, em suma, uma incumbência. Monsieur Cruchot insiste em que o senhor deve pintar-me.
Desconcertado, Stephen olhou para ela em silêncio.
- Sim - acenou ela. - Cruchot está cheio de entusiasmo. Não falou em outra coisa ontem à noite... De corpo inteiro... a óleo.
- Mas, madame. - Stephen franziu o cenho hesitante, procurando uma desculpa. - Eu... eu não pinto retratos... estou trabalhando em outro tema...
Ela sorriu para ele tranquilizadoramente.
- Não se preocupe, mon petit, farei com que seja pago. Na terça-feira, então, começamos. Está combinado.
Antes que ele pudesse terminar, ela bateu-lhe no braço, com um olhar arqueado, e saiu depressa da sala.
Terça-feira era meio feriado para os comerciantes. Como sempre, a loja
fechava ao meio-dia e tudo ficava tranquilo. Contudo, no momento em que entrou, Stephen sentiu, nos postigos fechados, uma calma sobrenatural. Madame Cruchot recebeu-o
na porta.
- Nada de lição hoje - anunciou ela efusivamente. - As meninas foram para o campo com Marie.
Ao admiti-lo na loja, explicou que a empregada fazia uma visita por mês aos seus pais em St. Vallé, e que, às vezes, como grande favor, ela lhe permitia que levasse
as crianças.
- E naturalmente - acrescentou sem cerimónia - meu marido está em Rennes, no mercado. Não seremos perturbados.
Novamente o silêncio incomum perturbou-o; nenhum rumor na adega, onde Joseph, o auxiliar, passava duas horas cuidando do estoque. Na casa, a não ser eles, não havia
ninguém. Mas foi a mesa, na sala de almoço, posta para dois, com toalha engomada e os melhores talheres, adornada com um vaso de rosas vermelhas, que o pôs em guarda.
- Se não se incomoda, almoçaremos juntos. Será muito mais conveniente.
Falando voluvelmente, naquela mesma maneira descuidada, trouxe da copa um poulet de Bresse assado, com cogumelos e salada, um paté de Estrasburgo, pêssegos em calda,
e uma garrafa de champanhe. Somente depois de abarrotar o seu prato, permitiu-se olhar para ele.
- Estamos bem aconchegados aqui. Não é agradável almoçarmos tête-à-tête? Sabe, deve comer antes de trabalhar. - Lançou-lhe um olhar pudico. Deixe-me servir-rlhe
o champanhe. É o melhor que vendemos. Cinco francos a garrafa.
Ele sentia-se confuso, desconcertado e inquieto. Mas no seu estado empobrecido, tinha para com a comida uma espécie de oportunismo. Comeu o que foi posto diante
dele, certo de que não estava em posição de recusar, mas foi se tornando cada vez mais consciente daqueles olhares lânguidos que pousavam nele. Do seu busto também,
que subia com esforço cada vez que ela respirava com esforço, fazendo os seios pularem e o queixo afundar no pescoço, parecendo aproximar-se mais dele a cada respiração.
Ao contrário do seu costume habitual, ela não estava comendo, servindo-se, com um ar de refinamento, apenas de uma asa de frango, e agora já partindo para o segundo
copo de vinho. Seus olhinhos redondos brilhavam como bolinhas de gude. Sentia um forte impulso para estender o braço por sobre a mesa e apertar-lhe a mão. Ele nunca
adivinharia que delicados favores ela estava preparada para lhe oferecer? Quanto menos ele entendia, mais a seduzia.
- Meu amigo - exclamou ela - não pode fazer uma ideia do que tem sido a minha vida nestes últimos 15 anos aqui em Netiers.
- Infelizmente não a conheço há tanto tempo.
- Não - refletiu ela, e numa voz sumida: - Contudo, devo ao senhor o fato de ter descoberto o vazio da minha existência.
- Isso seria um mísero retorno, madame... se fosse verdade.
- É verdade. - Como ele nada dissesse, ela moveu a cabeça enfaticamente. - Sim, ao senhor, meu amigo, que me abriu os olhos para novos horizontes, com os quais antes
eu nem sonhava. Monsieur Cruchot, embora sem excessiva ternura ou delicadeza, é um homem digno. E naturalmente eu sou uma mulher virtuosa. Mas há momentos em que
a solidão me invade o coração, quando tenho necessidade de um confidente. Ah, meu amigo - suspirou ela
- quando o coração pede, quem é que pode negar? É errado procurar a realização... uma vez que seja discreta?
Sentado em silêncio, constrangido, uma rude explicação para aquele comportamento atravessou-lhe de fato o espíriro. Mas despediu-a como absurda. Contudo, sentia-se
obrigado a começar o trabalho sem demora e executá-lo o mais depressa possível. Empurrou o prato.
- E agora, madame, se lhe for agradável, podemos começar. Pensei que seria melhor fazer um esboço preliminar. A senhora posará para mim? No salão?
Ela olhou para ele e tomou um fôlego convulsivo.
- Não - replicou numa voz indistinta. - Lá em cima a luz é melhor. Levantou-se da mesa e dirigiu-se para a porta. - Eu me apronto logo. Termine o seu vinho. E depois
suba.
Ele nunca tinha estado antes no andar de cima. Após esperar cinco minutos, encaminhou-se para a escada. Estava frouxamente iluminada, e os degraus, cobertos de tapete
fino, estalavam aos seus pés. O cheiro dos queijos, postos a amadurecer no armário do corredor encheu o ar. Ao chegar à porta, encontrou-a aberta. Imaginou que dava
acesso à sala de estar, mas antes que pudesse bater, ela o chamou:
- Entre, mon ami.
Ele entrou.
Madame Cruchot estava junto à cama dupla, pedindo a sua aprovação. Tinha tirado o vestido e usava um penhoar, que, numa pose vulgar, com uma das mãos no quadril,
ela mantinha meio aberto, revelando os calções listrados, com um babado de renda pesada, que caía abaixo dos seus joelhos grossos, e uma camisola cor-de-rosa umedecida
por uma mancha de perfume que acabara de pôr, enrugada pelo espartilho.
Um suor frio inundou Stephen. Suas pupilas ardiam com cada detalhe do ostentoso mas desmazelado dormitório, o tapete ornado e as cortinas com colgadura, a cómoda
manchada, o utensílio de louça embaixo da cama, e até a camisa de dormir de Cruchot enfiada às pressas embaixo de um travesseiro. Empalideceu. Interpretando mal
os seus olhos dilatados, ela agitou a cabeça,
fingindo tremer, e então, com uma terrível coqueteria, veio para ele. Era demais. Ele recuou com uma expressão de repulsa, furioso consigo por ter caído em tal situação,
que, embora participasse dos elementos da farsa era abjetamente humilhante. Sem uma palavra, voltou-se e precipitou-se para fora do quarto.
Nessa noite, sentado no seu sótão, ouviu fortes pancadas na porta da frente, seguidas de passos pesados na escada, e logo Monsieur Cruchot invadia o seu quarto.
O merceeiro, ainda vestindo o seu melhor terno, encontrava-se num estado de cólera fabricada.
- Como se atreve a fazer propostas amorosas a minha esposa... miserável insignificante... no instante em que dou as costas? Tenho a intenção de ir diretamente à
polícia. Sempre pensei que você era uma cobrinha inglesa. Mas morder a mão que o sustenta... uma mulher de coração puro... uma mãe! Que ultraje... uma atrocidade!
Jamais torne a mostrar o seu focinho no meu estabelecimento. Mas, além disso, deve haver uma compensação... por danos... no mínimo uma pintura.
Stephen sabia que Cruchot não gostava dele, no entanto era evidente que aquela exibição era instigada pela esposa, o marido era o mensageiro da mulher despeitada.
E com uma onda de amargura, como Cruchot continuasse a ameaçá-lo, Stephen arrancou uma página do bloco que estava na mesa dele e entregou-a ao merceeiro. Era um
esboço que ele acabara de fazer de memória de madame, obesa e afetada, de calções, no quarto de dormir.
Monsieur Cruchot, silenciado pelo gesto inesperado, olhou para o desenho fatal. Sua face tornou-se lívida. Ia rasgá-lo, mas, com a esperteza nativa, considerou-o
novamente, enrolou-o cuidadosamente e colocou-o dentro do chapéu. Depois, com um olhar furtivo, voltou-se e foi embora.


CAPÍTULO V

NA MANHÃ SEGUINTE, Stephen fez a sua mochila, amarrou as suas telas num canudo e, pondo a carga ao ombro, partiu de Netiers a pé. Seu objetivo era Fougères, situada
na route nacional, a 30 quilómetros de distância, e às cinco horas da tarde, após uma sufocante caminhada através dos campos, alcançou, a cidade, erguida em ambos
os lados de uma colina cortada pela estrada principal
para Paris. Lá, encontrou um restaurante barato que lhe pareceu um ponto de parada para caminhoneiros. O garçom, ao qual pediu ajuda, tinha certeza de que surgiria
uma oportunidade, e na verdade, justamente antes das nove, parou um camion da Compagnie Atlantique com um reboque e dele desceram dois homens de macacão e entraram
no bar. Poucos minutos depois, o garçom fez um sinal, houve apresentações, explicações transitórias e um geral aperto de mãos - tudo arranjado. As coisas de Stephen
foram colocadas embaixo do assento e eles partiram.
A noite chegou quente e serena. Rodaram através de aldeias adormecidas, cidades desertas onde brilhavam apenas umas poucas luzes, passando Vire, Argentan, Dreux.
O ar quente assobiava ao lado deles, os paralelepípedos estrondejando embaixo, a lua mergulhou por trás das alamedas nevoentas de álamos. Finalmente, quando rompeu
o amanhecer pálido e escorrido, atravessaram o Sena em Neully, entraram em Paris pela Pote Neully e pararam no mercado Les Halles. Lá, Stephen agradeceu aos seus
dois amigos e deixou-os.
A cidade, ainda não acordada de todo, tinha um ar cinzento e triste, mas quando atravessou a Ponte Nova, Stephen respirou fundamente o ar úmido. Estava de volta
a Paris. Depois de Netiers sentia-se mais forte, acima de tudo cheio de uma firme determinação de demonstrar o seu talento ao mundo.
Quando o mont-de-piété da Rue Madrigal abriu as portas, ele estava à espera do lado de fora. Entrando, empenhou o relógio - um presente do pai no dia do seu vigésimo
primeiro aniversário - pelo qual recebeu 180 francos. A seguir, após uma demorada procura, achou uma acomodação numa rua lateral próxima da Place St. Séverin, um
bairro frequentado por artistas como último recurso. Era um quarteirão pobre e um quarto ainda mais pobre, escassamente mobiliado e terrivelmente sujo - somente
10 francos por semana. Imediatamente se pôs ao trabalho e, pedindo emprestados uma vassoura e um balde, limpou o cómodo. Até lavou as paredes, a fim de que parecessem
recomendáveis, embora ainda permanecessem algumas manchas de insetos.
Passava das duas; sem pensar em comida, escolheu quatro das suas pinturas e dirigiu-se rapidamente pelos quais à loja de Napoleon Campo. O vendedor de tintas estava
sentado no seu caixote costumeiro atrás do balcão, balançando as pernas curtas, usando uma jaqueta azul de piloto e boné amarelo de tricô, com as orelhas gretadas
de fora, o rosto púrpura com a barba por fazer, mãos cruzadas sobre a barriga. Saudou Stephen amavelmente, como se o tivesse visto na véspera.
- Bem, Monsieur l'Abbé, que posso fazer pelo senhor?
- Antes de tudo, deixe-me liquidar o que lhe devo.
- Obrigado, o senhor é um homem honesto.
Recebeu os 50 francos que Stephen lhe deu e enfiou-os numa velha bolsa de couro.
- E agora, Monsieur Campo, quero uma tela bem larga, 2,00 x 0,80cm.
- Ora! Tem um trabalho tão grande assim em vista? Naturalmente pode pagar?
- Em dinheiro não, monsieur. Com estes.
- Endoideceu, Abbé? Deus do céu, meu porão está abarrotado de pinturas, refugo impróprio até para a lata de lixo, que recebi por ter um coração bondoso.
- Nem tudo é lixo, Campo. Você recebeu pinturas de Pissarro, e Boudin, e Degas.
- Você é um Degas, meu pequeno Abbé?
- Um dia, talvez.
- Meu Deus, é sempre o mesmo conto de fadas. Então a sua tela especialmente grande é para pendurar no Salon, com multidões diante dela. Terá fama e fortuna da noite
para o dia. Bah!
- Então aceite 20 francos por conta e estas pinturas como penhor do restante.
Os insignificantes olhinhos azuis de Napoleon procuraram o rosto pálido e sério diante dele. Tantos, tantos rostos tinham passado por sua loja nos últimos 30 anos,
que afogavam a sua memória. Era um homem fleumático, que não se comovia facilmente, e a idade o tinha tornado ainda mais impassível. Mas ocasionalmente, embora isso
fosse raro, havia nos modos e no aspecto de algum aspirante necessitado, como agora nas curiosas feições daquele inglesinho, um tipo de intensidade que o impressionava.
Hesitou, depois desceu do seu assento e começou a remexer nas prateleiras. Quando a tela que Stephen queria - um fino linho de grão fino - estava em cima do balcão,
houve uma pausa.
- Disse 20 francos?
- Sim, Monsieur Campo. Stephen contou as moedas.
Napoleon Campo tomou uma pitada de rapé, limpando meditativamente o nariz carnudo com o punho da sua jaqueta de piloto.
- E agora, naturalmente, vai passar fome.
Houve outra pausa. Subitamente Campo empurrou as moedas que estavam em cima do balcão.
- Devolva estas à sua caixa de coleta, Abbé. E me dê os seus miseráveis borrões.
Surpreso, Stephen entregou-lhe as suas pinturas. Sem ao menos uma olhada por alto, Napoleon colocou-as embaixo do balcão.
- Mas. . . não quer vê-las?... São... as melhores que eu fiz.
- Não julgo pinturas e sim gente - replicou Campo rispidamente. bom dia, monsieur. E boa sorte.
Stephen voltou ao seu quarto com a tela às três horas, e sem demora saiu imediatamente para a loja de bicicleta da Rue de Bièvre. Até agora as coisas tinham ido
bem, mas ao se aproximar do estabelecimento de Berthelot sentiu-se nervoso e inseguro de si mesmo, embora cheio de uma viva expectativa que fazia o seu coração bater
depressa. Muitas vezes, durante os últimos meses, tinha pensado em Emmy; a recordação daqueles momentos na escuridão do corredor estreito lhe vinha de tempos em
tempos sem aviso, ainda que com uma esquisita inconsistência.
Encontrou-a no pátio atrás da oficina, curvada sobre uma bicicleta niquelada, reforçada e pintada de vermelho e ouro. Vê-la outra vez deu-lhe uma sensação de calor
por dentro. Ela ergueu os olhos quando ele apareceu, aceitou a sua saudação sem surpresa e continuou a acertar os rolamentos. O pulso dele ainda estava absurdamente
desigual; contudo, desde as suas excursões juntos, sabia muito bem que ela abafava qualquer mostra de afeição.
- É uma linda máquina - disse ele após alguns momentos.
- É minha. Vou usá-la em breve. - Endireitou-se, atirou uma mecha de cabelo para trás. - Então está na cidade de novo?
- Desde esta manhã.
- Quer alugar uma?
Ele abanou a cabeça.
- Tenho coisas mais importantes para fazer.
Houve uma pausa. Ela sempre fora um tanto curiosa a respeito dele, e agora, como ele pretendia, o seu interesse tinha aumentado.
- Está metido em quê?
Ele respirou rápido.
- Já ouviu falar do Prix de Luxembourg, Emmy? É uma competição aberta a todos os que nunca estiveram no Salon. Pretendo arriscar. - Depois, como se ela se voltasse
indiferente, acrescentou: - Foi por isso que voltei. Quero que você pose para mim.
- Quer dizer... - interrompeu-se, olhando para ele - ... fazer o meu retrato?
- Isso mesmo. - Procurou falar num tom casual. - Você nunca foi pintada, foi?
- Não, apesar de que já devia ter sido há muito tempo, considerando quem sou.
- Então, esta é a sua oportunidade. Pode ser muito bom para você. Os melhores trabalhos serão exibidos no Orangerie. Você certamente seria reconhecida.
Ele podia ver que a sua vaidade estava lisonjeada, mas ela hesitava, olhando-o de cima a baixo como que calculando a sua capacidade.
- Você pode mesmo pintar? Quero dizer, poderia fazer um bom retrato?
- Pode contar comigo. Porei tudo o que tenho nessa pintura.
- Sim, suponho que poria, para o seu próprio bem. - Uma ideia lhe ocorreu. - Mas eu vou excursionar no mês que vem.
- Até lá há tempo suficiente. Se você vier todos os dias durante três semanas, posso pintar os detalhes depois que você for.
Novamente podia ver que ela debatia as possibilidades.
- Bem - disse ela, por fim, na sua maneira desgraciosa. - Não me importo. Acho que não vou perder nada.
Ele reprimiu uma exclamação de satisfação e alívio - não somente tinha querido pintá-la desde o começo, mas ela seria perfeita para o assunto que naquelas últimas
e poucas horas havia se apoderado dele. Rapidamente, deu-lhe o seu novo endereço, pediu-lhe que estivesse lá às 10 da manhã seguinte, usando o seu suéter preto e
a saia pregueada, e despediu-se antes que ela pudesse mudar de ideia.
Vagabundeando pela avenida, sentia-se excitado pelo que tinha realizado nesse dia. Só então se lembrou que não comia desde que dividira um sanduíche com o motorista
do camion na noite passada. A fome o atacou como um tapa. Mergulhou numa épicerie, onde comprou um pão comprido e uma tranche de salsicha. Não conseguia ficar quieto.
Andando pela rua escurecida diante do Jardin des Plantes, mordia alternadamente o pão estalante e o suculento patê embutido no seu branco envoltório de toucinho.
Como era gostoso. Sentia-se feliz, livre, e estranhamente exaltado.


CAPÍTULO VI

No DIA SEGUINTE, ele estava pronto e esperando impacientemente, a tela preparada, quando ela chegou, com uns 20 minutos de atraso.
- Aí está você! - exclamou ele. - Pensei que não viesse mais.
Ela não respondeu, mas da porta olhou em torno para o quartinho miserável com as pranchas nuas, uma cadeira de bambu quebrada e uma cama sobre roletes, afundada
no meio.
- Você está quebrado, não?
- Mais ou menos.
- Você tem topete. Trazer-me para um trou destes. Nem ao menos tem onde pendurar as minhas coisas.
Ele corou, mas forçou um sorriso.
- Admito que não seja o Elysée, mas nío é mau lugar para pintar. Dê-me uma chance e eu prometo que não se arrependerá.
Ela baixou o lábio numa espécie de careta, mas, com um dar de ombros, entrou e deixou que ele lhe tirasse o casaco e a postasse diante da janela.
A luz era boa, e, cheio de um súbito hausto de força, ele começou a tracejar a composição que agora o obcecava. Como as regras do concurso exigiam uma pintura "clássica",
seu tema seria alegórico, embora moderno na composição, e o assunto era: Circe e Seus Amantes. Poderia a sua absurda aventura com Madame Cruchot, trabalhando no
fundo do seu inconsciente, inflamar uma centelha que incendiasse essa estranha visão? Símbolos e imagens enchiam a tela da sua vista, cativando os sentidos. Na sua
imaginação, o prazer lutava com a virtude, e a luxúria se revelava na forma dos seios à espreita. Tudo ainda era uma miragem; no entanto, nos íntimos e misteriosos
recessos da sua alma, sentia a força para fazer aquele sonho existir.
Embora pudesse ter continuado o dia inteiro, ao meio-dia, advertido pela expressão da moça, Stephen lhe disse que talvez fosse o bastante para aquele dia. Imediatamente,
ela atravessou o quarto e examinou a tela, onde, usando carvão, ele já tinha feito seu esboço, de corpo inteiro e bem definido. As sobrancelhas ergueram-se e o olhar
amuado deixou o seu rosto quando ela se viu ocupando o centro da tela, de pernas separadas, mãos plantadas nos quadris, uma atitude que era toda sua. Não disse nada
enquanto permitia que ele a ajudasse a vestir o casaco, mas na porta se voltou e acenou a cabeça.
- À mesma hora, amanhã.
Durante a tarde, enquanto a luz durou, ele trabalhou no plano de fundo. E no dia seguinte, e nos que se seguiram, continuou, nem sempre de ânimo elevado, mas com
um propósito que o transportara através de momentânea melancolia para novos transes. Ao mesmo tempo, à medida que prosseguiam as sessões e ele entrava em contato
mais íntimo com Emmy, não mais podia ficar cego ao aprofundamento dos seus sentimentos por ela. A cada dia, terminada a sessão, dava consigo a sentir falta dela,
mais e mais. Na ausência de Peyrat e Glyn, estava sozinho. Mas isso explicaria o seu constante desejo pela companhia dela? Zangado consigo mesmo, lembrou o quanto
não gostara dela no seu primeiro encontro, e como ela às vezes o irritava com a sua grosseria e falta de educação. Quando ela estava de mau humor e ele tentava conversar
com ela, as suas respostas eram monossilábicas, e quando lhe dizia que descansasse, ela continuava a ignorá-lo, deitava-se de barriga na cama, acendia um Caporal
e mergulhava numa revista esportiva amarrotada. Percebeu que ela não tinha atenção para com ele e que somente a vaidade a trazia regularmente ao seu quarto. Uma
dúzia de vezes por dia ela ia observar a marcha do trabalho, e embora nunca o elogiasse, congratulava-se consigo mesma.
- Estou saindo bem, não é?
A lenda da Odisseia, da filha de Helios e da ninfa do oceano Perse, que ele explicou para ela, mexeu-lhe com a fantasia. A ideia de que tivesse o poder de transformar
seres humanos em formas animais provocou-lhe um sorriso.
- Bem feito, pra eles aprenderem.
Essa vulgaridade estremeceu-o. E contudo não era inibidora. Que haveria naquela moça para provocar o seu premente interesse? Procurou descobrir. Que sabia realmente
dela? Muito pouco, exceto que era comum, dura e insignificante - uma pequena nulidade, desinteligente, sem imaginação, completamente empedernida. Não sabia nada
de arte, não tinha interesse pelo seu trabalho, e se entediava quando ele falava. Mas a sua figura era esquisita - não estava reproduzindo cada linha sutil dos seus
membros fortes e esbeltos, o ventre chato e os seios firmes? - e acima de tudo ela era pequena. Embora pudesse admirar na tela a carne voluptuosa das mulheres de
Rubens, o seu gosto sempre fora por uma perfeição menos arredondada. E ela possuía essa nitidez física, uma figura que ele sempre comparava à Maja de Goya. Contudo,
ninguém poderia chamá-la de bela. Tinha um encanto travesso, mas os seus lábios eram finos, as narinas um tanto puxadas, e a sua expressão, quando não alerta e vigilante,
era quase carrancuda. Curioso é que, todas as suas imperfeições eram aparentes para ele. Contudo, não afetavam em nada aquela estranha emoção que, a despeito de
todos os seus esforços para suprimi-la, crescia nele.
Desejava estar ao lado dela e sentia-se inquieto e nervoso quando ela se retirava. Desordenadamente afetado pelos seus humores variáveis, respondia a eles de uma
maneira que o fazia desprezar a si mesmo. Em raras ocasiões, quando ela se mostrava agradável, o seu coração se animava. Às vezes, nessa disposição tagarela, ela
fazia perguntas sobre o único assunto que, entre todos os outros ligados a ele, parecia interessá-la.
- É verdade que os seus pais têm uma grande proprieté em Sussex, com muitos acres de boa terra?
- Não muitos - sorriu ele. - Se Glyn lhe disse isso, exagerou.
- E você ia ser um padrezinho... até que eles o tiraram do seminário.
- Você sabe que eu saí por minha vontade.
- Para viver num quarto como este? - perguntou, incrédula.
Encolheu os ombros, mas sem desprezo - lisonja que o gratificou. Essa afabilidade, embora não causasse alívio, era um agradável contraste com a mortificante indiferença
com que ela geralmente recebia as suas tentativas para agradá-la. E enquanto ela posava, indolente como um gato, ele começou a contar-lhe, sem parar de pintar, histórias
sobre Stillwater que achava pudesse entretê-la e diverti-la. Quando finalmente esgotou o repertório, ela refletiu por alguns momentos, e então declarou:
- É certo que vivi com, isto é - corrigiu-se - entre artistas toda a minha vida. Eu própria sou uma artista. Compreendo que se abandone alguma coisa pela arte, quando
isso não é nada. Mas você está numa categoria diferente. E abandonar a sua bonne proprieté, que você poderia herdar... - fez pausa e encolheu os ombros - ... foi
imbécile.
- Não completamente - sorriu ele - ou eu não a teria encontrado. Veio-lhe uma súbita onda de anseio. Deteve-se, não ousando olhar para
ela.
- Você não percebe, Emmy?... que estou gostando terrivelmente de você?
Ela riu-se brevemente e levantou um dedo avisador,
- Nada disso, Abbé. Isso não faz parte do nosso acordo.
Derrotado, retomou o trabalho. E por toda a noite sentiu a dor da rejeição. Se ao menos pudesse sair com ela à noite - ela, que apreciava diversões vulgares - achava
que podia conquistar sua simpatia. Mas sua falta de recursos o impedia. Vivia com pouco mais de meio franco por dia, subsistindo com um pão ou uma maçã até às seis
horas, quando tomava sua solitária refeição no café mais barato das redondezas.
Certa tarde, quando suas sessões de pose já estavam terminando, ela chegou, mais atrasada do que de costume. Aparentava ótimo humor. Usava um fichu amarelo novo
com uma curta jaqueta vermelha ataviada de rendas, e seu cabelo estava recém-lavado.
- Você está muito bem - cumprimentou Stephen. - Eu quase desisti de esperá-la.
- Tenho um encontro com Peroz. O escritório dele fica bem longe... no Boulevard Jules Ferry. Mas consegui o contrato que eu queria.
- Ótimo - sorriu ele, sem mencionar que a sua partida o deprimia. Quando parte?
- A 14 de outubro. Houve um adiamento de duas semanas.
- vou sentir a sua falta, Emmy. - E inclinando-se para ela: - Mais do que você pensa.
Ela riu de novo e ele notou que os seus dentes eram agudos e regulares, com espaços definidos entre eles. Então, com vivacidade, acentuando as suas observações,
ela começou a descrever como conseguira o melhor de Peroz ao estabelecerem os termos do seu contrato.
- Dizem que ele tem bom coração - concluiu ela. - Acho que ele é apenas um gobeur... um mole.
Sabendo que a sua conversa geralmente a aborrecia, Stephen encorajou-a a continuar falando sobre si mesma. Então, como não houvesse mais luz, guardou os seus pincéis.
- Deixe-me andar com você - disse ele. - Está uma bela noite.
- Muito bem, se quiser - concordou ela, dando de ombros.
Quando ela apanhou as suas coisas, eles desceram a escada e dali a pouco chegaram ao Boulevard Gavranche, onde uma escuridão quente lançava um halo em torno das
lâmpadas da rua, envolvendo a cidade muda em misteriosa beleza. Casais passavam lentamente, de braço dado, nas calçadas tranquilas a noite parecia feita para os
namorados. Numa rua lateral perto do rio, passaram por um café, onde com a música de um acordeom, havia gente dançando sob uma pérgula, com lanternas chinesas penduradas
nos ramos dos plátanos. A cena estava cheia de luz e alegria, e Stephen podia sentir os olhares interrogativos de Emmy lançados para ele.
- Gostaria de dançar?
Tomado por um demorado embaraço, consciente da sua inépcia, ele abanou a cabeça.
- Eu não seria muito bom nisso.
Era verdade. Ela encolheu os ombros.
- Você não é bom em muita coisa, não é? - disse ela.
Chegaram às sombras dos quais. O Sena fluía em silêncio, uma corrente lisa e verde, sob o vão baixo da Pont de l'Alma. Como se estivesse entediada pelo seu silêncio,
ela caminhava um pouco adiante, começando a trautear a canção tocada pelo acordeom no cabaré.
- Espere, Emmy. - Ele se chegou para o abrigo de um arco. Ela o Olhou de lado, por sobre o ombro.
- Que é que tem na cabeça, Abbé?
- Você não vê... o quanto significa para mim?
Pôs um braço em torno dela, atraindo-a para si. Durante uns poucos momentos, insensível como o poste de iluminação, ela deixou que ele a abraçasse, e depois, com
um movimento brusco de impaciência, empurrou-o.
- Você não entende nada disso.
Havia desprezo na sua voz.
Ferido e humilhado, fraco de emoção frustrada, sentindo a verdade da observação, ele a seguiu para a rua. Caminharam para a Rue de Bièvre. Diante da loja de bicicletas,
ela olhou para ele como se nada tivesse acontecido.
- Posso ir amanhã de manhã?
- Não - disse ele amargamente. - Não será necessário. Voltou-se, furioso com ela e enojado consigo mesmo.
- Não se esqueça - gritou ela. - Quero ver o quadro quando estiver terminado.
Ele a odiava por sua dureza, sua falta de generosidade comum - ela sequer tivera pena dele. Disse a si mesmo que nunca mais tornaria a vê-la.
Na manhã seguinte, quando acordou de uma noite inquieta, lançou-se apaixonadamente na contemplação do quadro. Até agora, só a figura central
tinha tomado forma, havia ainda o tema a ser desenvolvido. O tempo se tornara úmido e sombrio, a luz era pouca, o seu estúdio improvisado varrido por correntes de
ar, mas nenhuma dificuldade parecia tão grande que ele não pudesse vencer. Na sua busca de realismo, ia todas as tardes ao Jardim Zoológico; depois, voltando para
o seu quarto, transferia as abjetas criaturas para a tela, com algo da sua própria tristeza e sujeição. No fim dessa semana, o seu dinheiro acabou - procurando uma
moeda para comprar o seu petit pain, não pôde achar um único soldo. Sem se abater, continuou a pintar o dia todo com uma espécie de fúria.
Na manhã seguinte, sentiu-se fraco e tonto, mas ainda assim forçou-se a prosseguir no trabalho. Quando chegou a tarde, porém, um raio de razão se infiltrou pelas
névoas que agora obscureciam o seu cérebro. Percebeu que se não comesse para viver, simplesmente isso, nunca terminaria a Circe - a menos que pudesse achar algum
meio de sustento. Sentado na beira da cama, refletiu por um instante e depois foi ao canto onde estavam as suas pinturas de Netiers, selecionando três que eram especialmente
brilhantes e coloridas. Eram boas, satisfaziam-no, davam-lhe confiança. Embrulhou-as em papel pardo e, com o rolo debaixo do braço, saiu para atravessar o Sena ao
longo dos Champs Elysées para o Faubourg Saint Honoré. Era um ato de coragem. Contudo, o tempo para meias medidas tinha passado. Estava resolvido a oferecer o seu
trabalho ao melhor negociante de arte da França.
Na esquina da Avenue Marigny, um logradouro principalmente ocupado por pequenos edifícios de apartamentos e suntuosas lojas de haute couture, deteve-se diante de
uma rica mas comedida fachada de pilares paládicos e pedra branca talhada. Depois, retesando-se decididamente, passou pela porta veneziana dourada e entrou num vestíbulo
calçado de mármore, com painéis de jacarandá e colgaduras de veludo vermelho, onde se achou diante de um jovem de paletó com abas abertas, sentado atrás de uma escrivaninha
Luís XVI laqueada e com ouropel. Através do cortinado lá atrás, via-se um amplo salão, igualmente esplêndido, embelezado por grandes buques de lírios em vasos de
alabastro e cheio de quadros belamente iluminados, diante dos quais gente elegante se movia, e misturava, consultando os seus catálogos, conversando em voz baixa.
- O senhor tem convite para o vernissage, monsieur?
Stephen devolveu o olhar do jovem maneiroso, que, por baixo do seu sorriso profissional, examinava-o com extrema cautela.
- Não. Eu ignorava que havia uma exibição. Vim para ver Monsieur Tessier.
- Qual o assunto, monsieur?lis
- Pessoal.
O sorriso, de inefável polidez, não vacilou.
- Receio que Monsieur Tessier não se encontre na casa. Contudo, se quiser tomar uma cadeira, irei verificar.
Quando Stephen sentou-se, o jovem levantou-se graciosamente e deslizou para dentro. Mas quase ao mesmo tempo uma porta lateral se abriu e três pessoas entraram na
sobreloja - uma mulher, muito elegante, de preto, carregando uma miniatura de poodle, enfitado e fantasticamente frisado; seu acompanhante, um homem idoso, entediado
e distinto, impecavelmente vestido, dos sapatos marrons ao chapéu; e Tessier, que Stephen reconheceu imediatamente, uma figura cortês, de rosto moreno, barbeado,
com o lábio inferior saliente e olhos de bistre. O marchand estava falando, sensatamente com reservada animação e movimentos comedidos das mãos.
- Asseguro-lhe que é uma perfeita gema. A mais fina que me chegou em vários anos.
- É linda - disse a dama.
- Mas o preço! - interpelou o seu companheiro um tanto soturno.
- Já lhe disse, cavalheiro. Por 100 mil, é inquestionavelmente um preço de ocasião. Mas se não o deseja para o senhor, tem somente que me dizer. Virtualmente, tenho
compromisso com outro cliente.
Houve uma pausa, um toque na manga do acompanhante, um murmúrio de conversação íntima, e então:
- Pode considerar a pintura vendida.
Uma inclinação de cabeça, não obsequiosa, mas gravemente aprovando semelhante bom gosto, foi a única resposta de Tessier. Contudo, não os levou até a porta, e quando
se voltou, parecendo meditativo, de cabeça baixa, mãos cruzadas atrás das costas, Stephen foi ao seu encontro.
- Monsieur Tessier, peço-lhe que me desculpe pela intrusão. Poderá dar-me cinco minutos apenas do seu tempo?
O negociante ergueu os olhos vivamente, perturbado nos seus pensamentos, certamente relacionados com cálculos e seu olho empapuçado, com a imediata percepção de
algo encontrado com desagrado em ocasiões anteriores, apreciou a figura maltrapilha que tinha diante de si, dos sapatos enlameados e encharcados ao embrulho malfeito
que trazia debaixo do braço.
- Não - murmurou ele. - Agora não. Como vê, estou inteiramente ocupado.
- Mas monsieur - insistiu Stephen, abalado mas com determinação. - Só lhe peço que veja o meu trabalho. Será demais um artista solicitar-lhe isso?
- Então o senhor é um artista? - O lábio de Tessier reentrou. - Felicito-o. Sabe que cada semana sou assediado, atacado e importunado por pessoas que se intitulam
génios e imaginam que eu desmaiarei num êxtase quando contemplar os seus execráveis esforços? Mas nunca tinha encontrado um com o atrevimento de me procurar aqui,
no auge da minha exibição de outono.
- Lamento perturbá-lo... mas o assunto é um tanto urgente.
- Urgente para mim... ou para o senhor?
- Para ambos. - Stephen engoliu convulsivamente. Na sua agitação, falou sem controle. - O senhor acaba de vender um Millet por uma soma considerável. Perdoe-me,
não pude deixar de ouvir. Dê-me uma oportunidade e eu lhe mostrarei um trabalho tão fino como qualquer coisa vinda de Barbizon.
Tessier relanceou os olhos para Stephen, notou a sua aparência perturbada, a dilatação dos seus olhos.
- Por favor - disse ele de maneira fatigada, abandonando o argumento.
- Mais uma vez, rogo-lhe.
Afastou-se para um lado, entrou no salão e um instante depois perdia-se de vista. Stephen, que tinha começado, com pressa nervosa, a desfazer o embrulho, ficou por
um momento muito pálido; depois, com uma expressão estranha, andou para a porta. Ao chegar à rua, o barbante, mal amarrado, desatou-se e as três telas caíram na
calçada molhada e escorregaram para a sarjeta.
Apanhou-as com cuidado, com uma ternura quase ridícula. O simples ato de abaixar-se fez-lhe a cabeça dar voltas. Mas teimosamente, com uma intensidade quase fanática,
disse a si mesmo que não seria derrotado. Havia outros negociantes de quadros em Paris, menos arrogantes, certamente mais acessíveis do que esse intolerável Tessier.
Vagarosamente, caminhou, através do tráfego, para a Rue de la Boétie.
Duas horas depois, molhado e ainda atrapalhado pelos três quadros, estava de volta à Place St. Séverin, tão exausto que mal pôde subir para o seu quarto. Na verdade,
na metade da escada sentou-se num degrau para recobrar o fôlego. Ao fazê-lo, a porta junto ao patamar abriu-se e apareceu, vestido para sair, de tamancos, camisa
sem colarinho e um sobretudo surrado, um homem de cerca de 30 anos, alto e moreno, com uma pele descorada e olhos fundos de semita. Ao descer, quase tropeçou em
Stephen, recuou e estudou-o com um sorriso amargo, peculiar.
- Não teve sorte? - exclamou.
- Não.
- Tentou com quem?
- A maioria deles... de Tessier para baixo.
- Salamon?
- Não me lembro.
- Ele não é mau. Mas nenhum deles está comprando agora.
- Tive uma oferta. Duzentos francos para falsificar um Breughel.
- E você aceitou?
- Não.
- Ah, a vida tem seus pequenos vexames. - E depois de uma pausa: - Como se chama?
- Stephen Desmonde.
- Chamo-me Amédée Modigliani. Venha tomar um drinque.
Dirigiu o caminho de volta ao patamar e abriu a porta do seu quarto. O seu apartamento era quase idêntico ao de Stephen, mas talvez mais sórdido. Num canto, ao lado
da cama por fazer, havia uma pilha suja de garrafas vazias, e no centro um cavalete com uma pintura quase terminada, um nu reclinado.
- Gosta? - Servindo dois Pernods de uma garrafa que tirara do armário, Modigliani inclinou a cabeça para a tela.
- Sim - disse Stephen após um momento.
Havia na pintura um estilo pessoal, marcado por seus esforços numa linha arabesca, algo de monumental e puro.
- bom - disse Modigliani, passando-lhe o copo - mas esse quadro porá o comissário de polícia atrás de mim. Ele já proclamou que os meus nus são escandalosos.
O absinto, fortalecendo Stephen, clareando o seu cérebro, evocou uma nota de recordação.
- Você não exibiu nos Indépendants? Le Joueur de Violoncello?
O outro fez um gesto afirmativo.
- Não era o meu melhor trabalho. Mas foi vendido. Agora eles não comprarão nada. Na verdade, se não fosse o meu talento para plongeur no Hotel Monarque, eu teria
sido gentil com os meus críticos e deixado de existir.
- Um plongeur? - Stephen não compreendia.
- Sim, gostaria de experimentar o trabalho? vou para lá agora. É um emprego fascinante. Um leve sorriso, saturnino, apareceu nas suas feições impassíveis, cor de
oliva. - E eles sempre apreciam um empregado novo.
- Tentarei qualquer coisa.
Saíram juntos e começaram a andar em direção à Etoile. O Grand Monarque, um dos famosos hotéis parisienses, era uma imensa construção palacial no estilo Terceiro
Império, ocupando um quarteirão inteiro, logo depois dos Grands Boulevards. Imponente e digno, um tanto fora de moda, com degraus de mármore, tapetes vermelhos,
as vastas salas públicas com lustres cintilantes, um bando de atendentes esvoaçando atrás das portas de metal polido, como sentinelas, para receber os embaixadores,
dignitários estrangeiros e príncipes nativos, que estavam entre os seus visitantes, dava uma sensação de opulenta magnificência. Modigliani, contudo, quando chegaram
ao pórtico central, não tentou uma entrada, mas guiou o caminho em torno de um canto escuro e por uma passagem que dava para as dependências dos fundos, flanqueada
por uma bateria de latas de lixo amassadas; um lance de escadas admitiu-os no subsolo.
Era menos um subsolo do que uma imensa adega subterrânea, com o teto úmido e pingando, atravessada por uma confusão de tubos de ferro, de paredes
escamadas, pegajosas de bolor, o chão de pedra-britada com água de despejos até os tornozelos, tudo fracamente iluminado por umas poucas lâmpadas elétricas nuas,
cheio de vapor, barulho e uma confusão babélica de vozes. Ali, numa comprida calha, uma fila de homens, arrebanhados, parecia, na ralé de Paris, estava febrilmente
lavando pratos que uma turma de ajudantes de cozinha continuava trazendo apressadamente, embraçadas, das cozinhas contíguas. Agora, pensou Stephen, após acomodar
os olhos àquela visão de pesadelo, sei o que significa um plongeur.
Entrementes, Amédée tinha se aproximado do contremaître, que, com um olhar indiferente para Stephen, entregou-lhe um disco de metal com um número estampado e marcou
o tempo a giz, diante desse mesmo número, numa ardósia que pendia do seu cubículo, ao lado de um aviso que advertia que se alguém fosse apanhado tirando porções
de alimento seria sumariamente processado.
E agora, imitando seu companheiro, Stephen tirou a sua jaqueta e, tomando lugar na fila, começou a lavar os pratos do jantar empilhados na pia. Não era trabalho
fácil, curvado sobre a calha baixa, e não havia interrupção. O odor da água espumosa nunca mudava, o mau cheiro da graxa e restos de comida era nauseante. Periodicamente,
a pasta de restos entupia o ralo e tinha que ser retirada com a mão. Era estranho, durante esse processo, ouvir um leve sopro de música polida vindo da orquestra
no pátio de palmeiras lá em cima.
Cerca das 11 horas, o ritmo diminuiu, e antes da meia-noite houve uma parada definitiva, que indicava que as damas e cavalheiros lá de cima tinham Sido alimentados.
Amédée, que durante todo o tempo não pronunciara uma única palavra, pôs o seu casaco, acendeu um cigarro e, com um movimento da cabeça, chamou Stephen para a porta,
onde o contramestre, após uma olhadela na pedra do tempo, pagou a cada um 2 francos e 50.
Lá fora, ainda em silêncio, ele caminhou de ombros caídos pelas ruas escuras e, cinco minutos depois, guiou o caminho para um bistro que ficava aberto a noite toda.
Ali, enquanto Amédée bebia vários Pernods, Stephen consumiu um pratarrão de pot-au-feu, grosso de boas verduras e pedaços de carne de carneiro. Era a sua primeira
refeição satisfatória em muitos dias, e sentiu-se melhor.
- Não quer alguma coisa? - perguntou ele.
- Isto é carne e pão para mim. - Amédée olhava com dura indiferença para o fluido esverdeado e opalescente do seu copo, que segurava com os dedos manchados de nicotina.
- Tem sido a minha dieta há muito tempo.
Sentado no café deserto, as luzes amortecidas, a mesa de bilhar lá atrás, protegida para a noite, o garçom solitário, semi-adormecido, com o seu guardanapo sobre
a cabeça, atrás do balcão, Amédée revelou alguma coisa de si mesmo em frases lacónicas.
Nascido na Itália, provinha de uma família de judeus italianos, estudara, a despeito das interrupções causadas por doenças, em Florença, e na Academia de Veneza.
Nos últimos sete anos, inspirado pelos primitivos e pela arte negra, tinha trabalhado em Paris, às vezes com o seu amigo Picasso, e ocasionalmente com Gris. Não
tinha vendido praticamente nada.
- Assim é que agora - concluiu ele, com o seu sorriso sombrio mas inquieto - me vê enfraquecido pela pobreza, pelo excesso de álcool, e pelo uso de drogas nocivas.
Sozinho, a não ser por uma moça que teve a desgraça de me conhecer. Despido de qualquer reputação. - Emborcou o resto da bebida e levantou-se. - Mas alegre pelo
fato de que jamais aviltei a minha arte.
Disse boa-noite, sem ênfase, na escada que levava aos seus aposentos.
Por breve que tivesse sido, aquele estranho encontro foi providencial para Stephen. Agora, aguentando todas as noites cinco horas de trabalho suado nos porões fumegantes
do Grand Monarque, podia sobreviver e, o que lhe parecia mais importante, continuar a trabalhar com toda a sua força na Circe.
Finalmente, cerca de três semanas depois, numa tarde seca e fria, terminava o trabalho. Lá estava ela, naquela atitude familiar de descuidada insolência, indiferente
mas aliciante, com seu rosto pálido e olhos enigmáticos, aquela moderna filha de Helios, tendo como fundo não o palácio de Aiaia, mas a rua de um bairro miserável
de Paris onde se agrupavam os seus amantes vencidos, mudados e degradados na forma de bestas, e que, domados e abatidos, olhavam para ela com um desejo servil, como
se ainda estivessem sedentos por suas carícias.
Exaurido por esse esforço final, Stephen foi incapaz de avaliar sua obra, que tomara uma forma fantástica por força de uma compulsão a que ele não pudera resistir.
Sabia apenas que nada mais podia acrescentar, e, em um espasmo de impaciência nervosa, embrulhou o quadro no mesmo papel pardo amassado que já usara antes e o levou
para o Institut des Arts Graphiques, na Place Redon. Lá, um funcionário idoso tomou o seu nome e anotou meticulosamente todos os detalhes em um livro; depois, constatando
que a tela não tinha moldura, relutou em aceitá-la.
- O senhor vê, monsieur, a especificação é de montage.
- Não notei.
- Mas é evidente. Olhe, monsieur, todas as outras peças estão corretamente montadas.
Stephen, relanceando os olhos por uma comprida galeria com dezenas de pinturas, sentiu uma súbita apatia. De uma maneira ou de outra, não se importava.
- Não posso comprar uma moldura. Aceite como está ou não aceite.
- Isso é muito irregular, monsieur. Mas, se quiser, deixe-a.
De volta ao seu sótão, sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, tomado
por uma letargia de pós-criação. E agora... que faria? Impossível continuar no Monarque - sua alma revoltava-se com essa ideia - contudo estava à beira da indigência.
Tirante as roupas que usava, o equipamento de pintura, e 15 soldos, não possuía nada de valor material. Tudo mais tinha empenhado. Levantou-se e olhou no armário.
Continha a metade de um pão, duro como pedra, e uma fatia de queijo. Lá embaixo, Amédée estava ausente há três dias, submerso numa das farras em que periodicamente
sucumbia, e da qual emergiria, entontecido, em alguma remota região da cidade. Atrás da divisão de madeira, o casal da porta ao lado tinha começado uma briga, gritando
um para o outro. Crianças brincando, discutindo, aumentavam a barulheira. Apesar da janela aberta, o quarto estava abafado pelo ar viciado da cidade, e nos lambris
rachados começava a usual procissão noturna de baratas.
Tudo isso, bastante difícil de aguentar, não era nada porém comparado com a insuportável sensação de solidão e privação que lhe torturava o peito. Não mais amortecido
pelo analgésico do trabalho, o seu desejo de que Emmy voltasse era mais forte do que antes. Ao contrário de Ulisses, nSo tinha uma erva mágica para proteger-se contra
o seu encanto. Culpava-se por não a ter convidado para ver o quadro. No dia seguinte ela tinha partido, indo para o sul com a troupe de Peroz - não a veria antes
de pelo menos seis meses, se é que tornaria a vê-la. Lembrando-se da enfatuação que Madame Cruchot tivera por ele, tremeu com a peça que o destino lhe tinha pregado
- agora era ele quem assumia o ridículo papel.
Não tinha nada em que se ocupar, nem ao menos um livro para ler; sentia-se inteiramente mole para se aventurar às ruas. Quando anoiteceu, deitou-se na cama, mas
não pôde dormir. O dia seguinte era terça-feira, e surgiu com um suave e límpido amanhecer. Ele se levantou e se vestiu. A ideia dos veículos do circo partindo naquela
tarde para o campo aberto e a ensolarada Côte d'Azur atormentava-o novamente. De repente, sem quê nem por quê, veio-lhe uma ideia. Por um momento, ficou imóvel,
parado no meio do soalho. Seria capaz disso? Ao menos poderia tentar. Apanhando o chapéu, saiu rapidamente do quarto e tomou, trémulo, a direção do Boulevard Jules Ferry.


CAPÍTULO VII

NUMA EXTENSÃO DE TERRENO COMUM, logo após os taludes de Angeres, naquela tarde de sol muito brilhante para o fim de outubro, o Circo Peroz armou
a sua cidade de lona vermelho vivo. As barracas de espetáculos secundários já estavam em ação, uma musiquinha vinha do carrossel das crianças, e os aboyers começavam
as suas exortações aos poucos espectadores presentes.
No seu stand, no fim de uma linha de barracas, vestido com uma blusa azul, boina, uma frouxa gravata preta, vestuário composto para sugerir às mentes rústicas a
altura da arte parisiense, Stephen respirava longamente o ar do campo, aromatizado com a fumaça de lenha, cascas de laranja, serragem fresca, tanino, e o cheiro
dos cavalos. A seu lado aprumava-se um cavalete enfeitado com uma tabuleta que o exaltava como Grand Maître des Academies de Londres et Paris, e prometia uma semelhança
exata, feita à mão, de perfil ou de frente, em carvão de primeira qualidade, por apenas cinco francos, em cores ricas e permanentes por sete francos e cinquenta,
cortesia e serviço iguais aos dispensados às cabeças coroadas da Europa, satisfação assegurada.
Ouviu-se o relincho de um garanhão, o agudo clangor de uma corneta e o grunhido fraco de uma leoa velha. Com a sua tosse praticamente desaparecida, Stephen experimentava
uma súbita recuperação do seu bem-estar físico. Não lamentava o impulso que o levara a Peroz três semanas antes.
- Aproxime-se, aproxime-se, cavalheiro. Vamos, senhor, convença mademoiselle a ter o seu lindo rosto pintado. Não seja modesto. Deixe um retrato para os seus netos.
Um casal de campônios, de braço dado, vestido com as suas roupas domingueiras, hesitava à sua frente, e então corando, a moça tomou coragem e aproximou-se. Não era
bonita, mas ele, em poucos e rápidos traços, esboçou a sua figura na folha que estava no cavalete, deu relevo à sua coifa de renda fina, aos bordados à mão dos seus
punhos, e, ensinado pela experiência, não esqueceu o broche de camafeu, um óbvio tesouro de família, que ela usava no corpete.
Enquanto isso, uma pequena multidão se juntava, ouvindo-se murmúrios de aprovação pelo retrato terminado, e logo ele estava trabalhando bastante. Para ele, não era
mais que um processo mecânico executado sem pensar; contudo, divertia-se em dar a alguns dos seus retratos uma individualidade irónica, detendo-se no detalhe de
uma feição particular, um olho bovino, uma orelha grande, um nariz bulboso, como acontecia às vezes nas noites de sábado, quando um cliente era ofensivo, desenhando
com malícia uma caricatura que, as mais das vezes, provocava o riso dos outros.
Às seis horas, a multidão diminuía, como sempre, antes da função principal do circo, e apanhando a sua tabuleta e tirando a blusa e gravata, Stephen entrava por
um labirinto de cordas e lonas para um pequeno recinto atrás da barraca contígua. Ali, acocorado diante de um vivo braseiro, um homenzinho enrugado, de perneiras
gretadas e culotes sujos de veludo cotelê, estava cozinhando o jantar. De pernas tortas, cabelo cortado rente, tinha feições nítidas,
castigadas pelo tempo, exceto o nariz, que era chato e quebrado. Seus olhos eram miúdos como contas, parados, e o fulgor do braseiro lhes dava calor.
- Que temos esta noite, Jo-jo?
- O de sempre. - Jo-jo olhou para cima. - Mas também um pouco de salsicha de carne de porco fresca, de Angers, que achei na Tur Toussaint. É uma das duas especialidades
desta cidade.
- E a outra?
- Cointreau, naturalmente, mon brave. É feito aqui.
As salsichas, respingando numa frigideira, pareciam cheias de promessas. promissoras. Jo-jo, que na sua mocidade tinha sido jóquei, depois vendedor de barbadas,
depois cavalariço, e depois bookmaker, e que finalmente tinha sido aconselhado a sair de Longchamps, era um cavador perito. Conhecia todas as tramóias da França.
Ninguém gostava mais de regatear no mercado ou de pegar uma galinha extraviada de uma granja à beira da estrada.
- Gostei destas duas noites aqui. - Stephen deu lugar no braseiro para o coador de folha do café. - Amanhã estamos de folga até as três. Pretendo dar uma olhada
no rio.
- O Loire é um bom rio - disse Jo-jo com um ar de quem sabe das coisas. - Fundo bom de areia, com muito peixe bom. Vou deixar umas iscas de noite e ver se temos
sorte. De fato, todo o país é bom para nós - Tours, Bolis, e especialmente Nevers. O vinho é um tanto fraco, mas a bóia é de primeira, e as mulheres... essas putas
da Touraine, grandes atrás e na frente... - Assobiou e revirou os olhos.
Enquanto ele falava, a aba da barraca se abriu e entrou um homem de aspecto estranho, com calças de xadrez e suéter caqui de gola rulê. Era alto e franzino, tão
dolorosamente magro que parecia um esqueleto, e o rosto e mãos - únicas partes visíveis do seu corpo - estavam cobertos por uma espessa crosta de escamas cor de
cobre. Era Jean-Baptiste, que participava de um dos mais pobres caminhões com Stephen e Jo-jo. Manso, taciturno e melancólico, era um caso extremo de psoríase crónica,
uma doença da pele, indolor mas incurável, sendo exibido aos curiosos como o Crocodilo Humano, produto da união de um sáurio feroz e de uma nadadora do Rio Amazonas,
com o que ganhava uma modesta subsistência.
- Teve uma tarde boa, Croc? - perguntou Stephen.
- Não muito - respondeu Baptiste sombriamente. - Nem um íntimo.
Essa era a parte mais proveitosa da técnica de Croc em descobrir-se lentamente, das extremidades para baixo; quando chegava ao umbigo, fazia uma pausa e, deixando
seus olhos correrem pela plateia, exclamava dramaticamente, com uma espécie de sedução macabra:
- Para revelações mais íntimas, estou à disposição na tenda dos fundos. Ingresso especial para essas revelações privadas, apenas cinco francos.
Quando a comida ficou pronta, sentaram-se em volta do braseiro - uma grande caneca de sopa fumegante, seguida pelas salsichas, duras mas suculentas, temperadas com
ervas do campo, um molho com pedaços de pão fresco cortados com uma faca dobradiça. Somente depois que se juntara à troupe, Stephen aprendeu a saborear os aumentos
comidos ao ar livre. Depois houve café, quente, forte e arenoso, servido na caneca de sopa. Então Jo-jo enrolou um cigarro e, com o ar de um mágico, tirou do bolso
dos quadris uma garrafa do límpido licor da região.
- Que tal um gole de vinho do altar, Abbé?
O apelido tinha seguido Stephen de Paris - ele não se importava. Passaram a garrafa de mão em mão, bebendo o claro e ardente licor sem copos. Jo-jo enrolava-o na
língua.
- Você pode confiar nele. Feito com as melhores laranjas de Valença.
- Uma vez me aconselharam a nunca comer frutas. Outra vez me disseram que não comesse outra coisa - disse Baptiste, que gostava de falar no assunto da sua doença.
- Ao todo consultei 19 médicos. Cada um deles mais tolo do que o outro.
- Então tome outra dose do meu remédio.
- Ah, isto é que é remédio para mim!
- Você não pode se queixar, Croc. Não tem uma existência rica e interessante? Você experimenta as delícias de viajar. Em suma, você é famoso.
- É fora de dúvida que muitas pessoas têm viajado 50 quilómetros para
me ver.
- E não tem um grande sucesso com as damas?
- Tenho mesmo. Exerço um certo fascínio sobre elas.
Diante desta séria admissão, Jo-jo soltou uma risada. Depois, apagando o cigarro, levantou-se para ver os cavalos.
Era a vez de Stephen lavar as panelas. Quando terminou, ao lusco-fusco, as luzes produzidas pelo gerador brilhavam como vaga-lumes sobre a feira. Olhando, sentia
todos os seus sentidos despertados. Não tinha visto Emmy todo o dia. Mas ela não gostava de ser perturbada antes do espetáculo, e o povo já convergia para a grande
tenda. Guardou o cavalete e o resto da tralha numa caixa, debaixo do seu beliche no caminhão, vestiu as suas roupas comuns e caminhava para a entrada dos fundos
do picadeiro. De acordo com o seu contrato, era seu dever acompanhar os membros de terra da companhia, que indicavam aos espectadores os seus lugares, vendiam programas,
sorvetes, citronade, e aquela marca de nugá feita especialmente em Paris para o Circo Peroz.
Parecia a Stephen uma excelente "casa" - o circo tinha uma reputação merecidamente popular através das províncias, e, com bom tempo, a mercadoria dos stands era
em geral totalmente vendida. Esta noite, fila após fila de rostos expectantes e rosados se ergueram da serragem do picadeiro. Subitamente,
na sua alta plataforma, vestido de vermelho e dourado, quando a charanga atacava uma grande marcha, o mestre do picadeiro, o próprio Peroz, apareceu de cartola,
alamares brancos e capa escarlate, dirigindo um cortejo de póneis que entraram na arena a meio-galope, atirando as crinas para os lados, e o espetáculo começou.
Embora, a esse tempo, conhecesse os números de cor, acocorado junto à grade do corredor da entrada dos artistas, com um bloco de esboços no joelho, Stephen acompanhava
cada fase, cada movimento do espetáculo com absorvido interesse, notando, vezes e mais vezes, os ritmos da coordenação muscular, o jogo de luzes e tons das cores
no vasto caleidoscópio cintilante, e mesmo as reações individuais, às vezes cómicas e bizarras, das pessoas da plateia.
Era fascinante, aquele novo mundo que ele havia descoberto, com os seus soberbos cavalos de alta escola, montanhosos elefantes e sinuosos leões de olhos amarelos,
seus acrobatas às cambalhotas, jograis prestidigitadores, funâmbulos da corda bamba sob os seus pára-sóis de papel. Observando, Stephen pensava na famosa peça de
circo de Manet, Lola no Arame, e na sua atual disposição melhorada sentia que podia desenhar aquele campo com igual riqueza. Desenho, sem dúvida, haveria, mas acima
de tudo a cor seria o instrumento da sua expressão. Via na sua paleta as cores puras, os ultramarinos, ocres e vermelhões, via como podia humanizá-lo sem reduzir
a sua intensidade. Criaria um novo mundo, um mundo que só ele percebia, um mundo somente para ele. Curvado no seu canto, desenhava e desenhava. Este era o seu verdadeiro
trabalho; os retratos que pintava de dia não eram mais que um meio de vida, e na pasta em sua caixa fechada já tinha dezenas de estudos que usaria numa formidável
composição.
Após o intervalo, davam entrada os artistas mais importantes - a troupe Dorando, de trapezistas; Chico, o engolidor de espadas; Max e Montz, os palhaços famosos.
A seguir, um soalho de madeira era rapidamente montado no centro do picadeiro e ouvia-se a fanfarra que conhecia tão bem, e que sempre fazia o seu coração bater.
Então, embaixo, via Emmy pedalando, usando uma blusa de cetim branco, calções brancos e compridas botas brancas. Ao chegar ao assoalhado, começava a executar, à
luz da bicicleta niquelada, uma série de evoluções que deixavam o espectador tonto, circulando e recuando e avançando, sempre no pequeno espaço, mudando de posição,
até que dirigia de cabeça para baixo segura no guidom, finalmente desmontando em movimento e fazendo complexas configurações numa roda só.
Talvez essas manobras fossem menos difíceis do que pareciam, mas o culto da bicicleta, uma paixão nacional que anualmente chegava ao auge nas agitadas semanas devotadas
ao Tour de France, tornava-a popular junto ao público. Uma tempestade de aplausos reboava embaixo da grande cúpula, seguida por um silêncio enquanto Emmy caminhava
para uma curiosa estrutura na
extremidade do picadeiro. Era um elevado escorregador, uma estreita fita de metal pintada de vermelho, branco e azul, que descia que descia quase verticalmente do
teto da tenda e terminava numa curva que subia bruscamente.
Alterando o seu ritmo, a banda exagerava a expectativa, enquanto Emmy, subindo lentamente por uma escada de corda, alcançava a minúscula plataforma do topo. Lá,
entrevista nas últimas espirais de fumaça, ela desenganchava uma bicicleta mais pesada das travas que a sustinham e segurava-a, testava o quadro, espichava os membros,
passava giz nas mãos, montava na máquina sobre a plataforma e, por um longo momento, parecia estar suspensa, quase flutuando na névoa de vapor. Os metais, que tinham
gradativamente diminuído para um profético murmúrio, vinham agora novamente à vida, apoiados por um estaccato de tambores que rufavam e reverberavam cada vez mais
alto. Era o instante que fazia Stephen desejar fechar os olhos. Jo-jo lhe dissera que, havendo perícia e coragem, o perigo era limitado; a estria branca do centro,
na qual as rodas deviam andar precisamente, tinha menos de 15 centímetros de largura, e depois da chuva, ou quando a umidade era grande, a superfície escorregadia,
apesar de enxugada, era traiçoeira. Contudo, não havia tempo para pensar - numa tempestade final de som, Emmy soltou-se, caiu parecendo uma pluma, projetou-se para
cima na curva e pousou na plataforma de madeira com uma velocidade que a carregava para fora da tenda como um raio.
No meio dos aplausos, embora não pudesse sair, Stephen escapou e rodeou para a barraca onde os artistas se vestiam. Teve que esperar 15 minutos até que ela saísse,
e imediatamente sentiu que ela não estava de humor muito amável.
- Então? - perguntou ela.
- Você esteve ótima... notável - afirmou ele.
- A pista estava molhada - um orvalho pesado - e esses fripons preguiçosos não enxugaram nem a metade. Então não sabem que é suicídio deslizar numa pista úmida?
Eu quase não desci. - Em várias ocasiões, por causa disso, tinha cancelado o número - de fato, tinha um acordo com Peroz que lhe permitia tomar essa resolução. Mas
a queixa deixou-lhe a voz. - Mas esta noite eu queria mesmo.
- Por quê?
Ela não pareceu ouvi-lo. Então, indiferente, respondeu:
- Por causa daqueles militares.
- Soldados?
- Não, estúpido, oficiais, naturalmente. Havia aqui uma escola de cadetes do primeiro ano. Não viu o grupo na frente da tribune?
- Acho que não.
- Uma turma elegante, isso era, nas suas túnicas. Eu gosto de uniforme.
E eles estavam querendo que eu os visse. Não que eu notasse, naturalmente. - A sua expressão amuada afastou-se um pouco. - Eu fiz um extra para eles.
Ele mordeu o lábio, procurando abafar o ciúme que ela tinha tanta capacidade de despertar nele. Após o calor sufocante da tenda, o ar era leve e fresco.
- Vamos caminhar até os muros da cidade... lá é muito bonito.
- Não. Não estou com disposição.
- Mas está uma noite tão linda. Olhe, a lua acaba de sair.
- E eu vou entrar.
- Não vi você o dia todo.
Nenhum músculo do seu rosto Se moveu.
- Já me viu agora.
- Apenas um momento. Venha.
- Já não lhe disse que fico cansada depois do meu número? A tensão é muito violenta. Pra você, tudo muito bem, vendendo programas e nugá lá embaixo.
Ele viu que era inútil insistir mais. Escondeu estoicamente o seu desapontamento. Chegaram ao caminhão que ela partilhava com Madame Armande, a mulher que cuidava
do vestuário da troupe. Ele tinha pensado nela o dia inteiro, sentia-se faminto por sua companhia, por um sinal da sua afeição. E ela estava ali, a sua figura ao
luar, rija, sedutora; queria agarrá-la e beijar à força o seu rosto pálido e indiferente, a sua boca ligeiramente entreaberta. Mas não fez nada disso, limitando-Se
a dizer:
- Não se esqueça de amanhã. Venho buscá-la às 10.
Viu-a subir as escadas a correr e desaparecer no caminhão.
Ao voltar, a função tinha terminado e a multidão se despejava pela saída da grande tenda, falando, gesticulando, rindo. Todos pareciam felizes, satisfeitos com a
vida e consigo próprios, ao voltarem aos seus lugares comuns e confortáveis. Stephen perdeu aquela sua primeira disposição alegre. Inquieto e perturbado, não podia
voltar ao seu canto, enfrentar as caçoadas de Jo-jo e os roncos de Baptiste. Saiu para as muralhas sozinho.


CAPÍTULO VIII

NA MANHÃ SEGUINTE, trazida por uma alvorada mansa e cinzenta, ela o surpreendeu e alegrou por sua pontualidade. Estava quase pronta quando ele chegou,
e pouco depois estavam nos seus vélos, rumando para o Loire, no belo contorno de Angeres, com as suas muralhas romanas, a Catedral de St. Maurice com suas agulhas
e as arcarias da préfecture atrás deles. Como sempre, ela imprimia um ritmo muito veloz, curvada sobre o guidom, as pernas movimentando-se como pistons, com o firme
propósito de deixá-lo para trás. A bicicleta dele, comprada barato com o seu primeiro pagamento semanal, era um modelo antigo; contudo, o ar fresco e a comida do
campo tinham-no robustecido. Embora lhe custasse um esforço contínuo ladeira acima, mantinha o seu lugar pouco atrás do ombro dela.
Atravessaram, dali a pouco, um arvoredo à esquerda e imediatamente se descortinou todo o esplendor do vale - o rio grande e largo brilhando na luz plácida, movendo-se
preguiçoso entre as ribanceiras e sobre baixios de areia dourada, passando por altos tufos de vimeiros, barcos de fundo chato atracados e ilhotas verdes. Na estrada
serpenteante, pesada pela areia, diminuíram a velocidade. Por trás de uma cortina de faias, Stephen avistou as torres pontudas e a fachada musguenta de um antigo
castelo. A beleza da região era inebriante para o seu espírito. Soerguido, olhou para a sua companheira, fez como se fosse falar, mas, depois, sabiamente, absteve-se.
Por volta do meio-dia, chegaram a um staminet à beira do rio, onde, acima da porta, um peixe monstruoso, enredado em algas, nadava numa caixa de vidro. Primeiro,
Stephen tinha proposto um piquenique, mas isso tinha pouca atração para Emmy, que sempre preferia parar em algum café provavelmente freqüentado pela confraria esportiva,
onde, numa atmosfera de camaradagem, havia livre companheirismo, vivas conversas em gíria e a música de um acordeom. A estalagem, todavia, embora possuísse um considerável
encanto, estava vazia de clientes - um fato que não desagradou Stephen, que sofria com a admiração demasiado franca que a sua companheira gostava de provocar. Atravessaram
o soalho de pedra limpo com areia, sentaram-se à mesa esfregada com escova e sabão junto a uma janela, da qual pendia um banco, e, após consultarem a proprietária,
escolheram um prato de peixe local que ela recomendara muito. Este chegou pouco depois, numa enorme travessa de madeira, um fritto de minúsculas espadilhas do Loire,
cada uma não maior do que um filhote de arenque, cozidas tão secas que se quebravam ao toque do garfo. Com eles vieram pommes frites e uma jarra de Bière Navarin,
preferida por Emmy.
- Isto é bom - disse Stephen, olhando por cima da mesa.
- Não é mau.
- Gostaria de pedir uma garrafa de vinho para mim - disse ele em tom de pedido.
- Eu gosto desta cerveja. Faz-me lembrar de Paris.
- Num dia como este?
- Em qualquer dia Paris me basta.
- Ainda assim... você não se importa de estar aqui não é?
- Podia ser pior.
Emmy não era afeita a superlativos, mas neste momento estava de excelente humor, e dali a pouco pôs-se a rir.
- Você não adivinha o que eu recebi esta manhã. Flores. Rosas. E um billet-doux de um dos oficiais.
- Ah, sim? - A sua expressão tornou-se ligeiramente rígida.
- Aqui está. Monograma gravado e tudo. Com outra risada, apalpou o bolso e tirou um bilhete cor-de-rosa amarrotado. - Dê uma olhada.
Ele não tinha vontade de ler o bilhete, mas também não queria ofendê-la. Passou rapidamente os olhos, notando o duplo sentido das frases polidas que a convidavam
a ir tomar um aperitivo na Terrasse e depois jantar no Le Vert d'Eau. Devolveu-o sem comentário.
- Ele é capitão, parece. Acho que o vi no grupo de ontem à noite. Alto e bonito, de bigode.
- Você vai? - perguntou ele, mascarando os seus sentimentos com um tom inexpressivo.
A fria ironia da sua maneira atravessou a sua auto-estima. Ela raramente corava, agora uma leve cor apareceu por baixo da sua pele branco-azulada.
- Quem é que você pensa que eu sou? Conheço essas guarnições da cidade e o que se pode arranjar com elas. Pra mim não, obrigada.
Stephen ficou silencioso. Embora se desprezasse por isso, e em vão tentasse combatê-lo, de tempos em tempos o ciúme lhe vinha num impulso dominador. A simples ideia
de que ela pudesse sair sozinha com aquele oficial desconhecido causava-lhe um sofrimento penoso. Contudo, ela declarara categoricamente que iria ignorar o convite;
assim, obrigando-se a ser razoável, forçou um sorriso conciliatório.
- Vamos descer até o rio. - Quando brigavam, era sempre ele quem procurava fazer as pazes.
Pagou a conta, e desceram à beira da água. O sol, geralmente quente para aquela época do ano, tinha esmaecido e, lançando reflexos da água que faziam fechar os olhos,
envolveu-os num banho de luz. Ele amava o sol - sol e água eram os deuses gémeos que poderia adorar. E enquanto ela acendia um Caporal e, com os olhos fechados,
relaxava numa postura cómoda na sombra de um salgueiro, ele sentou-se na claridade aberta e começou a desenhá-la. Já tinha feito dezenas de desenhos, nos quais se
refletia não apenas a intensidade do seu sentimento por ela, mas também a complexa interação de angústia, desejo e, por vezes, quase ódio que o compunha.
Não estava cego àquela forma de egoísmo, crueldade e vaidade, que em outra pessoa teria provocado o seu desprezo. Sabia que ela apenas o tolerava
- talvez porque a sua mentalidade gaulesa se detivesse nas possibilidades da grande proprieté, mas principalmente, e disso tinha certeza, porque o seu evidente desejo
a lisonjeava, dava-lhe uma sensação de poder apreciada por sua natureza. Ela lhe trazia mais sofrimento que felicidade. Contudo, nada podia fazer. Desejava-a com
uma necessidade física que, não sendo por ela satisfeita, aumentava de dia para dia.
Dali a pouco, erguendo os olhos do bloco, viu que ela estava dormindo. Deixou escapar, involuntariamente, um suspiro nervoso e irritante. Soltando o seu bloco e
creions, aproximou-se mais da margem, e então, num impulso, tirou a roupa e mergulhou no rio. Sabia, pelas excursões anteriores, que ela não gostava daquilo - tinha
uma aversão felina pela água fria - mas para ele o choque daquelas águas vindas de fontes era uma revigorante delícia.
Quando voltou, ela estava em pé, sacudindo o capim do cabelo cheio e curto.
- Você sabe deixar os outros sozinhos.
- Pensei que estivesse dormindo.
- Que horas são?
- Ainda é cedo - disse ele, aproximando-se e enlaçando-a pela cintura.
- Ainda temos mais uma hora.
- Oh, deixe-me! - Inclinou-se para trás e empurrou-lhe o peito com as mãos. - Você está molhado.
- Mas Emmy...
- Não, não. Não devemos chegar atrasados. Você não vai querer perder o seu emprego. É tão agradável e conveniente para você, não é?
- Sim, claro - respondeu ele com voz tensa. Ela já estava voltando para a estalagem e Stephen a acompanhou.
Aquele raro interesse pelo seu bem-estar intrigava-o. E não se dissipou pela sua disposição animada, quando voltavam a Augers. Em voz alta, ela ia cantando trechos
da última canção do teatro de variedades:
Les jolis soirs dans les jardins de l'Alhambra Ou donc sont les belles?
Que l'amour appelle?...
Et le rendez-vous, de l'amour très fou.
E seguindo seu hábito quando estava alegre, deixava os habitantes locais de boca aberta, com uma exibição de ciclismo difícil ao passarem rapidamente pelas aldeias
ribeiras.
Ainda não eram três horas quando chegaram ao circo, e poucas pessoas estavam diante dele. Stephen trocou de roupa e armou o seu cavalete. Trabalhou toda a tarde,
de um modo ausente, sorumbático, com as linhas da testa
cada vez mais fundas. Embora lutasse contra a ideia de que ela abreviara a excursão a fim de ir ao encontro na Terrasse, essa ideia só fazia aumentar. O crepúsculo
não lhe trouxe nenhum alívio, e durante o jantar mal trocou uma palavra com Jo-jo e Croc.
Por fim, levantou-se bruscamente e foi para o outro lado do campo, onde estava o caminhão de Emmy. Madame Armande estava sentada nos degraus, com um balde entre
os joelhos gordos, lavando meias. Em certa época, ela fizera parte de um número de trapézio, mas quebrara o quadril numa queda e desde então caminhava coxeando.
Agora, aos 50 anos, pesada e sem formas, de pernas hidrópicas e papada, era conhecida como a mexeriqueira da companhia Jo-jo, que cuspia ao ouvir o nome dela, dizia
que durante o recesso de inverno ela gerenciava um estabelecimento de reputação duvidosa no porto do Havre.
- Boa noite - disse Stephen, tentando manter a voz calma. - Emmy está?
Madame Armande mediu-o de esguelha com os seus olhos miudinhos.
- Mas Abbé, você sabe muito bem que ela não vê ninguém antes do espetáculo.
- É só um instante.
Ela abanou a cabeça encaixada num lenço estampado com bolinhas.
- Eu não me atrevo a perturbá-la.
- Então... - Hesitou, ansioso por acreditar nela. - Está descansando?
- A mulher levantou os braços.
- E que mais? Nom de Dieu, acha que sou mentirosa?
A sua indignação era real ou fingida? Ele queria entrar no caminhão, mas a mulher e o balde bloqueavam a entrada. Não devia tornar-se completamente ridículo. Forçou-se
a fazer algumas observações convencionais, e voltou para a escuridão.
O povo chegava aos bandos, a função começava, risadas estrepitosas e aplausos enchiam a grande tenda. Ela estava atrasada. Seria por simples coincidência? Não podia
ter certeza. Procurou tranquilizar-se. Quando ela finalmente apareceu, a impressão, conforme sua fantasia superexcitada, foi de que estava mais aparatosa, mais espetacularmente
viva do que o usual. Gritos prolongados de "bravo!" vinham da tribune quando ela deixou o picadeiro.
Depois disso, na confusão de arrancar as estacas, não pôde vê-la. Melancolicamente, juntou-se a Jo-jo e Croc na tarefa de desmontar os stands. Trabalhando sem atenção,
cortou a mão num gancho de ferro. Não se importou. Um vento frio começava a fustigar o campo. O gerador foi desligado, as luzes elétricas se apagaram. Em toda a
volta, à luz de fogachos vermelhos, entre gritos e imprecações, homens trabalhavam como demónios, desencravando pontaletes, puxando cordas, lutando com grandes abas
de lona. Como sempre
acontecia na primeira hora de movimentação, os animais estavam nervosos, soltando em todos os tons, nas suas jaulas móveis, sinistros uivos de protesto. Os engenhos
de tração, pulsando e roncando, com os volantes girando, aumentavam o tumulto. Para Stephen, parecia que a cena vinha diretamente das gravuras do Inferno de Doré,
e que ele também estava sofrendo as torturas das almas danadas.


CAPÍTULO IX

DE ANGERS, O Circo PEROZ deslocou-se para Tours, depois para Blois, e então para Bourges e Nevers. O tempo se mantinha bom, o negócio prosperava, o velho Peroz usava
o seu chapéu num ângulo elegante. Após uma estada de três dias em Dijon, viraram para o sul e chegaram a Côte d'Or, detendo-se uma noite nas velhas cidades muradas,
com portões de acesso estendidas entre vinhedos, ao longo do vale do Ouche.
A princípio, Stephen era olhado com reserva pela companhia. Mas como a "retirada" semanal dos seus retratos era satisfatória, e uma percentagem fixa dessa soma ia
para o tronc, do qual todos os artistas participavam quando era distribuído em Nice, ele começou a ganhar importância. Além disso, as suas maneiras agradáveis e
disposição tranquila logo o puseram em termos amistosos com a maioria da troupe.
Formavam um painel humano. Fernand, o domador de leões que passeava destemido na jaula circular de ferro das feras, como um hussardo no seu uniforme azul e prateado,
com uma manga dramaticamente rasgada em pedaços, era o mais tímido dos homens, sofrendo agudamente de dispepsia nervosa e sendo mimado com uma dieta de leite por
sua devotada esposa. Os próprios leões eram inofensivos como vacas, na maior parte muito velhos, os machos castrados rugiam somente porque queriam o seu jantar,
e todo o aparato de cercar a jaula de auxiliares com ferros em brasa era pura encenação.
"Não tivemos um acidente em 20 anos", observava complacentemente Peroz no boletim que antecipava ao jornal local da próxima cidade do circuito.
ESCAPOU POR UM TRIZ NO CIRCO PEROZ
LEOA ATACADA DE LOUCURA
Fernand gravemente machucado
Max e Montz, ambos anões, eram os dois palhaços principais, um par internacionalmente famoso, cujo número maior era chamado "O Rapto", um esquete no qual Max, ataviado
em rendas grotescamente fora de moda, desempenhava o papel de noiva velhota. A rotina, executada num antigo automóvel Panhard que enguiçava e se recusava a funcionar,
caindo finalmente aos pedaços, era ruidosamente cómica. Max, com o seu beicinho de criança, fazia a platéia morrer de rir. Contudo, fora do picadeiro mostrava uma
melancolia mais profunda que a de Hamlet, tendo confiado a Stephen que a paixão de toda a sua vida era o violino.
Com tais incoerências diante de si, Stephen ficou menos surpreso ao descobrir que o equilibrista japonês era um adepto da Ciência Cristã, que Nina D'Amora, que cavalgava
em pêlo, era alérgica a cavalos e em consequência sofria cronicamente de asma, ao passo que Philippe, que todas as noites corria riscos espetaculares no trapézio
alto, passava a maior parte do seu tempo de folga tricotando meias.
Por formar um grupo com Jo-jo e Croc, Stephen via-os mais do que aos outros. Jean Baptiste, por baixo da sua aparente apatia, era um homem sensível e inteligente
- Stephen fez dele vários esboços notáveis, em pé na sua plataforma, diante da multidão boquiaberta. Fora bem educado no lycée de Rouen, e chegara a assumir uma
posição com boas perspectivas numa excelente firma, La Nationale. Então lhe viera aquela afecção incurável, transformando-o gradualmente de um ser normal em um monstro
medonho - um irremediável desenvolvimento - e levando-o ao desespero final de um show secundário no Circo Peroz.
Mas era a Jo-jo que Stephen dispensava uma particular atenção. O ex-jóquei era um rematado patife que roubava em qualquer oportunidade, trapaceava pelo interior
e embebedava-se até cair e ficar no chão estuporado, "curando" a bebedeira. Contudo, na sua duplicidade havia uma qualidade curiosamente humana de que se gabava:
jamais em sua vida ter deixado um amigo sem ajuda. Às vezes, de noite, depois de ter visto Emmy, quando vinha ao camion adaptado onde ele e os outros dois moravam,
Stephen surpreendia Jo-jo com o olhar peculiarmente fixo nele - menos por simpatia, uma emoção que Jo-jo era incapaz de sentir, do que por uma espécie de cínica
compreensão, levemente tingida de escárnio.
- Saiu com a sua garota?
- Parece, não?
- Divertiram-se?
Stephen não respondia.
Em várias ocasiões, o ex-jóquei parecia querer tratar do assunto, mas em vez disso encolhia os ombros e voltava-se para Jean Baptiste, iniciando com ele uma discussão
que tornava intencionalmente grosseira, como agora:
- Qual é a sua opinião sobre as mulheres, Croc?
- Considero-as com tolerante desprezo.
- Você fala como um marido.
- Sim... já fui casado. Minha esposa agora opera a passage à niveau em Croiset, no Chemin de Fer du Nord. A minha mais cara esperança é que um dia o expresso de
Paris, correndo 90 quilómetros por hora, atinja-a numa parte vulnerável.
- De minha parte, apesar de nunca ter me casado, gosto de mulheres. Mas só para dormir com elas. Para o resto, são piores que uma gonorréia.
- Mas a gente consegue isso dormindo com elas.
- Não com as minhas mulheres. Nunca escolho putas. Somente boas e honestas esposas camponesas que encontro no mercado e estão à procura de alguma ligeira variedade.
- Ah, variedade! Essa é a verdadeira palavra - à qual devo muito do meu último sucesso.
- Você, escamado?!
- Mas certamente. Tenho feito muitas conquistas com meus íntimos através da curiosidade. Mulheres entediadas com o leito matrimonial fazem qualquer coisa por uma
novidade. Li uma vez que um assassino condenado à guilhotina pode escolher dezenas de mulheres.
- Sacré bleu! Embora mereça, você não vai perder essa cabeça feia.
- Não. Mas exerço a mesma atração. Refletindo sobre a força da cauda do crocodilo, as mulheres acreditam que sou dotado de um formidável poder fálico.
- Mas você as decepciona, farceur.
- Isso só aconteceu uma vez, Jo-jo. Era uma gorda, solteirona, sem ligações, que durante meses me seguia na esperança de que os nossos repetidos enlaces produzissem
um jacaré. Infelizmente a criança nasceu normal.
Uma gargalhada profana encheu o caminhão, mas Stephen não participou dela. Sabia que o diálogo era dirigido a ele, não por qualquer intenção maldosa, mas como um
remédio administrado à vítima de uma febre renitente. Contudo, a sua doença já progredira tanto, que parecia incurável, intensificada pelos humores e incoerências
de Emmy. Às vezes ela o tratava bem, sentava-se nos degraus do caminhão, lisonjeada por suas atenções, cheia de sua própria importância, balançando os pés nus ao
sol. E conquanto não fosse pródiga com os seus favores, vez por outra, quando passeavam juntos no escuro, deixava que ele a beijasse antes de se afastar rapidamente.
Em vão ele dizia consigo mesmo que, numa natureza tão carente de profundidade, jamais despertaria uma paixão correspondente. Voltejava em torno dela como um marimbondo
em torno de uma nectarina, mas sem penetrar uma única vez na carne macia do fruto.
Numa tarde chuvosa, quando tinham deixado o agradável distrito do Saône pelo território estéril do Pays de Dombres, foram até uma pequena e dispersa comunidade de
Moulin-les-Drages. O seu destino inicial era St. Etienne, mas o trator principal quebrou na estrada, detendo uma longa fila de carros rebocados, e uma vez que o
conserto demoraria pelo menos 24 horas, era forçoso fazer um alto. Peroz, muito aborrecido por perder uma data importante, resolveu, após considerável debate, oferecer
um espetáculo em Les Drages e assim diminuir um pouco o seu prejuízo.
Mas tendo começado com má sorte, o dia continuou de mal a pior. Cartazes não tinham sido previamente afixados; a cidade, investigada, mostrou ser mesquinha e pobre,
sendo a única indústria uma olaria decadente. E a chuva aumentava continuamente. Quando chegou a noite, não havia mais de 100 pessoas na tenda gotejante.
Honrando a tradição Peroz, a maior parte dos artistas apresentou os seus números em bom estilo, voltando depois para a grande estufa da sala de estar. Emmy, contudo,
foi menos afortunada. Duas vezes, durante as suas evoluções preliminares, as rodas derraparam e ela foi atirada no chão molhado. Como resultado, cortou a parte principal
do seu número e saiu do picadeiro pedalando com a cabeça no ar. A primeira queda provocara risadas na plateia aborrecida; a segunda, uma positiva zombaria, seguida
de uma vaia com miados de gato.
Quando Stephen a viu depois, fora da tenda, ela ainda estava pálida com o vexame. Ele sabia que não devia falar, e por isso saiu com ela pela estrada em direção
ao acampamento, cerca de um quilómetro e meio distante, onde os carros estavam estacionados. Para piorar as coisas, não tinham andado muito quando desabou um forte
aguaceiro, forçando-os a se abrigar num celeiro ao lado de um campo aberto de restolho.
Quando seus olhos se habituaram à escuridão, Stephen olhou em torno, observando que o lugar estava cheio de palha. Rompeu o silêncio.
- Aqui pelo menos está seco. - E acrescentou: - Estou contente porque não apresentou hoje a parte final. Aquela gente não merecia.
- Que quer dizer?
- Bem... - Corou ligeiramente. - Eram gente um tanto antipática.
- Não notei. Eu sempre domino a minha plateia.
- Então por que não desceu?
- Porque a pista estava ensopada. Você não entende que na chuva isso é suicídio? - Num ataque de mau humor, seus olhos cintilaram para ele. Quem é você para ficar
aí me criticando? Sabe lá os riscos que eu corro todas as noites, enquanto você fica sentado lá atrás, rabiscando numa folha de papel, com menos coragem do que um
piolho? Eu desço ou não desço exatamente quando resolvo. E não vou quebrar o pescoço por nenhum padrezinho.
Ele a encarou por um momento, agora tão pálido quanto ela; depois, furioso, agarrou-a subitamente pela cintura.
- Não me fale assim!
- Largue-me.
- Só se me pedir desculpa.
- Fiche-toi le camp.
No próximo instante estavam lutando. Cego de raiva, recordando todos os insultos e desfeitas que ela acumulara nele, resolvido a vencê-la fisicamente, fechando ambos
os braços em torno dela como um lutador, tentou levá-la ao chão. Mas ela lutava como um gato selvagem, torcendo-se e revolvendo-se na palha fofa, malhando-o com
os cotovelos. Ela era mais forte do que ele julgava, com músculos curtos e poderosos de felina agilidade. Começou a respirar pesadamente, sentindo a pressão do seu
corpo contra ele. Retesando cada músculo, ele resistia. Rolaram por aqui e ali, sem decisão, até que ela, encolhendo a perna por trás dele, atirou-o longe com uma
rápida distensão.
- Está vendo? - disse ela. - Que isso lhe sirva de lição.
Ele se levantou devagar. Estava menos escuro do que antes; através da
clarabóia do celeiro, a lua era visível correndo entre as nuvens. Com um esforço, ainda tentando recuperar o fôlego, forçou-se a olhar para ela e viu, com confusa
surpresa, que ela não havia levantado; estava deitada de costas sobre a palha, com o vestido ainda desarranjado pela luta, observando-o através dos olhos apertados
com uma curiosa expressão especulativa, excitada, mas, ainda vagamente zombeteira. No seu rosto, geralmente de uma palidez fria, havia uma orla de cor, nos seus
lábios pálidos um sorriso ligeiramente mau. Por um momento, sustentou o olhar dele; depois, colocando ambos os braços embaixo da cabeça, numa atitude menos de sedução
que de expectativa, fez um movimento impaciente.
- Então, estúpido... que está esperando?
O convite que ele tanto havia procurado era inconfundível, contudo tão descarado, tão despido da menor semelhança de afeição, que ele não podia se mover. Petrificado
e repelido, mirava-a, e, girando, saiu do celeiro sem uma palavra.
- Molenga! - gritou-lhe ela. - Espèce de crétin.
Ele caminhou talvez uns 30 metros antes que o desejo lhe surgisse novamente, mais desesperado do que antes. Pouco se importava, queria-a, e haveria de possuí-la
de qualquer maneira. Virou-se e voltou.
- Emmy... - Estava fraco, encolhido de desejo por ela. Mas agora ela estava fria e dura como uma pedra.
- Vá para o inferno - disse ela outra vez zangada. - Agora espere outra oportunidade.
A expressão dos seus olhos dizia-lhe que era inútil insistir. Novamente
saiu do celeiro. Sem saber aonde ia, caminhava direto para a frente, com os olhos contraídos e os lábios apertados. Naquelas últimas semanas, vitimado por seu desejo
insaciável, reduzido a uma perpétua atitude de propiciação, já tinha sido bem humilhado. Mas agora, ferido em sua sensibilidade, sentia-se no mais baixo nível de
abjeção. Não podia, não devia submeter-se a isso.
Seus pensamentos não tomaram uma forma coerente até chegar de volta ao acampamento do circo. Uma vez que o motor enguiçado não seria reparado antes da manhã seguinte,
nada tinha sido desmontado, e no campo enlameado a grande tenda se erguia deserta e vazia. Alguma coisa buliu dentro dele. A luz brilhando através da abertura do
topo do dossel banhava o picadeiro com uma luz espectral, mostrava a pista inclinada, que não fora desmontada, brilhando de umidade. Um estranho impulso, um senso
de dever para consigo mesmo, lentamente foi tomando forma no seu espírito atormentado. Olhando para cima, viu que o equipamento ainda estava no lugar. Incapaz de
reprimir um arrepio, dirigiu-se para a escada de corda, seus pés deixando pegadas na serragem molhada. Segurou a corda e começou a subir vagarosamente. Momentaneamente
uma vertigem paralisou-o. O vento naquela altura tinha mais força, fazendo a pista oscilar, e o grande toldo, panejando e agitando-se, aumentava a sua impressão
de insegurança. Ele compeliu os seus músculos rígidos ação. Olhando para cima e usando uma mão, desenganchou a bicicleta da trava e, ainda seguro firmemente ao mastro
com o outro braço, alinhou as rodas. Montou trémulo na máquina e forçou-se a olhar para baixo.
O picadeiro, lá embaixo, era impossivelmente pequeno, um distante disco amarelo. A pista na qual ele estava pousado não tinha mais substância que uma simples fita.
Outro violento tremor lhe percorreu o corpo. Continuava seguro, podia voltar atrás. O medo petrificava-o. Lutou com ele. O que quer que acontecesse, tinha que descer.
Respirou fundo, firmou a sua posição na bicicleta, curvou-se para diante. Ao fazer isso, teve a vaga consciência de um grito, de uma figura encurtada e escura que
acenava lá de baixo. Se pretendia avisar, era demasiado tarde. Focando o olhar na lista branca central, com um supremo esforço da vontade, soltou a mão que o segurava.
Veio uma fração de segundo de voo, uma descida incrível, um empuxão para cima que o catapultou para o ar, e no mesmo instante, com um salto ruidoso, estava embaixo,
atirado com tremenda velocidade para fora do campo, estatelado na lama mole da vala que o margeava.
Por um momento lá ficou, imóvel, surpreso por estar vivo. Até que ouviu alguém correr para ele.
- Nom de Dieu... Está querendo se matar? - Era Jo-jo, desta vez em considerável estado de agitação.
- Não - disse Stephen, levantando-se tonto. - Mas acho que vou ficar enjoado.
- Seu filho da puta maluco. Que bicho lhe mordeu?
- Precisava de um pouco de exercício.
- Você está louco. Quando vi você lá em cima, pensei que estava liquidado.
- E que diferença isso teria feito?
Jo-jo encarou-o.
- Pelo amor de Deus, venha tomar um drinque.
- Muito bem - disse Stephen, e acrescentou: - Não comente isso com ninguém.
Foram até o café da aldeia. Depois de um bom copo de Calvados, a mão de Stephen parou de tremer. Lá ficou bebendo com Jo-jo, quase em silêncio, até que o lugar fechou.
O conhaque pesava-lhe na cabeça, fazendo-o sentir-se embotado e entorpecido. Mas na verdade não tinha realizado nada. A dor no coração ainda estava lá.


CAPÍTULO X

DUAS SEMANAS SE PASSARAM. Estavam em Nice. A cidade, iniciada pelos terraços de mimosas de La Burnette, era maior do que Stephen imaginava. A Promenade de Anglais,
a cintilante orla marítima, com os seus canteiros formais e hotéis ostentosos, dava uma desagradável nota pretensiosa. Mas o terreno do circo ficava bem para o interior,
na direção de Cimiez, atrás da Place Carabacel, cercado de ruas estreitas com feiras ao ar livre e pequenas barraquinhas de frutas, verduras e uma profusão de flores,
uma rede de coloridas e ruidosas passagens que tinham o encanto íntimo de Paris acrescido do calor do Sul.
- Nada mau, hein? - disse Jo-jo, expandindo o seu magro peito embaixo do colete rasgado.
- Gosta daqui?
- Muito. E você também vai gostar. - Fez um gesto abrangente. - Há muito interesse para um artista na Carabacel.
Em outro momento teria sido um entretenimento para Stephen explorar aquele bairro. Agora, tenso e inquieto, sentia que não poderia trabalhar. Mas obrigou-se a tal
com o seu bloco Ingres e fez alguns estudos dos nicenses - uma velha de touca branca vendendo alcachofras, um homem do campo
com uma rede de galinhas vivas, trabalhadores tapando um buraco na estrada. Contudo, o seu coração não estava naquilo, e ao calor do meio-dia voltou para o acampamento
a fim de descansar um pouco antes de começar o trabalho na sua barraca.
Na tarde seguinte, diante do seu cavalete na feira, completava o seu último retrato da sessão quando notou que havia um espectador atrás dele, ligeiramente inclinado
sobre uma bengala de rotim. Algo na sua postura despertou-lhe um eco na memória. Voltou-se.
- Chester!
- Como está, meu velho? - Harry rompeu no seu riso contagiante, descalçou uma luva de couro lavável e estendeu-lhe a mão. - Soube que você tinha entrado para o Peroz.
Mas por que diabo está com essa fantasia?
- Faz parte do trabalho.
- Claro, uma maneira de atrair os nativos. Mas não o faz sentir-se com cara de tolo?
- Ora, estou acostumado. Espere, que já estarei com você.
Enquanto Stephen dava rapidamente os toques finais no retrato, Chester tirou uma cigarreira e acendeu um cigarro. Espremido num traje de linho branco, sapatos marrons
e um chapéu panamá, tinha um ar abastado. Calças bem vincadas, camisa de tussor de seda, exibia uma elegante gravata-borboleta. O rosto estava bem queimado.
- Não posso acreditar que você esteja aqui. Embora tivesse dito que ia para Nice. Você parece estar bem.
- Estou em ótima forma, obrigado.
- Suponho que teve alguma sorte nas mesas.
- Para dizer o mínimo, tive. - O sorriso de Chester escureceu. - Eu estava nas últimas e apostei os 50 francos que me restavam no duplo zero. Por quê? Porque sabia
que teria menos que zero se perdesse. Deu o duplo zero. Deixei tudo. Por quê? Só Deus sabe. E deu o duplo zero outra vez. Meu Deus, você nunca viu semelhante pilha
de grandes e lindas fichas quadradas vermelhas em sua vida. Fui apanhá-la. Não pude. Alguma coisa dentro de mim dizia sorte pela terceira vez. Quando a roda girou,
quase morri. O duplo zero deu de novo. E desta vez recolhi tudo rapidamente e fui trocar no guichê do caixa. No dia seguinte mudei-me do prejuízo para Villefranche,
um pequeno apartamento. Desde então estou vivendo como um lorde. - Tomou o braço de Stephen. - Agora fale-me de você. Como vai o trabalho?
- Assim-assim.
- Vamos vê-lo.
Stephen guiou-o até o seu caminhão, apanhou algumas telas e inclinou-as, uma depois da outra, contra a calota da roda, enquanto Harry, com uma expressão profissional,
estudava cada uma a seu turno.
- Bem - declarou ele afinal. - Você pode ter algo aí, mas não compreendi bem o que é. Perspectiva? As suas pinceladas não são muito rudes?
- São intencionalmente rudes... para dar uma impressão de vida.
- Esses cavalos não são particularmente reais.
Harry apontou com a sua bengala para uma composição a têmpera de cavalos correndo como loucos numa tempestade.
- Não estou procurando expressar o óbvio.
- Obviamente não. Contudo... gosto que um cavalo se pareça com um cavalo.
- E quando você vê um homem montado nele, então tem certeza disse Stephen secamente, e empilhou as telas, percebendo que Chester não tinha a menor ideia do que ele
buscava. - Você ainda está pintando?
- Oh, naturalmente. Quando tenho tempo. Estou fazendo uma vista geral da Promenade. Às vezes saio com Lambert. Ele e Elise estão aqui. Ele pegou uma viúva americana
rica no Ambassadeurs e está dando expediente inteiro com ela.
Enquanto ele falava, soaram passos, e por trás da lona do caminhão apareceu Emmy. Quando se dirigia para Stephen, recuou de súbito, tendo notado a presença de Chester.
Uma expressão curiosa lhe assomou ao rosto.
- Que é que está fazendo aqui?
- Eu geralmente apareço quando menos se espera.
- Como um cêntimo falso?
- Desta vez como uma bela nota de mil francos - respondeu Chester amavelmente, sem se deixar diminuir. - Sentiu a minha falta?
- A privação foi insuportável.
- Não seja rude com o tio Harry. Você sabe que os seus nervos são fracos. - Consultou o relógio. - Tenho que partir. Devo estar no Negresco às seis. Mas quero que
vocês venham almoçar amanhã no meu apartamento Rue des Lilas, 11-B - ao largo do Boulevard General Leclerc. Os Lamberts também estarão lá. Os dois estão livres?
Ótimo. São apenas uns poucos quilómetros pela Corniche, o bonde passa na minha porta.
Sorrindo e acenando com a bengala, chamou um fiacre no fim do acampamento, saltou nele, reclinou-se no encosto acolchoado e mandou tocar a galope. Emmy acompanhou-o
com olhos ressentidos.
- Voyou metido a sebo. Mandando a gente tomar o bonde enquanto ele vai de carruagem.
- Não devemos invejá-lo. Ele também já teve os seus maus momentos.
- Não acredito que ele tenha acertado um coup. Deve estar vivendo com alguma velha.
- Não mesmo. Chester é o tipo de sujeito com sorte para ganhar uma bolada. Além disso, só se interessa por moças bonitas.
- Um dia ele vai ver o que é bom. - Mostrou os seus dentinhos agudos.
- Sale type. Nunca fui com a cara dele.
- Então você não irá lá amanhã...
- Claro que irei. Não seja tão fou. Faremos com que ele se arrependa da sua pretensão.
Ele a olhou perplexo. Obviamente detestava Chester. Por que, então, aceitar o seu convite? Talvez quisesse ver os Lamberts. Jamais soube o que ela tinha em mente.
No dia seguinte, quando veio ao seu encontro, ela usava um vestidinho amarelo de musselina bordada e uma fita da mesma cor em volta do cabelo cheio e curto. Deu-lhe
um pequeno sorriso com os lábios apertados.
- Podemos pegar um fiacre?
- Isso mesmo. Nada de bonde para nós.
Ela escolheu a mais elegante vitória da fila. Sentou-se confortavelmente.
- Como estou?
- Maravilhosa.
- Eu precisava de um vestido novo. Comprei este hoje de manhã na Galerie Mondial.
- É encantador - disse ele. - E assenta-lhe perfeitamente.
- Gosto de mostrar a essa gente que não sou uma coisa embaixo dos pés deles. Chester especialmente. Ele é muito cheio de si.
- Talvez, mas não é um mau sujeito. Acho-o apenas um pouco mimado. É bonito demais.
- Acha-o atraente?
- Acho que muita mulher tola já tem caído pelos seus belos olhos azuis e cabelos crespos.
Ela lançou-lhe um penetrante olhar de soslaio.
- Pelo menos eu não sou uma delas.
- Não - sorriu Stephen. - Estou um tanto aliviado por você detestá-lo. Rodaram pela Avenue Raspail, um largo logradouro sombreado de catalpas, ao longo do Boulevard
Carnot, e depois pela curva da baía para Beaulieu. O céu estava azul, uma brisa de deliciosa fragrância soprava das colinas. Ele apertou-lhe a mão, feliz - ela se
deixou segurar por um momento. Ultimamente, as atenções que ele tinha para com ela, os pequenos presentes que continuamente lhe dava, as restrições que por um esforço
de vontade impunha a si mesmo pareciam estar causando alguma impressão nela.
- Você está sendo gentil comigo - murmurou ela.
Essa ligeira observação tornou-o ridiculamente feliz. Talvez, por fim, ela pudesse aprender a amá-lo.
Dali a pouco rodavam por Villefranche. O apartamento de Chester, na Rue des Lilas, uma rua em ângulo reto com a avenida, integrava uma série de
suítes que abriam sob um balcão comum em torno de um pátio, atendidas por um pequeno hotel, o Hotel des Lilas. Um pequeno chafariz cercado de cactos gorgolejava
no centro do pátio, e tubos verdes de oleandros floridos decoravam a varanda. O lugar parecia limpo, agradável e discreto - exatamente a espécie de pied-à-terre
que Chester, com a sua inclinação para se tratar bem, acharia sem o menor esforço.
Foram os primeiros a chegar, e Harry recebeu-os efusivamente.
- Bem-vindos ao castelo ancestral. Não é grande, mas tem história.
- Má, sem dúvida - disse Emmy.
Chester riu. Vestia calças de flanela branca e um blazer azul com botões de metal amarelo. Seu farto cabelo castanho, recém-ondulado, tinha uma listra de cor mais
clara na testa.
- Se é isso o que você pensa, não posso deixá-la mentir.
Enquanto ele levou Emmy ao dormitório para deixar a sua echarpe e luvas, Stephen relanceou os olhos em torno da pequena sala de estar. Era mobiliada convencionalmente,
mas nas paredes havia duas aquarelas emolduradas que reconheceu como sendo trabalho de Lambert. Examinou-as de perto - uma era um arranjo de ervilhas-de-cheiro num
vaso Ming, a outra um bando de cegonhas paradas num lago nevoento - e ao olhá-las imaginava como jamais poderia ele ter apreciado semelhante beleza. Belamente executadas,
com uma delicadeza quase feminina, eram contudo vazias e insípidas, despidas de toda vitalidade ou intenção. Podiam ter sido feitas por uma hábil professora de arte
de uma escola superior para moças. Faziam-no avaliar que longa estrada tinha percorrido desde aqueles primeiros dias em Paris. Se a jornada fora áspera, pelo menos
lhe tinha ensinado em que consistia realmente uma obra de arte.
- Boas, não? - Chester tinha voltado com Emmy. - Lambert, num gesto muito decente, me emprestou as duas. O preço está nas costas. Há sempre uma chance de que os
meus visitantes queiram comprá-las.
Trouxe uma garrafa de Dubonnet e serviu três copos, depois passando uma bandeja de camarões frescos.
- Posso tentá-la, mademoiselle Rouquet de la baie.
- Você mesmo os apanhou?
- Claro. Levantei-me antes do desjejum.
Rearranjando o cabelo, ela olhou para ele, mas pela primeira vez com menos animosidade.
- Que grande mentiroso!
Harry riu-se gostosamente.
- Também sou muito bom nisso.
A campainha tocou e os Lamberts entraram. Pareciam pouco mudados, embora Philip estivesse mais gordo, mais lânguido nas suas maneiras. Usava
um terno cinza com um cravo azul na lapela e trazia pendurada no indicador uma caixinha de pâtisserie amarrada com uma fita.
- Trouxe-lhe alguns bolinhos do Henri, Chester. Acompanharão o café. Naturalmente, você está lembrado da minha gulodice, Desmonde. - Espichou-se comodamente no divã
e delicadamente aproximou as suas finas narinas da flor que tinha na lapela. Elise, que vestia o inevitável verde, e cujo sorriso parecia um tanto mais fixo do que
antes, estava conversando com Emmy.
- Agora, conte-me tudo como um bom menino.
Stephen começou um relato a seu respeito, mas antes que fosse muito longe viu que Lambert não estava prestando atenção, e interrompeu-se.
- Você sabe, Desmonde - disse Philip num tom ligeiro e divertido eu desejaria, pelo seu próprio bem, que você não se tivesse metido nessas coisas pesadas. Você não
pode atacar a arte com uma picareta. Por que suar como um britador de pedras? Faça como eu e use um pouco de delicadeza, um pouco de habilidade. Eu nunca trabalhei
demais, e no entanto clientes não me faltam. E eu vendo. Admito que tenho talento, e isso torna as coisas mais fáceis para mim.
Stephen ficou silencioso. Podia muito bem adivinhar a facilidade de Lambert. Mas o anúncio de Chester, dizendo que o almoço estava servido, salvou-o da resposta.
A refeição fornecida pelo hotel lá de baixo era esplêndida, servida por um jovem garçom que, para apresentar uma comida tão quente, devia ter executado estranhas
proezas de agilidade nas escadas. Uma lagosta cozida à moda da terra, seguida de um risotto de frango, e depois um queijo soufflé; antes, Harry, com o toque de um
perito, tinha feito saltar a rolha de uma garrafa de Veuve Cliquot. Quanto mais alegre a mesa, porém, mais Stephen se sentia completamente alheio a ela. Em certa
época tinha apreciado aquela sociedade, mas agora, apesar do enorme esforço para se coadunar com ela, fracassava tristemente. Que lhe tinha acontecido para que se
sentasse ali, mudo, com a consciência mortal de que não mais pertencia a ela? Emmy, bebendo mais champanhe do que devia, exibia tolas personificações de Max e Monx
que faziam Chester, agora mais ruidoso do que nunca, estourar de riso. Lambert, a quem Stephen tinha antes admirado, parecia-lhe agora exatamente como Glyn o via
- um poseur e diletante, um amador fracamente dotado. Perfeitamente amaneirado, bem-educado, garantido por sua pequena renda regular, recusando-se a ser perturbado
ou excitado, flutuava a esmo, nunca se exercendo a sério, tocando de leve o creme da vida. Cultivando mulheres, arranjava clientes que lhe encomendavam retratos
ou que pagavam bons preços por seus leques e aquarelas. Elise, com o seu sorriso fixo e perfil nítido, mostrava sinais dessa existência. Sua aparência começava a
murchar e as rugas a juntar-se embaixo dos seus
olhos verdes e pestanudos; contudo, embora a sua capacidade de lisonjeá-lo já estivesse um tanto gasta, a sua inexaurível devoção fazia dela, cada vez mais, uma
parceira complacente naquele jogo de blefe artístico, cujo mero pensamento levava Stephen a remexer-se mais inquieto na cadeira.
Depois do café e bolinhos, dos quais Philip, desculpando-se com uma delicada alusão literária ao jovem com as bombas de creme de Stevenson, comeu cinco, sentaram-se
na sacada. Continuando a monopolizar a conversação, descreveu, com irónica meticulosidade, as deficiências faciais e sociais da mulher idosa que retratava atualmente.
- De fato - concluiu ele aereamente - não se poderia esperar mais da viúva de um enlatador de carne de porco de Chicago.
- Imagino que o cheque dela foi bom.
- Bem... naturalmente.
Embora tentasse livrar-se da sua apatia, Stephen via o tempo passar com interminável lentidão. Por fim, cerca de três horas, aproveitando um intervalo na conversação,
olhou para Emmy.
- Acho que temos de ir agora.
- Oh, tolice - protestou Chester. - A tarde ainda é jovem. Vocês não podem nos deixar agora, de modo nenhum.
- Se eu não for chegarei tarde no meu emprego.
- Então por que você não fica, Emmy? - sorriu Harry afavelmente. Houve uma pausa. Stephen notou sua hesitação, mas ela logo sacudiu
bruscamente a cabeça.
- Não. Eu vou agora.
Despediram-se, o porteiro lá embaixo conseguiu-lhes um fiacre. Ao dobrarem a esquina, fora da vista do hotel, Stephen inclinou-se para ela.
- Foi bondade da sua parte vir comigo. Gostei disso.
- E eu não gosto de me tornar fácil.
Não era a resposta que ele esperava; no entanto, animado pela recente mostra de sua consideração, chegou-se mais perto, sob a coberta do avental da carruagem, e
procurou-lhe a mão.
- Não - disse ela, empurrando-o irritada. - Não está vendo como me sinto?
E ao voltar-se surpreso, ela, com franqueza vulgar, deu uma desculpa que, se fosse verdade, teria talvez causado a sua prematura partida.


CAPÍTULO XI

APÓS O TUMULTO E EXCITAÇÃO das viagens através das estradas do país, muitos membros do Circo Peroz acharam agradável estabelecer os seus alojamentos de inverno na
Côte d'Azur. Ali era a sua base; muitos tinham relações em Nice, Toulouse e Marselha, e com mais tempo disponível, poderiam visitá-las. Embora o negócio continuasse
firme, o programa tinha sido reduzido para cinco espetáculos por semana, e após a grande noite de domingo, segunda e terça-feira, ficavam livres.
Os amigos de Stephen já haviam Se acomodado à nova rotina. Max reiniciara as suas lições de violino e podia ser visto, todas as tardes, com a caixa preta em forma
de pêra debaixo do braço, partindo no trote miudinho forçado por suas diminutas pernas. Croc, por outro lado, passava a maior parte do seu tempo na Bibliothèque
Nationale, curvado sobre grossos volumes, expondo na volta, a Stephen e Jo-jo, uma nova versão de Schopenhauer, ao passo que Fernand, parecendo gasto e sonhador,
ia todas as manhãs, de braço dado com a esposa, a um homeopata de Cimiez para a irrigação diária prescrita para o seu flux intestinal. Mais prático, Jo-jo tinha
achado uma ocupação subsidiária nas cavalariças do Negresco, onde, a pretexto de lavar as carruagens, passava a maior parte do tempo tagarelando com cocheiros e
motoristas, levando um livrinho sobre as corridas locais e comentando sarcasticamente, com o canto da sua boca de ratoeira, os visitantes que entravam e saíam do
hotel.
Stephen, por sua vez, tinha começado o desenho preliminar para uma pintura na qual pretendia utilizar os estudos individuais feitos na grande tenda, a que pretendia
chamar Grcus. Esse arranjo complexo, um agrupamento de inumeráveis figuras com as suas cores combinadas e contrastantes, era difícil e, desde que ele não tinha estúdio
nem tela suficientemente grandes, propunha-se seguir o precedente dos antigos mestres e construir a sua composição, primeiro que tudo, numa escala menor e menos
rigorosa. A ideia lhe surgiu à medida que progredia, e ele começou a sentir que semelhante material, recolhido em semanas de paciente observação, devia dar um magnífico
resultado.
Desde o dia do almoço no Hotel des Lilas, o barómetro dos humores de Emmy tinha lentamente chegado a "bom tempo". Após esse evento, não tinham
mais visto Chester ou os Lamberts, e parecia que essa ligação estava finalmente rompida.
No fundo do espírito de Stephen, talvez por uma observação de Glyn, sempre havia a ideia de uma afeição entre Chester e Emmy. Era-lhe gratificante o fato de que
Emmy tivesse aceito a brusca interrupção de sua amizade com tão pouco interesse. Ela, como os outros, tinha voltado a sua atenção para Nice. A irmã de Madame Armande,
que morava nos arredores, logo após o subúrbio de St. Roch, tinha uma pequena chapelaria dedicada principalmente à produção e venda de chapéus de palha de carnaval.
Emmy, como muitas moças francesas, tinha talento para os trabalhos de agulha, e todas as tardes tomava modestamente o bonde para ganhar algum dinheirinho na oficina
do Chapeau de Paille. Como resultado, Stephen via-a menos do que o usual. Contudo, experimentava um certo conforto íntimo com esse aspecto inesperadamente sossegado
da sua natureza. Tal atividade, no entanto, devia ser terrivelmente monótona, e ele disse para si mesmo que devia procurar quebrar essa monotonia. No Clarion de
Nice, descobriu que uma companhia lírica, cumprindo um contrato no Casino Municipal, faria uma representação de La Bohême na segunda-feira seguinte. Esse romance
ultrapassado da vida de estudante em Paris talvez a entretivesse, e no seu encontro seguinte ele falou no assunto.
- Você quer ir ao teatro na segunda?
- Teatro? - Pareceu ligeiramente perturbada. - Você não está ocupado com a sua pintura?
- Não de noite, com certeza.
- Bem... se você quiser.
- bom. vou comprar as entradas hoje.
Andou todo o caminho até o Casino e comprou duas cadeiras no grand circle, e então, sabendo o quanto ela gostava de "uma noite fora", reservou uma mesa no restaurante
para a ceia nessa mesma noite. Começou a esperar o evento com aquela antecipação que tão dolorosamente o afetava sempre que pensava em ficar a sós com ela.
Segunda-feira chegou. Quando terminou a sua sessão na barraca, banhou-se com água da bacia no lado de fora do seu alojamento e vestiu o seu terno e uma camisa limpa
que lavara na véspera. Justamente quando se aprontou, ouviu passos atrás dele. Voltou-se e viu uma expressão de pesar nos olhos de Emmy.
- Que houve?
- Não posso ir com você esta noite.
- Não pode?
- A irmã de Madame Armande está de cama, com l agrippe. Tenho que ficar com ela.
- Madame Armande pode fazer isso.
- Sim, mas há pedidos de urgência para atender.
- Talvez...
- Não. Tenho obrigação de ir.
Houve uma longa pausa.
- Bem... suponho que não tenha jeito.
Ficou terrivelmente abatido, mas não se importava em mostrá-lo.
- Você deve convidar alguém. Não desperdice as entradas.
- Ora, para o diabo os bilhetes! Que importam eles?
- Sinto muito. - Deu-lhe um tapinha condoído.
- Outra noite, quem sabe.
Aquele ar de interesse preocupado diminuiu a sua decepção. Todavia, ao vê-la apressar-se, indo em seguida despejar lentamente a água cheia de espuma de sabão da
bacia, a sua tristeza era tão grande, que Jo-jo, que acabava de voltar, descansando com os cotovelos no degrau, tendo testemunhado a recente cena, veio fazer perguntas.
- Como vai a coisa? - Falava sem tirar a palha que tinha entre os dentes.
- Muito bem.
- Você está todo emperequetado.
- Estou vestido, se é isso que quer dizer.
- Aonde ia?
- Ao teatro. Venha comigo. É La Bohême.
- Variedades?
- Não, ópera.
- Ópera? Ah, não. Mas vamos tomar um drinque no Mas Provençal. Atravessaram a praça em direção a um café das proximidades. Era um lugar reles mas agradável, com
compridos bancos e mesas na calçada. No interior obscuro, um piano mecânico estava tocando, e o pessoal se achava sentado em mangas de camisa. Jo-jo acenou para
alguns operários que, a caminho de casa, tinham parado para uma caneca de cerveja.
- Qual é o seu veneno, Abbé?
- Qualquer coisa... Vermute.
- Vermute Quelle blague. Você vai tomar é um conhaque. - Pediu em voz alta um Pernod e um conhaque.
As bebidas foram trazidas por uma raparigona de braços nus, vermelhos, e seios redondos, cheios debaixo da blusa, como cocos.
- Aí está uma garota para você. - com mão prática, Jo-jo filtrou o Pernod através de um torrão de açúcar, e tomou um gole confortante do líquido opalescente. - O
nome é Suzie. E não é poule. Por que não experimenta a sorte? Essas mulheres grandalhonas gostam de homens pequenos.
- Ora, vá pró inferno!
Jo-jo riu brevemente.
- Isso é melhor. O problema com você, Abbé, é que nunca se entrega.
- Que quer dizer?
- Sacré bleu! Você pode se desamarrar um pouco. Então nlo fiquei sabendo que você tem tutano - aquela noite... quando desceu na pista? Voando com todo o seu corpo.
Fique alegre, embebede-se e divirta-se.
- Já tentei isso. Comigo não dá resultado.
- Há um chá dançante todas as noites no Negresco. De muita classe. Pode ser interessante.
Havia uma intenção esquisita na voz de Jo-jo, mas Stephen simplesmente abanou a cabeça.
Jo-jo abriu os braços resignado. E depois disse:
- Que aconteceu com a beleza da bicicleta?
- Teve que ficar com a irmã de Madame Armande.
- Armande tem irmã? Haverá duas cadelas iguais neste mundo infeliz?
- Ela tem uma chapelaria em Lunel, atrás de St. Roch. E está doente.
- Uma obra de caridade - fez Jo-jo, baixando a cabeça. - Uma segunda Mademoiselle Nightingale.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual ele continuou a olhar para Stephen com um satírico aperto nos lábios. Uma vez, pareceu que ia falar, mas em vez disso encolheu
ligeiramente os ombros, pediu novas bebidas com um gesto, e começou a falar sobre as corridas do dia seguinte.
Às sete horas, deixaram o café; Jo-jo foi dar água e comida aos seus árabes, e Stephen ficou só. Sentia-se melhor, aquecido e mais alegre depois de três conhaques,
mas ainda assim tinha pouca disposição para ir sozinho ao Casino. A noite era deliciosamente linda - e seria uma pena gastá-la num teatro abafado. De repente lhe
veio uma ideia, Lunel não ficava muito longe, apenas uma viagem de bonde de 20 cêntimos. Por que não dar um pulo até a oficina de Madame Armande e, mesmo que fosse
obrigado a esperar até que ela terminasse o seu trabalho, voltar com Emmy? Com sorte, poderiam até chegar a tempo para o jantar.
A perspectiva apressou os seus passos e ele atravessou o Boulevard Risso para a Place Pigalle, onde, sem dificuldade, achou um bonde para a zona norte. A viagem
foi lenta, e mais longa do que ele supunha, mas não eram oito horas e ainda havia luz quando ele chegou ao seu destino. Lunel, como cidade, era surpreendentemente
pequena e pouco desenvolvida, o terreno plano quase todo ocupado por hortas, pouco mais que uma coleção de casinhas novas de estuque margeando uma única rua não
calçada. Stephen subiu e desceu duas vezes essa rua sem encontrar o Chapeau de Paille. Na verdade, as poucas lojas que lá havia em nada se pareciam com uma fábrica
de chapéus. Intrigado e confundido, Stephen ficou um momento parado, enquanto rajadas de vento
levantavam poeira em toda parte, e então foi à agência do correio, que, funcionando na mesma casa de uma épicerie, ainda estava aberta. Ali, em resposta às suas
indagações, ficou sabendo que não havia modista, e positivamente nenhuma fábrica de chapéus, em Lunel.
Com uma expressão curiosa na face, sentado no canto de um bonde quase vazio, Stephen voltou para Nice. O veículo sacolejante deixou-o meio tonto. Teria cometido
um engano estúpido por ouvir mal o nome do lugar que ela lhe tinha dito? Não, estava certo de que ela dissera Lunel, não uma, mas diversas vezes. Não o teria despistado,
inventando aquela desculpa à última hora? Isso também era impossível - ela vinha visitando a irmã de Madame Armande diariamente nos últimos 15 dias. Sua expressão,
se havia, tornou-se ainda mais fixa. Estava bem escuro quando chegou a Carabacel. Tudo tranquilo e deserto no acampamento. Teve um impulso de ir ao seu alojamento
e ver se ela tinha regressado, mas o orgulho e uma sensação de cansaço físico o contiveram. Já tinha se tornado suficientemente ridículo sem fazer uma cena àquela
hora. Entrou no seu caminhão, deitou-se no beliche e fechou os olhos. Tiraria tudo a limpo com ela de manhã.


CAPÍTULO XII

No DIA SEGUINTE, embora acordasse cedo, não a viu até as 11 horas, quando ela apareceu nos degraus do vagão de chinelos e um penhoar de algodão azul e branco. Sentou-se
no primeiro degrau, segurando uma xícara de café. Ele foi até ela.
- bom dia... Como deixou a sua doente?
- Oh, bem melhor.
- Chamou o médico?
- Naturalmente.
- Espero que não tenha sido nada sério.
Ela tomou um gole de café.
- Eu lhe disse que era uma gripe.
- Mas isso não é contagioso? - disse solícito. - Você deve se cuidar.
- Eu me cuido.
- Estou falando sério... venta muito em Lunel. E o bonde demora muito a chegar.
Ela olhou para ele em silêncio sobre a beira da xícara.
- Que é que você sabe de Lunel?
- Estive lá ontem à noite.
Ela o olhou desconfiada, e deu uma risada.
- Não brinque comigo. Você foi ao teatro.
- Não, eu fui a Lunel.
- Por quê?
- Pensei que podia comprar um chapéu. Infelizmente, não pude achar nenhuma chapelaria.
- Aonde é que você quer chegar.
- E também não encontrei nenhuma irmã de Madame Armande.
- Quem diabo você pensa que é, metendo o nariz nos assuntos dos outros? Saindo para me espionar. Seu rato sujo.
- Pelo menos não sou mentiroso.
- E quem é que mentiu? Falei a verdade. Se eu quisesse, poderia ter levado você lá. Onde você andou zanzando ontem à noite, não sei. Mas o lugar existe sim. Além
do mais - ajuntou ela com um toque final - a irmã de madame é viúva; o nome dela não é Armande. E agora talvez você vá cantar noutra freguesia e me deixe tomar o
meu café em paz.
Com o coração batendo como um martelo, Stephen olhou para ela com um misto de raiva e desespero. Sentia que ela estava mentindo - quando a ocasião exigia, ela podia
ser escorregadia como uma enguia. Mas a sua própria veemência era suspeita. Contudo, era até possível que falasse a verdade. Queria com toda a sua alma acreditar
nela. Sempre pronto a imputar a falta a si próprio, ponderou que aquele terrível aperto que sentia no coração poderia tê-lo levado a julgá-la mal. O desejo de reconciliação
apoderou-se dele e o enfraqueceu.
- Eu esperava tanto a nossa noite juntos.. . - murmurou ele.
- Isso não é desculpa.
- Seja como for, vamos esquecer isso.
- Só se me pedir desculpas por ter me chamado de mentirosa. Pede?
Ele hesitou, mordendo nervosamente os lábios, de olhos baixos. Seu orgulho impedia-o de aceitar aquela humilhação por parte dela. Mas a necessidade que tinha dela
tornava-o abjeto.
- Está bem... se quiser. Sinto tê-la ofendido - disse ele, extraindo à força as palavras que o faziam sentir-se desprezível.
Passou o resto do dia dilacerado pela indecisão, desejando estar com ela. Serviu-lhe de algum consolo observar que ela não saíra do acampamento. À noite, retirou-se
para o seu alojamento imediatamente depois do espetáculo. Mas sabia que não poderia continuar daquele modo, isso era impossível; de uma maneira ou outra, precisava
certificar-se.
No dia seguinte, após o almoço, quando ela saiu para a Place Pigalle, ele a seguiu. Ao saber de casos semelhantes, sempre desprezara o marido desconfiado ou o amante
ciumento que espionava a mulher que lhe causava suspeitas. Agora não podia evitá-lo. Mas ele não era nenhum especialista no assunto e, no seu esforço para não ser
visto, perdeu a sua presa no terminal da Pigalle. Contudo, vira que ela tinha tomado um bonde na direção do passeio público, e como outro estava no ponto, embarcou
nele. Em 15 minutos estava diante da costa. Procurou Emmy apressadamente em torno, andou até a esplanada e voltou, contornando o Casino, mas não viu nenhum sinal
dela. Então, como estava indeciso, de repente se lembrou do jeito de Jo-jo ao falar no chá dançante do Negresco. Embora a possibilidade parecesse remota, atravessou
a rua, entrou nos jardins do Musée Masséna e olhou por cima das grades de pontas douradas, através da Rue Rivoli, para o terraço coberto do hotel. Ao lado, sob um
toldo estendido do saguão até uma pequena plataforma com mesas de chá, uma orquestra, escondida entre as palmeiras, executava uma marcha que alguns casais dançavam.
A princípio, pensou que ela não estava lá. Então, por trás do biombo da folhagem, outra parelha saiu para a pista. A moça sorria quando, com um gesto prático, estendeu
os braços para o companheiro, que a enlaçou pela cintura. Deslizaram juntos - Chester e Emmy.
Imóvel, com a face estranhamente inexpressiva, Stephen ficou a olhá-los, observando como se moviam graciosamente. Seus passos combinavam perfeitamente. Quando a
música parou, permaneceram de pé, juntos, e quando o bis começou, prosseguiram sozinhos. Tão perfeita era a sua exibição, que os deixaram monopolizar a pista, e
quando afinal foram sentar-se, receberam um murmúrio polido de aplausos.
Stephen arrancou-se dali, caminhou lentamente para o passeio público e sentou-se num banco do qual podia ver a entrada do hotel. A dor no seu coração era quase insuportável.
Apertava os olhos ao pensar em como ela o havia enganado. Como ela e Chester deviam ter rido juntos com a invenção da chapelaria fictícia, e a sua crença inteiramente
falsa de que ela estava modesta, industriosamente trabalhando com a agulha, quando durante todo o tempo tinha estado com Harry. Madame Armande era inquestionavelmente
outra parceira daquela peça burlesca e tinha sem dúvida espalhado a notícia entre os membros da companhia. Certamente Jo-jo sabia que ele estava sendo um grandíssimo
tolo, embora, por pena, nada tivesse dito.
No entanto, tudo isso não era nada diante da angústia e da amarga fome da alma que agora o possuíam. Maior ainda que a sua raiva e mortificação, era aquela frenética
intensificação dos ciúmes e do desejo. Através da mágoa e da humilhação, ainda a queria; através do ódio, ainda tinha necessidade dela. E sentado ali, com a cabeça
entre as mãos, procurara achar desculpas para racionalizar
a conduta de Emmy. Afinal de contas, ela estava apenas dançando com Harry, e isso decerto não era um crime. Conhecem-se muitos parceiros de dança que não sentem
nada um pelo outro e estão unidos por não mais que um prazer puramente impessoal pela arte.
A música continuou a tocar intermitentemente até as seis horas, e quando a pista esvaziou, ele viu os músicos saírem com os seus instrumentos. Seguiu-se um demorado
intervalo. Com toda a certeza, Harry e Emmy tinha ido ao bar - imaginava-os muito juntos nos bancos altos, Harry à vontade e descansando, na maior intimidade com
o barman.
Demoraram tanto a reaparecer que ele começou a temer que tivessem deixado o hotel por outra saída. Mas, por fim, já quase noite, filas de luzes coloridas se acenderam
na frente e eles apareceram, descendo os largos degraus do pórtico, e se dirigindo para o passeio. Falando junto, animadamente, passaram tão perto que ele poderia
tê-los chamado. Mas manteve os lábios apertados, e quando já estavam uns 30 metros adiante, levantou-se, quase automaticamente, e seguiu-os.
Não foram muito longe. A uma pequena distância do Casino, deixaram o passeio público, tomaram a rua lateral do Marche aux Fleurs, na Cidade Velha, e entraram num
pequeno restaurante - a Brasserie Lutétia. Jantar para dois, pensou Stephen sombriamente, e teve um impulso hesitante, doentio, de entrar e sentar-se na mesa deles
- em vez disso, abotoou a gola do paletó e postou-se na sombra de um portal.
Não muitas pessoas entravam na brasserie - era um desses lugares sossegados, onde se podia ter completa intimidade. Uma vez, um garçom saiu à porta, olhou para cima
e para baixo, como se esperasse fregueses, e entrou novamente. Um gato passou de mansinho pela calçada. Do portal, sobre os telhados no fim da rua, Stephen podia
distinguir a massa escura das montanhas e altos pontinhos de luz que talvez fossem estrelas.
Teve que esperar até depois das nove, antes que eles emergissem. Somente a grande premência da sua necessidade de descobrir a verdade ajudou-o a manter-se naquela
triste e degradante vigília. E o momento se aproximava - um tremor o percorreu ao vê-los em pé sob as luzes da marquise. Com certeza, Chester estava para se despedir,
ou então ia levá-la de volta à Place Pigalle.
Estavam agora falando com o garçom, o mesmo que vira sair com eles, e Harry disse alguma coisa que os fez rir. Um fiacre chegou ruidoso, chamado da fila na praça,
lá embaixo, uma gorjeta foi dada, Emmy e Chester entraram. Rapidamente, ao se afastarem, Stephen andou até a praça, saltou noutra carruagem e disse ao cocheiro que
os seguisse.
Rodaram pelo Mercado das Flores deserto, entraram num labirinto de ruas antigas e viraram para a costa; então, com o coração encolhido, Stephen
viu que eles se dirigiam diretamente para Villefranche. Logo estavam lá. No fim da Rue des Lilas, Stephen mandou o cocheiro parar e pagou a corrida. Mais adiante,
na rua tranquila, viu o outro veículo parar. Ambos os seus ocupantes desceram, desaparecendo no pátio. Agora as duas carruagens tinham sumido, e ele ficara só na
rua deserta. Instintivamente olhou para o relógio - o mostrador luminoso indicava 10:30. Lentamente, andou para o Hotel des Lilas e ergueu os olhos para a sacada
do apartamento de Chester. A luz de um quarto estava acesa, e ele o identificou como o dormitório, podendo ver duas figuras se moverem por trás da cortina amarela.
A luz permaneceu por mais alguns minutos, e depois se apagou.
Quanto tempo ficou ali, olhando tristemente para o apartamento escuro, Stephen não poderia dizer. Por fim, deu as costas e afastou-se.


CAPÍTULO XIII

VOLTOU À PLACE CARABACEL antes da meia-noite. Através da dor surda que sentia na testa, sabia que deveria ir embora. Metodicamente, sem perturbar Jo-jo e Croc, ambos
adormecidos, reuniu os seus pertences na mochila. Amarrando as telas juntas, prendeu-as nas costas e, com um último olhar para os seus companheiros, saiu na sua
bicicleta. Dirigiu-se para o norte, pedalando velozmente na estrada plana que levava a St. Agustin, com a vaga intenção de pegar a route nationale que finalmente
o levaria a Auvergne. Sentia necessidade de estar com Peyrat - devia ter feito aquilo semanas antes. Mas sobretudo era premido pelo desejo de escapar, de obliterar
da memória aquelas últimas e intoleráveis semanas.
Quase pela manhã, desmontou, estendeu-se num espaço da charneca à beira da estrada e fechou os olhos. Não pôde dormir, mas, tendo descansado até que o sol despontara,
pôs-se novamente em marcha. E agora via pela sinalização que não estava na grande route, mas numa estrada secundária que corria entre as gargantas rochosas do Var
e subia serpeando para Touet e Colmars. Todavia, não quis desandar caminho. Todo o dia e no seguinte trabalhou nos pedais, mais do que a sua força lhe permitia,
no esforço para esquecer. Em Entrevaux, entrou erradamente numa estrada secundária, mais inclinada, que coleava para as montanhas através de um pinheiral. A pavimentação
era má, o progresso ali era mais difícil, havia um opressivo fragor de água se despejando
à medida que a torrente estrondeava sobre o seu leito de pedregulhos; contudo, o estranho medo de voltar mantinha-o tocando para a frente, comendo às pressas quando
podia, dormindo no chão nu, atrás de montes de feno, em estábulos desertos, com a sua capa dobrada como travesseiro. Uma aversão mórbida a qualquer contato humano
afastava-o das mais humildes estalagens.
O tempo piorara, e entre as colinas era úmido e nevoento. Na manhã de domingo, chegou a Annot, uma cidadezinha agrícola construída num planalto, com um vento frio
soprando dos Alpes. Sabia que era domingo pelo repicar dos sinos da igreja e pelo desfile de habitantes sérios, vestidos de preto, que olhavam para ele com desconfiança.
Doente de fadiga e esgotado como estava, essa hostilidade todavia o atingiu, e embora tivesse uma desesperada necessidade de tomar um café quente e pensasse em se
deter ali, não o fez, baixando a cabeça sobre o guidom e pedalando para fora da cidade. A chuva começou a cair. Ele foi obrigado a descansar. Ao desmontar, quase
caiu da sua máquina. Acocorado debaixo de uma cerca gotejante, comendo os restos de comida fria que tinha comprado na noite anterior, sentia-se inteiramente sem
lar, sem um lugar ou abrigo, irreal e desligado como um fantasma.
A chuva não parou, mas ele continuou, agora mais devagar do que antes e com uma falta de fôlego que o obrigava a desmontar nos aclives mais fortes. Seu nariz começou
a sangrar intermitentemente, e embora atribuísse o fato à altitude e lhe desse pouca atenção, era uma sensação esquisita o sangue a refluir quente sobre a sua garganta.
Cerca do meio-dia, começou a sentir-se extremamente indisposto, e, através do entorpecimento que o oprimia, penetrou-lhe um raio de razão. Nunca chegaria a Auvergne
daquela maneira, era loucura continuar; devia procurar uma estrada de ferro ou algum centro próximo sem demora. Desdobrando o seu mapa em grande escala, e protegendo-se
com a sua capa gotejante, viu que, atalhando para oeste, por Barréme, podia alcançar o entroncamento de Digne, não mais que 35 quilómetros além. Digne talvez não
fosse grande, mas ficava numa planície, o que lhe permitiria escapar destas montanhas impossíveis.
Tomou pelo atalho. Era escabroso, mais difícil do que antes, coberto de um cascalho áspero que fazia os seus pneus saltarem e derraparem. Tinha menos força do que
antes nos aclives, e com o esforço adicional seu nariz recomeçou a sangrar. O céu lá adiante era baixo e encoberto, a chuva aumentava rapidamente, e dali a pouco
um dilúvio desabou sobre ele. Ensopado, na escuridão que descia rapidamente, alarmou-se, acendeu com dificuldade a sua pequena lanterna de carbureto e novamente
consultou o mapa.
Não tinha examinado a folha por mais de um minuto, quando um gemido se lhe escapou. Oh, Deus... que tolo... que idiota cego e insensato. Acompanhando com o dedo,
viu que estava no caminho errado. Lá atrás, em
St. André, a curva devia ter sido para a esquerda, não para a direita. E agora examinou o sinal, route acidentés, fort montée, isolée - encontrava-se num beco sem
saída que levava direto acima, ao Col d'Allos.
Um ataque de nervos, quase de pânico, sacudiu-o. Aproximou mais o mapa. Devia haver alguma espécie de aldeia na vizinhança. Então, com alívio, decifrou o nome de
St. Jérõme. Era aparentemente um povoado, mas por sorte estava cercado por uma Cruz de Lorena vermelha, indicando a presença de uma hospedaria arrolada pelo Touring
Club da França como oferecendo acomodações para ciclistas e onde ao menos poderia achar abrigo para a noite. Se não estava completamente perdido, devia alcançá-la
em uma hora.
Pedalou, curvado, contra o vento. O gosto de sal na sua boca aumentou, e passando o lenço nos lábios sentiu que estavam inchados e flácidos. Suas pernas não mais
lhe pertenciam, um martelo batia na sua cabeça, mas quando sentiu que não podia avançar mais, viu tremeluzir, no socavão adiante, um grupo de luzes.
Ficaram mais próximas: uma grande construção cercada por casas menores tomava formas indistintamente, lá embaixo. Completamente esgotado, deixou a sua bicicleta
rodar e subiu aos tropeções a trilha para a primeira casa
- parecia a choupana de um trabalhador. Suas batidas permaneceram sem resposta por um interminável intervalo, e então a porta foi aberta por uma criancinha que ficou
olhando para ele e depois voltou-se e correu. Ele entrou num corredor, ouvindo vozes numa peça dos fundos da casa. Respirava irregularmente, e embora estivesse ensopado,
morria de sede. Devem receber-me, pensou, vou adoecer... aliás, já estou desgraçadamente doente.
Um trabalhador de camisa azul dirigiu-se para ele, seguido de uma mulher com uma lâmpada Argand e, atrás dela, a criança. Ele viu os seus rostos sobressaltados através
do nevoeiro que passava.
- Sinto muito. - com terrível dificuldade, como se do fundo de um poço, pronunciava as palavras. - Perdi o caminho. Podem me receber?
- Mas monsieur...
- Por favor... posso me sentar?... uma bebida.
Antes que ele pudesse falar outra vez, o homem chegou mais perto, sacudindo excitadamente o braço.
- Não aqui - disse. - O senhor deve continuar.
- Deixe-me ficar. - Novamente o terrível problema da articulação. Não posso continuar.
- Não, não... mais adiante.. . não aqui.
O homem segurou-o pelo ombro e levou-o para fora da casa. Julgando que estava sendo enxotado para a estrada, incapaz de resistir ou sequer protestar, tomado de uma
desesperança final, sentiu uma ardência nos olhos, e então, ao chegarem ao portão, percebeu que o homem não o tinha soltado,
mas o ajudava, amparando-o por um corredor rua abaixo. Na verdade, ao avançarem, ele murmurou algumas palavras de encorajamento:
- Está vendo? Não é longe... estamos quase lá.
No fim, alcançaram a grande construção. Havia árvores de espessa folhagem em ambos os lados. O homem puxou a corda de uma sineta e, após um momento, abriu-se uma
grade na porta tacheada. Seguiu-se uma breve conversação e depois ele foi admitido num pequeno saguão caiado, com um chão de pedra nua e bancos lustrosos junto às
paredes.
À beira do colapso, Stephen olhou em torno, tonto. Tudo estava fora de foco. Todas as linhas do saguão corriam juntas e depois se afastavam, como círculos num lago.
Até o porteiro que o deixara entrar parecia fantasticamente indistinto, vestido num paletó comprido e com capuz que lhe dava um aspecto de mulher. Outro homem, ou
mulher, tinha aparecido. Então, imediatamente, todas as linhas se dissolveram. O trabalhador da choupana, voltando-se para esse recém-chegado, retirou atabalhoadamente
o braço que o amparava. Stephen caiu de rosto para baixo, com o embrulho de telas molhadas ainda amarrado às costas.


CAPÍTULO XIV

O SOL DA MANHÃ, incidindo na única e funda janela à cabeceira da tarimba armada sobre cavaletes, acordou-o. Ele deixou-se ficar passivamente, o olhar percorrendo
os poucos objetos da pequena ermida da qual, durante as últimas três semanas, tinha se tornado íntimo e familiar - a solitária cadeira de assento empalhado, o armário
provençal, o genuflexório de madeira num canto, o crucifixo preto na parede branca. Especulativamente, examinou a sua mão, levantando-a contra a luz, achando os
dedos ainda brancos, mas talvez menos translúcidos do que na véspera. Esse era um teste que ele fazia todas as manhãs. Passos leves, rangendo no corredor coberto
de areia, fizeram que ele, sem querer, movesse o corpo e voltasse a cabeça. Estava olhando para a porta quando ela se abriu e o enfermeiro entrou, trazendo o seu
desjejum numa bandeja.
- Como dormiu?
- Muito bem.
- A nossa cantoria não o perturbou?
- Não, agora já estou acostumado.
- bom - disse Dom Arthaud, depondo a bandeja.
Tirou um termómetro dos recessos do seu hábito branco, sacudiu-o e, com um sorriso, colocou-o entre os lábios de Stephen. - Isto não é mais necessário. Mas como
você vai se levantar hoje, queremos ter certeza.
Era um homem de uns 50 anos, de estatura média, vigoroso, ombros quadrados, com uma cara grande e agradável, ligeiramente azulada em torno do queixo, e inteligente,
de olhos castanhos com óculos, a cabeça raspada e tonsurada; usava sandálias de tiras nos pés nus. Ao cabo de um minuto, retirou o termómetro, leu-o e, com um aceno
tranquilizador, puxou a cadeira com a bandeja para junto da cama.
- Não esqueça o seu remédio.
Depois de tomar, com um canudinho de vidro, o líquido escuro de sabor metálico, Stephen começou o seu desjejum - uma caneca de café au lait, manteiga fresca numa
tigela de barro, pão cortado em fatias e frutas. O café com leite estava quente, cheirando a chicória. Depois de molhar o pão na caneca, Stephen olhou compungido
para o que estava em pé - ele nunca sentava-se na extremidade da cama.
- Por que não come comigo? Aqui há mais do que suficiente para dois.
- De modo nenhum. Fazemos a nossa refeição ao meio-dia.
- Mas... isto está muito gostoso.
O enfermeiro sorriu alegremente.
- Sim... a nossa comida é perfeitamente horrível. Mas estamos habituados a ela. E depois, não estivemos doentes.
Stephen apanhou outra fatia de pão.
- Isso é que eu estava querendo lhe perguntar. Que foi exatamente que eu tive? O senhor nunca disse.
- Você teve uma inflamação dos pulmões... por exposição à intempérie. Além disso, fez um esforço demasiado grande. Como resultado, teve a complicação de uma hemorragia.
Muito grave.
- Pensei que o sangue fosse do nariz.
- Não, era dos pulmões. - Fez uma pausa, olhando por cima dos óculos de aros metálicos. - Já teve algo parecido antes?
Stephen refletiu um momento, depois abanou a cabeça.
- Tive um resfriado há alguns meses. Bronquite, imagino. Mas podia ter sido por causa disso.
O enfermeiro baixou os olhos.
- Eu não poderia responder. Não sou médico.
- Mas o senhor me salvou desta muito bem.
- Com a ajuda de Deus.
- E muita habilidade. Não acredito que o senhor não seja qualificado.
- Estudei medicina em Lions com o Professor Rolland. No último ano, assim como você foi chamado para ser um pintor, recebi o chamado para ser um monge.
- Muito afortunadamente para mim.
Dom Arthaud inclinou a cabeça, e então, quando Stephen terminou, apanhou a bandeja. Na porta, fez uma pausa.
- Não se levante ainda. Esta manhã, o Reverendo Prior vem visitá-lo. Quando ele saiu, Stephen recostou-se, com as mãos cruzadas atrás da cabeça. Ainda se sentia
atrozmente fraco. Contudo, quase já não tinha tosse e nem sentia mais aquela pontada aguda do lado. Como era bom o sol no seu rosto - a atividade da convalescença
começava. Não se preocupava com a sua situação. A persistência do enfermeiro em tirar-lhe a temperatura de manhã e à noite não era palpavelmente mais do que uma
rotina. Na verdade, imaginava, calmamente, se a sua doença, com aquele estranho depauperamento, não teria sido peculiarmente oportuno. Já ouvira falar de sangria
como remédio para a febre. Pelo menos sentia-se curado daquelas dores cruciantes que tão intoleravelmente o atormentavam.
Olhando para trás, admirava-se de que, durante todos aqueles meses, tivesse permanecido naquele estado de tamanha sujeição, aniquilado por uma única palavra, arrastando-se
pelo favor de Emmy. A simples ideia daquilo fazia-o estremecer. Rejubilava-se em ser ele mesmo outra vez, e jurou que jamais se submeteria a semelhante escravidão
- na verdade, foi mais longe, e fez um voto solene de que no futuro nenhuma mulher participaria da sua vida. Somente o seu trabalho o interessaria agora, e a ele
se aplicaria com rigorosa autodisciplina.
Às 11 horas chegou o seu visitante. O Prior, uma figura alta e imponente, na sua vestimenta branca encapuzada, sentou-se tranquilamente na cadeira e estudou Stephen
com grave reflexão.
- Então, afinal vai sair da sua cama, meu filho. Alegro-me.
- E eu estou agradecido - murmurou Stephen. - Foi sorte minha encontrar a sua cruz no meu mapa.
- É verdade que temos uma cruz. Mas não figuramos no mapa - disse o Prior com um leve sorriso. - Aquela marca é para uma hospedaria de ciclistas no vale vizinho.
Você se extraviou no caminho, meu filho. Ou, desde que a Providência o trouxe aqui, poderíamos dizer que o achou?
Uma esquisita inflexão na voz do Prior trouxe uma ligeira cor ao rosto pálido de Stephen. Teria deixado escapar alguma coisa a seu respeito nos primeiros dias da
doença?
- De qualquer maneira - respondeu ele - já era tempo de eu ficar bom. Dei-lhe um grande trabalho. Os senhores devem estar querendo se livrar de mim.
- Ao contrário, você é muito bem-vindo aqui. Sofreu um grande abalo, e Dom Arthaud acha que antes de várias semanas não estará apto para viajar.
- Mas... receio que não possa pagar.
- Nós lhe pedimos o seu dinheiro, meu filho? Aliás, quem o esperaria de um artista que luta? Fique conosco por uns tempos. Sente-se ao sol no jardim. Quando estiver
mais forte, a vida terá um aspecto diferente. Será capaz de enfrentar melhor o mundo.
O Prior pousou delicadamente a mão no braço de Stephen, e então levantou-se e saiu.
Stephen teve que se esforçar para reprimir as lágrimas dos olhos. Levantou-se. Suas roupas, lavadas e cuidadosamente dobradas, estavam no armário, com os seus outros
pertences. O dinheiro, cerca de 30 francos, achava-se numa pilha precisa ao lado do seu relógio, que estava funcionando; ele adivinhou que lhe tinham dado corda
todos os dias. Depois de se vestir, deixou o quarto e andou ao longo de um corredor estranho, lajeado de pedra, que o levou ao jardim, nos fundos.
Não era um recinto grande, umas poucas trilhas em torno de roseiras separadas, que levavam a uma gruta com uma estátua no fundo. Um muro de andebol quebrava o contorno
da cerca em volta. Além, alguns campos. Por suas conversações com Dom Arthaud, Stephen soubera que, graças à doação de uma pequena casa de campo, a comunidade, devotada
à instrução de cerca de 20 noviços, tinha sido recentemente estabelecida e estava crescendo unicamente devido aos esforços dos próprios monges, que haviam construído
com as suas mãos a pequena capela contígua à antiga mansão. Podia vê-la agora, branca e um tanto grosseira, aprumando-se contra o céu lanoso.
Após ter andado pelas trilhas, foi obrigado a descansar num dos bancos que flanqueavam a quadra de andebol. Um velho, com o hábito castanho de irmão leigo, estava
ordenhando uma vaca no pasto. Dali a pouco, começou um ofício na capela, e o cantochão, carregado pela brisa suave, era mais do que ele podia suportar. Levantou-se
e arrastou-se para o seu quarto.
Lá, encontrou uma carta, colocada bem à vista no peitoril da janela. Uma semana antes, sentindo-se terrivelmente só, soerguera-se no travesseiro e garatujara umas
linhas ao morador do nº 15 da Rue Castel, pedindo-lhe que remetesse qualquer correspondência que chegasse para ele àquele endereço. Este era, presumivelmente, o
resultado. Rasgou o envelope. Era de Stillwater, uma breve nota escrita havia dois meses.
CARO STEPHEN
Não sei se esta lhe chegará às mãos. Se chegar, é para informá-lo da morte de Lady Broughton, em outubro. Isso não foi inesperado. Algumas semanas antes, o noivado
de Claire e Geoffrey fora anunciado. Vão casar-se muito em breve. Não há outras notícias de importância para lhe dar, a não ser que papai
continua muito triste com a sua ausência. Suplico-lhe que volte e aceite suas responsabilidades como filho obediente.
Sua, Caroline.
Ainda com a carta na mão, Stephen sentou na cama. Em outros tempos, aquela notícia de casa não o teria afetado tão profundamente. Sabia da doença de Lady Broughton,
e seu amor por Claire nunca tinha sido mais que uma afeição fraternal. Contudo, aqui, neste ambiente estranho e remoto, abatido pela doença, a morte de uma e o próximo
casamento de outra - com Geoffrey, entre todos os homens! - parecia aumentar a sua sensação de exílio, cortá-lo mais fundamente de toda aquela vida agradável que
normalmente ainda seria sua. O tom da carta de Caroline, breve, cheio de calada amargura e implícitas censuras pelo que poderia ter sido, fazia-o mais do que nunca
sentir-se uma criatura à parte, cuja própria natureza o punha em conflito com a família, a pátria e a sociedade.
Com o decorrer das semanas, ele ficava mais forte. A região em torno, coberta de pinheiros baixos, sem beleza e sem qualidade, dava-lhe pouco incentivo para sair
do recinto. Fez amizade com os dois filhos de Pierre, o trabalhador da choupana que o trouxera ao mosteiro, levava-os encarapitados no selim da sua bicicleta. Ajudava
o velho Irmão Ludovic na horta, jogava andebol com os noviços na hora do recreio. Eram um alegre grupo de jovens, recrutados principalmente em boas casas burguesas
em Garonde e nas cidades vizinhas. Talvez por ele ser um estranho, e de uma raça diferente, eles se davam ao trabalho de lhe dedicar pequenas atenções matizadas
de um espírito de proselitismo que, embora o deixasse insensível, comovia-o e divertia-o. Seus corações estavam naquela nova pequena comunidade, e quando não mergulhados
em oração, entregavam-se sem poupar-se ao duro trabalho manual nos seus esforços para melhorá-la.
Um dia, no jogo de andebol, fizeram-lhe uma observação, meio rindo, meio sérios.
- Monsieur Desmonde... Uma vez que o senhor é um artista, por que não pinta um belo quadro para a nossa igreja?
Stephen, com a atenção presa, olhou para o proponente.
- E por que não? - respondeu com um ar sério.
A ideia, que não lhe ocorrera, pareceu-lhe um admirável meio de expressar a sua gratidão, de dar alguma retribuição tangível pela bondade que tinha recebido. Além
disso, a vadiagem forçada começara a pesar-lhe.
Nessa mesma tarde, conversou com seu amigo Dom Arthaud, que recebeu a sugestão calorosamente e prometeu falar com o Prior. A princípio, o Prior hesitou. A capela,
embora reconhecidamente inacabada por dentro,
era o produto de um prolongado e árduo esforço e cara ao seu coração. Seria sensato colocar aquela prezada e duramente ganha possessão nas mãos de um pintor desconhecido,
cujas poucas telas, embora estranhamente compulsivas, não davam indicação de competência ortodoxa? No fim, a fé, que era o sustentáculo da sua existência, moveu-o
a uma decisão. Mandou chamar Stephen.
- Diga-me, meu filho, o que pretende fazer.
- Gostaria de pintar um afresco acima do altar, na parede de fundo da abside.
- Tema religioso?
- Naturalmente. Pensei na Transfiguração. Iluminaria toda a capela.
- Você está certo de que poderia produzir algo que aprovássemos?
- Eu tentaria. Não tenho tintas nem pincéis bastante largos. O senhor teria que arranjá-los para mim. Teria que confiar em mim. Se o fizer, prometo dar o melhor
de mim.
Na manhã seguinte, dois dos padres partiram para Garonde, voltando à tarde com vários pacotes embrulhados em papel pardo. Nesse meio tempo, os noviços tinham armado
um andaime atrás do altar. Cedo, no dia seguinte, com aquele alvoroço que sempre sentia ao começar um novo trabalho, Stephen pegou o seu pincel.
Contudo, o seu estado de espírito era muito insólito. De corpo relaxado, não de todo livre da lassidão da convalescença, parecia banhado de um fofo langor. Suas
emoções ainda eram instáveis, a umidade lhe vinha prontamente aos olhos. O ambiente da capela, a entonação dos monges, a sensação de estar separado do mundo induziam
nele emoções inteiramente alheias à sua natureza. Embora não dispusesse de modelos, o trabalho tomou corpo com uma surpreendente facilidade, para quem estava acostumado
a um esforço sobrehumano nas primeiras horas de criação. Já tinha esboçado a figura central do Senhor, vestido de trajes brancos, radiante com uma nuvem de luz,
e começava a traçar as feições de Moisés e Elias.
Ao progredir com tamanha facilidade, experimentou esquisitos momentos de desconfiança, imaginando-se, em vez de projetar as suas próprias ideias, não estaria reproduzindo
inconscientemente uma compósita de primitivos pintores religiosos. Aplicadas em têmpera, as suas cores, usualmente tão duras, eram macias e lisas, suas formas pareciam
perturbadoramente convencionais. No entanto, contra essas dúvidas, crescia a aprovação da comunidade.
No começo, fora olhado com ansiedade, talvez até com desconfiança. Mas logo isso deu lugar a uma franca admiração. Às vezes, ao voltar-se no andaime para limpar
os pincéis, observava nos olhos de algum noviço que tinha vindo ostensivamente para rezar, mas na verdade para incorrer no pecado da distração, um olhar de perfeito
transe. Aquilo não era suficientemente tranquilizador? E, afinal de contas, ele não se comprometera a agradar?
O afresco, ocupando todo o espaço acima dos retábulos, ficou terminado em três semanas, e quando o andaime foi retirado, toda a comunidade reunida olhava-o com aclamação.
- Meu filho - disse o Prior a Stephen - agora sei que a sua vinda aqui foi providencial. Deu-nos um memento da sua estada que durará muito além da existência de
todos nós. Agora somos nós quem lhe devemos muito. - E continuou: - Amanhã celebraremos a Missa Solene para consagrar a sua obra. Embora não seja membro da nossa
fé, espero que nos agrade com a sua presença.
Na manhã seguinte, o altar estava enfeitado de flores, chamejante de velas. O Superior, em paramentos brancos, assistido por Dom Arthaud, cantou a Missa, enquanto
o coro entoava as respostas. Para Stephen, sentado na galeria, a pintura, brilhando à luz dos círios, tornada mística por uma nuvem de incenso, parecia uma esplêndida
realização. Nunca antes tivera tamanho sucesso.
Um repasto especial foi servido após a cerimónia, com um vinho da região de tal vigor que Stephen deu um passeio à aldeia para clarear a cabeça.
À tarde, quando voltava, Dom Arthaud o recebeu à porta com uma curiosa expressão.
- Há um visitante que deseja vê-lo. Um cavalheiro que diz ter vindo para levá-lo de volta a Paris.
Stephen entrou no seu quarto. Lá, reclinado na cama, usando chapéu e paletó, e soprando furiosamente no seu cachimbo, estava Peyrat. Pulou imediatamente quando Stephen
entrou e beijou-o em ambas as faces.
- Que é que andou fazendo? Não uma, mas uma dúzia de vezes procurei alcançá-lo. Agora, por casualidade, consegui o seu endereço na Rue Chancel. Por que está enterrado
aqui?
- Estive pintando - sorriu Stephen, ainda vibrando com a inesperada presença de Peyrat.
- Sorte ingrata - disse Peyrat, com fingida braveza. - Enquanto eu esperava, me arrastaram para a igreja. Que coisa terrível essa que você fez, cher ami. Oh, que
miserável cópia de del Sarto. Que terrível refundição de Luini. Embora eles gostem e vão se ajoelhar diante daquela pintura durante séculos, é indesculpavelmente
chocante, e para você, especialmente neste momento, uma desgraça.
- Por que neste momento? - perguntou Stephen, um tanto desconcertado.
- Por causa do anúncio feito no mês passado, e que me fez caçá-lo por toda a França.
- Que diabo está querendo dizer?
- Um anúncio - continuou Peyrat imperturbável, rolando as palavras
na língua como se gostasse do seu sabor - que lhe colocava uma medalha no peito, 1.500 francos no bolso e ainda nos permitirá, espero, fazer uma viagem juntos à
Espanha.
Subitamente atirou os braços em torno de Stephen e mais uma vez o abraçou.
- Não se importe com a sua doença, ou aquele medonho Moisés e Elias. A sua Circe ganhou o Prix de Luxembourg.


CONTINUA

SEGUNDA PARTE

CAPÍTULO I

DOVER, NA CHUVA, era uma triste porta dos fundos para fugir da Inglaterra. Quando o navio de carreira deixou o porto sujo, as ruas enlameadas, os edifícios amarelos
da encosta, os rochedos de um branco encardido, tudo mergulhou igualmente num dilúvio cinzento.
Na terceira classe, o espaço limitado estava abarrotado de passageiros, e Stephen, deixando aquele ar pesado de umidade e ruidosa camaradagem, voltou para o convés
molhado e atravancado de cabos. Ficou solitário na popa, abrigando-se, o melhor que podia, atrás da lona que cobria um guincho, com os olhos na costa amorfa, os
pensamentos tão equilibrados entre a amargura e a tristeza que fixavam nele uma atitude de completa imobilidade.
Dali a pouco foi sentar-se num braço do guincho, indiferente ao balanço do navio, ao vento e aos esguichos que assobiavam junto daquela ligeira proteção; tirou do
bolso o seu bloco de esboços. Era um movimento reflexo, um grito do coração. Contudo, uma vez que o seu lápis começou a andar pelas páginas agitadas na beira pela
ventania, perdeu-se, desenhando, com grande rapidez, fases do mar agitado, ondas estranhas e pressagas, a que ele insuflava uma qualidade de vida, vendo nos seus
contornos rotos, no laço intrincado das suas cristas, selvagens rostos humanos, cabeças atormentadas e torsos retorcidos, figuras de homens e de monstros, de cabelos
escorrendo e membros contraídos, tudo perdido e arrastado pela invencível força do mar.
Foi talvez uma espécie de loucura, uma vertigem, que o deixou amolecido e exausto. Tiritava quando o vapor diminuiu a sua marcha arfante para entrar cautelosamente
nos braços do quebra-mar de Calis, e, consciente do seu rosto gotejante e roupas ensopadas, guardou o bloco no bolso com um ar furtivo. Cabos eram lançados, pranchas
de desembarque empurradas, a douane era rapidamente passada. Mas algum ligeiro acidente na linha tinha atrasado o trem para Paris, que ainda não chegara.
Stephen tiritava novamente, batendo os pés sobre a plataforma a fim de restabelecer a circulação. Embora a chuva fosse menos impiedosa em terra, o vento, enfiando-se
pela curva dos trilhos, parecia mais violento, mais cortante. A maioria dos seus companheiros de viagem estava aproveitando o atraso para um almoço à la carte no
restaurante da estação. Mas, diante de um
futuro de completa incerteza, um exame mais detido do estado das suas finanças absteve-se desse luxo. Tinha, para ser preciso, 5 libras e 6 xelins, tudo que lhe
restava das 10 libras que trazia consigo quando chegara a Stillwater.
Por fim, o trem entrou resfolegando; após várias conferências e muita gesticulação, apitos agudos, jatos de vapor, e as notas melodiosas de uma trompa, a marcha
foi invertida e o vapor esguichou novamente. Para Stephen, encolhido no canto de um compartimento ventoso, foi uma viagem miserável. Tiritava frequentemente, sabia
que tinha apanhado um resfriado, e acusava-se de ter sido um tolo.
Na Gare du Nord hesitou, e então, aceitando o risco, e não sem uma certa recordação melancólica da sua prévia entrada na cidade de coração leve, tomou o metro para
a Rue Gastei. No seu presente estado de espírito ansiava, acima de tudo, pela simplicidade e firme amizade de Peyrat. Mas o novo inquilino do apartamento, incompreensivo
e desconfiado, apareceu na porta, respondendo que não havia cartas nem recados... acreditava que Monsieur Peyrat estaria no Puy de Dome, em Auvergne, até o fim do
ano, e além disso não sabia mais nada.
Os passos seguintes de Stephen levaram-no ao estúdio de Glyn. Estava fechado. Do mesmo modo, o pavilhão dos Lamberts, com as janelas fechadas, foi uma nova decepção.
Stephen voltou para o alojamento de Chester. Embora não tivesse acertado exatamente o montante da dívida, sabia que Harry, com seus repetidos pedidos de empréstimo,
devia-lhe pelo menos umas 30 libras, soma que agora adquiria uma importância muito maior do que antes. Mas também aquele quarto estava fechado, aliás, trancado com
um cadeado. Todavia, ao descer as escadas, foi reconhecido pelo concierge e obteve dele o atual endereço de Chester, enviado num cartão-postal recebido dois dias
antes: Hotel du Lion d'Or, Netiers, Normandia.
Animado, Stephen entrou no primeiro bureau de poste e passou um telegrama, explicando a sua situação e pedindo que Chester lhe mandasse por cheque telegráfico, se
não todo, ao menos parte do dinheiro que lhe devia, aos cuidados de Adolf Bisque na Rue Castel. Quando a moça de blusa de alpaca atrás do guichê terminou, a tinta,
uma soma complicada, um processo que a ocupou durante alguns minutos, Stephen pagou e dirigiu-se para o DuvaPs, onde pediu chocolate quente e um brioche.
Depois dessa ligeira refeição, como a chuva caísse mais forte e as sarjetas transbordassem, ele decidiu encontrar, o mais depressa possível, um alojamento para a
noite. Por causa da sua conveniência, e não na esperança de encontrar conforto, ficou num hotel barato das proximidades, a Pension de
l'Ouest, diante da qual passara tantas vezes a caminho do estúdio de Glyn.
Alcançado por escadas sem passadeira, seu quarto não era mais que um estreito, cubículo, mas era seco, e a cama, embora os lençóis estivessem encardidos,
tinha uma ampla provisão de cobertores estampados de azul - aqueles cobertores grosseiros usados pelos recrutas durante as manobras do Exército e vendidos depois
pelos contratantes do governo. Após alguns tremores iniciais, aqueceu-se e dormiu pesadamente. Na realidade, ao acordar na manhã seguinte sentia-se melhor, embora
não se surpreendesse com a tosse, agora piorando. Tomou café com um pãozinho, outra vez no DuvaTs, às 11 horas, e dirigiu-se para a loja de Monsieur Bisque.
Ali o esperava uma agradável surpresa. O pasteleiro recebeu-o cordialmente, com a sua cara de lua cheia enrugada de sorrisos, e, tendo repreendido Stephen por não
o ter visitado no dia anterior, apresentou com modos de prestidigitador o telegrama de resposta de Chester. Este, embora não trouxesse dinheiro, era de natureza
a animar o seu destinatário.
DELICIADO SEU TELEGRAMA. VENHA PARA CÁ. TEMPO E HOTEL EXCELENTES. BELO LUGAR PARA PINTAR. ABRAÇOS
HARRY
A perspectiva aberta por aquele amistoso convite, a ideia de estar com uma paleta e pincéis, diante de um cavalete, na Normandia, fazia brilhar os olhos de Stephen.
Bisque tinha um guia que, embora de páginas esfarrapadas e um tanto antigas, parecia provar que o rapide Granville, o trem mais ou menos direto, já tinha partido
- às 10 horas, para ser exato, daquela manhã. Stephen decidiu adiar a viagem até o dia seguinte. Passou à tarde na loja de Napoleon Campo, onde, além de receber
o cavalete e equipamento lá depositados, comprou novos tubos de tinta e algumas telas. Pagou a metade, 50 francos, e prometeu mandar o restante quando chegasse a
Netiers.
A manhã seguinte trouxe um límpido céu azul, e Stephen saiu com os seus pertences para a estação de Montparnasse. O rapide na Plataforma 2 não estava muito cheio
e ele conseguiu, sem dificuldade, um compartimento vazio na parte dianteira do vagão. Ao partirem, não podia afirmar que se sentia bem, pois experimentava uma sensação
de abafamento, com uma pontada no lado direito. Apesar disso, depois que o trem furou o seu caminho através dos túneis e cortes murados e escuros que davam saída
da cidade, perdeu a lassidão, olhando a paisagem em desfilada: vastos campos de restolho com poças de água da chuva, flanqueados por longas fileiras de olmos - sentinelas
intermináveis; uma agulha distante, delgada, graciosa; parelhas de grandes cavalos, com corvos assistentes, arrastando o arado; velhas construções rurais, de telhas
ocres, as empenas salpicadas de anúncios - Byrrh, Cinzano, Dubonnet.
Ao meio-dia, comeu uma maçã e uma barra de chocolate. Gradualmente, a configuração do terreno havia se alterado. Lutando contra a sonolência, ele
notou as azinhagas ondulantes e pequenos pomares cercados, um bando de gansos em lenta procissão para um lago lodoso, seguido de uma menina de pernas nuas com uma
vara de aveleira, um renque de salgueiros podados cercemente, e depois uma dama idosa, de coifa branca, tangendo uma vaca pela relva da beira da estrada, parando
de quando em vez para tricotar. Até a natureza da bebida tinha mudado. Attendez, exclamavam os anúncios, buvez le cidre moissoné!
Cerca de três horas, o trem alcançou o topo de um longo aclive e entrou na pequena estação de Netiers. Apressadamente, Stephen reuniu as suas coisas e pulou do alto
estribo. Uma rápida inspeção mostrou que Harry não estava lá para recebê-lo. Raciocinando que Chester podia não ter calculado bem a hora da sua chegada, Stephen
começou a andar para a cidade, que se podia avistar mais abaixo da colina, coisa de um quilómetro. A expectativa, ao se aproximar, aumentava a sua ansiedade - passou
um muro valado com fortificações, entrou nas ruas tortuosas, de paralelepípedos, tão estreitos que as casas de pedra cinzenta, muito inclinadas, pareciam estar acima
da sua cabeça. E então, no centro da praça do mercado, em frente à fachada de terracota desbotada do antigo hotel de ville, discerniu a tabuleta dourada do Lion
d'Or.
A estalagem era maciça, solidamente confortável, de alta classe. Stephen percebeu isso de relance, ao se dirigir para o balcão de recepção situado no vão de uma
escada de carvalho.
- Sim, monsieur!
- Meu nome é Desmonde. Tenha a bondade de dizer ao Sr. Chester que acabo de chegar.
Uma pausa.
- Está perguntando por Monsieur Chester?
- Sim. Ele me espera.
O empregado, um rapaz de ombros altos e cabeça rapada, estudou Stephen por um momento e depois disse:
- Tenha a bondade de aguardar, cavalheiro.
Desapareceu por trás da cortina que fechava o fundo do bureau; então, após um breve intervalo, voltou com um homem mais velho, uma figura sólida, de pescoço grosso,
vestido com a roupa listrada da profissão.
- O senhor está procurando Monsieur Chester Harry? O tom, embora cortês, tinha uma qualidade intimidante.
- Sim, por quê? Sou amigo dele. Ele não está hospedado aqui? Uma pausa gélida.
- Ele estava residindo aqui, monsieur. Até ontem à tarde, quando apresentamos a sua conta. Desde esse momento não vimos mais o seu famoso Monsieur Chester.
Stephen olhou para o proprietário, estupefato. Pois não viera por convite expresso de Harry, gastando o seu último soldo na passagem de trem? E de súbito lhe veio
uma ideia, contundente como um golpe. Chester, mais uma vez em apuros financeiros, convidara-o a vir somente na esperança de pedir-lhe mais uma quantia emprestada.
- Se monsieur é realmente Monsieur Desmonde - o sarcasmo era cortante - eis aqui uma carta que seu amigo lhe deixou.
MEU VELHO,
Eles podem não lhe entregar esta. Se entregarem, saberá que, com muito pesar, fui obrigado, encore, a cair fora. Pensei que podíamos resolver o caso juntos - baseados
no princípio de que duas cabeças pensam melhor do que uma - mas o departamento de contabilidade daqui estava um passo à minha frente. Provavelmente vou filar minha
viagem para o Sul, ficar um tempo em Nice, tentar a sorte nas mesas: De qualquer modo, eu com certeza o verei mais cedo ou mais tarde... Sinto muitíssimo e todas
essas coisas... mas quando o diabo aperta...
Seu,
HARRY
P.S. Nenhuma mulher decente na cidade. Mas não deixe de provar a sidra local. É excelente.
Stephen amarrotou o bilhete, escrito a lápis e às pressas, entre os dedos tensos. Sabia que Chester não merecia confiança, mas agora, por baixo do encanto, da alegria,
da amizade efusiva, sentia o âmago do seu total egoísmo.
O estalajadeiro e seu empregado olhavam para ele por detrás do balcão com manifesto desprezo.
- Naturalmente monsieur compreende que não temos acomodações para o senhor nesta casa.
- Compreendo perfeitamente - disse Stephen, girando nos calcanhares e saindo para a rua.


CAPÍTULO II

ALI, SEM DINHEIRO E SOZINHO, parado na praça do mercado de uma desconhecida cidade francesa, Stephen avaliava inquietamente a sua situação. Nunca antes estivera
sem dinheiro. Sua pensão, como o amanhecer, era algo
que tinha como certo, a consequência natural da sua posição na sociedade, do seu próprio direito de nascimento. Agora, com um amargo esgar nos lábios, percebia como
era poderosa a arma que seu pai tinha usado. No entanto, a sua renitência nata mantinha-lhe o prumo. Saiu imediatamente à procura de algum abrigo.
Isso, numa cidade sempre cheia de turistas, foi menos difícil do que ele temia, e antes do entardecer ele estava instalado num quartinho do alto, no fundo de um
pátio da Rue de la Cathédrale. Ao entregar a bagagem para a senhoria, uma velha digna, que não lhe pediu pagamento adiantado por ser de apenas 12 francos por semana
o aluguel, resolveu que, houvesse o que houvesse, estaria em condições de pagar-lhe antes que se passassem muitas horas. Tinha sabedoria suficiente para reconhecer
que, naquela localidade, não poderia conseguir uma subsistência imediata com sua arte. Sim, a sua educação, o seu curso universitário e grau de bacharel deviam certamente
capacitá-lo para alguma modesta posição na qual pudesse ganhar dinheiro suficiente para se manter em pé. E até mesmo o bastante para pagar a conta de Chester ainda
lhe doía a farpa final lançada pelo proprietário da estalagem - e voltar a Paris, encontrar-se lá com Peyrat, tendo uma boa quantia, antes do inverno. Se ao menos
estivesse menos indisposto! Aquela tosse, que desde a travessia do Canal lhe abalava o peito, era um grande incómodo. Mas um ferrenho desejo de experimentar-se levou-o
novamente ao centro da cidade.
Lá chegando, fez um exame perspectivo do logradouro principal, a Rue de la Republique. As lojas, embora pequenas, tinham, em sua maioria, um aspecto de sólida prosperidade
associado a uma ativa região agrícola. Pás, garfos, foices, baldes de zinco, grades de dentes vermelhos, tudo isso e mais estava exposto nas casas de ferragem; havia
guloseimas também - deliciosos petits fours e almôndegas doces, arranjados como buquês de noiva, enfeitavam a vitrine de uma pâtisserie, ao passo que na leiteria
da esquina se via um monte amarelo de manteiga da Normandia, ladeado por dois jarros de leite cheios até a borda.
Na frente de uma papelaria, viu uma caixa de vidro com alguns anúncios e avisos escritos à mão. Leu-os cuidadosamente e depois afastou-se. Ele não podia afinar pianos
nem remendar cadeiras de palhinha, não precisava da metade de uma vila à beira dos rochedos litorâneos de Granville. Mais abaixo da rua chegou à redação de um jornal
semanal, Courier de Netiers. Lá dentro, o número em circulação podia ser lido. Mas as suas magras colunas, devotadas principalmente às fases da lua, venda de gado
e cal, cobertura de vacas e éguas, horário das marés no Mont St. Michel, nada lhe ofereciam.
E agora? Era evidente que precisava de conselho. Obedecendo a um impulso, entrou na mairie e, escolhendo um funcionário de ar simpático, sondou-o discretamente sobre
as possibilidades de emprego na cidade. O jovem,
embora surpreso com semelhante indagação, mostrou-se inteligente e bem-intencionado. Pensou muito, e depois abanou lentamente a cabeça:
- É muito difícil... numa comunidade pequena como esta, as pessoas - sorriu, em desaprovação, ajeitou os punhos de papel - ... não são amáveis com estrangeiros.
Por mais uma hora, Stephen palmilhou a cidade sem sucesso. Quando caiu a noite, voltou, cansado e desanimado, ao seu alojamento. Revistando os bolsos, contou a soma
dos seus recursos: 1 franco e 50 soldos. À vista daquelas minguadas moedas na palma da sua mão, sentiu uma onda de orgulho. Não podia, não devia render-se.
No dia seguinte, na esperança de achar um trabalho manual, deu uma volta, a pé, pelas granjas das redondezas. Ao todo, devia ter andado uma distância de 20 quilómetros.
E em vão. Não havia escassez de mão-de-obra agrícola. Em vários lugares foi tomado por um vagabundo, e soltaram os cães contra ele. Um camponês caridoso, de garfo
em punho, fazendo a provisão anual de feno, pareceu hesitar, comovido talvez pela intensidade do pedido de Stephen, mas no fim prevaleceu a sólida cabeça normanda:
- Você não é muito forte, mon petit, pequeno... oh, muito pequeno. Mas, espere. - Chamou para a cozinha. - Jeanne, traga alguma coisa de comer para este rapaz.
Uma bonita mulher, de braços nus, vermelhos, saiu da porta dos fundos com o barulho dos seus tamancos. Dali a pouco, tendo examinado Stephen, trouxe-lhe um pedação
de torta de carne e uma caneca de sidra. Enquanto ele comia esse repasto, sentado num banquinho de ordenhar, na varanda, o granjeiro e a mulher, observando juntos,
discutiam em voz baixa, enquanto um meninozinho de guarda-pó preto espiava-o curiosamente por trás das saias da mSe. Stephen estava hirto de vergonha. Oh, meu Deus,
gemia ele consigo, sou exatamente como alguém de uma gravura de Cotman... cheguei realmente a isto! Mas a torta era boa, com um molho forte e gostoso, e a bebida
ácida lhe trouxe um novo ânimo para caminhar de volta a Netiers.
Escurecia quando chegou à Rue de la Cathédrale. E agora, embora mantido o ânimo muito bem durante todo o dia, um terrível abatimento o prostrava. A mortal estranheza
daquele quartinho apertado, cheirando a madeira velha, bolor e cânfora, estalando a cada passo que dava; a sensação de estar tão completamente só, enganado por Chester,
encurralado num futuro sem esperança; a suspeita, também, de que a sua senhoria começava a olhá-lo com dubiedade - tudo isso se acumulava para derrotá-lo. Sem querer,
atirou-se na cama e, voltando o rosto para a parede caiada, chorou como uma criança.
Esse acesso durou pouco, mas infelizmente tinha provocado a tosse. A noite inteira, ela o castigou severamente, desde que, na sua ansiedade para
não perturbar a casa, suprimia os espasmos e assim aumentava a sua frequência. Por fim, perto do amanhecer, com a cabeça embaixo das cobertas, caiu no sono.
Era tarde, quase 11 horas da manhã, quando acordou - primeiro para um breve momento de descansada alegria, depois para a sombria consciência da sua entalada. Levantou-se,
vestiu-se sem fazer a barba, e foi para a cidade. A agitação do espírito comunicava uma curiosa fraqueza às suas pernas. Estava andando sem rumo ou objetivo. Subitamente,
quando começava a atravessar pela segunda vez a praça do mercado, ouviu que alguém corria atrás dele. E então sentiu uma mão no ombro. Terrivelmente sobressaltado,
voltou-se. Era o funcionário da mairie.
- Desculpe-me, monsieur. - O moço interrompeu-se para respirar. Estive olhando o senhor durante toda a minha hora de almoço. Olhe, desde que foi embora andei fazendo
algumas perguntas para o senhor. E Madame Cruchot, que juntamente com o seu marido tem a sua épicerie ali - e apontou para o outro lado da rua - tem duas filhas
pequenas que ela quer que aprendam inglês. É possível que ela se agrade do senhor. Nesse caso, vale a pena tentar.
- Muito obrigado - gaguejou Stephen, emocionado. - Muitíssimo obrigado.
O jovem funcionário sorriu.
- Boa sorte. - Pronunciou as palavras entre os dentes, cuidadosamente, em inglês, e depois, como se satisfeito com sua proeza, apertou-lhe a mão, tirou o chapéu
e ficou observando-o atravessar apressadamente a rua.
A mercearia Cruchot, ocupando uma posição de destaque na praça, com duplas vitrines de vidro plano e uma brilhante tabuleta que dizia ALIMENTATION DE RENNES, dava
toda a indicação de ser um próspero estabelecimento, negociando com um grande e tentador sortimento de alimentos. Um constante fluxo de fregueses entrava e saía
pela porta, estreitada por presuntos pendurados, redes de limões, um cacho de banana e várias cestas de verduras escolhidas. Dentro, as prateleiras estavam cheias
dos generosos produtos da terra e do mar, com salsichas e fígado de ganso, sardinhas e enchovas, toucinho, azeite de oliva, queijo, frutas em conserva, conhaques
antigos também, vinhos e licores, café, especiarias, dobradinhas, pés de porco, e vidros e garrafas dispostos em pirâmides brilhantes no chão coberto de serragem.
Entrando, Stephen estacou menos por seu próprio nervosismo do que pelo barulho e movimento, gritos de pedidos, a movimentação de dois auxiliares de paletó branco:
uma moça normanda de ombros pesados e um homem coxo de olhar aborrecido.
Todavia, em pouco sentiu-se escolhido por uma voz de timbre penetrante.
- Que deseja, m'sieur?
Presidindo de uma mesinha, controlando o lufa-lufa, parecendo a dona pela amplidão do seu busto e ousadia do olho, uma mulher de cabelos amarelos, de uns 38 anos,
com a sua figura curva e bem coberta, pele lisa, orelhas rosadas suportando pesados brincos de ouro. Usava um vestido malva da última moda provinciana - com uma
aplicação de renda no decote - vários anéis e pulseiras, e um broche de camafeu.
- Perdoe-me - falou Stephen em voz baixa, aproximando-se. - Meu nome é Desmonde. Soube que a senhora talvez precise de um tutor inglês para as suas crianças.
A verificação de que ele não era um freguês afastara o sorriso maquinal dos lábios de Madame Cruchot; seus olhos apertaram-se na fria apreciação de alguém que, no
mercado, é capaz de avaliar, por um simples cabelo o peso e a qualidade de um porco cevado. Mas a palavra tutor, que ele por sorte tinha usado, lisonjeou-lhe a vaidade,
que predominava entre as muitas e fortes características que possuía, e que aliás era o verdadeiro motivo por trás da ideia de que as suas filhas deviam aprender
o idioma inglês. Também aquele jovem que tinha diante de si parecia simpático, "refinado" e tímido o bastante para lhe trazer algum problema.
- M'sieur pode me dizer quem é?
Muito francamente, Stephen lhe disse.
- Então m'sieur é estudante da universidade de Oxford. - Um lampejo iluminou o olho azul de porcelana de Madame Cruchot, mas no interesse da barganha foi rapidamente
suprimido. Duvidosa, encolheu os ombros. - Naturalmente, temos apenas a palavra de m'sieur quanto a isso.
- Asseguro-lhe que...
- Oh, la, la... estou disposta a confiar no senhor. Mas, naturalmente, considerando a idade das minhas filhinhas, exijo o mais alto padrão de conduta e moralidade.
- Naturalmente, madame...
- Então, quando... - interrompeu-se, com uma ordem aguda, suas palavras ressoando como uma pequena salva de artilharia: - Não, não, Marie, esses ovos não, estúpida,
já estão encomendados por Madame Oulard... e, Joseph, até quando preciso dizer que tire açúcar do saco aberto? Qual o salário que pede, m'sieur?
Stephen tratou de calcular rapidamente o menor estipêndio capaz de sustentá-lo.
- Digamos, com lições diárias, 30 francos por semana?
Com um gesto de consternação, Madame Cruchot ergueu as suas mãos gordas e cheias de anéis. Depois sorriu gentilmente, mostrando-lhe um dente de ouro que era como
uma bala.
- M'sieur está brincando.
- Não, realmente... - Empurrado e acotovelado pelo redemoinho de fregueses, Stephen ficou rubro. - Estou falando sério.
- Também somos gente honesta, Monsieur Crochet e eu, m'sieur, mas longe, oh, muito longe, de ser rica. - Feriu uma nota patética. - O máximo que meu marido me autoriza
a oferecer são 20 francos.
- Mas, madame... eu tenho que viver.
Madame Cruchot sacudiu o seu chinó amarelo tristemente.
- Nós também, m'sieur.
Stephen mordeu o lábio, com raiva e orgulho no peito. O aluguel semanal do seu quarto era de 12 francos. Como diabo poderia manter-se com os oito francos que lhe
restariam depois de pagar a sua senhoria? Não, por grande que fosse a sua necessidade, não poderia submeter-se a semelhante imposição. Deu meia-volta para retirar-se.
Mas Madame Cruchot, que não queria perdê-lo e que, no intervalo, tinha-o observado de soslaio da cabeça aos pés, deteve-o com um gesto delicado.
- Talvez... - Inclinou-se para diante, falando com um ar solícito. Talvez se servíssemos aqui o almoço para m'sieur, isso ajudasse um pouco a situação. Uma refeição
boa e substancial.
Apanhado desse modo, Stephen hesitou. Profundamente humilhado, não podia erguer os olhos.
- Muito bem... aceito - murmurou ele.
- Ótimo. Nosso negócio está fechado. Começará amanhã. Não esqueça que exigirei instrução da mais alta classe. E, sem dúvida, no futuro, m'sieur não esquecerá de
barbear-se.
Stephen inclinou a cabeça. Não podia falar. Contudo, a despeito da sua humilhação, por ignominiosa que fosse a sua situação, só podia experimentar uma sensação de
alívio. Com 20 francos e um almoço diário, estava salvo, ao menos por enquanto.
Ao sair da mercearia, ouviu a voz de Madame Cruchot proclamando em altos brados para as regiões do mundo:
- Marie-Louise, Victorine... Sua bondosa mamã acaba de contratar um tutor inglês.


CAPÍTULO III

AGORA, NA ABAFANTE MONOTONIA de uma cidadezinha provinciana, começava para Stephen uma estranha existência. Todas as manhãs, era acordado pelo sino da catedral,
que badalava três vezes, pesadamente, na Consagração das sete horas, afugentando as pombas, quebrando o silêncio eclesiástico da praça vazia. Uma vez vestido, descia
descuidadamente a escada - pelo menos podia sair de casa sem medo de encontrar a sua senhoria. Atravessando a praça para o Café des Ouvriers, que ficava a curta
distância do jardim de muros altos do convento, encontrava sempre as mesmas mulheres pias, vestidas de preto, e algumas freiras, aos pares, emergindo - flutuantes,
parecia, sobre as largas abas das suas toucas - da igreja. O café, assinalado por um ramo murcho na ombreira da porta, não era um lugar especialmente reputado, não
mais do que a cozinha de pedra de uma casa baixa mobiliada com uma mesa tosca e alguns bancos de madeira. Ali, por cinco soldos, tomava o desjejum habitual da casa:
uma xícara de café preto cheio de borra, lavado por um golinho de vinho branco num copo grosso com um dedo, uma espantosa combinação em seu poder restaurativo. Às
vezes havia um jornal da noite passada, Intelligence de Rennes, que o mantinha ocupado por meia hora. Podia conversar um pouco com Mie, a fille de comptoir de olhos
negros, quieta, que atendia o bar primitivo com discrição e que aparentemente tinha outras funções e obrigações, ou com outro cliente, talvez um mascate, um carregador
da estação, ou um entregador de carvão.
Pontualmente às 11 horas, apresentava-se na casa dos Cruchots, situada atrás da mercearia, e se dirigia a uma porta na parede lateral. Ali, na latada contígua a
uma pequena área fechada de relva, ou, nos dias de chuva, na sala abundantemente enfeitada a que Madame se referia como o "salon", Stephen dava sua atenção às menininhas
Cruchot; Victorine, de onze anos, e Marie-Louise, que tinha apenas nove.
Não eram, de um modo geral, crianças desagradáveis, um tanto estragadas por mimos, mas com toda atração da sua tenra idade. Às vezes, eram mesmo muito meigas à sua
maneira, especialmente a mais nova, uma coisinha bonita de cachos castanhos e faces de maçã". Stephen não as achou difícil de levar e logo ficou gostando delas.
Contudo, já os atributos herdados começavam
a se manifestar - sabiam o preço de tudo, calculavam como matemática, podiam recitar fluentemente aforismos morais sobre a virtude da economia. Cada uma tinha o
seu cofrezinho de metal, com a forma da Torre Eiffel, para depositarem as suas economias, e traziam a chave presa, com a medalha de um santo, a uma fita azul no
pescoço. Às vezes, repetiam, muito inocentemente, observações que tinham ouvido.
- Monsieur Stephen - ele insistia em que o chamassem pelo seu nome de batismo - mamã disse a papá que o senhor deve ser muito pobre.
- Bem, Victorine, devo confessar que ela estava certa.
- Mas papá disse que pelo menos o senhor não era um beberrão.
- bom... papá é meu amigo.
- Ah, sim, Monsieur Stephen. Porque ele também disse que, embora o senhor com certeza tenha feito alguma coisa errada na sua terra, sendo obrigado a fugir, não deve
ter sido um crime sério.
Stephen riu-se, um tanto secamente.
- Vamos... já é tempo de começarem a leitura.
Tão rápido tinha sido o progresso das suas ágeis inteligências, que ele acabara por trazer Alice no País das Maravilhas, e o interesse delas pela história tornava
possíveis até as palavras mais difíceis.
Embora, à maneira de um proprietário, ocasionalmente enfiasse a cabeça na porta, Monsieur Gruchot não vinha muito às lições. Era um homem de estatura média, com
modos inquietos, olhos cor de café, vivos, com os cantos injetados de amarelo, e um bigode preto, cheio, de pontas reviradas, que usava polainas e, dentro ou fora
de casa, exceto no sagrado recinto do "salon", um brilhante chapéu de palha reto. O seu lugar, naturalmente, era na loja, mas passava dois dias por semana fazendo
compras no mercado da vizinha cidade de Rennes, de onde, aliás, ele e sua mulher tinham vindo originalmente. Ligado a Madame Cruchot por uma ostensiva felicidade,
pelos dois lindos penhores da sua afeição, e acima de tudo pelo seu apaixonado desejo de ganho, Albert Cruchot tinha, contudo, em certos momentos, um certo ar, como
se as proporções físicas da sua esposa, seu riso agudo e voz penetrante fossem uma opressão maior do que um homem do seu porte pudesse razoavelmente aguentar. Ele
não encolhia exatamente, porém seus pés empolainados se moviam inquietos e a sua pupila café-au-lait bruxuleava num brilho de impaciência.
Na verdade, por trás do seu sorriso, dos seus modos amáveis e do brilho especioso do seu dente de ouro, Madame Cruchot era uma tirana. Todos os dias ela vinha verificar
"por si mesma" o andamento da lição, sentando-se rígida, numa postura de supervisão, os olhos sem compreensão mas alerta, indo de Stephen para as crianças, perturbando-as,
fazendo que cometessem erros.
- O senhor compreende, m'sieur... desejo que elas não só leiam mas falem coloquialmente... e recitem poesias... como fazemos em sociedade.
Atendendo às suas repetidas exigências, Stephen ensinou as crianças as duas primeiras estrofes de A uma Cotovia. Então, no dia indicado para mostrar o progresso
das suas pupilas, madame apareceu com três amigas íntimas, esposas de lojistas preeminentes, membros da haute bourgeoisie de Netiers, que se aboletaram expectantes
nas cadeiras douradas do salão.
Marie-Louise, escolhida para a primeira prova, foi colocada sozinha na falsa ilha de Aubusson.
- Salve, ó tu, espírito jovial... - começou ela; depois parou, olhou em torno e suprimiu um risinho.
- Comece de novo, Marie-Louise - disse Stephen bondosamente.
- Sabe, ó tu, espírito jovial... - Novamente a criança se interrompeu, piscou, torceu a cinta e olhou timidamente para a mãe.
- Continue - disse Madame Cruchot numa voz estranha. Marie-Louise lançou um olhar súplice para o seu professor. Um leve
suor começava surgir na testa de Stephen. Num tom de lisonja, que o desagradava, disse:
- Vamos, minha querida. Salve, ó tu, espírito jovial...
Um breve silêncio, durante o qual Madame Cruchot pareceu ter virado pedra: depois, sem aviso, levantou-se e deu um tapa na cara da menina. Imediatamente Marie-Louise
debulhou-se em pranto. No momento de consternação que se seguiu, olhares indignados foram lançados para Stephen, a criança soluçante, agora agarrada ao seio materno,
foi confortada com um bombom, e ouviu-se a voz de Mane gritando lá da loja:
- Venha depressa, madame... o fígado está chegando do matadouro. Na confusão que acompanhou a retirada de Madame Cruchot, Stephen ficou desamparado, prevendo com
sardónico fatalismo a possibilidade da sua demissão. Contudo, quando a mãe reapareceu, Marie-Louise correu através da sala, pegou a mão dele e despejou instantaneamente
a poesia, que recitou por inteiro, de um só fôlego. Victorine, para não ficar atrás, seguiu-a, por sua conta, com um perfeito desempenho.
Imediatamente o aspecto da reunião mudou, houve gritinhos de aclamação, sorrisos e acenos de cabeça foram dispensados a Stephen. Madame Cruchot resplandecia de perdoável
triunfo. Na verdade, depois de acompanhar as senhoras até a porta, voltou para Stephen com uma disposição de curiosa indulgência. Em vez da costumeira fina fatia
de presunto, deu-lhe no almoço um prato quente de carne ensopada, guarnecida de rabanetes e cebolas de Bordéus. Sentando-se diante da mesa da copa, observou:
- Afinal de contas, as coisas correram bem.
- Sim - disse Stephen sem levantar os olhos. - No começo, foi apenas o medo do palco.
Por um momento, ela continuou a vê-lo comer.
- Minhas amigas ficaram muito satisfeitas com o senhor - disse ela de repente. - Madame Oulard... a esposa do nosso primeiro pharmacien, uma senhora de certa posição
na cidade, embora naturalmente não possa pagar um tutor para as suas crianças, considera-o très sympathique... um perfeito cavalheiro.
- Sou muito grato por sua boa opinião.
- Acha que ela é uma mulher bonita?
- Deus do céu, não - disse Stephen com um ar ausente. - Eu mal a notei.
Madame Cruchot afagou as suas pastas de cabelo amarelo e, esticando o corpete, bateu nas suas firmes ancas com um gesto significativo.
- Deixe-me servir-lhe mais ensopado.
Nos dias que se seguiram, a qualidade e aliás a quantidade da refeição do meio-dia do tutor inglês melhoraram misteriosamente, e de várias outras maneiras a dona
da casa continuou a sua atitude diferente, e até se poderia dizer, o seu favor. Era uma mudança afortunada para Stephen, em quem a falta de alimentação adequada
e aquela tosse que não o deixava tinham causado considerável dano físico. Começou a sentir-se mais forte, novas correntes de vida movendo-se lentamente nas suas
veias, e um dia, de repente, sentiu, pela primeira vez desde que chegara a Netiers, um vivo desejo de pintar.
O impulso era irresistível, e ao deixar a mercearia apanhou um bloco de papel da Índia e alguns bastões de giz colorido. Quando a lição estava quase terminada, pôs
as duas crianças a ler no mesmo livro, juntas, na latada, e então, com o anseio de uma paixão contida, com linhas ligeiras, firmes e felizes, fez um pastel das suas
cabeças. A coisa foi feita rapidamente, tão veemente era a inspiração - em questão de menos de meia hora. Nunca tinha executado algo tão vívido, tão fresco na sua
composição impressionista. Até ele, que sempre subestimava o seu trabalho, estava comovido, sobressaltado, e excitado por aquela coisa adorável que tinha ganho vida,
misteriosamente, vinda do nada, ao seu toque.
Estava com a cabeça inclinada apontando para o fundo com um creiom amarelo, quando ouviu um som atrás dele: Madame Cruchot, por cima do seu ombro, estava olhando
para o pastel.
- Foi o senhor quem fez isso, m'sieur?
A sua expressão de pasmada incredulidade provocou-lhe um sorriso.
- Gosta?
Talvez ela não compreendesse plenamente a pintura. Mas via nela as suas duas crianças, belamente sugeridas em poucas linhas, umas poucas sombras de cor pura e brilhante.
Não entendia nada de arte. Contudo, o seu astuto instinto comercial tornou-a de imediato - ainda que subconscientemente, advertida de que ali estava algo raro e
delicado, algo da mais alta qualidade. Cobiçou-a
imediatamente. Mas além disso experimentou um singular afluxo dos seus sentimentos por aquele jovem inglês desconhecido, aquela emoção que começara quando, no dia
da recitação, o nevoeiro da sua indiferença se dissipara e ela o vira, através da tagarelice das suas amigas, como realmente era, um homem jovem muito atraente,
com a figura franzina e rosto sensível, os olhos negros e a delicada palidez. As menininhas ainda estavam soletrando no seu livro. Ela passou por trás do sofá e
sentou-se ao lado de Stephen.
- Não percebi - disse ela num cochicho confidencial - que m'sieur era um verdadeiro artista.
- Mas eu lhe disse quando a senhora me empregou.
A referência àquela primeira entrevista, quando ela o tratara tão rispidamente, provocou-lhe um rubor profundo até o seu queixo redondo e sólido e a coluna muscular
do pescoço.
- Ah - disse ela - não fiz muito caso do que me disse naquela ocasião. Eu não tinha o prazer de conhecer m'sieur como conheço agora... após estas semanas de agradável
intimidade, quando tem ensinado às minhas filhas, participado comigo da minha casa, e sempre com a polidez e reserva que só vem da verdadeira distinção. M'sieur
Stephen... - era a primeira vez que ela se dirigia a ele pelo nome, e o fazia com um frémito que endurecia a pele dos seus sólidos seios... - mesmo que não tivesse
me dito nada, eu saberia, por esta pintura, que o senhor tem grande talento.
Suas palavras de mau gosto eram embaraçosas, mas ele disse, gentilmente:
- Talvez queira ficar com ela...
A sugestão, com as suas implicações de compra, levou-a a recuar ligeiramente, mas só por um instante. Respondeu, séria:
- Quero sim, M'sieur Stephen, e vou falar a esse respeito com meu marido esta noite. Naturalmente, é possível que ele diga que o trabalho foi feito na hora da aula,
pelo que o senhor já estava pago, e nesse caso...
- Minha cara Madame Cruchot - interpôs apressadamente Stephen - a senhora absolutamente não me entendeu. Ofereço-lhe a pintura de presente.
Os olhos dela brilharam, não de cupidez agora, mas de uma emoção mais suave e confusa. Suprimiu um suspiro, olhou para ele com uma expressão terna, dizendo:
- Obrigada, M'sieur Stephen. Garanto-lhe que não se arrependerá.
A singularidade de estar sentada tão junto dele punha-lhe a cabeça a girar, uma sensação bem diferente da que lhe dava a proximidade de Cruchot. Mas as menininhas
começavam a exigir atenção, e ela ficou com medo de comprometer-se mais. Com um olhar de soslaio, rápido mas intenso, no qual tentava, em vão, mostrar o seu coração,
que batia rapidamente, levantou-se, disse-lhe au revoir, e voltou para a mercearia.


CAPÍTULO IV

APÓS SEMANAS DE aNIMADA APATIA, Stephen achou que podia pintar novamente. Era como despertar para uma nova vida na qual ele se descobria possuído de uma capacidade
maior, de uma visão mais penetrante do que antes. A cidadezinha, com seus insípidos habitantes, até aqui um deserto de esterilidade, transfigurou-se de repente numa
palpitante fonte de inspiração. Pintou o hotel de ville; a praça de armas do quartel; os telhados da cidade, vistos da sua janela, estranhamente pitorescos; uma
bela composição em cinza e negro das irmãs do convento voltando da missa na chuva, embaixo dos seus guarda-chuvas. As telas que tinha trazido de Napoleon Campo foram
uma a uma transformadas, pregadas no canto do quarto do sótão.
Havia cartas também, de Peyrat e Glyn, para alegrá-lo. Jerome propunha-se continuar em Puy de Dome no inverno e Glyn voltaria a Londres para uma breve estada no
outono. Ambos instavam para que fosse juntar-se a eles. Mas era claro que ele não iria. Estava pintando aqui, e feliz. Nesse estado de ressurreição, a lição diária
para as meninas Cruchot perdeu seu aspecto normal de necessidade. Na verdade, muitas vezes era penoso para Stephen pôr de lado os seus pincéis e correr à mercearia,
justamente quando a luz era a melhor. E embora, na linguagem do estabelecimento, ele continuasse tendo um valor, a sua mente não estava inteiramente no ensino, nem
após a aula era motivado por outro pensamento que não o ir-se dali.
Por causa da sua distração, continuou mais ou menos esquecido das mudanças, sempre crescentes, na atitude de Madame Cruchot para com ele. O vasto melhoramento na
cozinha era, sem dúvida, evidente, mas ele creditava-o à gratidão da proprietária pelo presente do quadro. A esta também atribuía os outros sinais de atenção que
lhe eram dispensados. Tornara-se agora costume de madame presidir o seu almoço e impor-lhe a sua hospitalidade. Na verdade, a sua dedicação foi além.
- M'sieur Stephen - ponderou ela um dia, com uma nota de solicitude. - estou preocupada com o seu conforto. O senhor pode não ser bem-visto em casa de Madame Clouet.
- Mas sou - contrariou ele. - Ela é uma alma muito decente.
- Mas é um quarto tão pobre.
- Conhece-o? - surpreendeu-se ele.
- Bem - disse ela enrubescendo. - Passei pela casa muitas vezes... no meu caminho para a igreja, naturalmente. Se ao menos alguém de gosto acrescentasse umas poucas
coisas... e as arranjasse, ficaria muito mais agradável para o senhor.
- Não, realmente - sorriu ele. - Agrada-me como está... despido e arejado.
- Mas não é bom para o senhor - insistiu ela. - Não posso deixar de notar que a sua tosse ainda o incomoda.
- Oh, não é nada... foi só esta manhã.
- Meu caro M'sieur Stephen. - Olhou-o com terna censura. - Não me contrarie em tudo. Se não posso melhorar o seu quarto, deixe-me ao menos restaurar a sua saúde.
No dia seguinte, para seu embaraço, um frasco de sirop pectoral do estabelecimento de Monsieur Oulard estava na mesa ao lado do seu prato, e madame, medindo uma
colherada, administrou-lhe a dose com ambas as mãos. Victorine e Marie-Louise divertiram-se vendo o seu professor ter que engolir remédio à força. E, no fim, Stephen
também riu.
Quando as crianças correram para brincar no jardim, Madame Cruchot, após um olhar demorado, soltou um suspiro:
- Naturalmente... uma coisa posso ver muito bem. O senhor encontrou na cidade alguma moça insignificante que o atrai.
- O quê! Em Netiers?
- Por que não? Não vai todos os dias ao Café des Ouvriers, e aquela Julie Grosette... eles por lá não têm grandes escrúpulos, posso lhe garantir...
Na verdade, ela conhecia todos os falatórios, mexericos e pequenas intrigas da cidadezinha. Mas o olhar atónito de Stephen era tamanho, que ela parou de falar. Forçou
um risinho.
- Não me olhe assim, meu amigo. Só estou pensando no seu bem-estar. E afinal de contas, embora eu seja uma boa mulher, também sou uma mulher do mundo. Então não
tem ninguém?
- Não - disse ele brevemente.
O olhar de expectativa, de ciúme, desapareceu dos seus olhos e foi substituído por um ar de coqueteria.
- Diga-me se gosta do meu vestido.
Colocou-se ligeiramente de quadril, exibindo o seu novo vestido, de um verde um tanto agressivo, com trancelins amarelos embaixo, que davam um efeito de juventude.
E o cabelo, recém-lavado, fora ondulado com um brilho mais metálico. Madame tinha apego aos vestidos, era uma cliente regular das galleries de Rennes, e ultimamente
exibia para Stephen as suas mais elaboradas toilettes, que, ai!, ele nunca parecia notar. Era essa indiferença que aumentava
os seus anseios, essa completa inconsciência de que ela era uma mulher, e talvez ele fosse assim com qualquer mulher, de uma inocência comparável à do jovem cura
que uma vez servira na paróquia e que ela admirava à distância, sonhando com ele todas as noites ao lado do merceeiro, que, com a carne aplacada pelo seu insensível
traseiro, roncava musicalmente. Mas isso não tinha sido nada, o mero sopro das asas de uma borboleta ao lado deste desejo que agora lhe corria nas veias, fazendo-a
arder de vontade de apertar Stephen nos braços e cobri-lo de beijos.
Ela estava cega para a comédia da sua situação: uma mulher de quase
40 anos, metida de corpo e alma nas atribulações de um negócio banal, de punhos fechados, uma tirana que passava a vida, de voz estrídula e metálica, pondo areia
no açúcar, água na sidra, extorquindo o último soldo das palmas renitentes de um camponês - ela, entre todas as mulheres, sendo amaciada, liquefeita por aquela devastadora
paixão por um rapazinho que talvez pudesse ter sido seu filho. Perdeu o interesse nas suas crianças, nas suas amigas, na busca da riqueza. O marido tornou-se-lhe
odioso. Os seus maneirismos burgueses, a maneira de comer, de soltar ventosidades baixinho após a sua cerveja, despertavam nela uma tempestade de ódio.
- Je te défends de passer le gaz en bas! - gritava ela, encolerizada.
E com tudo isso o seu próprio refinamento aumentava. Banhava-se com mais frequência, usava um perfume mais forte, chupava pastilhas para perfumar o hálito, mudava
a rroupa branca mais seguidamente. Se não pudesse tê-lo, sentia que deixaria de viver.
Subitamente veio uma resposta às suas preces mudas, uma ideia de brilho surpreendente. Como é que ela não tinha pensado nisso antes? Quando Stephen entrou nesse
dia, ela o interceptou no corredor.
- Meu amigo - disse ela alegremente. - Tenho uma boa notícia para o senhor, em suma, uma incumbência. Monsieur Cruchot insiste em que o senhor deve pintar-me.
Desconcertado, Stephen olhou para ela em silêncio.
- Sim - acenou ela. - Cruchot está cheio de entusiasmo. Não falou em outra coisa ontem à noite... De corpo inteiro... a óleo.
- Mas, madame. - Stephen franziu o cenho hesitante, procurando uma desculpa. - Eu... eu não pinto retratos... estou trabalhando em outro tema...
Ela sorriu para ele tranquilizadoramente.
- Não se preocupe, mon petit, farei com que seja pago. Na terça-feira, então, começamos. Está combinado.
Antes que ele pudesse terminar, ela bateu-lhe no braço, com um olhar arqueado, e saiu depressa da sala.
Terça-feira era meio feriado para os comerciantes. Como sempre, a loja
fechava ao meio-dia e tudo ficava tranquilo. Contudo, no momento em que entrou, Stephen sentiu, nos postigos fechados, uma calma sobrenatural. Madame Cruchot recebeu-o
na porta.
- Nada de lição hoje - anunciou ela efusivamente. - As meninas foram para o campo com Marie.
Ao admiti-lo na loja, explicou que a empregada fazia uma visita por mês aos seus pais em St. Vallé, e que, às vezes, como grande favor, ela lhe permitia que levasse
as crianças.
- E naturalmente - acrescentou sem cerimónia - meu marido está em Rennes, no mercado. Não seremos perturbados.
Novamente o silêncio incomum perturbou-o; nenhum rumor na adega, onde Joseph, o auxiliar, passava duas horas cuidando do estoque. Na casa, a não ser eles, não havia
ninguém. Mas foi a mesa, na sala de almoço, posta para dois, com toalha engomada e os melhores talheres, adornada com um vaso de rosas vermelhas, que o pôs em guarda.
- Se não se incomoda, almoçaremos juntos. Será muito mais conveniente.
Falando voluvelmente, naquela mesma maneira descuidada, trouxe da copa um poulet de Bresse assado, com cogumelos e salada, um paté de Estrasburgo, pêssegos em calda,
e uma garrafa de champanhe. Somente depois de abarrotar o seu prato, permitiu-se olhar para ele.
- Estamos bem aconchegados aqui. Não é agradável almoçarmos tête-à-tête? Sabe, deve comer antes de trabalhar. - Lançou-lhe um olhar pudico. Deixe-me servir-rlhe
o champanhe. É o melhor que vendemos. Cinco francos a garrafa.
Ele sentia-se confuso, desconcertado e inquieto. Mas no seu estado empobrecido, tinha para com a comida uma espécie de oportunismo. Comeu o que foi posto diante
dele, certo de que não estava em posição de recusar, mas foi se tornando cada vez mais consciente daqueles olhares lânguidos que pousavam nele. Do seu busto também,
que subia com esforço cada vez que ela respirava com esforço, fazendo os seios pularem e o queixo afundar no pescoço, parecendo aproximar-se mais dele a cada respiração.
Ao contrário do seu costume habitual, ela não estava comendo, servindo-se, com um ar de refinamento, apenas de uma asa de frango, e agora já partindo para o segundo
copo de vinho. Seus olhinhos redondos brilhavam como bolinhas de gude. Sentia um forte impulso para estender o braço por sobre a mesa e apertar-lhe a mão. Ele nunca
adivinharia que delicados favores ela estava preparada para lhe oferecer? Quanto menos ele entendia, mais a seduzia.
- Meu amigo - exclamou ela - não pode fazer uma ideia do que tem sido a minha vida nestes últimos 15 anos aqui em Netiers.
- Infelizmente não a conheço há tanto tempo.
- Não - refletiu ela, e numa voz sumida: - Contudo, devo ao senhor o fato de ter descoberto o vazio da minha existência.
- Isso seria um mísero retorno, madame... se fosse verdade.
- É verdade. - Como ele nada dissesse, ela moveu a cabeça enfaticamente. - Sim, ao senhor, meu amigo, que me abriu os olhos para novos horizontes, com os quais antes
eu nem sonhava. Monsieur Cruchot, embora sem excessiva ternura ou delicadeza, é um homem digno. E naturalmente eu sou uma mulher virtuosa. Mas há momentos em que
a solidão me invade o coração, quando tenho necessidade de um confidente. Ah, meu amigo - suspirou ela
- quando o coração pede, quem é que pode negar? É errado procurar a realização... uma vez que seja discreta?
Sentado em silêncio, constrangido, uma rude explicação para aquele comportamento atravessou-lhe de fato o espíriro. Mas despediu-a como absurda. Contudo, sentia-se
obrigado a começar o trabalho sem demora e executá-lo o mais depressa possível. Empurrou o prato.
- E agora, madame, se lhe for agradável, podemos começar. Pensei que seria melhor fazer um esboço preliminar. A senhora posará para mim? No salão?
Ela olhou para ele e tomou um fôlego convulsivo.
- Não - replicou numa voz indistinta. - Lá em cima a luz é melhor. Levantou-se da mesa e dirigiu-se para a porta. - Eu me apronto logo. Termine o seu vinho. E depois
suba.
Ele nunca tinha estado antes no andar de cima. Após esperar cinco minutos, encaminhou-se para a escada. Estava frouxamente iluminada, e os degraus, cobertos de tapete
fino, estalavam aos seus pés. O cheiro dos queijos, postos a amadurecer no armário do corredor encheu o ar. Ao chegar à porta, encontrou-a aberta. Imaginou que dava
acesso à sala de estar, mas antes que pudesse bater, ela o chamou:
- Entre, mon ami.
Ele entrou.
Madame Cruchot estava junto à cama dupla, pedindo a sua aprovação. Tinha tirado o vestido e usava um penhoar, que, numa pose vulgar, com uma das mãos no quadril,
ela mantinha meio aberto, revelando os calções listrados, com um babado de renda pesada, que caía abaixo dos seus joelhos grossos, e uma camisola cor-de-rosa umedecida
por uma mancha de perfume que acabara de pôr, enrugada pelo espartilho.
Um suor frio inundou Stephen. Suas pupilas ardiam com cada detalhe do ostentoso mas desmazelado dormitório, o tapete ornado e as cortinas com colgadura, a cómoda
manchada, o utensílio de louça embaixo da cama, e até a camisa de dormir de Cruchot enfiada às pressas embaixo de um travesseiro. Empalideceu. Interpretando mal
os seus olhos dilatados, ela agitou a cabeça,
fingindo tremer, e então, com uma terrível coqueteria, veio para ele. Era demais. Ele recuou com uma expressão de repulsa, furioso consigo por ter caído em tal situação,
que, embora participasse dos elementos da farsa era abjetamente humilhante. Sem uma palavra, voltou-se e precipitou-se para fora do quarto.
Nessa noite, sentado no seu sótão, ouviu fortes pancadas na porta da frente, seguidas de passos pesados na escada, e logo Monsieur Cruchot invadia o seu quarto.
O merceeiro, ainda vestindo o seu melhor terno, encontrava-se num estado de cólera fabricada.
- Como se atreve a fazer propostas amorosas a minha esposa... miserável insignificante... no instante em que dou as costas? Tenho a intenção de ir diretamente à
polícia. Sempre pensei que você era uma cobrinha inglesa. Mas morder a mão que o sustenta... uma mulher de coração puro... uma mãe! Que ultraje... uma atrocidade!
Jamais torne a mostrar o seu focinho no meu estabelecimento. Mas, além disso, deve haver uma compensação... por danos... no mínimo uma pintura.
Stephen sabia que Cruchot não gostava dele, no entanto era evidente que aquela exibição era instigada pela esposa, o marido era o mensageiro da mulher despeitada.
E com uma onda de amargura, como Cruchot continuasse a ameaçá-lo, Stephen arrancou uma página do bloco que estava na mesa dele e entregou-a ao merceeiro. Era um
esboço que ele acabara de fazer de memória de madame, obesa e afetada, de calções, no quarto de dormir.
Monsieur Cruchot, silenciado pelo gesto inesperado, olhou para o desenho fatal. Sua face tornou-se lívida. Ia rasgá-lo, mas, com a esperteza nativa, considerou-o
novamente, enrolou-o cuidadosamente e colocou-o dentro do chapéu. Depois, com um olhar furtivo, voltou-se e foi embora.


CAPÍTULO V

NA MANHÃ SEGUINTE, Stephen fez a sua mochila, amarrou as suas telas num canudo e, pondo a carga ao ombro, partiu de Netiers a pé. Seu objetivo era Fougères, situada
na route nacional, a 30 quilómetros de distância, e às cinco horas da tarde, após uma sufocante caminhada através dos campos, alcançou, a cidade, erguida em ambos
os lados de uma colina cortada pela estrada principal
para Paris. Lá, encontrou um restaurante barato que lhe pareceu um ponto de parada para caminhoneiros. O garçom, ao qual pediu ajuda, tinha certeza de que surgiria
uma oportunidade, e na verdade, justamente antes das nove, parou um camion da Compagnie Atlantique com um reboque e dele desceram dois homens de macacão e entraram
no bar. Poucos minutos depois, o garçom fez um sinal, houve apresentações, explicações transitórias e um geral aperto de mãos - tudo arranjado. As coisas de Stephen
foram colocadas embaixo do assento e eles partiram.
A noite chegou quente e serena. Rodaram através de aldeias adormecidas, cidades desertas onde brilhavam apenas umas poucas luzes, passando Vire, Argentan, Dreux.
O ar quente assobiava ao lado deles, os paralelepípedos estrondejando embaixo, a lua mergulhou por trás das alamedas nevoentas de álamos. Finalmente, quando rompeu
o amanhecer pálido e escorrido, atravessaram o Sena em Neully, entraram em Paris pela Pote Neully e pararam no mercado Les Halles. Lá, Stephen agradeceu aos seus
dois amigos e deixou-os.
A cidade, ainda não acordada de todo, tinha um ar cinzento e triste, mas quando atravessou a Ponte Nova, Stephen respirou fundamente o ar úmido. Estava de volta
a Paris. Depois de Netiers sentia-se mais forte, acima de tudo cheio de uma firme determinação de demonstrar o seu talento ao mundo.
Quando o mont-de-piété da Rue Madrigal abriu as portas, ele estava à espera do lado de fora. Entrando, empenhou o relógio - um presente do pai no dia do seu vigésimo
primeiro aniversário - pelo qual recebeu 180 francos. A seguir, após uma demorada procura, achou uma acomodação numa rua lateral próxima da Place St. Séverin, um
bairro frequentado por artistas como último recurso. Era um quarteirão pobre e um quarto ainda mais pobre, escassamente mobiliado e terrivelmente sujo - somente
10 francos por semana. Imediatamente se pôs ao trabalho e, pedindo emprestados uma vassoura e um balde, limpou o cómodo. Até lavou as paredes, a fim de que parecessem
recomendáveis, embora ainda permanecessem algumas manchas de insetos.
Passava das duas; sem pensar em comida, escolheu quatro das suas pinturas e dirigiu-se rapidamente pelos quais à loja de Napoleon Campo. O vendedor de tintas estava
sentado no seu caixote costumeiro atrás do balcão, balançando as pernas curtas, usando uma jaqueta azul de piloto e boné amarelo de tricô, com as orelhas gretadas
de fora, o rosto púrpura com a barba por fazer, mãos cruzadas sobre a barriga. Saudou Stephen amavelmente, como se o tivesse visto na véspera.
- Bem, Monsieur l'Abbé, que posso fazer pelo senhor?
- Antes de tudo, deixe-me liquidar o que lhe devo.
- Obrigado, o senhor é um homem honesto.
Recebeu os 50 francos que Stephen lhe deu e enfiou-os numa velha bolsa de couro.
- E agora, Monsieur Campo, quero uma tela bem larga, 2,00 x 0,80cm.
- Ora! Tem um trabalho tão grande assim em vista? Naturalmente pode pagar?
- Em dinheiro não, monsieur. Com estes.
- Endoideceu, Abbé? Deus do céu, meu porão está abarrotado de pinturas, refugo impróprio até para a lata de lixo, que recebi por ter um coração bondoso.
- Nem tudo é lixo, Campo. Você recebeu pinturas de Pissarro, e Boudin, e Degas.
- Você é um Degas, meu pequeno Abbé?
- Um dia, talvez.
- Meu Deus, é sempre o mesmo conto de fadas. Então a sua tela especialmente grande é para pendurar no Salon, com multidões diante dela. Terá fama e fortuna da noite
para o dia. Bah!
- Então aceite 20 francos por conta e estas pinturas como penhor do restante.
Os insignificantes olhinhos azuis de Napoleon procuraram o rosto pálido e sério diante dele. Tantos, tantos rostos tinham passado por sua loja nos últimos 30 anos,
que afogavam a sua memória. Era um homem fleumático, que não se comovia facilmente, e a idade o tinha tornado ainda mais impassível. Mas ocasionalmente, embora isso
fosse raro, havia nos modos e no aspecto de algum aspirante necessitado, como agora nas curiosas feições daquele inglesinho, um tipo de intensidade que o impressionava.
Hesitou, depois desceu do seu assento e começou a remexer nas prateleiras. Quando a tela que Stephen queria - um fino linho de grão fino - estava em cima do balcão,
houve uma pausa.
- Disse 20 francos?
- Sim, Monsieur Campo. Stephen contou as moedas.
Napoleon Campo tomou uma pitada de rapé, limpando meditativamente o nariz carnudo com o punho da sua jaqueta de piloto.
- E agora, naturalmente, vai passar fome.
Houve outra pausa. Subitamente Campo empurrou as moedas que estavam em cima do balcão.
- Devolva estas à sua caixa de coleta, Abbé. E me dê os seus miseráveis borrões.
Surpreso, Stephen entregou-lhe as suas pinturas. Sem ao menos uma olhada por alto, Napoleon colocou-as embaixo do balcão.
- Mas. . . não quer vê-las?... São... as melhores que eu fiz.
- Não julgo pinturas e sim gente - replicou Campo rispidamente. bom dia, monsieur. E boa sorte.
Stephen voltou ao seu quarto com a tela às três horas, e sem demora saiu imediatamente para a loja de bicicleta da Rue de Bièvre. Até agora as coisas tinham ido
bem, mas ao se aproximar do estabelecimento de Berthelot sentiu-se nervoso e inseguro de si mesmo, embora cheio de uma viva expectativa que fazia o seu coração bater
depressa. Muitas vezes, durante os últimos meses, tinha pensado em Emmy; a recordação daqueles momentos na escuridão do corredor estreito lhe vinha de tempos em
tempos sem aviso, ainda que com uma esquisita inconsistência.
Encontrou-a no pátio atrás da oficina, curvada sobre uma bicicleta niquelada, reforçada e pintada de vermelho e ouro. Vê-la outra vez deu-lhe uma sensação de calor
por dentro. Ela ergueu os olhos quando ele apareceu, aceitou a sua saudação sem surpresa e continuou a acertar os rolamentos. O pulso dele ainda estava absurdamente
desigual; contudo, desde as suas excursões juntos, sabia muito bem que ela abafava qualquer mostra de afeição.
- É uma linda máquina - disse ele após alguns momentos.
- É minha. Vou usá-la em breve. - Endireitou-se, atirou uma mecha de cabelo para trás. - Então está na cidade de novo?
- Desde esta manhã.
- Quer alugar uma?
Ele abanou a cabeça.
- Tenho coisas mais importantes para fazer.
Houve uma pausa. Ela sempre fora um tanto curiosa a respeito dele, e agora, como ele pretendia, o seu interesse tinha aumentado.
- Está metido em quê?
Ele respirou rápido.
- Já ouviu falar do Prix de Luxembourg, Emmy? É uma competição aberta a todos os que nunca estiveram no Salon. Pretendo arriscar. - Depois, como se ela se voltasse
indiferente, acrescentou: - Foi por isso que voltei. Quero que você pose para mim.
- Quer dizer... - interrompeu-se, olhando para ele - ... fazer o meu retrato?
- Isso mesmo. - Procurou falar num tom casual. - Você nunca foi pintada, foi?
- Não, apesar de que já devia ter sido há muito tempo, considerando quem sou.
- Então, esta é a sua oportunidade. Pode ser muito bom para você. Os melhores trabalhos serão exibidos no Orangerie. Você certamente seria reconhecida.
Ele podia ver que a sua vaidade estava lisonjeada, mas ela hesitava, olhando-o de cima a baixo como que calculando a sua capacidade.
- Você pode mesmo pintar? Quero dizer, poderia fazer um bom retrato?
- Pode contar comigo. Porei tudo o que tenho nessa pintura.
- Sim, suponho que poria, para o seu próprio bem. - Uma ideia lhe ocorreu. - Mas eu vou excursionar no mês que vem.
- Até lá há tempo suficiente. Se você vier todos os dias durante três semanas, posso pintar os detalhes depois que você for.
Novamente podia ver que ela debatia as possibilidades.
- Bem - disse ela, por fim, na sua maneira desgraciosa. - Não me importo. Acho que não vou perder nada.
Ele reprimiu uma exclamação de satisfação e alívio - não somente tinha querido pintá-la desde o começo, mas ela seria perfeita para o assunto que naquelas últimas
e poucas horas havia se apoderado dele. Rapidamente, deu-lhe o seu novo endereço, pediu-lhe que estivesse lá às 10 da manhã seguinte, usando o seu suéter preto e
a saia pregueada, e despediu-se antes que ela pudesse mudar de ideia.
Vagabundeando pela avenida, sentia-se excitado pelo que tinha realizado nesse dia. Só então se lembrou que não comia desde que dividira um sanduíche com o motorista
do camion na noite passada. A fome o atacou como um tapa. Mergulhou numa épicerie, onde comprou um pão comprido e uma tranche de salsicha. Não conseguia ficar quieto.
Andando pela rua escurecida diante do Jardin des Plantes, mordia alternadamente o pão estalante e o suculento patê embutido no seu branco envoltório de toucinho.
Como era gostoso. Sentia-se feliz, livre, e estranhamente exaltado.


CAPÍTULO VI

No DIA SEGUINTE, ele estava pronto e esperando impacientemente, a tela preparada, quando ela chegou, com uns 20 minutos de atraso.
- Aí está você! - exclamou ele. - Pensei que não viesse mais.
Ela não respondeu, mas da porta olhou em torno para o quartinho miserável com as pranchas nuas, uma cadeira de bambu quebrada e uma cama sobre roletes, afundada
no meio.
- Você está quebrado, não?
- Mais ou menos.
- Você tem topete. Trazer-me para um trou destes. Nem ao menos tem onde pendurar as minhas coisas.
Ele corou, mas forçou um sorriso.
- Admito que não seja o Elysée, mas nío é mau lugar para pintar. Dê-me uma chance e eu prometo que não se arrependerá.
Ela baixou o lábio numa espécie de careta, mas, com um dar de ombros, entrou e deixou que ele lhe tirasse o casaco e a postasse diante da janela.
A luz era boa, e, cheio de um súbito hausto de força, ele começou a tracejar a composição que agora o obcecava. Como as regras do concurso exigiam uma pintura "clássica",
seu tema seria alegórico, embora moderno na composição, e o assunto era: Circe e Seus Amantes. Poderia a sua absurda aventura com Madame Cruchot, trabalhando no
fundo do seu inconsciente, inflamar uma centelha que incendiasse essa estranha visão? Símbolos e imagens enchiam a tela da sua vista, cativando os sentidos. Na sua
imaginação, o prazer lutava com a virtude, e a luxúria se revelava na forma dos seios à espreita. Tudo ainda era uma miragem; no entanto, nos íntimos e misteriosos
recessos da sua alma, sentia a força para fazer aquele sonho existir.
Embora pudesse ter continuado o dia inteiro, ao meio-dia, advertido pela expressão da moça, Stephen lhe disse que talvez fosse o bastante para aquele dia. Imediatamente,
ela atravessou o quarto e examinou a tela, onde, usando carvão, ele já tinha feito seu esboço, de corpo inteiro e bem definido. As sobrancelhas ergueram-se e o olhar
amuado deixou o seu rosto quando ela se viu ocupando o centro da tela, de pernas separadas, mãos plantadas nos quadris, uma atitude que era toda sua. Não disse nada
enquanto permitia que ele a ajudasse a vestir o casaco, mas na porta se voltou e acenou a cabeça.
- À mesma hora, amanhã.
Durante a tarde, enquanto a luz durou, ele trabalhou no plano de fundo. E no dia seguinte, e nos que se seguiram, continuou, nem sempre de ânimo elevado, mas com
um propósito que o transportara através de momentânea melancolia para novos transes. Ao mesmo tempo, à medida que prosseguiam as sessões e ele entrava em contato
mais íntimo com Emmy, não mais podia ficar cego ao aprofundamento dos seus sentimentos por ela. A cada dia, terminada a sessão, dava consigo a sentir falta dela,
mais e mais. Na ausência de Peyrat e Glyn, estava sozinho. Mas isso explicaria o seu constante desejo pela companhia dela? Zangado consigo mesmo, lembrou o quanto
não gostara dela no seu primeiro encontro, e como ela às vezes o irritava com a sua grosseria e falta de educação. Quando ela estava de mau humor e ele tentava conversar
com ela, as suas respostas eram monossilábicas, e quando lhe dizia que descansasse, ela continuava a ignorá-lo, deitava-se de barriga na cama, acendia um Caporal
e mergulhava numa revista esportiva amarrotada. Percebeu que ela não tinha atenção para com ele e que somente a vaidade a trazia regularmente ao seu quarto. Uma
dúzia de vezes por dia ela ia observar a marcha do trabalho, e embora nunca o elogiasse, congratulava-se consigo mesma.
- Estou saindo bem, não é?
A lenda da Odisseia, da filha de Helios e da ninfa do oceano Perse, que ele explicou para ela, mexeu-lhe com a fantasia. A ideia de que tivesse o poder de transformar
seres humanos em formas animais provocou-lhe um sorriso.
- Bem feito, pra eles aprenderem.
Essa vulgaridade estremeceu-o. E contudo não era inibidora. Que haveria naquela moça para provocar o seu premente interesse? Procurou descobrir. Que sabia realmente
dela? Muito pouco, exceto que era comum, dura e insignificante - uma pequena nulidade, desinteligente, sem imaginação, completamente empedernida. Não sabia nada
de arte, não tinha interesse pelo seu trabalho, e se entediava quando ele falava. Mas a sua figura era esquisita - não estava reproduzindo cada linha sutil dos seus
membros fortes e esbeltos, o ventre chato e os seios firmes? - e acima de tudo ela era pequena. Embora pudesse admirar na tela a carne voluptuosa das mulheres de
Rubens, o seu gosto sempre fora por uma perfeição menos arredondada. E ela possuía essa nitidez física, uma figura que ele sempre comparava à Maja de Goya. Contudo,
ninguém poderia chamá-la de bela. Tinha um encanto travesso, mas os seus lábios eram finos, as narinas um tanto puxadas, e a sua expressão, quando não alerta e vigilante,
era quase carrancuda. Curioso é que, todas as suas imperfeições eram aparentes para ele. Contudo, não afetavam em nada aquela estranha emoção que, a despeito de
todos os seus esforços para suprimi-la, crescia nele.
Desejava estar ao lado dela e sentia-se inquieto e nervoso quando ela se retirava. Desordenadamente afetado pelos seus humores variáveis, respondia a eles de uma
maneira que o fazia desprezar a si mesmo. Em raras ocasiões, quando ela se mostrava agradável, o seu coração se animava. Às vezes, nessa disposição tagarela, ela
fazia perguntas sobre o único assunto que, entre todos os outros ligados a ele, parecia interessá-la.
- É verdade que os seus pais têm uma grande proprieté em Sussex, com muitos acres de boa terra?
- Não muitos - sorriu ele. - Se Glyn lhe disse isso, exagerou.
- E você ia ser um padrezinho... até que eles o tiraram do seminário.
- Você sabe que eu saí por minha vontade.
- Para viver num quarto como este? - perguntou, incrédula.
Encolheu os ombros, mas sem desprezo - lisonja que o gratificou. Essa afabilidade, embora não causasse alívio, era um agradável contraste com a mortificante indiferença
com que ela geralmente recebia as suas tentativas para agradá-la. E enquanto ela posava, indolente como um gato, ele começou a contar-lhe, sem parar de pintar, histórias
sobre Stillwater que achava pudesse entretê-la e diverti-la. Quando finalmente esgotou o repertório, ela refletiu por alguns momentos, e então declarou:
- É certo que vivi com, isto é - corrigiu-se - entre artistas toda a minha vida. Eu própria sou uma artista. Compreendo que se abandone alguma coisa pela arte, quando
isso não é nada. Mas você está numa categoria diferente. E abandonar a sua bonne proprieté, que você poderia herdar... - fez pausa e encolheu os ombros - ... foi
imbécile.
- Não completamente - sorriu ele - ou eu não a teria encontrado. Veio-lhe uma súbita onda de anseio. Deteve-se, não ousando olhar para
ela.
- Você não percebe, Emmy?... que estou gostando terrivelmente de você?
Ela riu-se brevemente e levantou um dedo avisador,
- Nada disso, Abbé. Isso não faz parte do nosso acordo.
Derrotado, retomou o trabalho. E por toda a noite sentiu a dor da rejeição. Se ao menos pudesse sair com ela à noite - ela, que apreciava diversões vulgares - achava
que podia conquistar sua simpatia. Mas sua falta de recursos o impedia. Vivia com pouco mais de meio franco por dia, subsistindo com um pão ou uma maçã até às seis
horas, quando tomava sua solitária refeição no café mais barato das redondezas.
Certa tarde, quando suas sessões de pose já estavam terminando, ela chegou, mais atrasada do que de costume. Aparentava ótimo humor. Usava um fichu amarelo novo
com uma curta jaqueta vermelha ataviada de rendas, e seu cabelo estava recém-lavado.
- Você está muito bem - cumprimentou Stephen. - Eu quase desisti de esperá-la.
- Tenho um encontro com Peroz. O escritório dele fica bem longe... no Boulevard Jules Ferry. Mas consegui o contrato que eu queria.
- Ótimo - sorriu ele, sem mencionar que a sua partida o deprimia. Quando parte?
- A 14 de outubro. Houve um adiamento de duas semanas.
- vou sentir a sua falta, Emmy. - E inclinando-se para ela: - Mais do que você pensa.
Ela riu de novo e ele notou que os seus dentes eram agudos e regulares, com espaços definidos entre eles. Então, com vivacidade, acentuando as suas observações,
ela começou a descrever como conseguira o melhor de Peroz ao estabelecerem os termos do seu contrato.
- Dizem que ele tem bom coração - concluiu ela. - Acho que ele é apenas um gobeur... um mole.
Sabendo que a sua conversa geralmente a aborrecia, Stephen encorajou-a a continuar falando sobre si mesma. Então, como não houvesse mais luz, guardou os seus pincéis.
- Deixe-me andar com você - disse ele. - Está uma bela noite.
- Muito bem, se quiser - concordou ela, dando de ombros.
Quando ela apanhou as suas coisas, eles desceram a escada e dali a pouco chegaram ao Boulevard Gavranche, onde uma escuridão quente lançava um halo em torno das
lâmpadas da rua, envolvendo a cidade muda em misteriosa beleza. Casais passavam lentamente, de braço dado, nas calçadas tranquilas a noite parecia feita para os
namorados. Numa rua lateral perto do rio, passaram por um café, onde com a música de um acordeom, havia gente dançando sob uma pérgula, com lanternas chinesas penduradas
nos ramos dos plátanos. A cena estava cheia de luz e alegria, e Stephen podia sentir os olhares interrogativos de Emmy lançados para ele.
- Gostaria de dançar?
Tomado por um demorado embaraço, consciente da sua inépcia, ele abanou a cabeça.
- Eu não seria muito bom nisso.
Era verdade. Ela encolheu os ombros.
- Você não é bom em muita coisa, não é? - disse ela.
Chegaram às sombras dos quais. O Sena fluía em silêncio, uma corrente lisa e verde, sob o vão baixo da Pont de l'Alma. Como se estivesse entediada pelo seu silêncio,
ela caminhava um pouco adiante, começando a trautear a canção tocada pelo acordeom no cabaré.
- Espere, Emmy. - Ele se chegou para o abrigo de um arco. Ela o Olhou de lado, por sobre o ombro.
- Que é que tem na cabeça, Abbé?
- Você não vê... o quanto significa para mim?
Pôs um braço em torno dela, atraindo-a para si. Durante uns poucos momentos, insensível como o poste de iluminação, ela deixou que ele a abraçasse, e depois, com
um movimento brusco de impaciência, empurrou-o.
- Você não entende nada disso.
Havia desprezo na sua voz.
Ferido e humilhado, fraco de emoção frustrada, sentindo a verdade da observação, ele a seguiu para a rua. Caminharam para a Rue de Bièvre. Diante da loja de bicicletas,
ela olhou para ele como se nada tivesse acontecido.
- Posso ir amanhã de manhã?
- Não - disse ele amargamente. - Não será necessário. Voltou-se, furioso com ela e enojado consigo mesmo.
- Não se esqueça - gritou ela. - Quero ver o quadro quando estiver terminado.
Ele a odiava por sua dureza, sua falta de generosidade comum - ela sequer tivera pena dele. Disse a si mesmo que nunca mais tornaria a vê-la.
Na manhã seguinte, quando acordou de uma noite inquieta, lançou-se apaixonadamente na contemplação do quadro. Até agora, só a figura central
tinha tomado forma, havia ainda o tema a ser desenvolvido. O tempo se tornara úmido e sombrio, a luz era pouca, o seu estúdio improvisado varrido por correntes de
ar, mas nenhuma dificuldade parecia tão grande que ele não pudesse vencer. Na sua busca de realismo, ia todas as tardes ao Jardim Zoológico; depois, voltando para
o seu quarto, transferia as abjetas criaturas para a tela, com algo da sua própria tristeza e sujeição. No fim dessa semana, o seu dinheiro acabou - procurando uma
moeda para comprar o seu petit pain, não pôde achar um único soldo. Sem se abater, continuou a pintar o dia todo com uma espécie de fúria.
Na manhã seguinte, sentiu-se fraco e tonto, mas ainda assim forçou-se a prosseguir no trabalho. Quando chegou a tarde, porém, um raio de razão se infiltrou pelas
névoas que agora obscureciam o seu cérebro. Percebeu que se não comesse para viver, simplesmente isso, nunca terminaria a Circe - a menos que pudesse achar algum
meio de sustento. Sentado na beira da cama, refletiu por um instante e depois foi ao canto onde estavam as suas pinturas de Netiers, selecionando três que eram especialmente
brilhantes e coloridas. Eram boas, satisfaziam-no, davam-lhe confiança. Embrulhou-as em papel pardo e, com o rolo debaixo do braço, saiu para atravessar o Sena ao
longo dos Champs Elysées para o Faubourg Saint Honoré. Era um ato de coragem. Contudo, o tempo para meias medidas tinha passado. Estava resolvido a oferecer o seu
trabalho ao melhor negociante de arte da França.
Na esquina da Avenue Marigny, um logradouro principalmente ocupado por pequenos edifícios de apartamentos e suntuosas lojas de haute couture, deteve-se diante de
uma rica mas comedida fachada de pilares paládicos e pedra branca talhada. Depois, retesando-se decididamente, passou pela porta veneziana dourada e entrou num vestíbulo
calçado de mármore, com painéis de jacarandá e colgaduras de veludo vermelho, onde se achou diante de um jovem de paletó com abas abertas, sentado atrás de uma escrivaninha
Luís XVI laqueada e com ouropel. Através do cortinado lá atrás, via-se um amplo salão, igualmente esplêndido, embelezado por grandes buques de lírios em vasos de
alabastro e cheio de quadros belamente iluminados, diante dos quais gente elegante se movia, e misturava, consultando os seus catálogos, conversando em voz baixa.
- O senhor tem convite para o vernissage, monsieur?
Stephen devolveu o olhar do jovem maneiroso, que, por baixo do seu sorriso profissional, examinava-o com extrema cautela.
- Não. Eu ignorava que havia uma exibição. Vim para ver Monsieur Tessier.
- Qual o assunto, monsieur?lis
- Pessoal.
O sorriso, de inefável polidez, não vacilou.
- Receio que Monsieur Tessier não se encontre na casa. Contudo, se quiser tomar uma cadeira, irei verificar.
Quando Stephen sentou-se, o jovem levantou-se graciosamente e deslizou para dentro. Mas quase ao mesmo tempo uma porta lateral se abriu e três pessoas entraram na
sobreloja - uma mulher, muito elegante, de preto, carregando uma miniatura de poodle, enfitado e fantasticamente frisado; seu acompanhante, um homem idoso, entediado
e distinto, impecavelmente vestido, dos sapatos marrons ao chapéu; e Tessier, que Stephen reconheceu imediatamente, uma figura cortês, de rosto moreno, barbeado,
com o lábio inferior saliente e olhos de bistre. O marchand estava falando, sensatamente com reservada animação e movimentos comedidos das mãos.
- Asseguro-lhe que é uma perfeita gema. A mais fina que me chegou em vários anos.
- É linda - disse a dama.
- Mas o preço! - interpelou o seu companheiro um tanto soturno.
- Já lhe disse, cavalheiro. Por 100 mil, é inquestionavelmente um preço de ocasião. Mas se não o deseja para o senhor, tem somente que me dizer. Virtualmente, tenho
compromisso com outro cliente.
Houve uma pausa, um toque na manga do acompanhante, um murmúrio de conversação íntima, e então:
- Pode considerar a pintura vendida.
Uma inclinação de cabeça, não obsequiosa, mas gravemente aprovando semelhante bom gosto, foi a única resposta de Tessier. Contudo, não os levou até a porta, e quando
se voltou, parecendo meditativo, de cabeça baixa, mãos cruzadas atrás das costas, Stephen foi ao seu encontro.
- Monsieur Tessier, peço-lhe que me desculpe pela intrusão. Poderá dar-me cinco minutos apenas do seu tempo?
O negociante ergueu os olhos vivamente, perturbado nos seus pensamentos, certamente relacionados com cálculos e seu olho empapuçado, com a imediata percepção de
algo encontrado com desagrado em ocasiões anteriores, apreciou a figura maltrapilha que tinha diante de si, dos sapatos enlameados e encharcados ao embrulho malfeito
que trazia debaixo do braço.
- Não - murmurou ele. - Agora não. Como vê, estou inteiramente ocupado.
- Mas monsieur - insistiu Stephen, abalado mas com determinação. - Só lhe peço que veja o meu trabalho. Será demais um artista solicitar-lhe isso?
- Então o senhor é um artista? - O lábio de Tessier reentrou. - Felicito-o. Sabe que cada semana sou assediado, atacado e importunado por pessoas que se intitulam
génios e imaginam que eu desmaiarei num êxtase quando contemplar os seus execráveis esforços? Mas nunca tinha encontrado um com o atrevimento de me procurar aqui,
no auge da minha exibição de outono.
- Lamento perturbá-lo... mas o assunto é um tanto urgente.
- Urgente para mim... ou para o senhor?
- Para ambos. - Stephen engoliu convulsivamente. Na sua agitação, falou sem controle. - O senhor acaba de vender um Millet por uma soma considerável. Perdoe-me,
não pude deixar de ouvir. Dê-me uma oportunidade e eu lhe mostrarei um trabalho tão fino como qualquer coisa vinda de Barbizon.
Tessier relanceou os olhos para Stephen, notou a sua aparência perturbada, a dilatação dos seus olhos.
- Por favor - disse ele de maneira fatigada, abandonando o argumento.
- Mais uma vez, rogo-lhe.
Afastou-se para um lado, entrou no salão e um instante depois perdia-se de vista. Stephen, que tinha começado, com pressa nervosa, a desfazer o embrulho, ficou por
um momento muito pálido; depois, com uma expressão estranha, andou para a porta. Ao chegar à rua, o barbante, mal amarrado, desatou-se e as três telas caíram na
calçada molhada e escorregaram para a sarjeta.
Apanhou-as com cuidado, com uma ternura quase ridícula. O simples ato de abaixar-se fez-lhe a cabeça dar voltas. Mas teimosamente, com uma intensidade quase fanática,
disse a si mesmo que não seria derrotado. Havia outros negociantes de quadros em Paris, menos arrogantes, certamente mais acessíveis do que esse intolerável Tessier.
Vagarosamente, caminhou, através do tráfego, para a Rue de la Boétie.
Duas horas depois, molhado e ainda atrapalhado pelos três quadros, estava de volta à Place St. Séverin, tão exausto que mal pôde subir para o seu quarto. Na verdade,
na metade da escada sentou-se num degrau para recobrar o fôlego. Ao fazê-lo, a porta junto ao patamar abriu-se e apareceu, vestido para sair, de tamancos, camisa
sem colarinho e um sobretudo surrado, um homem de cerca de 30 anos, alto e moreno, com uma pele descorada e olhos fundos de semita. Ao descer, quase tropeçou em
Stephen, recuou e estudou-o com um sorriso amargo, peculiar.
- Não teve sorte? - exclamou.
- Não.
- Tentou com quem?
- A maioria deles... de Tessier para baixo.
- Salamon?
- Não me lembro.
- Ele não é mau. Mas nenhum deles está comprando agora.
- Tive uma oferta. Duzentos francos para falsificar um Breughel.
- E você aceitou?
- Não.
- Ah, a vida tem seus pequenos vexames. - E depois de uma pausa: - Como se chama?
- Stephen Desmonde.
- Chamo-me Amédée Modigliani. Venha tomar um drinque.
Dirigiu o caminho de volta ao patamar e abriu a porta do seu quarto. O seu apartamento era quase idêntico ao de Stephen, mas talvez mais sórdido. Num canto, ao lado
da cama por fazer, havia uma pilha suja de garrafas vazias, e no centro um cavalete com uma pintura quase terminada, um nu reclinado.
- Gosta? - Servindo dois Pernods de uma garrafa que tirara do armário, Modigliani inclinou a cabeça para a tela.
- Sim - disse Stephen após um momento.
Havia na pintura um estilo pessoal, marcado por seus esforços numa linha arabesca, algo de monumental e puro.
- bom - disse Modigliani, passando-lhe o copo - mas esse quadro porá o comissário de polícia atrás de mim. Ele já proclamou que os meus nus são escandalosos.
O absinto, fortalecendo Stephen, clareando o seu cérebro, evocou uma nota de recordação.
- Você não exibiu nos Indépendants? Le Joueur de Violoncello?
O outro fez um gesto afirmativo.
- Não era o meu melhor trabalho. Mas foi vendido. Agora eles não comprarão nada. Na verdade, se não fosse o meu talento para plongeur no Hotel Monarque, eu teria
sido gentil com os meus críticos e deixado de existir.
- Um plongeur? - Stephen não compreendia.
- Sim, gostaria de experimentar o trabalho? vou para lá agora. É um emprego fascinante. Um leve sorriso, saturnino, apareceu nas suas feições impassíveis, cor de
oliva. - E eles sempre apreciam um empregado novo.
- Tentarei qualquer coisa.
Saíram juntos e começaram a andar em direção à Etoile. O Grand Monarque, um dos famosos hotéis parisienses, era uma imensa construção palacial no estilo Terceiro
Império, ocupando um quarteirão inteiro, logo depois dos Grands Boulevards. Imponente e digno, um tanto fora de moda, com degraus de mármore, tapetes vermelhos,
as vastas salas públicas com lustres cintilantes, um bando de atendentes esvoaçando atrás das portas de metal polido, como sentinelas, para receber os embaixadores,
dignitários estrangeiros e príncipes nativos, que estavam entre os seus visitantes, dava uma sensação de opulenta magnificência. Modigliani, contudo, quando chegaram
ao pórtico central, não tentou uma entrada, mas guiou o caminho em torno de um canto escuro e por uma passagem que dava para as dependências dos fundos, flanqueada
por uma bateria de latas de lixo amassadas; um lance de escadas admitiu-os no subsolo.
Era menos um subsolo do que uma imensa adega subterrânea, com o teto úmido e pingando, atravessada por uma confusão de tubos de ferro, de paredes
escamadas, pegajosas de bolor, o chão de pedra-britada com água de despejos até os tornozelos, tudo fracamente iluminado por umas poucas lâmpadas elétricas nuas,
cheio de vapor, barulho e uma confusão babélica de vozes. Ali, numa comprida calha, uma fila de homens, arrebanhados, parecia, na ralé de Paris, estava febrilmente
lavando pratos que uma turma de ajudantes de cozinha continuava trazendo apressadamente, embraçadas, das cozinhas contíguas. Agora, pensou Stephen, após acomodar
os olhos àquela visão de pesadelo, sei o que significa um plongeur.
Entrementes, Amédée tinha se aproximado do contremaître, que, com um olhar indiferente para Stephen, entregou-lhe um disco de metal com um número estampado e marcou
o tempo a giz, diante desse mesmo número, numa ardósia que pendia do seu cubículo, ao lado de um aviso que advertia que se alguém fosse apanhado tirando porções
de alimento seria sumariamente processado.
E agora, imitando seu companheiro, Stephen tirou a sua jaqueta e, tomando lugar na fila, começou a lavar os pratos do jantar empilhados na pia. Não era trabalho
fácil, curvado sobre a calha baixa, e não havia interrupção. O odor da água espumosa nunca mudava, o mau cheiro da graxa e restos de comida era nauseante. Periodicamente,
a pasta de restos entupia o ralo e tinha que ser retirada com a mão. Era estranho, durante esse processo, ouvir um leve sopro de música polida vindo da orquestra
no pátio de palmeiras lá em cima.
Cerca das 11 horas, o ritmo diminuiu, e antes da meia-noite houve uma parada definitiva, que indicava que as damas e cavalheiros lá de cima tinham Sido alimentados.
Amédée, que durante todo o tempo não pronunciara uma única palavra, pôs o seu casaco, acendeu um cigarro e, com um movimento da cabeça, chamou Stephen para a porta,
onde o contramestre, após uma olhadela na pedra do tempo, pagou a cada um 2 francos e 50.
Lá fora, ainda em silêncio, ele caminhou de ombros caídos pelas ruas escuras e, cinco minutos depois, guiou o caminho para um bistro que ficava aberto a noite toda.
Ali, enquanto Amédée bebia vários Pernods, Stephen consumiu um pratarrão de pot-au-feu, grosso de boas verduras e pedaços de carne de carneiro. Era a sua primeira
refeição satisfatória em muitos dias, e sentiu-se melhor.
- Não quer alguma coisa? - perguntou ele.
- Isto é carne e pão para mim. - Amédée olhava com dura indiferença para o fluido esverdeado e opalescente do seu copo, que segurava com os dedos manchados de nicotina.
- Tem sido a minha dieta há muito tempo.
Sentado no café deserto, as luzes amortecidas, a mesa de bilhar lá atrás, protegida para a noite, o garçom solitário, semi-adormecido, com o seu guardanapo sobre
a cabeça, atrás do balcão, Amédée revelou alguma coisa de si mesmo em frases lacónicas.
Nascido na Itália, provinha de uma família de judeus italianos, estudara, a despeito das interrupções causadas por doenças, em Florença, e na Academia de Veneza.
Nos últimos sete anos, inspirado pelos primitivos e pela arte negra, tinha trabalhado em Paris, às vezes com o seu amigo Picasso, e ocasionalmente com Gris. Não
tinha vendido praticamente nada.
- Assim é que agora - concluiu ele, com o seu sorriso sombrio mas inquieto - me vê enfraquecido pela pobreza, pelo excesso de álcool, e pelo uso de drogas nocivas.
Sozinho, a não ser por uma moça que teve a desgraça de me conhecer. Despido de qualquer reputação. - Emborcou o resto da bebida e levantou-se. - Mas alegre pelo
fato de que jamais aviltei a minha arte.
Disse boa-noite, sem ênfase, na escada que levava aos seus aposentos.
Por breve que tivesse sido, aquele estranho encontro foi providencial para Stephen. Agora, aguentando todas as noites cinco horas de trabalho suado nos porões fumegantes
do Grand Monarque, podia sobreviver e, o que lhe parecia mais importante, continuar a trabalhar com toda a sua força na Circe.
Finalmente, cerca de três semanas depois, numa tarde seca e fria, terminava o trabalho. Lá estava ela, naquela atitude familiar de descuidada insolência, indiferente
mas aliciante, com seu rosto pálido e olhos enigmáticos, aquela moderna filha de Helios, tendo como fundo não o palácio de Aiaia, mas a rua de um bairro miserável
de Paris onde se agrupavam os seus amantes vencidos, mudados e degradados na forma de bestas, e que, domados e abatidos, olhavam para ela com um desejo servil, como
se ainda estivessem sedentos por suas carícias.
Exaurido por esse esforço final, Stephen foi incapaz de avaliar sua obra, que tomara uma forma fantástica por força de uma compulsão a que ele não pudera resistir.
Sabia apenas que nada mais podia acrescentar, e, em um espasmo de impaciência nervosa, embrulhou o quadro no mesmo papel pardo amassado que já usara antes e o levou
para o Institut des Arts Graphiques, na Place Redon. Lá, um funcionário idoso tomou o seu nome e anotou meticulosamente todos os detalhes em um livro; depois, constatando
que a tela não tinha moldura, relutou em aceitá-la.
- O senhor vê, monsieur, a especificação é de montage.
- Não notei.
- Mas é evidente. Olhe, monsieur, todas as outras peças estão corretamente montadas.
Stephen, relanceando os olhos por uma comprida galeria com dezenas de pinturas, sentiu uma súbita apatia. De uma maneira ou de outra, não se importava.
- Não posso comprar uma moldura. Aceite como está ou não aceite.
- Isso é muito irregular, monsieur. Mas, se quiser, deixe-a.
De volta ao seu sótão, sentou-se, apoiando a cabeça com as mãos, tomado
por uma letargia de pós-criação. E agora... que faria? Impossível continuar no Monarque - sua alma revoltava-se com essa ideia - contudo estava à beira da indigência.
Tirante as roupas que usava, o equipamento de pintura, e 15 soldos, não possuía nada de valor material. Tudo mais tinha empenhado. Levantou-se e olhou no armário.
Continha a metade de um pão, duro como pedra, e uma fatia de queijo. Lá embaixo, Amédée estava ausente há três dias, submerso numa das farras em que periodicamente
sucumbia, e da qual emergiria, entontecido, em alguma remota região da cidade. Atrás da divisão de madeira, o casal da porta ao lado tinha começado uma briga, gritando
um para o outro. Crianças brincando, discutindo, aumentavam a barulheira. Apesar da janela aberta, o quarto estava abafado pelo ar viciado da cidade, e nos lambris
rachados começava a usual procissão noturna de baratas.
Tudo isso, bastante difícil de aguentar, não era nada porém comparado com a insuportável sensação de solidão e privação que lhe torturava o peito. Não mais amortecido
pelo analgésico do trabalho, o seu desejo de que Emmy voltasse era mais forte do que antes. Ao contrário de Ulisses, nSo tinha uma erva mágica para proteger-se contra
o seu encanto. Culpava-se por não a ter convidado para ver o quadro. No dia seguinte ela tinha partido, indo para o sul com a troupe de Peroz - não a veria antes
de pelo menos seis meses, se é que tornaria a vê-la. Lembrando-se da enfatuação que Madame Cruchot tivera por ele, tremeu com a peça que o destino lhe tinha pregado
- agora era ele quem assumia o ridículo papel.
Não tinha nada em que se ocupar, nem ao menos um livro para ler; sentia-se inteiramente mole para se aventurar às ruas. Quando anoiteceu, deitou-se na cama, mas
não pôde dormir. O dia seguinte era terça-feira, e surgiu com um suave e límpido amanhecer. Ele se levantou e se vestiu. A ideia dos veículos do circo partindo naquela
tarde para o campo aberto e a ensolarada Côte d'Azur atormentava-o novamente. De repente, sem quê nem por quê, veio-lhe uma ideia. Por um momento, ficou imóvel,
parado no meio do soalho. Seria capaz disso? Ao menos poderia tentar. Apanhando o chapéu, saiu rapidamente do quarto e tomou, trémulo, a direção do Boulevard Jules Ferry.


CAPÍTULO VII

NUMA EXTENSÃO DE TERRENO COMUM, logo após os taludes de Angeres, naquela tarde de sol muito brilhante para o fim de outubro, o Circo Peroz armou
a sua cidade de lona vermelho vivo. As barracas de espetáculos secundários já estavam em ação, uma musiquinha vinha do carrossel das crianças, e os aboyers começavam
as suas exortações aos poucos espectadores presentes.
No seu stand, no fim de uma linha de barracas, vestido com uma blusa azul, boina, uma frouxa gravata preta, vestuário composto para sugerir às mentes rústicas a
altura da arte parisiense, Stephen respirava longamente o ar do campo, aromatizado com a fumaça de lenha, cascas de laranja, serragem fresca, tanino, e o cheiro
dos cavalos. A seu lado aprumava-se um cavalete enfeitado com uma tabuleta que o exaltava como Grand Maître des Academies de Londres et Paris, e prometia uma semelhança
exata, feita à mão, de perfil ou de frente, em carvão de primeira qualidade, por apenas cinco francos, em cores ricas e permanentes por sete francos e cinquenta,
cortesia e serviço iguais aos dispensados às cabeças coroadas da Europa, satisfação assegurada.
Ouviu-se o relincho de um garanhão, o agudo clangor de uma corneta e o grunhido fraco de uma leoa velha. Com a sua tosse praticamente desaparecida, Stephen experimentava
uma súbita recuperação do seu bem-estar físico. Não lamentava o impulso que o levara a Peroz três semanas antes.
- Aproxime-se, aproxime-se, cavalheiro. Vamos, senhor, convença mademoiselle a ter o seu lindo rosto pintado. Não seja modesto. Deixe um retrato para os seus netos.
Um casal de campônios, de braço dado, vestido com as suas roupas domingueiras, hesitava à sua frente, e então corando, a moça tomou coragem e aproximou-se. Não era
bonita, mas ele, em poucos e rápidos traços, esboçou a sua figura na folha que estava no cavalete, deu relevo à sua coifa de renda fina, aos bordados à mão dos seus
punhos, e, ensinado pela experiência, não esqueceu o broche de camafeu, um óbvio tesouro de família, que ela usava no corpete.
Enquanto isso, uma pequena multidão se juntava, ouvindo-se murmúrios de aprovação pelo retrato terminado, e logo ele estava trabalhando bastante. Para ele, não era
mais que um processo mecânico executado sem pensar; contudo, divertia-se em dar a alguns dos seus retratos uma individualidade irónica, detendo-se no detalhe de
uma feição particular, um olho bovino, uma orelha grande, um nariz bulboso, como acontecia às vezes nas noites de sábado, quando um cliente era ofensivo, desenhando
com malícia uma caricatura que, as mais das vezes, provocava o riso dos outros.
Às seis horas, a multidão diminuía, como sempre, antes da função principal do circo, e apanhando a sua tabuleta e tirando a blusa e gravata, Stephen entrava por
um labirinto de cordas e lonas para um pequeno recinto atrás da barraca contígua. Ali, acocorado diante de um vivo braseiro, um homenzinho enrugado, de perneiras
gretadas e culotes sujos de veludo cotelê, estava cozinhando o jantar. De pernas tortas, cabelo cortado rente, tinha feições nítidas,
castigadas pelo tempo, exceto o nariz, que era chato e quebrado. Seus olhos eram miúdos como contas, parados, e o fulgor do braseiro lhes dava calor.
- Que temos esta noite, Jo-jo?
- O de sempre. - Jo-jo olhou para cima. - Mas também um pouco de salsicha de carne de porco fresca, de Angers, que achei na Tur Toussaint. É uma das duas especialidades
desta cidade.
- E a outra?
- Cointreau, naturalmente, mon brave. É feito aqui.
As salsichas, respingando numa frigideira, pareciam cheias de promessas. promissoras. Jo-jo, que na sua mocidade tinha sido jóquei, depois vendedor de barbadas,
depois cavalariço, e depois bookmaker, e que finalmente tinha sido aconselhado a sair de Longchamps, era um cavador perito. Conhecia todas as tramóias da França.
Ninguém gostava mais de regatear no mercado ou de pegar uma galinha extraviada de uma granja à beira da estrada.
- Gostei destas duas noites aqui. - Stephen deu lugar no braseiro para o coador de folha do café. - Amanhã estamos de folga até as três. Pretendo dar uma olhada
no rio.
- O Loire é um bom rio - disse Jo-jo com um ar de quem sabe das coisas. - Fundo bom de areia, com muito peixe bom. Vou deixar umas iscas de noite e ver se temos
sorte. De fato, todo o país é bom para nós - Tours, Bolis, e especialmente Nevers. O vinho é um tanto fraco, mas a bóia é de primeira, e as mulheres... essas putas
da Touraine, grandes atrás e na frente... - Assobiou e revirou os olhos.
Enquanto ele falava, a aba da barraca se abriu e entrou um homem de aspecto estranho, com calças de xadrez e suéter caqui de gola rulê. Era alto e franzino, tão
dolorosamente magro que parecia um esqueleto, e o rosto e mãos - únicas partes visíveis do seu corpo - estavam cobertos por uma espessa crosta de escamas cor de
cobre. Era Jean-Baptiste, que participava de um dos mais pobres caminhões com Stephen e Jo-jo. Manso, taciturno e melancólico, era um caso extremo de psoríase crónica,
uma doença da pele, indolor mas incurável, sendo exibido aos curiosos como o Crocodilo Humano, produto da união de um sáurio feroz e de uma nadadora do Rio Amazonas,
com o que ganhava uma modesta subsistência.
- Teve uma tarde boa, Croc? - perguntou Stephen.
- Não muito - respondeu Baptiste sombriamente. - Nem um íntimo.
Essa era a parte mais proveitosa da técnica de Croc em descobrir-se lentamente, das extremidades para baixo; quando chegava ao umbigo, fazia uma pausa e, deixando
seus olhos correrem pela plateia, exclamava dramaticamente, com uma espécie de sedução macabra:
- Para revelações mais íntimas, estou à disposição na tenda dos fundos. Ingresso especial para essas revelações privadas, apenas cinco francos.
Quando a comida ficou pronta, sentaram-se em volta do braseiro - uma grande caneca de sopa fumegante, seguida pelas salsichas, duras mas suculentas, temperadas com
ervas do campo, um molho com pedaços de pão fresco cortados com uma faca dobradiça. Somente depois que se juntara à troupe, Stephen aprendeu a saborear os aumentos
comidos ao ar livre. Depois houve café, quente, forte e arenoso, servido na caneca de sopa. Então Jo-jo enrolou um cigarro e, com o ar de um mágico, tirou do bolso
dos quadris uma garrafa do límpido licor da região.
- Que tal um gole de vinho do altar, Abbé?
O apelido tinha seguido Stephen de Paris - ele não se importava. Passaram a garrafa de mão em mão, bebendo o claro e ardente licor sem copos. Jo-jo enrolava-o na
língua.
- Você pode confiar nele. Feito com as melhores laranjas de Valença.
- Uma vez me aconselharam a nunca comer frutas. Outra vez me disseram que não comesse outra coisa - disse Baptiste, que gostava de falar no assunto da sua doença.
- Ao todo consultei 19 médicos. Cada um deles mais tolo do que o outro.
- Então tome outra dose do meu remédio.
- Ah, isto é que é remédio para mim!
- Você não pode se queixar, Croc. Não tem uma existência rica e interessante? Você experimenta as delícias de viajar. Em suma, você é famoso.
- É fora de dúvida que muitas pessoas têm viajado 50 quilómetros para
me ver.
- E não tem um grande sucesso com as damas?
- Tenho mesmo. Exerço um certo fascínio sobre elas.
Diante desta séria admissão, Jo-jo soltou uma risada. Depois, apagando o cigarro, levantou-se para ver os cavalos.
Era a vez de Stephen lavar as panelas. Quando terminou, ao lusco-fusco, as luzes produzidas pelo gerador brilhavam como vaga-lumes sobre a feira. Olhando, sentia
todos os seus sentidos despertados. Não tinha visto Emmy todo o dia. Mas ela não gostava de ser perturbada antes do espetáculo, e o povo já convergia para a grande
tenda. Guardou o cavalete e o resto da tralha numa caixa, debaixo do seu beliche no caminhão, vestiu as suas roupas comuns e caminhava para a entrada dos fundos
do picadeiro. De acordo com o seu contrato, era seu dever acompanhar os membros de terra da companhia, que indicavam aos espectadores os seus lugares, vendiam programas,
sorvetes, citronade, e aquela marca de nugá feita especialmente em Paris para o Circo Peroz.
Parecia a Stephen uma excelente "casa" - o circo tinha uma reputação merecidamente popular através das províncias, e, com bom tempo, a mercadoria dos stands era
em geral totalmente vendida. Esta noite, fila após fila de rostos expectantes e rosados se ergueram da serragem do picadeiro. Subitamente,
na sua alta plataforma, vestido de vermelho e dourado, quando a charanga atacava uma grande marcha, o mestre do picadeiro, o próprio Peroz, apareceu de cartola,
alamares brancos e capa escarlate, dirigindo um cortejo de póneis que entraram na arena a meio-galope, atirando as crinas para os lados, e o espetáculo começou.
Embora, a esse tempo, conhecesse os números de cor, acocorado junto à grade do corredor da entrada dos artistas, com um bloco de esboços no joelho, Stephen acompanhava
cada fase, cada movimento do espetáculo com absorvido interesse, notando, vezes e mais vezes, os ritmos da coordenação muscular, o jogo de luzes e tons das cores
no vasto caleidoscópio cintilante, e mesmo as reações individuais, às vezes cómicas e bizarras, das pessoas da plateia.
Era fascinante, aquele novo mundo que ele havia descoberto, com os seus soberbos cavalos de alta escola, montanhosos elefantes e sinuosos leões de olhos amarelos,
seus acrobatas às cambalhotas, jograis prestidigitadores, funâmbulos da corda bamba sob os seus pára-sóis de papel. Observando, Stephen pensava na famosa peça de
circo de Manet, Lola no Arame, e na sua atual disposição melhorada sentia que podia desenhar aquele campo com igual riqueza. Desenho, sem dúvida, haveria, mas acima
de tudo a cor seria o instrumento da sua expressão. Via na sua paleta as cores puras, os ultramarinos, ocres e vermelhões, via como podia humanizá-lo sem reduzir
a sua intensidade. Criaria um novo mundo, um mundo que só ele percebia, um mundo somente para ele. Curvado no seu canto, desenhava e desenhava. Este era o seu verdadeiro
trabalho; os retratos que pintava de dia não eram mais que um meio de vida, e na pasta em sua caixa fechada já tinha dezenas de estudos que usaria numa formidável
composição.
Após o intervalo, davam entrada os artistas mais importantes - a troupe Dorando, de trapezistas; Chico, o engolidor de espadas; Max e Montz, os palhaços famosos.
A seguir, um soalho de madeira era rapidamente montado no centro do picadeiro e ouvia-se a fanfarra que conhecia tão bem, e que sempre fazia o seu coração bater.
Então, embaixo, via Emmy pedalando, usando uma blusa de cetim branco, calções brancos e compridas botas brancas. Ao chegar ao assoalhado, começava a executar, à
luz da bicicleta niquelada, uma série de evoluções que deixavam o espectador tonto, circulando e recuando e avançando, sempre no pequeno espaço, mudando de posição,
até que dirigia de cabeça para baixo segura no guidom, finalmente desmontando em movimento e fazendo complexas configurações numa roda só.
Talvez essas manobras fossem menos difíceis do que pareciam, mas o culto da bicicleta, uma paixão nacional que anualmente chegava ao auge nas agitadas semanas devotadas
ao Tour de France, tornava-a popular junto ao público. Uma tempestade de aplausos reboava embaixo da grande cúpula, seguida por um silêncio enquanto Emmy caminhava
para uma curiosa estrutura na
extremidade do picadeiro. Era um elevado escorregador, uma estreita fita de metal pintada de vermelho, branco e azul, que descia que descia quase verticalmente do
teto da tenda e terminava numa curva que subia bruscamente.
Alterando o seu ritmo, a banda exagerava a expectativa, enquanto Emmy, subindo lentamente por uma escada de corda, alcançava a minúscula plataforma do topo. Lá,
entrevista nas últimas espirais de fumaça, ela desenganchava uma bicicleta mais pesada das travas que a sustinham e segurava-a, testava o quadro, espichava os membros,
passava giz nas mãos, montava na máquina sobre a plataforma e, por um longo momento, parecia estar suspensa, quase flutuando na névoa de vapor. Os metais, que tinham
gradativamente diminuído para um profético murmúrio, vinham agora novamente à vida, apoiados por um estaccato de tambores que rufavam e reverberavam cada vez mais
alto. Era o instante que fazia Stephen desejar fechar os olhos. Jo-jo lhe dissera que, havendo perícia e coragem, o perigo era limitado; a estria branca do centro,
na qual as rodas deviam andar precisamente, tinha menos de 15 centímetros de largura, e depois da chuva, ou quando a umidade era grande, a superfície escorregadia,
apesar de enxugada, era traiçoeira. Contudo, não havia tempo para pensar - numa tempestade final de som, Emmy soltou-se, caiu parecendo uma pluma, projetou-se para
cima na curva e pousou na plataforma de madeira com uma velocidade que a carregava para fora da tenda como um raio.
No meio dos aplausos, embora não pudesse sair, Stephen escapou e rodeou para a barraca onde os artistas se vestiam. Teve que esperar 15 minutos até que ela saísse,
e imediatamente sentiu que ela não estava de humor muito amável.
- Então? - perguntou ela.
- Você esteve ótima... notável - afirmou ele.
- A pista estava molhada - um orvalho pesado - e esses fripons preguiçosos não enxugaram nem a metade. Então não sabem que é suicídio deslizar numa pista úmida?
Eu quase não desci. - Em várias ocasiões, por causa disso, tinha cancelado o número - de fato, tinha um acordo com Peroz que lhe permitia tomar essa resolução. Mas
a queixa deixou-lhe a voz. - Mas esta noite eu queria mesmo.
- Por quê?
Ela não pareceu ouvi-lo. Então, indiferente, respondeu:
- Por causa daqueles militares.
- Soldados?
- Não, estúpido, oficiais, naturalmente. Havia aqui uma escola de cadetes do primeiro ano. Não viu o grupo na frente da tribune?
- Acho que não.
- Uma turma elegante, isso era, nas suas túnicas. Eu gosto de uniforme.
E eles estavam querendo que eu os visse. Não que eu notasse, naturalmente. - A sua expressão amuada afastou-se um pouco. - Eu fiz um extra para eles.
Ele mordeu o lábio, procurando abafar o ciúme que ela tinha tanta capacidade de despertar nele. Após o calor sufocante da tenda, o ar era leve e fresco.
- Vamos caminhar até os muros da cidade... lá é muito bonito.
- Não. Não estou com disposição.
- Mas está uma noite tão linda. Olhe, a lua acaba de sair.
- E eu vou entrar.
- Não vi você o dia todo.
Nenhum músculo do seu rosto Se moveu.
- Já me viu agora.
- Apenas um momento. Venha.
- Já não lhe disse que fico cansada depois do meu número? A tensão é muito violenta. Pra você, tudo muito bem, vendendo programas e nugá lá embaixo.
Ele viu que era inútil insistir mais. Escondeu estoicamente o seu desapontamento. Chegaram ao caminhão que ela partilhava com Madame Armande, a mulher que cuidava
do vestuário da troupe. Ele tinha pensado nela o dia inteiro, sentia-se faminto por sua companhia, por um sinal da sua afeição. E ela estava ali, a sua figura ao
luar, rija, sedutora; queria agarrá-la e beijar à força o seu rosto pálido e indiferente, a sua boca ligeiramente entreaberta. Mas não fez nada disso, limitando-Se
a dizer:
- Não se esqueça de amanhã. Venho buscá-la às 10.
Viu-a subir as escadas a correr e desaparecer no caminhão.
Ao voltar, a função tinha terminado e a multidão se despejava pela saída da grande tenda, falando, gesticulando, rindo. Todos pareciam felizes, satisfeitos com a
vida e consigo próprios, ao voltarem aos seus lugares comuns e confortáveis. Stephen perdeu aquela sua primeira disposição alegre. Inquieto e perturbado, não podia
voltar ao seu canto, enfrentar as caçoadas de Jo-jo e os roncos de Baptiste. Saiu para as muralhas sozinho.


CAPÍTULO VIII

NA MANHÃ SEGUINTE, trazida por uma alvorada mansa e cinzenta, ela o surpreendeu e alegrou por sua pontualidade. Estava quase pronta quando ele chegou,
e pouco depois estavam nos seus vélos, rumando para o Loire, no belo contorno de Angeres, com as suas muralhas romanas, a Catedral de St. Maurice com suas agulhas
e as arcarias da préfecture atrás deles. Como sempre, ela imprimia um ritmo muito veloz, curvada sobre o guidom, as pernas movimentando-se como pistons, com o firme
propósito de deixá-lo para trás. A bicicleta dele, comprada barato com o seu primeiro pagamento semanal, era um modelo antigo; contudo, o ar fresco e a comida do
campo tinham-no robustecido. Embora lhe custasse um esforço contínuo ladeira acima, mantinha o seu lugar pouco atrás do ombro dela.
Atravessaram, dali a pouco, um arvoredo à esquerda e imediatamente se descortinou todo o esplendor do vale - o rio grande e largo brilhando na luz plácida, movendo-se
preguiçoso entre as ribanceiras e sobre baixios de areia dourada, passando por altos tufos de vimeiros, barcos de fundo chato atracados e ilhotas verdes. Na estrada
serpenteante, pesada pela areia, diminuíram a velocidade. Por trás de uma cortina de faias, Stephen avistou as torres pontudas e a fachada musguenta de um antigo
castelo. A beleza da região era inebriante para o seu espírito. Soerguido, olhou para a sua companheira, fez como se fosse falar, mas, depois, sabiamente, absteve-se.
Por volta do meio-dia, chegaram a um staminet à beira do rio, onde, acima da porta, um peixe monstruoso, enredado em algas, nadava numa caixa de vidro. Primeiro,
Stephen tinha proposto um piquenique, mas isso tinha pouca atração para Emmy, que sempre preferia parar em algum café provavelmente freqüentado pela confraria esportiva,
onde, numa atmosfera de camaradagem, havia livre companheirismo, vivas conversas em gíria e a música de um acordeom. A estalagem, todavia, embora possuísse um considerável
encanto, estava vazia de clientes - um fato que não desagradou Stephen, que sofria com a admiração demasiado franca que a sua companheira gostava de provocar. Atravessaram
o soalho de pedra limpo com areia, sentaram-se à mesa esfregada com escova e sabão junto a uma janela, da qual pendia um banco, e, após consultarem a proprietária,
escolheram um prato de peixe local que ela recomendara muito. Este chegou pouco depois, numa enorme travessa de madeira, um fritto de minúsculas espadilhas do Loire,
cada uma não maior do que um filhote de arenque, cozidas tão secas que se quebravam ao toque do garfo. Com eles vieram pommes frites e uma jarra de Bière Navarin,
preferida por Emmy.
- Isto é bom - disse Stephen, olhando por cima da mesa.
- Não é mau.
- Gostaria de pedir uma garrafa de vinho para mim - disse ele em tom de pedido.
- Eu gosto desta cerveja. Faz-me lembrar de Paris.
- Num dia como este?
- Em qualquer dia Paris me basta.
- Ainda assim... você não se importa de estar aqui não é?
- Podia ser pior.
Emmy não era afeita a superlativos, mas neste momento estava de excelente humor, e dali a pouco pôs-se a rir.
- Você não adivinha o que eu recebi esta manhã. Flores. Rosas. E um billet-doux de um dos oficiais.
- Ah, sim? - A sua expressão tornou-se ligeiramente rígida.
- Aqui está. Monograma gravado e tudo. Com outra risada, apalpou o bolso e tirou um bilhete cor-de-rosa amarrotado. - Dê uma olhada.
Ele não tinha vontade de ler o bilhete, mas também não queria ofendê-la. Passou rapidamente os olhos, notando o duplo sentido das frases polidas que a convidavam
a ir tomar um aperitivo na Terrasse e depois jantar no Le Vert d'Eau. Devolveu-o sem comentário.
- Ele é capitão, parece. Acho que o vi no grupo de ontem à noite. Alto e bonito, de bigode.
- Você vai? - perguntou ele, mascarando os seus sentimentos com um tom inexpressivo.
A fria ironia da sua maneira atravessou a sua auto-estima. Ela raramente corava, agora uma leve cor apareceu por baixo da sua pele branco-azulada.
- Quem é que você pensa que eu sou? Conheço essas guarnições da cidade e o que se pode arranjar com elas. Pra mim não, obrigada.
Stephen ficou silencioso. Embora se desprezasse por isso, e em vão tentasse combatê-lo, de tempos em tempos o ciúme lhe vinha num impulso dominador. A simples ideia
de que ela pudesse sair sozinha com aquele oficial desconhecido causava-lhe um sofrimento penoso. Contudo, ela declarara categoricamente que iria ignorar o convite;
assim, obrigando-se a ser razoável, forçou um sorriso conciliatório.
- Vamos descer até o rio. - Quando brigavam, era sempre ele quem procurava fazer as pazes.
Pagou a conta, e desceram à beira da água. O sol, geralmente quente para aquela época do ano, tinha esmaecido e, lançando reflexos da água que faziam fechar os olhos,
envolveu-os num banho de luz. Ele amava o sol - sol e água eram os deuses gémeos que poderia adorar. E enquanto ela acendia um Caporal e, com os olhos fechados,
relaxava numa postura cómoda na sombra de um salgueiro, ele sentou-se na claridade aberta e começou a desenhá-la. Já tinha feito dezenas de desenhos, nos quais se
refletia não apenas a intensidade do seu sentimento por ela, mas também a complexa interação de angústia, desejo e, por vezes, quase ódio que o compunha.
Não estava cego àquela forma de egoísmo, crueldade e vaidade, que em outra pessoa teria provocado o seu desprezo. Sabia que ela apenas o tolerava
- talvez porque a sua mentalidade gaulesa se detivesse nas possibilidades da grande proprieté, mas principalmente, e disso tinha certeza, porque o seu evidente desejo
a lisonjeava, dava-lhe uma sensação de poder apreciada por sua natureza. Ela lhe trazia mais sofrimento que felicidade. Contudo, nada podia fazer. Desejava-a com
uma necessidade física que, não sendo por ela satisfeita, aumentava de dia para dia.
Dali a pouco, erguendo os olhos do bloco, viu que ela estava dormindo. Deixou escapar, involuntariamente, um suspiro nervoso e irritante. Soltando o seu bloco e
creions, aproximou-se mais da margem, e então, num impulso, tirou a roupa e mergulhou no rio. Sabia, pelas excursões anteriores, que ela não gostava daquilo - tinha
uma aversão felina pela água fria - mas para ele o choque daquelas águas vindas de fontes era uma revigorante delícia.
Quando voltou, ela estava em pé, sacudindo o capim do cabelo cheio e curto.
- Você sabe deixar os outros sozinhos.
- Pensei que estivesse dormindo.
- Que horas são?
- Ainda é cedo - disse ele, aproximando-se e enlaçando-a pela cintura.
- Ainda temos mais uma hora.
- Oh, deixe-me! - Inclinou-se para trás e empurrou-lhe o peito com as mãos. - Você está molhado.
- Mas Emmy...
- Não, não. Não devemos chegar atrasados. Você não vai querer perder o seu emprego. É tão agradável e conveniente para você, não é?
- Sim, claro - respondeu ele com voz tensa. Ela já estava voltando para a estalagem e Stephen a acompanhou.
Aquele raro interesse pelo seu bem-estar intrigava-o. E não se dissipou pela sua disposição animada, quando voltavam a Augers. Em voz alta, ela ia cantando trechos
da última canção do teatro de variedades:
Les jolis soirs dans les jardins de l'Alhambra Ou donc sont les belles?
Que l'amour appelle?...
Et le rendez-vous, de l'amour très fou.
E seguindo seu hábito quando estava alegre, deixava os habitantes locais de boca aberta, com uma exibição de ciclismo difícil ao passarem rapidamente pelas aldeias
ribeiras.
Ainda não eram três horas quando chegaram ao circo, e poucas pessoas estavam diante dele. Stephen trocou de roupa e armou o seu cavalete. Trabalhou toda a tarde,
de um modo ausente, sorumbático, com as linhas da testa
cada vez mais fundas. Embora lutasse contra a ideia de que ela abreviara a excursão a fim de ir ao encontro na Terrasse, essa ideia só fazia aumentar. O crepúsculo
não lhe trouxe nenhum alívio, e durante o jantar mal trocou uma palavra com Jo-jo e Croc.
Por fim, levantou-se bruscamente e foi para o outro lado do campo, onde estava o caminhão de Emmy. Madame Armande estava sentada nos degraus, com um balde entre
os joelhos gordos, lavando meias. Em certa época, ela fizera parte de um número de trapézio, mas quebrara o quadril numa queda e desde então caminhava coxeando.
Agora, aos 50 anos, pesada e sem formas, de pernas hidrópicas e papada, era conhecida como a mexeriqueira da companhia Jo-jo, que cuspia ao ouvir o nome dela, dizia
que durante o recesso de inverno ela gerenciava um estabelecimento de reputação duvidosa no porto do Havre.
- Boa noite - disse Stephen, tentando manter a voz calma. - Emmy está?
Madame Armande mediu-o de esguelha com os seus olhos miudinhos.
- Mas Abbé, você sabe muito bem que ela não vê ninguém antes do espetáculo.
- É só um instante.
Ela abanou a cabeça encaixada num lenço estampado com bolinhas.
- Eu não me atrevo a perturbá-la.
- Então... - Hesitou, ansioso por acreditar nela. - Está descansando?
- A mulher levantou os braços.
- E que mais? Nom de Dieu, acha que sou mentirosa?
A sua indignação era real ou fingida? Ele queria entrar no caminhão, mas a mulher e o balde bloqueavam a entrada. Não devia tornar-se completamente ridículo. Forçou-se
a fazer algumas observações convencionais, e voltou para a escuridão.
O povo chegava aos bandos, a função começava, risadas estrepitosas e aplausos enchiam a grande tenda. Ela estava atrasada. Seria por simples coincidência? Não podia
ter certeza. Procurou tranquilizar-se. Quando ela finalmente apareceu, a impressão, conforme sua fantasia superexcitada, foi de que estava mais aparatosa, mais espetacularmente
viva do que o usual. Gritos prolongados de "bravo!" vinham da tribune quando ela deixou o picadeiro.
Depois disso, na confusão de arrancar as estacas, não pôde vê-la. Melancolicamente, juntou-se a Jo-jo e Croc na tarefa de desmontar os stands. Trabalhando sem atenção,
cortou a mão num gancho de ferro. Não se importou. Um vento frio começava a fustigar o campo. O gerador foi desligado, as luzes elétricas se apagaram. Em toda a
volta, à luz de fogachos vermelhos, entre gritos e imprecações, homens trabalhavam como demónios, desencravando pontaletes, puxando cordas, lutando com grandes abas
de lona. Como sempre
acontecia na primeira hora de movimentação, os animais estavam nervosos, soltando em todos os tons, nas suas jaulas móveis, sinistros uivos de protesto. Os engenhos
de tração, pulsando e roncando, com os volantes girando, aumentavam o tumulto. Para Stephen, parecia que a cena vinha diretamente das gravuras do Inferno de Doré,
e que ele também estava sofrendo as torturas das almas danadas.


CAPÍTULO IX

DE ANGERS, O Circo PEROZ deslocou-se para Tours, depois para Blois, e então para Bourges e Nevers. O tempo se mantinha bom, o negócio prosperava, o velho Peroz usava
o seu chapéu num ângulo elegante. Após uma estada de três dias em Dijon, viraram para o sul e chegaram a Côte d'Or, detendo-se uma noite nas velhas cidades muradas,
com portões de acesso estendidas entre vinhedos, ao longo do vale do Ouche.
A princípio, Stephen era olhado com reserva pela companhia. Mas como a "retirada" semanal dos seus retratos era satisfatória, e uma percentagem fixa dessa soma ia
para o tronc, do qual todos os artistas participavam quando era distribuído em Nice, ele começou a ganhar importância. Além disso, as suas maneiras agradáveis e
disposição tranquila logo o puseram em termos amistosos com a maioria da troupe.
Formavam um painel humano. Fernand, o domador de leões que passeava destemido na jaula circular de ferro das feras, como um hussardo no seu uniforme azul e prateado,
com uma manga dramaticamente rasgada em pedaços, era o mais tímido dos homens, sofrendo agudamente de dispepsia nervosa e sendo mimado com uma dieta de leite por
sua devotada esposa. Os próprios leões eram inofensivos como vacas, na maior parte muito velhos, os machos castrados rugiam somente porque queriam o seu jantar,
e todo o aparato de cercar a jaula de auxiliares com ferros em brasa era pura encenação.
"Não tivemos um acidente em 20 anos", observava complacentemente Peroz no boletim que antecipava ao jornal local da próxima cidade do circuito.
ESCAPOU POR UM TRIZ NO CIRCO PEROZ
LEOA ATACADA DE LOUCURA
Fernand gravemente machucado
Max e Montz, ambos anões, eram os dois palhaços principais, um par internacionalmente famoso, cujo número maior era chamado "O Rapto", um esquete no qual Max, ataviado
em rendas grotescamente fora de moda, desempenhava o papel de noiva velhota. A rotina, executada num antigo automóvel Panhard que enguiçava e se recusava a funcionar,
caindo finalmente aos pedaços, era ruidosamente cómica. Max, com o seu beicinho de criança, fazia a platéia morrer de rir. Contudo, fora do picadeiro mostrava uma
melancolia mais profunda que a de Hamlet, tendo confiado a Stephen que a paixão de toda a sua vida era o violino.
Com tais incoerências diante de si, Stephen ficou menos surpreso ao descobrir que o equilibrista japonês era um adepto da Ciência Cristã, que Nina D'Amora, que cavalgava
em pêlo, era alérgica a cavalos e em consequência sofria cronicamente de asma, ao passo que Philippe, que todas as noites corria riscos espetaculares no trapézio
alto, passava a maior parte do seu tempo de folga tricotando meias.
Por formar um grupo com Jo-jo e Croc, Stephen via-os mais do que aos outros. Jean Baptiste, por baixo da sua aparente apatia, era um homem sensível e inteligente
- Stephen fez dele vários esboços notáveis, em pé na sua plataforma, diante da multidão boquiaberta. Fora bem educado no lycée de Rouen, e chegara a assumir uma
posição com boas perspectivas numa excelente firma, La Nationale. Então lhe viera aquela afecção incurável, transformando-o gradualmente de um ser normal em um monstro
medonho - um irremediável desenvolvimento - e levando-o ao desespero final de um show secundário no Circo Peroz.
Mas era a Jo-jo que Stephen dispensava uma particular atenção. O ex-jóquei era um rematado patife que roubava em qualquer oportunidade, trapaceava pelo interior
e embebedava-se até cair e ficar no chão estuporado, "curando" a bebedeira. Contudo, na sua duplicidade havia uma qualidade curiosamente humana de que se gabava:
jamais em sua vida ter deixado um amigo sem ajuda. Às vezes, de noite, depois de ter visto Emmy, quando vinha ao camion adaptado onde ele e os outros dois moravam,
Stephen surpreendia Jo-jo com o olhar peculiarmente fixo nele - menos por simpatia, uma emoção que Jo-jo era incapaz de sentir, do que por uma espécie de cínica
compreensão, levemente tingida de escárnio.
- Saiu com a sua garota?
- Parece, não?
- Divertiram-se?
Stephen não respondia.
Em várias ocasiões, o ex-jóquei parecia querer tratar do assunto, mas em vez disso encolhia os ombros e voltava-se para Jean Baptiste, iniciando com ele uma discussão
que tornava intencionalmente grosseira, como agora:
- Qual é a sua opinião sobre as mulheres, Croc?
- Considero-as com tolerante desprezo.
- Você fala como um marido.
- Sim... já fui casado. Minha esposa agora opera a passage à niveau em Croiset, no Chemin de Fer du Nord. A minha mais cara esperança é que um dia o expresso de
Paris, correndo 90 quilómetros por hora, atinja-a numa parte vulnerável.
- De minha parte, apesar de nunca ter me casado, gosto de mulheres. Mas só para dormir com elas. Para o resto, são piores que uma gonorréia.
- Mas a gente consegue isso dormindo com elas.
- Não com as minhas mulheres. Nunca escolho putas. Somente boas e honestas esposas camponesas que encontro no mercado e estão à procura de alguma ligeira variedade.
- Ah, variedade! Essa é a verdadeira palavra - à qual devo muito do meu último sucesso.
- Você, escamado?!
- Mas certamente. Tenho feito muitas conquistas com meus íntimos através da curiosidade. Mulheres entediadas com o leito matrimonial fazem qualquer coisa por uma
novidade. Li uma vez que um assassino condenado à guilhotina pode escolher dezenas de mulheres.
- Sacré bleu! Embora mereça, você não vai perder essa cabeça feia.
- Não. Mas exerço a mesma atração. Refletindo sobre a força da cauda do crocodilo, as mulheres acreditam que sou dotado de um formidável poder fálico.
- Mas você as decepciona, farceur.
- Isso só aconteceu uma vez, Jo-jo. Era uma gorda, solteirona, sem ligações, que durante meses me seguia na esperança de que os nossos repetidos enlaces produzissem
um jacaré. Infelizmente a criança nasceu normal.
Uma gargalhada profana encheu o caminhão, mas Stephen não participou dela. Sabia que o diálogo era dirigido a ele, não por qualquer intenção maldosa, mas como um
remédio administrado à vítima de uma febre renitente. Contudo, a sua doença já progredira tanto, que parecia incurável, intensificada pelos humores e incoerências
de Emmy. Às vezes ela o tratava bem, sentava-se nos degraus do caminhão, lisonjeada por suas atenções, cheia de sua própria importância, balançando os pés nus ao
sol. E conquanto não fosse pródiga com os seus favores, vez por outra, quando passeavam juntos no escuro, deixava que ele a beijasse antes de se afastar rapidamente.
Em vão ele dizia consigo mesmo que, numa natureza tão carente de profundidade, jamais despertaria uma paixão correspondente. Voltejava em torno dela como um marimbondo
em torno de uma nectarina, mas sem penetrar uma única vez na carne macia do fruto.
Numa tarde chuvosa, quando tinham deixado o agradável distrito do Saône pelo território estéril do Pays de Dombres, foram até uma pequena e dispersa comunidade de
Moulin-les-Drages. O seu destino inicial era St. Etienne, mas o trator principal quebrou na estrada, detendo uma longa fila de carros rebocados, e uma vez que o
conserto demoraria pelo menos 24 horas, era forçoso fazer um alto. Peroz, muito aborrecido por perder uma data importante, resolveu, após considerável debate, oferecer
um espetáculo em Les Drages e assim diminuir um pouco o seu prejuízo.
Mas tendo começado com má sorte, o dia continuou de mal a pior. Cartazes não tinham sido previamente afixados; a cidade, investigada, mostrou ser mesquinha e pobre,
sendo a única indústria uma olaria decadente. E a chuva aumentava continuamente. Quando chegou a noite, não havia mais de 100 pessoas na tenda gotejante.
Honrando a tradição Peroz, a maior parte dos artistas apresentou os seus números em bom estilo, voltando depois para a grande estufa da sala de estar. Emmy, contudo,
foi menos afortunada. Duas vezes, durante as suas evoluções preliminares, as rodas derraparam e ela foi atirada no chão molhado. Como resultado, cortou a parte principal
do seu número e saiu do picadeiro pedalando com a cabeça no ar. A primeira queda provocara risadas na plateia aborrecida; a segunda, uma positiva zombaria, seguida
de uma vaia com miados de gato.
Quando Stephen a viu depois, fora da tenda, ela ainda estava pálida com o vexame. Ele sabia que não devia falar, e por isso saiu com ela pela estrada em direção
ao acampamento, cerca de um quilómetro e meio distante, onde os carros estavam estacionados. Para piorar as coisas, não tinham andado muito quando desabou um forte
aguaceiro, forçando-os a se abrigar num celeiro ao lado de um campo aberto de restolho.
Quando seus olhos se habituaram à escuridão, Stephen olhou em torno, observando que o lugar estava cheio de palha. Rompeu o silêncio.
- Aqui pelo menos está seco. - E acrescentou: - Estou contente porque não apresentou hoje a parte final. Aquela gente não merecia.
- Que quer dizer?
- Bem... - Corou ligeiramente. - Eram gente um tanto antipática.
- Não notei. Eu sempre domino a minha plateia.
- Então por que não desceu?
- Porque a pista estava ensopada. Você não entende que na chuva isso é suicídio? - Num ataque de mau humor, seus olhos cintilaram para ele. Quem é você para ficar
aí me criticando? Sabe lá os riscos que eu corro todas as noites, enquanto você fica sentado lá atrás, rabiscando numa folha de papel, com menos coragem do que um
piolho? Eu desço ou não desço exatamente quando resolvo. E não vou quebrar o pescoço por nenhum padrezinho.
Ele a encarou por um momento, agora tão pálido quanto ela; depois, furioso, agarrou-a subitamente pela cintura.
- Não me fale assim!
- Largue-me.
- Só se me pedir desculpa.
- Fiche-toi le camp.
No próximo instante estavam lutando. Cego de raiva, recordando todos os insultos e desfeitas que ela acumulara nele, resolvido a vencê-la fisicamente, fechando ambos
os braços em torno dela como um lutador, tentou levá-la ao chão. Mas ela lutava como um gato selvagem, torcendo-se e revolvendo-se na palha fofa, malhando-o com
os cotovelos. Ela era mais forte do que ele julgava, com músculos curtos e poderosos de felina agilidade. Começou a respirar pesadamente, sentindo a pressão do seu
corpo contra ele. Retesando cada músculo, ele resistia. Rolaram por aqui e ali, sem decisão, até que ela, encolhendo a perna por trás dele, atirou-o longe com uma
rápida distensão.
- Está vendo? - disse ela. - Que isso lhe sirva de lição.
Ele se levantou devagar. Estava menos escuro do que antes; através da
clarabóia do celeiro, a lua era visível correndo entre as nuvens. Com um esforço, ainda tentando recuperar o fôlego, forçou-se a olhar para ela e viu, com confusa
surpresa, que ela não havia levantado; estava deitada de costas sobre a palha, com o vestido ainda desarranjado pela luta, observando-o através dos olhos apertados
com uma curiosa expressão especulativa, excitada, mas, ainda vagamente zombeteira. No seu rosto, geralmente de uma palidez fria, havia uma orla de cor, nos seus
lábios pálidos um sorriso ligeiramente mau. Por um momento, sustentou o olhar dele; depois, colocando ambos os braços embaixo da cabeça, numa atitude menos de sedução
que de expectativa, fez um movimento impaciente.
- Então, estúpido... que está esperando?
O convite que ele tanto havia procurado era inconfundível, contudo tão descarado, tão despido da menor semelhança de afeição, que ele não podia se mover. Petrificado
e repelido, mirava-a, e, girando, saiu do celeiro sem uma palavra.
- Molenga! - gritou-lhe ela. - Espèce de crétin.
Ele caminhou talvez uns 30 metros antes que o desejo lhe surgisse novamente, mais desesperado do que antes. Pouco se importava, queria-a, e haveria de possuí-la
de qualquer maneira. Virou-se e voltou.
- Emmy... - Estava fraco, encolhido de desejo por ela. Mas agora ela estava fria e dura como uma pedra.
- Vá para o inferno - disse ela outra vez zangada. - Agora espere outra oportunidade.
A expressão dos seus olhos dizia-lhe que era inútil insistir. Novamente
saiu do celeiro. Sem saber aonde ia, caminhava direto para a frente, com os olhos contraídos e os lábios apertados. Naquelas últimas semanas, vitimado por seu desejo
insaciável, reduzido a uma perpétua atitude de propiciação, já tinha sido bem humilhado. Mas agora, ferido em sua sensibilidade, sentia-se no mais baixo nível de
abjeção. Não podia, não devia submeter-se a isso.
Seus pensamentos não tomaram uma forma coerente até chegar de volta ao acampamento do circo. Uma vez que o motor enguiçado não seria reparado antes da manhã seguinte,
nada tinha sido desmontado, e no campo enlameado a grande tenda se erguia deserta e vazia. Alguma coisa buliu dentro dele. A luz brilhando através da abertura do
topo do dossel banhava o picadeiro com uma luz espectral, mostrava a pista inclinada, que não fora desmontada, brilhando de umidade. Um estranho impulso, um senso
de dever para consigo mesmo, lentamente foi tomando forma no seu espírito atormentado. Olhando para cima, viu que o equipamento ainda estava no lugar. Incapaz de
reprimir um arrepio, dirigiu-se para a escada de corda, seus pés deixando pegadas na serragem molhada. Segurou a corda e começou a subir vagarosamente. Momentaneamente
uma vertigem paralisou-o. O vento naquela altura tinha mais força, fazendo a pista oscilar, e o grande toldo, panejando e agitando-se, aumentava a sua impressão
de insegurança. Ele compeliu os seus músculos rígidos ação. Olhando para cima e usando uma mão, desenganchou a bicicleta da trava e, ainda seguro firmemente ao mastro
com o outro braço, alinhou as rodas. Montou trémulo na máquina e forçou-se a olhar para baixo.
O picadeiro, lá embaixo, era impossivelmente pequeno, um distante disco amarelo. A pista na qual ele estava pousado não tinha mais substância que uma simples fita.
Outro violento tremor lhe percorreu o corpo. Continuava seguro, podia voltar atrás. O medo petrificava-o. Lutou com ele. O que quer que acontecesse, tinha que descer.
Respirou fundo, firmou a sua posição na bicicleta, curvou-se para diante. Ao fazer isso, teve a vaga consciência de um grito, de uma figura encurtada e escura que
acenava lá de baixo. Se pretendia avisar, era demasiado tarde. Focando o olhar na lista branca central, com um supremo esforço da vontade, soltou a mão que o segurava.
Veio uma fração de segundo de voo, uma descida incrível, um empuxão para cima que o catapultou para o ar, e no mesmo instante, com um salto ruidoso, estava embaixo,
atirado com tremenda velocidade para fora do campo, estatelado na lama mole da vala que o margeava.
Por um momento lá ficou, imóvel, surpreso por estar vivo. Até que ouviu alguém correr para ele.
- Nom de Dieu... Está querendo se matar? - Era Jo-jo, desta vez em considerável estado de agitação.
- Não - disse Stephen, levantando-se tonto. - Mas acho que vou ficar enjoado.
- Seu filho da puta maluco. Que bicho lhe mordeu?
- Precisava de um pouco de exercício.
- Você está louco. Quando vi você lá em cima, pensei que estava liquidado.
- E que diferença isso teria feito?
Jo-jo encarou-o.
- Pelo amor de Deus, venha tomar um drinque.
- Muito bem - disse Stephen, e acrescentou: - Não comente isso com ninguém.
Foram até o café da aldeia. Depois de um bom copo de Calvados, a mão de Stephen parou de tremer. Lá ficou bebendo com Jo-jo, quase em silêncio, até que o lugar fechou.
O conhaque pesava-lhe na cabeça, fazendo-o sentir-se embotado e entorpecido. Mas na verdade não tinha realizado nada. A dor no coração ainda estava lá.


CAPÍTULO X

DUAS SEMANAS SE PASSARAM. Estavam em Nice. A cidade, iniciada pelos terraços de mimosas de La Burnette, era maior do que Stephen imaginava. A Promenade de Anglais,
a cintilante orla marítima, com os seus canteiros formais e hotéis ostentosos, dava uma desagradável nota pretensiosa. Mas o terreno do circo ficava bem para o interior,
na direção de Cimiez, atrás da Place Carabacel, cercado de ruas estreitas com feiras ao ar livre e pequenas barraquinhas de frutas, verduras e uma profusão de flores,
uma rede de coloridas e ruidosas passagens que tinham o encanto íntimo de Paris acrescido do calor do Sul.
- Nada mau, hein? - disse Jo-jo, expandindo o seu magro peito embaixo do colete rasgado.
- Gosta daqui?
- Muito. E você também vai gostar. - Fez um gesto abrangente. - Há muito interesse para um artista na Carabacel.
Em outro momento teria sido um entretenimento para Stephen explorar aquele bairro. Agora, tenso e inquieto, sentia que não poderia trabalhar. Mas obrigou-se a tal
com o seu bloco Ingres e fez alguns estudos dos nicenses - uma velha de touca branca vendendo alcachofras, um homem do campo
com uma rede de galinhas vivas, trabalhadores tapando um buraco na estrada. Contudo, o seu coração não estava naquilo, e ao calor do meio-dia voltou para o acampamento
a fim de descansar um pouco antes de começar o trabalho na sua barraca.
Na tarde seguinte, diante do seu cavalete na feira, completava o seu último retrato da sessão quando notou que havia um espectador atrás dele, ligeiramente inclinado
sobre uma bengala de rotim. Algo na sua postura despertou-lhe um eco na memória. Voltou-se.
- Chester!
- Como está, meu velho? - Harry rompeu no seu riso contagiante, descalçou uma luva de couro lavável e estendeu-lhe a mão. - Soube que você tinha entrado para o Peroz.
Mas por que diabo está com essa fantasia?
- Faz parte do trabalho.
- Claro, uma maneira de atrair os nativos. Mas não o faz sentir-se com cara de tolo?
- Ora, estou acostumado. Espere, que já estarei com você.
Enquanto Stephen dava rapidamente os toques finais no retrato, Chester tirou uma cigarreira e acendeu um cigarro. Espremido num traje de linho branco, sapatos marrons
e um chapéu panamá, tinha um ar abastado. Calças bem vincadas, camisa de tussor de seda, exibia uma elegante gravata-borboleta. O rosto estava bem queimado.
- Não posso acreditar que você esteja aqui. Embora tivesse dito que ia para Nice. Você parece estar bem.
- Estou em ótima forma, obrigado.
- Suponho que teve alguma sorte nas mesas.
- Para dizer o mínimo, tive. - O sorriso de Chester escureceu. - Eu estava nas últimas e apostei os 50 francos que me restavam no duplo zero. Por quê? Porque sabia
que teria menos que zero se perdesse. Deu o duplo zero. Deixei tudo. Por quê? Só Deus sabe. E deu o duplo zero outra vez. Meu Deus, você nunca viu semelhante pilha
de grandes e lindas fichas quadradas vermelhas em sua vida. Fui apanhá-la. Não pude. Alguma coisa dentro de mim dizia sorte pela terceira vez. Quando a roda girou,
quase morri. O duplo zero deu de novo. E desta vez recolhi tudo rapidamente e fui trocar no guichê do caixa. No dia seguinte mudei-me do prejuízo para Villefranche,
um pequeno apartamento. Desde então estou vivendo como um lorde. - Tomou o braço de Stephen. - Agora fale-me de você. Como vai o trabalho?
- Assim-assim.
- Vamos vê-lo.
Stephen guiou-o até o seu caminhão, apanhou algumas telas e inclinou-as, uma depois da outra, contra a calota da roda, enquanto Harry, com uma expressão profissional,
estudava cada uma a seu turno.
- Bem - declarou ele afinal. - Você pode ter algo aí, mas não compreendi bem o que é. Perspectiva? As suas pinceladas não são muito rudes?
- São intencionalmente rudes... para dar uma impressão de vida.
- Esses cavalos não são particularmente reais.
Harry apontou com a sua bengala para uma composição a têmpera de cavalos correndo como loucos numa tempestade.
- Não estou procurando expressar o óbvio.
- Obviamente não. Contudo... gosto que um cavalo se pareça com um cavalo.
- E quando você vê um homem montado nele, então tem certeza disse Stephen secamente, e empilhou as telas, percebendo que Chester não tinha a menor ideia do que ele
buscava. - Você ainda está pintando?
- Oh, naturalmente. Quando tenho tempo. Estou fazendo uma vista geral da Promenade. Às vezes saio com Lambert. Ele e Elise estão aqui. Ele pegou uma viúva americana
rica no Ambassadeurs e está dando expediente inteiro com ela.
Enquanto ele falava, soaram passos, e por trás da lona do caminhão apareceu Emmy. Quando se dirigia para Stephen, recuou de súbito, tendo notado a presença de Chester.
Uma expressão curiosa lhe assomou ao rosto.
- Que é que está fazendo aqui?
- Eu geralmente apareço quando menos se espera.
- Como um cêntimo falso?
- Desta vez como uma bela nota de mil francos - respondeu Chester amavelmente, sem se deixar diminuir. - Sentiu a minha falta?
- A privação foi insuportável.
- Não seja rude com o tio Harry. Você sabe que os seus nervos são fracos. - Consultou o relógio. - Tenho que partir. Devo estar no Negresco às seis. Mas quero que
vocês venham almoçar amanhã no meu apartamento Rue des Lilas, 11-B - ao largo do Boulevard General Leclerc. Os Lamberts também estarão lá. Os dois estão livres?
Ótimo. São apenas uns poucos quilómetros pela Corniche, o bonde passa na minha porta.
Sorrindo e acenando com a bengala, chamou um fiacre no fim do acampamento, saltou nele, reclinou-se no encosto acolchoado e mandou tocar a galope. Emmy acompanhou-o
com olhos ressentidos.
- Voyou metido a sebo. Mandando a gente tomar o bonde enquanto ele vai de carruagem.
- Não devemos invejá-lo. Ele também já teve os seus maus momentos.
- Não acredito que ele tenha acertado um coup. Deve estar vivendo com alguma velha.
- Não mesmo. Chester é o tipo de sujeito com sorte para ganhar uma bolada. Além disso, só se interessa por moças bonitas.
- Um dia ele vai ver o que é bom. - Mostrou os seus dentinhos agudos.
- Sale type. Nunca fui com a cara dele.
- Então você não irá lá amanhã...
- Claro que irei. Não seja tão fou. Faremos com que ele se arrependa da sua pretensão.
Ele a olhou perplexo. Obviamente detestava Chester. Por que, então, aceitar o seu convite? Talvez quisesse ver os Lamberts. Jamais soube o que ela tinha em mente.
No dia seguinte, quando veio ao seu encontro, ela usava um vestidinho amarelo de musselina bordada e uma fita da mesma cor em volta do cabelo cheio e curto. Deu-lhe
um pequeno sorriso com os lábios apertados.
- Podemos pegar um fiacre?
- Isso mesmo. Nada de bonde para nós.
Ela escolheu a mais elegante vitória da fila. Sentou-se confortavelmente.
- Como estou?
- Maravilhosa.
- Eu precisava de um vestido novo. Comprei este hoje de manhã na Galerie Mondial.
- É encantador - disse ele. - E assenta-lhe perfeitamente.
- Gosto de mostrar a essa gente que não sou uma coisa embaixo dos pés deles. Chester especialmente. Ele é muito cheio de si.
- Talvez, mas não é um mau sujeito. Acho-o apenas um pouco mimado. É bonito demais.
- Acha-o atraente?
- Acho que muita mulher tola já tem caído pelos seus belos olhos azuis e cabelos crespos.
Ela lançou-lhe um penetrante olhar de soslaio.
- Pelo menos eu não sou uma delas.
- Não - sorriu Stephen. - Estou um tanto aliviado por você detestá-lo. Rodaram pela Avenue Raspail, um largo logradouro sombreado de catalpas, ao longo do Boulevard
Carnot, e depois pela curva da baía para Beaulieu. O céu estava azul, uma brisa de deliciosa fragrância soprava das colinas. Ele apertou-lhe a mão, feliz - ela se
deixou segurar por um momento. Ultimamente, as atenções que ele tinha para com ela, os pequenos presentes que continuamente lhe dava, as restrições que por um esforço
de vontade impunha a si mesmo pareciam estar causando alguma impressão nela.
- Você está sendo gentil comigo - murmurou ela.
Essa ligeira observação tornou-o ridiculamente feliz. Talvez, por fim, ela pudesse aprender a amá-lo.
Dali a pouco rodavam por Villefranche. O apartamento de Chester, na Rue des Lilas, uma rua em ângulo reto com a avenida, integrava uma série de
suítes que abriam sob um balcão comum em torno de um pátio, atendidas por um pequeno hotel, o Hotel des Lilas. Um pequeno chafariz cercado de cactos gorgolejava
no centro do pátio, e tubos verdes de oleandros floridos decoravam a varanda. O lugar parecia limpo, agradável e discreto - exatamente a espécie de pied-à-terre
que Chester, com a sua inclinação para se tratar bem, acharia sem o menor esforço.
Foram os primeiros a chegar, e Harry recebeu-os efusivamente.
- Bem-vindos ao castelo ancestral. Não é grande, mas tem história.
- Má, sem dúvida - disse Emmy.
Chester riu. Vestia calças de flanela branca e um blazer azul com botões de metal amarelo. Seu farto cabelo castanho, recém-ondulado, tinha uma listra de cor mais
clara na testa.
- Se é isso o que você pensa, não posso deixá-la mentir.
Enquanto ele levou Emmy ao dormitório para deixar a sua echarpe e luvas, Stephen relanceou os olhos em torno da pequena sala de estar. Era mobiliada convencionalmente,
mas nas paredes havia duas aquarelas emolduradas que reconheceu como sendo trabalho de Lambert. Examinou-as de perto - uma era um arranjo de ervilhas-de-cheiro num
vaso Ming, a outra um bando de cegonhas paradas num lago nevoento - e ao olhá-las imaginava como jamais poderia ele ter apreciado semelhante beleza. Belamente executadas,
com uma delicadeza quase feminina, eram contudo vazias e insípidas, despidas de toda vitalidade ou intenção. Podiam ter sido feitas por uma hábil professora de arte
de uma escola superior para moças. Faziam-no avaliar que longa estrada tinha percorrido desde aqueles primeiros dias em Paris. Se a jornada fora áspera, pelo menos
lhe tinha ensinado em que consistia realmente uma obra de arte.
- Boas, não? - Chester tinha voltado com Emmy. - Lambert, num gesto muito decente, me emprestou as duas. O preço está nas costas. Há sempre uma chance de que os
meus visitantes queiram comprá-las.
Trouxe uma garrafa de Dubonnet e serviu três copos, depois passando uma bandeja de camarões frescos.
- Posso tentá-la, mademoiselle Rouquet de la baie.
- Você mesmo os apanhou?
- Claro. Levantei-me antes do desjejum.
Rearranjando o cabelo, ela olhou para ele, mas pela primeira vez com menos animosidade.
- Que grande mentiroso!
Harry riu-se gostosamente.
- Também sou muito bom nisso.
A campainha tocou e os Lamberts entraram. Pareciam pouco mudados, embora Philip estivesse mais gordo, mais lânguido nas suas maneiras. Usava
um terno cinza com um cravo azul na lapela e trazia pendurada no indicador uma caixinha de pâtisserie amarrada com uma fita.
- Trouxe-lhe alguns bolinhos do Henri, Chester. Acompanharão o café. Naturalmente, você está lembrado da minha gulodice, Desmonde. - Espichou-se comodamente no divã
e delicadamente aproximou as suas finas narinas da flor que tinha na lapela. Elise, que vestia o inevitável verde, e cujo sorriso parecia um tanto mais fixo do que
antes, estava conversando com Emmy.
- Agora, conte-me tudo como um bom menino.
Stephen começou um relato a seu respeito, mas antes que fosse muito longe viu que Lambert não estava prestando atenção, e interrompeu-se.
- Você sabe, Desmonde - disse Philip num tom ligeiro e divertido eu desejaria, pelo seu próprio bem, que você não se tivesse metido nessas coisas pesadas. Você não
pode atacar a arte com uma picareta. Por que suar como um britador de pedras? Faça como eu e use um pouco de delicadeza, um pouco de habilidade. Eu nunca trabalhei
demais, e no entanto clientes não me faltam. E eu vendo. Admito que tenho talento, e isso torna as coisas mais fáceis para mim.
Stephen ficou silencioso. Podia muito bem adivinhar a facilidade de Lambert. Mas o anúncio de Chester, dizendo que o almoço estava servido, salvou-o da resposta.
A refeição fornecida pelo hotel lá de baixo era esplêndida, servida por um jovem garçom que, para apresentar uma comida tão quente, devia ter executado estranhas
proezas de agilidade nas escadas. Uma lagosta cozida à moda da terra, seguida de um risotto de frango, e depois um queijo soufflé; antes, Harry, com o toque de um
perito, tinha feito saltar a rolha de uma garrafa de Veuve Cliquot. Quanto mais alegre a mesa, porém, mais Stephen se sentia completamente alheio a ela. Em certa
época tinha apreciado aquela sociedade, mas agora, apesar do enorme esforço para se coadunar com ela, fracassava tristemente. Que lhe tinha acontecido para que se
sentasse ali, mudo, com a consciência mortal de que não mais pertencia a ela? Emmy, bebendo mais champanhe do que devia, exibia tolas personificações de Max e Monx
que faziam Chester, agora mais ruidoso do que nunca, estourar de riso. Lambert, a quem Stephen tinha antes admirado, parecia-lhe agora exatamente como Glyn o via
- um poseur e diletante, um amador fracamente dotado. Perfeitamente amaneirado, bem-educado, garantido por sua pequena renda regular, recusando-se a ser perturbado
ou excitado, flutuava a esmo, nunca se exercendo a sério, tocando de leve o creme da vida. Cultivando mulheres, arranjava clientes que lhe encomendavam retratos
ou que pagavam bons preços por seus leques e aquarelas. Elise, com o seu sorriso fixo e perfil nítido, mostrava sinais dessa existência. Sua aparência começava a
murchar e as rugas a juntar-se embaixo dos seus
olhos verdes e pestanudos; contudo, embora a sua capacidade de lisonjeá-lo já estivesse um tanto gasta, a sua inexaurível devoção fazia dela, cada vez mais, uma
parceira complacente naquele jogo de blefe artístico, cujo mero pensamento levava Stephen a remexer-se mais inquieto na cadeira.
Depois do café e bolinhos, dos quais Philip, desculpando-se com uma delicada alusão literária ao jovem com as bombas de creme de Stevenson, comeu cinco, sentaram-se
na sacada. Continuando a monopolizar a conversação, descreveu, com irónica meticulosidade, as deficiências faciais e sociais da mulher idosa que retratava atualmente.
- De fato - concluiu ele aereamente - não se poderia esperar mais da viúva de um enlatador de carne de porco de Chicago.
- Imagino que o cheque dela foi bom.
- Bem... naturalmente.
Embora tentasse livrar-se da sua apatia, Stephen via o tempo passar com interminável lentidão. Por fim, cerca de três horas, aproveitando um intervalo na conversação,
olhou para Emmy.
- Acho que temos de ir agora.
- Oh, tolice - protestou Chester. - A tarde ainda é jovem. Vocês não podem nos deixar agora, de modo nenhum.
- Se eu não for chegarei tarde no meu emprego.
- Então por que você não fica, Emmy? - sorriu Harry afavelmente. Houve uma pausa. Stephen notou sua hesitação, mas ela logo sacudiu
bruscamente a cabeça.
- Não. Eu vou agora.
Despediram-se, o porteiro lá embaixo conseguiu-lhes um fiacre. Ao dobrarem a esquina, fora da vista do hotel, Stephen inclinou-se para ela.
- Foi bondade da sua parte vir comigo. Gostei disso.
- E eu não gosto de me tornar fácil.
Não era a resposta que ele esperava; no entanto, animado pela recente mostra de sua consideração, chegou-se mais perto, sob a coberta do avental da carruagem, e
procurou-lhe a mão.
- Não - disse ela, empurrando-o irritada. - Não está vendo como me sinto?
E ao voltar-se surpreso, ela, com franqueza vulgar, deu uma desculpa que, se fosse verdade, teria talvez causado a sua prematura partida.


CAPÍTULO XI

APÓS O TUMULTO E EXCITAÇÃO das viagens através das estradas do país, muitos membros do Circo Peroz acharam agradável estabelecer os seus alojamentos de inverno na
Côte d'Azur. Ali era a sua base; muitos tinham relações em Nice, Toulouse e Marselha, e com mais tempo disponível, poderiam visitá-las. Embora o negócio continuasse
firme, o programa tinha sido reduzido para cinco espetáculos por semana, e após a grande noite de domingo, segunda e terça-feira, ficavam livres.
Os amigos de Stephen já haviam Se acomodado à nova rotina. Max reiniciara as suas lições de violino e podia ser visto, todas as tardes, com a caixa preta em forma
de pêra debaixo do braço, partindo no trote miudinho forçado por suas diminutas pernas. Croc, por outro lado, passava a maior parte do seu tempo na Bibliothèque
Nationale, curvado sobre grossos volumes, expondo na volta, a Stephen e Jo-jo, uma nova versão de Schopenhauer, ao passo que Fernand, parecendo gasto e sonhador,
ia todas as manhãs, de braço dado com a esposa, a um homeopata de Cimiez para a irrigação diária prescrita para o seu flux intestinal. Mais prático, Jo-jo tinha
achado uma ocupação subsidiária nas cavalariças do Negresco, onde, a pretexto de lavar as carruagens, passava a maior parte do tempo tagarelando com cocheiros e
motoristas, levando um livrinho sobre as corridas locais e comentando sarcasticamente, com o canto da sua boca de ratoeira, os visitantes que entravam e saíam do
hotel.
Stephen, por sua vez, tinha começado o desenho preliminar para uma pintura na qual pretendia utilizar os estudos individuais feitos na grande tenda, a que pretendia
chamar Grcus. Esse arranjo complexo, um agrupamento de inumeráveis figuras com as suas cores combinadas e contrastantes, era difícil e, desde que ele não tinha estúdio
nem tela suficientemente grandes, propunha-se seguir o precedente dos antigos mestres e construir a sua composição, primeiro que tudo, numa escala menor e menos
rigorosa. A ideia lhe surgiu à medida que progredia, e ele começou a sentir que semelhante material, recolhido em semanas de paciente observação, devia dar um magnífico
resultado.
Desde o dia do almoço no Hotel des Lilas, o barómetro dos humores de Emmy tinha lentamente chegado a "bom tempo". Após esse evento, não tinham
mais visto Chester ou os Lamberts, e parecia que essa ligação estava finalmente rompida.
No fundo do espírito de Stephen, talvez por uma observação de Glyn, sempre havia a ideia de uma afeição entre Chester e Emmy. Era-lhe gratificante o fato de que
Emmy tivesse aceito a brusca interrupção de sua amizade com tão pouco interesse. Ela, como os outros, tinha voltado a sua atenção para Nice. A irmã de Madame Armande,
que morava nos arredores, logo após o subúrbio de St. Roch, tinha uma pequena chapelaria dedicada principalmente à produção e venda de chapéus de palha de carnaval.
Emmy, como muitas moças francesas, tinha talento para os trabalhos de agulha, e todas as tardes tomava modestamente o bonde para ganhar algum dinheirinho na oficina
do Chapeau de Paille. Como resultado, Stephen via-a menos do que o usual. Contudo, experimentava um certo conforto íntimo com esse aspecto inesperadamente sossegado
da sua natureza. Tal atividade, no entanto, devia ser terrivelmente monótona, e ele disse para si mesmo que devia procurar quebrar essa monotonia. No Clarion de
Nice, descobriu que uma companhia lírica, cumprindo um contrato no Casino Municipal, faria uma representação de La Bohême na segunda-feira seguinte. Esse romance
ultrapassado da vida de estudante em Paris talvez a entretivesse, e no seu encontro seguinte ele falou no assunto.
- Você quer ir ao teatro na segunda?
- Teatro? - Pareceu ligeiramente perturbada. - Você não está ocupado com a sua pintura?
- Não de noite, com certeza.
- Bem... se você quiser.
- bom. vou comprar as entradas hoje.
Andou todo o caminho até o Casino e comprou duas cadeiras no grand circle, e então, sabendo o quanto ela gostava de "uma noite fora", reservou uma mesa no restaurante
para a ceia nessa mesma noite. Começou a esperar o evento com aquela antecipação que tão dolorosamente o afetava sempre que pensava em ficar a sós com ela.
Segunda-feira chegou. Quando terminou a sua sessão na barraca, banhou-se com água da bacia no lado de fora do seu alojamento e vestiu o seu terno e uma camisa limpa
que lavara na véspera. Justamente quando se aprontou, ouviu passos atrás dele. Voltou-se e viu uma expressão de pesar nos olhos de Emmy.
- Que houve?
- Não posso ir com você esta noite.
- Não pode?
- A irmã de Madame Armande está de cama, com l agrippe. Tenho que ficar com ela.
- Madame Armande pode fazer isso.
- Sim, mas há pedidos de urgência para atender.
- Talvez...
- Não. Tenho obrigação de ir.
Houve uma longa pausa.
- Bem... suponho que não tenha jeito.
Ficou terrivelmente abatido, mas não se importava em mostrá-lo.
- Você deve convidar alguém. Não desperdice as entradas.
- Ora, para o diabo os bilhetes! Que importam eles?
- Sinto muito. - Deu-lhe um tapinha condoído.
- Outra noite, quem sabe.
Aquele ar de interesse preocupado diminuiu a sua decepção. Todavia, ao vê-la apressar-se, indo em seguida despejar lentamente a água cheia de espuma de sabão da
bacia, a sua tristeza era tão grande, que Jo-jo, que acabava de voltar, descansando com os cotovelos no degrau, tendo testemunhado a recente cena, veio fazer perguntas.
- Como vai a coisa? - Falava sem tirar a palha que tinha entre os dentes.
- Muito bem.
- Você está todo emperequetado.
- Estou vestido, se é isso que quer dizer.
- Aonde ia?
- Ao teatro. Venha comigo. É La Bohême.
- Variedades?
- Não, ópera.
- Ópera? Ah, não. Mas vamos tomar um drinque no Mas Provençal. Atravessaram a praça em direção a um café das proximidades. Era um lugar reles mas agradável, com
compridos bancos e mesas na calçada. No interior obscuro, um piano mecânico estava tocando, e o pessoal se achava sentado em mangas de camisa. Jo-jo acenou para
alguns operários que, a caminho de casa, tinham parado para uma caneca de cerveja.
- Qual é o seu veneno, Abbé?
- Qualquer coisa... Vermute.
- Vermute Quelle blague. Você vai tomar é um conhaque. - Pediu em voz alta um Pernod e um conhaque.
As bebidas foram trazidas por uma raparigona de braços nus, vermelhos, e seios redondos, cheios debaixo da blusa, como cocos.
- Aí está uma garota para você. - com mão prática, Jo-jo filtrou o Pernod através de um torrão de açúcar, e tomou um gole confortante do líquido opalescente. - O
nome é Suzie. E não é poule. Por que não experimenta a sorte? Essas mulheres grandalhonas gostam de homens pequenos.
- Ora, vá pró inferno!
Jo-jo riu brevemente.
- Isso é melhor. O problema com você, Abbé, é que nunca se entrega.
- Que quer dizer?
- Sacré bleu! Você pode se desamarrar um pouco. Então nlo fiquei sabendo que você tem tutano - aquela noite... quando desceu na pista? Voando com todo o seu corpo.
Fique alegre, embebede-se e divirta-se.
- Já tentei isso. Comigo não dá resultado.
- Há um chá dançante todas as noites no Negresco. De muita classe. Pode ser interessante.
Havia uma intenção esquisita na voz de Jo-jo, mas Stephen simplesmente abanou a cabeça.
Jo-jo abriu os braços resignado. E depois disse:
- Que aconteceu com a beleza da bicicleta?
- Teve que ficar com a irmã de Madame Armande.
- Armande tem irmã? Haverá duas cadelas iguais neste mundo infeliz?
- Ela tem uma chapelaria em Lunel, atrás de St. Roch. E está doente.
- Uma obra de caridade - fez Jo-jo, baixando a cabeça. - Uma segunda Mademoiselle Nightingale.
Seguiu-se um silêncio, durante o qual ele continuou a olhar para Stephen com um satírico aperto nos lábios. Uma vez, pareceu que ia falar, mas em vez disso encolheu
ligeiramente os ombros, pediu novas bebidas com um gesto, e começou a falar sobre as corridas do dia seguinte.
Às sete horas, deixaram o café; Jo-jo foi dar água e comida aos seus árabes, e Stephen ficou só. Sentia-se melhor, aquecido e mais alegre depois de três conhaques,
mas ainda assim tinha pouca disposição para ir sozinho ao Casino. A noite era deliciosamente linda - e seria uma pena gastá-la num teatro abafado. De repente lhe
veio uma ideia, Lunel não ficava muito longe, apenas uma viagem de bonde de 20 cêntimos. Por que não dar um pulo até a oficina de Madame Armande e, mesmo que fosse
obrigado a esperar até que ela terminasse o seu trabalho, voltar com Emmy? Com sorte, poderiam até chegar a tempo para o jantar.
A perspectiva apressou os seus passos e ele atravessou o Boulevard Risso para a Place Pigalle, onde, sem dificuldade, achou um bonde para a zona norte. A viagem
foi lenta, e mais longa do que ele supunha, mas não eram oito horas e ainda havia luz quando ele chegou ao seu destino. Lunel, como cidade, era surpreendentemente
pequena e pouco desenvolvida, o terreno plano quase todo ocupado por hortas, pouco mais que uma coleção de casinhas novas de estuque margeando uma única rua não
calçada. Stephen subiu e desceu duas vezes essa rua sem encontrar o Chapeau de Paille. Na verdade, as poucas lojas que lá havia em nada se pareciam com uma fábrica
de chapéus. Intrigado e confundido, Stephen ficou um momento parado, enquanto rajadas de vento
levantavam poeira em toda parte, e então foi à agência do correio, que, funcionando na mesma casa de uma épicerie, ainda estava aberta. Ali, em resposta às suas
indagações, ficou sabendo que não havia modista, e positivamente nenhuma fábrica de chapéus, em Lunel.
Com uma expressão curiosa na face, sentado no canto de um bonde quase vazio, Stephen voltou para Nice. O veículo sacolejante deixou-o meio tonto. Teria cometido
um engano estúpido por ouvir mal o nome do lugar que ela lhe tinha dito? Não, estava certo de que ela dissera Lunel, não uma, mas diversas vezes. Não o teria despistado,
inventando aquela desculpa à última hora? Isso também era impossível - ela vinha visitando a irmã de Madame Armande diariamente nos últimos 15 dias. Sua expressão,
se havia, tornou-se ainda mais fixa. Estava bem escuro quando chegou a Carabacel. Tudo tranquilo e deserto no acampamento. Teve um impulso de ir ao seu alojamento
e ver se ela tinha regressado, mas o orgulho e uma sensação de cansaço físico o contiveram. Já tinha se tornado suficientemente ridículo sem fazer uma cena àquela
hora. Entrou no seu caminhão, deitou-se no beliche e fechou os olhos. Tiraria tudo a limpo com ela de manhã.


CAPÍTULO XII

No DIA SEGUINTE, embora acordasse cedo, não a viu até as 11 horas, quando ela apareceu nos degraus do vagão de chinelos e um penhoar de algodão azul e branco. Sentou-se
no primeiro degrau, segurando uma xícara de café. Ele foi até ela.
- bom dia... Como deixou a sua doente?
- Oh, bem melhor.
- Chamou o médico?
- Naturalmente.
- Espero que não tenha sido nada sério.
Ela tomou um gole de café.
- Eu lhe disse que era uma gripe.
- Mas isso não é contagioso? - disse solícito. - Você deve se cuidar.
- Eu me cuido.
- Estou falando sério... venta muito em Lunel. E o bonde demora muito a chegar.
Ela olhou para ele em silêncio sobre a beira da xícara.
- Que é que você sabe de Lunel?
- Estive lá ontem à noite.
Ela o olhou desconfiada, e deu uma risada.
- Não brinque comigo. Você foi ao teatro.
- Não, eu fui a Lunel.
- Por quê?
- Pensei que podia comprar um chapéu. Infelizmente, não pude achar nenhuma chapelaria.
- Aonde é que você quer chegar.
- E também não encontrei nenhuma irmã de Madame Armande.
- Quem diabo você pensa que é, metendo o nariz nos assuntos dos outros? Saindo para me espionar. Seu rato sujo.
- Pelo menos não sou mentiroso.
- E quem é que mentiu? Falei a verdade. Se eu quisesse, poderia ter levado você lá. Onde você andou zanzando ontem à noite, não sei. Mas o lugar existe sim. Além
do mais - ajuntou ela com um toque final - a irmã de madame é viúva; o nome dela não é Armande. E agora talvez você vá cantar noutra freguesia e me deixe tomar o
meu café em paz.
Com o coração batendo como um martelo, Stephen olhou para ela com um misto de raiva e desespero. Sentia que ela estava mentindo - quando a ocasião exigia, ela podia
ser escorregadia como uma enguia. Mas a sua própria veemência era suspeita. Contudo, era até possível que falasse a verdade. Queria com toda a sua alma acreditar
nela. Sempre pronto a imputar a falta a si próprio, ponderou que aquele terrível aperto que sentia no coração poderia tê-lo levado a julgá-la mal. O desejo de reconciliação
apoderou-se dele e o enfraqueceu.
- Eu esperava tanto a nossa noite juntos.. . - murmurou ele.
- Isso não é desculpa.
- Seja como for, vamos esquecer isso.
- Só se me pedir desculpas por ter me chamado de mentirosa. Pede?
Ele hesitou, mordendo nervosamente os lábios, de olhos baixos. Seu orgulho impedia-o de aceitar aquela humilhação por parte dela. Mas a necessidade que tinha dela
tornava-o abjeto.
- Está bem... se quiser. Sinto tê-la ofendido - disse ele, extraindo à força as palavras que o faziam sentir-se desprezível.
Passou o resto do dia dilacerado pela indecisão, desejando estar com ela. Serviu-lhe de algum consolo observar que ela não saíra do acampamento. À noite, retirou-se
para o seu alojamento imediatamente depois do espetáculo. Mas sabia que não poderia continuar daquele modo, isso era impossível; de uma maneira ou outra, precisava
certificar-se.
No dia seguinte, após o almoço, quando ela saiu para a Place Pigalle, ele a seguiu. Ao saber de casos semelhantes, sempre desprezara o marido desconfiado ou o amante
ciumento que espionava a mulher que lhe causava suspeitas. Agora não podia evitá-lo. Mas ele não era nenhum especialista no assunto e, no seu esforço para não ser
visto, perdeu a sua presa no terminal da Pigalle. Contudo, vira que ela tinha tomado um bonde na direção do passeio público, e como outro estava no ponto, embarcou
nele. Em 15 minutos estava diante da costa. Procurou Emmy apressadamente em torno, andou até a esplanada e voltou, contornando o Casino, mas não viu nenhum sinal
dela. Então, como estava indeciso, de repente se lembrou do jeito de Jo-jo ao falar no chá dançante do Negresco. Embora a possibilidade parecesse remota, atravessou
a rua, entrou nos jardins do Musée Masséna e olhou por cima das grades de pontas douradas, através da Rue Rivoli, para o terraço coberto do hotel. Ao lado, sob um
toldo estendido do saguão até uma pequena plataforma com mesas de chá, uma orquestra, escondida entre as palmeiras, executava uma marcha que alguns casais dançavam.
A princípio, pensou que ela não estava lá. Então, por trás do biombo da folhagem, outra parelha saiu para a pista. A moça sorria quando, com um gesto prático, estendeu
os braços para o companheiro, que a enlaçou pela cintura. Deslizaram juntos - Chester e Emmy.
Imóvel, com a face estranhamente inexpressiva, Stephen ficou a olhá-los, observando como se moviam graciosamente. Seus passos combinavam perfeitamente. Quando a
música parou, permaneceram de pé, juntos, e quando o bis começou, prosseguiram sozinhos. Tão perfeita era a sua exibição, que os deixaram monopolizar a pista, e
quando afinal foram sentar-se, receberam um murmúrio polido de aplausos.
Stephen arrancou-se dali, caminhou lentamente para o passeio público e sentou-se num banco do qual podia ver a entrada do hotel. A dor no seu coração era quase insuportável.
Apertava os olhos ao pensar em como ela o havia enganado. Como ela e Chester deviam ter rido juntos com a invenção da chapelaria fictícia, e a sua crença inteiramente
falsa de que ela estava modesta, industriosamente trabalhando com a agulha, quando durante todo o tempo tinha estado com Harry. Madame Armande era inquestionavelmente
outra parceira daquela peça burlesca e tinha sem dúvida espalhado a notícia entre os membros da companhia. Certamente Jo-jo sabia que ele estava sendo um grandíssimo
tolo, embora, por pena, nada tivesse dito.
No entanto, tudo isso não era nada diante da angústia e da amarga fome da alma que agora o possuíam. Maior ainda que a sua raiva e mortificação, era aquela frenética
intensificação dos ciúmes e do desejo. Através da mágoa e da humilhação, ainda a queria; através do ódio, ainda tinha necessidade dela. E sentado ali, com a cabeça
entre as mãos, procurara achar desculpas para racionalizar
a conduta de Emmy. Afinal de contas, ela estava apenas dançando com Harry, e isso decerto não era um crime. Conhecem-se muitos parceiros de dança que não sentem
nada um pelo outro e estão unidos por não mais que um prazer puramente impessoal pela arte.
A música continuou a tocar intermitentemente até as seis horas, e quando a pista esvaziou, ele viu os músicos saírem com os seus instrumentos. Seguiu-se um demorado
intervalo. Com toda a certeza, Harry e Emmy tinha ido ao bar - imaginava-os muito juntos nos bancos altos, Harry à vontade e descansando, na maior intimidade com
o barman.
Demoraram tanto a reaparecer que ele começou a temer que tivessem deixado o hotel por outra saída. Mas, por fim, já quase noite, filas de luzes coloridas se acenderam
na frente e eles apareceram, descendo os largos degraus do pórtico, e se dirigindo para o passeio. Falando junto, animadamente, passaram tão perto que ele poderia
tê-los chamado. Mas manteve os lábios apertados, e quando já estavam uns 30 metros adiante, levantou-se, quase automaticamente, e seguiu-os.
Não foram muito longe. A uma pequena distância do Casino, deixaram o passeio público, tomaram a rua lateral do Marche aux Fleurs, na Cidade Velha, e entraram num
pequeno restaurante - a Brasserie Lutétia. Jantar para dois, pensou Stephen sombriamente, e teve um impulso hesitante, doentio, de entrar e sentar-se na mesa deles
- em vez disso, abotoou a gola do paletó e postou-se na sombra de um portal.
Não muitas pessoas entravam na brasserie - era um desses lugares sossegados, onde se podia ter completa intimidade. Uma vez, um garçom saiu à porta, olhou para cima
e para baixo, como se esperasse fregueses, e entrou novamente. Um gato passou de mansinho pela calçada. Do portal, sobre os telhados no fim da rua, Stephen podia
distinguir a massa escura das montanhas e altos pontinhos de luz que talvez fossem estrelas.
Teve que esperar até depois das nove, antes que eles emergissem. Somente a grande premência da sua necessidade de descobrir a verdade ajudou-o a manter-se naquela
triste e degradante vigília. E o momento se aproximava - um tremor o percorreu ao vê-los em pé sob as luzes da marquise. Com certeza, Chester estava para se despedir,
ou então ia levá-la de volta à Place Pigalle.
Estavam agora falando com o garçom, o mesmo que vira sair com eles, e Harry disse alguma coisa que os fez rir. Um fiacre chegou ruidoso, chamado da fila na praça,
lá embaixo, uma gorjeta foi dada, Emmy e Chester entraram. Rapidamente, ao se afastarem, Stephen andou até a praça, saltou noutra carruagem e disse ao cocheiro que
os seguisse.
Rodaram pelo Mercado das Flores deserto, entraram num labirinto de ruas antigas e viraram para a costa; então, com o coração encolhido, Stephen
viu que eles se dirigiam diretamente para Villefranche. Logo estavam lá. No fim da Rue des Lilas, Stephen mandou o cocheiro parar e pagou a corrida. Mais adiante,
na rua tranquila, viu o outro veículo parar. Ambos os seus ocupantes desceram, desaparecendo no pátio. Agora as duas carruagens tinham sumido, e ele ficara só na
rua deserta. Instintivamente olhou para o relógio - o mostrador luminoso indicava 10:30. Lentamente, andou para o Hotel des Lilas e ergueu os olhos para a sacada
do apartamento de Chester. A luz de um quarto estava acesa, e ele o identificou como o dormitório, podendo ver duas figuras se moverem por trás da cortina amarela.
A luz permaneceu por mais alguns minutos, e depois se apagou.
Quanto tempo ficou ali, olhando tristemente para o apartamento escuro, Stephen não poderia dizer. Por fim, deu as costas e afastou-se.


CAPÍTULO XIII

VOLTOU À PLACE CARABACEL antes da meia-noite. Através da dor surda que sentia na testa, sabia que deveria ir embora. Metodicamente, sem perturbar Jo-jo e Croc, ambos
adormecidos, reuniu os seus pertences na mochila. Amarrando as telas juntas, prendeu-as nas costas e, com um último olhar para os seus companheiros, saiu na sua
bicicleta. Dirigiu-se para o norte, pedalando velozmente na estrada plana que levava a St. Agustin, com a vaga intenção de pegar a route nationale que finalmente
o levaria a Auvergne. Sentia necessidade de estar com Peyrat - devia ter feito aquilo semanas antes. Mas sobretudo era premido pelo desejo de escapar, de obliterar
da memória aquelas últimas e intoleráveis semanas.
Quase pela manhã, desmontou, estendeu-se num espaço da charneca à beira da estrada e fechou os olhos. Não pôde dormir, mas, tendo descansado até que o sol despontara,
pôs-se novamente em marcha. E agora via pela sinalização que não estava na grande route, mas numa estrada secundária que corria entre as gargantas rochosas do Var
e subia serpeando para Touet e Colmars. Todavia, não quis desandar caminho. Todo o dia e no seguinte trabalhou nos pedais, mais do que a sua força lhe permitia,
no esforço para esquecer. Em Entrevaux, entrou erradamente numa estrada secundária, mais inclinada, que coleava para as montanhas através de um pinheiral. A pavimentação
era má, o progresso ali era mais difícil, havia um opressivo fragor de água se despejando
à medida que a torrente estrondeava sobre o seu leito de pedregulhos; contudo, o estranho medo de voltar mantinha-o tocando para a frente, comendo às pressas quando
podia, dormindo no chão nu, atrás de montes de feno, em estábulos desertos, com a sua capa dobrada como travesseiro. Uma aversão mórbida a qualquer contato humano
afastava-o das mais humildes estalagens.
O tempo piorara, e entre as colinas era úmido e nevoento. Na manhã de domingo, chegou a Annot, uma cidadezinha agrícola construída num planalto, com um vento frio
soprando dos Alpes. Sabia que era domingo pelo repicar dos sinos da igreja e pelo desfile de habitantes sérios, vestidos de preto, que olhavam para ele com desconfiança.
Doente de fadiga e esgotado como estava, essa hostilidade todavia o atingiu, e embora tivesse uma desesperada necessidade de tomar um café quente e pensasse em se
deter ali, não o fez, baixando a cabeça sobre o guidom e pedalando para fora da cidade. A chuva começou a cair. Ele foi obrigado a descansar. Ao desmontar, quase
caiu da sua máquina. Acocorado debaixo de uma cerca gotejante, comendo os restos de comida fria que tinha comprado na noite anterior, sentia-se inteiramente sem
lar, sem um lugar ou abrigo, irreal e desligado como um fantasma.
A chuva não parou, mas ele continuou, agora mais devagar do que antes e com uma falta de fôlego que o obrigava a desmontar nos aclives mais fortes. Seu nariz começou
a sangrar intermitentemente, e embora atribuísse o fato à altitude e lhe desse pouca atenção, era uma sensação esquisita o sangue a refluir quente sobre a sua garganta.
Cerca do meio-dia, começou a sentir-se extremamente indisposto, e, através do entorpecimento que o oprimia, penetrou-lhe um raio de razão. Nunca chegaria a Auvergne
daquela maneira, era loucura continuar; devia procurar uma estrada de ferro ou algum centro próximo sem demora. Desdobrando o seu mapa em grande escala, e protegendo-se
com a sua capa gotejante, viu que, atalhando para oeste, por Barréme, podia alcançar o entroncamento de Digne, não mais que 35 quilómetros além. Digne talvez não
fosse grande, mas ficava numa planície, o que lhe permitiria escapar destas montanhas impossíveis.
Tomou pelo atalho. Era escabroso, mais difícil do que antes, coberto de um cascalho áspero que fazia os seus pneus saltarem e derraparem. Tinha menos força do que
antes nos aclives, e com o esforço adicional seu nariz recomeçou a sangrar. O céu lá adiante era baixo e encoberto, a chuva aumentava rapidamente, e dali a pouco
um dilúvio desabou sobre ele. Ensopado, na escuridão que descia rapidamente, alarmou-se, acendeu com dificuldade a sua pequena lanterna de carbureto e novamente
consultou o mapa.
Não tinha examinado a folha por mais de um minuto, quando um gemido se lhe escapou. Oh, Deus... que tolo... que idiota cego e insensato. Acompanhando com o dedo,
viu que estava no caminho errado. Lá atrás, em
St. André, a curva devia ter sido para a esquerda, não para a direita. E agora examinou o sinal, route acidentés, fort montée, isolée - encontrava-se num beco sem
saída que levava direto acima, ao Col d'Allos.
Um ataque de nervos, quase de pânico, sacudiu-o. Aproximou mais o mapa. Devia haver alguma espécie de aldeia na vizinhança. Então, com alívio, decifrou o nome de
St. Jérõme. Era aparentemente um povoado, mas por sorte estava cercado por uma Cruz de Lorena vermelha, indicando a presença de uma hospedaria arrolada pelo Touring
Club da França como oferecendo acomodações para ciclistas e onde ao menos poderia achar abrigo para a noite. Se não estava completamente perdido, devia alcançá-la
em uma hora.
Pedalou, curvado, contra o vento. O gosto de sal na sua boca aumentou, e passando o lenço nos lábios sentiu que estavam inchados e flácidos. Suas pernas não mais
lhe pertenciam, um martelo batia na sua cabeça, mas quando sentiu que não podia avançar mais, viu tremeluzir, no socavão adiante, um grupo de luzes.
Ficaram mais próximas: uma grande construção cercada por casas menores tomava formas indistintamente, lá embaixo. Completamente esgotado, deixou a sua bicicleta
rodar e subiu aos tropeções a trilha para a primeira casa
- parecia a choupana de um trabalhador. Suas batidas permaneceram sem resposta por um interminável intervalo, e então a porta foi aberta por uma criancinha que ficou
olhando para ele e depois voltou-se e correu. Ele entrou num corredor, ouvindo vozes numa peça dos fundos da casa. Respirava irregularmente, e embora estivesse ensopado,
morria de sede. Devem receber-me, pensou, vou adoecer... aliás, já estou desgraçadamente doente.
Um trabalhador de camisa azul dirigiu-se para ele, seguido de uma mulher com uma lâmpada Argand e, atrás dela, a criança. Ele viu os seus rostos sobressaltados através
do nevoeiro que passava.
- Sinto muito. - com terrível dificuldade, como se do fundo de um poço, pronunciava as palavras. - Perdi o caminho. Podem me receber?
- Mas monsieur...
- Por favor... posso me sentar?... uma bebida.
Antes que ele pudesse falar outra vez, o homem chegou mais perto, sacudindo excitadamente o braço.
- Não aqui - disse. - O senhor deve continuar.
- Deixe-me ficar. - Novamente o terrível problema da articulação. Não posso continuar.
- Não, não... mais adiante.. . não aqui.
O homem segurou-o pelo ombro e levou-o para fora da casa. Julgando que estava sendo enxotado para a estrada, incapaz de resistir ou sequer protestar, tomado de uma
desesperança final, sentiu uma ardência nos olhos, e então, ao chegarem ao portão, percebeu que o homem não o tinha soltado,
mas o ajudava, amparando-o por um corredor rua abaixo. Na verdade, ao avançarem, ele murmurou algumas palavras de encorajamento:
- Está vendo? Não é longe... estamos quase lá.
No fim, alcançaram a grande construção. Havia árvores de espessa folhagem em ambos os lados. O homem puxou a corda de uma sineta e, após um momento, abriu-se uma
grade na porta tacheada. Seguiu-se uma breve conversação e depois ele foi admitido num pequeno saguão caiado, com um chão de pedra nua e bancos lustrosos junto às
paredes.
À beira do colapso, Stephen olhou em torno, tonto. Tudo estava fora de foco. Todas as linhas do saguão corriam juntas e depois se afastavam, como círculos num lago.
Até o porteiro que o deixara entrar parecia fantasticamente indistinto, vestido num paletó comprido e com capuz que lhe dava um aspecto de mulher. Outro homem, ou
mulher, tinha aparecido. Então, imediatamente, todas as linhas se dissolveram. O trabalhador da choupana, voltando-se para esse recém-chegado, retirou atabalhoadamente
o braço que o amparava. Stephen caiu de rosto para baixo, com o embrulho de telas molhadas ainda amarrado às costas.


CAPÍTULO XIV

O SOL DA MANHÃ, incidindo na única e funda janela à cabeceira da tarimba armada sobre cavaletes, acordou-o. Ele deixou-se ficar passivamente, o olhar percorrendo
os poucos objetos da pequena ermida da qual, durante as últimas três semanas, tinha se tornado íntimo e familiar - a solitária cadeira de assento empalhado, o armário
provençal, o genuflexório de madeira num canto, o crucifixo preto na parede branca. Especulativamente, examinou a sua mão, levantando-a contra a luz, achando os
dedos ainda brancos, mas talvez menos translúcidos do que na véspera. Esse era um teste que ele fazia todas as manhãs. Passos leves, rangendo no corredor coberto
de areia, fizeram que ele, sem querer, movesse o corpo e voltasse a cabeça. Estava olhando para a porta quando ela se abriu e o enfermeiro entrou, trazendo o seu
desjejum numa bandeja.
- Como dormiu?
- Muito bem.
- A nossa cantoria não o perturbou?
- Não, agora já estou acostumado.
- bom - disse Dom Arthaud, depondo a bandeja.
Tirou um termómetro dos recessos do seu hábito branco, sacudiu-o e, com um sorriso, colocou-o entre os lábios de Stephen. - Isto não é mais necessário. Mas como
você vai se levantar hoje, queremos ter certeza.
Era um homem de uns 50 anos, de estatura média, vigoroso, ombros quadrados, com uma cara grande e agradável, ligeiramente azulada em torno do queixo, e inteligente,
de olhos castanhos com óculos, a cabeça raspada e tonsurada; usava sandálias de tiras nos pés nus. Ao cabo de um minuto, retirou o termómetro, leu-o e, com um aceno
tranquilizador, puxou a cadeira com a bandeja para junto da cama.
- Não esqueça o seu remédio.
Depois de tomar, com um canudinho de vidro, o líquido escuro de sabor metálico, Stephen começou o seu desjejum - uma caneca de café au lait, manteiga fresca numa
tigela de barro, pão cortado em fatias e frutas. O café com leite estava quente, cheirando a chicória. Depois de molhar o pão na caneca, Stephen olhou compungido
para o que estava em pé - ele nunca sentava-se na extremidade da cama.
- Por que não come comigo? Aqui há mais do que suficiente para dois.
- De modo nenhum. Fazemos a nossa refeição ao meio-dia.
- Mas... isto está muito gostoso.
O enfermeiro sorriu alegremente.
- Sim... a nossa comida é perfeitamente horrível. Mas estamos habituados a ela. E depois, não estivemos doentes.
Stephen apanhou outra fatia de pão.
- Isso é que eu estava querendo lhe perguntar. Que foi exatamente que eu tive? O senhor nunca disse.
- Você teve uma inflamação dos pulmões... por exposição à intempérie. Além disso, fez um esforço demasiado grande. Como resultado, teve a complicação de uma hemorragia.
Muito grave.
- Pensei que o sangue fosse do nariz.
- Não, era dos pulmões. - Fez uma pausa, olhando por cima dos óculos de aros metálicos. - Já teve algo parecido antes?
Stephen refletiu um momento, depois abanou a cabeça.
- Tive um resfriado há alguns meses. Bronquite, imagino. Mas podia ter sido por causa disso.
O enfermeiro baixou os olhos.
- Eu não poderia responder. Não sou médico.
- Mas o senhor me salvou desta muito bem.
- Com a ajuda de Deus.
- E muita habilidade. Não acredito que o senhor não seja qualificado.
- Estudei medicina em Lions com o Professor Rolland. No último ano, assim como você foi chamado para ser um pintor, recebi o chamado para ser um monge.
- Muito afortunadamente para mim.
Dom Arthaud inclinou a cabeça, e então, quando Stephen terminou, apanhou a bandeja. Na porta, fez uma pausa.
- Não se levante ainda. Esta manhã, o Reverendo Prior vem visitá-lo. Quando ele saiu, Stephen recostou-se, com as mãos cruzadas atrás da cabeça. Ainda se sentia
atrozmente fraco. Contudo, quase já não tinha tosse e nem sentia mais aquela pontada aguda do lado. Como era bom o sol no seu rosto - a atividade da convalescença
começava. Não se preocupava com a sua situação. A persistência do enfermeiro em tirar-lhe a temperatura de manhã e à noite não era palpavelmente mais do que uma
rotina. Na verdade, imaginava, calmamente, se a sua doença, com aquele estranho depauperamento, não teria sido peculiarmente oportuno. Já ouvira falar de sangria
como remédio para a febre. Pelo menos sentia-se curado daquelas dores cruciantes que tão intoleravelmente o atormentavam.
Olhando para trás, admirava-se de que, durante todos aqueles meses, tivesse permanecido naquele estado de tamanha sujeição, aniquilado por uma única palavra, arrastando-se
pelo favor de Emmy. A simples ideia daquilo fazia-o estremecer. Rejubilava-se em ser ele mesmo outra vez, e jurou que jamais se submeteria a semelhante escravidão
- na verdade, foi mais longe, e fez um voto solene de que no futuro nenhuma mulher participaria da sua vida. Somente o seu trabalho o interessaria agora, e a ele
se aplicaria com rigorosa autodisciplina.
Às 11 horas chegou o seu visitante. O Prior, uma figura alta e imponente, na sua vestimenta branca encapuzada, sentou-se tranquilamente na cadeira e estudou Stephen
com grave reflexão.
- Então, afinal vai sair da sua cama, meu filho. Alegro-me.
- E eu estou agradecido - murmurou Stephen. - Foi sorte minha encontrar a sua cruz no meu mapa.
- É verdade que temos uma cruz. Mas não figuramos no mapa - disse o Prior com um leve sorriso. - Aquela marca é para uma hospedaria de ciclistas no vale vizinho.
Você se extraviou no caminho, meu filho. Ou, desde que a Providência o trouxe aqui, poderíamos dizer que o achou?
Uma esquisita inflexão na voz do Prior trouxe uma ligeira cor ao rosto pálido de Stephen. Teria deixado escapar alguma coisa a seu respeito nos primeiros dias da
doença?
- De qualquer maneira - respondeu ele - já era tempo de eu ficar bom. Dei-lhe um grande trabalho. Os senhores devem estar querendo se livrar de mim.
- Ao contrário, você é muito bem-vindo aqui. Sofreu um grande abalo, e Dom Arthaud acha que antes de várias semanas não estará apto para viajar.
- Mas... receio que não possa pagar.
- Nós lhe pedimos o seu dinheiro, meu filho? Aliás, quem o esperaria de um artista que luta? Fique conosco por uns tempos. Sente-se ao sol no jardim. Quando estiver
mais forte, a vida terá um aspecto diferente. Será capaz de enfrentar melhor o mundo.
O Prior pousou delicadamente a mão no braço de Stephen, e então levantou-se e saiu.
Stephen teve que se esforçar para reprimir as lágrimas dos olhos. Levantou-se. Suas roupas, lavadas e cuidadosamente dobradas, estavam no armário, com os seus outros
pertences. O dinheiro, cerca de 30 francos, achava-se numa pilha precisa ao lado do seu relógio, que estava funcionando; ele adivinhou que lhe tinham dado corda
todos os dias. Depois de se vestir, deixou o quarto e andou ao longo de um corredor estranho, lajeado de pedra, que o levou ao jardim, nos fundos.
Não era um recinto grande, umas poucas trilhas em torno de roseiras separadas, que levavam a uma gruta com uma estátua no fundo. Um muro de andebol quebrava o contorno
da cerca em volta. Além, alguns campos. Por suas conversações com Dom Arthaud, Stephen soubera que, graças à doação de uma pequena casa de campo, a comunidade, devotada
à instrução de cerca de 20 noviços, tinha sido recentemente estabelecida e estava crescendo unicamente devido aos esforços dos próprios monges, que haviam construído
com as suas mãos a pequena capela contígua à antiga mansão. Podia vê-la agora, branca e um tanto grosseira, aprumando-se contra o céu lanoso.
Após ter andado pelas trilhas, foi obrigado a descansar num dos bancos que flanqueavam a quadra de andebol. Um velho, com o hábito castanho de irmão leigo, estava
ordenhando uma vaca no pasto. Dali a pouco, começou um ofício na capela, e o cantochão, carregado pela brisa suave, era mais do que ele podia suportar. Levantou-se
e arrastou-se para o seu quarto.
Lá, encontrou uma carta, colocada bem à vista no peitoril da janela. Uma semana antes, sentindo-se terrivelmente só, soerguera-se no travesseiro e garatujara umas
linhas ao morador do nº 15 da Rue Castel, pedindo-lhe que remetesse qualquer correspondência que chegasse para ele àquele endereço. Este era, presumivelmente, o
resultado. Rasgou o envelope. Era de Stillwater, uma breve nota escrita havia dois meses.
CARO STEPHEN
Não sei se esta lhe chegará às mãos. Se chegar, é para informá-lo da morte de Lady Broughton, em outubro. Isso não foi inesperado. Algumas semanas antes, o noivado
de Claire e Geoffrey fora anunciado. Vão casar-se muito em breve. Não há outras notícias de importância para lhe dar, a não ser que papai
continua muito triste com a sua ausência. Suplico-lhe que volte e aceite suas responsabilidades como filho obediente.
Sua, Caroline.
Ainda com a carta na mão, Stephen sentou na cama. Em outros tempos, aquela notícia de casa não o teria afetado tão profundamente. Sabia da doença de Lady Broughton,
e seu amor por Claire nunca tinha sido mais que uma afeição fraternal. Contudo, aqui, neste ambiente estranho e remoto, abatido pela doença, a morte de uma e o próximo
casamento de outra - com Geoffrey, entre todos os homens! - parecia aumentar a sua sensação de exílio, cortá-lo mais fundamente de toda aquela vida agradável que
normalmente ainda seria sua. O tom da carta de Caroline, breve, cheio de calada amargura e implícitas censuras pelo que poderia ter sido, fazia-o mais do que nunca
sentir-se uma criatura à parte, cuja própria natureza o punha em conflito com a família, a pátria e a sociedade.
Com o decorrer das semanas, ele ficava mais forte. A região em torno, coberta de pinheiros baixos, sem beleza e sem qualidade, dava-lhe pouco incentivo para sair
do recinto. Fez amizade com os dois filhos de Pierre, o trabalhador da choupana que o trouxera ao mosteiro, levava-os encarapitados no selim da sua bicicleta. Ajudava
o velho Irmão Ludovic na horta, jogava andebol com os noviços na hora do recreio. Eram um alegre grupo de jovens, recrutados principalmente em boas casas burguesas
em Garonde e nas cidades vizinhas. Talvez por ele ser um estranho, e de uma raça diferente, eles se davam ao trabalho de lhe dedicar pequenas atenções matizadas
de um espírito de proselitismo que, embora o deixasse insensível, comovia-o e divertia-o. Seus corações estavam naquela nova pequena comunidade, e quando não mergulhados
em oração, entregavam-se sem poupar-se ao duro trabalho manual nos seus esforços para melhorá-la.
Um dia, no jogo de andebol, fizeram-lhe uma observação, meio rindo, meio sérios.
- Monsieur Desmonde... Uma vez que o senhor é um artista, por que não pinta um belo quadro para a nossa igreja?
Stephen, com a atenção presa, olhou para o proponente.
- E por que não? - respondeu com um ar sério.
A ideia, que não lhe ocorrera, pareceu-lhe um admirável meio de expressar a sua gratidão, de dar alguma retribuição tangível pela bondade que tinha recebido. Além
disso, a vadiagem forçada começara a pesar-lhe.
Nessa mesma tarde, conversou com seu amigo Dom Arthaud, que recebeu a sugestão calorosamente e prometeu falar com o Prior. A princípio, o Prior hesitou. A capela,
embora reconhecidamente inacabada por dentro,
era o produto de um prolongado e árduo esforço e cara ao seu coração. Seria sensato colocar aquela prezada e duramente ganha possessão nas mãos de um pintor desconhecido,
cujas poucas telas, embora estranhamente compulsivas, não davam indicação de competência ortodoxa? No fim, a fé, que era o sustentáculo da sua existência, moveu-o
a uma decisão. Mandou chamar Stephen.
- Diga-me, meu filho, o que pretende fazer.
- Gostaria de pintar um afresco acima do altar, na parede de fundo da abside.
- Tema religioso?
- Naturalmente. Pensei na Transfiguração. Iluminaria toda a capela.
- Você está certo de que poderia produzir algo que aprovássemos?
- Eu tentaria. Não tenho tintas nem pincéis bastante largos. O senhor teria que arranjá-los para mim. Teria que confiar em mim. Se o fizer, prometo dar o melhor
de mim.
Na manhã seguinte, dois dos padres partiram para Garonde, voltando à tarde com vários pacotes embrulhados em papel pardo. Nesse meio tempo, os noviços tinham armado
um andaime atrás do altar. Cedo, no dia seguinte, com aquele alvoroço que sempre sentia ao começar um novo trabalho, Stephen pegou o seu pincel.
Contudo, o seu estado de espírito era muito insólito. De corpo relaxado, não de todo livre da lassidão da convalescença, parecia banhado de um fofo langor. Suas
emoções ainda eram instáveis, a umidade lhe vinha prontamente aos olhos. O ambiente da capela, a entonação dos monges, a sensação de estar separado do mundo induziam
nele emoções inteiramente alheias à sua natureza. Embora não dispusesse de modelos, o trabalho tomou corpo com uma surpreendente facilidade, para quem estava acostumado
a um esforço sobrehumano nas primeiras horas de criação. Já tinha esboçado a figura central do Senhor, vestido de trajes brancos, radiante com uma nuvem de luz,
e começava a traçar as feições de Moisés e Elias.
Ao progredir com tamanha facilidade, experimentou esquisitos momentos de desconfiança, imaginando-se, em vez de projetar as suas próprias ideias, não estaria reproduzindo
inconscientemente uma compósita de primitivos pintores religiosos. Aplicadas em têmpera, as suas cores, usualmente tão duras, eram macias e lisas, suas formas pareciam
perturbadoramente convencionais. No entanto, contra essas dúvidas, crescia a aprovação da comunidade.
No começo, fora olhado com ansiedade, talvez até com desconfiança. Mas logo isso deu lugar a uma franca admiração. Às vezes, ao voltar-se no andaime para limpar
os pincéis, observava nos olhos de algum noviço que tinha vindo ostensivamente para rezar, mas na verdade para incorrer no pecado da distração, um olhar de perfeito
transe. Aquilo não era suficientemente tranquilizador? E, afinal de contas, ele não se comprometera a agradar?
O afresco, ocupando todo o espaço acima dos retábulos, ficou terminado em três semanas, e quando o andaime foi retirado, toda a comunidade reunida olhava-o com aclamação.
- Meu filho - disse o Prior a Stephen - agora sei que a sua vinda aqui foi providencial. Deu-nos um memento da sua estada que durará muito além da existência de
todos nós. Agora somos nós quem lhe devemos muito. - E continuou: - Amanhã celebraremos a Missa Solene para consagrar a sua obra. Embora não seja membro da nossa
fé, espero que nos agrade com a sua presença.
Na manhã seguinte, o altar estava enfeitado de flores, chamejante de velas. O Superior, em paramentos brancos, assistido por Dom Arthaud, cantou a Missa, enquanto
o coro entoava as respostas. Para Stephen, sentado na galeria, a pintura, brilhando à luz dos círios, tornada mística por uma nuvem de incenso, parecia uma esplêndida
realização. Nunca antes tivera tamanho sucesso.
Um repasto especial foi servido após a cerimónia, com um vinho da região de tal vigor que Stephen deu um passeio à aldeia para clarear a cabeça.
À tarde, quando voltava, Dom Arthaud o recebeu à porta com uma curiosa expressão.
- Há um visitante que deseja vê-lo. Um cavalheiro que diz ter vindo para levá-lo de volta a Paris.
Stephen entrou no seu quarto. Lá, reclinado na cama, usando chapéu e paletó, e soprando furiosamente no seu cachimbo, estava Peyrat. Pulou imediatamente quando Stephen
entrou e beijou-o em ambas as faces.
- Que é que andou fazendo? Não uma, mas uma dúzia de vezes procurei alcançá-lo. Agora, por casualidade, consegui o seu endereço na Rue Chancel. Por que está enterrado
aqui?
- Estive pintando - sorriu Stephen, ainda vibrando com a inesperada presença de Peyrat.
- Sorte ingrata - disse Peyrat, com fingida braveza. - Enquanto eu esperava, me arrastaram para a igreja. Que coisa terrível essa que você fez, cher ami. Oh, que
miserável cópia de del Sarto. Que terrível refundição de Luini. Embora eles gostem e vão se ajoelhar diante daquela pintura durante séculos, é indesculpavelmente
chocante, e para você, especialmente neste momento, uma desgraça.
- Por que neste momento? - perguntou Stephen, um tanto desconcertado.
- Por causa do anúncio feito no mês passado, e que me fez caçá-lo por toda a França.
- Que diabo está querendo dizer?
- Um anúncio - continuou Peyrat imperturbável, rolando as palavras
na língua como se gostasse do seu sabor - que lhe colocava uma medalha no peito, 1.500 francos no bolso e ainda nos permitirá, espero, fazer uma viagem juntos à
Espanha.
Subitamente atirou os braços em torno de Stephen e mais uma vez o abraçou.
- Não se importe com a sua doença, ou aquele medonho Moisés e Elias. A sua Circe ganhou o Prix de Luxembourg.

 

 


CONTINUA