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TERCEIRA PARTE
CAPÍTULO I
NUMA TARDE CINZENTA DO COMEÇO DE JUNHO, 1914, Stephen vinha pelo Faubourg St. Honoré para a Place Vendôme. Era um bairro que ele raramente frequentava, especialmente
àquela hora, em que o logradouro da moda fazia-o sentir-se estranho e deslocado. Todavia, tinha estado nas Salles des Ventes Soulat, na Rue Heber, e resolvera caminhar
para curar a dor de cabeça adquirida na sala de leilão abarrotada de gente e voltar ao seu chão menos elegante.
A venda deixara-o triste e furioso. A fim de ganhar a sua parte nas despesas com a expedição à Espanha, Peyrat resolvera recorrer ao expediente ocasionalmente usado
pelos artistas do bairro e mandara 10 dos seus quadros para a vente libre da Soulat, que se realizava uma vez por mês.
Hoje, a atração da venda tinha sido um grande Bouguereau, uma jovem mulher, envolta diafanamente numa pele cor de mastique, cabelos pretos repartidos ao meio, os
olhos de uma gazela domesticada, segurando um balde, tomado de empréstimo a Greuze, do qual a água jorrava para um poço ornamental cercado de rosas. No estrado,
a pintura provocara um sussurro, depois um zunzum de admiração dos presentes, e, apôs lances animados, o martelo bateu aos 10 mil francos. Seguiram-se vários lotes
de mobília antiga, depois louça de cozinha - as pinturas de Peyrat estavam no fim da lista. A primeira causou risinhos, a segunda uma positiva onda de divertimento,
e quando a última tela foi exibida, a multidão gargalhou, encorajada por uma saraivada de gracejos vindos do fundo da galeria. Nenhum daqueles trabalhos imaginativos
e originais alcançou mais de 60 francos - todos os 10 foram vendidos ao mesmo comprador por um total de 480 francos. Quem os tinha comprado? Seria apenas algum farceur
que queria chocar e entreter os seus amigos? A curiosidade levou Stephen a ficar lá e perguntar ao empregado do bureau onde eram feitos os pagamentos. E então veio
o pior momento - as 10 pinturas tinham sido adquiridas, praticamente de graça, por um agente de arte chamado Tessier.
- Ele comprou o Bouguereau?
- Mon Dieu, não, monsieur.
- E por que ficou com aqueles outros?
O empregado encolheu os ombros.
- Com certeza monsieur está a par dos estratagemas e tendências do mundo artístico. O que hoje se compra por 50 francos pode ser vendido, em
10 anos, por 50 mil... se se tratar de Tessier.
Stephen deixou o escritório dizendo alguns palavrões para si mesmo. Contudo, essa sua disposição não demorou muito a mudar. Embora explorado como fora, e como sempre
seria, Jerome devia ter agora quase 50 francos, os quais, com os 1.500 que recebera pelo seu prémio, os habilitaria a partir para Madri e, com economia, passar vários
meses juntos na Espanha. Aqui em Paris, a primavera tinha sido fria e triste - o vento soprava forte e poeirento nas esquinas, e as folhas dos castanheiros estavam
murchas nas bordas. A perspectiva de partir para um clima ensolarado aquecia os ossos de Stephen. Neste ponto, passou pela leiteria que frequentava quando chegara
a Paris pela primeira vez, bem defronte ao Clifton Hotel, e refletiu, com a sombra de um sorriso, sobre as mudanças que haviam se operado nele desde que transpusera,
pela primeira vez, aquele portal abafado. Subitamente, enquanto essa ideia ainda estava no seu espírito, a sua expressão se alterou. Avançando diretamente para ele,
acompanhado de dois homens - um oficial francês, idoso, usando quepe e um uniforme com muitas fitas de conderações, e um homem mais moço, muito bronzeado, também
de porte militar - vinha o seu tio Hubert. Teria sido impossível para Stephen, fingindo interessar-se por uma vitrine, evitar o encontro. Em vez disso, com as feições
já preparadas, convencido de que o General Hubert o deteria, continuou a andar.
Todavia, estava errado - com um piscar claramente perceptível dos seus olhos azuis, Hubert reconheceu-o, hesitou um pouco, continuou por mais alguns passos e, com
uma palavra aos seus companheiros, voltou.
- Stephen. - Embora a sua voz estivesse bem controlada, não estendeu a mão. - Foi sorte tê-lo encontrado. Pensei que estivesse na Rue Castel.
- Então?
- Preciso muito vê-lo. Quer vir ao meu hotel mais tarde? Não posso me deter agora - estou com essas pessoas.
Por cima do ombro, Stephen via os dois oficiais, fingindo, com perfeita polidez, não notar a sua existência.
- Onde está hospedado?
- No Clifton, como habitualmente. - O General indicou com os olhos o outro lado da rua. - Olhe, venha amanhã para o desjejum, às nove horas.
Stephen hesitou, mas apenas por um instante.
- Muito bem.
- Excelente. Não tenho tempo de sobra, assim venha às nove em ponto. Com um breve aceno, Hubert girou e afastou-se com os seus amigos. Com precisão menos militar,
Stephen retomou o seu caminho para a Rive
Gauche. O encontro inesperado, evocando recordações pungentes e amargas que ele desejava esquecer, desconcertara-o. Embora nunca tivesse havido muita compreensão
entre o General Desmonde e ele - as suas naturezas eram opostas - Hubert sempre o tratara com amável condescendência. E a frieza impessoal que ele acabara de mostrar
parecia um presságio de que a entrevista da manhã seguinte não seria agradável. No entanto, o orgulho de Stephen e aquele humor irónico que ultimamente reforçava
o seu caráter, acima de tudo uma firme determinação de não ser intimidado, tornavam-no bastante decidido a não faltar ao encontro. Na manhã seguinte, precisamente
às nove horas, entrou no saguão marrom, respeitável e triste do Clifton.
O General Desmonde já estava no refeitório, onde era o único hóspede presente, e tendo reconhecido a pontualidade de Stephen, com um cumprimento ligeiramente menos
frígido observou:
- Pedi bacon e ovos, chá, torradas e geléia para dois. Uma coisa de bom este lugar tem: pode-se obter um decente desjejum inglês.
O garçom trouxe a admirável comida inglesa. Passando manteiga na sua torrada, Hubert mordeu-a vivamente.
- Suponho - disse ele mastigando - que gostaria de ter notícias de casa.
- Pode dá-las, se quiser. Como está meu pai?
- Muito bem, de um modo geral. Todos parecem muito bem. Sua mãe esteve fora outra vez. Davie cresceu - está um rapagão alto.
Stephen, com um esforço, manteve a sua expressão de polido interesse. Hubert continuou:
- Minha gente também está em forma. Geoffrey e Claire, excelentemente instalados. - Lançou um olhar rápido por baixo das sobrancelhas. - Claire espera um bebé no
verão.
- O senhor naturalmente quer um menino - comentou Stephen com a mesma polidez.
- Oh, o que vier está bem. Mas acho que Geoffrey quer um filho, para sucedê-lo no Sandhurst.
Houve um silêncio. As perguntas que Stephen queria fazer continuavam mudas. Naquele ambiente de frio constrangimento, não podia falar com sentimento de Davie ou
de seu pai, mas, ainda que só para proteger-se, devia manter firme aquela atitude de aparente indiferença.
Por fim, o General terminou, limpou o bigode, dobrou o guardanapo com a calma precisão que marcava todas as suas ações, e olhou firmemente através da mesa para Stephen.
- Como vão os seus desenhos... progredindo?
- Oh, como sempre. Temos os nossos bons e maus dias, como sabe.
- Hum! Já está fora há quase dois anos.
- A arte é longa - sorriu ele com indiferença - e a vida é breve.
- É mesmo? Suponho que.. . nenhum sucesso... tenha resultado de todo esse esforço...
- Muito pouco. - Stephen manteve o seu tom de ironia.
- Ah, algo destinado à imortalidade, certo?
- Ainda não, talvez... mas quem é que pode dizer? Hubert fez um gesto desdenhoso.
- Por que continua... levando esse tipo de vida?
- Não conseguiria explicar ao senhor... embora ache que pudesse fazêlo a um ouvido simpático.
- É alguma espécie de notoriedade idiota que você procura... ou frouxidão?
- Qualquer que considere o pior desses motivos.
A frivolidade intencionalmente satírica de Stephen levou o General Desmonde a comprimir os lábios bem desenhados. Para quem se orgulhava de manter os mais altos
padrões de eficiência militar, que punha a honra, a disciplina e o autodomínio acima de tudo, cuja fria coragem e resistência física eram famosas no seu regimento,
a presente atitude de Stephen era como um pano vermelho na frente de um touro. Resolveu, na sua própria expressão, deixar-se de rodeios e ir diretamente ao ponto.
- Você deve voltar - disse ele, e fez uma pausa. - Se não por sua família... ao menos por seu país.
Atónito, Stephen devolveu o olhar do tio em absoluto silêncio.
- Você pode não perceber - continuou Hubert. - Vai haver uma guerra. Em questão de semanas, meses no máximo, a Alemanha atacará a Inglaterra. Para obter a vitória,
precisaremos de todos os homens disponíveis que temos.
Outra vez houve silêncio. Stephen, compreendendo por fim o que estava na mente de Hubert, experimentou um profundo ressentimento. Quantas vezes no passado o General
tinha dado o alarme da iminência de guerra! Durante anos vivera suspeitando da Alemanha, com desconfiança do Kaiser Guilherme e seu estado-maior, sombrias profecias
sobre a falta de preparo militar da Inglaterra. Sem dúvida, a sua profissão de soldado levava a esse ponto de vista cauteloso; contudo, na família, essa atitude
de tio Hubert era encarada como uma obsessão. Imaginar que por semelhante suposição ele cortaria a sua carreira, parecia fantástico a Stephen.
- Admito que vá desapontá-lo. Não vou voltar.
Seguiu-se uma pausa.
- Compreendo.
A voz de Hubert era fria como gelo. - Pretende mandriar por aqui na indolência e dissipação.
- O senhor parece equivocado quanto à natureza das minhas atividades.
Seria uma surpresa saber que trabalho 12 horas por dia? De fato, aposto que trabalho mais duramente em minha arte do que o senhor em desfiles e paradas.
- Sua arte! - exclamou Hubert, torcendo os lábios. - Que asneira mais pretensiosa!
- É absurdo ocupar-se somente com o que é belo, e não, como o senhor, com o negócio de matar gente? No entanto, apesar das suas opiniões a nosso respeito, somos
os únicos que importam. Aventuro-me a dizer que as obras dos grandes artistas serão lembradas e estimadas muito depois que suas conquistas sangrentas estejam esquecidas.
O General, extremamente furioso, mordeu o lábio. Seus olhos glaciais cintilaram.
- Recuso-me a discutir com você. Repito: não importa o que tenha feito, ainda é um inglês, é um Desmonde. Não admito ver o seu nome ridicularizado e desprezado.
Numa época como esta, você não pode fugir, borrando pinturas num pedaço de pano. Você deve voltar. Eu insisto.
- E eu me recuso - disse Stephen, levantando-se da mesa. - É uma pena que o senhor não possa fazer nada a esse respeito.
Ainda mantendo aquele sorriso fixo e fingido que acima de tudo enfurecia o tio, girou nos calcanhares e saiu do refeitório. Ao passar pelo vestíbulo, foi impulsivamente
ao escritório do hotel e pagou a conta do seu desjejum. Depois, já sem sorrir, tremendo um pouco com os sofrimentos que lhe tinham sido infligidos, saiu para a rua.
CAPÍTULO II
SOB A ESTRANHA LUZ AMARELA que se filtrava através do telhado de vidro, o expresso de Biarritz estava para partir, a maioria dos passageiros já nos seus lugares;
no quai onde viajantes atrasados corriam, carregadores gritavam e empurravam os seus carrinhos, entre uma confusão final de barulho, vapor e fumaça sulfurosa, Stephen
estava diante do seu compartimento, já quase cheio, esperando Peyrat com crescente ansiedade. Jerome, morando em Louvenciennes, prometera estar cedo na estação.
Todas as medidas para a partida tinham sido tomadas. E agora as portas do vagão já estavam fechando. Aborrecido, refletindo em como fora imprudente por confiar em
alguém tão impulsivo e incerto, Stephen esqueceu o amigo. Peyrat evidentemente não vinha. Então,
exatamente quando soou a corneta, viu uma figura familiar caminhando tranquilamente na plataforma, num casacão frouxo e muito batido; carregava um cavalete e uma
sacola de tapeçaria de terrificante antiguidade.
Apanharam o trem em movimento no último instante, e depois de alguma manipulação Peyrat empilhou carinhosamente os seus pertences no bagageiro. Quando, não sem luta,
acharam lugares perto um do outro, ele se voltou muito despreocupado para Stephen, com um sorriso que, saltando dos seus olhos azuis, irradiava o seu rosto enrugado
e com a barba por fazer.
- Você deve me perdoar. Estou atrasado. No metro, sentei ao lado de um jovem cura que, sabendo que eu ia para Madri, iniciou uma conversa comigo sobre o assunto
da ordem descalça. Nossa discussão atingiu tamanho calor, que passei da minha estação... indo parar no Odéon.
Sua voz macia e maneira afetuosa, tão delicada, gentil e alegre, e sobretudo aquele ar de audácia ingénua que era uma grande parte dele, aplacaram Stephen imediatamente.
- Merecia ter perdido o trem. Peyrat imediatamente se pôs grave.
- Meu amigo - disse ele - não me censure por tratar de um assunto tão fascinante. Pretendo examinar a matéria, visitando os conventos dessa ordem na província de
Andaluzia. Sempre pensei em fundar uma confraria de descalços, dedicada à arte e à meditação. Esta pode ser a minha oportunidade. E acrescentando, após um momento
de reflexão: - A pobreza pode salvar a humanidade.
Stephen ergueu as sobrancelhas.
- A pobreza não nos salvará. Guardo o seu dinheiro das Ventes Soulat, e como você foi miseravelmente tapeado, é muito pouco. Não temos mais que 1.900 francos, os
dois.
- Divida-o em partes iguais. Não me oponho - disse Peyrat calmamente. - Ou, se quiser, dê-me tudo. Serei o nosso tesoureiro. - Então, apontando para a sacola de
tapeçaria roída pelas traças: - Tenho ali um presunto de Bayonne, pesando nem um miligrama menos que 15 quilos, que me foi dado por Madame Huffnaegel. Não morreremos
de fome.
Enquanto o trem adquiria velocidade através dos subúrbios externos, os outros passageiros entregues às suas próprias preocupações, Stephen, que nunca soubera lidar
com dinheiro, lembrando-se, também, de como Peyrat tinha administrado excelentemente a casa na Rue Castel, entregou-lhe o maço de notas. Aceitando-o placidamente,
Jerome apanhou volumosa carteira amarrada com um cordel onde recolhia todos os seus documentos preciosos - recortes esfarrapados de jornais provincianos, programas
sujos e dobrados num canto de passadas soirêes musicales, e as cartas de cumprimento que ele, à menor provocação, tirava e lia para conhecidos ocasionais em cafés,
veículos públicos
e até na rua. Depois, assegurando-se de que nada faltava, apanhou um envelope selado, já um tanto sujo, e, manuseando-o com um ar de mistério, não isento de orgulho,
olhou várias vezes para Stephen, como se esperasse provocar-lhe a curiosidade. Quando não o conseguiu, disse:
- Você não adivinha o que é isto. Uma carta de apresentação à Marquesa de Morella. Ela é velha, mas da mais alta aristocracia, e Madre Superiora do convento de Ávila.
Sem dúvida ela me receberá. Um seu ancestral foi pintado por Goya. Está pendurado no Prado.
- Então eu vou visitar o ancestral. E todos os outros Goyas.
- Ah, isso sem dúvida será interessante para você - concordou Peyrat.
- Mas... a marquesa...
Repôs a carta na carteira e tornou a amarrá-la com o barbante. Seguiu-se um silêncio, durante o qual ele estudou o seu companheiro.
- Você parece deprimido, meu amigo. Alguma coisa o aborreceu?
- Não - disse Stephen, e depois, num impulso, porque realmente a altercação com o General Desmonde ainda lhe pesava no espírito, ajuntou: Alguém quis me transformar
em soldado.
- Peyrat, mestre do non sequitur, não traiu a menor surpresa. Por alguns minutos, chupou meditativamente a biqueira do seu cachimbo apagado.
- Serviço militar obrigatório é uma instituição monstruosa - o maior mal da nossa época. Por que os homens devem ser metidos num uniforme a fim de poderem matar
uns aos outros? Nos dias da cavalaria, os cavaleiros travavam combate por sua própria vontade. Era um esporte para eles - e eles não serviam para mais nada. Ninguém
jamais sonhou em encerrar um poeta ou um filósofo numa armadura e mandá-lo para o campo de batalha. Até os camponeses estavam isentos. Mas agora todos devemos nos
tornar peritos nos métodos de trucidar os nossos semelhantes.
Stephen, que ouvira com um sorriso, riu-se agora fracamente. E isto Peyrat aceitou como um cumprimento, mas, suprimindo a sua satisfação, soltou um longo suspiro.
- Ah, pobre humanidade, o que não sofres pelos teus senhores!
- Pelo menos - disse Stephen, já muito animado - não estamos sofrendo no presente momento. Além do mais, como já passa do meio-dia, vamos almoçar.
Jerome admitiu que estava com fome. Quis mostrar o presunto de Madame Huffnaegel, mas Stephen, na sua jovial disposição, mandou a economia às favas. Abriram caminho
nos corredores apinhados até o vagão-restaurante e, enquanto sebes folhudas, salgueiros mergulhando amarelos nas correntes cinzentas e verdes árvores copadas passavam
por eles, almoçaram sardinhas, peito de vitela, e um precioso queijo de Brie. Depois se demoraram com um beneditino, enquanto Peyrat fumava tranquilamente o seu
cachimbo.
Com a tarde quase findando, passaram pela plana monotonia das Landes, extensões de areia e intermináveis pinheirais, através das quais, ocasionalmente, viam um brilho
tremeluzente que era o mar. Rapidamente, a tarde foi engolida pela noite, lançando o seu manto sobre as colinas onduladas e os férteis vinhedos do Garonne. Quando
surgiu a lua, apontando nas planícies ensombradas além das quais as montanhas erguiam as suas cristas, Stephen sentiu uma perturbadora tristeza que lhe vinha do
passado. Mas reagiu contra ela, pensando apenas no futuro e na esplêndida aventura à frente.
Exceto o leve clarão azulado, as luzes se extinguiram. Em várias atitudes de torção, os ocupantes do compartimento se acomodaram para dormir até a baldeação em Hendaia.
Peyrat, sentado ereto, com a cabeça coberta pelo seu sobretudo, já ressonava profundamente. Olhando para aquela fantástica forma amortalhada, Stephen sentiu um calor
no peito. Como era bom viajar com um amigo tão original, alegre e gentil, tão pródigo de sua afeição, sempre ingenuamente feliz e, embora às vezes absurdo, tão profundamente
sábio em certas ocasiões. Fechou os olhos e, embalado pelo movimento do trem, tiritando um pouco com a noite fria, logo adormeceu.
CAPÍTULO III
CHEGARAM A MADRI NA TARDE SEGUINTE, e, sem muita dificuldade, acharam dois modestos quartos na Calle Olivia, perto da Puerta de Toledo, um bairro pobre junto ao
mercado das frutas e a certa distância do centro da cidade, mas conveniente pelos seus bondes amarelos. Peyrat, em precário mas compreensível espanhol, tratou das
condições de maneira comercial e pagou adiantado uma semana de acomodação.
Na manhã seguinte à sua chegada, Stephen levantou-se, muito refeito, e acordou Jerome.
- Sete horas. É tempo de acordar. Devemos chegar cedo ao Prado.
Peyrat, apoiado em um cotovelo, considerou o seu companheiro com indulgência.
- Nada é cedo neste país. O Prado só abre às nove e meia. - E ajuntou de uma maneira meditativa: - Além do mais, eu não vou.
- O quê! - exclamou Stephen incrédulo. - Então por que viemos a Madri?
- Para que você pudesse ver o Prado. Vá, meu amigo, e aproveite a visita. Eu não tenho grandes motivos para ir. O que os outros fizeram não me influencia.
- Nem mesmo os grandes mestres?
- Eu próprio sou talvez um mestre - disse Peyrat simplesmente. Além disso, vou a Ávila.
- Ao diabo com Ávila!
- Meu amigo, não fale assim dessa cidade eleita, berço de Teresa, nesse tom tão desrespeitoso.
Houve um silêncio. Stephen, lembrando a carta de apresentação para a Marquesa, sabia que era inútil debater o assunto. Sentia-se, no entanto, aborrecido por aquela
inesperada deserção.
- Como chegará lá?
- De trem, 15:50, na Estación Delicias. - Peyrat saboreava as palavras com a língua.
Uma batida na porta aliviou a situação. A senhoria, uma mulherzinha curvada que nunca levantava os olhos, trouxe o desjejum numa bandeja de madeira pintada. O café,
grosso como melado e diluído com leite de cabra, tinha um sabor esquisito; os pães, de forma oval, com uma poeira de açúcar, eram doces e pesados.
- Azeite de oliva - comentou Peyrat. - Um ingrediente essencial na cozinha espanhola. Ficaremos habituados com ele, depois de um período preliminar de fluxo intestinal.
A oliveira - ponderou - é uma árvore notável... de grande antiguidade. Foi introduzida na Espanha no tempo de Plínio, e às vezes atinge a idade de 700 anos. Homero,
na Ilíada, fala do seu óleo como um grande luxo, apreciado por seu valor na toalete dos heróis. O gastrônomo romano gostava do fruto verde, mergulhado em salmoura.
Os fenícios empregavam a sua madeira dura e durável...
Mas Stephen, um tanto desapontado, não estava prestando atenção. Esvaziou a sua xícara e levantou-se.
- Já vou.
- A propósito - disse Peyrat mansamente quando Stephen se dirigia à porta - estarei alguns dias ausente. Como está em matéria de dinheiro?
- Tenho o suficiente... cerca de 30 pesetas - respondeu Stephen brevemente. - Não espero jantar no Ritz.
- Então isso bastará até eu voltar. - Acenou gravemente: - Adiós, amigo.
Fora, a manhã era serena e o céu sem nuvens. O sol, ainda baixo, prometia um dia quente. Num portal, uma mulher estava esmagando tomates numa terrina com uma colher
de pau. Um cheiro rançoso de fritura e fumo ardido, de poeira suja e frutas decompostas, enchia o ar quando Stephen caminhou
para a esquina. Mas havia vida e cor no mercado, que reparavam a imundície do bairro: mulheres barganhavam em vozes rápidas por entre pilhas de melões sob os toldos
empapuçados, o vermelho brilhante dos pimentões, montes amarelos de milho e abóbora. Na Calle Salazar, ele entrou num bonde que ia para Alcalá, e, em pé na plataforma
traseira apinhada, foi balançando lentamente, e com muitas paradas súbitas que o atiravam para a frente, no tráfego tornado tortuoso por burrinhos decrépitos carregados
de cestas e carrocinhas de rodas altas e barulhentas ocupando o meio da rua, puxadas por mulas magras, carregando vinho e azeite, carvão e cortiça. Todavia, às nove
e meia chegou à Avenida Calio, com o pulso batendo forte, como se combinasse com os seus passos quando saltou do bonde. As portas acabavam de se abrir e ele entrou
no Museu do Prado.
As compridas galerias estavam vazias, a não ser por alguns copistas espalhando folhas no chão lustroso, embaixo dos seus cavaletes. Uma ante-sala com os flamengos
primitivos levou-o a um corredor dedicado exclusivamente a Valdés Leal, onde as enormes figuras agônicas, a religiosidade e a satisfeita mediocridade das composições
momentaneamente o abateram, e essa reação não foi diminuída por uma série de Murillos, delicadamente executados, contudo tão melificamente bonitos, impregnados de
sentimento. Então o seu olho foi segurado, subitamente, por uma pequena e discreta natureza-morta de total simplicidade, três jarros em fila, de Zurbarán, e ele
sentiu dentro de si um calor que se aprofundou e aumentou quando chegou diante de El Greco e Velásquez. Mas o fundo da galeria o atraiu. Esse, pensou ele com um
estremecimento de instintiva delícia, é o meu pintor, este finalmente é Goya.
Sentou-se, mergulhando os sentidos no impressionismo das duas Majas, numa das quais viu imediatamente a inspiração da Olympia de Manet. Então o Dos de Mayo prendeu-o
por algum tempo, e Los Negritos, as grandes telas pintadas nos últimos anos da vida do artista. Eram contudo os desenhos, por sua soberba originalidade, que mais
inteiramente o cativavam.
Nunca antes vira um trabalho de tamanha qualidade, tão apaixonado e carregado de tanta e devastadora verdade. Ali estava a criatura humana inteiramente nua, exposta
em todos os seus pequenos e ignóbeis vícios. O glutão, o bêbado, o voluptuoso, todos estavam ali, satirizados e vilificados em caricaturas profanas e selvagens.
Ali estavam também os poderosos e ricos personagens centrais da corte e da igreja, pasquinados e castigados, despidos física e moralmente. Ali estava, criado por
aquele homem simples de Aragon, um mundo inteiro, fantástico mas universal, independente de tempo e lugar, cheio de intenso sofrimento e miséria, mas ao mesmo tempo
temperado de ternura e piedade - o compassivo protesto de um homem aterrado pela crueldade e injustiça dos seus dias, cheio de ódio por sua opressão, superstição
e hipocrisia. Que coragem devia ter mostrado, pensou Stephen, que desprezo pelo
perigo, quando velho, surdo e só, na casinha chamada Quinta del Sordo, ainda se arriscava à cólera da Inquisição e do rei a serviço da liberdade humana.
Absorto, Stephen não sentiu a passagem do tempo - já era tarde quando foi despedido do museu. Embora o sol ainda brilhasse, estava declinando, e o ar era mais frio.
Decidiu andar até o seu quarto; atravessou a Plaza para o largo aclive da Carrera de San Jerónimo e avançou para a Puerta del Sol. Os cafés estavam apinhados, as
calçadas formigando, as ruas, agora quase sem tráfego, cheias de gente passeando para cima e para baixo. Era a hora do paseo. O murmúrio das vozes, secas e continuadas,
chegava-lhe aos ouvidos como o zumbido de inumeráveis abelhas, mesclado dos gritos agudos dos jornaleiros, dos vendedores de loteria. Todas as classes, todas as
idades estavam ali: velhos e mulheres, crianças com as suas babás, ricos e pobres, todos misturados naquela hora sagrada de entretenimento.
Quando chegou à Puerta del Sol, Stephen de repente se sentiu cansado, e vendo uma cadeira vazia na calçada de um café, sentou-se. À volta, homens bebiam cerveja
gelada, descansando e devorando pratos de camarões. Ele hesitava - a incerteza do estrangeiro - e então pediu café e um sanduíche. Observando a multidão de transeuntes,
podia identificar rostos individuais que pareciam vir diretamente dos desenhos de Goya: um engraxate, rápido, de feições brejeiras, o nariz grotescamente revirado
e a testa abaulada de anão; outro tipo, alto, moreno, grave e reservado; depois, as mulheres, reservadas, baixas e de rosto cheio, de olhos brilhantes e pele de
ouro velho.
Toda essa vida e movimento tinha um estranho efeito sobre Stephen. Após a emoção e alvoroço do dia, ele tinha consciência de que uma lenta reação se processava nele,
um desses humores de tristeza e falta de confiança em si mesmo, sucedendo-se a uma impressão de beleza, que o lançava para o fundo da depressão. Naquele grande concurso
de gente, sentia-se indesejado e inteiramente só, um espectador por predestinação, incapaz de compartilhar da sua alegria ou participar da sua pompa. Numa mesa contígua,
três homens discutiam um recital de canto flamenco que seria dado nessa noite. Como tivessem olhado para ele uma ou duas vezes, Stephen teve um impulso de participar
da conversa, e até mesmo se propor a acompanhá-los no divertimento. Mas não podia forçar-se a fazê-lo. E num surto de autotortura, disse a si mesmo quão fácil e
rapidamente alguém menos inibido, uma pessoa como Chester, travaria conhecimento com esses prazeres da cidade.
O trabalho, inevitavelmente, era o seu analgésico, e durante os três dias seguintes aplicou-se com intensidade no seu estudo dos desenhos do Prado. Apesar da preocupação,
sentia falta de Peyrat. Foi, por conseguinte, com um frémito de prazer que na noite do quarto dia, quando estava desenhando de memória um detalhe de Los Caprichos,
ouviu um passo conhecido na escada de madeira do seu alojamento. Um momento depois, Jerome entrava dramaticamente,
com a sacola de tapeçaria às costas, tirando o xale de lã e abraçando-o.
- Ah, como é bom estar de volta, e ver você de novo!
Stephen soltou o bloco.
- Gostou de Ávila?
- Além da minha expectativa. Você sabia que, cheio de deliciosa tristeza, estive no próprio lugar onde Teresa nasceu? A casa de sua família era no gueto da cidade.
Aliás, uma nova e surpreendente teoria se me apresentou - que nas veias da santa corria de fato sangue judeu. Torquemada deve ter queimado os seus antepassados.
No rosto de Peyrat, que estava ligeiramente corado, uma expressão de triunfo, uma espécie de suave embriaguez, misturava-se com algo que noutro se teria tomado por
vergonha.
- Esteve no convento?
- Naturalmente. É pequeno, está caindo aos pedaços, e infestado de ratos. A dieta daquelas pobres irmãs é abissal. No entanto, apesar de uma extrema soltura dos
intestinos eu me sentia feliz.
- E a Marquesa?
- Uma nobre criatura - graciosa, prática e grave. Sofre cruelmente de gota. Mas, como Teresa, é um soldado, sempre em busca de novas conquistas para o Senhor.
- Ela obviamente o conquistou.
- Não brinque, meu amigo. Aquela excelente senhora não é uma coquete. Está com quase 80 anos de idade, aleijada, e com um lado do rosto paralisado.
Stephen ficou silencioso por um momento. A maneira de Peyrat, menos exuberante agora, intrigava-o. Pensou ver no amigo vagos sinais de timidez.
- Já jantou?
- Deram-me algumas provisões de natureza indescritível, que comi no trem. Meu apetite certamente está arruinado por semanas. Ah, é bom ver você de novo. - A emoção,
fortalecida por uma camaradagem não natural, embargava a voz de Peyrat. Pôs uma mão no ombro de Stephen, ao mesmo tempo evitando o seu olhar. - Amanhã sairemos juntos
novamente.
- Amanhã?
- Por que não?
- Planejamos ficar mais duas semanas em Madri.
- Ora, o que é Madri? Além disso, temos as nossas passagens de trem para Granada. E depois - seu ar teatral aumentou - concebi um plano maravilhoso. Uma vez em Granada,
compraremos um burrinho e uma carrocinha e iremos pela estrada para Sevilha.
- Pela estrada? - Na sua surpresa, Stephen repetiu as palavras estupidamente.
- Certamente. - Jerome fez um gesto, expansivo mas desconfiado. - É o meio de transporte comum neste país. Seremos os peregrinos da alegria, os trovadores, se quiser,
cantando pelo caminho, mendigando se necessário for, vivendo da terra, que nesta estação é rica de frutos - uvas nas vinhas, melões nos campos, figos maduros e romãs
saborosas nas árvores.
- Você perdeu mesmo a cabeça? - perguntou Stephen secamente, convencido agora de que Peyrat tinha sido culpado de alguma terrível imprudência. - Recuso-me a tomar
parte nessa expedição maluca.
Houve uma pausa. Peyrat baixou os olhos. Num tom a um tempo humilde e contrito, murmurou:
- Meu amigo, não me queira mal. O que agora proponho é pura necessidade. Movido por sua pobreza e uma necessidade muito maior do que a nossa, dei o nosso dinheiro,
exceto umas 200 pesetas, à boa Reverenda Madre Superiora, em memória de Santa Teresa.
CAPÍTULO IV
CHOVIA. ATRAVÉS DAS JANELAS FUMEGANTES da sala de espera da estação em Granada, Stephen via os ramos de um renque de eucaliptos balançar e gotejar num vento frio
que descia da Sierra Nevada. Os trilhos molhados da ferrovia estendiam-se numa distância desolada. A sacola de Peyrat e a sua própria mala estavam num canto.
Tinham chegado, após duas baldeações, num trem execrável, abarrotado e cheirando a latrina, na escuridão chuvosa, às quatro horas daquela manhã. Quando a luz aparecera,
uma excursão ao Alhambra, feita a pé, fora um melancólico fracasso. As colunas de mármore e arcos mouriscos, batidas por um aguaceiro, pareciam deslocadas, como
um bolo de noiva num enterro. O Pátio dos Leões estava embaixo da água, à vista do Generalife obscurecida pela cerração. Voltaram calados para o abrigo da sala de
espera; então, ainda cheio de justificável ressentimento, e disposto a não aceitar nenhuma responsabilidade, Stephen ignorou os rogos do outro para que os acompanhasse
e deixou-o partir sozinho para o mercado da cidade.
Desde então, mais de meia hora já se passara, e o atraso não melhorara o humor de Stephen. O que o amargurava era que, tendo, com tanta dificuldade, obtido os recursos
necessários para aquela viagem tão esperada, todos os
seus planos tinham sido desfeitos de um só golpe. Olhou para o relógio, e então notou que a chuva, que poucos minutos antes começara a diminuir, tinha cessado. E
aí, pela janela traseira, viu uma pequena carroça puxada por um jumento de pequena estatura aproximar-se destramente e parar na entrada da estação. O carroceiro,
mais do que ele tinha esperado, surpreendeu-o acima de qualquer irritação.
- Onde arranjou isso?
- Com um cingaro, no mercado. Acredite-me, fiz um excelente negócio - respondeu Peyrat com orgulho. - Como vê, é uma carroça leve e em perfeito estado. O burro,
embora talvez não tão grande, é muito resistente. O dono chorou ao se despedir dele.
Havia um desejo tão óbvio de reconciliação na voz de Jerome, que Stephen se abrandou um pouco.
- Você podia ter feito pior.
- E olhe - exclamou Peyrat, indicando alguns embrulhos na traseira do carro. - Comprei estas provisões com as pesetas que sobraram. Pão, queijo, banana, vinho. Mais
o nosso presunto, temos para uma semana, mais ou menos.
Nesse momento, o sol apareceu quente e brilhante no céu que limpava. A transformação foi miraculosa. Uma sensação de luz e alegria trespassava o ar, e então produziram-se
reflexos e cintilações das gotas de chuva nos beirais das casas pintadas de azul. Nos eucaliptos, um pássaro começou a cantar. De repente, pareceu uma alegre aventura
viajar daquele jeito, andando livres e desimpedidos no desconhecido. O ânimo de Stephen elevou-se.
- Vamos embora!
Empilharam os seus pertences na carroça, e tocaram. O jumento puxava firme e com boa vontade; logo estavam fora da cidade, atravessando uma estrada larga e sombreada
de plátanos descascados, flanqueada aqui e ali por milharais, girassóis e tabaco. Buganvílias, mimosas e gerânios silvestres podiam ser vistos por toda a parte.
Então vieram os laranjais, os ramos carregados de pequenos frutos verdes e brilhantes. Stephen, no estreito assento do carroceiro, respirava com delícia o tépido
ar aromático, gozando a paisagem que passava, o jogo de luz e sombra nas árvores, o gorgolejar de água limpa nos canais de irrigação capinados. Dali a pouco, relanceou
os olhos para o companheiro ao lado.
- É bom estar longe daqueles trens. Vamos por Santa Fé e Loja, não é? E depois por sobre as montanhas?
- É a Sierra Tejea. Estudei o mapa na cidade.
A tarde passou e veio o crepúsculo. Tinham se desviado da estrada principal e agora começavam a subir do vale do Rio Genil, nas encantadoras encostas da Sierra.
Não se via nenhuma habitação humana, mas um pequeno desfiladeiro abrigado por uma moita de pinheiros que prometia um acampamento
conveniente. Desarrearam o jumento e o levaram para uma leira de pasto grosso, onde o admirável animal começou a pastar tranquilamente. Então, sem se dar ao trabalho
de acender um fogo, começaram um bom jantar de queijo, pão e vinho. A noite era suave, negra e quente; agulhas de pinheiro atapetavam o solo arenoso no qual se espicharam.
Stephen dormiu quase imediatamente.
Os dias que se seguiram foram deliciosos, o tempo ensolarado mas temperado, a região amena, fértil, semeada de pequeninas granjas em cujos telhados cor-de-rosa,
ocres espigas de milho estavam postas a secar. As abóboras amadureciam nos campos, alimpaduras voavam sob o mangual dos malhadores. Andavam sem pressa, parando frequentemente
para fazer esboços, ou, abrigados à sombra de um jacarandá, armavam os seus cavaletes para pintar. As formas cambiantes das nuvens tinham uma graça infinita, abelhas
zumbiam nas touceiras, na distância a cúpula de telhas de uma igreja de aldeia ardia no horizonte como uma límpida chama azul. O cheiro de jasmim, pairando no ar,
era uma perpétua embriaguez. À noite, após uma refeição feita com as provisões que levavam, enquanto os grilos cricrilavam, Peyrat tocava um acompanhamento na sua
ocarina, e então, observando as constelações da via-látea num céu que brilhava de negrura árabe, embarcava em profundos monólogos, aos quais Stephen não prestava
atenção - dissertações que iam de São Tiago de Compostela à cultura das corticeiras, de Fernando e Isabel aos poemas de amor do Arcipreste de Hita. Então, com um
ar romântico, procurava repouso, citando uma copla espanhola.
Estendi minha capa no chão
E me pus a dormir.
CAPÍTULO V
Ao CABO DA TERCEIRA SEMANA, apresentou-se uma mudança. A estrada divergiu, as montanhas de repente avultavam mais próximas, e eles foram obrigados a deixar os verdes
sopés para trás, subindo uma estrada íngreme que serpeava numa região pedregosa e selvagem. Não havia cobertura, nem uma árvore visível naquela grande extensão estéril
de rocha torturada e queimada, de contrafortes e alcantis, rasgados e furados em formações fantásticas. O sol ardia,
em certas partes a ascensão era quase precípite. Para descansar o seu dócil jumentinho, caminhavam ao lado da carroça.
Durante dias continou o calor abrasador, até os lagartos jaziam imóveis como gravetos nas fendas das rochas quentes como fornos. Cores soberbas, vermelho, violeta,
cromo, siena, todos os pigmentos da natureza - ressecadas e enferrujadas pela fornalha do sol, emprestavam uma aterradora magnificência àquele ermo primitivo e abandonado.
- À noite, acampavam em nesgas de rochas. Dormiam mal, e quando Peyrat levantava, suas juntas estavam tão duras que ele mal podia se mover. Não havia, contudo, nenhuma
outra estrada, nenhuma alternativa a tomar, e toda essa semana forcejaram para a frente. Um vento malévolo e tórrido enchia os seus olhos de areia, redemoinhando
em espirais de poeira. O jumento já mostrava sinais de falta de pasto apropriado; suas provisões, até o presunto, estavam finalmente esgotadas. Stephen já começava
a se preocupar, quando, no nono dia de jornada, depois do meio-dia, emergiram numa alta chapada, onde sinais de vida eram visíveis. Avistaram um camponês metendo
o seu enxadão na terra encaroçada e cor de chocolate. Passou uma mulher, silenciosa, sacolejando, montada numa mula, com a cabeça coberta por um velho guarda-chuva.
Um homem, colhendo azeitonas de uma árvore enfezada, observava-o às escondidas. Então, uma aldeia, branca como um monte de ossos petrificados, tornou-se visível
na distância.
Peyrat resmungava muito durante as agruras da jornada, mas agora, ao se aproximarem da aldeia, estava animado e comunicativo.
- Com toda a certeza vamos achar uma fonda aqui. Será um alívio ter novamente um telhado sobre as nossas cabeças.
Entraram na única rua da aldeia, onde umas poucas mulheres de preto estavam sentadas em cadeiras baixas nos portais, fazendo renda na sombra, com as costas voltadas
para a rua. De uma delas, Peyrat recebeu indicações sobre a estalagem. Era uma casa baixa e desmantelada, construída de pedras soltas, situada num pátio sujo onde
vários burricos estavam amarrados, na parte mais distante da aldeia. Umas poucas touceiras de mamoneiras desgarradas cresciam lá fora, com as pontas róseas murchas
e cobertas de poeira. No escuro interior, onde a lenha fumegava no chão de terra batida, alguns homens estavam sentados à mesa, bebendo de uma bota preta. Peyrat
chamou o dono, e um sujeito pesadão, lento, de olhos pequenos e um comprido queixo com a barba por fazer, destacou-se apaticamente do grupo que bebia vinho.
- Meu amigo, somos dois viajantes, aliás artistas, cansados e sem dinheiro. O senhor, por cortesia, nos dará uma refeição e acomodações para a noite? Em troca, pintaremos
o seu retrato ou o de sua esposa.
- O señor é bem-vindo ao que temos de melhor. Não fechamos a nossa porta para ninguém. Só que não exijo retrato e também não tenho esposa.
- Então, se quiser, pintaremos uma tabuleta para a sua hospedaria.
- Mas eu não quero, señor. Uma hospedaria da qualidade da minha não precisa de tabuleta.
- Então gosta de música? Tocarei belas melodias para o senhor.
- Juro pela Virgem de Guadalupe, señor, que música é a coisa que eu mais detesto.
- Então, pelo amor da Virgem, diga o que podemos fazer pelo senhor.
- Podem entrar, señor, comer bem e dormir no macio. Mas naturalmente devem pagar.
- Já lhe disse... somos artistas pobres.
Coçando o seu comprido queixo azul, o homem abanou a cabeça.
- Ninguém é pobre com essas roupas, com bagagem e um belo jumento. Atingido, Peyrat no entanto insistiu.
- Sim... mas acontece que estamos sem dinheiro sonante.
O homem olhou de um para outro, obliquamente, com uma esperteza nativa, mas não sem dignidade.
- Então dê alguma coisa de justo valor... não precisa ser muito... nada de pinturas, talvez um casaco ou, por exemplo - seus olhos baixaram para as próprias espartenhas
- um par de sapatos resistentes.
Jerome ficou silencioso, seu rosto em estudo, e então fez sinal que concordava.
- O rufião nos tem na mão - murmurou a Stephen. - Napoleão tinha toda razão quando disse: "Jamais confie num homem de queixo comprido." De qualquer modo, temos que
comer.
- Ele pode ficar com o meu casaco - disse Stephen.
- Não - disse Peyrat com teimosia. - Eu lhe darei os meus sapatos. Mas só os velhos que estou usando. Tenho um par melhor na sacola.
A despeito da lamentável situação, Stephen voltou-se para esconder um largo sorriso - a expressão de Jerome não era de modo algum a de um alegre trovador. Peyrat
saiu, tirou os arreios do jumento, escovou-o, esfregou-o e deixou-o com um bom monte de feno. Depois sentou-se num banco junto à porta, para resistir à interminável
espera pelo jantar.
Este não ficou pronto senão quando já eram quase 10 horas, e, servido à mesa na sala cheia de fumaça, foi tão miserável quanto a estalagem. Comeram gazpacho, uma
sopa fria e aguada de tomate e pepino, com natas de azeite rançoso, seguido de fatias fibrosas de bacalhau, salgado, com gosto de alho, e um naco de pão seco.
- Estalajadeiro, em nome de Deus, que comida é esta? - protestou Peyrat.
- Chama-se bacallao, señor, um peixe raro, delicioso, que vem de muito longe, do mar.
- Sem dúvida levou muito tempo viajando. E esse vinho... - Jerome piscou os olhos ao passá-lo nos lábios.
- Ah, é o melhor da região. Não quero me gabar, mas pode-se dizer que é o melhor de Andaluzia. - E o dono da casa continuou a louvar extravagantemente o líquido
aguado e ralo que picava a língua como um vinagre ácido.
Tiveram que tirar o melhor partido das circunstâncias. Afinal, era um consolo poder escapar ao feno espalhado numa baia vaga da cavalariça.
De manhã, saíram novamente através da planície que se estendia diante deles com seu monótono amarelo-queimado interrompido somente por raros bosquetes de oliveiras
prateadas. Aqui, os únicos sinais de cultivo eram os milharais, onde, vagando de cabeça baixa entre as hastes murchas, rebanhos de cabras pretas levantavam um esguicho
de pó. Onde os figos suculentos, as saborosas uvas, as romãs carmesins que Peyrat prometera, ao dizer que viveriam da bondade da terra? Todo aquele dia, a sua dieta
consistiu de milho cru comido no sabugo, e um punhado de azeitonas verdes, acompanhados de uma provisão de pão que, inesperadamente, o estalajadeiro lhes tinha dado
na sua partida. Stephen sentia o humor sombrio da situação em que se encontravam. Não se importava com o farnel espartano, e naquela estranha paisagem lunar sempre
havia algum panorama novo que emocionava a sua visão e que, de tempos em tempos, ele anotava no seu bloco. Mas Peyrat, caminhando penosamente adiante do burro, vítima
da sua filantropia, estava evidentemente perdendo o seu élan inicial. Falava sozinho, brandindo a sua bengala, e, como podia ser em certas ocasiões, mostrava-se
infantil, desagradável e absurdo. Nessa noite, acampados junto a um arroio pedregoso, ele rompeu o seu silêncio meditativo e abatido.
- Estes sapatos novos, feitos para as calçadas de Paris, estão machucando atrozmente os meus pés. Já estou com uma enorme bolha no calcanhar. Fez uma pausa, e continuou.
- Acho que o meti numa situação desafortunada. Creio que interpretei mal a natureza desta região, que, se acreditarmos naquele estalajadeiro velhaco, é igualmente
pobre até Cádiz. Em semelhante região não temos sequer a vantagem dos mendigos, mas sempre devemos ser tomados como pessoas de recursos. - Outra pausa. - Só uma
solução se apresenta: abandonar a estrada direta para Sevilha. Quando chegarmos a Lera, cortaremos para o porto de Málaga. Lá, quase certamente uma comunidade civilizada,
encontraremos algum descanso. Depois, se necessário, poderemos continuar a nossa viagem.
Stephen considerou por um momento essa sugestão, a mais prática que Jerome tinha feito desde que entraram na Espanha. Era uma contrariedade, mas evidentemente não
podiam continuar a jornada por aquele deserto sem meios de subsistência. E concordou, com um aceno.
- Não pode ser mais de 140 quilómetros até a costa.
Peyrat, sem meias, estava carinhosamente examinando seus pés.
- Em quanto tempo acha que poderemos chegar lá?
- Com o caminho que estamos fazendo, dentro de uma semana mais ou menos.
Um suspiro abafado veio do outro lado do fogo que se extinguia.
- Meu amigo, achei a minha ordem descalça mais cedo do que esperava. Duvido seriamente que amanhã possa meter estes sapatos nos pés.
CAPÍTULO VI
TRÊS DIAS MAIS TARDE, quando estavam a meio caminho entre Lera e Málaga, a verdadeira dificuldade começou. Tinham parado à beira da estrada, à sombra de umas corticeiras,
para o seu costumeiro descanso do meio-dia. O sol, filtrando-se através dos ramos enfezados, fazia desenhos caprichosos no aterro. Ao lado deles, na sombra da carroça
levantada, o burro estava absolutamente imóvel, passivo como uma estátua modelada em barro. Queimado pelo sol, carrancudo, barbudo, com a camisa suja e rasgada,
Stephen parecia um vagabundo. Peyrat, com um pé descalço, tinha enrolado as calças até os joelhos. Embora sempre mantivesse uma espécie de pudor de solteirona a
respeito da sua própria pessoa, voltou-se para Stephen após um período de silêncio.
- Minha perna está doendo. Quer dar uma olhadela?
Stephen se aproximou e olhou descuidadamente. Então, inquieto pelo que via, examinou-a mais detidamente. Mesmo sabendo que o calcanhar escoriado estava incomodando
Peyrat - em várias ocasiões ele o observara dispensar as botas apertadas e manquejar de pés descalços na poeira da estrada nunca suspeitou que tal estado tivesse
se agravado tanto. O pé direito estava inchado e inflamado, o calcanhar ulcerado.
- Então? - perguntou Peyrat, observando de perto a expressão do outro.
- Você não pode caminhar mais. Pelo menos por enquanto - disse Stephen, procurando falar num tom confiante.
- E o que acha?
- Está provavelmente um tanto infectado. Vamos ver o que podemos fazer.
Apanhou a camisa que tinha na valise e rasgou-a em várias tiras. Umedecendo-as com água, que agora sempre carregava num velho garrafão de vinho,
limpou a parte em carne viva e inflamada o melhor que pôde e depois aplicou uma atadura frouxa e úmida.
- Como se sente agora?
- Frio... de fato, um pouco melhor.
Até aqui Stephen se contentara em deixar para Peyrat as iniciativas, contudo sabia que agora devia tomar a situação na mão, e após refletir um pouco se voltava ou
não para Lera, na melhor das hipóteses apenas uma cidade perdida do campo, resolveu tocar para a frente. Málaga era o seu objetívo mais seguro, e eles tinham que
chegar lá o mais cedo possível.
Colocou os arreios no jumento, ajudou Peyrat a subir para a carroça e, após acomodá-lo na traseira, partiu mais uma vez. Mantinha o jumento num bom passo, indo à
frente, mas sempre que se aproximava um declive ficava para trás e, empurrando com força na traseira, ajudava a vencer a encosta. Deste modo, avançavam sem interrupção,
e por volt das cinco horas da tarde chegaram à aldeia de Cazaba.
Aqui Stephen parou na praça central, e aproximando-se de um rapaz que enchia um balde no poço, perguntou-lhe onde era a casa do médico.
- Señor, no tenémos médico em Cazaba.
- Nenhum?
. O rapaz sacudiu a cabeça.
- Quando é preciso, vem um de Lera ou de Málaga. Mas tenémos na aldeia um excelente farmacêutico.
- Onde posso encontrá-lo?
- vou mostrar ao señor.
Atenciosamente, com estudada cortesia, o jovem os conduziu através de várias travessas estreitas e deteve-se diante de um portal acima do qual um mastro pintado
de listras vermelhas, brancas e azuis sustentava uma tabuleta: BARBERit. Stephen ajudou Peyrat a descer. Entraram.
Um homem alto, magérrimo, num paletó de alpaca, um desses pálidos e reservados castelhanos de cara triste que sempre parecem estar com os pensamentos em outro mundo
- na verdade, como se estivessem à espera de cruzar o limiar do próximo - estava cortando vagarosamente o cabelo de um menino.
- Meu amigo está com um pé machucado. Poderia olhar?
- Sente-se, por favor.
Continuou a tosquiar o crânio do garoto, metodicamente e com melancólica dignidade. Cinco minutos mais tarde, quando terminou, sacudiu e dobrou a toalha, guardou
as tesouras e voltou para eles os olhos líquidos.
- Agora estou à sua disposição.
Peyrat retirou a atadura de tiras de camisa e estendeu o pé. O barbeiro inspecionou-o.
- São irmãos?
- Não, amigos, como já disse.
- Não espanhóis?
- Não - disse Stephen. - Eu sou inglês.
- Ah, inglês. Que sorte para o senhor estar na Espanha nestes tristes tempos. Que fazem? E de onde vêm?
- Somos artistas... pintores. Estamos vindo de Granada.
- É um longo caminho. Muito longo para um pé neste estado. E para onde vão?
- Málaga.
- Uma bela cidade. Depois do meu casamento, fui lá com minha esposa, que agora, ai! está com Deus. Eu mesmo sou de Saragoza. Não conhece essa cidade? Fica no Ebro.
Nasci à vista do rio, em La Seo. Ay, ay, sem dúvida nunca mais o verei. Ah, bem, isso não tem importância. Estava apertando a perna ligeiramente com o polegar. -
Dói?
- Não muito - respondeu Peyrat. O seu rosto parecia branco na salinha escura, e Stephen sabia que ele estava mentindo.
- Bem... vamos ver o que temos a fazer.
O barbeiro abriu um armário de madeira encostado a um canto e, nas prateleiras, onde havia um certo número de potes e frascos, selecionou um unguento amarelo. Começou
a passá-lo de leve na pele ulcerada, com uma pequena espátula de osso, dizendo:
- Este é um remédio que eu mesmo preparei. É simples, mas alivia.
- Então vai melhorar?
- Pensaria o contrário?
O pé, coberto com algodão cru e fofo, estava frouxamente amarrado com uma faixa de trapos, e como na ocasião anterior, Peyrat soltou um suspiro nervoso, mas esperançoso.
- Muchas gracias, señor. Sou um homem novo.
Stephen levantou-se, hesitou, e então disse resolutamente, mas com grande embaraço:
- E agora... sinto muito... estamos sem dinheiro. Mas assim que chegarmos a Málaga nossas condições melhorarão. Diga quanto é e lhe mandaremos o dinheiro esta semana.
O barbeiro olhou de um para outro e então ergueu a mão à maneira de um grande de Espanha.
- Não diga mais nada, amigo. Pelo pouco que fiz, podem pagar-me apenas com a sua gratidão. Mas aconselho a tratar desse pé imediatamente, em Málaga. - Olhou diretamente
para Stephen e acrescentou, em voz baixa, quando eles se dirigiam para a porta: - Não gosto do aspecto dele. Num caso desses, sempre podem surgir complicações.
Pela primeira vez um ligeiro pressentimento passou como uma sombra
pela mente de Stephen. Peyrat, ao contrário, parecia tranquilizado. Ao tomarem a estrada, saindo da aldeia, louvava em alta voz o seu benfeitor, e era especialmente
eloquente quanto à sua habilidade, que se destacava com vantagem da medicina ortodoxa, na qual ele não tinha a menor fé. Falou das virtudes das pomadas e unguentos,
do emprego do óleo e vinho no tratamento das feridas, de bálsamos, sal e alecrim, drogas raras de herbanário contendo mirra, bergamota e âmbar-cinzento, que curavam
da noite para o dia, particularmente as preparadas pelos alquimistas do Oriente - havia, interpolou, sangue mouro nas veias do bom barbeiro de Cazaba. Talvez por
ter estado silencioso durante algumas horas, a sua volubilidade não parecia natural, e Stephen notou, com crescente inquietação, que as faces de Jerome estavam ligeiramente
vermelhas. Compreendeu mais uma vez, e com maior urgência, que deviam tocar para a frente com a maior velocidade possível.
A estrada foi favorável durante os próximos poucos quilómetros, e eles fizeram um bom progresso. Então, quando a luz começou a diminuir e eles procuraram um abrigo
para a noite, Stephen avistou um grande celeiro na crista de um campo de restolho no qual pastavam algumas cabras. Foi uma descoberta afortunada. O celeiro, cheio
de feno fresco, prometia-lhe não apenas uma noite confortável mas alimento para o animal. Stephen levou Peyrat para dentro; depois, esporeado por uma sensação de
emergência, segurou uma cabra e, após várias tentativas, ordenhou-a. Na carroça, havia algumas espigas de milho verde que apanhara alguns dias antes. Dentro de meia
hora, preparou um prato quente de milho e leite.
- Como se sente agora? - perguntou ele, depois que Peyrat tinha comido.
- Meu amigo, estou profundamente tocado por seu cuidado e consideração.
- Sim, sim... mas e o pé?
- Está latejando, naturalmente. Mas considero isso como uma reação favorável. Após uma boa noite de descanso, estarei perfeitamente restabelecido.
Mas Peyrat não descansou bem - podia ser ouvido a se retorcer de dor e resmungando em meio à respiração, e na manhã seguinte, à luz cinzenta da madrugada, parecia
definitivamente pior. Stephen, certo de que agora tinha nas mãos um homem doente, ficou inteiramente alarmado. Não se atrevia a examinar o seu pé naquele ambiente.
Encheu a carroça de feno, ajudou Peyrat a sair mancando do celeiro, acomodou-o o melhor possível na cama improvisada e apressou-se em partir.
O jumento, descansado e alimentado, marchava com vontade, ajudado por Stephen nas colinas, e fazia um excelente progresso. Se ao menos pudessem alcançar Málaga antes
de escurecer - a ideia de outra noite na estrada era
intolerável - iria imediatamente pedir auxílio no consulado. Devia haver um agente diplomático francês ou inglês num porto de tamanha importância. Tocou para a frente
ainda mais firme, parando somente para dar a Peyrat, que se queixava de sede, um gole de água. Ao entregar a garrafa, podia sentir que a pele de Peyrat estava quente
de febre. Então a estrada ficou novamente péssima, com curvas em aclive numa série de agudos cotovelos, até um cume pontudo, onde novamente se viram diante de uma
descida abrupta e irregular, e com mais uma subida íngreme. Ainda não havia nenhuma possibilidade de descanso. Ao meio-dia, usando varas e um cobertor, Stephen conseguiu
improvisar uma cobertura primitiva para dar sombra à carroça. Peyrat parecia mais quieto, embora confuso. Tinha perdido toda aquela fanfarronice anterior, e perguntava
continuamente se já estavam à vista de Málaga.
Agora Stephen olhava continuamente por cima do ombro, como esperando alguma súbita materialização, um veículo, mesmo o mais velho e desconjuntado carretón, que de
algum modo os ajudasse a chegar mais rapidamente ao seu destino. Contudo, nada, ninguém aparecia.
À medida que a tarde avançava e os penhascos de granito que constituíam aquela paisagem inumana projetavam sombras na terra poeirenta, uma sensação de desamparo,
quase de pânico, se apoderou de Stephen. A solidão daquelas colinas, a sua absoluta e primeva desolação, era o suficiente para oprimir o coração e paralisar a vontade.
Ele se sentia absolutamente esgotado, o seu valente burrico com os flancos suados e arfando, cabeça baixa, parecia quase exausto. E ainda estavam a pelo menos 20
quilómetros da costa.
Outra elevação, e então, à beira de um penhasco, um grupo de casas chamou a atenção de Stephen. Era um lugarejo miserável, constituído de grutas e casas de pedra,
não mais que umas 30, ocupando uma fenda nas rochas. Uns poucos porcos sarnentos, incrustados de lama seca, estavam fossando num monte de lixo ao lado de um poço
com a boca quebrada. Uma sensação de imundície, ruína e porcaria acima do que se poderia imaginar.
Stephen parou ao lado do poço, olhando para as paredes vazias das casas das cavernas. Todas estavam situadas muito acima do nível da estrada, dando para um desfiladeiro.
Preciso arranjar auxílio, disse ele consigo. Deixou a carroça e começou a subir a encosta alcantilada. Não havia trilha na superfície do penhasco, cheio de valetas
e inumeráveis fendas, coberto de pedrinhas soltas. Várias vezes perdeu o pé, mas perseverou e, com as mãos e joelhos, tinha quase chegado à primeira casa quando
perdeu o apoio e rolou violentamente encosta abaixo. Estendido no fundo, coberto de pedregulhos, arranhado e contundido, viu um homem descer de uma das covas e,
atirando-lhe um balde de lixo, gritar-lhe que fosse embora.
- Pensam que estou caindo de bêbado - murmurou ele sem qualquer esperança.
Recompôs-se como pôde, reencheu o garrafão com água do poço, deu de beber ao burrinho e continuou. Por quanto tempo andaram nas duas horas seguintes, ninguém poderia
adivinhar. Agora a noite se aproximava rapidamente, desfraldando os seus estandartes nas bandas do oriente. Já no fim do seu juízo, Stephen olhou desesperadamente
em torno de si. E imediatamente, na extremidade de um caminho acidentado, avistou uma casinha branca com uma cabana de meia-água, coberta de esparto, única naquela
vastidão solitária. Reunindo o seu último esforço, dirigiu-se para ela.
Ao aproximar-se, uma mulher saiu da porta baixa, com a cabeça inclinada para um lado, como se tivesse ouvido os seus passos. Teria uns 60 anos, vestida respeitavelmente
em preto surrado, com uma figura pesada, acachapada, de feições escuras, um rosto quase negróide na sua pretidão, os lábios cheios e azulados, o nariz chato. Tinha
os olhos saltados, estranhamente opacos, e Stephen, agora perto dela, viu subitamente no centro de cada pupila a mancha amarelada do tracoma. Mas era a sua expressão,
a impassível e firme placidez do seu rosto sem visão, que mais verdadeiramente mostrava que era cega.
- Señora. - A voz lhe saiu arranhando a garganta seca, quase tinha perdido a faculdade de falar. - Somos forasteiros viajando para Málaga. Meu amigo está doente.
Suplico-lhe que nos dê abrigo por esta noite.
Houve um silêncio. Ela permaneceu imóvel, suas mãos, nas quais ele pôde ver as unhas feiamente quebradas, cruzadas no colo. Era como se, através de alguma estranha
vibração do ar, ela procurasse não apenas estabelecer a verdade do que ele lhe tinha dito, mas descobrir de fato a natureza e o caráter daqueles visitantes desconhecidos.
Um longo momento se passou. Então, sem uma palavra, voltou-se e guiou o caminho para o alpendre coberto, abrindo a porta.
- Isto pode lhe servir. - Fez um gesto com as suas mãos passivas. - Há um lugar para o seu burro ali atrás.
O choque daquela repentina segurança não procurada após as aflições do dia foi tão grande, que Stephen, emocionado, não pôde articular uma só palavra de agradecimento.
Era um quarto pobre, mas limpo, com o chão de terra batida. Uma mesa e uma cadeira de pau estavam sob uma lâmpada de azeite. A um canto, um catre de madeira com
um colchão de lã.
Stephen ajudou Peyrat a descer do carro e, amparando-o, quase carregando-o, levou-o para a cama baixa. Então, despindo-o, limpou-lhe o pó do rosto e vestiu-o com
uma camisa limpa. O pé ainda permanecia enfaixado em algodão e trapos. A seguir, Stephen levou o jumento ao estábulo, deu-lhe água fresca e todo o feno que restava
na carroça. Ao voltar dos fundos da cabana, encontrou a mulher da casa trazendo uma terrina de barro cinzento cheia de uma grossa sopa de feijão.
- Tomem isto como jantar. Não é muito, mas pode ajudar o seu amigo.
- A sua bondade me deixa sem palavras - disse, por fim, após uma pausa. - Acredite que precisávamos do seu auxílio.
- Se estão piores do que eu, então precisam de muito mesmo.
- A senhora mora aqui sozinha?
- Completamente. E, como observa, sou cega.
- Então... se arranja sozinha?
- Arranjo-me. Planto esses feijões. Existo.
Seguiu-se uma pausa. E como ele permanecesse calado, ela girou lentamente nos pés grandes e pesados e saiu.
Ele levou a sopa para Peyrat e, soerguendo-o, tentou induzi-lo a engoli-la. Mas depois de umas poucas colheradas, foi obrigado a desistir. Jerome, irritado e rabugento,
continuava empurrando a colher para fora. Nem permitiu que Stephen examinasse a sua perna. A luz, fraca como era, doía-lhe nos olhos. Apenas meio acordado, quase
num estado de estupor, suplicou que não o perturbasse. E agora?, pensou Stephen. Trouxe-o de tão longe, e não posso, não quero desistir. Mas ele não poderá viajar
na carroça amanhã, nem o burro será capaz de andar. Então pensou: não devo desperdiçar a sopa da mulher. Sentou-se à mesa, sob a luz bruxuleante, com o olhar desnorteado
fixo no homem doente, que falava dormindo, e tomou rapidamente a sopa espessa. Era boa, mas ele não lhe tomou o gosto; todo o tempo pensava no que poderia fazer
por Peyrat. Dali a pouco, com a terrina vazia, foi até a porta da casa. A mulher atendeu às suas batidas.
- É muito longe até Málaga?
- Sim, muito. Uns 10 quilómetros.
- Talvez haja um ônibus, ou um carretôn, que vá para lá todos os dias.
- Não há nada disso nas estradas das montanhas. Somente carroças como a que o senhor tem.
Stephen forçou o seu cérebro cansado a pensar. Dez quilómetros... Ele estava certo de que poderia caminhar essa distância em três horas e, saindo de madrugada, chegar
ao consulado antes das nove horas.
- Señora, tenho que ir a Málaga amanhã cedo. Deixarei o meu amigo, e. também o burro e a carroça. Mas não tenha medo, voltarei logo depois do meio-dia. A senhora
concorda com essa combinação?
A cabeça dela continuava virada, mas de alguma estranha maneira ela parecia medi-lo com os seus olhos sem luz.
- Concordo, sim. Mas não me chame de señora. Meu nome é Luisa, Luisa Méndez. E não me fale de medo. Há muito que deixei o medo para trás.
Ele voltou para a meia-água e, após um último olhar para Peyrat, apagou a lâmpada em torno da qual esvoaçavam grandes mariposas no ar parado, deitando-se no chão
de terra batida.
CAPÍTULO VII
NA MANHÃ SEGUINTE, tendo atravessado a última elevação e chegado ao forte declive que levava a Málaga, sentiu a nuvem escura da sua ansiedade aliviada por um súbito
fulgor de esperança. Estava ali finalmente. A cidade lá embaixo. Contornando a baía, abrigada por seu comprido quebra-mar, cintilando branca e dourada contra o azul
profundo do Mediterrâneo, o teto da catedral refletindo o sol matinal, parecia, depois da árida extensão que percorrera, um porto seguro. Peyrat, quando Stephen
saíra antes do amanhecer, embora ainda febril, estava quieto, e aparentemente sentia menos dor. Agora nlo demoraria muito a chegar-lhe ajuda.
Apressando-se pelos arredores da cidade, Stephen passou por uma longa avenida de palmeiras, e depois entrou na Calle de la Victoria. Ao caminhar para a praça principal,
começou a observar um movimento singular nas ruas. Havia grupos de homens em torno dos cafés falando e gesticulando, e na esquina da Calle Larios uma multidão estava
postada diante da Gaceta de la Caleta. Stephen parou e se dirigiu a um homem na beira do grupo.
- Amigo, qual é o motivo dessa reunião?
- Motivo? Ora, homem, estamos esperando a próxima edição da Gaceta.
- E é comum aqui... tanta gente, todos os dias?
- Não, não é comum. Mas nem todos os dias há notícias como essa.
- Que notícias, amigo?
- Ora, homem, da guerra.
- Guerra? -
Stephen não podia compreender, imaginando que a palavra "guerra", usada pelo homem, se referia a alguma perturbação local, uma greve talvez. - Então há um conflito
na cidade?
- Não aqui, graças à Virgem de Guadalupe e o natural bom senso da Espanha. Mas em outra parte. Uma guerra grande, muito grande. - Fez uma pausa, observando o olhar
de estupefação no rosto do outro, e então, delicadamente, com uma ligeira curvatura, ofereceu-lhe o jornal dobrado que trazia na mão. - Este é de ontem. O señor
pode ver por si mesmo.
Stephen abriu o jornal, que estava datado de 7 de agosto, e seus olhos deram imediatamente com as enormes manchetes. Atingiram-no como um golpe. Na bruma de uma
longa falta de contato com o progresso e culminação
dos acontecimentos, leu, e então, após uns poucos momentos, depôs o jornal e olhou sem ver para a alameda, lembrando-se com dolorosa constrição do descaso que fizera
de tudo o que Hubert lhe tinha dito em Paris.
- O senhor é inglês1?
- Sim. - Stephen voltou a si, advertido da delicada curiosidade do outro. - Pode ensinar-me onde fica o consulado?
- É bem perto. Entre na segunda esquina à esquerda, e depois novamente à esquerda. Verá a bandeira na entrada.
Com uma expressão de agradecimento, Stephen apressou-se.
O consulado ficava numa vila dentro de um pequeno jardim, perto do porto. A porta estava aberta, e quando Stephen subiu os poucos degraus e entrou, encontrou o saguão
e a escada já cheios de gente. De duas salas no andar térreo vinha o ruído de intensa atividade. Um funcionário espanhol, carregando uma braçada de documentos, acompanhado
por uma autoridade consular, passava e repassava pelo saguão.
Com uma sensação de urgência, Stephen tomou lugar no fim da fila. a sua necessidade era imediata, e, a julgar pelos comentários, as pessoas que estavam na frente
dele já esperavam havia muito tempo. Muitos eram turistas, algumas mulheres, todos ansiosos por voltar à sua terra, aflitos com a crise inesperada, contudo mais
aborrecidos com a interrupção das suas férias do que por alguma grave premonição de desastre mundial. Tagarelavam muito, até gracejavam, enquanto a fila avançava
lentamente.
Ele precisava agir rapidamente. Não podia, no entanto, abrir caminho pela escadaria apinhada. Quando o oficial emergiu mais uma vez da sala da direita, Stephen adiantou-se.
Ao mesmo tempo, disse rapidamente:
- Posso falar com o senhor? É um assunto importante.
- Não agora.
- Asseguro-lhe que tomarei apenas cinco minutos do seu tempo.
- Deve esperar a sua vez.
- Mas certamente...
Com uma exclamação aborrecida, o oficial olhou para Stephen. Era um homem com menos de 30 anos, de cabelos ralos e uma tez clara, vestindo uma leve jaqueta de linho,
com a sua expressão aberta e agradável desfigurada pelo cenho de um homem importunado e sobrecarregado de trabalho. Seu olhar ergueu-se com desagrado dos sapatos
velhos e empoeirados e roupa lustrosa, camisa suja, lavada pela última vez num arroio barrento, e, depois, com um lento e sutil brilho no olho, uma leve expressão
de reconhecimento apareceu no seu rosto. Agradavelmente, com um ar ligeiramente amaneirado, disse:
- Ora... sim. Entre na minha sala.
Guiou-o até um pequeno escritório despido e desarranjado, mas tornado pessoal e humano por duas raquetes de ténis num canto e uma série de grupos
fotográficos nas paredes; puxou uma cadeira e, antes de sentar-se sobre a escrivaninha envernizada e atulhada de papéis, disse:
- Sente-se, por favor. Sou George Hollis.
- Meu nome é Desmonde.
- Agora me lembro. Não esteve no Trinity em 1909?
- Estive.
- É claro... Isso foi no ano anterior à minha saída. Tinha certeza de que já nos conhecíamos. Como está?
Stephen apertou a mão estendida. E então disse rapidamente:
- Detesto importuná-lo numa hora como esta. Mas realmente...
Hollis afastou a desculpa com um gesto.
- Compreendo. É perfeitamente natural. Todos queremos voltar o mais depressa possível para participar da festa. Diga-me... o que está fazendo aqui?
- Estive pintando numa excursão, com um amigo que...
- Ah, uma espécie de giro turístico. Região áspera para percorrer. Talvez um pouco mais áspera do que quando marcharmos para o Reno. Agora deixe-me ver o que posso
fazer por você. - Consultou um papel na escrivaninha. - Como pode imaginar, estamos praticamente perdendo a cabeça, com tanta gente que quer voltar para casa. A
fronteira está fechada, impossível contar com trens. Os navios estão difíceis. Não há uma polegada de espaço. E a maior parte das águas costeiras está sendo minada.
Mas eu cuidarei de você. Há um cargueiro que parte em breve. Movendo algumas cordinhas, estou certo de que lhe arranjarei um beliche a bordo.
- Muito obrigado... muito obrigado. - Stephen falou precipitadamente, desesperado para tratar do que o trouxera ali. - No entanto, poderei sobrecarregar a sua bondade
ainda mais? Meu amigo está doente, gravemente, receio. Preciso conseguir um médico, aliás levá-lo para um hospital imediatamente.
- Bem, então... - Hollis considerou. - Isso não será muito difícil. O Dr. Cabra, na Calle Estada, seria o homem indicado. Ele é médico do Hospital San Miguel. A
melhor coisa a fazer... vou lhe dar um bilhete para ele. - Apanhou uma caneta e escreveu no papel do consulado, passou o mata-borrão, colocou-o num envelope e estendeu-o
por sobre a escrivaninha. - Isso dará um jeito, Desmonde.
- Você é realmente muito bondoso. Fico-lhe grato. - Stephen falou com sentimento. - Quando poderei vê-lo novamente?
- Venha quando quiser. Espero ter notícias para você em poucos dias. Levantou-se sorrindo. Talvez jantemos juntos uma noite antes de você embarcar.
Atravessando às pressas a Praça da Catedral, Stephen observou, com satisfação, que ainda não eram 11 horas. Achou a Calle Estada sem dificulade,
onde, sobre o arco da entrada, via-se a placa de metal: DR. JUAN CABRA, sob a qual se lia: EQUIPO TRANSFUSIÓN DE SANGRE. Um empregado admitiu-o, recebeu a carta
e deixou-o no saguão. Poucos momentos depois, apareceu o médico. Era um homem um tanto moço, pequeno e ativo, de mãos e pés bem feitos, e um rosto liso e redondo,
cor de açafrão, no qual os olhos escuros pareciam irradiar alegria, brilhando de permanente boa vontade. Curvou-se para Stephen; suas maneiras eram perfeitas.
- Sempre tenho prazer em ser recomendado pelo consulado britânico. Em que posso servi-lo?
Tão brevemente quanto possível, Stephen explicou a situação. Seguiu-se uma pausa, durante a qual o doutorzinho pareceu pensativo. Então, depois de interrogar Stephen
sobre um ou dois pontos, acenou com decisão.
- Impossível tratar o seu amigo nessa distância. Além disso, as condições são muito difíceis. Precisamos trazê-lo ao hospital.
- Mas como?
Cabra sorriu, com jovial autocensura, mas com uma espécie de vaidade humorística, seus olhinhos pretos desaparecendo completamente das dobras do rosto liso e branco.
- Estamos bem atualizados em Málaga. A Casa de Socorro tem uma ambulância. En realidad, um veículo para uso de todos os médicos da cidade. Eu mesmo frequentemente
o dirijo. E como só dou consultas no hospital às quatro horas, vamos requisitá-lo e visitar juntos o seu amigo.
- Então podemos sair imediatamente?
- Assim que eu tome o meu café. Venha e me acompanhe. - Ao introduzir Stephen numa pequena sala de estar apainelada onde café e roscas estavam servidos numa bandeja,
ajuntou: - Estive atendendo um caso a maior parte da noite. É divertido trazer um belo menino ao mundo. E que alegria para a mãe!
- Era o primeiro filho?
- Oh, não, não. O décimo. Todos vivos e sadios.
Outra xícara tinha sido trazida, e com perfeita cortesia ele serviu café para Stephen e ofereceu o prato de roscas. Depois, com satisfação, fizeram a sua refeição,
ele falando quase continuamente, deplorando a guerra, mas predizendo o seu rápido fim, discursando sobre a sua clientela, a beleza de Málaga, a excelência do clima,
tudo com uma espécie de alegria natural, embora de quando em vez lançasse para o seu convidado olhares carregados de simpática curiosidade. Finalmente disse:
- Se o senhor não tivesse me procurado para o seu amigo, eu teria pensado que o doente era o senhor. Está com o peso muito abaixo do que devia.
- Sou naturalmente magro.
- Está com tosse.
- Não é nada.
- Então, não é nada. Bem, sorria um pouco para variar. Stephen corou.
- É que estou muito ansioso a respeito do meu amigo.
Cabra não respondeu imediatamente, mas, ao terminar o seu café e levantar-se, inclinou-se para diante e apertou a mão de Stephen.
- Faremos por ele o melhor que pudermos.
Saíram juntos, e em cinco minutos estavam na Casa de Socorro, onde a ambulância, um modelo antigo com a capota de lona segura por correias, estava no pátio de paralelepípedos
dos fundos. O médico pôs a sua maleta no assento, virou a manivela do motor, e dali a pouco saíam da cidade numa velocidade surpreendente. Se Cabra tinha sido conversador
antes, agora se mostrava completamente silencioso. Curvado sobre o volante, o qual segurava com ambas as mãos, como um galo garnisé, com intensidade concentrada
e incrível imprudência, entrando nas curvas sem diminuir a marcha, tocando a buzina incessantemente, inclinando o mal equilibrado veículo até que ele dava impressão
de que ia virar. Mas deixando nuvens de poeira para trás, a comprida estrada que Stephen tinha palmilhado aquela manhã diminuía continuamente. Dentro de meia hora,
passaram pela aldeia de grutas habitadas, dobraram para a estreita curva da colina e foram sacolejando pelo ermo até a casa de Luisa Méndez. Entraram na cabana.
Peyrat estava de costas, com uma compressa na testa. Sentada diante da mesa, torcendo outro pano numa tigela com água, estava Luisa. Stephen adiantou-se para a cama.
- Jerome. Trouxe o doutor. Como passou?
- Estive sofrendo, sem dúvida. - Seus olhos, brilhantes no rosto amarelo, voltaram-se desconfiados para Cabra. - As mãos mexiam no lençol. - Mas o pior já passou,
e estou sarando rapidamente, graças à ajuda desta boa mulher.
- Ele tem comido? - O doutor pôs a sua maleta em cima da mesa e abriu-a.
- Não, señor, somente água. E em grande quantidade.
- Água, água da fonte, é um agente purificante. Embora não seja mais considerada um elemento, como outrora, a água limpa o sistema, purifica o sangue...
- E mata a sede - interrompeu Cabra. - Está com sede?
- Posso ter estado.
- Dói-lhe a cabeça?
- Não. Mas admito um doloroso bimbalhar nos ouvidos. Na verdade, por causa disso - Peyrat ergueu-se, febrilmente e com dificuldade, sobre o cotovelo, falando através
dos lábios secos e rachados - estive refletindo a respeito de Sinos... . a sua imensa variedade... mesmo quando se incluem gongos, símbalos ou ornamentos tintinabulantes.
Há, por exemplo, sinetas
para carneiros e vacas, guizos em arreios, campainhas para cavalos, sinos que chamavam os romanos para os banhos públicos, sinos que tangeram as Vésperas Sicilianas
quando oito mil franceses foram assassinados por Juan de Procida, sinos que serviram de sinal para o massacre da Noite de São Bartolomeu, sinos do toque de recolher,
sinos nupciais, sinos de finados e, naturalmente, os carrilhões das igrejas. No De Tintinnabulis...
- Amigo - Cabra colocou uma mão proibitiva no ombro de Peyrat.
- Rogo-lhe, pare com os sinos. Fique calado e permite-me examiná-lo.
Peyrat fechou os olhos e afundou para trás, exausto, submisso enquanto o médico lhe tomava o pulso e a temperatura.
- A perna ainda dói?
- Não - disse Peyrat, debilmente mas com um ar triunfante, sem abrir os olhos. - Está absolutamente sem dor.
Estudando a face do médico, Stephen viu a sua expressão alterar-se imperceptivelmente.
- Não sente nada?
- Nada.
- Ah, então talvez possamos dar uma olhada nela.
Cabra puxou o cobertor e curvou-se sobre a cama. Em pé, de costas para a janela, cheio de ansiedade, Stephen observava somente os movimentos das mãos do médico quando
ele retirou as ataduras e fez o seu exame. Este não foi excessivamente prolongado, e quando Cabra endireitou-se, havia uma falsa alegria na sua maneira.
- Bueno, amigo, não acha que já é tempo de estar numa cama confortável? Temos uma para o senhor no San Miguel. E proponho levá-lo imediatamente.
Peyrat moveu os lábios para protestar, mas não disse nada. Stephen podia ver que a sua alma infantil e imaginosa estava cheia de medo. Dali a pouco, ergueu os olhos
de maneira lastimosa.
- Meu amigo, quando dei o nosso dinheiro em honra de Teresa, não imaginei que ela fosse me reembolsar desta maneira.
Cabra, na mesa, arrumava a sua maleta.
- Eu irei com o senhor - disse Stephen.
- Não. - O médico foi enfático. Avançou para a janela. - Seria inútil. Além disso, se não tomar cuidado, você também ficará doente. Fique aqui e descanse.
- E quando vou? Amanhã de manhã?
- Digamos depois de amanhã.
- Então o senhor está otimista? - perguntou Stephen.
Cabra afastou o olhar - seus olhos estavam muito menos bem-humorados. Apanhou uma tira de linho que tinha na manga.
- Da coxa para baixo, o estado da perna é grave. O pé provavelmente está gangrenado. Se ele tem que viver, alguma coisa deve ser feita imediatamente. Mas fique certo
de que a faremos.
Na padiola, Peyrat, como para se proteger, mantinha os olhos fechados. De vez em quando murmurava frases sem sentido, incoerentes. Mas no momento da partida acenou
para Stephen. Claramente não estava em si.
- Passe-me a minha ocarina.
Ele a apertava quando Cabra, vagarosamente, com considerável cuidado, partiu. Stephen permaneceu longo tempo onde estava, olhando. A mulher cega, numa postura de
escuta, estava a seu lado.
CAPÍTULO VIII
NA MANHÃ SEGUINTE, o sol rompeu cedo num céu ofuscante e passou por um rasgão no saco que servia de cortina para a janela da cabana. E acordou Stephen, que tinha
dormido como um morto. Este ficou imóvel por algum tempo, e então, como regressando ao mundo, levantou-se e, num estado de triste miséria, saiu da cabana. A velha
estava diante do forno abobadado, tirando da sua boca enegrecida uma forma chata de pão de milho. Quando se aproximou, ela, sem voltar a cabeça, partiu um pão novo
e entregou-lhe um pedaço, ainda úmido e fumegante. Enquanto ele comia, em pé, ela permanecia passiva, silenciosa, com os olhos opacos voltados para cima nas órbitas,
numa atitude de tal recolhimento, que era como se ela sondasse, com todas as outras faculdades que não a da visão, a profundeza da sua aflição. De súbito, falou:
- Está pensando no outro?
- Estou.
- Conhece-o há muito tempo?
- Não muito, mas o bastante para chamá-lo de amigo.
- Ay, ay, ele está doente. Disso não há nenhuma dúvida. Já os vi antes.
- Estou muito preocupado com ele.
- Isso passará. Tudo passa, o amor e o ódio, do mesmo modo. - Havia um grave fatalismo na sua voz. Então, ao afastar-se, disse: - O trabalho é a melhor cura para
o sofrimento. Preciso de galhos para este forno. Costumo trazê-los da clareira além do vale.
Ele foi ao estábulo. O burrico estava nas quatro patas, em pé, novamente sólido, e alegre por vê-lo, esfregando o focinho no seu ombro. Luisa tinha-lhe dado feno
fresco. Stephen viu que ele estava recuperado, pôs-lhe os arreios, atrelou-o ao carro, e então, pegando um facão enferrujado ao lado do estábulo, saiu através do
arroio para o lugar que ela indicara.
Aquilo tinha sido um bosque de castanheiros, havia muito derrubado, os tocos estavam agora apodrecidos e se achavam cobertos por um matagal de urze-branca e avellanos.
Enquanto o burro mordiscava as folhas de avellano, Stephen tirou a camisa e pôs-se ao trabalho. O facão era velho e cego, e ele não estava habituado a usá-lo, mas,
com uma espécie de desesperada intensidade, atacava o arbusto duro, procurando conter, ou pelo menos atenuar, as imagens que se amontoavam sobre ele.
Mas não o conseguia. Enquanto suava, trabalhando sem descanso, pensava em Peyrat, automartirizado através de uma série de doidices que confrangiam o coração. Piscou
à lembrança da doação insensata dos seus fundos, na inoportuna entrega dos sapatos, na perversa determinação de curar o calcanhar empolado com a poeira ibérica.
Era como se, por algum estratagema do sol ou do ar da Espanha, o cavaleiro de La Mancha tivesse renascido em Jerome, tivesse saído novamente para a mais lamentável
desventura.
Quando, com um esforço, arrancou os seus pensamentos dessa tristeza, eles se voltaram inevitavelmente para a guerra. Neste preciso momento, homens estavam matando
e sendo mortos. E ele também devia se reunir ao holocausto, cujo único resultado seria um caos medonho de sofrimento, ódio e vingança. Mais uma vez, a lembrança
do escárnio contra Hubert trouxe-lhe o sangue correndo para a testa. Devia voltar, e rapidamente, ainda que só para se justificar, para provar que não tinha medo.
Trabalhou o dia inteiro, levando uma carga após a outra para o quintal atrás do estábulo, onde, indicada por um círculo de ramos esparsos, estava a pilha de lenha.
Ao todo, trouxe oito montes, e ao aproximar-se da margem do arroio com a última, viu Luisa em pé, com as mãos entrelaçadas, os cotovelos para dentro, na sua postura
de imobilidade cismarenta.
- Essa é uma boa quantidade para a última viagem.
- Como pode saber?
- Pelo rangido do eixo do carro e pela respiração do burro. - A sua expressão impassível não relaxou. - Seu jantar está pronto. Hoje, se quiser, pode comer na minha
mesa.
Ele acomodou o asno para a noite, lavou-se num balde de água tirada do poço e entrou na casa. Como a cabana tinha apenas uma peça e era quase "tão escassamente mobiliada
quando ela, a mesa e as cadeiras grosseiramente talhadas em madeira de castanheiro. Um brasero de carvão ardia a um canto da sala, e havia algumas panelas de cobre
penduradas na parede atrás dele.
Uma cama de metal, com meio dossel, ocupava a outra, embaixo de uma litografia colorida da Virgem de las Batalhas. Uma espécie de esteira de vime, muito usada e
desfiada, cobria parte do chão de argila.
A mulher, com um gesto, convidou-o a sentar-se, cortou uma fatia de pão de milho e, de uma panela no brasero, serviu-lhe um prato abarrotado de sopa de feijão cozido
com pimentões. Um momento mais tarde, ocupou uma cadeira diante dele. Houve um silêncio, e então Stephen disse:
- A senhora não está comendo?
Ela afastou a pergunta, encolhendo os ombros.
- A comida está a seu gosto? Há mais. Sinto não ter vinho.
Os feijões eram cozidos em azeite e sabiam a alho, mas ele estava faminto e a sua substância quente fez com que se sentisse menos cansado.
- O senhor trabalhou bem hoje... embora não esteja acostumado a isso. Não precisarei mais de lenha para este inverno.
- Faz muito frio aqui?
Ela acenou que sim.
- A neve sopra através das serras. Às vezes forma montes bem altos.
- Não se sente sozinha nesse tempo?
- Não. - Falava com total indiferença. - Há cinco anos que estou só. Desde a morte de meu marido. Nós não queremos morrer. Mas morremos.
- Sempre viveu aqui?
- Não, homem. Eu sou da cidade de Jerez. Casei-me lá, na Igreja de San Dionisio. Meu marido trabalhava na Casa González, fabricantes de barris, fazendo aduelas para
tonéis de vinho.
- Era um bom emprego.
- É, mas não durou. Se ele ficasse fora da pipa, tudo correria muito bem. Mas ele entrou nela, e foi demitido por embriaguez. Então meus olhos ficaram ruins, devido
à poeira do esparto. Em Andaluzia é uma coisa comum. As pálpebras ficaram inchadas, e perdi a visão. Por algum tempo, fiz ponto do lado de fora do Ayuntamiento,
vendendo bilhetes de loteria. É o trabalho que dão para os cegos. Mas adoeci e, como meu marido, fiquei sem trabalho.
- E conheceu a pobreza.
- Pior... conheci a humilhação. Em Jerez, há um estranho costume criado pelos ricos. Quando a gente não possui nada, recebe o uniforme azul da caridade e é mandada
para as ruas, a fim de pedir esmolas para um fundo comum. A gente se torna oficialmente uma pessoa inútil e um mendigo, recebendo uma pequena parte do que é angariado.
- Isso é uma coisa muito feia de se fazer.
- Fala a verdade, homem. Eu ficava acordada de noite, com fome, suspirando por um lugar no campo onde pudéssemos plantar para comer. Em desespero, agarrei duas pesetas
que tinha economizado e comprei um décimo
de bilhete de loteria. Com toda a minha força, todo o meu coração, minha alma, meu estômago esfomeado, rezei a San Dionisio para que ganhássemos.
- E ganharam?
- Não, nunca. Mas no mês seguinte, nosso único filho, um rapaz de 14 anos, foi morto por um trem no atajo. Ficamos muito tristes. Não procuramos compensação, mas
ela veio. As pessoas ricas que davam os uniformes conseguiram que nos fosse paga uma indenização. E com esse dinheiro arranjamos este pequeno lugar. Demos-lhe o
nome de Estância Felipe, pelo nosso filho.
- É um bom lugar - disse ele, querendo elogiá-la.
- Era bom. Agora não é mais. Como posso mantê-lo sozinha? Se ao menos tivesse algum auxílio. Mas isso é como criança querendo a lua.
Houve um silêncio. Ele tinha terminado a sua caneca de água; Luisa, levantando-se, foi a uma talha num canto, junto à porta, e reencheu-a.
- Está há muito tempo nesta região?
- Não muito.
- E vai ficar por aqui?
- Não. Quando meu amigo puder andar, devemos partir.
- Ah, seu amigo. É claro que é muito dedicado a ele. Vai a Málaga amanhã?
- Vou.
- E volta à tarde?
- Se a senhora permitir. Não tenho nenhum outro lugar. Trabalharei para a senhora, em pagamento.
Ela não respondeu, e embora o seu rosto triste e pesado não desse nenhum sinal, ele viu que tinha dito o que não devia. Corrigiu-se rapidamente.
- Quero dizer, não em pagamento, por gratidão.
- Isso é bem falado. Quando se é pobre como eu, a palavra pagamento perde o sentido.
- Mas a outra não. -
Um súbito pensamento lhe ocorreu. Disse: - O burro e o carro estão agora no seu estábulo e poderiam prestar-lhe algum serviço. Quanto a nós, não temos o que fazer
com eles. Quer aceitá-los como expressão do nosso agradecimento?
Ela não respondeu. Contudo, por trás do seu exterior impassível, viu que ela ficara profundamente tocada. Seus lábios grossos e rachados, como se cortados violentamente
em madeira escura, tremeram ligeiramente, e ela exalou um suspiro profundo. Então, inesperadamente, ainda sem uma palavra, inclinou-se para ele e, com o indicador
de uma mão, explorou os contornos do seu rosto. Foi apenas um momento, e quando ela terminou, não ofereceu explicação nem desculpa. Levantou-se, recolheu os pratos
vazios, a colher de metal e a caneca.
- Para sua viagem de amanhã, precisa descansar. Durma bem. E então resistirá melhor ao que o dia possa trazer.
CAPÍTULO IX
NO DIA SEGUINTE, pouco depois das 10 horas, Stephen chegou ao Hospital San Miguel, situado numa tranquila rua aos fundos que dava para Guadalmedina, onde um grupo
de mulheres, ajoelhadas, nas margens de pedra do rio, batia roupa. O som dos seus risos lhe chegou quando ele apertava nervosamente a campainha e esperava. Dali
a pouco, uma irmã de hábito azul e ampla touca de São Vicente de Paulo se aproximou da grade, e quando ele lhe deu o nome, foi admitido num espaçoso pátio interno,
onde lhe pediram que esperasse.
Sentou-se num banco baixo de pedra, e olhou em torno. Era um soberbo pátio do século XV. No centro havia uma estátua de Don Miguel de Montanes, o nobre andaluz que,
abandonando subitamente as frivolidades do mundo, devotou a sua vida e fortuna à criação do hospital. Na base do pedestal via-se uma placa desbotada pelo tempo,
definindo a intenção do fundador de atender aos pobres e dar um enterro cristão aos indigentes e criminosos executados. Atrás da estátua, um portal com pilares,
feito de lascas de mármore descorado, dava entrada ao hospital propriamente dito. O lado direito do pátio era formado por um claustro fechado, do qual vinha a distante
toada das freiras, e o esquerdo por uma pequena capela barroca. Além da abertura, portas de cedro tacheadas, encimadas por um escudo de armas, via-se o altar-mor
revestido de azulejos, com um retablo dourado trabalhado com intrincadas e profusas figuras.
Em outro momento, Stephen teria sentido profundamente a beleza e tocante sentimento daquele recinto, mas agora, no auge da incerteza e expectativa, aquela reclusão
e solenidade medieval apenas serviam para aumentar a tensão dos seus nervos. Por que o faziam esperar tanto? Sua apreensão tornava-se mais aguda a cada minuto que
passava.
Por fim, ouviu-se um passo rápido, tão súbito que o sobressaltou, e de uma porta lateral apareceu o Dr. Cabra, de cabeça descoberta e um jaleco branco. Dirigiu-se
a Stephen, apertou-lhe a mão e sentou-se ao seu lado, no banco de pedra.
- Bem, aqui está você. Perdoe-me se o fiz esperar. Aqui não é permitido falar, mas o ar está mais fresco do que no meu escritório, e as boas irmãs são indulgentes.
- Fez uma pausa e, com um olhar simpático, colocou uma mão no ombro de Stephen. Foi um gesto que encheu o coração de Stephen de maus presságios. A notícia era má,
talvez a pior, pensou ele, enquanto Cabra dizia: - Quero lhe dizer exatamente o que foi feito pelo seu amigo. Quando eu o trouxe para o hospital, abri-lhe imediatamente
a perna e drenei-a. Fizemos uma irrigação contínua com uma solução de Carrel. Ao mesmo tempo, usamos todos os remédios disponíveis para dominar a septicemia. Mas
sem resultado.
Stephen sentiu um aperto na garganta.
- Considerei então que o passo maior devia ser dado. Amputação. Como eu lhe avisara. O seu estado era tão fraco, sua circulação tão prejudicada, que percebi que
a operação poderia provocar um imediato colapso. Sem ela, no entanto, ele não podia sobreviver.
Houve um silêncio, quebrado apenas pelo ligeiro murmúrio intermitente das freiras no coro. Cabra olhava diretamente para a frente, de cenho carregado, como se achasse
difícil escolher as palavras. Stephen mordia fortemente o lábio, tomado não mais por uma desconfiança, mas por uma terrível certeza.
- Tive que tomar a decisão. Decidi amputar. Garanto-lhe - Cabra pôs a mão no coração - eu não poderia ter tido mais cuidado do que se fosse meu irmão ou minha irmã.
A operação correu bem e estava rapidamente terminada. Contudo... - interrompeu-se com um pequeno gesto contrito que estava entre a comiseração e a compunção. - Sobreveio
uma condição de choque operatório ontem à tarde. Vi que tudo o que tinha sido feito fora em vão. Se fosse humanamente possível comunicar-me com o senhor, eu o teria
feito. Fez uma nova pausa. - O fim veio pouco depois, às 11 horas da noite passada.
Stephen sabia-o mesmo antes de ele falar, e embora a premonição estivesse agora confirmada, sua mente parecia incapaz de aceitar o fato. Tão cedo, tão de repente,
e sem uma chance de vê-lo - a morte impessoal, particular, de Jerome Peyrat. Então, como Stephen continuasse sentado, sem falar, Cabra murmurou:
- Se eu puder ajudar de alguma maneira, com as providências necessárias...
Stephen saiu da letargia.
- Ele está aqui?
- Não. Está na mortuária de mendigos. Pelo nosso regulamento, estamos capacitados a prover um funeral simples... - Cabra encolheu os ombros com diplomacia triste
e encantadora... - em certas circunstâncias. O senhor não se importa?
- Isso não faz diferença. Peyrat não será o último artista a morrer sem o dinheiro do caixão no bolso. - Ergueu-se. - Perdoe-me. O senhor foi bom. Quando posso ir
à sala mortuária?
Cabra olhou para o relógio.
- Agora está fechada até a tarde. É melhor ir depois... por volta das sete horas. Venha primeiro à minha casa. Há alguns papéis que devo assinar.
- Muito obrigado. Quando eu chegar, diga-me quanto lhe devo. Embora isso possa tomar algum tempo, posso lhe garantir que será pago.
- O senhor não me deve nada. Um dia, talvez, pintará o meu retrato. Será para mim a lembrança de um encontro que causou tristeza e prazer. Então, ao acompanhar Stephen
até a saída, continuou, numa voz de curiosidade: - Mas me diga uma coisa. O senhor diz que o seu amigo era um homem solitário, sem esposa ou qualquer mulher. Por
que então, todo o tempo, na sua febre, ele repetia continuamente o nome de Teresa?
- Era alguém que ele... admirava.
- Um assunto do coração?
- Não, apenas do espírito.
- E ela morreu antes dele?
- Sim - respondeu Stephen com súbita violência. - Há 400 anos.
Saiu, caminhando a esmo, de cabeça baixa, a calçada imprecisa e ondulando sob a sua visão. Foi andando ao longo da margem do rio, através dos jardins públicos, sob
os jacarandás floridos, entre renques de tamargueiras, podadas como guarda-sóis. Uma banda tocava a distância, no paseo. Depois, numa volta da estrada, achou-se
diante do mar, andando para o quebra-mar. Não podia respirar, e a necessidade de ar mais livre afastou-o daquele comprido dedo de pedra, entrando bem longe na água
azul.
Achava-se num estado de alma da mais negra e abjeta desolação. Embora acostumado a esse poço de melancolia, no qual ele próprio se atirara, e onde afundava como
uma alma danada, raramente tinha caído a tais profundezas, ou tido pensamentos tão desesperantes. agora, como soldado, devia abandonar o seu trabalho, uma perda
pior do que qualquer provação da batalha. Está com medo? A pergunta era tão pueril que ele sequer a considerou. Havia muito que deixara de avaliar a sua vida em
termos de sobrevivência física. A atitude desdenhosa de Hubert lhe pesava? Talvez. Contudo, ele não se preocupava realmente com Hubert, ou com sua família, ou com
a opinião de homem algum sobre a sua conduta ou o seu caráter. A única coisa que importava era aquele instinto criador que ardia dentro dele. Pintar era a sua paixão,
a verdadeira razão da sua existência, uma necessidade mais urgente do que a fome ou a sede, uma compulsão íntima tão poderosa que era irresistível.
Estava agora no fim do molhe do cais, e sentou-se ao lado do farol para descansar. No lado interno da muralha, um menino estava pescando, iscando
o seu anzol com pedaços de camarão, e de quando em quando tirando da água, num arranco, peixinhos prateados que ia colocando, um após outro, numa bolsa. Vendo-o,
Stephen procurou instintivamente no bolso o seu bloco, que havia tantos dias não usava. Não o encontrou. Mas o desejo de trabalhar novamente não podia ser abafado,
brotava e fervia como um fermento, ativado por sua tristeza, sua solidão e o período de aridez que recentemente atravessara. Levado por essa onda de sensação inexprimida,
pensou: devo pintar, preciso, ou então enlouquecerei.
Permaneceu imóvel durante longo tempo, pálido e perturbado por aquele desejo frenético, que era, para ele, mais forte, mais imperativo, de maior importância do que
qualquer outra coisa no mundo. Então, de repente, através do esforço para enfrentar a sua situação, teve consciência de um momento de iluminação. Ao mesmo tempo,
através do ar úmido e macio, chegava o ranger dos remos nos toletes de madeira, o som de homens cantando. A frota da sardinha, ainda não imobilizada pela guerra,
começara a deixar o porto para uma noite na área de pesca. Fora do quebra-mar, recolheram os remos e içaram as velas latinas. Lá se foram aparecendo e desaparecendo
na vaga tranquila, pairando entre o mar e o ar, sumindo como um bando de andorinhas na distância calma e nevoenta. Na costa, o sol se inclinava para as cristas das
Sierras, ateando nuvens de fogo, projetando sombras violentas nos montes mais baixos, tornando-os vagos e infinitos. Embaixo, os vinhedos em terraços destacavam-se
em puro e firme relevo, e mais embaixo ainda os nítidos perfis dos telhados, torres e minaretes. Passaram-se minutos. Agora o sol era como uma chama na testa da
cidade. A beleza da cena abrandou a angústia do seu coração, fortaleceu o propósito que tinha formado dentro de si. Quando uma luz cinzenta começava a se estender
sobre a cúpula da catedral como uma mortalha, junto à qual, na mortuária de mendigos, jazia o corpo de Peyrat, ele se levantou e dirigiu-se decididamente para a
cidade.
Alcançou o começo do quebra-mar. De súbito, ao transpor os portões do porto, alguém o chamou. Voltou-se e viu Hollis, com uma pasta debaixo do braço, vindo apressado
das docas em sua direção.
- Desmonde, pensei tê-lo reconhecido. É um encontro de sorte. Sorrindo, fez uma pausa para recuperar o fôlego. - Tenho uma boa notícia para você. O navio Murica,
um cargueiro da Star Line, parte de Málaga para Liverpool na terça-feira da próxima semana, e o Cônsul Geral conseguiu reservar um beliche para você.
Uma pausa. Stephen não falou.
- E não é só. Obtive licença para voltar à Inglaterra e entrar na dança. Estarei na velha banheira outra vez.
Apesar da sua maneira um tanto preguiçosa e indiferente, Hollis estava evidentemente deliciado, borbulhando de entusiasmo.
- Tem apenas três mil toneladas, e sem qualquer acomodação. Nós provavelmente ficaremos no castelo da proa; assim, traga um cobertor, se puder, e eu levarei algumas
latas de carne em conserva. A propósito, não acredito que o nosso cargueiro seja escoltado. Como os submarinos inimigos estão no Mediterrâneo, podemos até nos divertir
um pouco.
Outra pausa, e então Stephen disse:
- Sinto muito. Eu não vou voltar.
- Como?
Hollis parecia pensar que não tinha ouvido bem.
- Não vou voltar à Inglaterra. vou ficar aqui.
Silêncio. A expressão de Hollis mudou, lentamente, de grande espanto, para incredulidade, e para um frio desprezo final.
- E o que pretende fazer?
- vou pintar.
Deixando o outro, voltou-se e caminhou rapidamente para a escuridão que caía.