Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MANSFIELD PARK
Primeira Parte
Há cerca de trinta anos, Miss Maria Ward, de Huntingdon, com o minguado dote de sete mil libras, teve a felicidade de cair nas graças de Sir Thomas Bertram, senhor do solar de Masnfield Park, em Northamton, e dessa forma erguer-se à posição de dama nobre com todos os confortos e privilégios de uma bela casa e enorme renda. Toda a cidade de Huntingdon comentou a suntuosidade da união, e o seu tio, advogado, habilmente, tratou de passar para o seu próprio nome no mínimo 3 mil libras. Maria tinha duas irmãs que deveriam lucrar com a sua elevação de nível social; pelo menos assim pensavam suas relações, que não hesitaram em predizer para Miss Ward e Miss Frances, tão bonitas quanto Maria, casamentos com as mesmas vantagens. Acontece, porém, que não há no mundo tantos homens ricos quantas mulheres bonitas que os mereçam. Miss Ward, ao fim de seis anos, viu-se obrigada a casar com o Reverendo Mr. Norris, amigo de seu cunhado, quase pobre, e Miss Frances teve ainda pior sorte. O casamento de Miss Ward, na verdade, não poderia dizer que fosse dos piores: Sir Thomas de boa vontade veio em auxílio do amigo, que passou a viver em Mansfield; assim foi que o casal Norris iniciou a sua feliz carreira conjugal com pouco menos de mil libras por ano. Miss Frances, entretanto, casou-se, como se diz, para contrariar a família, com um tenente da marinha, sem educação, sem fortuna e sem relações. Não poderia ter feito pior escolha. Sir Thomas Bertram, não só por princípio como por orgulho – num desejo natural de proceder bem e de ver acomodadas todas as coisas que se relacionassem consigo, quis ajudar a irmã de sua mulher; mas a profissão do marido dela anulava qualquer tentativa e antes mesmo de ele chegar a planejar outros meios de auxiliá-los, deu-se uma séria desavença entre as irmãs. Resultou isto de procedimento de ambas as partes, como geralmente acontece por causa de tais casamentos. Para evitar exprobrações inúteis a Mrs. Price nunca tocou no assunto com a família senão depois de já estar casada. Lady Bertram, que era muito calma, de temperamento acomodado e indolente, preferiu não pensar mais na irmã e esquecer o caso; Mrs. Norris, mais impetuosa, não se contentou enquanto não escreveu a Fanny uma longa carta em que censurava a loucura de seu procedimento e lhe vaticinava todas as suas possíveis más conseqüências. Mrs. Price, por sua vez, sentiu-se ofendida e zangou-se; a resposta, cuja aspereza atingia a cada uma das irmãs, e se refletia com tal desrespeito no orgulho de Sir Thomas que Mrs. Norris não a pôde ocultar, pôs termos a todas as relações entre elas por longo tempo.
Suas casas eram tão distantes e os círculos em que se moviam tão à parte, que, durante os onze anos seguintes, quase nunca tiveram notícias da existência uns dos outros, e era mesmo de estranhar que Mrs. Norris tivesse meios de informá-los, como de vez em quando informava, que Fanny tinha tido outro filho. No fim de onze anos, porém, Mrs. Price viu que não estava em condições de manter orgulhos e ressentimento nem perder uma ligação que lhe poderia ser útil. A família numerosa e ainda em vias de aumentar, o marido incapaz para o trabalho, dado às más companhias e a bebidas, e a insuficiência de meios para atender as suas necessidades, fizeram com que ela ansiosamente desejasse reaver os amigos que tão facilmente desprezara; escreveu, então, a Lady Bertram uma carta em que demonstrava tanta contrição e abatimento, tanta miséria e tanta necessidade de tudo, que todos se sentiram dispostos à reconciliação. Estava se preparando para o nono parto; depois de lamentar sua situação e lhes implorar que aceitassem como afilhada a criança que ia nascer, não pôde ocultar a importância que os Bertram poderiam ter na futura manutenção dos seus oito filhos já existentes. O primeiro filho, que estava com dez anos, era um menino de belo caráter e que desejava muito viajar pelo mundo; mas que poderia ela fazer? Não haveria alguma oportunidade, mais tarde, de ser ele útil a Sir Thomas em alguma de suas propriedades na Índia? Qualquer situação lhe serviria; ou quem sabe se Sir Thomas não preferiria Woolwich; ou então como poderia ele ir para o Oriente?
A carta surtiu efeito. Restabeleceu paz e amizade. Sir Thomas deu amáveis conselhos sobre a profissão do rapaz. Lady Bertram remeteu dinheiro e roupas de criança e Mrs. Norris escreveu as cartas.
Mas não ficou tudo nisso, pois dentro de doze meses essa carta ainda resultou em maiores benefícios para Mrs. Price. Mrs. Norris estava sempre dizendo que não podia esquecer a pobre irmã e sua família e que, apesar de tudo que eles todos já tinham feito, ele ainda queria fazer mais alguma coisa; finalmente confessou que desejava aliviar inteiramente Mrs. Price do encargo da despesa de um de seus numerosos filho.
– Que tal se eles tomassem conta da filha mais velha que agora estava com nove anos, em idade que necessitava de mais atenção do que a que a pobre mãe lhe poderia dar? O trabalho e a despesa para eles não representavam nada comparados com a bondade da ação. Lady Bertram concordou imediatamente.
– Creio que não poderíamos fazer nada melhor – disse ela – vamos mandar buscar a menina.
Sir Thomas não deu consentimento com tanta facilidade. Debateu o assunto, hesitou: era um compromisso sério; uma menina já tão crescida necessitava de cuidados especiais, do contrário era antes crueldade do que benefício tirá-la da família. Pensou nos seus próprios quatro filhos, nos dois rapazes, imaginou namoros futuros, etc.; mas todas as suas objeções eram interrompidas por Mrs. Norris, com argumentos para todas elas, embora com ou sem razão.
– Meu caro Sir Thomas, compreendo-o perfeitamente e faço justiça à generosidade e à delicadeza de seus sentimentos, que, na verdade, não diferem de sua conduta em geral; e estou inteiramente de acordo com você quanto à necessidade de se fazer tudo o que é possível pela criança de que nos encarregarmos; estou certa de que eu seria a última pessoa no mundo a por obstáculos em tal ocasião. Já que não tenho filhos, de quem hei de me encarregar senão dos filhos de minhas irmãs? E tenho certeza de que meu marido é bastante justo – mas você sabe que eu sou de poucas palavras e poucos meios. Por causa de uma ninharia não vamos deixar de fazer uma boa ação. Educaremos a menina, introduzi-la-emos convenientemente na sociedade e com toda probabilidade ela achará os meios de se arranjar na vida de modo a não pesar sobre mais ninguém. Uma sobrinha nossa, Sir Thomas, posso dizer, ou antes, uma sobrinha sua não poderá deixar de ter grande vantagem vivendo neste ambiente. Não quero dizer que ela seja tão bonita quanto suas primas; ouso mesmo dizer que não; mas desde que fosse apresentada a nossa sociedade em circunstâncias assim favoráveis, nada impediria que viesse mais tarde a ter uma situação digna. Você está pensando em seus dois filhos; mas não sabe que “isto” é justamente o que não poderá acontecer, se forem criados como serão, sempre juntos, como irmãos? É moralmente impossível. Nunca houve um exemplo disso. É, aliás, a melhor maneira de evitar tais situações. Suponhamos que ela venha a ser uma pequena bonita e que Tom e Edmund a vejam pela primeira vez daqui a sete anos; sou capaz de apostar em que haveria aborrecimentos. A simples lembrança do que ela havia sofrido distante de todos nós, no meio da pobreza e do esquecimento, seria o bastante para qualquer um dos dois se apaixonar pela pequena, sendo eles meigos como são. Agora, crie-a junto dos rapazes desde já e mesmo supondo que ela fique tão bela como um anjo, nunca será para eles mais do que uma irmã.
– Há uma grande verdade no que você diz – respondeu Sir Thomas – e longe de mim trazer impedimentos a um plano que só poderá resultar em benefícios para as situações de cada um. Quero apenas observar que o caso não deve ser tomado levianamente e que, para que o ato seja realmente útil a Mrs. Price e digno de nós, devemos assegurar um meio de vida futuro à criança, ou nos considerarmos obrigados a assegurá-lo mais tarde, pois tudo pode acontecer, caso não se apresentem as possibilidades de matrimônio que você espera com tal confiança.
– Compreendo-o perfeitamente – exclamou Mrs. Norris – O senhor é todo generosidade e bom senso e eu creio que não estaremos em desacordo neste ponto. Tudo que eu puder, como o senhor bem sabe, estou sempre pronta a fazer pelo bem daqueles a quem amo e embora nunca possa sentir por essa menina a centésima parte da afeição que tenho pelos seus filhos, nem considerá-la, de qualquer modo, como minha própria filha, odiar-me-ia se a descuidasse. Não é ela filha de minha irmã? E poderia eu suportar que passe fome enquanto eu tenha um último pedaço de pão para lhe dar? Meu caro Sir Thomas, apesar de todas as minhas faltas tenho bom coração; e embora pobre, mais facilmente me privaria de minhas necessidades, do que deixaria de praticar uma ação generosa. Portanto, se o senhor não se opõe, escreverei amanhã à minha pobre irmã e lhe farei a proposta; e logo que fique resolvido, eu mesma providenciarei para trazer a criança a Mansfield; vocês não precisarão incomodar-se. Minhas dificuldades, o senhor sabe, nunca as levo em conta. Mandarei Nanny a Londres e lá ela arranjará dormida em casa de um seleiro que é primo dela e onde a criança lhe poderá ser entregue. De Portsmouth para a cidade eles poderão facilmente mandá-la de carro em companhia de qualquer pessoa honrada que por acaso venha de lá. Em geral há sempre uma senhora respeitável, mulher de algum comerciante que vai a Londres.
Excluindo a oposição ao primo de Nanny, Sir Thomas não fez mais objeções e uma vez substituído o plano do encontro por um outro mais digno embora menos econômico, tudo se arranjou, ficando todos desde logo na agradável expectativa da realização do projeto. Aquela lisonjeira sensação, porém, não deveria, por justiça, ser dividida igualmente; pois Sir Thomas estava sinceramente resolvido a tomar sob sua inteira proteção a criança eleita, enquanto que Mrs. Norris não tinha a menor intenção de fazer qualquer despesa para mantê-la. Desde que se tratasse de movimentar, falar e combinar planos ela estava sempre pronta e ninguém, melhor que ela, sabia recomendar liberalidade aos outros; seu amor ao dinheiro era tão forte quanto a vontade de mandar e quando se tratava de despesas sabia muito bem guardar o seu para gastar o dos amigos. Tendo o casamento lhe proporcionado renda muito menor do que esperava, determinou, de início, que necessitava por em prática a mais estrita economia, e aquilo que começara por prudência logo se transformou numa questão de vontade. Se ela tivesse filhos, decerto nunca poderia ter economizado; mas já que não tinha essa preocupação, nada havia que a impedisse de ser sóbria ou que diminuísse o prazer de aumentar anualmente a renda que nem chegavam a gastar. Sob a influência deste princípio, levando-se em conta a pouca afeição que tinha à irmã, era de se esperar que ela não pretendesse mais do que o crédito de haver projetado e arranjado uma tão dispendiosa caridade; no entanto talvez nem ela mesma o soubesse, tanto assim que ao voltar para o Presbitério, depois dessa conversa, sentia-se muito feliz com a impressão de ser a irmã e a tia mais liberal do mundo.
Quando novamente discutiram o assunto, porém, ficou inteiramente explicada a sua maneira de pensar pois tendo Lady Bertram perguntado “para onde deverá a criança ir de início, para a sua ou para minha casa?”, Sir Thomas ouviu surpreso que Mrs. Norris se declarava absolutamente impossibilitada de cuidar pessoalmente da criança. Ele supunha, como é natural, que a criança seria recebida com alegria no Presbitério e que a tia, que não tinha filhos, a consideraria uma companheira agradável para seus dias; estava, porém, bem enganado. Mrs. Norris sentia muito dizer que o fato da menina ir morar com eles, pelo menos no momento, estava inteiramente fora de suas cogitações. Era impossível, dado o estado de saúde do pobre Mr. Norris; ele, coitado, não poderia mais suportar o barulho que a criança com certeza faria; se um dia ele ficasse bom da gota de que estava sofrendo tanto, então seria diferente; ela ficaria muito contente em poder cumprir a sua parte no compromisso e não se queixaria do incômodo; mas justamente agora seu pobre marido lhe tomava a maior parte do tempo e ela estava certa de que a simples menção de tal coisa o iria atormentar.
– Então é melhor que ela venha para nossa casa, disse Lady Bertram com a maior calma.
Depois de um momento Sir Thomas acrescentou com dignidade:
– Sim, que o seu lar seja esta casa. Procuraremos cumprir nosso dever para com essa criança e aqui ela terá, ao menos, a vantagem de ter companheiros da mesma idade e uma preceptora permanente.
– Muito certo, exclamou Mrs. Norris, são duas razões muito importantes; e para Miss Lee será o mesmo se ela tiver três meninas para ensinar em vez de duas – não há a menor diferença. Só desejaria poder ser mais útil; mas vocês vêem que eu faço tudo o que posso. Não sou dessas pessoas que se poupam de trabalhos, e embora me seja bastante inconveniente dispensar minha principal empregada por três dias, Nanny a irá buscar. Suponho, minha irmã, que a menina possa ficar no quartinho branco do sobrado, ao lado do antigo quarto das crianças. Será muito melhor para ela, pois ficará perto de Miss Lee e não muito distante das meninas; e ainda com a vantagem de estar ao lado das empregadas que poderão ajudá-la a vestir-se, não é? E cuidar das roupas dela, pois acredito que você não conte com Ellis para olhar por ela ao mesmo tempo que as outras. Na verdade não vejo outro lugar mais adequado.
Lady Bertram não fez oposição.
– Espero que ela seja uma menina de boa índole, continuou Mrs. Norris, e reconheça a sorte extraordinária que lhe oferece uma tal amizade.
– Se a índole dela for realmente má, continuou Sir Thomas, não poderemos, para o bem de nossos próprios filhos, conservá-la em casa; mas não há razão para se esperar uma tal desgraça. Por força teremos muito que corrigir nela e devemos nos preparar para encontrar uma total ignorância, muita baixeza de sentimentos, muita vulgaridade de maneiras; esses defeitos, porém, não são incuráveis; nem tampouco, espero, constituirão perigo para as outras crianças. Se minhas filhas tivessem menos idade do que ela, eu consideraria a aproximação de tal companheira como uma séria ameaça para elas; mas assim como é, tenho esperança de que nada tenhamos a temer por minhas filhas e sim que dessa aproximação só resulte benefício para a pequena.
– É justamente o que eu penso, exclamou Mrs. Norris, e o que estive dizendo a meu marido esta manhã. O fato de viver junto das primas, disse eu, já é uma educação para a criança; e mesmo que Miss Lee não lhe ensinasse nada, ainda assim ela aprenderia com as outras a ser boa e ajuizada.
– Só desejo que ela não atormente meu pobre cãozinho, disse Lady Bertram. Ainda há pouco precisei dizer a Julia que o deixasse em paz.
– Temos ainda uma questão muito difícil a resolver, Mrs. Norris, observou Sir Thomas, quanto à justa diferença a ser feita entre as meninas depois de crescidas: de que maneira haveremos de incutir na consciência de minhas filhas o que elas são, sem ao mesmo tempo fazer com que elas não venham a fazer da prima um conceito muito inferior? E como, sem humilhar demais a menina, haveremos de fazê-la compreender que ela não é uma “Bertram”? Desejaria vê-las muito amigas e, de modo algum, consentiria que minhas filhas mostrassem a menor arrogância para com a outra; mas, embora assim, elas não poderão ser equiparadas. O meio social, a fortuna, os direitos e as expectativas de cada uma serão sempre diferentes. É uma questão muito delicada e você nos deve auxiliar em nossos esforços para encontrar exatamente a melhor maneira de nos conduzirmos.
Mrs. Norris se pôs logo a disposição dele; e embora ela concordasse perfeitamente que a questão era das mais difíceis, encorajou-o a esperar que tudo se resolveria facilmente.
É fácil prever que Mrs. Norris não escreveu em vão à irmã. Mrs. Price ficou surpresa de que justamente a menina fosse escolhida, quando havia tantos meninos tão aproveitáveis, mas aceitou o oferecimento muito agradecida, assegurando-lhes que a filha era menina de muito boa índole e temperamento dócil e que esperava que nunca tivessem motivos para arrependimento. Estendeu-se em detalhes sobre a delicadeza da saúde da filha, que dizia ser muito franzina mas que com a mudança de ares tinha a esperança de que viesse a melhorar. Pobre mulher! Sem dúvida achava que a mudança de ares era do que precisavam os filhos.
A menina fez a longa viagem sem novidade: em Northampton foi entregue a Mrs. Norris, que dessa maneira se sentiu muito lisonjeada por ser a mais indicada para receber a menina e pela importância em que se dava em apresentar a garota aos outros parentes, recomendando-a à bondade deles.
Fanny Price tinha nesta ocasião justamente dez anos e embora à primeira vista sua aparência não fosse muito cativante, não tinha, pelo menos, nada que pudesse desgostar os parentes. Era pequena para a idade, de compleição pouco atraente e sem nenhuma beleza especial; excessivamente tímida e acanhada, retraia-se por qualquer observação. Sua aparência, embora desajeitada, não era vulgar; a voz era doce e, quando falava, sua fisionomia se tornava bonita. Sir Thomas e Lady Bertram receberam-na amavelmente; e Sir Thomas vendo que ela necessitava de ânimo, procurou lhe ganhar a simpatia; mas teve que lutar contra o mais rebelde temperamento; quanto a Lady Bertram, sem muito trabalho, dizendo uma só palavra enquanto ele dizia dez, apenas com o auxílio de um sorriso, imediatamente se tornou menos terrível.
As outras crianças estavam todas presentes e representaram muito bem os seus papéis na apresentação, portando-se com muita cortesia e sem o menor embaraço, pelo menos quanto aos dois filhos, os quais já com dezessete e dezesseis anos e altos demais para a idade, tinham toda a imponência de homens feitos aos olhos da pequena prima. Já as duas meninas não se sentiam tão à vontade, pelo fato de serem mais jovens e respeitarem muito o pai, que as preparou especialmente para a ocasião. Mas elas estavam por demais acostumadas à sociedade e aos elogios para que se sentissem acanhadas; e a sua confiança aumentando à medida que a prima mais se retraía, começaram com a maior indiferença a examinar-lhe o rosto e o vestuário.
Eles formavam uma família notavelmente distinta, os filhos muito bem parecidos e as filhas positivamente belas, todos bem desenvolvidos para as idades, o que demonstrava uma diferença patente entre os primos quanto ao meio em que haviam sido criados; ninguém julgaria haver tão pouca diferença de idade entre as três meninas. Havia de fato apenas dois anos entre a mais jovem e Fanny. Julia Bertram tinha doze anos e Maria era apenas um ano mais velha. A pequena visitante, por esse tempo, sentia-se tão infeliz quanto é possível. Com receio de todos, envergonhada de si própria e com saudades da casa que deixara, não tinha coragem de levantar a cabeça e mal conseguia murmurar as palavras sem chorar. Mrs. Norris, durante a viagem, desde Northampton, veio lhe falando de sua sorte incomparável e da gratidão e do bom comportamento que ela deveria ter por isso mesmo, de forma que a consciência de sua própria miséria aumentou com a idéia de que por causa disso não poderia ser feliz. O cansaço, também, de uma viagem tão longa em breve não se tornou menos doloroso. Em vão foram as bem intencionadas amabilidades de Sir Thomas e todos os prognósticos de Mrs. Norris de que ela seria uma boa menina; em vão Lady Bertram sorriu e fê-la sentar-se ao seu lado no sofá e em vão foi, até, a vista da torta de groselha para confortá-la; mal pôde engolir dois bocados e irrompeu em soluços; levaram-na então para a cama o amigo sono terminou suas tristezas.
– Esse princípio não é muito promissor, disse Mrs. Norris quando Fanny deixou a sala. Depois de tudo o que eu lhe disse durante a viagem, esperava que ela se portasse melhor; disse-lhe o quanto poderia depender do seu comportamento de início. Desejo que não tenha sido um pouco por birra – sua mãe, coitada, era bem rebelde; mas devemos ser indulgentes para com essa criança, – aliás acho que o fato de ela se sentir triste por ter deixado seu lar só a pode elevar em nosso conceito, pois, com todos os defeitos, era o seu lar e ela ainda não pode compreender o quanto a mudança foi para melhor; enfim, há limites para todas as coisas.
Contudo foi preciso muito mais tempo do que Mrs. Norris supunha para reconciliar Fanny com a mudança para Mansfield e a separação de todas as pessoas a quem ela estava habituada. Seus sentimentos eram por demais sutis e por serem mal compreendidos não os levaram na devida conta. Não que seus parentes fossem intencionalmente pouco amáveis, mas ninguém cuidava em deixar suas comodidades para lhe ser agradável.
A folga permitida às Misses Bertram no dia seguinte, a fim de que pudessem mais à vontade travar conhecimento e entreter a jovem prima, produziu pouco efeito. Elas não podiam deixar de olhar com pouco caso para a prima ao descobrirem que ela só possuía duas faixas e que nunca havia aprendido francês; e quando perceberam a pouca admiração que demonstrou pelo dueto que elas tão bem executavam ao piano, contentaram-se em presenteá-la generosamente com alguns de seus brinquedos menos preciosos e se desinteressaram da pequena completamente, entregando-se ao seu divertimento favorito no momento, que consistia no fabrico de flores artificiais ou em colecionar papéis dourados.
Fanny, quer estivesse perto ou longe dos primos, tanto na sala de aulas quanto na sala de visitas ou no parque, sentia-se igualmente desamparada, encontrando motivos para receio em cada pessoa ou lugar. Sentia-se desanimada diante do silêncio de Lady Bertram, receosa do olhar grave de Sir Thomas e completamente vencida com as admoestações de Mrs. Norris. Seus primos mais velhos mortificavam-na pela sua superioridade em altura e confundiam-na chamando atenção para sua timidez; Miss Lee admirava-se de sua ignorância e as criadas riam-se de suas roupas; e quando a todas essas tristezas se juntava a lembrança de seus irmãos entre os quais ela sempre fora a mais importante, tanto como companheira de brinquedos como no papel de mestra e enfermeira, o desespero em que mergulhava seu pequeno coração era enorme.
A magnificência da casa a atordoava mas não a consolava. As salas eram grandes demais para que nelas se sentisse tranqüila; tinha a impressão de que qualquer coisa que segurasse havia de quebrar-se em suas mãos e vivia num constante terror de tudo, freqüentemente escondendo-se em seu quarto para chorar; e a menina que, segundo comentavam na sala de visitas, parecia estar tão agradecida à sua boa fortuna, terminava as tristezas de cada dia chorando até adormecer. Dessa forma passou-se uma semana sem que pelo seu modo passivo ninguém suspeitasse do seu desgosto, até que uma manhã o primo Edmund, o mais jovem dos dois filhos, encontrou-a chorando sentada na escada do sobrado.
– Minha querida priminha, disse ele com toda a doçura de uma excelente criatura, que foi que houve? – E sentando-se ao lado dela procurou por todos os meios dominar-lhe o embaraço de ter sido assim surpreendida e persuadi-la a falar abertamente.
Estava doente? Ou alguém tinha zangado com ela? Ou tinha brigado com Maria e Julia? Estava atrapalhada com algum problema de suas lições que ele poderia explicar? Ou desejava, finalmente, alguma coisa que ele poderia talvez conseguir ou fazer? – Durante muito tempo não conseguiu outra resposta além de um – Não – não – de modo algum – não, obrigada; porém ele insistiu; e mal começou a se referir à família dela os soluços aumentaram, mostrando onde se achava o ponto sensível. Tentou consolá-la.
– Você está triste por ter deixado a sua mamãe, não é, minha pequenina? – Disse o rapaz. – Isto mostra que você é uma boa menina; mas deve lembrar-se de que está no meio de parentes e amigos, que gostam muito de você e que desejam fazê-la feliz. Vamos passear no parque, conversar sobre seus irmãos.
Prosseguindo no assunto ele viu que, embora muito quisesse aos irmãos havia um entre todos para quem seus pensamentos mais revertiam. Era de William que ela mais falava e a quem mais desejava ver. William, um ano mais velho do que ela, era seu companheiro e amigo mais constante; seu defensor perante a mãe (de quem era o predileto) em todas as contingências.
– William não queria que eu viesse; ele disse que iria sentir muito a minha falta.
– Mas William vai escrever a você com certeza.
– Sim, ele me prometeu que escreveria mas disse que eu deveria escrever primeiro.
– E quando é que você vai escrever?
Ela inclinou a cabeça e respondeu hesitante: – Não sei; não tenho papel.
– Se essa é toda a sua dificuldade, posso arranjar papel e tudo o mais, e você pode escrever sua carta quando quiser. Quer mesmo escrever a William?
– Sim, muito.
– Então escreva agora mesmo. Venha comigo à sala de almoço, lá encontraremos tudo o que é preciso e ninguém nos incomodará.
– Mas, primo, a carta depois vai para o correio?
– Sim, só depende de mim; irá com as outras cartas; e visto que seu tio pagará o selo, não custará nada a William.
– Meu tio? – Repetiu Fanny assustada.
– Sim, depois que você escrever a carta eu a darei para meu pai a selar.
Fanny achou a medida arriscada mas não ofereceu maior resistência; foram juntos para a sala de almoço onde Edmund preparou o papel traçando nele as linhas de tão boa vontade como seu próprio irmão o faria e talvez até com maior exatidão. Permaneceu ao seu lado todo o tempo em que ela escrevia, para ajudá-la a apontar o lápis e auxiliá-la na ortografia, pois que disso bem precisava; e junto a estas atenções, que ela muito apreciou, demonstrou uma grande bondade para com seu irmão que a alegrou acima de tudo. Ele próprio escreveu algumas linhas ao primo William e lhe mandou meio guiné para o selo. O contentamento de Fanny naquela ocasião foi tal que ela não soube como o expressar. Mas o seu rosto e as poucas palavras ingenuamente proferidas demonstraram toda a sua gratidão e o seu prazer; o primo começou a não a achar tão desinteressante quanto parecia. Conversou ainda com ela e, por tudo que disse a pequena, convenceu-se de que ela possuía um coração afetuoso e um forte desejo de proceder bem; achou que ela merecia maior atenção, dada a sua suscetibilidade, a sua situação e a sua grande timidez. Que ele soubesse, nunca lhe havia causado sofrimento; porém sentia agora que Fanny necessitava de maior carinho. E assim pensando, procurou, em primeiro lugar, diminuir os receios que ela tinha deles todos, aconselhou-a a que brincasse com Maria e Julia e que fosse alegre quanto possível.
Desse dia em diante Fanny sentiu-se mais consolada e a bondade do primo Edmund trouxe-lhe melhor disposição para com os outros parentes. A casa se lhe tornou menos estranha e as pessoas menos imponentes; se havia ainda alguém entre os outros a quem ela não pudesse deixar de temer, começou pelo menos a conhecer-lhes os hábitos e procurou adaptar-se a eles da melhor maneira. As pequenas grosserias que a princípio ameaçavam a tranqüilidade de todos, senão dela própria, desapareceram e ela já não se sentia fisicamente receosa de aparecer em frente do tio nem tampouco se assustava com a voz da tia Norris. Ocasionalmente já fazia companhia às primas. Embora por sua inferioridade em idade e porte não pudesse interessá-las como companheira, havia certas brincadeiras em que se tornava necessário o concurso de um terceira pessoa, especialmente se essa pessoa era de tal maneira submissa e conformada; e não podiam deixar de confessar quando a tia as sondava sobre os defeitos da menina ou seu irmão Edmund recomendava que a tratassem com bondade, que “Fanny não era de todo má”.
Edmund por si era sempre bom; e da parte de Tom ela não tinha outra queixa senão aquela maneira de brincar que um rapaz de dezessete anos sempre tem para com uma criança de dez. Estava justamente começando a viver, cheio de entusiasmos, com todos os privilégios de filho mais velho, que se sente no direito somente para o prazer e os gastos. Sua bondade para com a pequena prima era conseqüente de sua situação e direitos: dava-lhe bonitos presentes e ria-se dela.
A medida que ela ia melhorando de aparência e caráter, Sir Thomas e Mrs. Norris se congratulavam pela sua boa ação; e em breve reconheceram que, embora muito inteligente, Fanny demonstrava possuir um temperamento bastante dócil, que, com toda probabilidade, lhes daria pouco trabalho. Quanto às suas habilidades, nada lhes tinham dito. Fanny sabia ler, trabalhar e escrever, mas não lhe ensinaram nada mais; e quando as primas descobriram o quão ignorante ela era acerca de coisas que lhes eram a longo tempo familiares, acharam-na prodigiosamente estúpida e durante as duas ou três primeiras semanas não cessavam de trazer à sala de visitas novos comentários sobre a pouca instrução da prima.
– Imagine, mamãe, que nossa prima não conhece nem o mapa da Europa – ou minha prima não sabe dizer os principais rios da Rússia – ou ela nunca ouviu falar da Ásia Menor – ou ela não sabe distinguir aquarela de desenho a carvão! Que coisa estranha! – Já se viu alguém mais estúpida, tia Norris?
– Minha querida, dizia indulgente a tia, isto é realmente de lastimar, mas você não pode esperar que todos estejam tão adiantados ou que tenham a mesma facilidade de aprender que você tem.
– Mas minha tia, ela é mesmo muito ignorante! Imagine, ontem a noite nós lhe perguntamos que caminho deveria tomar para ir à Irlanda; e ela disse que atravessaria a Ilha de Wright e chama-a simplesmente de “Ilha” como se não houvesse outra ilha no mundo. Eu morria de vergonha se na idade dela soubesse tão pouco. Nem me lembro mais do tempo em que eu não sabia uma porção de coisas de que ela ainda não tem a menor noção. Quanto tempo faz, minha tia, que nós enumerávamos por ordem cronológica todos os reis da Inglaterra, com datas e suas ascensões e a maior parte dos acontecimentos principais de seus reinados?
– Sim, acrescentava a outra; e os imperadores romanos até Severo; como também muitas figuras da mitologia pagã e todos os metais, semi-metais, planetas e os filósofos mais conhecidos.
– De fato é verdade, minhas queridas, mas vocês foram dotadas de uma memória prodigiosa, enquanto que sua pobre prima provavelmente não tem nenhuma. Há uma grande diferença em memória como em tudo o mais e portanto vocês não devem culpar sua prima e antes lastimar que ela seja assim. E além disso devem lembrar-se que mesmo sendo tão inteligentes, e estando tão adiantadas nos estudos, devem sempre ser modestas, pois embora já saibam muito, ainda têm muito que aprender.
– Sim, já sei que até completar dezessete anos ainda tenho muito que aprender. Mas quero lhe contar outra coisa de Fanny que eu acho tão estranho e tão tolo. Imagine, ela disse que não quer aprender nem música nem desenho.
– Realmente, minha querida, isso é mesmo uma tolice e demonstra uma grande falta de talento e força de vontade. Enfim, considerando tudo, não sei se não será melhor que seja assim, pois como vocês sabem (já lhes disse isso uma vez) embora por bondade de seus pais ela esteja sendo educada juntamente com os primos, não é absolutamente necessário que ela seja tão instruída quanto vocês; ao contrário, é até muito preferível que haja alguma diferença.
Tais eram os conselhos com os quais Mrs. Norris se propunha a formar a mentalidade das sobrinhas; e não seria de admirar que embora com todos os seus talentos e precocidades, elas fossem destituídas do menos senso de autocrítica, de generosidade e modéstia. Aliás, eram admiravelmente instruídas sobre todas as coisas, exceto quanto aos princípios de moral. Sir Thomas não percebia essas lacunas pois que, embora verdadeiramente interessado na educação das filhas, ele não sabia exteriorizar sua afeição e a reserva de seus sentimentos reprimia nelas toda a espontaneidade.
Lady Bertram não dava a menor atenção à educação das filhas. Não tinha tempo para tais preocupações. Era mulher que passava os dias sentada no sofá, lindamente ataviada, a fazer intermináveis trabalhos de agulha, sem nenhuma utilidade ou beleza, pensando mais no cãozinho que nos próprios filhos, mas muito indulgente para com estes, desde que não a incomodassem; era dirigida pelo marido em todas as coisas importantes e nos assuntos de menor monta se deixava guiar pela irmã. E mesmo que tivesse mais tempo para olhar pelas filhas, provavelmente acharia isso desnecessário, já que as meninas estavam sob os cuidados de uma governanta, sob a orientação de professores adequados e de nada mais precisavam. Quanto ao fato de Fanny ter dificuldade em aprender “ela nada tinha a dizer senão que era uma infelicidade; mas afinal, havia pessoas que eram estúpidas de nascença e Fanny devia esforçar-se mais: não sabia o que mais poderia ser feito; e conquanto a pequena fosse pateta, não podia deixar de reconhecer que não via na pobre criatura outro defeito. Ao contrário, achava-a sempre prestativa e ligeira para levar recados e procurar as coisas de que a tia precisava.”
Fanny, com todos os seus defeitos de ignorância e timidez, fixou-se em Mansfield Park e, procurando adaptar-se ao meio, ali cresceu entre os primos, quase feliz. Maria e Julia não tinham realmente má índole; e Fanny, embora freqüentemente humilhada pela maneira com que elas a tratavam, não se sentia ofendida, já que de si mesma fazia o mais baixo conceito.
Mais ou menos na ocasião em que Fanny entrou para a família, Lady Bertram, um pouco por doença mas muito mais por indolência, desistiu da casa que ocupava na cidade (Londres) durante todas as primaveras, e passou a morar todo o tempo no campo, sem pensar na maior ou menor inconveniência que sua ausência traria a Sir Thomas, que precisava atender a seus deverem para com o Parlamento. No campo, portanto, as Misses Bertram continuaram a exercitar suas memórias, executar os seus duetos e a se desenvolver fisicamente; e o pai viu-as transformarem-se quanto a pessoa, modos e conhecimentos, em tudo o que ele almejara. Seu filho mais velho era descuidado e extravagante e já lhe havia causado muitos aborrecimentos; seus outros filhos, porém, não lhe proporcionavam senão alegrias; quanto a Edmund, seu caráter forte, seu bom senso e retidão de consciência só o poderiam levar para o que fosse de utilidade, honra e felicidade não só para si próprio como para os que o cercavam. Estava destinado a ser pastor.
Não obstante os cuidados e os prazeres com que cercava seus próprios filhos, Sir Thomas procurava fazer o que pudesse pelos filhos de Mrs. Price: ajudou-a na educação e colocação dos rapazes logo que tiveram idade suficiente para seguir uma carreira; e Fanny, embora quase totalmente separada da família, acompanhava cheia de satisfação e reconhecimento qualquer ato de bondade feito em favor deles ou qualquer auxílio que lhes viesse melhorar de situação. Uma única vez, no período de muitos anos, ela teve a felicidade de ver William. Os outros nunca mais os avistara; ninguém parecia esperar que ela algum dia voltasse para casa, mesmo de visita, ninguém em sua casa parecia desejar vê-la; mas tendo William, logo após a partida da irmã, resolvido ser marinheiro, foi convidado a passar com ela, uma semana em Northaptonshire, antes de embarcar. Pode-se imaginar a felicidade desse encontro, a afeição, o prazer de estarem juntos, as horas de alegria e os momentos de sérias palestras, a calcular a tristeza da separação. Felizmente isto se deu justamente nas férias do Natal, de forma que Fanny pôde encontrar consolo junto ao primo Edmund; e ele lhe falou com tanta simpatia de William, das coisas formidáveis que ele iria fazer em razão da profissão que abraçara, que finalmente ela se convenceu de que a separação só poderia lhe ser útil. A amizade de Edmund por ela foi sempre sincera; amizade essa que não sofreu a menor alteração com a sua passagem de Eton para Oxford; ao contrário, permitiu mais freqüentes oportunidades de prová-la. Sem mostrar que fazia mais do que os outros, ou sem receio de fazer demais, ele estava sempre pronto a olhar pelos interesses da prima, exaltando-lhe as boas qualidades e lutando contra a excessiva modéstia que as fazia menos aparentes; dava-lhe conselhos, consolo e ânimo.
Ignorada como era pelos demais, só o apoio que lhe dava o primo não poderia levá-la avante; mas por outro lado os cuidados que ele lhe dispensava eram da maior importância na formação de seu espírito. Edmund percebeu que ela era inteligente e que tinha não só muita facilidade de apreensão como bom senso e inclinação para leitura, que, dirigida adequadamente, por si só constituiria uma instrução. Miss Lee ensinava-lhe francês e ouvia-a diariamente ler uma parte de história; mas os livros que ela deveria ler nas horas de folga eram escolhidos por ele, que a ajudava na seleção dos assuntos e lhe corrigia o julgamento; fazia da leitura um prazer útil, comentando sobre o que ela lia e elevando seu gosto por meio de sensatos elogios. Em troca de tais atenções ela o amava mais do que a ninguém no mundo, com exceção de William; seu coração estava dividido entre os dois.
O primeiro acontecimento de importância na família, quando Fanny tinha cerca de quinze anos, foi a morte de Mr. Norris, fato que por força devia trazer alterações e novidades. Mrs. Norris ao deixar o Presbitério mudou-se de início para o Park, passando, em seguida, para uma pequena casa pertencente a Sir Thomas, na vila, e consolou-se da perda do marido com a convicção de que poderia muito bem viver sem ele; e para contrabalançar a redução de sua renda, empenhou-se cada vez mais em diminuir as despesas e viver na mais estrita economia.
A paróquia deveria, dali em diante, passar para Edmund; se o tio houvesse falecido alguns anos antes, ela teria sido entre a algum de seus amigos que a conservaria até que Edmund atingisse idade suficiente para ordenar-se. Mas as extravagâncias de Tom haviam sido, antes disso, tão grandes que foi necessário dispor de outra maneira do dote destinado à futura ordenação, e o irmão mais jovem teve de pagar pelos prazeres do mais velho.
– Envergonho-me por você, Tom, disse Sir Thomas com a maior dignidade. Envergonho-me pela medida que sou forçado a tomar e só desejo que na ocasião possa lamentar seus sentimentos de irmão. Você roubou Edmund dez, vinte, trinta anos, ou, talvez para toda vida, de mais da metade da renda a que ele tinha direito. Doravante depende de mim, ou de você (assim o espero) conseguir para ele melhor situação; e é preciso não esquecer que tudo o que pudermos fazer por ele não será demais, comparado com certas vantagens de que agora é obrigado a desistir por culpa de suas dívidas.
Tom o ouviu com alguma vergonha e tristeza; mas tão logo pôde escapar-se, refletiu com o maior egoísmo, primeiro, que não tinha nem a metade das dívidas que tinham alguns de seus amigos; segundo, que seu pai tinha feito o caso muito pior do que era; e terceiro, que o futuro encarregado da paróquia, quem quer que fosse, com toda a probabilidade, morreria logo.
Com a morte de Mr. Norris a designação recaiu sobre um tal Dr. Grant, que, conseqüentemente veio residir em Mansfield; e, sendo como era um homem vigoroso, de quarenta e cinco anos de idade, veio, sem dúvida, atrapalhar os cálculos de Mr. Bertram. Mas, “qual, era um camarada de pescoço curto, apoplético, e que, levando muito a sério os encargos da paróquia, dentro de pouco tempo daria cabo de si.”
Era casado com uma mulher quinze anos mais jovem do que ele e não tinha filhos; ao virem para a vizinhança trouxeram a reputação de muito respeitáveis e cordiais.
Por esse tempo Sir Thomas estava certo de que sua cunhada iria reclamar os seus direitos sobre a sobrinha; a mudança de situação de Mrs. Norris e a idade atual de Fanny, pareciam, não só abolir qualquer antiga objeção de viverem juntas, mas, até, indicar que essa seria a medida mais acertada. E como a sua própria situação já não estava tão boa quanto antes, em vista das recentes perdas que havia sofrido em suas propriedades de West India, além das extravagâncias do filho mais velho, era para ele muito a desejar ver-se livre das despesas de manutenção da sobrinha e da obrigação de provê-las no futuro. Na certeza de que tal coisa deveria se dar, falou com a mulher sobre a sua probabilidade e como Fanny estivesse presente na ocasião, ela virou-se calmamente para a sobrinha e disse: “Quer dizer, Fanny, que você vai nos deixar para viver com minha irmã? Que acha disso?”
Fanny ficou tão surpreendida que não pôde senão repetir as palavras da tia.
– Vou deixá-los?
– Sim, querida; por que está tão admirada? Você morou cinco anos conosco e minha irmã sempre pensou em levá-la depois que Mr. Norris morresse. Mas você virá nos ver sempre que quiser.
A notícia foi para Fanny tão desagradável quanto inesperada. A tia Norris nunca lhe tinha feito um agrado e não lhe podia querer bem.
– Terei muita pena de ir – disse ela com voz trêmula.
– Sim, acredito que terá; é muito natural. Creio que ninguém no mundo seria tão bem tratada quanto você o foi, desde que veio para esta casa.
– Não creia que eu seja ingrata, titia – disse Fanny modestamente.
– Não, minha filha, não o creio. Sempre achei que você era uma boa menina.
– E eu nunca mais voltarei para aqui?
– Nunca, meu bem; mas pode ficar certa de que lá você será tão bem tratada quanto o foi aqui. E o fato de morar em uma casa ou em outra não fará grande diferença para você.
Fanny saiu com o coração apertado; achava que a diferença era bastante grande e que não poderia conceber a idéia de viver com a tia. Logo que encontrou Edmund, contou-lhe a sua desgraça.
– Primo, disse ela, vai acontecer uma coisa de que não estou gostando nada; e embora você esteja sempre me dizendo que eu devo procurar me habituar às coisas de que não gosto à primeira vista, neste caso creio que não me poderá convencer. De agora em diante vou passar a viver com a tia Norris.
– É verdade?
– É sim; a tia Bertram acabou de me dizer. Já está tudo combinado. Vou deixar Mansfield Park para morar na White House, creio, logo que ela se mudar para lá.
– Bem, Fanny, se o plano não fosse desagradável para você, diria que era excelente.
– Oh, primo!
– Sim, a não ser isso, tudo o mais é a favor dele. Minha tia está afinal agindo como uma pessoa sensata. Está procurando uma amiga, uma companheira exatamente onde a deve procurar e eu me sinto feliz em ver que sua avareza não interferiu. Tenho esperança de que você não se sinta muito infeliz, Fanny.
– Mas o fato é que me sentirei; não me conformo com a idéia. Gosto desta casa e de tudo o que ela tem; não gostarei de nada lá. Você sabe que eu não me sinto bem junto dela.
– Não me refiro à maneira como ela tratou você quando criança; com todos nós foi a mesma, ou quase a mesma coisa. Nunca soube agradar uma criança. Mas você agora está em idade de ser tratada com mais consideração; creio que ela já está mesmo se portando melhor; e quando ela depender unicamente de você, você vai ter muita importância para ela.
– Eu nunca terei importância para ninguém.
– Quem o impede?
– Tudo. Minha situação, minha ignorância, minha timidez.
– Quanto à sua ignorância e timidez, minha cara Fanny, creia-me, você nunca teve nenhuma sombra de uma ou de outra, apenas está empregando as palavras impropriamente. Não há motivo para que você deixe de ter importância para aqueles que a conhecem. Você tem bom senso, o temperamento dócil, e um coração que, estou certo, é incapaz de receber uma bondade sem desejar retribuir. Não vejo melhores qualidades para uma amiga e uma companheira.
– É bondade sua, disse Fanny corando diante de tais elogios; não sei como agradecer a você por fazer tão bom juízo de mim. Oh! Se eu tiver de ir, hei de me lembrar de sua bondade até o último dia de minha vida.
– Não precisa ir tão longe, Fanny; é bastante que você se lembre de mim enquanto você estiver em White House. Você fala como se fosse morar a duzentas milhas daqui, em vez do outro lado do parque; e no entanto você nos pertencerá tanto quanto até aqui. As duas famílias estarão juntas todos os dias do ano. A única diferença é que você morando com sua tia, terá a educação que deveria ter. Aqui há muita gente atrás de quem você pode se esconder; mas com ela você será forçada a responder por si mesma.
– Oh! Não diga isso.
– Digo sim, e digo com prazer. Mrs. Norris é muito mais indicada do que minha mãe para cuidar de você agora. Ela tem disposição para fazer grandes coisas pelas pessoas por quem realmente se interessa.
Fanny suspirou e disse:
– Não posso ver as coisas como você vê; no entanto devo reconhecer que tem mais razão do que eu e agradeço muito seu esforço para me reconciliar com o que tem de ser. Se eu pudesse acreditar que minha tia realmente se interessa por mim, seria um prazer sentir-me útil a alguém. Aqui, eu sei que não sou de utilidade a ninguém e mesmo assim sou tão apegada a este meio.
– Este meio, Fanny, você não precisa deixar, embora deixe a casa. Terá tanta liberdade de usar o parque e os jardins como sempre teve. Nem mesmo o seu constante coraçãozinho precisa amedrontar-se por causa da mudança. Terá os mesmos caminhos para andar, a mesma biblioteca, as mesmas pessoas para ver, o mesmo cavalo para montar.
– É verdade. Sim, o velho pônei querido! Ah! Primo, quando me lembro de como tinha medo de montar, o terror que me dava ouvir que seria bom para minha saúde! E então o trabalho que você teve para me convencer a não ter medo, e pensar que depois de pouco tempo eu iria gostar! Vendo como você tinha razão, tenho esperança de que suas profecias sejam sempre certas.
– Estou certo de que sua permanência junto de Mrs. Norris será tão salutar para seu caráter como a equitação foi para sua saúde e da mesma forma também, para sua felicidade futura.
Assim terminou a discussão, a qual, por muito aproveitável que fosse a Fanny, foi inteiramente inútil, pois Mrs. Norris não tinha a menor intenção de levar consigo a sobrinha. Foi idéia que absolutamente não lhe ocorreu, naquela ocasião, senão como coisa de que se deveria livrar por todos os meios. E para evitar que esperassem dela uma tal atitude, instalou-se na menor casa que havia na paróquia de Mansfield, a White House, na qual apenas havia espaço suficiente para ela própria morar com as suas criadas e só um quarto vago destinado a uma amiga, – amiga essa de que ela fazia absoluta questão. Os quartos vagos no Presbitério nunca tinham sido utilizados, mas agora era imprescindível que houvesse um quarto para receber uma amiga. Contudo, nem com todas as suas precauções se livrou que a julgassem melhor do que o merecia; ou, talvez a importância que deu à necessidade daquele quarto a mais, tenha enganado Sir Thomas que imaginou tratar-se realmente de Fanny. Lady Bertram, porém, em pouco tempo esclareceu o negócio quando, inconscientemente, observou a Mrs. Norris:
– Acho, minha irmã, que quando Fanny for morar com você nós não precisamos mais conservar Miss Lee.
Mrs. Norris teve um sobressalto.
– Morar comigo querida Lady Bertram! Que significa isto?
– Pois ela não vai para a sua companhia? Pensei que você tinha combinado com Sir Thomas.
– Eu! Nunca. Nunca disse uma palavra sobre isso a Sir Thomas nem ele a mim. Imagine, Fanny morar comigo! A última coisa no mundo que eu seria capaz de pensar ou que alguém poderia desejar, conhecendo-nos a nós duas. Santo Deus! Que faria eu com Fanny? Eu? Uma pobre viúva, sozinha, desamparada, inteiramente alquebrada, imprestável para qualquer coisa; que faria eu com uma menina dessa idade? Uma mocinha de quinze anos! Justamente na idade em que todas necessitam de maior atenção e cuidado e quando justamente precisam de alegria! Sem dúvida Sir Thomas não espera isso seriamente. Sir Thomas é muito meu amigo. Pessoa alguma que me queira bem, estou certa, faria tal proposta. Como se explica que Sir Thomas lhe tenha falado sobre isto?
– Na verdade não sei. Creio que ele julgou ser o melhor.
– Mas que disse ele? Não poderia ter dito ser desejo dele que eu levasse Fanny. Tenho certeza que no íntimo não poderia exigir de mim tal sacrifício.
– Não, apenas disse que o achava provável; e eu concordei com ele. Ambos pensamos que lhe seria um consolo. Mas se você não quer, não se fala mais nisso. Ela não nos incomoda aqui.
– Minha cara irmã, se você refletir sobre a minha triste situação, compreenderá que ela não me poderá reconfortar. Agora veja, uma pobre viúva desolada como eu, privada do melhor dos maridos, a saúde gasta nas longas vigílias que passei tratando-o, o espírito ainda pior, toda a minha paz neste mundo destruída, com uma renda apenas suficiente para manter-me em situação digna e viver de modo a não desonrar a memória do querido ausente – que possível consolo poderei encontrar em carregar sobre os ombros um peso como Fanny? Ainda que estivesse em condições de poder desejar isto para meu próprio bem, não faria uma tal injustiça à pobre menina. Ela está em boas mãos e por certo será muito feliz. Eu que me arranje como puder com as minhas tristezas e dificuldades.
– Então você não se importa de viver sozinha?
– Minha cara Lady Bertram, para que sirvo eu senão para a solidão? Uma vez ou outra espero receber uma amiga em minha casa (terei sempre um quarto para receber uma amiga); mas a maior parte dos meus dias futuros serão passados na maior solidão. E não desejo mais nada.
– Creio, minha irmã, que as coisas não estão assim tão ruins para você, considerando-se o que disse Sir Thomas, que você vai receber seiscentas libras por ano.
– Não me queixo. Sei que não posso viver como vivia, mas hei de poupar o quanto possa e aprender a administrar melhor minhas economias. Fui uma dona de casa bastante liberal mas agora não me envergonharei de ser mais econômica. Não só a minha renda quanto a minha situação estão agora muito diferentes. Não se pode esperar que eu continue com todos os encargos que o pobre Mr. Norris tinha como pastor desta paróquia. Ninguém sabe o que se gastava com mantimentos lá em casa, com os estranhos que entravam e saíam a toda hora. Em White House essas coisas têm que ser melhor controladas. Preciso viver dentro dos meus rendimentos se não quiser ficar na miséria; confesso que teria grande satisfação se pudesse no fim de cada ano guardar nem que fosse uma pequena quantia.
– E garanto que guardará. Você sempre guardou, não é?
– Meu fim, Lady Bertram, é ser útil àqueles que vierem depois de mim. É para bem de seus filhos que desejo enriquecer. Não penso em mais nada; apenas desejaria deixar alguma coisa para eles.
– Você é muito boa, mas não deve incomodar-se por causa deles. Todos ficarão bem de vida. Isto compete a Sir Thomas.
– Pois olhe, a fortuna de Sir Thomas ficará bem desfalcada se as suas propriedades em Antigua continuarem do jeito que estão.
– Ora, isto logo se arranjará. Sei que Sir Thomas já está providenciando.
– Bem, Lady Bertram – disse Mrs. Norris levantando-se para sair. – Digo apenas que meu único desejo é ser útil à sua família; e assim, se por acaso Sir Thomas lhe falar novamente em eu levar Fanny, diga-lhe por favor que minha saúde e meu estado de espírito mo impedem absolutamente; além disso não teria realmente acomodações para Fanny, visto que preciso do único quarto vago para uma amiga.
Lady Bertram repetiu ao marido a maior parte dessa conversa, a fim de lhe mostrar o quanto estava enganado a respeito das intenções da cunhada; e esta, a partir desse momento, ficou perfeitamente a salvo de qualquer expectativa ou de qualquer alusão ao assunto. Sir Thomas não podia compreender que ela se recusasse a fazer alguma coisa pela sobrinha que fizera tanto empenho em adotar; mas como a cunhada teve a previdência de insinuar que tudo quanto possuísse seria deixado para a família ele logo se reconciliou com a idéia, que, além de ser vantajosa e lisonjeira para eles, ainda lhe viria facilitar os meios de poder, ele mesmo, dotar Fanny.
Fanny logo compreendeu quão desnecessários tinham sido seus temores; a felicidade indizível, espontânea que teve, porém, ao fazer tal descoberta, consolaram Edmund do desapontamento que teve por ver desfeito o plano que considerava essencialmente útil para a moça. Mrs. Norris tomou posse de White House, os Grants vieram para o Presbitério e passados esses acontecimentos, a vida em Mansfield continuou a correr como dantes.
Os Grants mostraram-se muito sociáveis e fizeram logo muitos amigos entre os seus novos conhecidos. Tinham seus defeitos, como Mrs. Norris não tardou em descobrir. O doutor era muito guloso e exigia todos os dias um lauto jantar; e Mrs. Grant, em vez de procurar satisfazê-lo com pouca despesa, pagava à cozinheira ordenados tão grandes quanto os dos cozinheiros de Mansfield Park; além disso, era raramente vista cuidando de seus afazeres. Mrs. Norris não podia, sem se irritar, falar de tais faltas, nem da quantidade de manteiga e ovos que eram consumidos regularmente na casa. “Ninguém mais do que ela gostava de abundância, de dar hospitalidade; ninguém odiava mais certas mesquinharias. No seu tempo nunca houve falta de conforto no Presbitério, mas aquele desperdício, ela não o podia compreender. Uma senhora distinta, numa paróquia de interior, ficava completamente deslocada. Por mais que indagasse não conseguia descobrir se Mrs. Grant tinha mais do que quinhentas libras de rendimento.”
Lady Bertram ouvia sem interesse certas insinuações. Ela nada entendia de finanças, mas por outro lado, admirava-se de que Mrs. Grant, sem ser bonita, tivesse conseguido instalar-se tão bem na vida, e exprimia a sua admiração sobre o assunto quase tão freqüentemente, embora não tão prolixamente, quanto Mrs. Norris discutia o outro.
Não havia ainda passado um ano desde que se debatiam essas opiniões quando novo acontecimento de importância na família veio empolgar os pensamentos e as conversas dessas senhoras. Para melhor solução de seus negócios, Sir Thomas tinha decidido ir a Antigua, levando consigo o filho mais velho, na esperança de o desviar de certas relações. Partiram da Inglaterra com a expectativa de se ausentarem por uns doze meses.
A necessidade da viagem sob o ponto de vista pecuniário e a esperança de que ela seria útil ao filho, decidiram Sir Thomas a conformar-se com a separação do resto da família, e deixar suas filhas sob a direção de outras pessoas, justamente no momento de maior interesse em suas vidas. Não acreditava que Lady Bertram fosse capaz de o substituir; mas tinha bastante confiança na vigilância de Mrs. Norris e no juízo de Edmund para partir sem receio pela conduta das raparigas.
Lady Bertram não gostou de ver o marido partir; não que, por um só instante, se tivesse perturbado pelo receio pelo perigo que corria ou pela falta de conforto a que estaria exposto, pois que ela era dessas pessoas que não viam perigos e dificuldades senão para si mesmas.
Dignas de pena nessa ocasião eram as pequenas Bertram; não porque estivessem tristes, mas pela falta de tal sentimento. Não amavam o pai; ele nunca tomara parte em seus prazeres e a ausência dele foi infelizmente recebida com a maior alegria. Viram-se livre de todo constrangimento; e sem embora almejar divertimentos que seriam provavelmente proibidos por Sir Thomas, sentiram-se, contudo, imediatamente livres de dispor de suas próprias vontades e de conseguir todas as facilidades ao seu alcance. O alívio de Fanny foi igual ao das primas; possuindo, porém, uma natureza mais terna, sentiu que estava sendo ingrata e sofreu porque de fato não podia sofrer. “Sir Thomas que havia feito tanto por ela e por seus irmãos e que tinha ido talvez para nunca voltar! Como poderia vê-lo partir sem uma única lágrima! Era uma vergonha”. Além disso, naquela mesma manhã, ele dissera que ela poderia ver William no próximo inverno e lhe dera autorização para escrever convidando-o a vir a Mansfield, logo que a esquadra a que ele pertencia voltasse a Londres. “Foi tão atencioso e amável!” e tivesse ele apenas sorrido e lhe chamado “minha querida Fanny” enquanto lhe falava, ela teria esquecido por completo qualquer constrangimento. No entanto ele terminara o discurso de modo a mergulhá-la na maior tristeza, acrescentando: “Se William vier a Mansfield, espero que saiba convencê-lo de que todos esses anos passados desde que você veio para cá não foram inteiramente inúteis para si; embora eu receie que ele não vá encontrar grande diferença, em muitos respeitos, entre a irmã de dezesseis e a de dez anos”. Depois que o tio saiu, ela, ao lembrar-se dessa observação, chorou amargamente; e as primas, ao verem seus olhos vermelhos, tomaram-na por hipócrita.
Tom Bertram ultimamente tinha estado tão afastado de casa que ninguém sentiu a sua falta; e a própria Lady Bertram viu admirada que podiam viver sem o marido, quão bem Edmund podia substituí-lo nos negócios, dar ordem ao mordomo, manter a correspondência com o procurador, olhar pelos empregados, enfim, poupá-la de todo e qualquer trabalho, exceto a sua própria correspondência.
Afinal a notícia de que os viajantes haviam chegado bem em Antigua, tendo feito boa viagem, foi recebida; e não sem que antes disso Mrs. Norris tivesse alimentado os mais tenebrosos receio; e como tinha por hábito ser a primeira pessoa a tomar conhecimento de todas as catástrofes, já estava preparando a melhor maneira de participar as más notícias aos demais, quando a carta de Sir Thomas, assegurando que estavam vivos e gozando boa saúde, veio fazer com que ela tivesse de adiar seus discursos para mais tarde.
O inverno veio e passou sem que eles tivessem de ser chamados; as contas continuavam perfeitamente em ordem; e Mrs. Norris, ocupada em promover divertimentos para as sobrinhas, auxiliando-as nos vestuários, ostentando seus talentos e procurando-lhes marido, tinha tanto que fazer, além dos cuidados de sua própria casa e não poucas interferências na da irmã e ainda os desperdícios de Mrs. Grant para bisbilhotar, que não lhe sobrava tempo para se ocupar com a sorte dos ausentes.
As senhoritas Bertram estavam agora definitivamente estabelecidas entre as belezas da vizinhança; e como além de bonitas e brilhantemente instruídas possuíssem maneiras naturalmente desembaraçadas e amáveis, eram não só admiradas mas estimadas por todos. Tão bem educadas eram que, embora vaidosas, não se davam ares de importância; no entanto os louvores que a tia se encarregava de ouvir e transmitir, só serviam para as convencer de que eram perfeitas.
Lady Bertram nunca acompanhava as filhas. Era por demais indolente para se dar a esse trabalho, mesmo para ter o prazer de testemunhar a alegria e o sucesso das filhas; disso encarregava a irmã, que não queria outra coisa senão poder figurar num posto de tanto destaque e alegremente obter o meio de freqüentar a sociedade sem fazer despesas por sua conta.
Fanny não tomou parte nos divertimentos da estação; mas encontrava prazer em ser reconhecidamente útil a sua tia, quando o resto da família se ausentava; e como Miss Lee já não estava em Mansfield, ela naturalmente ficava à disposição de Lady Bertram, cada noite em que havia um baile. Conversava, ouvia-a falar, lia para ela; e a tranqüilidade daquelas noites passadas em “tête-à-tête” eram indizivelmente agradáveis para ela. Quanto ao divertimento das primas, gostava de ouvir falar sobre eles, principalmente dos bailes e com quem Edmund havia dançado; mas fazia de sua própria situação um tão baixo conceito que nunca imaginava poder tomar parte neles e por isso ouvia como se fossem coisas muito distantes dela. O inverno todo para ela passou sem novidades, e embora William não tivesse vindo à Inglaterra, ela não perdia a esperança de o ver em breve.
A primavera seguinte veio privá-la do seu amigo, o velho cavalo cinzento. E por algum tempo ela esteve em perigo de adoecer, pois apesar de ser reconhecida a necessidade que tinha a equitação para a sua saúde, não pensaram em arranjar-lhe outra montaria “porque”, como disseram as tias, “ela podia montar nos cavalos das primas em qualquer ocasião em que não estivessem ocupados”; e como as senhoritas Bertram usassem seus cavalos todos os dias e não fizessem empenho em demonstrar suas boas maneiras a ponto de sacrificarem qualquer prazer, aquela “qualquer ocasião” nunca chegou. Durante todas as manhãs bonitas de abril e maio saíam alegremente; e Fanny ou ficava em casa sentada ao lado de uma tia ou caminhava além de suas forças em companhia de outra; Lady Bertram achando que o exercício era tão desnecessário aos outros quanto era para si; e Mrs. Norris, que andava todo dia, pensava que todo mundo deveria também andar. Se Edmund não estivesse ausente naquela ocasião, o mal teria sido remediado. Quando ele voltou, ao perceber a situação de Fanny, viu que não havia outra coisa a fazer: – Fanny precisa de um cavalo, declarou com resolução para cortar qualquer argumento inspirado na indolência de sua mãe ou na avareza da tia. Mrs. Norris achava que qualquer animal velho dentre os já existente no Park poderia servir perfeitamente; ou senão, poderiam pedir emprestado um dos cavalos do mordomo; ou ainda, talvez, o Dr. Grant pudesse emprestar de vez em quando, o pônei que ele costumava mandar ao correio. O que ela não podia admitir, que julgava absolutamente desnecessário e até impróprio, era que Fanny possuísse um cavalo só para seu uso, como as primas. Sem dúvida Sir Thomas nunca pensaria nisso; e ela acrescentava que tal compra feita na ausência dele, além da despesa enorme para a manutenção do animal, justamente quando uma grande parte dos seus negócios estava incerta, não se justificava. – Fanny terá um cavalo, foi a única resposta de Edmund. – Mrs. Norris continuou a ver a coisa de outra maneira. Lady Bertram, porém concordou inteiramente com o filho em que era realmente necessário comprar o cavalo e que o marido haveria de aprovar; apenas pediu que não houvesse pressa; queria esperar pela volta de Sir Thomas, para que ele próprio liquidasse o assunto. Ele deveria voltar em setembro e portanto, que mal havia em esperar até aquele mês?
Embora Edmund estivesse muito mais contrariado com a tia do que com a mãe, pelo pouco caso que faziam da sobrinha, não pôde deixar de reconhecer que a mãe tinha uma certa razão e finalmente, resolveu proceder de tal modo que não incorresse no risco do pai achar que ele se tivesse excedido e ao mesmo tempo proporcionar a Fanny um meio imediato de exercitar-se. Possuía três cavalos mas nenhum deles servia para montaria de senhoras. Dois eram usados para caçadas; o terceiro, um ótimo cavalo para passeio. Este ele resolveu trocar por um em que a prima pudesse montar; sabia onde encontrar um animal nestas condições; e uma vez resolvido, o negócio logo se fez. A nova égua provou ser esplêndida; com pouco trabalho ficou perfeitamente apta para o fim a que era destinada e foi posta quase que inteiramente à disposição de Fanny. Antes ela não pensava que pudesse um dia acostumar-se a outro cavalo que não fosse o seu velho pônei; mas o prazer que sentia em montar a nova égua ultrapassava todas as suas expectativas e não sabia como expressar seu contentamento por se ver alvo de tão grande consideração. Considerava o primo como exemplo de tudo que fosse bom e grandioso e a sua gratidão pela bondade que dele recebia era tão intensa que não poderia ser descrita por palavras. Seus sentimentos em relação a ele traduziam-se por tudo que houvesse de respeito, gratidão, confiança e ternura.
Visto que o cavalo continuava, em nome e realidade, como propriedade de Edmund, Mrs. Norris tolerava que fosse usado por Fanny; e se por acaso Lady Bertram tornasse a pensar na sua própria objeção, Edmund estava a seus olhos desculpado por não haver esperado o regresso de Sir Thomas, pois em setembro Sir Thomas continuava ausente e sem nenhuma de terminar os negócios. Circunstâncias desfavoráveis subitamente apareceram no momento em que ele estava principiando a voltar seus pensamentos para a Inglaterra; e a grande incerteza em que tudo ficou então envolvido, decidiram-no a mandar o filho de volta, permanecendo ele próprio até a final liquidação. Tom chegou são e salvo, trazendo as melhores notícias sobre a saúde do pai; notícias inúteis, na opinião de Mrs. Norris. Parecia-lhe tão estranho que Sir Thomas mandasse o filho para casa estando ele próprio ameaçado de possíveis desgraças que não podia deixar de ter os mais terríveis pressentimentos; e quando vieram as longas noites do outono, na triste solidão de sua casa, ficava tão assombrada com essas idéias que era obrigada a se refugiar diariamente na sala de jantar do Park. A volta do inverno, porém, trouxe outras ocupações e com o espírito alegremente empenhado em velar pelo destino da sobrinha mais velha, esqueceu seus velhos temores. “Se o pobre Sir Thomas tivesse a infelicidade de nunca mais voltar, ao menos seria um consolo ver a sua querida Maria bem casada”, era o que ela freqüentemente pensava, quando estavam em companhia de homens de fortuna e particularmente na apresentação de um rapaz que recentemente herdara uma das maiores fortunas e mais belas propriedades do Estado.
Mr. Rushworth de início empolgou-se com a beleza de Miss Bertram; e, como tivesse inclinação para o casamento, logo se imaginou ardentemente apaixonado. Era um rapaz pesado, sem nada de extraordinário; mas como não havia nada de desagradável no seu aspecto e no seu porte, a moça se sentiu bem contente com a conquista. Tendo já completado vinte e um anos, Maria Bertram começou a encarar o matrimônio como um dever e como o seu casamento com Mr. Rushworth lhe traria os benefícios de uma fortuna maior do que a do pai e lhe asseguraria uma casa na cidade – que era no momento seu principal objetivo, – sentiu-se moralmente obrigada a casar-se com o moço caso o conseguisse. Mrs. Norris teve o maior zelo em promover a união, procurando por meio de sugestões e artifícios convencer cada uma das partes das vantagens que a mesma traria; e entre outros meios procurou-se fazer íntima da mãe do pretendente a qual no momento morava com ele; induziu Lady Bertram a ir visitá-la apesar das dez milhas de péssima estrada que era preciso percorrer. Não necessitou de muito tempo para que ela e aquela senhora chegassem a um perfeito entendimento. Mrs. Rushworth desejava muito que o filho se casasse e declarou que entre todas as moças que ela havia visto, Miss Bertram, pelas sua esplêndidas qualidades e prendas, era a mais apta a fazê-lo feliz. Mrs. Norris aceitou o cumprimento e admirou a sagacidade com que tão bem distinguia o mérito das pessoas. Maria na verdade era o orgulho e o encanto de todos eles – perfeita – um anjo; e, naturalmente, tão cercada de admiradores, seria difícil na escolha; e contudo, tanto quanto Mrs. Norris poderia afirmar em tão curta convivência, Mr. Rushworth parecia precisamente ser o único homem digno de a merecer.
Depois de dançarem juntos em diversos bailes o jovem par justificou plenamente aquelas previsões e o noivado, com a devida referência à ausência de Sir Thomas, foi anunciado, com grande satisfação para as respectivas famílias e os conhecidos em geral, que já há muitas semanas não esperavam outra coisa.
O consentimento de Sir Thomas não seria conhecido senão dali a alguns meses; mas no ínterim, como ninguém duvidava de que ele receberia o pedido com a maior cordialidade, as duas famílias estreitaram as relações, e mais nenhuma tentativa foi feita para guardar segredo, embora Mrs. Norris o comentasse com todo o mundo como coisa que não deveria ser falada no presente.
Edmund era a única pessoa na família a ver defeitos na união; e nenhum argumento apresentado pela tia conseguia induzi-lo a achar que Mr. Rushworth seria o companheiro desejável para a irmã. Reconhecia que a irmã melhor do que ninguém poderia julgar sobre a própria felicidade, mas não se conformava de que a felicidade dela se baseasse numa questão de fortuna; muitas vezes na presença de Mr. Rushworth costumava dizer para si mesmo: “Se não fossem as doze mil libras, este camarada não prestaria para nada”.
Sir Thomas, no entanto, acolheu com a maior alegria os projetos de aliança tão vantajosa e da qual ele não sabia senão as coisas boas e agradáveis. Era uma união perfeita – o mesmo condado e os mesmos interesses – e o seu consentimento foi dado logo que possível. Impôs, apenas, como condição, que o casamento não se realizasse antes de sua volta, o que ele estava novamente planejando para breve. Escreveu em abril, anunciando que esperava liquidar seus negócios satisfatoriamente, a fim de que pudesse partir de Antigua antes de terminar o verão.
Tal era o estado das coisas no mês de julho; Fanny tinha completado dezoito anos, quando a sociedade da vila foi acrescida de mais dois membros, com a chegada de Mr. e Miss Crawford, irmãos de Mrs. Grant por parte de mãe. Os dois eram ricos. O filho possuía uma boa propriedade em Norfolk e a filha vinte mil libras. Quando eram ainda crianças sua irmã os estimava muito; mas como ao seu casamento se seguiu logo a morte da mãe, que os deixou aos cuidados de um irmão de seu segundo marido, – o qual Mrs. Grant não conhecia, – ela nunca mais teve ocasião de os ver. Na casa do tio tinham encontrado um lar. O Almirante e Mrs. Crawford, embora em desacordo em tudo o mais, uniram-se na afeição por aquelas crianças ou, pelo menos, seus sentimentos não mais divergiam senão na preferência que cada um tinha por uma ou outra das crianças. O Almirante tinha encantos pelo menino, enquanto a menina era a predileta de Mrs. Crawford; e foi por causa da morte dessa senhora que a sua protegida se via agora obrigada, depois de alguns meses de experiência na casa do tio, a procurar novo lar. O Almirante Crawford era um homem cheio de vícios e que, em vez de conservar a sobrinha a seu lado, preferiu levar a amante para sua própria casa e era a isto que Mrs. Grant devia o ter a irmã se proposto a morar com ela, medida esta não desejada por uma parte quanto necessária para a outra; pois a Mrs. Grant que por este tempo já tinha lançado mão de todos os recursos possíveis para distrair a sua vida no interior – tendo atafulhado a sua sala predileta com lindos móveis e feito uma completa e selecionada coleção de plantas e aves – precisava arranjar outra distração para seus dias. Por conseguinte, foi-lhe mais do que agradável a vinda dessa irmã a quem sempre estimara e que agora pretendia permanecer com ela até o dia em que se casasse. O seu único receio era que Mansfield não agradasse a uma moça que estava habituada aos confortos de Londres.
A própria Miss Crawford não estava inteiramente livre de tais apreensões se bem que essas fossem causadas principalmente pelo modo de vida da irmã e pela espécie de suas relações; e não foi senão depois de tentar sem resultado persuadir o irmão a morar com ela em sua própria casa de campo, que ela decidiu se aventurar para o lado dos outros parentes. Infelizmente Henry Crawford tinha verdadeiro horror por qualquer idéia de residência permanente ou prescrição de sociedade; não poderia portanto sujeitar a irmã a uma tal situação; acompanhou-a pois, com a maior solicitude, a Northamtonshire e prontamente se comprometeu a ir buscá-la, no momento em que ela se sentisse farta do lugar.
O encontro foi dos mais favoráveis para ambas as partes. Miss Crawford encontrou uma irmã sem formalidades – um cunhado muito gentil e uma casa confortável e bem montada; e pelo seu lado, Mrs. Grant recebia em sua casa dois jovens muito atraentes, a quem ela esperava amar mais do que nunca. Mary Crawford era notavelmente bela; e Henry, conquanto não fosse bonito, tinha muito boa aparência; ambos tinham as maneiras desembaraçadas e agradáveis e Mrs. Grant imediatamente lhes fez todas as honras. Estava encantada pelos dois mas a sua predileção recaiu logo sobre Mary; e como nunca tinha podido gabar-se de ser bonita, sentia-se agora radiante por poder se orgulhar da beleza da irmã. Antes mesmo da chegada da moça já lhe havia descoberto um marido conveniente; decidira que este seria Tom Bertram; uma moça com a fortuna e todos os predicados que Mrs. Grant antevia, merecia até mais do que o primogênito de um baronete. E como era muito franca e cordial, três horas depois de Mary haver chegado, ela foi logo lhe contando seus planos.
Miss Crawford gostou imensamente de haver na vizinhança uma família de tal importância e de forma alguma lhe desagradaram os planos e a escolha feita pela irmã. O casamento era seu objetivo, caso pudesse casar-se bem; e como tinha visto Mr. Bertram, decidiu que ele lhe convinha não só fisicamente como pela sua situação financeira. E conquanto levasse o caso em brincadeira, não deixava ao mesmo tempo de pensar nele seriamente. Henry foi logo posto a par do projeto.
– E além disso, acrescentou Mrs. Grant, tenho uma idéia para completar esse plano. Desejaria muito que vocês dois se fixassem aqui; e assim sendo, Henry, você terá de casar-se com a mais nova das Misses Bertram. É uma moça fina, bonita, delicada e cheia de predicados, que só o poderá fazer muito feliz.
Henry agradeceu.
– Minha cara irmã – disse Mary – se você conseguir persuadi-lo a tal coisa, será para mim um grande prazer encontrar uma aliada de tanto valor e só sinto que você não tenha pelo menos meia dúzia de filhas para dispor. Se quiser que Henry se case, tem que procurar uma francesa. Tudo o que a habilidade inglesa poderia fazer já foi tentado. Eu mesma tenho três amigas, cada qual mais louca por ele; e os trabalhos por que elas, suas mães (por sinal muito sabidas), minha querida mana e eu mesma temos passado para fazê-lo refletir sobre o assunto, e induzi-lo ao casamento, você nem imagina! É o Maior namorador que se pode imaginar. Se as senhoritas não querem sofrer uma decepção é melhor que o evitem.
– Meu caro irmão, não acredito isso de você.
– Sei que não acredita, você é boa demais. É mais bondosa do que Mary. Compreende decerto as indecisões e a inexperiência da mocidade. Eu sou cauteloso e não quero arriscar minha felicidade com uma precipitação. Ninguém faz melhor opinião do casamento do que eu. Estas poucas palavras do poeta descrevem, com justiça, a felicidade de possuir-se uma esposa: “O maior e mais durável dom divino”.
– Veja só, minha irmã, como ele é irônico! Repare o seu sorriso! O que lhe garanto é que ele é detestável. As lições do Almirante lhe estragaram completamente.
– Não dou nenhuma importância, disse Mrs. Grant, ao que os jovens dizem sobre o casamento. Se não mostram inclinação para casar é que ainda não encontraram a pessoa que lhes convém.
O Dr. Grant, rindo, felicitou Miss Crawford por ela se sentir inclinada para o casamento.
– Oh sim! Não me sinto acanhada de o confessar. Acho que todo mundo deve casar, desde que o possa fazer convenientemente; não aprovo o procedimento dessas pessoas que não cuidam do futuro; todos devem pensar em casar-se, logo que o casamento traga vantagens.
Os jovens simpatizaram-se mutuamente à primeira vista. De cada lado havia muito para os atrair e em breve as suas relações prometeram maiores intimidades. A beleza de Miss Crawford favoreceu-a junto às Misses Bertram. Elas próprias eram bastante belas para não temerem a beleza de outra mulher e ficaram quase tão encantadas quanto seus irmãos quanto a vivacidade de seus olhos escuros, o moreno de sua tez e sua graça em geral. Se ela fosse alta, desenvolvida e clara, haveria algum perigo; mas assim, não poderia haver comparação; era reconhecidamente uma moça graciosa, gentil, enquanto que elas eram as mais belas da redondeza.
O irmão não era bonito; quando o viram pela primeira vez acharam-no absolutamente sem atrativo, escuro e desinteressante; contudo era bastante delicado e tinha um porte agradável. No segundo encontro já não o acharam tão feio; feio ele era, mas tinha a fisionomia tão agradável, seus dentes eram tão bons, e era tão bem constituído de corpo, que não se notava a sua feiúra; e, na terceira entrevista, quando jantaram juntos no Presbitério ninguém mais pensou em o chamar de feio. Ele era, na verdade, o rapaz mais agradável que as duas irmãs já haviam conhecido, e ambas ficaram igualmente encantadas por ele. Como a mais velha das Misses Bertram já estivesse noiva, ele foi imediatamente situado como legítima propriedade de Julia, do que Julia estava perfeitamente consciente; não se tinha passado uma semana depois que ele chegara a Mansfield e ela já estava pronta a apaixonar-se pelo rapaz.
As idéias de Maria sobre o assunto eram mais confusas e indistintas. Não queria ver nem compreender. – Não havia mal algum em que ela apreciasse um rapaz tão agradável – todos conheciam a sua situação – Mr. Crawford que tomasse conta de si. Mr. Crawford, porém, não pretendia se expor a nenhum perigo. As Misses Bertram mereciam que se lhes agradassem e estavam prontas para isto; e ele começou a fazer com que elas não gostassem dele. Não queria vê-las sofrer; mas um espírito e um temperamento que o faziam julgar-se o melhor juiz de seus próprios sentimentos, tinha as vistas muito largas sobre tais pontos.
– Aprecio imensamente as Misses Bertram, minha irmã – disse ele quando voltou depois de as acompanhar à carruagem no dia do tal jantar; – são moças muito elegantes e agradáveis.
– Elas o são de fato e eu gosto de ouvir você dizer isto. Mas você gosta mais de Julia.
– Oh sim! Gosto mais de Julia.
– Mas gosta realmente? Digo isto porque em geral todos acham Miss Bertram mais bonita.
– Assim deveria eu também achar. Ela leva vantagem em todos os aspectos e eu prefiro o seu rosto ao da outra; mas gosto mais de Julia; Miss Bertram é sem dúvida mais bonita, e eu a acho mais agradável; e no entanto, continuo a gostar mais de Julia, porque vocês o querem.
– Não discutirei com você, Henry, mas tenho certeza de que no fim , há de gostar mais dela.
– Pois não estou dizendo que, por princípio, já gosto mais dela?
– E além disso Miss Bertram é noiva. Lembre-se disso, meu caro irmão. A escolha dela está feita.
– Sim, e por isso mesmo mais a aprecio. Uma mulher comprometida é sempre mais agradável do que outra que não o seja. Está contente consigo mesma. Não tem mais preocupações, sente que pode exercer todos os seus poderes de sedução sem causar suspeitas. Uma senhora comprometida está fora de perigo; nenhum se lhe pode fazer.
– Bem, quanto a isto, Mr. Rushworth é um ótimo rapaz e um bom partido para ela.
– Mas Miss Bertram não liga a mínima importância a ele, e este é o juízo que você faz de sua amiga íntima. Pois eu não concordo. Tenho certeza de que Miss Bertram é muito afeiçoada a Mr. Rushworth. Percebi em seus olhos quando ele foi mencionado. Faço muito bom conceito de Miss Bertram para a supor capaz de conceder a mão sem dar o coração.
– Mary, como havemos de corrigi-lo?
– Creio que devemos deixá-lo de mão. Discutir não adianta. Algum dia ele acaba capitulando.
– Mas não desejo que ele “capitule”; não desejaria vê-lo fazer o que não estivesse em sua vontade; preferia que fosse sincero e leal.
– Ora! Ele que corra o risco de ter de capitular. Tanto faz. A todos acontece o mesmo mais cedo ou mais tarde.
– Mas nem sempre quanto ao casamento, querida Mary.
– Especialmente quanto ao casamento. Com o devido respeito às pessoas casadas que se acham presentes, minha querida mana, não há uma só pessoa em cem, tanto de um como de outro sexo, que não o tenham feito antes de casar. Para qualquer lado que me vire, vejo sempre a mesma coisa; e creio que assim deve ser, se se levar em consideração que o casamento é, de todas as transações, a única em que uma das partes espera tudo da outra sem pensar em ter, ela própria, a mínima parcela de sinceridade.
– Ah! Estou vendo que Hill Street foi uma péssima escola matrimonial para você.
– Minha pobre tia, por certo, não foi das mais felizes no casamento; no entanto, falando pelas minhas próprias observações, acho que o casamento é um negócio que depende de certa manobra. Conheço muita gente que se casou na expectativa e na confiança de obter vantagens pessoais das relações, do talento ou das qualidades da pessoa escolhida e que, ao se verem inteiramente enganados, foram obrigados a se conformar exatamente com o contrário. Que é isto senão uma capitulação?
– Minha filha, você deve estar exagerando. Desculpe-me mas não lhe posso dar crédito. Fique certa de que você vê as coisas pelo meio. Só vê o que há de mal, não vê a compensação. Pode haver pequenas dificuldades e desapontamentos em toda parte e a que todos nós estamos sujeitos, e, então, se falhar um plano de felicidade, a natureza humana vira-se para outro; se o primeiro cálculo foi errado, podemos fazer um segundo; havemos de encontrar conforto em alguma parte – e os observadores mal intencionados, que do pouco fazem uma tragédia, esses são mais enganados do que as próprias partes.
– Muito bem, mana! Faço justiça ao seu “esprit de corps”. Quando me casar tenciono ser tão firme quanto você; e desejo que todos os meus amigos também o sejam. Evitarei assim muitas tristezas.
– Você é tão ruim quanto seu irmão, Mary; Mas havemos de curar a ambos. Mansfield há de curá-los, e sem muito esforço. É só vocês demorarem aqui e logo ficarão curados.
Os Crawford, apesar de não quererem curar, desejavam ficar. Mary achava que o Presbitério, como residência de momento, era satisfatória e Henry estava igualmente pronto a prolongar a visita. Tinha vindo com a intenção de passar apenas alguns dias; mas Mansfield prometia muitos divertimentos e ele não tinha nada que o prendesse em outra parte. Mrs. Grant ficou encantada por os ter em sua companhia, e igualmente o Dr. Grant sentia-se contentíssimo de os receber; uma moça bonita e desembaraçada como Miss Crawford é sempre uma companhia agradável para um homem indolente, caseiro; e o fato de ter Mr. Crawford como hóspede era um pretexto para beber clarete todos os dias.
Nunca Miss Crawford vira admiração igual à das Misses Bertram por Henry. Ela reconhecia, contudo, que os Bertrams eram belos moços, e que dois rapazes como aqueles não se viam freqüentemente, mesmo em Londres e que os modos deles, principalmente os do mais velho, eram excelentes. Ele ia muito a Londres e tinha, pois, mais vivacidade e galanteria do que Edmund, devendo, por isso, ser preferido; e na verdade o fato de ser ele o mais velho era outra razão que se impunha. Tinha tido o pressentimento de que ia gostar do mais velho. Sabia que era o seu destino.
Tom Bertram devia, de fato, ser considerado amável; era dessa espécie de pessoas que são geralmente apreciadas, pois sua gentileza agradava geralmente mais do que outra qualidade de maior caráter, pois era desembaraçado, espirituoso, tinha um grande número de relações e muito o que dizer; e a herança de Mansfield Park e do título de baronete não prejudicava nenhum destes predicados. Miss Crawford viu logo que ele lhe convinha. Examinando-lhe cuidadosamente a situação, viu que quase tudo o favorecia; um parque, um parque verdadeiro, oito quilômetros ao redor, uma casa espaçosa recentemente construída e tão bem situada que sua pintura merecia fazer parte de qualquer coleção de gravuras de casas nobres do reino, precisando somente ser completamente remobiliada – irmãs encantadoras, uma mãe tranqüila e ele próprio um homem agradável – com a vantagem de estar no momento preso a uma promessa de dívidas de jogo e de se tornar “Sir Thomas” no futuro. Servia-lhe muito bem; acreditou que o aceitaria; e conseqüentemente começou a interessar-se pelo cavalo que ele iria fazer disputar as corridas de Bath.
Por causa dessas corridas, teria ele de ausentar-se logo após haverem travado conhecimento; e como era de supor-se por suas “fugas” anteriores, a família não o esperava de volta senão depois de muitas semanas. Tantos comentários foram feitos sobre o caso, que a induziram a assistir às tais corridas.
E Fanny, o que estaria ela fazendo e pensando todo esse tempo? E qual era a sua opinião sobre os recém chegados. Poucas moças de dezoito anos seriam menos chamadas para dar sua opinião. Tranqüilamente, sem que ninguém o percebesse, ela pagou seu tributo de admiração pela beleza de Miss Crawford; mas como continuava a achar Mr. Crawford muito sem interesse, apesar de ambas as primas repetidamente lhe dizerem o contrário, ela nunca o mencionava. A observação feita a seu próprio respeito, porém, foi a seguinte:
– Começo, agora, a compreender vocês todos, exceto Miss Price – disse Miss Crawford aos Mrs. Bertrams. – Afinal ela já foi ou não apresentada à sociedade? Estou intrigada. Jantou com vocês no Presbitério, o que dava a entender que já o tinha sido; no entanto, falou tão pouco que fiquei na dúvida.
Edmund, a quem a pergunta praticamente tinha sido feita, respondeu:
– Creio que compreendo o que diz, mas não me comprometo a responder à sua pergunta. Minha prima já é crescida, tem a idade e o juízo de uma moça feita, mas se foi ou não apresentada, isto está fora do meu alcance saber.
– No entanto, de um modo geral, não há nada mais fácil de se saber. A diferença é bastante grande. Tanto as maneiras quanto as aparências são, falando de um modo geral, completamente diferentes. Até agora eu nunca supus ser possível enganar-me a esse respeito. Uma moça ainda não apresentada nunca varia de vestuário; porta-se modestamente e não diz uma só palavra. Pode quando muito sorrir; e assim mesmo, se o fizer demais, é considerado impróprio, posso lhe assegurar. Elas têm de ser quietas, reservadas. E a pior parte de tudo isto é que ao serem introduzidas na sociedade a mudança geralmente é muito brusca. Às vezes passam subitamente da reserva para a mais oposta ousadia! Esta é a parte defeituosa do sistema atual. Ninguém gosta de ver uma moça de dezoito ou dezenove anos mudar repentinamente em todos os sentidos – pelo menos quando a viu, apenas no ano anterior, quase incapaz de abrir a boca. Mr. Bertram, aposto, já presenciou muitas dessas alterações.
– Creio que sim, mas isto não é leal; vejo a que ponto quer chegar. Está zombando de mim e de Miss Anderson.
– Não é verdade. Miss Anderson! Palavra que não sei de quem ou de que está falando. Estou inteiramente às escuras. Mas terei muito prazer em zombar, se me disser o que há a respeito disso.
– Ah! Sabe encaminhar o assunto muito bem, mas não me poderá levar tão longe. Na certa estava pensando em Miss Anderson quando descreveu uma moça “transformada”. Pinta as coisas bem demais para que possa haver engano. Foi justamente isso. Os Andersons de Baker Street. Ainda outro dia estivemos falando sobre eles, não é? Você, Edmund, me ouviu mencionar Charles Anderson. E a circunstância foi precisamente o papel que aquele moço representou no caso. Quando Anderson me apresentou à família, cerca de dois anos passados, a irmã dele ainda não tinha sido “apresentada”, e não consegui fazer com que ela me dissesse uma única palavra. Estive lá uma manhã, sentado durante uma hora à espera de Anderson, apenas com ela ou uma das meninas na sala, a governanta estando doente ou tendo fugido, sei lá, e a mãe entrando e saindo a todo momento, atarefada com as cartas de negócios; e eu a custo consegui arrancar uma palavra ou um olhar da moça – nada mais que uma resposta por delicadeza. Parafusou a boca e virou-me as costas com um tal ar de arrogância! Não a vi senão depois de uns doze meses, quando então ela já havia sido “apresentada”. Encontrei-a em casa de Mrs. Holford e nem a reconheci. Ela se dirigiu a mim, afirmando já me conhecer, encarou-me sem o menor embaraço, falou e riu a tal ponto que eu já nem sabia para que lado olhar. Tive a impressão que todos se riam de mim naquela hora e a moça, é evidente, ouviu a história.
– Aquele que mostra ao mundo como deveria ser o comportamento das mulheres, – disse galantemente Mr. Bertram – faz muito para as corrigir.
– O erro é muito simples, disse Edmund: tais moças são mal educadas. Suas idéias são de início mal orientadas. Elas estão sempre se preocupando com coisas de vaidade e não existe realmente mais modéstia no seu comportamento de antes de aparecerem em público do que no depois.
– Não sei, – respondeu Miss Crawford hesitante. – Sim, não estou de acordo neste ponto. Esta é certamente a parte mais honesta do caso. É muito pior ver moças “ainda não apresentadas” portarem-se com a mesma arrogância e tomarem as mesmas liberdades como se já o fossem, coisa que já tenho visto. Isto é pior que tudo – repulsivo!
– Sim, é realmente muito inconveniente – disse Mr. Bertram. – Desorienta as pessoas; não se sabe o que fazer. Pela maneira de vestir-se e pela reserva do comportamento, que tão bem descreveu (e nada mais justo), sabe-se como agir; no ano passado estive metido num embaraço medonho justamente por causa disso. Em setembro, logo depois da minha volta da Índia, fui passar uma semana em Ramsgate com um amigo. Meu amigo Sneyd – (você já me ouviu falar dele, Edmund). – Os pais e irmãs do rapaz me eram todos desconhecidos. Quando chegamos a Albion Place estavam todo ausentes; e fomos pois ao encontro, no cais, de Mrs. Sneyd e das duas Misses Sneyds, além de outras pessoas de suas relações. Cumprimentei-as como é de praxe; e como Mrs. Sneyd estava cercada de cavalheiros, cheguei-me para junto de uma de suas filhas, caminhei ao lado dela todo o tempo, cercando-a de todas as amabilidades possíveis; a moça portou-se perfeitamente à vontade, conversando muito naturalmente. Não tive a menor suspeita de estar cometendo uma gafe. Elas tinham exatamente a mesma aparência: ambas bem vestidas, com véus e sombrinhas como qualquer outra moça; mais tarde, porém, soube que tinha dado toda a minha atenção à mais jovem, que ainda não tinha sido “apresentada” e que tinha com isso ofendido extremamente a mais velha. Miss Augusta não deveria ser percebida senão dali a seis meses; e Miss Sneyd, parece, nunca me perdoou.
– Foi, de fato, uma perversidade. Pobre Miss Sneyd! Embora eu não tenha nenhuma irmã mais jovem, sinto-o por ela. Ser desprezada dessa maneira deve ter sido doloroso; mas foi culpa da mãe, exclusivamente. Miss Augusta deveria estar acompanhada pela governanta. Estes meios termos nunca dão bom resultado. Bom, agora quero que me esclareçam sobre Miss Price. Ela vai a bailes? Costuma jantar fora, em outras casas além de minha irmã?
– Não – respondeu Edmund. – Creio que ela nunca foi a um baile. Minha mãe pouco sai e não costuma jantar em casa de ninguém a não ser com Mrs. Grant; e Fanny fica sempre em casa com ela.
– Oh! Então está claro. Miss Price ainda não foi apresentada à sociedade.
Mr. Bertram seguiu para Bath, e Miss Crawford preparou-se para enfrentar um grande aborrecimento devido à ausência dele nas reuniões que agora estavam se tornando diárias entre as duas famílias, e quando, logo em seguida, jantaram todos, no Park, ela retomou o seu lugar favorito junto à cabeceira da mesa, consciente de que encontraria a mais melancólica diferença na troca dos chefes da casa. Estava certa de que o tempo iria passar insipidamente. Comparado ao irmão, Edmund não teria nada que dizer. A sopa seria servida sem a menor animação, o vinho bebido sem sorrisos e agradáveis gracejos e a caça seria cortada sem o acompanhamento de uma anedota divertida ou de uma única história engraçada sobre “o meu amigo tal e tal”. Deveria procurar distrair-se com o que se passava na outra extremidade da mesa e em observar Mr. Rushworth , que aparecia em Mansfield pela primeira vez desde os Crawfords haviam chegado. Ele tinha ido visitar um amigo no condado vizinho e como aquele amigo havia recentemente mandado embelezar os seus campos por um empreiteiro, Mr. Rushworth voltara com a cabeça cheia de projetos e ansioso para arrumar sua própria residência da mesma maneira; e embora não dizendo muito a respeito, não podia falar em outra coisa. O assunto já havia sido discutido na sala de visitas; e agora tornava a ser debatido na sala de jantar; o principal e evidente objetivo da conversa dele era chamar a atenção e obter a opinião de Miss Bertram; e embora o procedimento dela demonstrasse antes superioridade do que qualquer solicitude em agradá-lo, a referência feita a Sotherton Court e às idéias ao mesmo ligadas, dava-lhe uma sensação de prazer que a impedia de mostrar-se desinteressada.
– Desejaria que visse Compton, disse ele, é a coisa mais completa! Nunca vi um lugar mudar tanto. Disse a Smith que já não sabia onde eu estava. O parque, agora, é uma das coisas mais lindas da região; avista-se a casa da maneira mais surpreendente. Confesso que quando ontem voltei a Sotherton, achei-o feio como uma prisão – uma perfeita prisão antiga.
– Oh, que horror! – exclamou Mrs. Norris – Uma prisão, que idéia! Sotherton Court é o lugar mais antigo e nobre do mundo.
– Mas antes de tudo, minha senhora, precisa de melhoramentos. Nunca em minha vida vi um lugar que mais necessitasse de melhoramentos; e está tão abandonado que nem sei o que se possa fazer dele.
– Não admira que Mr. Rushworth pense assim no momento, disse Mrs. Grant com um sorriso a Mrs. Norris; mas conte com isso: dentro de pouco tempo Sotherton terá todos os embelezamentos que se possa desejar.
– Procurarei fazer qualquer coisa, disse Mrs. Rushworth, mas ainda não sei o que. Tenho esperança de que algum amigo me auxilie.
– Seu melhor amigo em tal ocasião, imagino, seria Mr. Repton, disse tranqüilamente Ms. Bertram.
– Era o que eu estava pensando. Como ele trabalhou tão bem para Smith, pensei que o melhor seria chamá-lo imediatamente. Cobra cinco guinéus por dia.
– Ora, e que fossem dez, exclamou Mrs. Norris, estou certa de que o senhor não faria questão. A despesa é que não trará impedimento. Se estivesse em seu lugar, não pensaria na despesa. Mandaria fazer tudo no melhor estilo e tão belo quanto possível. Uma residência como Sotherton Court merece tudo o que o bom gosto e o dinheiro podem proporcionar. O senhor tem bastante espaço para aproveitar, e terrenos que o recompensarão. Eu, por mim, se tivesse a quinquagésima parte do terreno de Southerton, estaria sempre plantando e melhorando. É verdade que sou excessivamente apaixonada por estas coisas. Seria ridículo que me metesse a fazer qualquer coisa no lugar onde eu estou agora, com aquele pedacinho de terra. Seria até burlesco. Mas se tivesse mais espaço, havia de ter um prazer enorme em arrumar e plantar. No Presbitério nós fizemos muito, nesse sentido; comparando com o que era antes, é agora um lugar habitável. Vocês que são moços, talvez não se lembrem; mas se o prezado Sir Thomas estivesse presente, ele havia de dizer dos melhoramentos que nós fizemos ali; e muito mais teria sido feito se não fosse o triste estado de saúde do pobre Mr. Norris. Ele dificilmente podia sair, pobre homem, e apreciar qualquer coisa, e aquilo me desanimava a fazer muitas coisas que Sir Thomas e eu planejávamos. Se não fosse isso, teríamos aumentado o muro do jardim e teríamos cercado o pátio da igreja com plantas, exatamente como o Dr. Grant fez agora. Estávamos sempre fazendo alguma coisa. Foi apenas doze meses antes da morte de Mr. Norris que nós plantamos aquele damasqueiro junto à cerca da estrebaria, e que agora está crescido e se tornando uma árvore tão nobre e de tal perfeição, meu caro senhor, disse virando-se para o Dr. Grant.
– A árvore, sem dúvida, está bem desenvolvida, minha senhora, respondeu o Dr. Grant. O solo é bom; e eu nunca passo por ela sem ter o pesar de ver que as frutas não valem nem o trabalho de as colher.
– É um “Moor Park”, Dr. Grant, nós o compramos como tal e nos custou – isto é, foi um presente de Sir Thomas, mas eu vi a conta – e sei que custou sete shillings e que foi vendido como “Moor Park”.
– Pois foram enganados, minha senhora, respondeu o Dr. Grant: estas batatas têm tanto gosto de damasco “Moor Park” como as frutas daquela árvore. É uma fruta insípida; no entanto um bom damasco é uma fruta comível, o que não se dá com nenhum dos que tenho no meu jardim.
– A verdade, minha senhora, disse Mrs. Grant pretendendo cochichar com Mrs. Norris do outro lado da mesa, é que o Dr. Grant não sabe que gosto têm os nossos damascos; ele nunca teve oportunidade de os provar, pois essa fruta, com um pequeno cuidado, é muito apreciada e os nossos são tão grandes e bonitos que a minha cozinheira os apanha todos para fazer tortas e conservas.
Mrs. Norris que já estava começando a enrubescer acalmou-se; e em seguida a conversa voltou ao assunto da renovação de Sotherton. O Dr. Grant e Mrs. Norris raramente se davam bem; suas relações tinham começado com desavenças e seus hábitos eram totalmente diferentes.
Depois de uma curta interrupção, Mr. Rushworth recomeçou.
– A casa de Smith causa admiração em toda vizinhança; e antes de ser entregue a Repton não valia nada. Creio que vou chamar o Repton.
– Mr. Rushworth – disse Lady Bertram – se eu fosse o senhor, mandaria plantar um lindo bosque. É tão agradável passear-se num bosque, em tempo bom.
Mr. Rushworth imediatamente concordou; mas no meio de seus protestos de que não desejava senão submeter-se ao gosto dela e atender ao conforto das senhoras em geral, insinuando que havia porém apenas uma a quem ele ansiosamente desejava agradar, ficou todo embaraçado, e Edmund teve a feliz idéia de por fim ao discurso propondo que bebessem do vinho. Mr Rushworth, contudo, embora não fosse muito falador, ainda tinha o que dizer sobre o assunto de sua predileção:
– Smith não possui muito mais do que uns cem acres terreno, o que é muito pouco; por isso mesmo mais me surpreende que tenha conseguido tantos melhoramentos. Agora, em Sotherton, temos bem umas setecentas, sem contar os banhados; assim eu penso, que se foi possível fazer tanto em Compton, nós não devemos perder a esperança. Foi preciso cortar umas duas ou três árvores velhas que se achavam muito perto da casa e isso expôs tão espantosamente a perspectiva, que me faz pensar que Repton ou qualquer pessoa que seja, certamente irá derrubar a alameda de Sotherton; aquela alameda que vai da frente até o alto da colina, a senhorita sabe, disse virando-se particularmente para Miss Bertram.
Porém Miss Bertram achou de muita distinção responder:
– A alameda! Oh! Não me recordo dela. Na verdade conheço muito pouco Sotherton.
Fanny que estava sentada ao lado de Edmund, exatamente em frente a Miss Crawford, e que tinha ouvido atentamente, olhou para o primo e disse-lhe em voz baixa:
– Derrubar uma alameda! Que pena! Não lhe faz lembrar de Cowper? Ó alamedas decadentes, mais uma vez choro vosso destino imerecido.
Ele sorriu e respondeu:
– Receio que a alameda esteja destinada a um triste fim, Fanny.
– Desejaria ir a Sotherton antes que a derrubem, para ver o lugar tal como é agora; mas creio que isso não será possível.
– Você nunca esteve lá? Não, você nunca pôde; e, infelizmente, é muito longe para ir a cavalo. Desejaria que pudéssemos arranjar um meio.
– Oh! Não tem importância. Numa ocasião qualquer você me dirá o que foi alterado.
– Concluo, do que falam, disse Miss Crawford, que Sotherton é um lugar muito antigo e de alguma nobreza. Há alguma particularidade no estilo da casa?
– A casa foi construída na época de Elizabeth e é um prédio de tijolo, grande, simples; pesado mas de aparência nobre e tem muitos cômodos. É porém mal situado. Fica justamente numa das partes mais baixas do parque, e nesse ponto não favorece qualquer melhoramento. As florestas, porém, são lindas e há um riacho que poderia ser bem aproveitado. Mr. Rushworth tem muita razão, parece-me, em querer modernizar o lugar e não tenho a menor dúvida de que tudo será extremamente bem feito.
Miss Crawford o ouviu atentamente e disse consigo mesma:
– É um homem bem educado; faz as coisas parecerem melhores do que são.
– Não pretendo influenciar Mr. Rushworth, continuou o rapaz; mas se eu tivesse uma casa para modernizar, não a entregaria a um empreiteiro. Preferia que não ficasse tão grandiosa mas que ao menos fosse de uma beleza a meu gosto e obtida pouco a pouco. Prefiro sofrer pelos meus próprios erros do que pelos dele.
– Bem, o senhor saberia o que estava fazendo, naturalmente; mas para mim isto não serviria. Não tenho espírito inventivo, só sei olhar para as coisas, tais como elas estão na minha frente. Se eu tivesse uma casa na província, ficaria muito contente se a pudesse entregar a qualquer Repton que a tornasse tão bonita quanto me fosse dado gastar; e não a quereria ver senão depois de pronta.
– Pois eu gostaria muito mais de acompanhar todo o progresso da reconstrução, disse Fanny.
– Sim, você foi educada para isso. Comigo não acontece o mesmo; e o exemplo que eu tive desses progressos em construção foi tal que passei a considerar toda espécie de obras como o maior dos aborrecimentos. Há três anos passados, o Almirante, meu digno tio, comprou uma chácara em Twickenham para que lá passássemos os verões; minha tia e eu fomos para lá entusiasmadas; mas embora fosse muito bonita, logo verificamos que precisava de consertos e por três meses ficamos no meio da sujeira e da confusão, sem uma alameda para se caminhar, ou um banco que se pudesse usar. Por mim teria as coisas, no campo, da maneira mais completa possível, bosques, jardins e inúmeros bancos rústicos; contanto que tudo fosse feito na minha ausência. Henry é diferente, ele gosta destas coisas.
Edmund ficou decepcionado ao ouvir Miss Crawford, a quem ele estava disposto a admirar, falar tão livremente do tio. Ferido na sua suscetibilidade, ficou calado até que, induzido por novos sorrisos e brincadeiras, pôs o caso de lado para mais tarde.
– Mr. Bertram, disse ela, tive novas notícias a respeito de minha harpa. Asseguraram-me que está fora de perigo em Northampton; e ela já lá estava provavelmente, nestes dez últimos dias, apesar das solenes afirmativas do contrário que várias vezes nos fizeram. – Edmund exprimiu o seu prazer e a sua surpresa. – A verdade é que as nossas pesquisas foram mal orientadas; mandamos uma criada e fomos nós mesmos; isto a setenta milhas de Londres, não adiantou; mas hoje de manhã, deram-nos uma pista certa. Foi vista por um fazendeiro, que o disse ao moleiro, o qual por sua vez o disse ao carniceiro e o cunhado do carniceiro contou no açougue.
– Alegro-me muito de que tenha tido notícias da sua harpa, e espero que agora não haja mais demora.
– Devo recebê-la amanhã; mas como acha que poderá ser transportada? Não de carro ou carroça: oh não! Nada disso se poderia alugar aqui na vila. Eu devia era ter procurado um carregador com um carrinho de mão.
– Será difícil, talvez, no momento, por causa da colheita do trigo, alugar uma carroça e um cavalo?
– Fiquei admirada ao ver a tragédia que fizeram por causa disso! Que houvesse falta de carroça e cavalo no campo me pareceu impossível; e por isso disse à minha empregada que fosse pedir um; e como da janela do meu quarto não vejo senão pátio de fazenda, ou não passeio no bosque sem passar por outro, pensei que era só pedir e conseguir; daí ter ficado tão ofendida por não ter obtido nada. Imagina pois a minha surpresa quando descobri que havia pedido a coisa mais impossível e extravagante do mundo! Tinha ofendido todos os fazendeiros, todos os trabalhadores, todo o feno da paróquia! Quanto ao administrador do Dr. Grant, achei melhor nem chegar perto dele; e meu próprio cunhado, que no geral é tão bondoso, olhou para mim com a cara mais carrancuda, quando soube o que eu estava fazendo.
– Ninguém esperaria que a senhorita estivesse a par dessas coisas; mas se refletir sobre elas, verá a importância que têm. Alugar uma carroça em qualquer época já não é tão fácil como supõe, nossos fazendeiros não as costumam alugar. Mas no tempo da colheita, então, deve ser absolutamente impossível para eles dispensar um cavalo.
– Em tempo espero compreender todos os seus costumes; mas eu, que vim de Londres com a idéia de que tudo se consegue com dinheiro, fiquei um tanto embaraçada com a rude independência dos costumes de sua província. De qualquer modo, porém, tenho que mandar buscar minha harpa amanhã. Henry, que é a bondade em pessoa, ofereceu-se para trazer no carro dele. Veja só que honra!
Edmund declarou que a harpa era seu instrumento favorito e expressou o desejo de breve poder ouvi-la tocar. Fanny nunca tinha ouvido o som de uma harpa e por isso também muito a desejava ouvir.
– Terei muito prazer em tocar para vocês, disse Miss Crawford; pelo menos tanto tempo quanto queiram ouvir: provavelmente muito mais tempo, pois eu própria adoro música, e quando me ponho a tocar não tenho vontade de parar. Pois bem, Mr. Bertram, peço que, se escrever ao seu irmão, lhe comunique que minha harpa já chegou; ele me ouviu lamentar tanto a falta dela! E pode dizer também que eu vou preparar as árias mais tristes para tocar na volta dele, em atenção aos seus sentimentos, pois já sei que o seu cavalo vai perder.
– Se escrever, direi com certeza o que quiser; mas no momento não vejo necessidade de escrever.
– Não, nem que ele ficasse ausente um ano o senhor não lhe escreveria nem ele ao senhor, se o pudesse evitar. Nunca haveria ocasião. Que criaturas estranhas são os irmãos! Só em caso de extrema necessidade escrevem um ao outro; e mesmo assim, quando são obrigados a pegar da pena para comunicar que tal cavalo está doente ou que tal parente morreu, fazem-no com o menor número de palavras possível. Todos têm o mesmo estilo. Conheço-o perfeitamente. Henry que em todos os outros respeitos é exatamente o que um irmão deve ser, que me ama, me consulta, que tem confiança em mim e conversa comigo durante uma hora inteira, nunca me escreveu mais do que uma página; e muitas vezes não mais do que – “Querida Mary, acabo de chegar. Bath está cheia de gente e tudo vai como de costume. Seu irmão, etc.” Este é o verdadeiro estilo masculino: e é esta toda a carta de um irmão.
– Quando estão ausentes da família toda, disse Fanny pensando em William, eles sabem escrever longas cartas.
– Miss Price tem um irmão na Marinha, disse Edmund, cuja excelência como correspondente a faz pensar que a senhorita está sendo severa demais para conosco.
– Na Marinha, é? Naturalmente a serviço do rei?
Fanny preferiria que Edmund contasse a história, mas o silencio em que ele ficou, obrigou-a a relatar a situação do irmão; sua voz animou-se ao falar sobre a profissão dele, dos lugares onde estivera; mas não pôde, sem lágrimas nos olhos, mencionar o número de anos que estava ausente. Miss Crawford, delicadamente, desejou que ele fosse logo promovido.
– Sabe alguma coisa sobre o capitão do meu primo? perguntou Edmund; do capitão Marshall? Se não me engano, tem muitas relações na Marinha.
– Entre almirantes, conheço muitos; mas, disse com ares de grandeza, conhecemos muito poucas pessoas nas classes inferiores. Capitães de mar e guerra podem ser muito bons homens, mas não pertencem ao nosso meio. De vários almirantes eu poderia lhe dizer muitas coisas; deles e de suas bandeiras, da escala de seus ordenados, das suas disputas e ciumadas. O que lhe posso afirmar é que, em geral, eles são todos desprezados e muito maltratados. Sem dúvida, quando morei com meu tio fiz relações com um círculo de almirantes. De “contras” e “vices”, vi demais. Agora, não vão pensar que estou fazendo trocadilho.
Edmund ficou novamente sério e apenas respondeu:
– É uma nobre profissão.
– Sim, a profissão é boa porém apenas sob duas circunstâncias: se ela fizer a fortuna e houver descrição em gastá-la. Aliás , não é a profissão que mais aprecio.
Edmund voltou ao assunto da harpa e novamente se declarou muito feliz com a perspectiva de a ouvir tocar.
Entre os outros, neste ínterim, ainda se discutia sobre terras e melhoramentos: e Mrs. Grant não pôde deixar de se dirigir ao irmão, embora isso desviasse sua atenção de Miss Julia Bertram.
– Meu caro Henry, e você, não diz nada? Pelo que ouvi dizer de sua casa em Everingham, ela pode rivalizar com qualquer uma da Inglaterra. Estou certa de que deve ser muito bonita. Everingham, já como era, na minha opinião era perfeita; com aquelas quebradas de morro e aquelas florestas! O que não daria para vê-la de novo.
– Nada me seria mais agradável do que ouvir sua opinião sobre minha casa, foi a resposta dele; mas receio que tivesse algum desapontamento; não a encontraria como imagina. Em extensão é quase nada; ficaria surpresa da insignificância que é; e quanto a melhoramentos, fiz muito pouco – pouco demais; desejaria fazer muito mais.
– Gosta então dessas coisas? – perguntou Julia.
– Imensamente; mas também, com as vantagens naturais do terreno, que indicavam, até mesmo à vista de uma pessoa muito jovem, o pouco que restava fazer, e com a minha própria resolução, três meses depois da minha maioridade, Everingham já era o que é agora. Fiz o meu plano em Westminster, um pouco alterado, talvez, em Cambridge, e aos vinte e um anos executei-o. Invejo Mr. Rushworth por ter ainda a sua frente tanta felicidade. A minha própria felicidade eu a devorei.
– Aqueles que vêem rapidamente, resolverão rapidamente e agirão rapidamente, disse Julia. Ao senhor nunca faltará o que fazer. Em vez de invejar Mr. Rushworth, deveria auxiliá-lo com a sua opinião.
Mrs. Grant que ouvira a última parte da conversa, reforçou-a calorosamente; afirmou que não havia julgamento melhor do que o do irmão; e como Miss Bertram igualmente percebera a idéia, e deu a ela seu inteiro apoio, declarando que, na sua opinião, era muito melhor consultar amigos e pessoas desinteressadas do que imediatamente entregar o negócio a um profissional, Mr. Rushworth prontamente pediu a Mr. Crawford o favor de sua assistência, e Mr. Crawford, depois de modestamente depreciar suas próprias habilidades, se pôs às ordens do outro para qualquer coisa em que pudesse ser útil. Mr. Rushworth então propôs a Mr. Crawford que lhe fizesse a honra de ir até Sotherton, para lá passar uns dias; neste momento Mrs. Norris, como se tivesse lido no pensamento de suas duas sobrinhas quão pouco elas aprovavam aquele plano, que as iria privar da companhia de Mr. Crawford, interferiu com outro projeto.
– Não há dúvida quanto à boa vontade de Mr. Crawford; mas porque não iremos mais algumas pessoas? Por que não organizarmos um pequeno grupo? Aqui há muita gente que se interessaria pelos seus projetos, meu caro Mr. Rushworth, e que gostaria de ouvir a opinião de Mr. Crawford no local e que também lhe poderia ser de utilidade, pequena que fosse, com as suas opiniões; e, da minha parte, há muito estou querendo fazer uma visita à sua boa mãe; só mesmo o fato de não possuir cavalos é que me poderia fazer tão negligente; mas, assim, eu poderia ir e conversar um pouco com Mrs. Rushworth, enquanto os outros andassem pelo parque e combinassem as coisas. Voltaríamos então para jantar aqui ou jantaríamos em Sotherton, como fosse mais conveniente para sua mãe, e, de volta, faríamos um lindo passeio com o luar. Ouso dizer que Mr. Crawford não hesitaria em levar a mim e às minhas duas sobrinhas no seu carro; e Edmund pode ir a cavalo, não é, minha irmã? Fanny fica em casa com você.
Lady Bertram não fez objeção; e todos os interessados no programa logo se declararam prontos a concordar, exceto Edmund, que ouviu tudo e não disse nada.
– Então, Fanny, o que acha de Miss Crawford agora? – disse Edmund no dia seguinte, depois de refletir algum tempo sobre o assunto. – que tal a achou ontem?
– Gostei muito dela – muito mesmo. Gosto de ouvi-la falar. Diverte-me; e é tão bonita, que tenho prazer em olhá-la.
– E como a fisionomia dela é atraente! Tem um jogo admirável de feições! Mas não sentiu que na conversa daquela moça havia alguma coisa que não estava inteiramente certo, Fanny?
– Oh, sim! Não deveria ter falado do tio como falou. Fiquei admirada. Um tio com quem ela viveu tantos anos, e que, quaisquer que sejas as suas faltas, é tão carinhoso com o irmão dela, tratando-o, assim dizem, como seu próprio filho! Nem acreditaria!
– Senti que você tinha ficado chocada. Foi muito injusto; muito indecoroso.
– E muito ingrato, parece-me.
– Ingrato não digo. Não creio que o tio tenha direito a qualquer gratidão da parte dela; a mulher dele certamente tinha; e é justamente o grande respeito pela memória da tia, que a induz a erro. Ela está numa situação embaraçosa. Com tal sensibilidade e um temperamento tão jovial deve ser difícil fazer justiça à sua afeição por Mrs. Crawford, sem lançar uma sombra sobre o Almirante. Não pretendo julgar a qual dos dois cabia maior culpa nas suas desavenças, embora a conduta do Almirante presentemente faça com que se fique ao lado da mulher dele; mas é natural e amável que Miss Crawford esteja inteiramente do lado da tia. Não lhe censuro as opiniões; mas certamente não é próprio torná-las públicas.
– Você não acha – disse Fanny, depois de pequena consideração – que isso é um reflexo dos sentimentos de Mrs. Crawford sobre a sobrinha, a quem criou desde pequena? Ela não deve lhe ter dado uma noção exata do respeito que devia ao Almirante.
– Sua observação é justa. Sim, devemos supor que os defeitos da sobrinha tenham sido herdados da tia; e isto faz com que melhor possamos avaliar as desvantagens por que ela passou. Mas agora acho que na companhia da irmã ela estará melhor. Mrs. Grant procede exatamente como deve. E ela se refere ao irmão sempre com muita afeição.
– Sim, exceto quando diz que ele escreve cartas tão pequenas. Quase me fez rir; mas eu não devo avaliar tão alto o amor e a boa índole de um irmão, que não se dá ao trabalho de escrever às irmãs qualquer coisa que valha a pena ler, quando estão separados. Tenho certeza que William não me maltrataria dessa maneira sob qualquer circunstância. E que direito tem ela de supor que você não escreveria longas cartas se estivesse ausente?
– O direito de um espírito jovial, Fanny, valendo-se de qualquer coisa que possa contribuir para seu próprio divertimento ou dos outros; perfeitamente admissível, desde que não haja malícia ou grosseria; e no procedimento e nas maneiras de Mrs. Crawford não há sombra nem de uma nem de outra, nada que fosse malicioso, forte ou grosseiro. Ela é perfeitamente feminina, exceto nos pontos em que estávamos falando. Quanto a isso, não tem justificativa. Alegro-me que você tenha visto tudo como eu vi.
Era natural que ela pensasse como o primo, uma vez que ele lhe tinha formado a consciência e conquistado a sua afeição, embora, no momento, sobre aquele assunto, já começasse a haver o perigo de diversidade, porque ele estava a caminho de manifestar uma admiração por Miss Crawford, que o levaria a um ponto onde Fanny não o poderia seguir. Os atrativos de Miss Crawford não diminuíram. Com a vinda da harpa aumentou a sua beleza, o seu espírito e a sua jovialidade; pois ela tocava com a maior boa vontade, e com tal expressão e sentimento que eram particularmente sedutores. Edmund ia ao Presbitério diariamente, para ouvir tocar seu instrumento favorito; cada manhã assegurava um convite para a manhã seguinte; pois à moça não poderia ser indiferente ter um ouvinte, e em breve as coisas tomaram rumo favorável.
Uma linda e graciosa jovem, com uma harpa tão elegante quanto ela própria, ambas colocadas em frente a uma janela abrindo para um pequeno pátio cercado de arbustos de ricas folhagens, era suficiente para prender o coração de qualquer homem. A estação, o cenário, o ar, tudo era favorável à ternura e ao sentimento. Mrs. Grant e o seu bastidor também não deixavam de ter sua utilidade; tudo estava em harmonia; e como tudo serve de justificativa quando o amor se põe em movimento, até mesmo a bandeja de sanduíches que o Dr. Grant se servia era digna de se admirar. Sem refletir sobre o caso, inconscientemente, Edmund começava, no fim de uma semana de tais relações, a apaixonar-se seriamente; e para crédito da moça pode-se acrescentar que, embora ele não fosse um homem sociável nem filho primogênito, sem qualquer artifício de galanteria ou pequenas palavras de lisonja, ele começou a se lhe tornar agradável. Ela tinha consciência do que sentia, embora não o tivesse pressentido e dificilmente o compreendesse; pois ele não era o que se diz um homem jovial; não conversava tolices; não fazia elogios; suas opiniões eram inflexíveis e suas atenções para com elas eram tranqüilas e simples. Havia, talvez, um encanto na sua lealdade, sua firmeza, sua integridade, – encanto que Miss Crawford sentia mas não queria se dar ao trabalho de discutir consigo mesma; ele lhe agradava, no momento; gostava de tê-lo ao seu lado; era o bastante.
Fanny não se admirava de que Edmund fosse ao Presbitério todos os dias; ela própria gostaria de ir, caso o pudesse fazer sem convite, desapercebida, para ouvir a harpa; nem tampouco se admirava de que à noite, quando as duas famílias se separavam, ele se sentisse na obrigação de acompanhar Mrs. Grant e a irmã até em casa, enquanto Mr. Crawford se dedicava à senhoras do Park; mas não gostava da troca; e se Edmund não estava presente para lhe misturar a água e o vinho preferia não beber. Sentia-se um pouco surpreendida ao vê-lo poder passar tantas horas com Miss Crawford e não mais enxergar os defeitos que já lhe observara, dos quais quase sempre se recordava, quando estava na companhia da outra. Edmund gostava de falar com Fanny sobre Miss Crawford e parecia achar suficiente que o Almirante desde então tivesse sido poupado; e ela tinha escrúpulo de lhe expor as suas observações, com receio de que parecesse maldade. O primeiro sofrimento de fato que Miss Crawford lhe causou, foi motivado pela vontade que tinha de aprender a montar, vontade essa que demonstrou logo depois de chegar a Mansfield, ao ver o exemplo das moças do Park; quando as suas relações com Edmund se estreitaram, ele naturalmente instigou esse desejo e ofereceu para as suas primeiras tentativas, a sua própria égua, por ser o animal mais adequado que qualquer das duas estrebarias poderia fornecer ao uso de uma principiante. Com tal oferecimento, porém, ele não tivera a intenção de causar à prima nenhum sofrimento ou injúria; ela não perderia um só dia de exercício por causa disso. A égua apenas seria levada para o Presbitério meia hora antes de começarem os passeios dela. E Fanny, ao lhe ser feita a proposta, em vez de se sentir diminuída, antes ficou cheia de gratidão porque ele lhe pedia aquele favor.
O primeiro ensaio de Miss Crawford foi feito com grande mérito para ela própria e nenhum inconveniente para Fanny. Edmund, que levara a égua e presidira a experiência, voltou com o animal em tempo excelente, antes mesmo de Fanny e do velho cocheiro, que sempre a acompanhava quando não saía com as primas, estarem prontos para partir. O segundo ensaio já não foi tão isento de culpa. O prazer de Miss Crawford em montar era tal, que ela não se resolvia a descer do cavalo. Viva, corajosa e fortemente constituída, embora de pequena estatura, ela parecia ter nascido para amazona; e além do próprio prazer pelo exercício, as instruções que provavelmente Edmund lhe tinha de dar e a convicção de estar ultrapassando em progresso o seu sexo em geral, faziam-na pouco disposta a desmontar. Fanny estava pronta esperando; Mrs. Norris já começava a repreendê-la por não ter ainda saído, e, no entanto o cavalo não vinha nem Edmund aparecia. Saiu para evitar a tia e ao mesmo tempo procurá-lo.
As duas casas, embora estivessem a menos de um quilômetro de distância, não ficavam à vista uma da outra; mas caminhando cinqüenta metros da porta de entrada, ela poderia olhar através do parque e avistar o Presbitério e todos os seus domínios, erguendo-se suavemente além da estrada da vila; e nos prados do Dr. Grant ela imediatamente destacou o grupo formado por Edmund e Miss Crawford e dois ou três palafreneiros. Um grupo feliz, assim lhe pareceu, todos interessados num único objeto; muito alegre sem dúvida, pois o som das risadas chegava até ela. Um som que não a fez alegre; admirou-se que Edmund a tivesse esquecido e sentiu como que uma agonia. Não podia desviar os olhos do prado; não podia evitar olhar tudo o que se passava. A princípio Miss Crawford e seu companheiro fizeram a passo a volta do campo, que não era pequeno; em seguida, aparentemente por sugestão dela, começaram a galopar; e para a natureza tímida de Fanny foi uma admiração ver quão bem ela montava. Depois de poucos minutos pararam inteiramente. Edmund estava perto da outra; falava-lhe evidentemente ensinando o manejo das rédeas; segurava-lhe as mãos; ela viu, ou a sua imaginação supriu o que a vista não podia alcançar. Não devia se admirar de tudo aquilo; que coisa mais natural do que Edmund fazer-se útil e provar sua bondade a qualquer pessoa? Na verdade, porém, não podia deixar de pensar que Mr. Crawford poderia muito bem lhe ter poupado o trabalho; que seria muito mais justo e conveniente que o próprio irmão o tivesse feito; mas Mr. Crawford, com toda a sua apregoada bondade e toda a sua destreza, provavelmente não entendia nada do assunto e não tinha a boa vontade de Edmund. Pensou que era um sacrifício imposto à égua fazê-la trabalhar dobrado; já que se esqueciam dela própria, ao menos que se lembrasse da égua.
Suas mágoas por uma e por outra em breve se tranqüilizaram um pouco, ao ver o grupo no prado dispersar-se e Miss Crawford, ainda a cavalo mas auxiliada por Edmund, a pé, atravessar o portão e entrar no parque, indo em direção ao lugar onde ela se achava. Começou, então, a recear que a achassem grosseira e impaciente; e caminhou ao encontro deles com grande ânsia de evitar suspeita.
– Minha cara Miss Price – disse Miss Crawford logo que se aproximou, – vim trazer-lhe minhas desculpas por tê-la feito esperar; mas não tenho nada a dizer em minha defesa. Sabia que era muito tarde e que eu me estava portanto extremamente mal; mas, assim mesmo, peço-lhe que me perdoe. O egoísmo deve sempre ser perdoado, porque, como sabe, não dá esperança de cura.
Fanny respondeu delicadamente e Edmund acrescentou estar certo de que ela não tinha pressa.
– Pois há tempo mais que suficiente para minha prima andar o dobro do que costuma – disse ele –, e a senhorita até lhe proporcionou um bem, evitando que saísse meia hora mais cedo; as nuvens agora estão altas e ela não mais sofrerá com o calor. Espero que não esteja fatigada com tanto exercício. Desejaria que se tivesse poupado de voltar para a casa a pé.
– Nada me fadiga mais do que ter de descer deste cavalo, posso lhe assegurar – disse ela quando descia auxiliada por ele. – Sou muito forte. Nunca me canso a não ser quando tenho de fazer o que não gosto. Miss Price entrego-lhe o cavalo de muito má vontade; mas sinceramente lhe desejo um esplêndido passeio, e para este adorável e belo animal, não tenho senão louvores.
O velho cocheiro, que esperava com seu próprio cavalo, aproximou-se, ajudou Fanny a montar e em seguida partiram em direção ao outro lado do parque; a sensação de desconforto da moça não diminuiu ao ver, quando se virou para trás, que os outros caminhavam juntos em direção à vila; nem tampouco lhe fizeram bem os comentários do seu acompanhante sobre as habilidades de Miss Crawford, a quem estivera observando com interesse quase semelhante ao seu próprio.
– É um prazer ver uma senhora com tão boa disposição para montar! – disse ele. – Nunca vi ninguém que montasse melhor. Parecia não ter o menor medo. Muito diferente da senhora quando começou, há seis anos passados, – vai fazer agora na Páscoa. Deus a abençoe! Como a senhora tremia quando Sir Thomas a pôs sobre o cavalo!
Na sala de visitas, Miss Crawford também foi celebrada. O seu mérito pelo vigor e pela coragem com que a dotara a Natureza, foi amplamente apreciado pelas Misses Bertram; o prazer que mostrava ao montar era semelhante ao delas; sua perfeição igual à delas e por isso tinham prazer em louvá-la.
– Tinha certeza de que ela montaria bem – disse Julia; – tem envergadura para isso. O seu porte é tão elegante quanto o do irmão.
– Sim – acrescentou Maria –, e tem a mesma disposição e a mesma personalidade que ele. Acho que uma boa equitação tem grande influência sobre o caráter.
Quando se despediram à noite, Edmund perguntou a Fanny se tencionava montar no dia seguinte.
– Não sei, isto é, se você não precisar da égua – respondeu.
– Não preciso dela para mim mesmo – disse ele; – mas qualquer dia em que você prefira ficar em casa, creio que Miss Crawford gostaria de ficar com ela mais tempo – em resumo, durante toda a manhã. Ela tem grande desejo de ir até a charneca de Mansfield; Mrs. Grant esteve falando sobre a beleza do lugar e eu não tenho dúvida de que ela agüentará perfeitamente. Mas pode-se ir qualquer dia. Ela de forma alguma desejaria prejudicar você. E não seria direito que o fizesse. Monta apenas por prazer, enquanto você necessita montar por causa da saúde.
– Amanhã, certamente, não sairei, – disse Fanny: tenho saído muito ultimamente e preferia ficar em casa. Agora estou bastante forte e posso andar muito bem.
Edmund mostrou-se contente, o que deveria agradar Fanny, e o passeio à charneca de Mansfield se realizou no dia seguinte; o grupo incluiu todo o pessoal jovem, com exceção dela própria, e muito se divertiu, não só durante o passeio como à noite, quando discutiram os acontecimentos. O sucesso de um plano como esse, geralmente trás a idéia de formar outro; e o fato de haverem ido à charneca de Mansfield deu-lhes vontade de ir a qualquer outra parte no dia seguinte. Havia muitas outras vistas para serem mostradas; e embora o tempo estivesse quente, havia sempre caminhos sombrios para qualquer lugar que desejassem ir. Quatro manhãs foram assim sucessivamente passadas, a mostrarem aos Crawfords a região e seus pontos mais bonitos. Tudo correspondeu à expectativa; estavam todos alegres, de bom humor e a própria inconveniência causada pelo calor era comentada com prazer – até o quarto dia, quando a felicidade de um dos membros do grupo ficou excessivamente nublada. Essa pessoa foi Miss Bertram. Edmund e Julia foram convidados para jantar no presbitério e ela fora excluída. O plano foi idealizado e executado por Miss Grant, na melhor das intenções, pensando em Mr. Rushworth , que era esperado aquele dia no Park; mas a moça o sentiu como uma grave ofensa e somente a sua boa educação fez com que ela disfarçasse o vexame e a raiva, até chegar em casa. Como Mr. Rushworth não veio afinal, a ofensa se tornou maior, não podendo ela descarregar sobre ele; ficou de um mau humor com a mãe, a tia e a prima e fez com que o jantar fosse tão sombrio quanto possível.
Entre dez e onze horas Edmund e Julia entraram na sala de visitas, refrescados pela brisa da noite, animados e alegres, o perfeito contraste do que encontraram nas três senhoras que lá se achavam, pois Maria nem sequer levantou os olhos do livro e Lady Bertram dormitava; e mesmo Mrs. Norris desconcertada com o mau humor da sobrinha e tendo feito uma ou duas perguntas sobre o jantar, que não foram imediatamente respondidas, parecia disposta a não dizer mais nada. Durante os primeiros minutos os dois irmãos não pensaram senão em avidamente relatar os acontecimentos da noite e falar das estrelas; mas na primeira pausa, Edmund, olhando em redor, disse:
– Mas onde está Fanny? Já foi dormir?
– Não, não que eu saiba – respondeu Mrs. Norris; – ela estava aqui há um momento.
A voz suave da moça vinda do outro lado da sala, que era muito grande, mostrou-lhes que ela estava sentada no sofá. Mrs. Norris começou a ralhar.
– Isto é muito bonito, Fanny, ficar toda a noite sem fazer nada recostada num sofá? Não podia sentar-se aqui e fazer alguma coisa como nós fazemos? Se não tem trabalho seu, posso lhe dar um agora mesmo. Todo o morim que foi comprado a semana passada ainda está intacto. Fiquei com as costas doendo de tanto cortar. Você deve aprender a pensar nos outros; e fique certa que é a coisa mais vergonhosa do mundo uma pessoa jovem estar sempre se espreguiçando num sofá.
Antes da metade disso ter sido dita, Fanny já estava de volta ao seu lugar na mesa e retomara o trabalho; e Julia, que estava de muito bom humor devido aos prazeres do dia, fez-lhe a justiça de exclamar.
– Pois devo dizer, minha tia, que Fanny é, nesta casa, a pessoa que menos procura um sofá.
– Fanny, – disse Edmund, depois de observá-la atentamente – aposto que você está com dor de cabeça.
Ela não pôde negar, mas afirmou que não era muito forte.
– Estou quase não acreditando – respondeu ele; – conheço você muito bem. Há quanto tempo está assim?
– Desde um pouco antes do jantar. É apenas por causa do calor.
– Você saiu e apanhou muito sol?
– Saiu! Por certo que saiu, disse Mrs. Norris: queria que ela ficasse em casa com um dia lindo como este? Todos nós saímos. Até sua mãe esteve lá fora por mais de uma hora.
– Sim, é verdade, Edmund, – acrescentou Lady Bertram, que despertara inteiramente com a acerba repreensão de Mrs. Norris; – estive fora durante uma hora. Estive sentada três quartos de hora no jardim, enquanto Fanny cortava as rosas; estava muito agradável, mas muito quente. Dentro de casa estava bastante fresco, mas confesso que não tive coragem de entrar.
– E Fanny esteve cortando rosas, não é?
– Sim, e receio que sejam as últimas deste ano. Pobrezinha! Ela sentiu bastante o calor; mas as rosas já estavam tão abertas que não podiam esperar.
– Não havia outra coisa a fazer, com efeito, – ajuntou Mrs. Norris, numa voz mais branda; – mas pergunto se a dor de cabeça dela não teria vindo disso, minha irmã. Não há coisa mais provável para uma dor de cabeça do que levantar e abaixar-se todo o tempo debaixo do sol; acredito porém que amanhã Fanny estará boa. E se você lhe desse o seu vinagre aromático? Eu sempre me esqueço do meu.
– Já o dei, – disse Lady Bertram; – está com ela desde que veio a segunda vez de sua casa.
– Que! – exclamou Edmund; – além de cortar rosas ainda esteve andando, caminhando todo o parque até a sua casa e por duas vezes, minha tia! Não admira que esteja com a cabeça doendo.
Mrs. Norris estava conversando com Julia e não o ouviu.
– Tive receio que fosse demais para ela, – disse Lady Bertram; – mas depois de colhidas as rosas, sua tia as quis e então, você sabe, elas tinham de ser levadas para a casa dela.
– Mas as rosas eram tantas que a obrigaram a ir duas vezes?
– Não, mas deviam ser postas no quarto vago para secar; e, infelizmente, Fanny esqueceu de fechar a porta do quarto e trazer a chave de volta, por isso foi obrigada a voltar.
Edmund levantou-se e caminhou pela sala, dizendo:
– E não podiam encontrar ninguém para fazer isso senão Fanny? Pois isso foi muito mal feito.
– Não vejo de que outra maneira seria melhor, – gritou Mrs. Norris, não podendo mais se fazer de surda; – a não ser que eu mesma fosse, na verdade, mas eu não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo; e naquela mesma hora eu estava falando a Mr. Green a mando de sua mãe sobre a leiteira, e tinha prometido a John Groon escrever a Mrs. Jefferies sobre o filho dele, e o pobre homem já estava me esperando há meia hora. Creio que ninguém pode me acusar de me poupar em qualquer ocasião, mas não posso, porém, fazer tudo ao mesmo tempo. E quanto ao fato de Fanny ter ido duas vezes á minha casa para mim – a distância não chega nem a meio quilômetro – não vejo que eu tenha me excedido em pedir isso. Quantas vezes eu faço essa caminhada, três vezes por dia, de manhã à noite, sim, e com qualquer tempo, e nunca digo nada?
– Desejava que Fanny tivesse metade de sua saúde, minha tia.
– Se Fanny fizesse exercícios mais regularmente, não se cansaria tão depressa. Ela não tem saído a cavalo não sei quanto tempo, e eu pensei que, já que não tem montado, deveria ao menos andar. Se tivesse montado antes, eu não lhe pediria isso. Mas achei que era até bom para ela, caminhar depois de estar abaixada no meio das rosas; pois não há nada tão refrescante quanto uma caminhada depois de uma fadiga dessa espécie; e embora o sol fosse forte, não estava muito quente. Aqui entre nós, Edmund, – piscando significativamente para a mãe dele – o que lhe causou o mal foi estar cortando as rosas e vadiando pelo jardim.
– Creio mesmo que tenha sido, – disse candidamente Lady Bertram que a ouvira por acaso. – Receio muito que tenha sido nessa ocasião, pois o calor era suficiente para matar qualquer um. Eu mesma quase não o podia suportar. Sentada como eu estava, só o ter que chamar o cãozinho, e fazer com que ele saísse de cima dos canteiros, foi trabalho demais para mim.
Edmund não disse mais nada. Dirigindo-se tranqüilamente para outra mesa, sobre a qual se achavam ainda os restos da ceia, trouxe um copo de Madeira para Fanny e obrigou-a a beber a maior parte. Ela desejava poder recusá-lo; mas com as lágrimas, que uma infinidade de emoções lhe trouxera, era mais fácil engolir do que falar.
Envergonhado quanto ao procedimento da mãe e da tia, Edmund estava mais aborrecido consigo mesmo. O seu próprio esquecimento era pior do que qualquer coisa que elas pudessem ter feito. Nada disso teria acontecido se ela não tivesse sido esquecida; no entanto tinha ficado quatro dias sem outra companhia e exercício e sem pretexto para se esquivar de fazer qualquer coisa que as tias injustamente a obrigassem. Envergonhava-se ao pensar que, durante quatro dias Fanny tinha sido privada de montar, e seriamente resolveu que, por muito que lhe custasse desagradar Miss Crawford, aquilo nunca mais aconteceria.
Fanny foi dormir com o coração tão apertado como na noite de sua chegada ao Park. O seu estado de espírito provavelmente tinha contribuído para sua indisposição; pois ela vinha se sentindo esquecida e vinha lutando contra o descontentamento e a inveja há alguns dias já. Quando se recostara no sofá, para onde se tinha refugiado a fim de não ser vista, o sofrimento de sua alma era maior do que a dor que tinha na cabeça; e a súbita mudança causada pela bondade de Edmund deixou-a em estado de não saber como se sustentar em pé.
Os passeios de Fanny recomeçaram no dia seguinte; e como a manhã estava agradavelmente fresca, menos quentes do que nos últimos dias, Edmund acreditou que os danos causados tanto na sua saúde quanto no seu espírito em breve estariam sanados. Enquanto ela estava ausente, Mr. Rushworth chegou acompanhado da mãe, que para se fazer agradável e mostrar a sua amabilidade, insistiu na execução do plano de visitar Sotherton, feito há quinze dias passados, e que, em conseqüência da sua subseqüente ausência de casa, ainda não fora realizado. Mrs. Norris e suas sobrinhas ficaram muito contentes com o restabelecimento do projeto; mencionou-se um dia próximo com o qual todos concordaram, se Mr. Crawford não tivesse outro compromisso; as moças não se esqueceram de estipular aquela condição e embora Mrs. Norris tivesse vontade de responder por ele, elas não admitiriam tal liberdade nem lhe correriam o risco; e finalmente, por sugestão de Miss Bertram, Mr. Rushworth descobriu que o melhor expediente era ir ele próprio diretamente ao Presbitério procurar Mr. Crawford e saber se a quarta feira lhe era ou não conveniente.
Antes que ele voltasse, Mrs. Grant e Miss Crawford entraram. Tendo estado fora por algum tempo e tendo tomado caminho diferente, elas não o haviam encontrado. Afirmaram, porém, que Mr. Crawford seria achado em casa. O projeto de ir a Sotherton foi naturalmente mencionado. Era impossível, mesmo, que se falasse noutra coisa, pois Mrs. Norris estava muito entusiasmada com a idéia; e Mrs. Rushworth, mulher bem intencionada e amável, porém vaidosa e frívola, que não dava importância senão ao que se relacionava com os seus próprios e os interesses do filho, ainda não desistira de insistir com Lady Bertram para que fizesse parte do grupo. Lady Bertram desculpava-se; mas a sua maneira plácida de recusar dava ainda a Mrs. Rushworth a impressão de que ela desejava ir, até que Mrs. Norris, com mais facilidade de exprimir-se, a convenceu da verdade.
– O cansaço seria demasiado para minha irmã, demasiado, posso lhe afirmar, minha cara Mrs. Rushworth. São dezesseis quilômetros para ir e dezesseis quilômetros para voltar, como a senhora já sabe. Deve desculpar minha irmã por esta vez e aceitar as nossas queridas meninas e eu mesma sem ela. Sotherton é o único onde ela desejaria ir se pudesse, mas de fato é impossível. Ficará acompanhada de Fanny Price, e assim está tudo muito bem; e quanto a Edmund, como não está presente, posso responder por ele e afirmar que terá muito prazer em nos acompanhar. Poderá ir a cavalo.
Obrigada a se conformar com que Lady Bertram ficasse em casa, Mrs. Rushworth não pôde senão expressar seus sentimentos: A falta de sua senhoria era uma grande decepção e ela teria imenso prazer em receber também Miss Price, que nunca fora antes a Sotherton! Era uma pena que não conhecesse o lugar.
– É muito amável, muito boa, minha prezada senhora, – exclamou Mrs. Norris; – mas Fanny terá muitas oportunidades de ver Sotherton. Ainda tem muito tempo para isso; e a ida dela agora é inteiramente fora de questão. Lady Bertram não a poderia dispensar.
– Oh não! Não poderia dispensar Fanny.
Mrs. Rushworth prosseguiu em seguida, na convicção de que todos queriam ver Sotherton, por incluir Miss Crawford no convite; e embora Mrs. Grant, que nunca se dera ao trabalho de visitar Mrs. Rushworth desde que viera para a vizinhança, delicadamente recusasse o convite para si própria, tinha muito prazer em que a irmã se divertisse; e Mary, suficientemente instada e persuadida, não custou muito a aceitar o seu quinhão na amabilidade. Mr. Rushworth voltou do Presbitério satisfeito; e Edmund apareceu justamente em tempo de ouvir o que havia sido combinado para quarta feira, acompanhar Mrs. Rushworth até a carruagem e caminhar até metade do caminho com as outras duas senhoras.
Ao voltar para a sala de almoço, encontrou Mrs. Norris a discutir consigo mesma se seria ou não desejável a companhia de Miss Crawford, ou se o carro do irmão teria lugar para ela. As Misses Bertram riram-se da idéia, assegurando que “o carro daria perfeitamente para quatro pessoas, independente da boléia, onde ‘alguém’ poderia ir com ele”.
– Mas é necessário – disse Edmund, – que o carro de Crawford, e só o carro dele, seja usado? Por que não se vai no carro de minha mãe? No outro dia quando se planejou o passeio, não pude compreender porque uma visita da família não seria feita na carruagem da família.
– Que! – exclamou Julia – irem três atafulhadas numa cadeirinha com um tempo destes, quando se tem um carro com lugares suficientes! Não, meu querido Edmund, isto não serve.
– Além disso, – disse Maria – eu sei que Mr. Crawford faz questão de nos levar.
– E depois, querido Edmund, – acrescentou Mrs. Norris – levar duas carruagens quando uma só é suficiente, é ter trabalho sem necessidade; e aqui entre nós, o cocheiro não gostará muito de andar por essas estradas daqui até Sotherton; ele sempre reclama amargamente que os caminhos estreitos arranham o carro; e você sabe que ninguém gostaria que o caro Sir Thomas, ao voltar, encontrasse o verniz do carro todo arranhado.
– Não seria esta uma razão muito forte para se usar o carro de Mr. Crawford, – disse Maria – mas a verdade é que Wilcox é um velho estúpido e não sabe guiar. Posso garantir que não havemos de encontrar inconveniências por causa de estradas apertadas na quarta feira.
– Não há incômodo, suponho, nada desagradável em ir na boléia do carro, não é? – disse Edmund.
– Desagradável! – exclamou Maria; – ora essa! Creio até que é o melhor lugar. A vista que dali se trem da região nem se compara. Provavelmente a própria Miss Crawford preferirá ir na boléia.
– Não há então motivo para que Fanny não vá também; não há dúvida quanto a lugar para ela.
– Fanny! – repetiu Mrs. Norris; – Edmund, meu caro, não se cogita em levá-la. Ela ficará com sua mãe. Disse isso a Mrs. Rushworth. Ela não está sendo esperada.
– A senhora não pode ter motivo para desejar que Fanny não faça parte do grupo, – disse ele dirigindo-se à mãe – a não ser que isso traga inconveniência para o seu próprio conforto. Se a pudesse dispensar, creio que não a prenderia em casa, não?
– Decerto que não, mas não posso passar sem ela.
– Pode sim, se eu ficar em casa com a senhora, como pretendo.
Houve um protesto geral.
– Sim, – continuou ele – eu não tenho necessidade de ir e minha intenção é ficar em casa. Fanny tem muita vontade de conhecer Sotherton. Sei que ela deseja muito ir. Não é sempre que ela pode ter um divertimento e estou certo de que a senhora não a privará deste prazer, não é?
– Oh não! Terei muito gosto, se sua tia não fizer objeção.
Mrs. Norris imediatamente apresentou a única objeção que ainda havia – o fato de haverem afirmado a Mrs. Rushworth que Fanny não poderia ir. Ficaria estranho que ela agora aparecesse lá, o que lhe parecia uma dificuldade inteiramente impossível de ser transposta. Ia parecer muito esquisito! Era uma coisa tão sem cerimônia, de tanto desrespeito a Mrs. Rushworth, cujas maneiras tinham um cunho da melhor educação e polidez, que por força ela não aprovaria. Mrs. Norris não tinha afeição a Fanny e não lhe desejava proporcionar qualquer prazer; mas a sua oposição a Edmund no momento, nasceu mais da parcialidade pelo seu próprio plano, pois que era dela, do que de qualquer outra coisa. Tinha arranjado tudo tão bem, que qualquer alteração só poderia ser para pior. Quando, portanto, logo que ela deu uma folga, Edmund respondeu que por causa de Mrs. Rushworth ela não precisava preocupar-se, pois que ao acompanhá-la até a entrada aproveitara a oportunidade de mencionar Miss Price como uma das que provavelmente fariam parte do grupo e recebera diretamente um convite para a prima. Mrs. Norris, que estava contrariada demais para se resignar de boa vontade, disse apenas:
– Está bem, está bem, como quiser, faça como achar melhor, para mim tanto faz.
– Vai parecer muito estranho, – disse Maria – que você fique em casa em vez de Fanny.
– Ela deve ficar muito agradecida a você, – acrescentou Julia, saindo apressadamente da sala, com receio que alguém se lembrasse de que deveria se oferecer para ficar em casa.
– Fanny saberá ser tão grata quanto a ocasião merece – foi a única resposta de Edmund e o assunto terminou.
A gratidão de Fanny ao saber do novo plano foi de fato muito maior do que seu prazer. Agradeceu a bondade de Edmund com uma sensibilidade de que ele, sem suspeitar do seu grande afeto, nunca poderia fazer idéia; que se privasse de um divertimento por causa dela causava-lhe pena e a sua própria satisfação em visitar Sotherton era incompleta sem a companhia dele.
A próxima reunião das duas famílias de Mansfield resultou em outra alteração do projeto, a qual teve aprovação geral. Mrs. Grant ofereceu-se para acompanhar Lady Bertram em lugar do filho e o Dr. Grant viria mais tarde para o jantar. Lady Bertram ficou satisfeita e novamente as moças se alegraram. Até mesmo Edmund ficou muito grato pelo arranjo que lhe facultava a possibilidade de fazer parte do grupo; Mrs. Norris achou o plano excelente e já o tinha na ponta da língua, pronta para o propor, quando Mrs. Grant expôs a idéia.
Na quarta feira o dia amanheceu lindo e logo depois do almoço Mr. Crawford chegou de carro, conduzindo as duas irmãs; e como todos estavam prontos, não havia mais nada a fazer senão Mrs. Grant descer e os outros tomarem seus lugares. O lugar dos lugares, o assento invejado, o posto de honra, estava desocupado. A que feliz mortal seria ele destinado? Enquanto cada uma das senhoritas Bertram meditava na melhor maneira de o conseguir, dando aos outros a aparência de os estar obsequiando, o caso foi solucionado por Mrs. Grant que ao descer disse:
– Como vocês são cinco, é melhor que uma pessoa vá ao lado de Henry; e como você disse outro dia que desejaria guiar, Julia, creio que esta é uma boa oportunidade de tomar umas lições.
Feliz Julia! Infeliz Maria! A primeira não perdeu tempo em pular para a boléia, a última sentou-se dentro, sombria, aborrecida; a carruagem deu saída no meio das exclamações de boa viagem das duas senhoras que ficavam e dos latidos do “pug” no colo de sua dona.
A estrada atravessava uma região belíssima; e Fanny, cujos passeios nunca tinham sido muito longos, em breve começou a encontrar coisas desconhecidas e se sentiu em observar tudo que era novo e admirar tudo que era bonito. Não era freqüentemente chamada a tomar parte na conversa das outras e nem o desejava. Seus próprios pensamentos e reflexões eram habitualmente seus melhores companheiros; e ao observar o aspecto da região, a direção das estradas, a diferença de solo, o estado da colheita, as cabanas, o gado, as crianças, encontrava distração que somente seria maior se pudesse trocar idéias com Edmund sobre o que sentia. Este era o único ponto em que ela se assemelhava à moça que tinha a seu lado; em tudo, menos no interesse por Edmund, Miss Crawford era muito diferente de Fanny. Não tinha nenhuma das delicadezas de gosto, espírito e sentimento que tinha Fanny; via a natureza, a natureza inanimada, sem a observar; sua atenção se voltava toda para a humanidade, sua inteligência para a frivolidade e o gracejo. Entretanto, ao se voltarem à procura de Edmund, quando atrás dela aparecia uma nesga de estrada ou que ele as passava atalhando o caminho por cima da colina, uniam-se, e um “lá está ele” mais de uma vez saiu de seus lábios ao mesmo tempo.
Durante os primeiros dez quilômetros Maria não se sentiu muito consolada; sua vista alcançava sempre Mr. Crawford e Julia sentados lado a lado, cheios de contentamento e alegria; e só o ver a expressão do perfil dele, cada vez que se virava sorrindo para Julia, ou surpreender a risada da outra, era uma fonte de irritação perpétua, que apenas o seu senso de decoro conseguia disfarçar. Julia se virava para trás com a fisionomia transbordando de felicidade e cada vez que falava com elas era com a maior animação: “a paisagem era encantadora, só queria que elas pudessem ver”, etc; mas o seu único oferecimento para trocar de lugar foi dirigido a Miss Crawford, quando atingiram o ponto mais alto de uma colina e assim mesmo resumiu-se a isto:
– Daqui se tem uma linda vista da região. Desejaria que você estivesse no meu lugar; aposto que não quer trocar, mas eu faço questão; e mal Miss Crawford teve tempo de responder, o carro se pôs em movimento a trote largo.
Quando entraram nos domínios de Sotherton, as coisas melhoraram para Miss Bertram. Ela tinha sentimentos por Rushworth e ao mesmo tempo por Crawford, mas nas proximidades do Sotherton os primeiros tomavam aspecto considerável. A importância de Rushworth refletia-se nela. Não podia dizer a Miss Crawford que “aqueles bosques pertenciam a Sotherton”, nem observar descuidadamente que “supunha todos aqueles campos de um e outro lado da estrada pertencem a Mr. Rushworth”, sem sentir o coração cheio de orgulho; e era um prazer que aumentava com a aproximação da famosa mansão, a antiga residência senhorial da família.
– Agora não teremos mais estradas ruins, Miss Crawford; estamos salvas. O resto do caminho é ótimo. A primeira coisa que Mr. Rushworth fez ao tomar posse da propriedade foi consertar a estrada. Aqui começa a vila. Aquelas cabanas são realmente uma lástima. A torre da igreja é tida como uma das mais belas. E é bom que a igreja não esteja tão perto da casa grande como geralmente acontece nesses lugares antigos. O barulho dos sinos deve ser terrível. Lá está o Presbitério; é uma casa de aparência asseada e creio que o pastor e a mulher são gente muito decente. Aquele é o hospício, que foi construído por alguém da família. À direita fica a casa do mordomo; é um homem muito respeitável. Agora estamos chegando ao portão; mas ainda temos um quilômetro e meio dentro do parque. Daqui, como vê, não feio; tem algumas árvores muito bonitas, mas a situação da casa não poderia ser pior. Teremos que descer quase um quilômetro até chegar lá e é uma pena, porque o lugar não seria feio se tivesse melhor situação.
Miss Crawford prontamente se pôs a admirar; compreendeu imediatamente o que se passava com Miss Bertram e fez questão de que o contentamento dela fosse o maior possível. Mrs. Norris não cabia em si de contente; e até Fanny teve alguma coisa a dizer para expressar sua admiração e foi ouvida com complacência. Observava com grande interesse tudo que lhe estivesse ao alcance da vista; e depois que a muito custo conseguiu avistar a casa e observou ser uma casa para a qual não se podia olhar senão com respeito, acrescentou:
– Bem, e onde é a alameda? A casa está de frente para leste, como percebo. A alameda, portanto, deve estar atrás dela. Mr. Rushworth disse que ficava a oeste.
– Sim, é exatamente atrás da casa; começa a pequena distância e sobe um quilômetro até a extremidade do terreno. Daqui se pode ver uma parte dela – as árvores mais distantes. É toda de carvalhos.
Agora Miss Bertram podia falar com perfeito conhecimento das coisas que se mostrara ignorante quando Mr. Rushworth lhe havia pedido a opinião; e seu espírito se agitava numa onda de felicidade que somente a vaidade e o orgulho poderiam dar, quando chegaram aos espaçosos degraus de pedra em frente à porta principal.
Mr. Rushworth estava na porta aguardando a chegada de sua linda noiva; e todo o grupo foi recebido por ele com a devida cortesia. Na sala, esperava-os sua mãe, com igual cordialidade, e Miss Bertram tratou a todos com toda a distinção que se poderia desejar. Terminadas as formalidades da chegada, era preciso comer e as portas foram abertas para que passassem através de uma ou duas salas intermediárias para a sala de jantar onde estava preparada com elegância uma abundante refeição. Houve muito que dizer, muito que comer e tudo correu bem. O principal objetivo do dia foi então considerado. Como Mr. Crawford preferia, de que maneira acharia melhor fazer um exame do terreno? Mr. Rushworth ofereceu um carro, Mr. Crawford sugeriu que uma carruagem que levasse mais de duas pessoas seria mais aconselhável. – Privarem-se da vantagem que ofereciam outras vistas e outros julgamentos seria uma lástima, isso além de perderem o prazer da companhia.
Mr. Rushworth propôs que levassem duas carruagens; mas essa idéia não foi recebida com muito entusiasmo: as moças nem sorriram nem fizeram comentário. A sua proposta seguinte, a de mostrar as casa àquelas que ainda não a conheciam, teve melhor aceitação, pois Miss Bertram tinha prazer em que os outros vissem a sua grandeza e todos ficaram contentes de fazer alguma coisa.
Em conseqüência, levantaram-se todos e, sob a direção de Mrs. Rushworth, atravessaram várias salas, formidáveis, espaçosas e amplamente mobiliadas no estilo de há cinqüenta anos atrás, com lustrosos assoalhos e sólidas madeiras, ricos damascos, mármores, dourados e esculturas, cada um mais lindo. De pinturas havia abundância e algumas boas, mas a maior parte eram retratos da família, pessoas que não tinham mais nenhum laço de parentesco senão com Mrs. Rushworth, que nada delas sabia senão o que a custo aprendera com a governanta, – pessoa que se mostrava igualmente interessada em mostrar a casa. Naquele momento ela se dirigia principalmente a Miss Crawford e Fanny; mas não se podia comparar a atenção com que cada uma a ouvia; pois Miss Crawford, que já tinha visto milhares de casas nobres e nunca se interessara por nenhuma, tinha a aparência de quem ouvia apenas por delicadeza, enquanto que Fanny, para quem tudo era novo escutava com o maior interesse tudo que Mrs. Rushworth relatava sobre a família no passado, sua origem e grandeza, as visitas reais e lutas leais, encantada de ligar os feitos à história e aquecer a sua imaginação com cenas do passado.
A situação da casa não permitia que das salas se visse a paisagem; e enquanto Fanny e alguns dos outros seguiam Mrs. Rushworth, Henry Crawford permanecia muito sério, sacudindo a cabeça em reprovação às janelas. Todos os compartimentos do lado do oeste davam para um pátio, de onde se avistava o começo de uma alameda logo depois de uma alta cerca e do portão de ferro.
Depois de visitarem mais salas do que se poderia supor de utilidade senão para a contribuição da “taxa das janelas” ou para dar serviço às camareiras, Mrs, Rushworth disse:
– Agora vamos para a capela, na qual por direito deveríamos entrar por cima e olhar de lá; mas como estamos entre amigos, vou levá-los por este caminho, se não se importam.
Entraram. A imaginação de Fanny tinha-a preparado para encontrar uma coisa mais imponente do que aquela sala pouco espaçosa, oblonga, adaptada para a prática de devoção; sem nenhuma coisa de mais notável ou mais solene a não ser a profusão de mognos e as almofadas de veludo carmesim que apareciam sobre a borda da galeria da família.
– Estou desapontada, – disse ela em voz baixa para Edmund. – Esta não é a idéia que eu fazia de uma capela. Não há nada aqui que seja imponente, nada melancólico, nada grandioso. Não vejo alas, nem abobadas, nem inscrições, nem estandartes. Nem estandartes, meu primo, para serem “soprados pelo vento da noite celeste”. Nem sinal de que “um monarca escocês jaz ali”.
– Você se esquece, Fanny, de que tudo isso foi construído muito recentemente e para fim muito limitado, em comparação com as antigas capelas dos castelos e mosteiros. Foi feito para uso da família, apenas. Os mortos estão enterrados, suponho, na igreja da paróquia. Lá é que você deve procurar os estandartes e brasões.
– Foi tolice minha não ter pensado nisso; mas estou desapontada.
Mrs. Rushworth começou a narrativa.
– Esta capela foi arrumada assim com a vêem, no tempo de Jayme II. Antes daquele período, parece-me, os bancos eram apenas de madeira; e supõe-se que as guarnições e almofadas do púlpito e da galeria da família eram somente de púrpura; mas isto é muito certo. É uma bela capela e antigamente era usada sempre, tanto de manhã como à noite. Muitas gerações ouviram as orações que os capelães da casa aqui disseram; mas o falecido Mr. Rushworth deixou-a abandonada.
– Cada geração tem os seus progressos – disse Miss Crawford com um sorriso para Edmund.
Mrs. Rushworth foi repetir a Miss Crawford o que acabara de contar; Edmund, Fanny e Miss Crawford permaneceram juntos.
– É uma pena, – exclamou Fanny – que a prática não tenha continuado. Era uma parte interessante dos tempos antigos. Uma família inteira se reunindo regularmente para rezar é uma coisa linda!
– Muito linda, na verdade, – disse rindo Miss Crawford. – Devia ser muito bom para os chefes das famílias que obrigavam todos os pobres empregados e trabalhadores a deixarem seus trabalhos e prazeres para virem rezar aqui duas vezes por dia, enquanto eles inventavam pretextos para ficar fora.
– Isto não é absolutamente o que Fanny pensou da reunião de uma família, – disse Edmund. – Se o próprio chefe e a dona da casa não tomam parte, há mais mal do que bem na prática de tal costume.
– De qualquer forma, nesses assuntos, é mais seguro deixar que cada um faça como quiser. Ninguém gosta de ser contrariado – que escolham seu próprio tempo e modo de praticar devoção. A obrigação da presença, a formalidade, o constrangimento, o tempo de duração – tudo junto é uma coisa tremenda, e de que ninguém gosta; se a boa gente que costumava ajoelhar-se e bocejar naquela galeria pudesse prever que viria um tempo em que a humanidade podia ficar na cama por mais dez minutos, quando acorda com dor de cabeça, sem o perigo de ser reprovada por ter perdido a oração na capela, haveria de pular de alegria e inveja . Já imaginaram quantas vezes as lindas donas antigas da casa Rushworth se dirigiram de má vontade para esta capela? As jovens senhoras Eleanor e Bridgets – com aparência muito piedosa, mas com as cabeças cheias de coisas muito diferentes – principalmente se o pobre capelão era feio – e, naqueles dias, eu imagino, os pastores eram ainda inferiores ao que são hoje.
Por alguns momentos ninguém respondeu. Fanny corou e olhou para Edmund, mas estava tão zangada que não podia falar; e ele precisou refletir um pouco antes de dizer:
– O seu espírito jovial não é capaz de levar a sério nem mesmo as coisas sérias. A senhorita nos deu um esboço muito divertido e a natureza humana não pode negar ser um pouco assim. Todos nós sentimos, às vezes, dificuldade em fixar nossos pensamentos no que desejamos; mas se está supondo que isto é uma coisa freqüente, isto é, uma fraqueza que se torna hábito por negligência, que se poderia esperar da devoção íntima de tais pessoas? Acha então que a consciência daqueles que sofrem e procuram o consolo numa capela teria maior reconhecimento se estivessem num armário fechado?
– Sim, muito possível. Teria, ao menos, duas probabilidades a seu favor. Haveria menos coisas para distrair sua atenção e a reclusão não duraria tanto tempo.
– A consciência que não luta contra si própria numa destas circunstâncias, encontraria objetos para se distrair em outra, suponho; e a influência do meio e o exemplo podem muitas vezes trazer melhores sentimentos. A duração maior do ofício, entretanto, eu admito ser algumas vezes um esforço grande demais para a consciência. É de desejar que não seja assim; mas eu vim de Oxford há muito pouco tempo para já me ter esquecido do que são as orações numa capela.
Enquanto isto se passava, os outros membros do grupo se espalhavam pela capela. Julia chamou a atenção de Mr. Crawford para a irmã, dizendo:
– Olha Mr. Rushworth e Maria, em pé lado a lado, exatamente como se a cerimônia se fosse realizar. Não acha que estão com ar disso?
Mr. Crawford concordou sorrindo e chegando para perto de Maria, disse numa voz que só ela poderia ouvir:
– Não gosto de ver Miss Bertram tão perto do altar.
Assustada, a moça instintivamente deu um ou dois passos mas recuperando a presença de espírito, fingiu rir-se e perguntou em tom não muito mais alto:
– E se fosse o padrinho?
– Receio que não tivesse muito jeito, – foi a resposta, com um olhar significativo.
Julia chegando-se a eles em seguida, continuou a pilhéria.
– Palavra de honra, é realmente uma pena que a cerimônia não se realize neste momento. Se ao menos tivéssemos a licença! Estamos todos reunidos aqui e nada no mundo poderia ser mais cômodo e agradável. – Ela falou e riu com tão pouca precaução que chamou a atenção de Mr. Rushworth e sua mãe e expôs a irmã aos sussurrados galanteios do noivo, enquanto Mrs. Rushworth com sorrisos e dignidade perfeita dizia que seria um acontecimento muito feliz qualquer tempo que se realizasse.
– Se Edmund já estivesse ordenado! – exclamou Julia correndo para onde ele se achava com Miss Crawford e Fanny – Meu querido Edmund, se você já fosse pastor, agora, poderia realizar a cerimônia! Que felicidade você ainda não ter tomado ordens; Mr. Rushworth e Maria estão prontos.
A fisionomia de Miss Crawford, enquanto Julia falava, podia divertir um observador desinteressado. Ela parecia praticamente consternada com o que ouvia. Fanny teve pena dela.
– Como vai ficar embaraçada com o que disse há pouco! – pensou.
– Tomar ordens! – disse Miss Crawford; – pois que então vai ser pastor?
– Sim, tomarei ordens logo que meu pai voltar; provavelmente no Natal.
Miss Crawford recobrando os sentidos e recompondo a fisionomia, respondeu apenas:
– Se soubesse disso antes, teria falado da sotaina com mais respeito, – e mudou de assunto.
Logo em seguida a capela ficou entregue ao silêncio e à calma que ali reinava, com poucas interrupções, durante todo o ano. Miss Bertram aborrecida com o irmão, abriu caminho e todos pareciam sentir que tinham estado lá por bastante tempo.
A parte térrea da casa estava toda vista e Mrs. Rushworth, firme no seu propósito, teria prosseguido pela escada principal e mostrado todos os quartos de cima, se o filho não se tivesse interposto, dizendo que havia tempo suficiente para isso.
– Pois se levarmos muito tempo dentro da casa, não teremos tempo para o que se tem de fazer do lado de fora. Já passa de duas horas e nós devemos jantar às cinco.
Mrs. Rushworth resignou-se; a questão de estudar o terreno, com os quem e os com estava para agitar-se novamente, e Mrs. Norris já começava a arranjar por que combinações de carruagem e cavalos poderia ser levada a efeito, quando o pessoal jovem, encontrando uma porta de saída, aberta para uma escada que levava diretamente ao meio dos arbustos e relvas em plena doçura do parque de recreio, como por um impulso, um desejo único de ar e liberdade, saiu pela porta a fora.
– Suponhamos que ficássemos aqui um momento, – disse Mrs. Rushworth, delicadamente aceitando a idéia e seguindo-os. – Aqui está a maior parte de nossas plantas e ali os curiosos faisões.
– Eu pergunto, – disse Mr. Crawford, olhando em volta – se não poderemos achar alguma coisa para fazer aqui, enquanto não vamos adiante? Vejo paredes muito promissoras. Mr. Rushworth, devemos reunir o conselho para decidir sobre este pátio?
– James, – disse Mrs. Rushworth ao filho – creio que o bosque é uma novidade para todo o grupo. As senhoritas Bertram nunca o viram.
Nenhuma objeção foi feita, mas por algum tempo ninguém parecia ter inclinação a mudar de plano ou se mover para qualquer outro lugar. Todo estavam interessados pelas plantas e pelos faisões e todos se dispersaram pelo pátio em feliz independência. Mr. Crawford foi o primeiro a mover-se, a fim de examinar as possibilidades daquele lado da casa. O pátio, cercado de cada lado por um alto muro, continha além da primeira área plantada, um gramado e, além deste, um longo terraço, cercado com grades de ferro, por cima da qual se avistavam os cimos das árvores da floresta que ficava logo atrás. Era um bom lugar para se achar defeitos. Mr. Rushworth e Miss Bertram imediatamente seguiram Mr. Crawford; e, logo depois, quando os outros começaram a formar novos grupos, os três foram encontrados por Edmund, Miss Crawford e Fanny em grandes confabulações sobre o terraço, os quais, depois de uma curta participação nos seus pesares e dificuldades, os deixaram para seguir adiante. As três ficaram, mrs. Rushworth, Mrs. Norris e Julia, ainda estavam mais atrasadas; pois Julia, cuja estrela de felicidade já não prevalecia, foi obrigada a conservar-se ao lado de Mrs. Rushworth e constranger seus impacientes pés ao passo vagaroso daquela senhora, enquanto a tia, tendo encontrado a governanta que viera alimentar os faisões, ficou para trás, de conversa com ela. Pobre Julia, a única dentre as nove pessoas que não podia se queixar da sorte, estava agora reduzida a um estado de completa penitência e tão diferente da Julia que viera na boléia do carro como bem se pode imaginar. A polidez que lhe haviam ensinado a praticar como um dever, tornava-lhe impossível um meio de escapar; enquanto que a falta de princípios mais elevados de domínio sobre si mesma, de consideração pelos outros, de conhecimento de seu próprio coração, e a noção de direito, que não haviam parte essencial da sua educação, faziam-na ainda mais desgraçada.
– Está um calor insuportável, – disse Miss Crawford depois de darem uma volta pelo terraço, quando se dirigiam à porta que abria para a floresta. – Algum de nós faz objeção a que procuremos conforto? Ali está um lindo bosquezinho. Se ao menos se pudesse entrar! Que felicidade se a porta não estivesse fechada! Mas naturalmente deve estar; nestas casas nobres os jardineiros são as únicas pessoas que podem ir onde querem.
A porta, porém, não estava fechada e os três alegremente concordaram em passar por ela, deixando para trás a implacável claridade do dia. Uma descida considerável levou-os até a floresta, que era um bosque plantado, cerca de duas geiras de terra, e que, embora constituído na maior parte de lariços, louros e faias cortadas, dispostos com excessiva regularidade, era sombrio, fresco e de uma beleza natural, comparado com o gramado e o terraço. Todos sentiram a sua frescura e durante algum tempo não pensavam senão em andar e admirar. Finalmente depois de uma curta pausa, Miss Crawford começou dizendo: – Então Mr. Bertram, vai mesmo ser pastor? É uma grande surpresa para mim.
– Por que está surpreendida? Deve lembrar-se que eu tenho de ter uma profissão e já há de ter percebido que não sou nem advogado, nem soldado, nem marinheiro.
– É verdade; mas, em resumo, isto não me ocorreu. E como sabe, há geralmente um tio ou um padrinho para deixar a fortuna ao segundo filho.
– Um costume muito louvável, – disse Edmund – mas não universal. Eu sou uma das exceções e assim sendo, tenho que fazer alguma coisa por mim mesmo.
– Mas porque há de ser pastor? Sempre pensei que esta sorte coubesse ao filho mais moço, quando houvesse muitos irmãos para escolher.
– Acha então que a igreja nunca é escolhida por si mesma?
– Nunca é uma palavra forte. Mas o “nunca” da nossa conversa, que significa “não muito freqüentemente”, acredito que não. Pois o que se pode esperar da igreja? Os homens gostam de se distinguir e em outra qualquer carreira essa distinção pode ser alcançada, mas não na igreja. Um pastor não é nada.
– Este “nada” da conversa também tem suas gradações, espero; pelo menos tanto quanto o “nunca”. Um pastor não pode sobressair em pompas e modas. Não deve dirigir povos nem ditar modas de vestuário. Mas não vejo nessa situação nada que se relacione com aquilo que é de primeira importância para a humanidade, individual ou coletivamente considerado, temporária ou eternamente: a proteção da religião ou da moral e conseqüentemente das maneiras que resultam da sua influência. Nenhum de nós aqui pode achar que o “ofício” é nada. Se o homem que o pratica é considerado inútil, o é por negligência aos seus deveres, por não lhe dar uma justa importância e afastar-se do seu lugar para aparecer onde não deve.
– O senhor dá mais importância ao pastor do que geralmente se costuma dar ou do que eu posso compreender. Na sociedade não se sente muito essa influência e essa importância, mas como poderiam ser sentidas num meio onde os próprios pastores raramente são vistos? Como podem dois sermões por semana, mesmo supondo que sejam dignos de serem ouvidos, e embora o pregador tenha o bom senso de preferir os de Blair aos seus próprios, fazer tudo isso que fala – governar a conduta e dirigir as maneiras de uma grande congregação para o resto da semana? Dificilmente se vê um pastor fora do púlpito.
– A senhorita está falando de Londres enquanto eu me refiro à nação inteira.
– A metrópole é um bom exemplo do que deve ser o resto.
– Não o espero, no que se refere à proporção da virtude para o vício em toda a extensão do reino. Não procuramos nossa moralidade nas grandes cidades. Não é lá que a gente respeitável de qualquer denominação pode fazer o maior bem; e certamente não é lá que a influência do clero pode ser melhor sentida. Um bom pregador é sentido e admirado; mas não é somente pelos belos sermões que um bom pastor pode ser útil na sua paróquia e na sua vizinhança, onde, pela extensão das mesmas, é possível se conhecer a sua vida íntima e observar a sua conduta em geral, o que em Londres dificilmente aconteceria. Lá o clero se perde no meio da multidão. São conhecidos apenas como pregadores pela maior parte. E quanto à influência deles em questões de ordem pública, peço que não me interprete mal, Miss Crawford, ou suponha que eu pretenda chamá-los de árbitros da boa educação, de reguladores da polidez e da cortesia, de mestres de cerimônias da vida. As “maneiras” a que me refiro, poderiam antes ser chamadas “condutas”, ou talvez, o resultado de bons princípios; o efeito, em resumo, daquelas doutrinas que eles têm por dever ensinar e recomendar; e admito que haja aqueles que são o que não deviam ser, como aliás se encontram em toda a parte.
– Certamente – disse Fanny com doçura.
– Aí está, – exclamou Miss Crawford – já convenceu Miss Price completamente.
– Desejaria convencer Miss Crawford também.
– Não creio que consiga me convencer – disse ela com um sorriso malicioso; – continuo tão surpreendida como fiquei ao saber que tencionava ordenar-se. O senhor é digno de melhor sorte. Ânimo! Mude de idéia, ainda é tempo! Entre para a carreira jurídica.
– Entre para a carreira jurídica! Com a mesma facilidade com que entrei nesta floresta.
– Bem, agora vai fazer um sermão sobre as desvantagens da advocacia; mas eu não permito; lembre-se, não o permito.
– Se a questão é evitar que eu fale difícil, não precisa inquietar-se, pois, por natureza não tenho o menor espírito; sou uma criatura muito positiva, franca e poderia passar meia hora empenhado em qualquer discussão sem dizer nada de notável.
Seguiu-se um silêncio geral. Cada um ficou pensando. Fanny fez a primeira interrupção, dizendo:
– Admiro-me de estar cansada, pois só caminhei neste bosque tão fresco; mas no primeiro banco que encontrarmos, se não se opuserem, gostaria de me sentar um pouco.
– Minha querida Fanny, – exclamou Edmund, imediatamente tomando-lhe o braço – que descuidado estou sendo! Espero que não esteja cansada demais. Talvez, disse virando-se para Miss Crawford, minha outra companheira queira me dar a honra de aceitar o outro braço.
– Obrigada, mas não estou cansada em absoluto.
Aceitou, porém, o braço e o prazer que isso causou, a sensação de sentir tal contato pela primeira vez, fez com que ele se esquecesse um pouco de Fanny.
– A senhorita mal toca no meu braço, – disse ele. – Quase não se utiliza de mim. Que diferença entre o peso de um braço de uma senhora e o de um homem! Em Oxford muitas vezes servi de apoio a um homem em toda a extensão de uma rua; comparando a ele, a senhorita parece uma pluma.
– Realmente não estou cansada, o que até me admira, pois devemos ter andado no mínimo um quilômetro e meio dentro deste bosque, não acha?
– Nem a metade – respondeu-lhe resolutamente; pois o rapaz ainda não estava tão apaixonado a ponto de medir distâncias ou calcular o tempo.
– Oh! É que não leva em conta as voltas que temos dado. Em linha reta o bosque não deve ter nem um quilômetro, mas nós estamos seguindo um caminho muito cheio de curvas. Por isso ainda não chegamos ao fim.
– Mas não se lembra que antes de deixarmos o caminho principal, avistamos o fim do bosque? Dominamos toda a vista e observamos que o bosque era fechado com portões de ferro e não podia ter mais do que uns duzentos metros de distância.
– Bem, não entendo nada de distâncias, mas a mim me parece que o bosque é muito grande e que nós temos andado para cima e para baixo desde que entramos nele; e, naturalmente, quando eu digo que devemos ter andado um quilômetro e meio, refiro-me ao circuito.
– Estamos exatamente há um quarto de hora aqui, – disse Edmund tirando o relógio. –Acha que estamos andando a seis quilômetros por hora?
– Oh! Não venha com seu relógio. Um relógio está sempre ou muito adiantado ou muito atrasado. Não pode se guiar pelo relógio.
Alguns passos mais levaram-nos ao ponto final do próprio caminho de que estavam falando; e ali, em lugar bem sombrio e abrigado, virado para o parque, encontraram um largo banco, confortável, no qual todos se sentaram.
– Receio que esteja muito cansada, Fanny – disse Edmund observando-a; – porque não reclamou mais cedo? O dia não vai ser nada divertido para você, se ficar doente. Toda a sorte de exercício a fadiga logo, Miss Crawford, exceto andar a cavalo.
– Então, como foi abominável deixar que eu monopolizasse o cavalo dela durante toda a semana! Envergonho-me pelo senhor e por mim mesma; mas prometo que isso não acontecerá novamente.
– Sua atenção torna-me ainda mais sensível ao meu próprio esquecimento. Os interesses de Fanny parecem mais seguros em suas mãos do que nas minhas.
– Que ela esteja cansada agora, porém, não me admira; pois não há nada que fadigue mais do que aquilo que fizemos esta manhã: percorrendo uma grande casa, entrando e saindo de uma sala para outra, cansando a vista e a atenção, ouvindo coisas que não se compreende e admirando coisas que não têm interesse nenhum. Isto é geralmente considerado uma das maiores maçadas do mundo e Miss Price também achou, embora não tivesse percebido.
– Eu logo estarei descansada – disse Fanny; – sentar à sombra num lindo dia, olhando para a verdura, é o melhor remédio.
Depois de se sentar um momento, Miss Crawford tornou a levantar-se.
– Eu preciso mover-me – disse ela; – sentar me fadiga. Estou farta desta vista. Tenho que ir e espiar através daquele portão de ferro para apreciá-la melhor.
Edmund levantou-se também.
– Agora Miss Crawford, se olhar na direção deste caminho, ficará convencida de que não pode ter um quilômetro de distância, nem a metade de um quilômetro.
– É uma distância imensa – disse ela. – Posso ver a olho nu.
Ele ainda procurou convencê-la, mas em vão. Ela não queria calcular, não queria fazer comparações. Apenas sorria e sustentava. Finalmente concordaram que deveriam procurar determinar as dimensões do bosque caminhando um pouco mais por ele. Iriam até o fim na direção em que estavam (pois ao lado do lugar onde se achavam havia um caminho gramado que ia diretamente ao fim), e dali talvez virassem um pouco para outra qualquer direção, se fosse preciso, e estariam de volta em poucos minutos. Fanny disse que estava descansada e que poderia ir também, mas eles não concordaram. Edmund aconselhou-a a permanecer onde estava com tanta ansiedade que ela não pôde resistir; e a moça ficou no banco, pensando com prazer no cuidado que o primo tinha por ela, sentindo-se muito triste por não ser mais forte. Observou-os até que viraram na curva e ouviu-os até que o último som de suas vozes se extinguiu.
Um quarto de hora, vinte minutos passaram-se e Fanny continuava pensando em Edmund, em Miss Crawford e em si própria, sem que ninguém a interrompesse. Começou a admirar-se de ter sido deixada sozinha tanto tempo e ansiosamente desejou ouvir seus passos e vozes novamente. Prestou atenção e finalmente ouviu vozes e passos que se aproximavam; mal porém compreendeu que não eram daqueles por quem ela esperava, quando Miss Bertram, e os moços Rushworth e Crawford surgiram no mesmo caminho por onde ele própria tinha vindo, e pararam à sua frente.
“Miss Price aqui sozinha!” e “Minha querida Fanny, que foi isso?” foram as primeiras exclamações. Ela contou o que tinha acontecido.
– Pobre Fanny, – exclamou a prima – como puderam eles maltratá-la assim! Era melhor que você tivesse ficado conosco.
Depois, sentando-se com um cavalheiro de cada lado, Maria voltou ao assunto de que se vinha ocupando, e discutiram as possibilidades de reforma com muita animação. Nada fora ainda resolvido; mas Henry Crawford estava cheio de idéias e projetos e, em geral, qualquer proposta feita por ele era imediatamente aprovada, primeiro por ela e depois por Mr. Rushworth, cuja principal tarefa era ouvir os outros e raramente arriscar uma opinião.
Depois de alguns minutos passados dessa forma, Miss Bertram, observando o portão de ferro, expressou o desejo de passar por ele para dentro do parque, a fim de que os seus planos pudessem ser melhor examinados e compreendidos. Isto era justamente o que deveriam fazer, a melhor e única maneira de prosseguirem com alguma vantagem, na opinião de Henry Crawford, que imediatamente viu uma colina, não muito distante dali, na qual poderiam ter uma vista completa da casa. Deviam pois ir para aquela colina; mas o portão estava fechado. Mr. Rushworth sentiu não ter trazido a chave; ele tinha até pensado se não deveria levar tal chave; fez protestos de nunca mais sair sem a trazer; mas todas essas considerações não removiam a dificuldade presente. Não poderiam passar; e como Miss Bertram não desistisse do intento, ficou resolvido que Mr. Rushworth voltaria para apanhar a chave. Isto posto, pôs-se ele a caminho.
– Sem dúvida é a melhor coisa a fazer, já que estamos tão longe de casa, – disse Mr. Crawford logo que o outro saiu.
– Sim, não podemos fazer outra coisa. Mas agora, com sinceridade, não acha que o lugar é muito pior do que esperava?
– Não, na verdade, muito ao contrário. Acho até melhor, maior e mais completo em seu estilo, embora este não seja dos melhores. E para lhe ser franco, – disse a meia voz – creio que nunca verei Sotherton com tanto prazer como o estou vendo agora. No próximo verão já não terá o mesmo interesse para mim.
Após um momento de embaraço a moça respondeu:
– O senhor é demais mundano para não ver as coisas praticamente. Se outras pessoas mostrarem interesse por Sotherton, não tenho dúvidas de que se interessará também.
– Receio que não seja tão mundano como desejaria ser em algumas questões. Meus sentimentos não são tão passageiros nem minha memória tão facilmente dominada, como acontece aos homens mundanos.
Seguiu-se um curto silêncio. Miss Bertram retrucou:
– O senhor pareceu apreciar muito a viagem desta manhã. Gostei de vê-lo tão atrevido. O senhor e Julia vinham rindo o tempo todo.
– Vínhamos mesmo? Sim, creio que vínhamos; mas não me recordo absolutamente porque ríamos. Oh! Parece-me que estive contando a ela qualquer história ridícula de um antigo cocheiro irlandês do meu tio. Sua irmã é muito alegre.
– Acha que ela é mais alegre do que eu?
– Diverte-se mais facilmente – respondeu ele.
– Conseqüentemente é melhor companhia – disse a moça sorrindo.
– Não poderia esperar entreter a senhorita com anedotas irlandesas durante uma viagem de dezesseis quilômetros.
– Pois eu sou tão jovial quanto Julia, mas é que agora tenho muito em que pensar.
– Acredito que tenha; seus projetos, porém, são belos demais para justificar uma falta de alegria. Tem um futuro muito risonho na sua frente.
– Quer dizer literalmente ou figurado? Literalmente, concluo. Sim, não há dúvida que o sol está brilhando e o parque está muito alegre. Mas infelizmente aquele portão de ferro me dá uma sensação de constrangimento, de prisão. – Não posso fugir, como dizem os passarinhos. – Enquanto falava caminhava para o portão: ele a seguiu. – Mr. Rushworth está demorando tanto, não é?
– E para o mundo, não poderia sair sem a chave, a autoridade e a proteção de Mr. Rushworth. Do contrário, penso que poderia com pouca dificuldade, passar por cima do portão, se eu a ajudasse; creio que pode ser feito, se realmente deseja ficar em liberdade e se se convenceu de que nada a proíbe.
– Proíbe! Tolice! Certamente posso sair dessa maneira e sairei. Mr. Rushworth estará aqui num momento; nós não nos vamos afastar muito.
– Ou se ele não nos encontrar, Miss Price terá a bondade de lhe dizer que nos encontrará perto daquela colina; no bosque de carvalhos sobre a encosta.
Fanny, sentindo que tudo aquilo estava errado, procurou impedi-lo.
– Vai ferir-se, Miss Bertram – exclamou ela – vai sem dúvida machucar-se naquelas pontas ou rasgar o vestido; está arriscada a escorregar. Seria melhor não ir.
Enquanto fazias essas recomendações, a prima punha-se a salvo do outro lado e, sorrindo satisfeita pelo sucesso, dizia:
– Obrigada, querida Fanny, eu e meu vestido estamos vivos e passando bem e por isso, adeus.
Fanny ficou novamente entregue à sua solidão e não mais alegre do que antes, pois se sentia apreensiva com quase tudo que vira e ouvira, admirada da conduta de Miss Bertram e aborrecida com Mr. Crawford. Tendo eles se desviado do caminho, tomando, a seu ver, direção muito diversa da colina, logo os perdeu de vista; e por alguns minutos mais permaneceu inteiramente só. Parecia ter o bosquezinho todo para si. Chegou a imaginar que Edmund e Miss Crawford já o tivessem achado, mas achou impossível que Edmund a tivesse esquecido tão completamente.
Novamente foi despertada dessas tristes meditações por um súbito ruído de passos. Alguém vinha marchando apressadamente pelo caminho principal. Esperava que fosse Mr. Rushworth, mas foi Julia que, suada e sem fôlego, com um ar desapontado, exclamou ao vê-la:
– Olá! Onde estão os outros? Pensei que Maria e Mr. Crawford estivessem com você.
Fanny explicou.
– Bonita peça, palavra de honra! Não os vejo em nenhuma parte – disse espiando ansiosamente para o parque. – Mas não podem estar muito longe e acho que vou imitar Maria, mesmo sem auxílio.
– Mas Julia, Mr. Rushworth voltará agora mesmo com a chave. É melhor esperar por ele.
– Não eu! Era só que faltava! Já aturei bastante a família por hoje. Não vê, menina, acabei de me escapar da horrorosa mãe dele! Agüentar uma tal penitência, enquanto você fica aqui sentada muito comodamente e feliz! Seria bom que estivesse no meu lugar, mas você sempre sabe fugir desses apuros.
Tal censura não poderia ser mais injusta, porém Fanny compreendeu e deixou passar: Julia estava irritada e de mau humor; mas sabia que isto não duraria muito e por conseguinte fingiu não o notar e apenas perguntou se ela não tinha visto Mr. Rushworth.
– Sim, sim, eu o vi. Ia apressado como se tratasse de uma questão de vida e morte e não pudesse perder um minuto para nos dizer aonde ia ou onde vocês estavam.
– É pena que tenha tanto trabalho sem necessidade.
– Isto é lá com Miss Maria. Não sou obrigada a me castigar pelos pecados dela. A mãe eu não podia evitar, enquanto a minha enfadonha tia dançava em redor da governanta, mas o filho não me pega.
E imediatamente saltou por cima da cerca e afastou-se sem nem ouvir a última pergunta de Fanny, isto é, se havia visto Miss Crawford e Edmund. A espécie de temor com que Fanny agora esperava ver Mr. Rushworth, impediu-a de pensar muito na prolongada ausência dos dois. Achava que ele havia sido maltratado demais, e sentia-se sem coragem para lhe comunicar o que se havia passado. Cinco minutos depois da saída de Julia, Mr. Rushworth apareceu; embora a pequena fizesse o possível para atenuar a história, ele mostrou-se aborrecido e descontente com o sucedido. A princípio não disse quase nada; apenas o olhar exprimiu sua grande surpresa e irritação; caminhou para o portão, onde parou indeciso, sem saber o que fazer.
– Eles quiseram que eu ficasse; Maria encarregou-me de lhe dizer que os encontraria naquela colina ou ali perto.
– Creio que não irei mais adiante – disse Mr. Rushworth obstinadamente; – não os posso ver daqui. Quando eu chegar na colina já eles terão ido para outra qualquer parte. Já andei demais.
Sentou-se ao lado de Fanny com o rosto carrancudo.
– Sinto muito, – disse ela – foi pouca sorte. – E desejou inutilmente poder lhe dizer alguma coisa mais.
Depois de um intervalo o rapaz falou:
– Creio que eles poderiam muito bem ter esperado por mim.
– Miss Bertram pensou que o senhor a iria procurar.
– Não teria que procurá-la se me tivesse esperado.
Isto não podia ser contestado e Fanny ficou em silencio. Depois de outra pausa ele continuou:
– Diga-me, Miss Price, a senhora é tão grande admiradora desse Mr. Crawford como algumas pessoas o parecem ser? Pela parte que me toca, não vejo nada de extraordinário nele.
– Não o acho bonito, absolutamente.
– Bonito! Ninguém poderia achar bonito um homem de tão pouca altura. Não tem mais de um metro e oitenta. Não me admiro se ele não tiver menos do que isso ainda. Acho-o um camarada sem interesse. Na minha opinião esses Crawfords não prestam para nada. Podíamos muito bem passar sem eles.
Fanny deixou escapar um pequeno suspiro e não soube como contradizer.
– Se eu tivesse posto alguma dificuldade em ir buscar a chave, ainda havia desculpa, mas saí no mesmo instante em que ela pediu.
– Nada seria mais digno de elogio do que a sua espontaneidade e estou certa de que andou o mais depressa que pôde; mas enfim, como sabe, a distância é grande deste ponto até a casa; e quando se está esperando o tempo custa a passar e cada minuto parece se multiplicar por cinco.
Ele levantou-se e novamente caminhou para o portão, desejando mais uma vez que tivesse trazido a chave antes. Fanny julgou divisar na sua atitude uma indicação de enternecimento, da qual tirou coragem para outra tentativa, e por isso disse:
– É uma pena que não os vá encontrar. Eles esperavam obter melhor perspectiva da casa daquele lado do parque, e estarão agora estudando a melhor maneira de a reformar; e nada poderão resolver sem a sua presença, não é?
Fanny se sentia mais hábil para afastar uma companhia do que para a reter. Mr. Rushworth se convenceu.
– Bem, disse ele, se acha que realmente eu devo ir... seria tolice trazer a chave para não a usar.
E abrindo a passagem, afastou-se sem mais cerimônia.
Os pensamentos de Fanny estavam agora inteiramente absorvidos pelos dois que a tinham deixado há tanto tempo e, tornando-se impaciente, resolveu ir procurá-los. Seguiu-lhes os passos até o fim do caminho e mal tinha virado noutra direção, ouviu a voz e a risada de Miss Crawford; o som aproximava-se e algumas voltas mais os trouxe à sua frente. Acabavam de voltar para o bosque, vindos do parque, para o qual haviam sido tentados a entrar, tendo encontrado um portão lateral, lá caminharam pela alameda que durante toda a manhã Fanny tivera a esperança de ver, para afinal, ficar sentada embaixo de uma das árvores. Esta foi a estória que contaram. Era evidente que tinham passado os minutos agradavelmente e não se aperceberam do tempo em que estiveram ausentes. O único consolo de Fanny foi Edmund lhe assegurar que havia desejado muito a presença dela e certamente voltado para buscar se ela já não estivesse cansada; isto porém não era suficiente para a fazer esquecer a tristeza de ter ficado sozinha durante uma hora inteira, quando eles haviam prometido ausentar-se somente por poucos minutos, nem para afastar a curiosidade que sentia em saber o que eles haviam conversado todo o tempo; e o resultado de tudo foi a sua humilhação e desapontamento, quando eles se prepararam, de comum acordo, a voltarem para a casa.
Quando chegaram no alto da escada do terraço, Mrs. Rushworth e Mrs. Norris apareceram, prontas para irem até a floresta, depois de terem saído de casa à uma hora e meia. Mrs. Norris havia se entretido muito pelo cominho e não tivera pressa. Quaisquer que fossem os contratempos ocorridos para interceptar o prazer das sobrinhas, não a impediam de julgar a manhã muito divertida; pois a governanta, depois de muitas cortesias sobre o assunto dos faisões, tinha-a levado para a queijaria e lá a havia informado de tudo o que se relacionava com as vacas e lhe tinha dado a receita de um famoso queijo; e logo que Julia as havia deixado, elas encontraram o jardineiro, com quem Mrs. Norris fez as melhores relações, pois o havia orientado sobre a doença do neto, convencendo-o de que se tratava de uma febre intermitente e lhe prometera um remédio infalível para a curar; e ele, em troca, lhe mostrara todos os seus viveiros de plantas escolhidas e até mesmo a presenteara com um espécime de cactus muito curioso.
Ao se encontrarem resolveram voltar todos juntos para a casa e lá esperar da melhor maneira possível, com sofás e revistas, que os outros viessem para jantar. Era tarde quando as Misses Bertram e seus dois cavalheiros voltaram e pelo aspecto parecia que o passeio não fora de todo agradável, nem de todo produtivo quanto ao objetivo do dia.
De acordo com as suas próprias explicações, eles tinham estado todo tempo à procura uns dos outros e quando finalmente se encontraram já era tarde demais, na opinião de Fanny, para restabelecer a harmonia, como reconhecidamente o foi para discutirem a reforma da casa.
Fanny sentiu, ao observar Julia e Mr. Rushworth, que o seu coração não era o único descontente no meio deles; havia tristeza na face de cada um. Mr. Crawford e Miss Bertram estavam muito mais alegres e ela percebeu que durante o jantar ele se esforçou para afastar qualquer pequeno ressentimento que os dois pudessem ter e restabelecer o bom humor geral.
O jantar foi imediatamente seguido do chá e café, pois uma viagem de dez milhas não permitia perda de tempo; e desde a hora em que se sentaram à mesa houve uma rápida sucessão de pequenos nadas até que a carruagem foi trazida para a porta. Mrs. Norris, depois de se agitar pó ali e obter alguns ovos de faisão, um queijo da governanta, e feito abundantes discursos e amabilidades a Mrs. Rushworth, resolveu abrir caminho. No mesmo instante, Mr. Crawford, aproximando-se de Julia, disse: – Espero não perder a sua companhia, a menos que receie o ar da noite num lugar assim exposto. – O convite não tinha sido previsto, mas foi recebido com muito agrado e o dia de Julia provavelmente acabaria tão bem como começara. Miss Bertram tinha feito planos um pouco diferentes e ficou um tanto desapontada; mas a sua convicção de ser realmente a preferida reconfortou-a e a ajudou a receber como devia as atenções de Mr. Rushworth ao despedir-se. Ele certamente gostou muito mais de levá-la para o carro do que ajudá-la a subir para a boléia, e com isso, pareceu ficar apaziguado.
– Muito bem, Fanny, este foi um belo dia para você, palavra, – disse Mrs. Norris, quando rodavam pelo parque. – Prazer e mais prazer, do princípio ao fim! Você deve ficar muito agradecida à sua tia Bertram e a mim por termos permitido que viesse. Um dia de grande divertimento o que você teve!
Maria, porém, estava bastante descontente para dizer asperamente:
– Creio que a senhora mesma se divertiu bastante. Seu colo está cheio de coisas boas e aqui ainda tem uma cesta com não sei o que, entre nós, que está me incomodando imensamente.
– Minha querida, é apenas um lindo cactus, que o velho e amável jardineiro me fez trazer; mas se a está incomodando, ponho-o no colo imediatamente. Olha, Fanny, você leva este pacote para mim; tome muito cuidado com ele; não o deixe cair; é um excelente creme de queijo, igual ao que tivemos no jantar. Aquela boa velhinha, Mrs. Whitaker, fez questão absoluta que eu trouxesse um desses queijos. Recusei o mais que pude, até que as lágrimas lhe vieram aos olhos. Além disso eu sabia que era a qualidade de que minha irmã haveria de gostar. Aquela Mrs. Whitaker é um tesouro! Ficou escandalizada quando eu perguntei se permitiam servir vinho na mesa da cozinha; imagine que despediu duas empregadas só porque usavam vestidos brancos! Tome cuidado com o queijo, Fanny. Assim posso segurar o outro pacote e a cesta muito bem.
– E que mais conseguiu surrupiar? – perguntou Maria, quase contente por ver Sotherton tão elogiado.
– Surrupiar, minha querida! Isto aqui são apenas quatro ovos daqueles lindos faisões que Mrs. Whitaker me obrigou a trazer; não admitiu recusa. Disse-me que, já que eu vivia tão isolada, seria um divertimento para mim ter algumas destas criaturas ao meu redor; e será mesmo. Vou dar à leiteira para os deitar na primeira galinha que estiver disponível e se saírem bem levo-os para casa e arranjo um galinheiro emprestado; e nas minhas horas solitárias, será um grande prazer para mim tratá-los. Se eu tiver sorte, darei alguns a sua mãe.
A noite estava linda, suave e calma, e a viagem foi tão agradável quanto a serenidade da natureza a podia fazer. Quando Mrs. Norris cessou de falar, o resto da viagem foi feito em silêncio. Estavam todas exaustas de espírito; e a consciência da cada uma devia estar ocupada em determinar se o dia lhe havia proporcionado mais prazer do que sofrimento.
O dia em Sotherton, com todas as suas imperfeições, proporcionou às Misses Bertram sensações mais agradáveis do que a derivada das cartas de Antigua, recebidas em Mansfield logo em seguida. Era muito mais agradável pensar em Henry Crawford do que em Sir Thomas; a volta deste para a Inglaterra, dentro de um certo período, – período que ele mencionava nas cartas, era assunto que não gostavam de pensar.
Novembro era o mês negro, fixado para a sua volta; Sir Thomas escrevera sobre isso com tanta decisão quanto a experiência e a ansiedade lhe poderiam permitir. Seus negócios estavam tão perto da conclusão que se justificava o projeto de tomar passagem no paquete de setembro e conseqüentemente antecipar a esperança de estar com a sua bem amada família nos primeiros dias de novembro.
Maria era mais digna de pena do que Julia; pois para ela o pai traria um marido, visto que à volta dele se decidiria o seu casamento. Era uma perspectiva sombria e tudo que poderia fazer era lançar uma nuvem sobre o caso e esperar que esta ao dissipar-se lhe mostrasse as coisas de outra maneira. Possivelmente a chegada do pai não seria para os primeiros dias de novembro. Geralmente havia demoras, uma falta de passagem ou qualquer outra coisa; talvez só fosse mesmo lá para meados de novembro e até lá ainda tinha três meses. Três meses correspondiam a treze semanas. Muito poderia acontecer em treze semanas.
Sir Thomas ficaria profundamente mortificado se pudesse suspeitar a metade do que as filhas sentiam com a perspectiva de sua volta e dificilmente encontraria consolo em ter conhecimento do interesse que a mesma despertara no coração de uma outra moça. Miss Crawford indo com o irmão passar a tarde em Mansfield Park , soube da novidade; e embora não demonstrasse pelo assunto maior interesse do que a polidez o exigia, e dando expansão aos seus sentimentos numa serena felicitação, ouviu o que se comentava com uma atenção enorme. Mrs. Norris deu todos os particulares das cartas e o assunto esmoreceu; mas depois do chá, Miss Crawford que se achava em frente à janela com Edmund e Fanny, apreciando o crepúsculo, enquanto as Misses Bertram, Mrs. Rushworth e Mr. Crawford estavam às voltas com o piano, olhou para o outro grupo e comentou:
– Como Mr. Rushworth parece feliz! Está pensando em novembro.
Edmund voltou-se para Mr. Rushworth, mas não achou nada que dizer.
– A volta de seu pai será um grande acontecimento.
– Será sem dúvida, depois de tão grande ausência; uma ausência não só longa como cheia de perigos.
– E será também a precursora de outros acontecimentos interessantes; o casamento de sua irmã e a sua ordenação.
– Sim.
– Não se ofenda, – disse ela rindo – mas isto me faz lembrar aqueles heróis pagãos que ofereciam sacrifícios aos deuses ao voltarem a salvo de grandes façanhas em terra estrangeira.
– No caso presente não há sacrifícios, – respondeu Edmund sorrindo e novamente lançando um olhar para o grupo do piano – ela mesma é quem o quer.
– Oh sim! Isto sei eu. Estava brincando. Ela apenas faz o que toda moça faria; e eu não tenho a menor dúvida de que ela é extremamente feliz. O outro sacrifício a que me refiro, o senhor naturalmente não compreende.
– A minha ordenação, posso lhe assegurar, é tão voluntária quanto o casamento de Maria.
– É uma sorte que a sua vocação e a conveniência de seu pai estejam tão perfeitamente de acordo. Ouvi dizer que existe por aí uma ótima paróquia à sua espera.
– Motivo que a senhorita supõe tenha influído na minha resolução?
– Mas isto não é verdade! – exclamou Fanny.
– Obrigado pelo bom juízo que faz de mim, Fanny, mas eu mesmo não estou certo se não é verdade. Ao contrário, o conhecimento de que havia uma tal paróquia para mim, provavelmente me influiu. Nem vejo que haja mal nenhum nisso. Não tive que lutar contra qualquer aversão e não vejo razão porque um homem possa ser pior pastor só pelo fato de saber que terá maiores facilidades no início da vida. Eu estava em boas mãos. Espero não ter seguido o caminho errado mas estou certo de que, se assim o fosse, meu pai seria bastante consciencioso para não o permitir. Não tenho dúvida de que fui influenciado mas penso que inocentemente.
– É a mesma coisa, – disse Fanny depois de um momento – como o filho de um almirante que vai para a marinha ou o filho de um general que vai para o exército e ninguém vê nada de mal nisso. Ninguém se espanta que eles prefiram seguir uma carreira onde sabem que encontrarão amigos que os auxiliarão e nem por isso se suspeita de que possam ter menos vocação do que aparentam.
– Não, cara Miss Price, não é bem isso. A carreira, tanto na marinha como no exército, tem sua própria justificativa. Ela tem tudo a seu favor; heroísmo, perigo, vaidade, moda. Soldados e marinheiros são sempre bem recebidos na sociedade. Ninguém se admira que os homens sejam soldados e marinheiros.
– Mas os motivos por que um homem segue a carreira religiosa com certeza de certas vantagens, devem naturalmente ser suspeitos, não é? – disse Edmund. – Para que se justifique a seus olhos, é preciso que ele o faça na mais completa ignorância das vantagens que terá.
– Que! Ordenar-se sem ter meios! Não, isto é realmente loucura; loucura absoluta.
– Posso então lhe perguntar o que será da igreja, sem nem com meios nem sem meios o homem deve ordenar-se? Não, pois certamente não saberia o que dizer. Mas do seu próprio argumento posso tirar alguma vantagem para o pastor. Como ele não pode ser influenciado por aqueles sentimentos que na sua opinião são classificados como tentação e recompensa para o soldado ou marinheiro, ao escolherem suas carreiras, pois que o heroísmo, o barulho, a moda, não lhe são permitidos, ele deve estar menos sujeito à suspeita de não ser sincero ou bem intencionado na sua escolha.
– Oh! Sem dúvida ele é muito sincero ao preferir uma renda já pronta em vez de ter de trabalhar para a conseguir; e tem as melhores intenções de não fazer mais nada até o fim da vida senão comer, beber e engordar. É indolência, Mr. Bertram, isto é que é. Indolência e amor ao bem estar; uma falta total de louvável ambição, de gosto pelas boas companhias, ou de vontade de se dar ao trabalho de ser agradável, é o que fazem os homens quererem entrar para o clero. Um pastor não tem nada que fazer senão ser negligente e egoísta; ler os jornais, olhar para o tempo e discutir com a mulher. Sua paróquia fará todo o trabalho e a preocupação de sua vida é jantar.
– Existem, sem dúvida, pastores assim, mas creio que não são tão comuns que justifiquem o juízo por Miss Crawford do seu caráter em geral. Suspeito que nessa censura ampla e (posso dizer) geral, a senhorita não está julgando por si mesma, mas por pessoas mal informadas, cujas opiniões se habituou a ouvir. É impossível que com as suas próprias observações ficasse conhecendo muito o clero. Do grupo de homens que a senhorita tão decisivamente condena, talvez pessoalmente tenha conhecido muito poucos. Está repetindo o que ouviu dizer em casa de seu tio.
– Estou dizendo o que parecer ser opinião geral; quando a opinião é geral, habitualmente é correta. Embora eu própria não esteja muito a par da vida doméstica dos pastores, há muitíssimas pessoas que o estão para que haja engano na informação.
– Quando se vê uma qualquer corporação de homens educados, de qualquer denominação, condenados sem distinção, deve haver erro de informação ou (sorrindo) de qualquer outra coisa. Seu tio e seus colegas almirantes talvez não conhecessem do clero senão os capelães, os quais bons ou maus eles sempre preferiam ver de longe.
– Pobre William! O capelão do “Antuérpia” foi muito bondoso para ele – disse Fanny ternamente, falando de acordo com seus próprios pensamentos senão com o ritmo da conversa.
– Eu tenho me guiado tão pouco pelas opiniões de meu tio – disse Miss Crawford – que dificilmente poderia supor... E já que me obriga a falar, posso afirmar que não estou inteiramente alheia ao que são os pastores, visto que atualmente sou hóspede de meu próprio cunhado, Dr. Grant. E embora ele seja muito bom e amável comigo, embora seja realmente um cavalheiro, e, ouso dizer, muito erudito e inteligente, muito respeitável, e faça muito bons sermões, vejo no entanto que é um indolente, egoísta, “bom vivant”, cujo gosto tem de ser consultado em todas as coisas; que não mexe um dedo pela conveniência de ninguém; e que, além disso, se a cozinheira comete uma asneira, fica de mau humor com a sua excelente mulher. Para falar a verdade, Henry e eu hoje mesmo quase fomos expulsos por causa de um pato de que ele não gostou. Minha pobre irmã teve que ficar e agüentar a tempestade.
– Não me admiro de sua desaprovação, garanto. É uma grande falta de caráter, aumentada pelo mau hábito de só se ouvir a si mesmo; ver a sua irmã sofrer por causa disso deve ser extremamente penoso para uma pessoa com os seus sentimentos. Fanny, estamos derrotados, Não podemos defender o Dr. Grant.
– Não, – respondeu Fanny – mas por causa dele não devemos condenar a sua profissão; porque, qualquer que fosse a profissão escolhida pelo Dr. Grant, ele seria o mesmo... Careceria de bom humor; e como ele teria, tanto na marinha como no exército muito mais gente sob seu comando do que a tem agora, creio que haveria muito mais infelizes se ele fosse marinheiro ou soldado em vez de pastor. Além disso, não posso senão supor que qualquer coisa em contrário que se pudesse desejar no Dr. Grant correria o risco de ser tornar ainda pior numa profissão mais ativa e positiva, na qual tivesse menos tempo e obrigações – onde ele pudesse escapar àquele conhecimento de si próprio, a freqüência, ao menos, daquele conhecimento na sua atual situação é impossível escapar. Um homem – um homem sensato como o Dr. Grant, não costuma ensinar os outros seus deveres de cada semana, não pode ir à igreja duas vezes cada domingo e fazer tão bons sermões e com tão boa disposição como ele os faz, sem ser ele mesmo beneficiado com isto. A profissão obriga-o a meditar; e não duvido que ele como pastor se domine muito mais freqüentemente do que se fosse outra coisa qualquer.
– Concordo que não podemos provar ao contrário; mas desejo-lhe melhor sorte, Miss Price, do que ser esposa de um homem, cuja amabilidade dependa de seus próprios sermões; pois, embora nos domingos ele ficasse de bom humor influenciado pela própria oratória, seria bastante desagradável ouvi-lo discutir por causa de comida desde segunda feira de manhã até sábado à noite.
– Creio que se houver alguém capaz de brigar com Fanny, – disse Edmund afetuosamente – não haverá sermões que o endireitem.
Fanny debruçou-se mais para a janela; e Miss Crawford só teve tempo de dizer amavelmente:
– Suponho que Miss Price está mais acostumada a merecer elogios do que a ouvi-los. – Neste momento, sendo insistentemente convidada pelas Misses Bertram para tomar parte numa canção, ela se dirigiu para o instrumento deixando Edmund a observá-la num êxtase de admiração por todas as suas muitas virtudes, desde os seus modos cativantes até os seus passos leves e graciosos.
– Ali vai um humor, excelente, não há dúvida – disse ele. – Ali está um caráter que nunca fará ninguém sofrer! Como pisa bem! E com que facilidade se sujeita à vontade dos outros! Não se faz de rogada. Que pena, – acrescentou ele depois de um instante de reflexão – ter estado entregue a tais mãos.
Fanny concordou e teve o prazer de o ver continuar na janela a seu lado, apesar da esperada canção; e de ver, em seguida, seus olhos como os dela, virados para a paisagem exterior, onde tudo que era solene, suave e amável, se destacava no esplendor de uma noite límpida ao contrastes das sombras espessas dos bosques. Fanny expandiu seus pensamentos.
– Aqui há harmonia! – disse ela; – aqui se repousa! O que se vê aqui não há pintura nem música capaz de igualar e somente a poesia poderia tentar descrever! Eis o que pode tranqüilizar todos os espíritos e transportar o coração para a felicidade! Como vejo uma noite linda como esta, não posso acreditar que haja maldade nem tristeza no mundo; e certamente haveria menos sofrimento se a sublimidade da natureza fosse mais apreciada e se o povo se deixasse induzir a contemplar um cenário como este.
– Aprecio o seu entusiasmo, Fanny. A noite está adorável e aqueles que não aprenderam, de certo modo, a sentir as coisas como você as sente, devem ser lastimados; aqueles que, pelo menos na infância, não aprenderam a admirar a natureza. Eles não sabem o que perdem.
– Foi você, meu primo, quem me ensinou a pensar nessas coisas, e a compreendê-las.
– Tive boa aluna. Lá está Arcturus brilhando muito.
– Sim, e ali a Ursa. Queria ver Cassiopeia.
– Só se fôssemos lá fora. Você tem medo?
– Absolutamente. Faz muito tempo que não olhamos para as estrelas.
– É verdade, nem sei como foi isso. – A canção começou. – Ficaremos aqui até que acabem de cantar, Fanny, – disse ele virando as costas para a janela; e conforme a canção ia progredindo, ela teve a tristeza de o ver avançar também, aproximando-se pouco a pouco do instrumento. Quando terminou Edmund se achava ao lado dos cantores, entre os que mais insistentemente pediam para ouvir novamente a canção.
Fanny suspirou e permaneceu sozinha junto à janela até que Mrs. Norris a obrigou a sair, advertindo-a asperamente de que se iria resfriar.
Sir Thomas deveria regressar em novembro, mas o seu filho mais velho tinha compromissos que o obrigavam à voltar mais cedo. Ao aproximar-se o mês de setembro receberam notícias de Mr. Bertram: primeiro numa carta para o guarda-caça e depois uma para Edmund; e pelo fim de agosto, ele próprio chegou, alegre, agradável e galante sempre que tinha oportunidade ou que Miss Crawford o reclamava; falar de corridas e Weymount, festas e amigos, seriam coisas que, há seis semanas atrás, ela teria ouvido com interesse; mas agora, a comparação lhe trazia a convicção plena de sua preferência pelo irmão mais moço.
Era um transtorno e ela o sentia muito; mas assim era; e agora, longe da idéia de casar-se com o mais velho, ela não desejava mais o atrair do que exigia a sua vaidade; o tempo que esteve ausente de Mansfield, sem outra coisa em vista senão o prazer, demonstrava claramente que ele nunca se tinha interessado por ela e a sua indiferença de tal modo se equiparava à dela própria, que até mesmo se ele naquele momento entrasse na posse de Mansfield Park, herdando o título e tudo o mais, o que oportunamente aconteceria, a moça estava certa de que não o queria.
A estação e os compromissos que trouxeram Mr. Bertram de volta a Mansfield, levaram também Mr. Crawford para Norfolk. Everingham em setembro não podia lhe dispensar a presença. Ausentara-se por uma quinzena – uma quinzena tão cheia de monotonia para as Misses Bertram, que estas deveriam se pôr em guarda e mesmo Julia, enciumada da irmã, deveria admitir a absoluta necessidade de desconfiar das atenções dele e desejar que não mais voltasse; da mesma forma numa quinzena de ócio, nos intervalos da caça e do sono, se ele se desse ao trabalho de examinar os seus próprios sentimentos e refletir sobre o ponto para que o estava levando a indulgência da sua vaidade sem escrúpulos, convencê-lo-ia de que deveria afastar-se por mais tempo; mas descuidado e egoísta como o tinham feito a prosperidade e o mau exemplo, ele não pensava senão no presente. As duas irmãs, lindas, inteligentes e fáceis, eram um divertimento para seu espírito saciado; e não encontrando em Norfolk nada que equivalesse aos prazeres sociais de Mansfield, voltou com alegria no tempo marcado e lá foi com igual prazer recebido por aquelas com quem pretendia continuar a divertir-se.
Maria, tendo apenas Mr. Rushworth por companhia, condenada aos repetidos detalhes do seu dia de caça, de sua gabolice sobre os cachorros, sua inveja dos vizinhos, suas dúvidas sobre as qualidades dos mesmos e seus cuidados por causa dos ladrões de caça, assuntos estes que não afetam os sentimentos femininos, a não ser que haja ou algum interesse nos mesmos ou alguma afeição por quem os conta, sentiu cruelmente a falta de Mr. Crawford; e Julia, sem compromisso e sem ter em que se ocupar, sentia-se no direito de ainda mais lamentar a falta dele. Cada uma das irmãs julgava-se a preferida. Julia podia ser justificada pelas insinuações de Mrs. Grant, propensa a acreditar no que desejava, e Maria pelas insinuações do próprio Mr. Crawford. Tudo voltou ao que era antes da sua ausência; seu procedimento com cada uma era tão animado que não o deixava perder terreno de nenhum lado, conservando-se, porém, numa atitude que não desse a perceber aos demais a persistência, a solicitude e o ardor com que as cortejava ao mesmo tempo.
Fanny era a única que não tinha com que se aborrecer; mas desde o dia que passaram em Sotherton, não podia ver Mr. Crawford ao lado de qualquer uma das primas sem que os observasse, e raras vezes sem espanto ou censura; e tivesse ela confiança no próprio julgamento, se estivesse certa de estar vendo claramente e julgando sem malícia, provavelmente teria feito comunicações importantes ao seu usual confidente. Assim sendo, porém, ela arriscou apenas uma sugestão e esta mesma não surtiu efeito.
– Estou admirada – disse ela – de ver Mr. Crawford de volta tão depressa, depois de ter passado tanto tempo aqui, bem umas sete semanas; pois como ouvi dizer que ele não gosta de parar muito tempo no mesmo lugar, pensei que, uma vez indo, haveria certamente de acontecer qualquer coisa que o prendesse noutra parte. Ele está acostumado a viver em lugares mais alegres que Mansfield.
– Tanto melhor para ele – respondeu Edmund; – e, acredito, para o prazer da irmã. Ela não aprova a inconstância dele.
– Minhas primas têm por ele tal admiração!
– Sim, ele sabe agradar às mulheres. Mrs. Grant, segundo me parece, suspeita de que ele goste de Julia; eu por mim nunca percebi coisa alguma, mas desejaria que fosse verdade. Uma afeição séria corrigiria os defeitos que ele tem.
– Se Miss Bertram não estivesse noiva, – disse Fanny prudentemente – eu quase poderia pensar, às vezes, que ele a admirasse mais do que a Julia.
– O que prova ele gostar mais de Julia do que você, Fanny, pode saber: geralmente acontece que o homem, antes de se definir inteiramente, agrada mais à irmã ou à amiga íntima da mulher que ele de fato está gostando do que a esta propriamente; Crawford tem bastante juízo para não permanecer aqui se sentisse que estava correndo algum risco por causa de Maria; e da parte dela, não tenho o menor receio.
Fanny acreditou que estava enganada e fez tenção de pensar diferentemente para o futuro; mas embora quisesse concordar com Edmund e apesar das insinuações e troca de olhares que ocasionalmente surpreendia nos outros, que pareciam dizer que Julia era a escolhida por Mr. Crawford, ela nem sempre sabia o que pensar. Uma tarde, casualmente, ouvindo uma conversa de sua tia Norris com Mrs. Rushworth, não pôde deixar de se espantar com o que elas pensavam sobre o assunto; por si, preferia não ser forçada a ouvir, pois nesta ocasião todo o pessoal jovem estava dançando e ela permanecia, contra a própria vontade, sentada entre as senhoras junto à lareira, impaciente pela volta do primo mais velho, de quem dependiam as suas esperanças de um par para a dança. Aquele era o primeiro baile a que Fanny assistia, embora não tivessem havido os preparativos e os esplendores de um primeiro baile de muita moça, pois que havia sido improvisado naquela mesma tarde, com a descoberta de um violinista entre os empregados da casa e a possibilidade de conseguirem cinco pares incluindo Mrs. Grant e um amigo íntimo de Mr. Bertram que acabava de chegar. Fanny sentira-se, contudo, muito feliz durante as quatro primeiras danças e não queria perder nem um quarto de hora. Enquanto esperava e desejava, olhando para os dançarinos, ora para a porta, foi forçada a ouvir o seguinte diálogo entre as duas senhoras mencionadas acima:
– Creio minha senhora, – disse a tia Norris, o olhar dirigido para Mr. Rushworth e Maria que dançavam juntos pela segunda vez – que agora veremos rostos alegres novamente.
– Sim, é verdade, – respondeu a outra com um sorriso afetado – já se pode olhar “agora” com alguma satisfação e eu acho que seria de fato uma pena se eles fossem obrigados a desmanchar o noivado. Na situação de ambos se deveria desculpar que seguissem as formalidade usuais. Admiro-me de meu filho não o ter proposto.
– Acredito que o tenha feito, minha senhora. Mr. Rushworth é muito brioso. Mas a minha querida Maria tem um senso tão positivo de decoro, uma verdadeira delicadeza de sentimentos, como raramente se encontra nos dias de hoje, Mrs. Rushworth. Prezada senhora, observe-lhe a fisionomia neste momento; que diferença das duas últimas danças!
De fato, Miss Bertram parecia feliz, seus olhos brilhavam de prazer e falava com grande animação, pois Julia com seu par, Mr. Crawford, estava ao lado dela: estavam os quatro como que amontoados. Que expressão tinha a fisionomia de Maria durante as outras contradanças, Fanny não se recordava pois estivera, ela mesma, dançando com Edmund e não se preocupara com a prima.
Tia Norris continuou:
– É um prazer, minha senhora, ver dois jovens tão felizes, tão bem combinados! Só penso no contentamento de Sir Thomas. E que acha, minha senhora, da possibilidade de um outro noivado? Mr. Rushworth deu o bom exemplo e essas coisas são sempre contagiosas.
Mrs. Rushworth, que não via senão o filho, ficou desorientada.
– Aquele outro par, minha senhora. Não percebe nenhum sintoma ali?
– Ah sim! Miss Julia e Mr. Crawford. Sim, de fato, é um belo par. Qual é a situação dele?
– Tem quatro mil libras por ano.
– Muito bem. Quem não tem mais, deve se contentar com o que tem. Quatro mil libras por ano é uma boa renda e ele parece ser um rapaz muito distinto. Espero que Miss Julia seja muito feliz.
– Ainda não é coisa decidida, minha senhora. Apenas comentamos entre nós. Mas não tenho muita dúvida de que se realizará. Ele cada dia está se tornando mais particular nas suas atenções.
Fanny não pôde ouvir mais. Desviou a atenção da conversa pois Mr. Bertram acabava de entrar na sala; e embora achasse que seria uma grande honra ser convidada para dançar com o primo, teve esperança que ele o fizesse. Tom dirigiu-se para a pequena roda onde ela se achava; mas em vez de a convidar para dançar, puxou uma cadeira para perto e começou a falar sobre o estado de um cavalo doente e da opinião do cocheiro, de quem acabava de se separar. Fanny compreendeu que ele não tinha intenção de dançar e na sua natural modéstia imediatamente concordou que tinha sido pouco razoável na sua expectativa.
Quando Tom acabou de relatar o que havia com o cavalo, apanhou um jornal e passando nele os olhos, disse entediado:
– Se você quiser dançar, Fanny, estou pronto a lhe fazer a vontade. – o oferecimento foi recusado com toda a delicadeza; ela não queria dançar. – Antes assim, – disse ele mais animado e atirando o jornal sobre a mesa – porque eu estou morto de cansaço. Só me admiro que esta gente não se canse. É preciso que estejam todos amando muito para achar divertimento numa tal bobagem; acredito que estejam mesmo. Observe-os e verá que cada um está mais apaixonado do que o outro – todos exceto Yates e Mrs. Grant – e, aqui entre nós, ela, pobre mulher, precisava mais de um amante do que qualquer dos outros. A vida dela com o doutor deve ser da mais desesperada monotonia. – Ao dizer isto relanceou um olhar malicioso para a cadeira do doutor; como, porém, o doutor estava exatamente a seu lado, obrigou-o a mudar tão repentinamente de expressão e assunto que Fanny, apesar de tudo não pôde deixar de rir-se. – Um negócio estranho este da América, Dr. Grant! Qual é a sua opinião? Sempre me dirijo ao senhor quando quero me informar sobre esses assuntos.
– Meu caro Tom, – exclamou a tia logo depois – já que você não está dançando, creio que não fará objeção em jogar conosco; quer? – Levantando-se chegou para perto dele a fim de o convencer, acrescentando baixinho. – Queremos distrair Mrs. Rushworth, sabe? Sua mãe está aflita, mas ela mesmo não pode perder tempo porque tem que acabar a franja de crochet que está fazendo. No entanto, você, eu e o Dr. Grant poderíamos jogar um pouco; e embora nós joguemos apenas meias coroas, você e ele poderão apostar até meio guinéu.
– Teria muito prazer, – respondeu ele alto e pulando da cadeira todo animado – gostaria muitíssimo; mas é que neste momento vou dançar. Venha Fanny, – disse puxando-a pela mão – não perca mais tempo senão a dança acaba.
Fanny o acompanhou de boa vontade, embora lhe fosse impossível sentir muita gratidão pelo primo, ou fazer distinção, como ele certamente fazia, entre o egoísmo de outra pessoa e o seu próprio.
– Um pedido bastante modesto, palavra de honra! – exclamou ele indignado, quando se afastavam. – Pretender que eu fique preso numa mesa de jogo durante duas horas com ela e o Dr. Grant, que estão sempre brigando, e com aquela velha sorumbática, que entende tanto de cartas quanto de álgebra. Era melhor que minha tia não fosse tão solícita! E ainda por cima, me convidar de tal maneira! Sem a menor cerimônia, à vista de todos, para que eu não tivesse jeito de recusar. É o que eu mais detesto. Não há nada que me contrarie mais do que me convidarem por fingimento, e ao mesmo tempo ser abordado de tal maneira que não possa deixar de aceitar, seja lá para o que for! Se eu não tivesse tido a feliz idéia de ficar ao seu lado, não teria podido escapar desta. É muita perversidade. Mas quando minha tia mete uma idéia na cabeça não há quem possa com ela.
O novo amigo, o ilustre John Yates, não tinha muito que recomendasse além dos hábitos de sociedade e de ser o filho mais moço de um lorde com relativa independência; Sir Thomas provavelmente não teria aprovado de forma alguma a sua apresentação em Mansfield. Mr. Bertram travara relações com ele em Weymount, onde, durante dez dias, tinham freqüentado a mesma sociedade e amizade, se amizade podia se chamar, tinha-se estabelecido e consolidado com o convite feito a Mr. Yates de passar por Mansfield quando tivesse oportunidade, e ele apareceu até muito mais cedo do que era de esperar, em conseqüência de se ter dissolvido um grande grupo ao qual se juntara ao sair de Weymount e que se reunira em casa de outro amigo. Veio muito desapontado e com a cabeça cheia de idéias de teatro, pois o divertimento da reunião tinha sido ensaiar cenas teatrais. A peça em que ele tomava parte devia ser representada dali a dois dias, quando a morte repentina de um dos parentes mais próximos da família destruiu o projeto e dispersou os atores. Estar tão perto da felicidade, tão perto da fama, tão próximo de um longo artigo elogiando os amadores de Ecclesford, que naturalmente imortalizaria todo o grupo por no mínimo doze meses! E estando assim tão próximo, perder tudo, era uma injustiça das mais cruéis. Yates não sabia falar de outra coisa. Ecclesford com o teatro, os preparativos e vestuários, ensaios e pilhérias, era o seu assunto interminável e o consolo era contar vantagem do passado.
Felizmente para ele, o gosto pelo teatro é tão geral, o desejo de representar tão forte entre as pessoas jovens, que ele podia falar à vontade sem cansar os ouvintes. Desde o início da combinação das partes até o epílogo, tudo era fascinante e poucos havia que não tivessem desejado tomar parte na representação, ou que hesitassem experimentar seus talentos. A peça escolhida tinha sido a “Lover’s Vows” (Juras de Amor), e Mr. Yates faria o papel de Conde Cassel.
– Um papel muito insignificante – disse ele – de que eu não gostei absolutamente e que certamente não aceitaria de novo; mas estava disposto a não criar dificuldades. Lorde Ravenshaw e o duque, quando eu cheguei em Ecclesford, já se tinham apropriado dos dois únicos papéis que valiam a pena representar; e embora Lorde Ravenshaw se oferecesse para me ceder o seu papel, era impossível aceitar, vocês sabem. Tinha pena dele por ter se enganado tanto no julgamento de suas capacidades, pois se assemelhava tanto ao Barão como... – é um homenzinho com uma voz muito fraca, sempre rouco depois dos primeiros dez minutos. Materialmente deveria estragar a peça; eu porém tinha resolvido não fazer as coisas difíceis. Sir Henry achou que o duque não podia representar o papel de Frederico, mas o caso é que Sir Henry queria o papel para si próprio; no entanto o papel estava em boas mãos. Surpreendeu-me ver como Sir Henry é obstinado. Felizmente a força da peça não dependia dele. A nossa Agatha era incomparável e muitos acharam o duque muito bom. No todo, a peça certamente seria levada admiravelmente.
“Foi um caso sério, palavra”; e “Concordo que os senhores foram realmente dignos de pena”, eram as simpáticas manifestações dos ouvintes.
– Não vale a pena lastimar; mas por certo a velha megera não poderia ter morrido em pior ocasião. Era impossível não se desejar que a notícia fosse abafada por mais três dias. Apenas três dias; e afinal de contas, era apenas a avó, e a morte, tendo ocorrido a trezentos e tantos quilômetros de distância, creio que não haveria grande prejuízo. Sei até que houve quem sugerisse isso; mas Lorde Ravenshaw, que é, suponho eu, um dos homens mais corretos da Inglaterra, não quis saber de tal história.
– Uma tragédia em vez de comédia – disse Mr. Bertram. – “Juras de Amor” posta de lado e Lorde Ravenshaw e senhora representando “Minha Avó” em família. Bem, a herança o deve consolar; e, entre nós ele já estivesse temendo o fracasso e os pulmões no papel do Barão e até tenha gostado de acabar com o brinquedo; e para você não ficar triste, Yates, proponho fazermos um pouco de teatro aqui em Mansfield e o convido para nos dirigir.
Isto, embora fosse idéia de momento, não terminou ali; pois a disposição para representar tinha despertado em todos e em ninguém com mais força do que nele próprio, que agora era o chefe da casa; tão poucas eram suas preocupações, que encontrava prazer em qualquer novidade; e além disso tinha um talento e um gosto para coisas cômicas que se adaptava exatamente à novidade de representar. A idéia se repetiu freqüentes vezes. – Oh, poder fazer uma experiência como a de Ecclesford! – As duas irmãs foram logo a favor; e Henry Crawford para quem em todo o tumulto de seus prazeres, este era ainda desconhecido, ficou animadíssimo com a idéia.
– Acredito sinceramente – disse ele – que neste momento estou suficientemente louco para fazer qualquer papel jamais escrito, desde Shylock ou Ricardo III até ao trovador de uma farsa, com sua capa escarlate e chapéu de pena. Sinto que poderia representar qualquer coisa ou todas as coisas; que poderia declamar, ou suspirar, ou dizer tolices em qualquer tragédia ou comédia escrita em língua inglesa. Vamos fazer qualquer coisa. Que seja a metade de uma peça, um ato, uma cena apenas; que é que nos impede? Não há de ser por causa desses semblantes, acrescentou virando-se para Miss Bertram. E quanto ao teatro, que significa um teatro? Vamos apenas nos divertir. Qualquer sala desta casa serve.
– Precisamos de uma cortina – disse Tom Bertram; – alguns metros de feltro verde para fazer um pano e talvez seja o bastante.
– Ora, mais que suficiente! – exclamou Mr. Yates, – com apenas um bastidor ou duas saídas, e três ou quatro cenários para trocar; não se precisaria mais nada para uma representação como esta. Para nos divertirmos entre nós mesmos, não precisamos de mais nada.
– Acho que até com menos ficaríamos satisfeitos – disse Maria. – Não se tem muito tempo e poderiam aparecer outras dificuldades. Devíamos de preferência adotar a idéia de Mr. Crawford e fazer apenas um representação, e não um teatro. Muitas partes das nossas melhores peças são independentes de cenários.
– Nada disso – disse Edmund que começava a ficar alarmado. – Não devemos fazer nada pela metade. Se temos que representar, que seja num teatro completamente instalado com ponto, camarote a galerias e com uma peça completa do princípio ao fim; que seja uma boa peça alemã, não importa qual, com uma cena final bem frívola, artificial, e um número de dança, com gaita de fole e uma canção nos intervalos. Se não fizermos mais do que Ecclesford, não faremos nada.
– Ora, Edmund, não seja implicante – disse Julia. – Ninguém gosta mais de teatro do que você.
– Realmente, mais para ver teatro de verdade, para ver uma boa peça bem representada; mas por coisa alguma me abalaria desta sala para a sala pegada para assistir aos esforços de gente inexperiente que não nasceu para o ofício; um grupo de cavalheiros e senhoras que teriam de lutar contra todas as desvantagens da educação e do decoro.
Depois de um intervalo, porém, o assunto ainda persistia e foi discutido com o mesmo entusiasmo, o interesse de cada um aumentando com a discussão e o conhecimento do interesse dos outros; embora nada ficasse estabelecido senão que Tom Bertram preferia uma comédia e as irmãs e Henry Crawford preferiam drama e que nada seria mais fácil do que encontrar uma peça que satisfizesse a todos, a resolução de representarem qualquer coisa parecia tão decidida, que Edmund se sentiu embaraçado. Estava resolvido a impedir, se possível, que levassem a idéia avante, apesar de sua mãe, que igualmente ouvia a conversa, não mostrar a mínima desaprovação.
Naquela mesma noite teve oportunidade de experimentar sua autoridade. Maria, Julia, Henry Crawford e Mr. Yates estavam na sala de bilhar. Tom, ao voltar para a sala de visitas, onde Edmund se achava pensativamente junto à lareira, enquanto Lady Bertram no sofá, um pouco distante, com Fanny a seu lado, se ocupava de um trabalho qualquer, foi dizendo logo à entrada:
– Uma mesa de bilhar tão horrivelmente abjeta como a nossa não deveria existir. Não a suporto mais, e acho, posso dizer, que nada me induzirá a aproximar-me dela de novo; mas de uma coisa estou certo: aquela é exatamente a sala indicada para um teatro, precisamente da forma e do comprimento para isto; e as portas do fundo, comunicando uma com a outra, como se arranjará em cinco minutos, unicamente com a remoção da estante de livros no gabinete de papai, é perfeita para o que nós queremos. Se ao menos tivéssemos chegado a um acordo! E o gabinete de papai seria um excelente bastidor. Parece que está de propósito ao lado da sala de bilhar.
– Você não está levando a sério, Tom, esta idéia de representação? – disse Edmund em voz baixa quando o irmão se aproximou da lareira.
– Se estou levando a sério! Nunca estive tão sério, posso lhe assegurar. Por que você se surpreende tanto com isto?
– Acho que seria um grande erro. Num ponto de vista geral, as comédias de salão já estão sujeitas a muitas objeções, mas nas circunstâncias em que nos achamos, acho que seria a maior falta de juízo, mais do que falta de juízo, tentar qualquer coisa neste gênero. Seria mostrar uma grande falta de respeito a papai, estando ele ausente e por assim dizer em constante perigo; além disso, seria imprudente, parece-me com respeito a Maria, cuja situação é muito delicada, – considerando tudo, – extremamente delicada.
– Você leva tudo tão a sério! Como se nós fôssemos representar três vezes por semana até papai voltar e convidar toda a vizinhança. Mas não se pretende fazer uma exibição desta espécie. Não queremos senão nos divertir entre nós mesmos, apenas para variar um pouco e experimentar nosso talentos em alguma coisa nova. Não queremos nem assistência nem publicidade. Acho que teremos bom senso suficiente para escolher alguma peça que seja perfeitamente irrepreensível; e não concebo maior prejuízo ou perigo para qualquer de nós conversar na linguagem elegante escrita por qualquer autor respeitável em vez de tagarelarmos com nossas próprias palavras. Não tenho receios nem escrúpulos. E quanto ao fato de papai estar ausente, está tão longe de ser uma objeção que não a considero um obstáculo; até ao contrário, esse período de ansiedade por que mamãe está passando até ele chegar, deve ser horrível para ela; se nós pudermos distrai-la um pouco dessa ansiedade e manter o seu ânimo erguido durante essas duas semanas que faltam, acho que nosso tempo terá sido bem empregado e estou certo que o será. É um período de grande inquietação para ela.
Ao dizer isto, ambos olharam para a mãe. Lady Bertram, afundada num dos cantos do sofá, perfeita imagem da saúde, opulência, bem estar e tranqüilidade, estava começando a cochilar docemente, enquanto Fanny se incumbia do trabalho dela.
Edmund sorriu e sacudiu a cabeça.
– Por Júpiter! Isto não adianta – exclamou Tom jogando-se numa cadeira com uma risada. – Para falar a verdade, minha boa mãe, a sua ansiedade – qual, não tive sorte.
– Que foi? – perguntou ela com a voz abafada de quem está meio dormindo. – Eu não estava dormindo, não.
– Oh não, querida mamãe, ninguém está dizendo isto! Bem Edmund, – continuou ele, voltando ao assunto, à atitude e à voz anterior, logo que a mãe recomeçou o cochilo – mas uma coisa eu mantenho: é que não havemos de fazer nada que possa causar qualquer dano.
– Não concordo com você; estou convencido de que papai não aprovaria a idéia de forma alguma.
– Pois estou convencido do contrário. Ninguém tem mais gosto em exercitar o talento das pessoas jovens e estou certo que ele sempre demonstrou prazer por qualquer coisa no gênero de representações, declamações e recitações. Quando nós éramos criança ele era o primeiro a nos animar para essas coisas. Quantas vezes choramos sobre o cadáver de Julio César nesta mesma sala, para divertimento dele?
– Mas aquilo era muito diferente. Você mesmo sabe que era diferente. Papai queria que nós, como estudantes, falássemos bem, mas nunca desejaria ver suas filhas moças representando peças de teatro. Sabe como ele é severo nestas questões de decoro.
– Sei tudo isto, – disse Tom aborrecido – conheço papai tão bem quanto você; e terei o cuidado de ver que as filhas dele não façam nada que o possam contrariar. Cuide de seus próprios interesses e deixe o resto da família por minha conta.
– Se você está resolvido a representar, – insistiu Edmund – espero ao menos que o faça de modo ligeiro e quietamente; e sou de opinião que não deviam pensar em fazer um teatro. Seria tomar liberdades com a casa na ausência de papai, o que não se justifica.
– Assumo a responsabilidade por tudo o que acontecer – disse Tom decidido. – A casa não será maculada. Meu interesse em cuidar desta casa é tão grande quanto o seu; e quanto às alterações que acabei de sugerir, tais como remover uma estante ou abrir uma porta, ou mesmo usar a sala de bilhar durante uma semana para outro fim, você podia do mesmo modo supor que papai fizesse objeção a que nós permanecêssemos mais nesta sala do que na sala de almoço como fazíamos antes dele partir, ou que o piano de minha irmã fosse removido de um lado da sala para o outro. Tolices!
– A inovação, se não é um erro como inovação, sê-lo-á pela despesa.
– Sim, a despesa de um tal empreendimento seria prodigiosa! Talvez não custe ao todo umas vinte libras. Alguma coisa que se pareça com um teatro teremos que arranjar, isto não há dúvida, mas será tudo muito simples; uma cortina verde e algum trabalho de carpintaria e é tudo; e como o trabalho de carpintaria pode ser todo feito aqui mesmo por Christopher Jackson, é até absurdo falar em despesa; contanto que empreguemos Jackson, Sir Thomas não terá nada a dizer. Não imagine que ninguém nesta casa possa ver ou julgar senão você. Você próprio não precisa tomar parte, se não quiser, mas não queira governar os outros.
– Não, e quanto a eu mesmo representar, – disse Edmund – a isto eu sou absolutamente contra.
Tom saiu da sala deixando Edmund sentado junto à lareira, mergulhado em profunda meditação.
Fanny que ouvira tudo e que estava de acordo com Edmund, através de toda a discussão, tentou neste momento confortá-lo dizendo:
– Talvez eles não consigam encontrar nenhuma peça que lhes sirva. As opiniões de seu irmão e as de suas irmãs parecem muito diferentes.
– Não tenho esperança neste ponto, Fanny. Se eles persistirem no projeto, acabarão encontrando alguma coisa. Falarei com minhas irmãs e tentarei dissuadi-las. É tudo que posso fazer.
– Tenho para mim que a tia Norris ficará de seu lado.
– Acredito que sim, mas ela não tem bastante influência nem com Tom nem com minhas irmãs para poder conseguir alguma coisa; e se eu mesmo não conseguir convencê-los, deixarei que as coisas tomem seu rumo, sem pedir a interferência dela. Briga de família é a maior desgraça que há e é melhor que se faça alguma coisa do que depois ter de puxar as orelhas.
As irmãs, a quem ele falou na manhã seguinte, se mostraram inteiramente solidárias com Tom. A mãe não fazia objeção ao projeto e elas não tinham o menor receio da desaprovação do pai. Não poderia haver mal numa coisa que tinha sido feita em casa de tantas famílias respeitáveis e por tantas senhoras da melhor sociedade; e devia ser excesso de escrúpulos ver alguma coisa que censurar num plano como o deles, em que só eram incluídos irmãos, irmãs e amigos íntimos e que nunca passaria deles mesmos. Julia, achou que de fato a situação de Maria poderia exigir certo cuidado e delicadeza – mas ela não tinha nada com isto – ela era livre; e Maria evidentemente considerava que seu noivado, ao contrário, a elevava muito acima de qualquer constrangimento e dava-lhe mais direito do que a Julia, de consultar pai ou mãe. Edmund tinha pouca esperança mas continuava a discutir o assunto quando Henry Crawford entrou na sala exclamando:
– Já não nos falta auxílio para o nosso teatro, Miss Bertram. Já temos reforços; minha irmã manda lembranças e espera ser admitida na companhia, e se sentirá feliz se lhe derem o papel de qualquer velha ama ou dócil confidente, que as senhoritas mesmas não queiram desempenhar.
Maria lançou um olhar para Edmund que significava “E agora o que diz? Será que ainda estamos errados, se Mary Crawford pensa como nós?” E Edmund, obrigado a calar-se, teve que reconhecer que a sedução do teatro era capaz de fascinar até os gênios; e na ingenuidade de seu amor, apoiou-se mais na delicadeza e gentileza do recado do que em qualquer outra coisa, para acomodar seus escrúpulos.
O projeto progredia. Oposição era inútil; e quanto a Mrs. Norris ele se enganara pensando que faria alguma coisa. Não opunha dificuldades que não fossem em cinco minutos dissuadidas por seus sobrinhos mais velhos, que tinham toda a força contra ela. E como o empreendimento só traria pequena despesa para todos e nenhuma para si própria, como previa no projeto um mundo de consolo na pressa, barulho e importância, e deduzira a vantagem imediata de imaginar-se obrigada a deixar sua própria casa, onde estava vivendo há um mês à sua própria custa e hospedar-se no Park, a fim de ficar à disposição deles, Mrs. Norris sentiu-se, de fato, excessivamente encantada com o projeto.
Fanny estava mais próxima de acertar do que Edmund o supunha. A dificuldade de encontrar uma peça que estivesse de acordo com o gosto de todos não foi pequena; o carpinteiro, depois de receber as ordens e tomar as medidas, depois de sugerir e remover no mínimo duas séries de dificuldades e mostrar a necessidade de um aumento do plano e das despesas, já se pusera a trabalhar e, enquanto isso, a peça ainda estava por escolher. Outros preparativos também estavam sendo feitos. Um enorme rolo de feltro verde chegara de Northamton e estava sendo cortado por Mrs. Norris (economizando, com a sua habilidade, bem uns três quartos de metro), para ser costurado pelas empregadas e se transformar numa cortina; a peça ainda faltava, porém; e como se passaram dois ou três dias nesta indecisão, Edmund começou a ter esperanças de que não viessem jamais a entrar em acordo.
Existiam, realmente, tantas coisas que precisavam resolver, tanta gente para agradar, tanta exigência de melhores papéis e, acima de tudo, a necessidade de que a peça fosse ao mesmo tempo tragédia e comédia, que parecia pouca possibilidade de chegarem a se decidir sobre qualquer uma.
Os adeptos da tragédia eram Misses Bertram, Henry Crawford e Mr. Yates; da comédia, Tom Bertram, não inteiramente sozinho, porque evidentemente Mary Crawford, embora por delicadeza não o demonstrasse, estava inclinada para o mesmo lado; mas a determinação e o prestígio dele dispensavam aliados; e, independente desta grande e irreconciliável diferença, queriam unanimemente uma peça que entrasse o menor número de personagens, mas todos em papéis de importância e três mulheres como protagonistas. As melhores peças foram todas estudadas inutilmente. Nem “Hamlet”, nem “Macbeth”, nem “Otelo”, nem “Douglas”, nem “O Jogador”, apresentavam qualquer coisa que pudesse satisfazer até mesmo os trágicos; e “Os Rivais”, “A Escola de Escândalos”, “Roda da Fortuna”, “Herdeiro por Lei” e muitos etceteras foram sucessivamente postas de lado ainda com as maiores objeções. Não se propunha uma peça que não aparecesse alguém com alguma dificuldade e de um lado ou de outro era uma ladainha contínua de “Oh, não, esta não serve de jeito nenhum! Não queremos tragédias. Esta tem personagens demais. Esta não tem nenhum papel feminino que seja tolerável. Qualquer outra menos esta, meu caro Tom. Esta não se pode. Não se pode esperar que alguém queira desempenhar tal papel. Nada senão palhaçada do princípio ao fim. Esta talvez servisse, se não fossem os personagens inferiores. Se aceitam minha opinião, nunca vi na língua inglesa uma peça mais insípida, mas não faço objeção; terei muito prazer em ser útil, mas acho que não poderíamos fazer pior escolha”.
Fanny via e ouvia, divertida em observar o egoísmo que, mais ou menos disfarçado, parecia governar a vontade de todos e estava de ver como acabaria. Para seu próprio benefício se tudo não fosse contra, ela deveria desejar que qualquer coisa fosse representada, pois nunca havia assistido nem à metade de uma peça.
– Isto assim não vai – disse Tom Bertram finalmente. – Estamos perdendo tempo da maneira mais abominável. É preciso resolver de alguma maneira. Seja lá o que for, contanto que se escolha qualquer coisa. Não devemos ser tão exigentes. Alguns personagens a mais não nos devem assustar. Podemos fazer papéis duplos. Não podemos querer só desempenhar papéis importantes. Se um papel é insignificante, maior será nosso mérito em tirar partido dele. Daqui em diante não porei mais dificuldades. Aceito qualquer papel que escolherem para mim, contanto que seja cômico. Que seja apenas cômico, não imponho outra condição.
Pela quinta vez ele então propôs “Herdeiro por Lei”, ficando somente na dúvida se preferia para si o papel de Lorde Duberley ou o do Dr. Pangloss; e muito seriamente mas com pouco êxito, tentou persuadir os outros de que havia várias partes bastante trágicas no resto da peça.
O silêncio que seguiu a esse esforço infrutífero foi interrompido pelo próprio orador, que, apanhando um dos muitos volumes de teatro que se achavam sobre a mesa, exclamou de repente:
– “Juras de Amor”! E porque “Juras de Amor” não há de servir para nós como serviu para os Ravenshaws? Como é que nunca pensamos nela? Que dizem vocês? Nela temos duas partes trágicas excelentes para Yates e Crawford, e o papel do poeta Butler para mim, caso ninguém o queira desempenhar; um papel insignificante mas no gênero que não me desgostaria e, como disse antes, estou resolvido a aceitar qualquer coisa e desempenhá-la o melhor que puder. E quanto aos outros personagens, podem ser desempenhados por qualquer pessoa. Restam somente os papéis de Conde Cassel e Anhalt.
A sugestão foi bem recebida. Já estavam ficando cansados daquela indecisão e a primeira idéia foi que nada havia sido proposto que tão bem satisfizesse a todos. Mr. Yates, principalmente, estava satisfeitíssimo: em Ecclesford ele havia suspirado por fazer o papel de Barão, invejara o papel de Lorde Ravenshaw e fora obrigado a guardar suas queixas para si mesmo. Declamar o papel do Barão Wildnheim era a sua maior ambição teatral; e com a vantagem de já saber de cor metade das cenas, ele agora já se oferecia com a maior presteza para desempenhar aquela parte. Fazendo-lhe justiça, ele não se apropriou logo do papel; pois, lembrando-se que havia também diálogos muito bons no papel de Frederico, demonstrou igual boa vontade para o desempenhar. Henry Crawford estava pronto a aceitar qualquer um. Qualquer um dos dois papéis que Mr. Yates não quisesse, seria excelente para ele, e seguiu-se a essa declaração uma troca de amabilidades e cumprimentos. Miss Bertram calculando os seus próprios interesses se lhe dessem o papel de Agatha, resolveu tomar a si o encargo de decidir a questão, observando a Mr. Yates que aquele era um caso em que a altura e a aparência física deveriam ser levadas em conta, por isso que sendo ele o mais alto dos dois, ficaria melhor no papel do Barão. Reconheceram que ela tinha toda a razão e os dois papéis assim distribuídos ela ficava segura quanto à pessoa que faria Frederico. Três personagens estavam escolhidos além do que seria representado por Mr. Rushworth, pelo qual Maria se responsabilizava que aceitaria qualquer um; porém Julia, pretendendo como a irmã fazer o papel de Agatha, começou a manifestar escrúpulos a respeito de Miss Crawford.
– Não estamos nos portando muito bem para com a ausente – disse ela. – Os papéis femininos não são suficientes. O de Amélia e Agatha podem ser desempenhados por Maria e por mim, mas que papel vamos dar para sua irmã, Mr. Crawford?
Mr. Crawford pediu que não se preocupassem com isso; sua irmã não estava assim tão interessada em representar, apenas estava disposta a tomar parte, caso isso fosse preciso e ele tinha certeza de que ela não permitiria que a considerassem no presente caso. Porém isso foi imediatamente contraditado por Tom Bertram, que declarou ser o papel de Amélia, em todos os sentidos, o indicado para Miss Crawford, se ela o aceitasse.
– Ele calha tão natural e necessariamente para ela, – disse o rapaz – quanto o de Agatha para uma ou outra das minhas irmãs. Nenhuma das duas fará sacrifício, visto que o papel é extremamente cômico.
Seguiu-se um curto silêncio. Ambas as irmãs estavam ansiosas, pois cada uma se sentia no direito de desempenhar a parte de Agatha, mas esperava que os outros o dissessem. Henry Crawford, que neste ínterim apanhara a peça e aparentemente descuidado folheava o primeiro ato, logo resolveu a situação.
– Aconselho Miss Julia a não desempenhar o papel de Agatha. Do contrário ela arruinará toda a minha solenidade. A senhorita não deve fazer, realmente não o deve. Não poderia resistir à sua fisionomia transformada em tristeza e palidez. As risadas que demos juntos infalivelmente me viriam à cabeça, e Frederico e a sua mochila teriam de sair correndo.
Falara com delicadeza, jovialmente; mas para os sentimentos de Julia a maneira nada significava. Percebeu que ele com os olhos se entendera com Maria, o que confirmava a ofensa feita a ela própria; aquilo fora planejado, era uma farsa; ela tinha sido iludida, Maria era a preferida; o sorriso de triunfo que Maria tentava reprimir mostrava quão bem fora compreendida; e antes que Julia pudesse protestar, o irmão também se manifestou contra ela, dizendo:
– Oh sim! Maria deve ser Agatha. Maria fará melhor o papel. Embora Julia imagine que prefere papéis trágicos, não confiaria muito nela. Ela não tem nada de trágica, nem tem aparência para isso. Não tem as feições trágicas, caminha e fala depressa demais e além disso não sabe ficar séria. Ela faria melhor o papel da velha aldeã, a mulher do camponês; realmente esse é o papel que serve para você, Julia. É uma parte muito bonita, pode crer. A velha abranda a altivez do marido com muito espírito. Pois você fará o papel da mulher do camponês.
– A mulher do camponês! – exclamou Mr. Yates. – Que está dizendo? A parte mais insignificante, mais trivial; da mais acabada vulgaridade! Nenhum diálogo que se aproveite! E fazer sua irmã desempenhar tal papel! É até um insulto fazer essa proposta. Em Ecclesford seria a governanta quem o desempenharia. – Todos concordaram em que não poderia ser oferecido a ninguém mais. – Um pouco mais de justiça, faça favor, senhor empresário. Não merece o lugar se não tem capacidade para julgar melhor os talentos da sua companhia.
– Quanto a isto, meu caro, até que eu e a minha companhia cheguemos realmente ao ponto de representar, ainda tem que haver muita conjectura; mas não tive a intenção de ofender Julia. Não podemos ter duas Agathas e precisamos de uma mulher para o camponês; e creio que eu mesmo dei o exemplo ficando com o papel do velho mordomo. Se a parte é insignificante, mais mérito ela terá por fazê-la sobressair; e se está tão desesperadamente contra tudo que é cômico, que faça então a parte do próprio camponês em vez da mulher. Ele é solene e bastante patético sem dúvida. Não faria a menor diferença para a peça e quando tivessem que aparecer juntos eu mesmo não faria questão de me encarregar do diálogo da mulher.
– Assim mesmo, – disse Henry Crawford – não seria possível adaptar o papel para sua irmã e seria injusto que ela fosse obrigada a desempenhá-lo. Não podemos permitir que aceite essa parte. Seus talentos farão falta para o papel de Amélia. Amélia é uma personagem mais difícil de ser representada que a própria Agatha. Considero Amélia a personagem mais difícil de toda a peça. Requer grande talento, grande sutileza para lhe dar graça e simplicidade, sem extravagância. Já vi boas atrizes falharem nesta parte. A simplicidade está, na verdade, fora do alcance de quase todas as atrizes profissionais. Requer uma delicadeza de sentimentos que elas não têm. Requer uma fidalga – uma Julia Bertram. A senhorita o desempenhará, não? – dirigiu-se à moça com um olhar de ansiosa solicitude, o que a abrandou um pouco. Mas enquanto Julia hesitava no que deveria dizer, o irmão novamente se interpôs com os direitos de Miss Crawford.
– Não, não, Julia não pode ser Amélia. Não serve para ela, que, aliás, não gostaria desta parte. Não a faria bem. Ela é muito alta e robusta, e Amélia deve ser uma pessoa pequena, esbelta e viva. O papel é próprio para Miss Crawford e unicamente para ela. Miss Crawford estudará o papel e estou certo de que o desempenhará admiravelmente.
Sem prestar atenção, Henry Crawford continuava a sua súplica.
– Deve nos fazer a vontade, dizia ele, depois que tiver estudado a personagem, tenho certeza que vai gostar do papel. Talvez goste mais dos papéis trágicos mas não há dúvida de que a comédia lhe convém melhor. A senhorita terá que me visitar na prisão levando uma cesta de provisões; por certo não se recusará a me visitar na prisão? Parece que a estou vendo chegar com a sua cesta.
A influência de sua voz se fazia sentir. Julia hesitava; mas estaria ele apenas tentando apaziguá-la e fazê-la esquecer a ofensa anterior? Não confiava nele. O seu desprezo fora bastante evidente. Ele estava, talvez, apenas, a fazê-la de boba. Olhou desconfiada para a irmã; a fisionomia de Maria havia de decidir: se ela estivesse preocupada, alarmada... Porém Maria estava muito serena, satisfeita, e Julia sabia perfeitamente que, naquele terreno, Maria só poderia estar feliz à sua custa. Indignada, portanto, e com a voz trêmula ela disse:
– O senhor não parece ter receio de perder a seriedade quando eu entrar com a cesta de provisões embora pense... Mas somente como Agatha é que eu havia de ser irresistivelmente cômica! – Calou-se.
Henry Crawford ficou olhando-a desconcertado, sem saber o que dizer. Tom Bertram novamente insistiu:
– Miss Crawford deve ser Amélia. Será uma Amélia excelente.
– Não tenha receio de que eu queira desempenhar o papel – exclamou Julia furiosa. – Se não fizer o papel de Agatha, não farei nenhum outro; e quanto ao de Amélia, é de todos os papéis o que mais desgosto. Detesto-o. Uma pequena odiosa, mesquinha, afetada e imprudente. Eu sempre fui contra a comédia e esta parte é comédia nos seus piores aspectos. – E assim dizendo saiu apressadamente da sala, deixando mais de uma pessoa embaraçada, porém inspirando pouca compaixão a todos, exceto a Fanny, que tendo ouvido calada toda a conversa, não poderia ver a prima sob a agitação do ciúme, sem sentir grande piedade.
Depois que ela saiu ficaram por um momento em silêncio; mas logo o irmão voltou ao assunto, e estudando a peça com grande interesse, com o auxílio de Mr. Yates, procurava saber de que cenários iriam precisar, enquanto Maria e Henry Crawford conversavam em voz baixa e a aparente sinceridade com que ela declarou:
– Estou certa de que desistiria de boa vontade do papel em favor de Julia, mas é que, embora eu provavelmente o desempenhe muito mal, estou persuadida de que Julia o faria muito pior – sem dúvida lhe valeu os cumprimentos que desejava.
Finalmente o grupo se dividiu; Tom Bertram e Mr. Yates saíram juntos para deliberarem sobre outras coisas na sala que já começara a ser chamada “o teatro” e Miss Bertram resolveu ir pessoalmente ao Presbitério oferecer pessoalmente o papel de Amélia a Miss Crawford; Fanny permaneceu sozinha.
A primeira coisa que fez logo que ficou só, foi pegar o volume que ficara sobre a mesa e começar a familiarizar-se com a peça que já ouvira tanto falar. Sua curiosidade era enorme e ela se empenhou na leitura com uma avidez que só era interrompida pelos intervalos de espanto, à idéia de que uma tal peça houvesse sido escolhida para aquela ocasião, que fosse proposta e aceita num teatro particular! Agatha e Amélia lhe pareciam, cada uma no seu gênero, inteiramente inadequadas para uma apresentação íntima; a situação de uma e a linguagem da outra, pareciam-lhe impróprias para serem expressas por qualquer mulher honesta, e não podia acreditar que suas primas tivessem consciência do papel para o qual estavam se comprometendo; e desejou que, quanto antes, Edmund as advertisse.
Miss Crawford aceitou prontamente a sua parte; e logo depois de Miss Bertram voltar do Presbitério, chegou Mr. Rushworth, ficando conseqüentemente distribuído o outro personagem. Ofereceram-lhe os papéis de Conde Cassel e Anhalt; a princípio ele ficou indeciso na escolha e pediu a Miss Bertram que o orientasse, mas depois que lhe fizeram compreender a diferença entre cada personagem e quando se recordou que uma vez em Londres já assistira àquela peça e que achara Anhalt um camarada muito estúpido, logo se decidiu pelo Conde. Miss Bertram aprovou a decisão, pois quanto menos ele tivesse que aprender, melhor seria; e embora não concordasse com o desejo do noivo de que o Conde e Agatha representassem juntos, nem demonstrasse muita paciência enquanto ele lentamente virasse as folhas do volume na esperança de ainda descobrir uma tal cena, ela se encarregou amavelmente de preparar a parte que cabia a ele e cortou todos os diálogos que podiam ser dispensados; além disso quando trataram do vestiário, escolheu-lhe as cores dos trajes. Mr. Rushworth gostou muito da idéia de aparecer ricamente vestido, embora pretendesse não estar ligando a isso; estava tão preocupado com a sua própria aparência que Maria estava quase certa de que ele não cuidaria pensar nos outros nem de tirar quaisquer conclusões ou mesmo sentir qualquer descontentamento.
Tudo isto foi exposto a Edmund, que estivera fora toda a manhã e não sabia de nada; quando ele entrou no salão antes do jantar, a discussão entre Tom, Maria e Mr. Yates estava no auge; e Mr. Rushworth adiantou-se ao seu encontro com grande entusiasmo para lhe contar as novidades.
– Já temos a peça – disse ele. – Vai ser “Juras de Amor”: eu vou desempenhar o papel de Conde Cassel, e no primeiro ato apareço com uma vestimenta azul, com capa de cetim rosa e depois com outra linda fantasia no feitio de uma roupa de caça. Não sei se irei gostar.
Os olhos de Fanny acompanharam Edmund e seu coração começou a bater quando ouviu aquele discurso e viu pela aparência do primo qual seria sua reação.
– “Juras de Amor”! – foi a única resposta que deu a Mr. Rushworth, num tom que demonstrava o maior espanto; em seguida virou-se para os irmãos como esperando uma contradição.
– Sim – exclamou Mr. Yates. – Depois de muitos debates e dificuldades, vimos que não havia nada que nos servisse tão bem, nada tão irrepreensível como “Juras de Amor”. É de admirar que não tivéssemos pensado nela antes. Minha estupidez foi abominável, pois nesta peça temos a vantagem de nos servir do que eu vi em Ecclesford; e é tão útil ter-se uma experiência! Já estão distribuídos quase todos os papéis.
– E como se arranjaram com os papéis femininos? – indagou Edmund gravemente, olhando para Maria.
Maria corou quando respondeu:
– Desempenharei o papel que Mrs. Ravenshaw teria feito e (com o olhar mais atrevido) Miss Crawford vai ser Amélia.
– Nunca imaginaria que esse fosse o gênero de peça que pudesse tão facilmente ser aceita por nós – respondeu Edmund, voltando-se para a lareira onde se achavam sua mãe, a tia e Fanny; sentou-se depois com um ar de grande contrariedade.
Mr. Rushworth seguiu-o para dizer:
– Eu apareço no palco duas vezes e tenho quarenta e dois diálogos. Já é alguma coisa, não? Mas não gosto muito é da idéia de aparecer tão fantasiado. Vou até me desconhecer num traje azul com capa de cetim cor de rosa.
Edmund ficou calado. Dentro de poucos minutos Tom Bertram foi chamado para esclarecer algumas dúvidas do carpinteiro, e tendo ido acompanhado de Mr. Yates e seguido logo depois de Mr. Rushworth, Edmund aproveitou a oportunidade para dizer:
– Não posso falar na frente de Mr. Yates sem ofender seus amigos de Ecclesford, dizendo o que penso desta peça, mas agora, minha querida Maria, devo dizer que acho a peça extremamente imprópria para uma representação íntima e espero que você desista dela. Estou certo de que desistirá quando a tiver lido com atenção. Leia em voz alta apenas o primeiro ato para mamãe e titia ouvirem e vai ver se a aprovam.
– Nós vermos as coisas muito diferentes – exclamou Maria. – Conheço a peça perfeitamente, posso lhe garantir; e com muito poucas omissões, que naturalmente serão feitas, não vejo nada repreensível nela; aliás não sou a única moça que a acha própria para ser representada particularmente.
– Pois sinto muito – foi a resposta dele; – mas neste caso você é quem deveria orientar. Deve dar o exemplo. Se os outros erraram, é seu dever lhes chamar a atenção e lhes mostrar a verdadeira delicadeza. Em questões de decoro, a sua conduta deve servir de regra para os demais.
Esta imagem da sua importância surtiu algum efeito, pois ninguém como Maria gostava de dirigir; respondeu pois de melhor humor:
– Fico-lhe muito grata, Edmund; sua intenção é muito boa, estou certa; mas continuo achando que você vê as coisas com severidade demais; e eu realmente não me posso encarregar de fazer um sermão a todos os outros por causa de uma questão desta ordem. Aí sim, eu acho que não seria decente.
– E você imagina que eu tenha tido tal idéia? Não: deixe que a sua conduta seja a única a orientá-los. Pode dizer que, examinando a peça, você não a achou conveniente; que não se sente capaz de a desempenhar. Diga isto com firmeza e será o bastante. Todos que tiverem bom senso, compreenderão o motivo. Desistirão da peça e a sua dignidade será louvada como de direito.
– Não represente nada que não seja próprio, minha querida – pediu Lady Bertram. – Sir Thomas não haveria de gostar. Fanny, toque a campainha; está na hora do jantar. Julia certamente já deve estar pronta.
– Tenho a certeza, mamãe, – disse Edmund precedendo Fanny – que Sir Thomas não aprovaria.
– Vê, minha querida, está ouvindo o que Edmund diz?
– Se eu desistir do papel, – declarou Maria com novos escrúpulos – Julia certamente o desempenhará.
– Que! – admirou-se Edmund – mesmo sabendo os seus motivos?
– Oh! Ela decerto levaria em conta a diferença entre nós – a diferença de situação de cada uma – e pensaria não ter necessidade de ser tão escrupulosa quanto eu. Tenho certeza de que este seria o argumento dela. Não, peço que me desculpe; não posso voltar atrás; já está tudo combinado, ficariam todos desapontados, e Tom furioso; e se formos levar tudo com essa severidade, nunca representaremos coisa alguma.
– Era isto exatamente o que eu ia dizer – interrompeu Mrs. Norris. – Se todas as peças forem rejeitadas, acabam não representando nada e o dinheiro que já se gastou com os preparativos será posto fora, o que seria uma desconsideração para todos nós. Não conheço a peça; mas, como Maria diz, se houver qualquer coisa um pouco picante demais (como acontece com a maioria) pode ser suprimida facilmente. Não devemos exagerar, Edmund. Já que Mr. Rushworth vai também tomar parte na representação, não pode haver mal algum. Só acho que Tom deveria ter resolvido melhor o que queria, antes dos carpinteiros começarem, pois se perdeu meio dia de trabalho naquelas portas laterais. A cortina, porém, ficará ótima. As raparigas trabalham bem e creio que poderemos devolver algumas dúzias de argolas. Não há necessidade de as pregar tão juntas. Eu estou sendo útil, evitando desperdícios e fazendo tudo que posso. É preciso que haja uma cabeça firme para superintender tanta gente desmiolada. Esqueci de contar a Tom o que me aconteceu hoje. Estava no pátio do galinheiro e quando ia saindo, quem eu vejo senão Dick Jackson, dirigindo-se para a porta de serviço com dois pedaços daquelas tábuas mais caras, levando-os sem dúvida para o pai; a mãe o tinha mandado falar com o pai, e o pai o mandou trazer os dois pedaços de madeira, de que estava precisando muito. Mas eu sabia o que significava tudo isto, pois a sineta do jantar dos empregados estava tocando naquele momento nos nossos ouvidos; e como detesto gente ladra (os Jacksons são uns ladrões, eu sempre disse: gente que carrega tudo o que pode), disse logo para o rapaz (um rapazinho de dez anos, muito vadio, que devia se envergonhar de si mesmo): – Eu mesma levo as tábuas para o seu pai, Dick, e você ponha-se para fora imediatamente. O pequeno me olhou apalermado e virou-se sem dizer uma palavra, pois creio que lhe falei com muita aspereza; mas aposto que ele tão cedo não voltará aqui para roubar. Odeio essa voracidade; tão bom que Sir Thomas é para toda a família, dando serviço ao pai, durante todo o ano.
Ninguém se deu ao trabalho de responder; em seguida os outros voltaram; e Edmund compreendeu que o ter tentado persuadi-los devia ser a sua única satisfação.
O jantar correu pesadamente. Mrs. Norris mais uma vez relatou seu triunfo sobre Dick Jackson, mas a peça e os preparativos não foram mais comentados, pois a desaprovação de Edmund se refletia até no irmão, embora este não o quisesse admitir. Maria, sem o apoio de Henry Crawford, preferiu evitar o assunto. Mr. Yates, que procurava se fazer amável para Julia, compreendeu que o mau humor dela era menos impenetrável em outro qualquer assunto do que no referente à sua deserção da companhia; Mr. Rushworth, não pensando noutra coisa senão no seu próprio papel e sua próprias toilletes, logo esgotou tudo o que tinha a dizer sobre qualquer dos dois temas.
Os comentários sobre o teatro foram porém suspensos apenas por uma ou duas horas; ainda havia muitas coisas para serem resolvidas; criando novo ânimo, Tom, Maria e Mr. Yates logo depois de voltarem para o salão, sentaram-se ao redor de uma mesa separada, e com a peça aberta à sua frente, já aprofundavam no assunto quando foram interrompidos pela entrada de Mr. e Miss Crawford, que, tarde da noite, escuro e enlameado como estava o caminho, não puderam deixar de vir e foram recebidos com a maior alegria.
“Muito bem, como vai indo o teatro?” e “que resolveram?” e “Oh! Não podemos fazer nada sem a sua presença”, seguiram as primeiras saudações; Henry Crawford em seguida sentou-se junto aos três enquanto sua irmã se dirigia para Lady Bertram e atenciosamente a cumprimentava.
– Felicito vossa senhoria, – disse ela – por ter sido escolhida a peça; pois embora tenha suportado tudo com a maior paciência, estou certa de que já devia estar farta de todo o nosso barulho e discussões. Os atores devem estar contentes mas os espectadores devem estar infinitamente mais satisfeitos com a decisão; e eu sinceramente lhe desejo os parabéns, minha senhora, bem como a Mrs. Norris e todos os que estiverem na mesma situação, concluiu relanceando os olhos meio receosa, meio acanhada, para Fanny e Edmund.
Lady Bertram respondeu-lhe muito delicadamente mas Edmund ficou calado, sem contestar ser apenas espectador. Depois de por alguns minutos conversar com o grupo ao redor da lareira, Miss Crawford dirigiu-se para a turma em volta da mesa; e em pé ao lado deles parecia interessar-se pelos debates até que, impelida por uma súbita lembrança, exclamou:
– Meus amigos, vocês estão muito tranquilamente estudando estas questões de cabanas e tavernas, por dentro e por fora; mas por favor, abram um parêntese para me esclarecerem sobre a minha sorte. Quem vai fazer o papel de Anhalt? Qual dos cavalheiros presentes eu terei o prazer de namorar durante a representação?
Por um momento ninguém falou; depois todos falaram ao mesmo tempo para confessarem a triste verdade de que ainda não fora arranjado nenhum Anhalt. Mr. Rushworth ia desempenhar o papel de Conde Cassel mas o de Anhalt ainda estava por resolver.
– A mim me ofereceram os dois papéis – disse Mr. Rushworth; – mas eu achei melhor o do Conde, embora não me agrade muito o traje que terei de usar.
– O senhor escolheu muito bem – disse Miss Crawford com o olhar malicioso; – o papel de Anhalt é muito enfadonho.
– O Conde tem que decorar quarenta e dois diálogos, – retrucou Mr. Rushworth – o que não é pouco.
– Não me surpreende, – disse Miss Crawford depois de curto intervalo – esta falta de Anhalt. Amélia não merece melhor sorte. Uma rapariga tão atrevida assusta os homens.
– Eu teria muito prazer em desempenhar o papel, se me fosse possível, – exclamou Tom; – mas infelizmente o mordomo e Anhalt têm de aparecer em cena ao mesmo tempo. Mas ainda não desisti de todo; verei o que pode ser feito – vou ler a peça de novo.
– Seu irmão devia desempenhar o papel, – disse Mr. Yates em voz baixa dirigindo-se a Tom. – Acha que ele o faria?
– Não conte comigo para lhe falar – respondeu Tom de um modo seco, determinado.
Miss Crawford falou de outra qualquer coisa e em seguida foi juntar-se ao grupo da lareira.
– Não querem saber de mim – disse ela sentando-se. – Só sirvo para os embaraçar e obrigá-los a fazerem discursos delicados. Mr. Edmund Bertram, como não vai representar, será portanto um conselheiro desinteressado; por isso apelo para o senhor. Como havemos de encontrar um Anhalt? É direito que qualquer um dos outros faça papel duplo? Qual é a sua opinião?
– Aconselho que arranjem outra peça – disse ele calmamente.
– Por mim não faço objeção – respondeu ela; – mas embora não me desgoste particularmente o papel de Amélia, se for bem amparada, isto é, se tudo correr bem, não gostaria de criar dificuldades; enfim, como não pediram seu conselho (olhando para os da mesa), certamente não o seguirão.
Edmund não retrucou.
– Se qualquer papel tivesse o poder de o tentar a representar, suponho que seria o de Anhalt, – observou a moça maliciosamente depois de pequeno intervalo; – pois ele era um pastor, como sabe.
– Esta circunstância não me tenta em absoluto, – respondeu o rapaz – pois não gostaria de tornar o personagem ridículo com a minha má representação. Deve ser muito difícil evitar que Anhalt pareça um pregador afetadamente solene; e o homem que escolheu a profissão para si próprio, é, talvez, o último a desejar representá-la num palco.
Miss Crawford calou-se e um pouco ressentida, afastou a cadeira mais para perto da mesa de chá, dando toda a sua atenção a Mrs. Norris, que ali presidia.
– Fanny, – chamou Tom Bertram do outro lado da mesa onde a conferência prosseguia – precisamos de você.
Fanny levantou-se imediatamente, esperando que a fossem incumbir de alguma mensagem, pois o hábito de a empregarem naquele mister ainda perdurava, apesar de Edmund lutar contra ele.
– Oh! Não precisa levantar-se. Não precisamos de você no momento. Apenas precisamos de sua cooperação na nossa peça. Você tem de desempenhar o papel da mulher do camponês.
– Eu! – exclamou Fanny sentando-se novamente, muito assustada. – Peço que me desculpem. Eu não poderia representar por coisa alguma. Não, na verdade não posso.
– Sim, mas tem que representar, porque nós não podemos dispensar você. Não precisa ter receio, o papel é muito insignificante, uma tolice mesmo, não tem mais do que meia dúzia de diálogos ao todo, e não tem importância que ninguém ouça uma palavra do que você disser. Pode portanto ficar muda como quiser, contanto que apareça em cena.
– Se meia dúzia de diálogos a assusta, – exclamou Mr. Rushworth – o que não seria se tivesse que desempenhar um papel como o meu? São quarenta e dois diálogos que tenho que decorar.
– Não é que eu tenha receio de não decorar, – disse Fanny encabulada por se ver naquele momento a única a falar em todo o salão e sentindo que todos os olhos se fixavam nela; – mas realmente não posso representar.
– Sim, sim, você poderá representar suficientemente bem para nós. Estude a sua parte e nós lhe ensinaremos o resto. Só aparecerá em cena duas vezes e, como eu farei o papel do camponês, posso guiá-la para aqui e para ali. Você irá muito bem, respondo por isto.
– Não, Mr. Bertram, peço que me desculpe. Não pode imaginar. Seria absolutamente impossível para mim. Se eu aceitasse, o senhor ficaria desapontado.
– Ora, ora! Não seja tão modesta. Você se sairá muito bem. Nós seremos condescendentes, não esperamos perfeição. Só precisa arranjar um vestido marrom, um avental branco, uma touca de camponesa e depois que nós lhe pintarmos algumas rugas e alguns pés de galinhas nos cantos dos olhos, você ficará uma velhinha perfeita.
– Devem dispensar-me, devem dispensar-me, – implorava Fanny, cada vez mais vermelha de encabulação e virando-se aflita para Edmund que a observava ternamente; mas não querendo exasperar o irmão com a sua interferência ele apenas a encorajou com um sorriso. As súplicas não surtiram efeito sobre Tom; ele apenas repetiu o que havia dito antes e não foi apenas Tom, pois agora o pedido era secundado por Maria e os moços Crawford e Yates, com uma insistência que só diferia da dele por ser mais delicada e cerimoniosa; e antes que Fanny pudesse respirar, Mrs. Norris completou o conjunto dirigindo-se a ela num sussurro ao mesmo tempo áspero e audível:
– Que bonito papel está fazendo por nada; envergonho-me de você, Fanny, criar uma tal dificuldade para servir a seus primos numa bagatela como esta – eles que são tão bondosos com você! Concorde de boa vontade e não crie mais discussão, estou avisando-a.
– Não a obrigue, minha tia – disse Edmund. – Não é direito que a obriguem dessa maneira. Está vendo que ela não quer representar. Tem o direito de escolher como nós; a vontade dela deve ser levada em consideração. Não a obrigue mais.
– Não a estou obrigando – respondeu Mrs. Norris asperamente; – mas acho que ela será muito teimosa e ingrata se não quiser fazer o que a tia e os primos lhe pedem; muito ingrata, na verdade, considerando-se quem é e o que ela é.
Edmund estava tão furioso que não podia falar; mas Miss Crawford fixando por um momento o olhar admirado de Mrs. Norris e depois em Fanny, cujas lágrimas começavam a correr pelas faces, disse imediatamente com alguma aspereza:
– Não posso ficar neste lugar; está quente demais para mim; – e movendo a cadeira para o lado oposto da mesa, perto de Fanny, disse-lhe ela baixinho, bondosamente: – Não se preocupe, minha querida, esta noite está toda arrevesada; todo mundo está contrariado e aborrecido, mas deixa-os para lá; – e com evidente atenção continuou a falar com ela, procurando erguer-lhe o moral, apesar de estar ela própria com moral abatida. Com um sinal ao irmão, impediu que insistissem no pedido e os sentimentos realmente bons que demonstrava, rapidamente lhe reconquistaram o pouco que havia perdido no conceito de Edmund.
Fanny não havia simpatizado com Miss Crawford; mas no momento sentia-se muito grata a ela pela bondade com que a tratava; Miss Crawford, depois de reparar no seu trabalho, declarando que desejava trabalhar tão bem, indagou se Fanny se preparava para ser apresentada, como naturalmente o seria depois que a prima se casasse; prosseguiu depois se ela havia ultimamente recebido notícias do irmão e dizendo que tinha muita vontade de o conhecer pois o imaginava um rapaz muito distinto. Aconselhou a Fanny que procurasse mandar-lhe pintar o retrato, antes de ele embarcar novamente; Fanny então não pôde deixar de admitir que realmente aquela gentileza lhe era muito agradável e boa de se ouvir, e viu-se respondendo com mais animação do que tencionava.
As consultas sobre a peça prosseguiam e a atenção de Miss Crawford foi desviada de Fanny por Tom Bertram, que lhe disse consternado ter chegado à conclusão de que lhe seria absolutamente impossível desempenhar os papéis de Anhalt e do mordomo ao mesmo tempo: procurava com o maior interesse ajustar os dois papéis mas via que de fato não era possível; tinha que desistir.
– Mas não haverá a menor dificuldade em arranjar quem o desempenhe – acrescentou. – É só procurar; eu podia neste momento, enumerar no mínimo seis rapazes não muito distantes daqui, que ficariam radiantes se fossem admitidos na nossa companhia e um ou dois que não fariam má figura; não receio em confiar o caso a Oliver ou a Charles Maddox. Tom Oliver é muito inteligente e Charles Maddox é um rapaz distinto como não se vê em toda a parte. Irei pois a cavalo, amanhã bem cedo até Stokes e combinarei tudo com um dos dois.
Enquanto ele assim falava, Maria olhava apreensiva para Edmund, esperando que ele se opusesse a uma tal expansão do projeto, tão contrária a todos os seus projetos anteriores; porém Edmund não disse nada. Depois de alguma reflexão, Miss Crawford respondeu calmamente:
– Pela parte que me toca, não posso fazer objeção ao que todos tiverem concordado. Será que eu conheço qualquer um dos dois cavalheiros? Sim? Mr. Charles Maddox jantou uma vez em casa de minha irmã, não foi Henry? Um rapaz de aparência muito tímida. Lembro-me dele. Então por favor dêem-lhe preferência, pois para mim será menos desagradável do que ter que representar com uma pessoa inteiramente estranha.
Seria resolvido que seria Charles Maddox o escolhido. Tom repetiu que iria procurá-lo no dia seguinte; e embora Julia, que toda a noite não dissera uma palavra, observasse agora sarcasticamente com um olhar primeiro para Maria e depois para Edmund, que “o teatro de Mansfield iria animar excessivamente toda a vizinhança”, Edmund continuou calado e apenas demonstrou seu ressentimento com decisiva seriedade.
– Eu não estou muito interessada nessa representação, – disse Miss Crawford em voz baixa a Fanny, depois de uma pausa; – e vou prevenir Mr. Maddox de que cortarei alguns dos diálogos dele e uma grande parte dos meus, antes de ensaiarmos juntos. Vai ser muito desagradável e de forma alguma eu esperava isso.
Não estava no poder de Miss Crawford fazer com que Fanny esquecesse completamente o que se havia passado. No fim da noite, quando foi para a cama, cheia de ressentimentos, seus nervos ainda estavam agitados com o choque provocado pelo ataque de seu primo Tom, tão público e tão insistente e o moral abatido pela impiedosa censura e exprobração da tia. Ser-lhe chamada a atenção de tal maneira, compreender que aquilo não era senão o prelúdio de alguma coisa infinitamente pior, saber que seria obrigada a fazer o que lhe parecia tão impossível; e depois ser acusada de teimosia e ingratidão e, além de tudo, aquela insinuação à dependência da sua situação, tinha sido por demais doloroso para que se apagasse assim de sua memória, especialmente estando, como estava, aterrorizada com o que o dia seguinte poderia produzir em continuação àquele assunto. Miss Crawford protegera-a apenas no momento; e se eles novamente insistissem, com a autoridade que Tom e Maria exerciam sobre ela, Edmund estando, talvez, ausente, que faria Fanny? Adormeceu antes de achar a resposta e na manhã seguinte quando acordou, viu que o problema continuava sem solução como na véspera. O pequeno quarto branco das águas furtadas, que continuava a ser seu dormitório desde que entrara para a família, não lhe tendo sugerido nenhuma solução, ela recorreu, logo que se vestiu, para outro compartimento mais espaçoso e mais conveniente para andar de um lado para outro e pensar, e do qual ela já por algum tempo era quase que dona absoluta. Este compartimento havia sido a sala de aula; assim foi chamado até que as Misses Bertram não mais permitiram que o denominassem ou o usassem para tal fim. Ali tinha vivido Miss Lee e ali eles tinham lido e escrito, conversado e rido, até o meado dos últimos três anos, quando ela os deixou. A sala tornou-se então inútil e por algum tempo abandonada, exceto por Fanny, quando ali ia ver as suas plantas ou procurar um dos livros que ainda gostava de conservar lá, por falta de espaço e acomodação no seu pequeno dormitório de cima; mas gradualmente, dando valor ao conforto que ele lhe oferecia, adicionou-o às suas possessões e passava lá a maior parte do tempo; e não havendo nada que o impedisse, ela tão natural e simplesmente se acomodou dentro dele que agora era geralmente reconhecido como seu. A “sala do Leste” como a chamavam desde que Maria completara dezesseis anos, era agora considerada de Fanny, quase tão decisivamente quanto o pequeno quarto das águas furtadas: a exigüidade de um fazia o uso do outro tão evidentemente razoável, que as Misses Bertram, com toda a superioridade de seus próprios compartimentos, estavam inteiramente de acordo; e Mrs. Norris, depois de ficar assentado que não se acenderia a lareira para uso de Fanny, resignou-se a que ela tomasse conta de um compartimento que ninguém mais queria, embora os termos com que às vezes se referia àquele privilégio dessem a entender que se tratava do melhor compartimento da casa.
O ambiente era tão favorável que, mesmo sem aquecimento, era habitável em muitas manhãs de princípio de primavera ou de fim de outono para uma natureza disposta como a de Fanny; e quando restou um raio de sol, ela esperou não precisar sair dali, mesmo quando viesse o inverno. O conforto que lhe proporcionava nas suas horas de folga era imenso. Quando alguma coisa desagradável lhe acontecia embaixo, retirava-se para lá e encontrava imediato consolo em qualquer trabalho ou estudo. Suas plantas, seus livros – os quais colecionava desde a primeira hora em que tivera um shilling à sua disposição – sua escrivaninha e seus trabalhos de caridade, estavam todos ao alcance da mão; e se estivesse indisposta para trabalhar, se não quisesse senão meditar, encontrava naquela sala objetos que lhe traziam, cada um, alguma lembrança interessante. Cada um era um amigo ou levava seus pensamentos para um amigo; e embora algumas vezes tivesse sofrido muito, embora raramente tivesse sido compreendida, seus sentimentos desprezados, sua inteligência subestimada; embora tivesse conhecido a dor da tirania, do ridículo, do esquecimento; contudo quase sempre a lembrança que cada um lhe trazia representava para ela um motivo de consolo; sua tia Bertram a tinha defendido, ou Miss Lee a tinha estimulado, ou, o que era ainda mais freqüente e mais caro, Edmund tinha sido o seu herói e seu amigo; ele defendera a sua causa ou esclarecera o seu pensamento; ele tinha dito que não chorasse ou tinha dado alguma prova de afeição que lhe tornara as lágrimas deliciosas, e tudo isto agora estava tão confundido , tão harmonizado pela distância, que cada sofrimento anterior tinha seu encanto. A sala era muito querida para ela e não trocaria os móveis que a guarneciam pelos mais lindos que houvesse na casa, embora estivessem bastante estragados pelo uso das crianças; e as suas maiores elegâncias e ornamentos constavam de um tamborete desbotado, trabalho de Julia e que não servira para o salão por estar muito mal feito, três cortinas transparentes, feitas na ocasião que houve grande mania por tais cortinas, para os três vidros inferiores de uma janela, sobre a chaminé, uma coleção de retratos da família, considerados indignos de estarem em outra qualquer parte, e ao lado desses, pregado na parede, um pequeno “croquis” de um navio enviado do Mediterrâneo, por William, há quatro anos passados, com as iniciais e o nome “H. M. S. ANTHWERP” escritas na parte inferior, em letras da altura do mastro grande.
Foi para este ninho de confortos que Fanny agora se dirigiu, a fim de experimentar sua influência sobre um espírito agitado, confuso, e para ver se, olhando o retrato de Edmund, podia receber algum de seus conselhos, ou se, ao arejar os gerânios na janela, ela própria conseguiria inalar algum sopro de força mental. Mas tinha que remover outros receios além dos que atingiam a sua própria perseverança; começava a ficar indecisa quanto ao que deveria fazer; e enquanto dava voltas na sala, suas dúvidas aumentavam. Não estaria ela errada em recusar o que lhe havia sido pedido com tanta insistência, tão ardentemente desejado para – o que poderia ser tão essencial para um projeto no qual estavam empenhados alguns daqueles a quem ela devia as maiores bondades? Não seria maldade, egoísmo e medo de se expor? E seria a opinião de Edmund, seria a sua certeza da desaprovação de Sir Thomas, suficiente para justificá-la naquela recusa? A idéia de representar era para ela tão horrível, que estava inclinada a desconfiar da sinceridade e da pureza de seus escrúpulos; e ao olhar à sua roda, à vista dos presentes e presentes que recebera dos primos, sentia-se mais na obrigação de os satisfazer. A mesa entre as janelas estava coberta de cestas de costura, caixas de agulhas e novelos de lã, que lhe haviam sido dados em várias ocasiões, principalmente por Tom; e ela ficou perturbada pela soma dos favores que lhe devia, graças a todas essas bondosas lembranças. Uma batida na porta a despertou no meio desta tentativa de encontrar o caminho para seu dever e o seu suave “pode entrar” foi respondido pela aparição da pessoa ante quem costumava expor todas as suas dúvidas. Seus olhos brilharam à vista de Edmund.
– Posso falar com você por alguns minutos, Fanny?
– Sim, certamente.
– Quero lhe fazer uma consulta. Preciso de sua opinião.
– Minha opinião! – exclamou ela, retraindo-se por um tal cumprimento, por muito que ele a lisonjeasse.
– Sim, seu conselho e opinião. Não sei o que fazer. Esta idéia de teatro vai de mal a pior, como vê. Não podiam ter escolhido uma peça pior e agora, para completar, vão convidar para nela fazer parte, um rapaz a quem conhecemos muito ligeiramente. Isto é o fim de toda a intimidade e decoro de que a princípio falavam. Não conheço nada de mal a respeito de Charles Maddox; mas a excessiva intimidade que poderá surgir por ele ser introduzido desta maneira em nosso meio, é absolutamente inadmissível, e mais do que intimidade – a familiaridade. Não posso pensar nisso sem me revoltar; e a mim me parece uma tão grande desgraça que, se possível, se deveria impedir. Você não concorda comigo?
– Concordo sim; mas que se há de fazer? Seu irmão está tão obstinado.
– Só há um meio, Fanny. Eu mesmo terei que desempenhar o papel de Anhalt. Do contrário, sei bem que Tom não sossegará.
Fanny não pôde responder.
– Não é absolutamente o que eu pretendia – continuou ele. – Ninguém gosta de ser apanhado numa tal contradição. Depois de ter sido contra o projeto desde o princípio, é realmente absurdo que eu agora me associe a eles, justamente agora que começam a sair do plano original em todos os respeitos; mas não vejo outra alternativa. Você vê, Fanny?
– Não, – disse Fanny devagar – imediatamente não, mas...
– Mas o que? Vejo que não concorda comigo. Reflita um pouco. Talvez você não compreenda tanto quanto eu o mal que pode, o aborrecimento que deve surgir por se receber um rapaz desta forma; dando-lhe todos os direitos entre nós; autorizando-o a vir aqui a qualquer hora e colocando-o numa posição que por força eliminará todo constrangimento. Sem pensar na liberdade que cada ensaio tende a criar. Está tudo errado! Ponha-se no lugar de Miss Crawford, Fanny. Considere o que significa desempenhar o papel de Amélia com um estranho. Ouvi o suficiente do que ela disse a você ontem à noite, para compreender que está desgostosa de ter de representar com um estranho; provavelmente aceitou o papel esperando coisa diferente – talvez não tenha considerado suficientemente a questão para pensar no que poderia acontecer – seria injusto, seria realmente incorreto expô-la a isto. Seus sentimentos deviam ser respeitados. Você não acha, Fanny? Você parece hesitar.
– Sinto muito por Miss Crawford; mas sinto muito mais por vê-lo obrigado a fazer uma coisa contra a qual a qual se debateu e que era sabido você achar que seria desagradável a meu tio. Será um triunfo tão grande para os outros!
– Eles não terão muitos motivos para triunfar, quando virem o quão infamemente eu represento. Contudo triunfo certamente será, e eu tenho que o afrontar. Mas se depende de mim impedir a publicidade do negócio, limitar a exibição, concentrar nossa loucura, serei bem recompensado, não posso fazer nada: eu os ofendi e eles não me ouvirão; mas depois que eu os puser de bom humor com esta concessão, tenho esperanças de os persuadir a restringirem a representação a um círculo muito menor do que o para que estão caminhando. Já é um benefício. Minha intenção é limitá-lo a Mrs. Rushworth e aos Grant. Não acha que vale o sacrifício?
– Sim, já é uma grande vantagem.
– Mas ainda não tenho a sua aprovação. Pode você encontrar outro meio pelo qual eu tenha a oportunidade de obter igual vantagem?
– Não, não vejo outro meio.
– Então conceda-me a sua aprovação, Fanny. Sem ela não me sinto feliz.
– Oh, primo!
– Se você está contra mim, eu devo suspeitar de mim mesmo, e no entanto... Mas é absolutamente impossível deixar que Tom prossiga desta maneira, galopando pela vizinhança atrás de alguém a quem possa persuadir de representar – não importa quem; desde que tenha a aparência de “gentleman”, é suficiente. Pensei que você estivesse mais inteirada dos sentimentos de Miss Crawford.
– Sem dúvida, ficará muito contente. Será um grande alívio para ela – disse Fanny procurando dar maior ardor às suas palavras.
– Ela nunca me pareceu tão gentil como ontem à noite, pela maneira como se portou com você. Por causa disso, ganhou muito no meu conceito.
– Foi, na verdade, muito boa, e eu gostaria de vê-la poupada.
Não pôde terminar a generosa expansão. Sua consciência fê-la parar no meio, mas Edmund ficou satisfeito.
– Darei a notícia logo depois do almoço, – disse ele – e tenho a certeza de que ficarão contentes. E agora, querida Fanny, não quero interrompê-la por mais tempo. Você quererá ler. Mas eu não podia me sentir à vontade enquanto não lhe falasse e chegasse a uma decisão. Dormindo ou acordado, minha cabeça estava cheia desse negócio toda a noite. É uma desgraça, mas eu certamente a farei menor do que poderia ser. Se Tom já estiver levantado falarei com ele diretamente e liquido tudo de uma vez; quando formos para a mesa do almoço estaremos todos no maior bom humor com a perspectiva de fazer o papel de bobo com tal unanimidade. Neste ínterim você estará viajando pela China. Como vai indo Lord Macartney? (abriu um volume de cima da mesa e depois vários outros). E aqui temos “Tales” e “The Idler” de Crabbe, para a socorrer quando se cansar de seu grande livro. Admiro imensamente o seu pequeno retiro; e logo que eu sair, você varrerá de sua cabeça toda essa tolice de representação e se sentará confortavelmente na sua escrivaninha. Mas não permaneça aqui até se resfriar.
Ele saiu; mas não houve leitura, nem China, nem recolhimento para Fanny. Ele tinha trazido as mais extraordinárias, mais inconcebíveis, mais desagradáveis notícias; e ela não podia pensar noutra coisa. Ele representando! Depois de todas as suas objeções – objeções tão justas e tão públicas! Depois de tudo o que ela o ouvira dizer, de ver o seu procedimento, de saber o que ele havia sentido. Seria possível? Edmund tão inconstante! Não estaria ele se enganando a si próprio? Não estaria ele enganado? Oh! Tudo isto era culpa de Miss Crawford. Tinha sentido a influência dela em todas as suas palavras e sofrera. As dúvidas e inquietações quanto a sua própria conduta que anteriormente a afligiam e que adormeceram enquanto o ouvia, eram agora de pequena importância. Esta ansiedade mais profunda afogava-as todas. As coisas seguiriam seu destino; não queria saber como acabariam. Seus primos poderiam atacá-la, mas dificilmente a atingiriam. Ele estava fora de seu alcance; e se afinal fosse obrigada a ceder – que importa – tudo agora já era uma miséria.
Na verdade foi um dia de triunfo para Mr. Bertram e Maria. Uma tal vitória sobre a prudência de Edmund estava acima de suas expectativas e foi muito divertido. Agora já não havia mais nada para lhes perturbar o projeto e, com grande júbilo congratularam-se entre eles pelo ciúme ao qual atribuíam a mudança. Edmund ainda poderia se mostrar grave e declarar que não aprovava a idéia em geral e particularmente desaprovar a escolha da peça; a questão estava ganha; ele iria representar e tinha sido impelido a isto unicamente por força de um sentimento egoísta. Edmund descera daquela elevação moral em que se mantinha antes, e ambos sentiam-se mais que felizes com esta descida.
Na ocasião, porém, portaram-se decentemente com ele, não dando a perceber a excessiva alegria senão por um pequeno e disfarçado sorriso e declarando estarem muito contentes por se verem livres da intrusão de Charles Maddox, como se houvessem sido obrigados a admiti-lo contra a vontade, na companhia. O que desejavam particularmente era que o plano não saísse do círculo da própria família. Um estranho entre eles teria sido um grande constrangimento; e quando Edmund, aproveitando-se daquela idéia, insinuou que se deveria limitar os assistentes, eles, para o agradar prontamente, prometeram submeter-se a qualquer coisa que ele quisesse. Estavam todos de bom humor e animados. Mrs. Norris ofereceu-se para arranjar o traje, Mr. Yates declarou que a última cena de Anhalt com o Barão requeria muita ação e ênfase, o Mr. Rushworth se encarregou de lhe contar os diálogos.
– Talvez agora Fanny consinta em nos auxiliar – disse Tom. – Talvez você a possa persuadir.
– Não, ela está absolutamente decidida. Não representará, com toda a certeza.
– Oh! Então está bem. – E não se disse mais nada; porém Fanny sentiu-se novamente em perigo e a sua indiferença ao perigo já começava a lhe faltar.
No Presbitério não houve menos sorrisos do que no Park em vista da mudança de Edmund; Miss Crawford mostrou-se encantadora e imediatamente começou a falar no assunto com grande demonstração de alegria, o que não podia produzir senão um efeito sobre ele. Bem tivera razão em respeitar tais sentimentos; estava contente por se ter resolvido. E a manhã correu cheia de contentamentos que, se não eram muito verdadeiros, pelo menos eram bastante suaves. Para Fanny resultou disso tudo uma vantagem; em vista dos insistentes pedidos de Miss Crawford, Mrs. Grant, com seu usual bom humor, concordou em desempenhar a parte que estivera reservada para Fanny; e isto foi tudo o que ocorreu durante o dia para lhe alegrar o coração; e mesmo isto, quando lhe foi comunicado por Edmund, veio acompanhado por um sofrimento, pois foi a Miss Crawford a quem teve de agradecer; foi Miss Crawford, cujos bondosos esforços mereceram a sua gratidão e cujo mérito em os envidar foi louvado com admiração ardente. Ela estava salva; mas a paz e a salvação ali não se combinavam. Nunca sua consciência esteve mais afastada da paz. Ela não podia deixar de se julgar com a razão, mas estava inquieta sobre todos os pontos. Seu coração e sua consciência estavam contra a decisão de Edmund: não se podia conformar com a falta de firmeza dele e o seu contentamento acabrunhava-a. Estava agitada, cheia de ciúmes. Miss Crawford parecia querer insultá-la com seus ares de despreocupada alegria e às expressões amigáveis que lhe dirigia ela dificilmente poderia responder com serenidade. Todos ao redor dela estavam alegres, ocupados, florescentes e importantes; cada um tinha seus interesses, sua parte, seu traje, sua cena favorita, seus amigos e parceiros: todos estavam ocupados com as consultas e comparações e divertiam-se com as cômicas concepções que das mesmas faziam. Ela era a única triste e insignificante; não tomava parte em coisa alguma; podia estar ou não presente; podia estar no meio da balbúrdia ou refugiar-se na solidão da sala de Leste, sem que ninguém a visse ou desse pela sua falta. Chegava quase a pensar que qualquer outra coisa seria preferível a essa indiferença. Mrs. Grant estava importante; a sua boa vontade foi mencionada com louvor; ela era procurada, seguida e elogiada; e Fanny, a princípio, esteve em perigo de invejar a situação em que a outra se colocara, aceitando o papel. Mas a reflexão trouxe-lhe melhores sentimentos e mostrou-lhe que Mrs. Grant merecia consideração, o que com ela não se teria dado; e que, por maior consideração que lhe dessem, nunca se sentiria à vontade se viesse a associar-se a um plano que, considerando apenas o tio, devia condenar inteiramente.
Mas o coração de Fanny não era, entre todos, o único entristecido, como ela logo percebeu. Julia estava sofrendo também, embora não tão inteiramente sem culpa.
Henry Crawford zombara de seus sentimentos; ela havia consentido e até mesmo procurado as atenções dele, sabendo que havia razões para ter ciúme da irmã, o que devia bastar para a ter curado; e agora que se convencera da preferência dele por Maria, resignava-se, sem se preocupar com a situação da irmã, ou sem qualquer esforço razoável pela sua própria tranqüilidade. Permanecia em sombrio silêncio, mergulhada numa gravidade que nada poderia subjugar, e nem mesmo a curiosidade, nem as pilhérias a distraiam; ou então, consentindo nas atenções de Mr. Yates, falava apenas com ele, esforçando-se por parecer alegre e ridicularizando os outros.
Por um ou dois dias depois da afronta, Henry Crawford procurou destruí-la com a sua habitual galanteria, mas não estava tão empenhado a ponto de insistir depois de algumas repulsas; e em seguida, ficando demasiadamente ocupado com a peça para ter tempo de cuidar de mais de um namoro, tornou-se indiferente ou antes, pensou que era até uma sorte poder terminar tranquilamente uma brincadeira que dentro em pouco iria fazer com que outros além de Mrs. Grant nutrissem esperanças. Esta não ficara satisfeita ao ver Julia excluída da peça, e andando por ali desprezada. Mas como não era questão que realmente envolvesse a sua felicidade, como Henry devia ser o melhor juiz da sua própria felicidade e como ele lhe tinha assegurado, com o mais persuasivo dos sorrisos, que nem ele nem Julia jamais haviam pensado seriamente em qualquer coisa, Mrs. Grant não fez senão renovar suas precauções anteriores sobre a irmã mais velha, aconselhando-a a não arriscar a própria tranqüilidade demonstrando por ela demasiada admiração; depois alegremente se dispôs a tomar parte em qualquer coisa que trouxesse alegria ao pessoal jovem em geral e que particularmente proporcionasse prazer aos dois a quem ela tanto amava.
– Admiro-me de que Julia não esteja apaixonada por Henry – observou ela a Mary.
– Garanto que está – respondeu Mary friamente. – Suponho que ambas o estão.
– Ambas! Não, não, não pode ser. Não insinue isto a ele. Pense em Mr. Rushworth!
– É melhor que você diga a Miss Bertram que pense em Mr. Rushworth. Talvez lhe traga algum benefício. Várias vezes penso na propriedade e na independência de Mr. Rushworth e desejaria que estivessem em melhores mãos; mas nele próprio não penso nunca. Um homem com tais meios podia representar o Estado.
– Acredito que ele em breve entrará para o Parlamento. Quando Sir Thomas vier, suponho que irá candidatá-lo a uma eleição qualquer, mas até agora ninguém ainda se lembrou dele.
– Sir Thomas vai fazer grandes coisas quando voltar para casa – disse Mary depois de um intervalo. – Você se lembra do “Adress to Tobacco”, de Hawkins Brawne, na imitação de Pope?
“Bless leaf! whose aromatic gales dispense
To Templars modesty, to Parsons sense”.
Eu faço a seguinte paródia:
“Bless Knight! whose dictatorial looks dispense
To Children affluence, to Rushworth sense”.
Não acha que está bem, Mrs. Grant? Tudo parece depender da volta de Sir Thomas.
– Quando você o vir garanto que lhe achará a importância muito justa e razoável. Não estou certa de que as coisas estejam indo muito bem sem a presença dele. Tem uma grande dignidade, tal como convém ao chefe de uma casa como aquela, e sabe manter cada um em seus lugares. Lady Bertram, agora, parece ainda mais nula do que quando ele está em casa; e ninguém senão ele é capaz de conter Mrs. Norris. Mas Mary, não imagine que Maria goste de Henry. Que Julia não goste dele estou certa; do contrário não namoraria Mr. Yates como o fez ontem à noite; e apesar de ele e Maria serem muito bons amigos, acho que ela gosta demais de Sotherton, para ser inconstante.
– Eu não daria muito pela sorte de Mr. Rushworth, se Henry resolvesse se declarar antes de terem corrido os papéis.
– Se você tem esta suspeita, precisamos fazer qualquer coisa; e logo que termine esse negócio de teatro, falaremos com ele seriamente e o faremos refletir sobre isto; se ele não tiver nenhuma intenção, embora ele seja Henry, nós o mandaremos viajar por algum tempo.
Julia contudo sofreu, apesar de Mrs. Grant não o perceber e embora muitos da sua própria família não terem igualmente notado. Tinha amado e ainda amava, e estava passando por todos os sofrimentos que um temperamento ardente e um caráter altivo poderiam suportar sob o desapontamento de uma acariciada, embora irracional esperança. Seu coração estava triste, magoado, a ela não encontrava consolo senão o rancor. A irmã, com quem ela sempre estivera nos melhores termos de intimidade, era agora sua maior inimiga; estavam separadas; e Julia se comprazia com a esperança de que aquele namoro, que ainda continuava, viesse a ter um mau fim, castigando Maria pelo procedimento vergonhoso que estava tendo tanto com ele como para com Mr. Rushworth. Sem efeito essencial de caráter ou divergente de opinião que as impedisse de serem muito amigas enquanto seus interesses eram os mesmos, as duas irmãs, submetidas a uma prova como essa, não tinham suficiente afetos nem princípios que as fizessem julgar com clemência ou justiça, que lhes dessem dignidade ou compaixão. Maria sentia o triunfo e prosseguia em seu propósito, sem se preocupar com Julia; e Julia sem poder tolerar a preferência de Henry Crawford por Maria, tinha esperança de que daí surgisse uma ciumada e tudo acabasse num grande escândalo.
Fanny via e lastimava tudo isso em Julia; mas não havia entre elas nenhuma espécie de camaradagem. Julia não era comunicativa e Fanny não tomava liberdades. E as duas ficavam a sofrer isoladamente, ou ligadas apenas pela consciência de Fanny.
O descuido dos dois irmãos e da tia pelo sofrimento de Julia e a sua cegueira quanto à verdadeira causa, devia ser atribuído aos muitos problemas de que suas cabeças viviam cheias. Estavam totalmente preocupados. Tom, absorvido pelos interesses do seu teatro, não via senão aquilo que imediatamente se relacionasse com ele. Edmund, na alternativa do papel teatral e de seu papel real – entre os direitos de Miss Crawford e a sua própria conduta – entre o amor e a compostura, vivia igualmente alheio; e Mrs. Norris estando demasiadamente ocupada em orientar e dirigir todos os pequenos arranjos da companhia, superintendendo os diversos vestuários com econômico expediente, que ninguém agradecia, e economizando para Sir Thomas, com admirável probidade, meia coroa daqui e dali, não tinha tempo para observar o procedimento sem defender a felicidade das sobrinhas.
Tudo agora seguia normalmente; teatro, atores, atrizes e vestuários progrediam sempre; mas embora não houvesse surgido outros impedimentos, Fanny achou, antes de decorridos muitos dias, que o contentamento não era de todo ininterrupto para os próprios membros da trupe e que ela não seria testemunha da continuação daquela unanimidade e alegria que a princípio lhe parecera difícil de suportar. Cada um começou a ter seus aborrecimentos. Edmund os teve muitos. Inteiramente contra a vontade dele, havia chegado da cidade um pintor de cenários, o qual se pusera a trabalhar, aumentando consideravelmente as despesas e, o que era pior, propalando a notícia dos seus empreendimentos, o irmão, em vez de realmente orientar-se por ele quanto à intimidade do espetáculo, estava distribuindo convites a todas as famílias que encontrava. O próprio Tom começava a impacientar-se com a moleza do pintor e a sentir os suplícios da espera. Ele já decorara o seu papel – todos os seus papéis, aliás, pois havia assumido todos os papéis sem importância, que podiam ser acumulados ao do mordomo; e começava a impacientar-se pelo espetáculo; e cada dia que se passava nessa demora, tendia a aumentar a noção da insignificância de todos os seus desempenhos juntos, e fazer com que se arrependesse por não haver escolhido outra peça.
Fanny sempre muito afável e geralmente o único ouvinte à mão, amparava as queixas e decepções de quase todos. Eles sabiam que na opinião geral Mr. Yates declamava pessimamente; que Mr. Yates estava desapontado com Mr. Crawford; que Tom Bertram falava tão depressa que não seria inteligível; que Mrs. Grant estragava tudo com as suas risadas; que Edmund ainda não havia decorado o papel e que era um suplício fazer-se qualquer coisa com Mr. Rushworth, o qual precisava de ponto durante todos os seus diálogos. Sabia também que o pobre Mr. Rushworth raramente conseguia alguém para ensaiar com ele; queixou-se também como os demais; e, aos olhos dela, a esquivança de Maria por ele era tão decisiva e tão desnecessariamente freqüentes eram os ensaios da primeira cena entre ela e Mr. Crawford, que em breve começou a temer outras queixas da parte do noivo. Compreendeu que, longe de estarem todos satisfeitos e alegres, cada um queria alguma coisa que não possuía causando descontentamento aos demais. Todos reclamavam que tinham um papel ou muito longo ou muito curto; ninguém prestava a atenção que devia à peça; ninguém se lembrava por que lado deveria entrar em cena; ninguém observava as instruções.
Fanny estava crente de que ela própria encontrava maior divertimento na peça do que qualquer um deles; Henry Crawford representava bem e ela tinha prazer em assistir ao ensaio do primeiro ato, apesar de se sentir chocada com alguns dos diálogos de Maria. Maria, na opinião de Fanny, desempenhava bem o papel, bem demais; e depois do primeiro ou segundo ensaio Fanny passou a ser o único auditório, e, servindo algumas vezes de ponto, outras vezes de espectador, era muito útil. Na sua opinião Mr. Crawford era o melhor ator, entre todos; tinha mais desembaraço do que Edmund, mais discernimento do que Tom, mais talento e gosto do que Mr. Yates. Como homem, ela não o apreciava, porém era forçada a admitir que era ele o melhor ator e, neste ponto, não havia muitos que discordassem dela. É verdade que Mr. Yates reclamava contra a sua docilidade e insipidez; e finalmente um dia Mr. Rushworth virou-se para Fanny com o olhar sombrio e disse:
– Acha que realmente há alguma coisa tão admirável em tudo isto? Por mim não consigo admirá-lo; e aqui entre nós, na minha opinião é absolutamente ridículo ver um homenzinho, daquele tamanho, medíocre, apontado como grande ator.
Dali em diante, volta e meia repetia-se esse acesso de ciúme, que Maria, sentido crescer suas esperanças em Crawford, não se dava ao trabalho de desfazer; e a possibilidade de Mr. Rushworth jamais chegar a decorar os seus quarenta e dois diálogos cada vez se tornava menor. Que ele conseguisse algum dia a fazer alguma coisa tolerável, ninguém tinha a mínima esperança, exceto a mãe dele; de fato, lastimava que o papel do filho não fosse mais importante e preferiu não vir mais a Mansfield senão depois que os ensaios já estivessem suficientemente adiantados para que pudesse compreender todas as cenas em que ele devia tomar parte; mas os outros não aspiravam outra coisa senão que ele se lembrasse das primeiras palavras do diálogo e fosse capaz de seguir o ponto até o fim. Fanny, penalizada e bondosa, procurava de vários meios ajudá-lo a decorar, dando-lhe toda a assistência e orientações ao seu alcance, tentando produzir nele uma memória artificial, decorando ela mesma cada palavra do papel, sem que ele, porém, fizesse muito progresso.
Muitas sensações de desconforto, muita ansiedade e apreensão ela teve sem dúvida; mas com tudo isto e outros serviços que reclamavam seu tempo e atenção, estava agora muito longe de se sentir imprestável e inútil entre eles. A tristeza de seus primeiros pressentimentos provou-se infundada. Ela era ocasionalmente útil a todos; estava, talvez, muito mais tranqüila do que outro qualquer.
Havia, além de tudo, uma infinidade de costuras para serem feitas, que requeriam o seu auxílio; e era evidente que Mrs. Norris a achava na altura de prestar tais serviços, graças à maneira como os reclamava:
– Venha Fanny – gritava ela – estes dias você está com sorte! Mas é melhor que deixe de andar de uma sala para outra, apreciando os outros; preciso de você aqui. Tenho trabalhado como mouro para conseguir cortar a capa de Mr. Rushworth sem precisar vir mais cetim; e agora venha me ajudar na costura. São apenas três emendas, que você pode fazer num segundo. Seria uma sorte se eu pudesse me encarregar apenas dos acabamentos. Você cose razoavelmente; mas também, se ninguém fizesse mais do que você, nós nunca acabaríamos com isto.
Fanny pôs-se a trabalhar calmamente, sem procurar defender-se; porém a bondosa tia Bertram veio em seu favor:
– Não é de admirar, minha irmã, que Fanny esteja encantada; tudo é novidade para ela, você bem sabe; nós mesmas, gostávamos muito de um espetáculo, e eu ainda gosto; assim que eu tiver um pouco mais de folga, também pretendo assistir aos ensaios. Qual é o assunto da peça, Fanny? Você nunca me disse.
– Ora, minha irmã, por favor não lhe pergunte agora; Fanny não é dessas pessoas que podem falar e trabalhar ao mesmo tempo. A peça é sobre juramento de amor.
– Penso – disse Fanny à tia Bertram – que amanhã à noite vão ensaiar três atos. Assim a senhora terá oportunidade de ver todos os atores ao mesmo tempo.
– É melhor esperar até a cortina estar colocada – interpôs-se Mrs. Norris; – a cortina ficará pronta dentro de um ou dois dias – um teatro sem pano não tem cabimento – e se não me engano, será bordada com lindos festões.
Lady Bertram resignou-se a esperar. Fanny não compartilhou a calma de sua tia; estava ansiosa para que chegasse o dia seguinte, pois se os três atos fossem ensaiados, Edmund e Miss Crawford iriam representar juntos pela primeira vez; no terceiro ato havia uma cena entre ambos, – cena que a interessava particularmente, e estava ansiosa e ao mesmo tempo aflita por ver como eles a desempenhariam. Todo o assunto versava sobre o amor – um casamento por amor era descrito pelo cavalheiro, e nada menos que uma declaração de amor era feita pela dama.
Ela havia lido e relido a cena com dolorosas, espantosas emoções, e antecipava a sua representação como se fosse uma circunstância do maior interesse. Estava certa de que eles ainda não a tinham ensaiado, nem mesmo secretamente.
Chegou o dia seguinte, o plano para o serão prosseguiu e Fanny não estava menos agitada. Trabalhou com afinco sob a direção da tia, mas a sua diligência e o seu silêncio dissimulavam um espírito vago e inquieto; e, perto do meio dia, escapuliu-se com o trabalho para a sala de Leste, a fim de não mais assistir a mais um ensaio do primeiro ato que Henry Crawford acabava de propor, – ensaio, na sua opinião, inteiramente desnecessário, pois estava desejosa de ficar sozinha e fugir à vista de Mr. Rushworth. Ao atravessar o hall, avistou as duas senhoras vindas do Presbitério, mas mesmo assim não desistiu de retirar-se e, na sala de Leste, trabalhou e meditou tranquilamente, por um quarto de hora, quando uma batida leve na porta foi seguida da entrada de Miss Crawford.
– Estarei certa? Sim; esta é a sala de Leste. Minha querida Miss Price, peço que me desculpe, mas vim aqui lhe pedir o seu auxílio.
Apanhada de surpresa, Fanny procurou mostrar-se delicada fazendo as honras da sala, e olhou significativamente para a lareira apagada.
– Muito obrigada; não estou com frio absolutamente. Permita-me ficar aqui um momento e faça-me a bondade de ouvir o meu terceiro ato. Trouxe o livro, e se quiser ensaiar comigo eu lhe ficarei imensamente grata! Vim com a intenção de o ensaiar com Edmund – só nós dois – antes do serão, mas não o encontrei; porém mesmo que o tivesse encontrado, creio que não teria coragem de ensaiar com ele, senão depois de já estar um pouco mais firme; porque, realmente, tem um ou dois diálogos... Fará este favor, não?
Fanny respondeu-lhe com toda a delicadeza, embora sua voz estivesse um pouco trêmula.
– Por acaso já leu a parte a que me refiro? – continuou Miss Crawford abrindo o livro. – Aqui está. A princípio não me preocupei muito com o papel – mas, palavra de honra – olhe veja este diálogo, e este, e este. Como olhar para ele e dizer tais coisas? Você teria coragem? Enfim ele é seu primo, no que há muita diferença. Queria que ensaiasse comigo, para que eu imaginasse que você era ele e fosse me acostumando aos poucos. Às vezes você se parece um pouco com ele.
– Acha? Farei o possível com a maior boa vontade; mas preciso ler a cena, porque não a conheço quase.
– Nem a podia conhecer. Ficará com o livro, naturalmente. Bem, vamos começar. Precisamos duas cadeiras que você terá de levar para a frente do palco. Veja – umas ótimas cadeiras para sala de aula, mas imprópria para um teatro; muito boas para uma garota sentar-se e dar pontapés enquanto está estudando a lição. O que não diriam a sua governanta e o seu tio se as vissem usadas para tal fim? Se Sir Thomas aparecesse neste momento, havia de zangar-se, pois estamos ensaiando pela casa inteira. Yates reclama em altas vozes na sala de jantar. Eu o ouvi quando vinha subindo, e o teatro está naturalmente ocupado por aqueles infatigáveis ensaiadores Agatha e Frederico. Se eles não forem perfeitos, ficarei muito admirada. Por falar nisso, ainda há pouco, fui dar uma espiada neles e aconteceu ser exatamente numa das ocasiões em que estavam tentando não se abraçarem; Mr. Rushworth estava comigo. Achei que ele estava ficando com o ar esquisito e procurei disfarçar as coisas da melhor maneira, dizendo-lhe baixinho: – Teremos uma Agatha excelente, há qualquer coisa de tão maternal nos modos dela, tão completamente maternal na voz e no peito! Não acha que fiz bem? Ele imediatamente desanuviou. Bem, agora vamos ao meu monólogo.
Mary principiou e Fanny ia respondendo modestamente, inspirada, como havia sido calculado, pela idéia de estar representando Edmund; mas com a aparência e a voz tão verdadeiramente femininas que não se podia imaginá-la um homem. Com um tal Anhalt, porém, Miss Crawford tinha bastante coragem; e estavam no meio da cena quando outra batida na porta as interrompeu e a entrada de Edmund, em seguida, suspendeu por completo o ensaio.
Surpresa, consciência e prazer estamparam-se na fisionomia de cada um por este encontro inesperado; e como Edmund havia vindo com o mesmo propósito que trouxera Miss Crawford, a consciência e o prazer provavelmente não seriam para eles apenas momentâneos. Ele, também, trazia o livro e vinha procurar Fanny para ensaiar, e auxiliá-lo a preparar-se para o serão, sem saber que Miss Crawford estava em casa; grande, pois, foi a alegria e a animação por se haverem assim encontrado, para fazerem planos e se unirem em louvores pela bondade de Fanny.
Ela não poderia igualar-se a eles no seu ardor. Seu espírito abateu-se sob o entusiasmo de ambos e a moça começou a sentir-se quase tão inteiramente inútil aos dois que não lhe servia de consolo o ter sido procurada por eles. Deviam agora ensaiar juntos. Edmund propôs, pediu, implorou, até que a moça, não muito pouco disposta a princípio, não pôde mais recusar e Fanny foi requisitada apenas para servir-lhes de ponto e observá-los. Ela estava, na verdade, investida do papel de juiz e crítico e seriamente desejava desempenhar bem esse papel, apontando todas as falhas; mas ao fazê-lo, sentia-se imensamente constrangida – ela não o poderia, não o deveria, não o ousaria tentar; tivesse ela, ao contrário, capacidade para criticar, assim mesmo conscientemente, não se aventurava a reprová-los. No todo sentia-se suspeita para julgar os detalhes com segurança, honestamente. Era bastante que servisse de ponto para eles; pois nem sempre podia prestar atenção ao livro. Ao observá-los esquecia-se de si mesma; e, agitada com o entusiasmo crescente nas maneiras de Edmund, numa ocasião fechou o livro e se afastou, justamente quando ele precisava de auxílio. Isto, porém, foi atribuído a um cansaço muito natural e ainda lhe agradeceram e a lastimaram; na verdade, Fanny merecia mais piedade do que eles mesmos poderiam supor. Finalmente o ensaio terminou e Fanny esforçou-se para juntar seus louvores aos cumprimentos que cada um fazia ao outro; e quando de novo ficou sozinha e pôde reconstituir toda a cena, acreditou que no desempenho deles havia, na verdade, tanta naturalidade e sentimento que lhes garantiria êxito e faria da exibição um motivo de sofrimento para ela. Enfim, qualquer que fosse o efeito causado, teria de suportar outro choque naquela mesma noite.
O primeiro ensaio verdadeiro dos três primeiros atos teria lugar àquela noite; Mrs. Grant e os Crawford comprometeram-se a voltar para aquele fim logo que o pudessem, depois do jantar; cada interessado esperava o acontecimento com grande ansiedade. Parecia haver uma alegria geral. Tom antegozava o resultado final; Edmund estava animado com o ensaio daquela manhã e os pequenos aborrecimentos pareciam haver desaparecido. Todos estavam animados, impacientes; as senhoras logo se levantaram da mesa e os rapazes acompanharam-nas em seguida; com exceção de Lady Bertram, Mrs. Norris e Julia, todos se dirigiram para o teatro muito cedo; e iluminando-o tanto quanto era possível devido à falta de acabamento, esperavam somente a vinda de Mrs. Grant e dos Crawford para darem início.
Não tiveram que esperar muito pelos Crawford, mas Mrs. Grant não aparecera. Ela não poderia vir. O Dr. Grant, dizendo-se indisposto, ao que a cunhada não dava muito crédito, não poderia dispensar a mulher.
– O Dr. Grant está muito doente – disse ela com uma solenidade irônica. – Adoeceu desde que soube que não havia faisão para o jantar. Achou que era um absurdo, devolveu o prato e desde então está sofrendo muito.
Foi um desapontamento! A falta de Mrs. Grant era um transtorno. Seus modos agradáveis e sua alegre submissão eram sempre estimáveis; mas agora ela era absolutamente necessária. Sem ela, não poderiam representar, não poderiam ensaiar com satisfação. O prazer do serão estava perdido. Que poderiam fazer? Tom, no papel de camponês, estava desesperado. Depois de um momento de perplexidade, alguns olhares começaram a dirigir-se para Fanny e alguém disse:
– Se Miss Price tivesse a bondade de ler a parte.
Imediatamente cercaram-na com súplicas, todos pediam e até Edmund disse:
– Faça, Fanny, se não for muito desagradável para você.
Mas Fanny ainda hesitava. Não podia suportar a idéia. Por que não pediam a Miss Crawford? Ou porque não tinha ela fugido para seu quarto, onde sabia estar em segurança, em vez de ir assistir ao ensaio? Sabia que ficaria irritada, aflita; bem sabia que devia ter ficado fora. Foi o seu castigo.
– Só terá que ler a parte – repetia Henry Crawford procurando convencê-la.
– E acredito que ela possa dizer cada uma das palavras – acrescentou Maria – pois outro dia ela corrigiu Mrs. Grant vinte vezes. Fanny, tenho a certeza de que você sabe toda a parte de cor.
Fanny não o podia negar; e como todos insistiam, como Edmund repetiu o desejo, com um olhar de quem implorava a sua boa vontade, ela tinha que ceder. Faria o que fosse possível. Todos ficaram satisfeitos; e ela foi abandonada com os temores de um coração palpitante, enquanto os outros se preparavam para começar.
E haviam começado; tão empenhados estavam na sua própria algazarra que não se aperceberam de um movimento fora do comum na outra parte da casa, até que a porta do salão foi escancarada e Julia apareceu, com o rosto espantado, e exclamou:
– Papai está aí! Está chegando agora mesmo.
Como se poderia descrever a consternação do grupo? Para a maioria foi um momento de absoluto terror. Sir Thomas de volta! Todos sentiram a imediata condenação. Ninguém abrigou uma só esperança de impostura ou engano. A surpresa de Julia era uma evidência de que o caso era indiscutível; e depois dos primeiros sustos e exclamações, ficaram mais de um minuto sem poder falar; quase todos sentiam que o golpe era dos mais desagradáveis, inoportunos e temíveis! Mr. Yates talvez o considerasse apenas como uma inoportuna interrupção por aquela noite e Mr. Rushworth, ao contrário, o considerasse como uma felicidade; mas cada um dos outros corações estava afogado numa espécie de auto-condenação, ou indefinido alarma, todos pensavam: – Que será de nós? Que acontecerá agora? – Foi um momento de terrível expectativa; e terrível para cada um ao ouvirem a confirmação de seus temores com o barulho de portas que se abriam e passos que se aproximavam.
Julia foi a primeira a mover-se e quebrar o silêncio. Ciúme e amargura estavam suspensos: o egoísmo perdeu-se pela causa comum; mas no momento em que ela aparecera, Frederico ouvia com o olhar extasiado a narrativa de Agatha, segurando a mão dela sobre o coração; e no momento em que ela notou, que o viu continuar na mesma posição, retendo a mão de sua irmã, apesar do choque causado pelas suas palavras, seu magoado coração novamente encheu-se de desgosto e, corando intensamente, deu as costas e saiu do salão dizendo:
– Eu, de mim, não tenho motivos para recear aparecer à frente dele.
Com a saída dela os outros ergueram-se; e simultaneamente os dois irmãos se adiantaram, sentindo a necessidade de fazer qualquer coisa. Apenas algumas palavras entre eles foi o suficiente. O caso não admitia duas opiniões; deviam imediatamente dirigir-se para a sala de visitas. Maria com idêntica intenção acompanhou-os, mostrando-se justamente a mais resoluta dos três; pois a própria circunstância que fizera Julia retirar-se, era o seu mais doce conforto. O fato de Henry Crawford reter sua mão num momento como aquele, um momento em que era uma prova única e importante, valia por séculos de dúvida e ansiedade. Apelava para aquele momento como um sinal da mais séria decisão e sentia-se capaz de enfrentar o pai. Retiraram-se completamente atordoados, deixando Mr. Rushworth a perguntar: “Devo eu ir também? Não seria melhor eu também ir? Será que eu não devia ir?” Mas logo que eles passaram da porta, Henry Crawford encarregou-se de responder àquele ansioso interrogatório e, animando-o a de qualquer forma e sem demora apresentar seus respeitos a Sir Thomas, mandou-o alegremente atrás dos outros.
Fanny permaneceu no salão unicamente com os Crawford e Mr. Yates. Fora inteiramente esquecida pelos primos; e como a sua própria opinião sobre seus direitos sobre o afeto de Sir Thomas era demasiadamente modesta para que ela se julgasse na obrigação de acompanhar os filhos da casa, gostou de ficar para trás e ganhar um pouco mais de tempo para se acalmar. Em virtude de uma índole pela qual nem mesmo a inocência poderia impedir de a fazer, sua agitação e seu susto excediam tudo que os outros estavam sofrendo. Estava quase desmaiando; todo o habitual temor que anteriormente sentira pelo tio voltara, acompanhado de uma grande compaixão por ele e por quase todos os do grupo, antevendo os acontecimentos que se desenrolariam. Sentia além disso uma indescritível solicitude por Edmund. Encontrou um assento, onde, tremendo excessivamente, sofreu por todos esses medonhos pensamentos, enquanto os outros três, já sem o menor constrangimento, davam expansão aos seus desapontamentos, lamentando aquela volta inesperada e prematura, como um acontecimento dos mais perversos e sem compaixão, desejando que o pobre Sir Thomas não tivesse conseguido passagem, que estivesse ainda em Antigua.
Os Crawford estavam mais preocupados do que Mr. Yates, pois compreendiam melhor a família e podiam mais claramente calcular a tragédia que estaria por vir. A ruína do espetáculo era-lhes uma certeza; sentiam que era inevitável a imediata destruição do plano; enquanto Mr. Yates considerava tudo isto apenas como uma interrupção temporária, um transtorno por aquela noite e sugeria, até, a possibilidade de recomeçarem os ensaios depois do chá, quando a balbúrdia causada pela chegada de Sir Thomas estivesse acalmada, e ele estivesse à vontade para apreciar seus trabalhos. Os Crawford riram-se da idéia; e tendo em seguida concordado em saírem quietamente deixando a família à vontade, propuseram a Mr. Yates que os acompanhasse e passasse a noite no Presbitério. Mas como Mr. Yates não estava habituado a levar a sério essas questões de família, não percebia a necessidade de se retirar; assim, agradeceu, dizendo que ele preferia ficar onde estava e apresentar elegantemente seus respeitos ao velho, já que ele tinha vindo; e, além disso, supunha que os outros não haveriam de achar bonito que todos fugissem.
Quando chegaram a esta solução, Fanny estava justamente começando a acalmar-se e a achar que se ela demorasse ali, muito, poderia parecer falta de respeito ao tio; tendo sido encarregada pelos dois irmãos de apresentar desculpas, viu-os prepararem-se para partir enquanto ela própria saía para se desincumbir do pavoroso dever de cumprimentar Sir Thomas.
Bem depressa se encontrou na porta da sala de visitas; e depois de parar um momento para recuperar a coragem, sabendo embora que nunca o conseguiria, virou o trinco ansiosamente e enfrentou as luzes da sala e toda a família reunida. Quando ia entrar, ouviu seu próprio nome mencionado. Sir Thomas neste momento estava olhando em redor e dizendo:
– Mas onde anda Fanny? Por que não vejo a minha pequena Fanny? – e ao vê-la, foi-lhe ao encontro com uma bondade que a espantou e comoveu, chamando-a sua querida Fanny, beijando-a afetuosamente e observando com evidente prazer como ela havia crescido! Fanny não sabia o que pensar nem para onde olhar. Estava oprimida. Ele nunca havia sido tão bondoso, tão realmente bondoso para ela em toda a sua vida. Parecia mudado, falava depressa na agitação da alegria; levou-a para próximo da luz e olhou para ela – informou-se particularmente de sua saúde e depois corrigindo-se, observou que não precisava perguntar pois a aparência dela o demonstrava claramente. Um belo rubor, que substituíra sua palidez anterior, justificava que ele acreditasse ter ela não só em saúde como em beleza. Em seguida pediu informações sobre a família dela, especialmente William; a bondade do tio foi tanta que a moça se envergonhou por amá-lo tão pouco e por haver considerado a volta dele como uma infelicidade; e quando ousou levantar os olhos até seu rosto e viu que o tio havia emagrecido e tinha a aparência fatigada, enterneceu-se e lastimou que ele tivesse que passar por todos aqueles aborrecimentos de que nem suspeitara.
Sir Thomas era de fato quem animava a reunião, que por sugestão sua, se fizera em volta da lareira. Ele tinha o direito de ser o único a falar; e o prazer de estar novamente em sua própria casa, no centro de sua família, depois de tal separação, fazia-o comunicativo e conversador de modo pouco comum; estava pronto a dar todas as informações sobre a viagem, a responder a todas as perguntas dos seus dois filhos quase antes de as formularem. Seus negócios em Antigua ultimamente haviam prosperado rapidamente e ele viera diretamente de Liverpool, onde oportunamente conseguira passagem num navio particular, em vez de esperar pelo paquete; e todos os detalhes de seus feitos e acontecimentos, suas chegadas e partidas, foram relatados minuciosamente e com presteza, enquanto se achava sentado ao lado de Lady Bertram, olhando com imensa satisfação os rostos à sua volta – interrompendo-se mais de uma vez, porém, para observar a sua boa sorte em os encontrar em casa – visto que chegara inesperadamente – todos reunidos exatamente como desejara, mas não ousara esperar. Mr. Rushworth não foi esquecido; uma recepção amistosa e um caloroso aperto de mão seguiram-se à apresentação e ele já estava incluído entre os entes mais intimamente ligados a Mansfield. A aparência de Mr. Rushworth não tinha nada de desagradável e Sir Thomas já estava gostando dele.
Nenhum dos presentes o ouvia com alegria mais constante e pura do que sua esposa, que estava de fato extremamente feliz por vê-lo e cujas emoções com a sua súbita chegada eram tantas que a tornaram mais animada do que nunca o estiveram em vinte anos. Por alguns minutos ficou até quase agitada e ainda continuava tão animada que largou o trabalho, sacudiu o cãozinho do seu lado e deu toda a sua atenção e todo o resto do sofá ao marido. Não tinha ansiedade nenhuma capaz de obscurecer seu prazer: seu procedimento havia sido irrepreensível durante a ausência dele: fizera um grande tapete e muitos metros de franja; e teria livremente pela conduta e ocupações tanto de todos os filhos como da sua própria. Era-lhe tão agradável vê-lo de novo, ouvi-lo falar e divertir-se com as suas narrativas, que começou a pensar o quanto haveria de sentir a falta do marido, como lhe seria impossível suportar uma ausência mais longa.
A felicidade de Mrs. Norris não podia de forma alguma se comparar à da irmã. Não que ela estivesse perturbada pelo receio da reprovação de Sir Thomas quando tomasse conhecimento do que ia pela casa, pois ela havia agido tão cegamente que, com exceção da cautela instintiva com que havia feito desaparecer a capa de cetim de Mr. Rushworth no momento em que o cunhado entrara, não mostrava o mínimo sinal de alarme; mas estava aborrecida pela maneira como ele voltara. Não lhe tinha dado oportunidade de fazer nada. Em vez de a ter chamado fora da sala para o ver primeiro e então espalhar a feliz notícia pelo resto da casa, Sir Thomas, contando muito naturalmente, talvez, com o mordomo, apareceu, quase imediatamente em seguida, na sala de visitas. Mrs. Norris sentiu-se lesada em um ofício com que sempre contara, quer a chegada ou a morte dele fosse a notícia a ser revelada; e agora procurava tomar parte do movimento sem ter nada em que se movimentar, esforçando-se por se tornar importante onde não se queria senão tranqüilidade e silêncio. Se Sir Thomas tivesse aceitado comer alguma coisa, ela teria ido aborrecer a camareira com mil instruções e insultar o criado com outras tantas ordens de expedição; mas Sir Thomas resolutamente recusou-se a jantar; não aceitaria nada, nada até a hora do chá – preferia esperar o chá. Assim mesmo Mrs. Norris volta e meia insistia sobre qualquer outra coisa; e no momento mais interessante da sua passagem para a Inglaterra, quando um corsário francês estava à vista, ela interrompeu a narrativa para lhe propor uma sopa.
– Sem dúvida, meu caro Sir Thomas, um prato de sopa seria melhor para o senhor do que o chá. Por que não aceita um prato de sopa?
Sir Thomas não gostava de ser interrompido.
– Sempre a mesma ansiedade pelo conforto de todos, prezada Mrs. Norris – foi a sua resposta. – Mas, na verdade, prefiro não tomar senão chá.
– Bem, então, Lady Bertram poderia mandar servir o chá imediatamente; poderia apressar Baddeley um pouco; ele parece estar atrasado hoje.
Enquanto ela monologava sobre essas providências, a narrativa de Sir Thomas prosseguia.
Finalmente houve uma pausa. Sir Thomas havia relatado os acontecimentos mais imediatos e agora parecia-lhe suficiente estar olhando alegremente à sua volta, ora para um, ora para outro do seu querido círculo; o intervalo porém não foi longo; na expansão da sua alegria, Lady Bertram tornou-se conversadora e qual não foi a sensação dos filhos ao ouvi-la dizer:
– Sabe, Sir Thomas, como esse pessoalzinho tem se divertido ultimamente? Andam representando. Estamos todos animados com o tal teatro.
– Será verdade! E que estiveram representando?
– Oh! Eles lhe contarão tudo.
– O tudo lhe será contado em breve – exclamou rapidamente Tom, afetando indiferença; – mas não vale a pena aborrecer papai com essas coisas agora. Amanhã o senhor terá tempo de ouvir muito a esse respeito. Estivemos apenas tentando, por falta de outra coisa para distrair mamãe nesta última semana, representar algumas cenas, uma bobagem. Tem chovido tanto desde o princípio de outubro que não podemos fazer outra coisa senão ficar presos dentro de casa dias e dias seguidos. Desde o dia 8 não peguei numa espingarda. Os três primeiros dias foram toleráveis mas desde então era inútil tentar qualquer coisa. No primeiro dia fui até a floresta e Edmund foi até o bosquezinho além de Easton; trouxemos uns seis casais ao todo, entre nós dois, e podíamos cada um ter matado seis vezes mais; porém respeitamos seus faisões, posso lhe garantir. Não creio que o senhor encontre suas florestas, de forma alguma, menos povoadas do que estavam antes. Nunca na minha vida via as florestas de Mansfield tão cheias de faisões como este ano. Espero que o senhor mesmo tire um dia destes para uma caçada.
O perigo no momento havia passado e Fanny sentiu-se aliviada; mas quando logo depois o chá foi servido, e Sir Thomas, levantando-se, disse que não poderia estar por mais tempo na casa sem olhar o seu querido gabinete, todas as agitações voltaram. Foi-se antes que tivessem tempo de o preparar para as mudanças que iria encontrar; e um intervalo de susto seguiu-se à sua saída. Edmund foi o primeiro a falar:
– É preciso fazer alguma coisa – disse ele.
– Já é tempo de pensarmos nas nossas visitas – disse Maria, sentindo ainda a mão sobre o coração de Henry Crawford e não cuidando de mais nada. – Onde deixou Miss Crawford, Fanny?
Fanny disse que havia partido e desincumbiu-se da mensagem.
– Então o pobre Yates está sozinho – exclamou Tom. – Vou buscá-lo. Ele nos ajudará quando a coisa for descoberta.
Dirigiu-se para o teatro onde chegou justamente em tempo de presenciar o primeiro encontro do pai com o seu amigo. Sir Thomas ficara admirado por encontrar velas acesas no seu gabinete, e por notar, ao redor, outros sintomas de uso recente e um ar de confusão geral nos móveis. Estranhou, principalmente, a mudança da estante que estava na porta da sala de bilhar, mas mal teve tempo de se espantar com tudo isto, quando ouviu som de vozes vindo da própria sala de bilhar, e que o espantaram ainda mais. Alguém estava lá, falando em altas vozes; não conhecia a voz de quem – mais do que falando – estava quase gritando. Caminhou para a porta, contente por ter naquele momento um meio imediato de comunicação, e, abrindo-a viu-se sobre o palco de um teatro, à frente de um rapaz que declamava extravagantemente e que parecia querer agredi-lo. Justamente no momento em que Yates percebeu a presença de Sir Thomas e que mostrou a melhor expressão jamais demonstrada em todo o período de seus ensaios, Tom Bertram entrou pela outra porta da sala; e nunca ele tivera maior dificuldade em manter-se sério. O olhar solene e admirado de seu pai, sua primeira aparição num palco e a gradual metamorfose do apaixonado Barão Wildenhein no polido e desembaraçado Mr. Yates, cumprimentando e apresentando desculpas a Sir Thomas Bertram, era um tal espetáculo, uma cena tão real, que ele não teria podido perder por coisa alguma. Aquela seria a última – com toda a probabilidade a última cena levada naquele teatro; mas com toda a certeza não haveria melhor. O teatro fecharia com o maior “éclat”.
Não havia, contudo, nenhum tempo para perder com qualquer idéia de divertimento. Era necessário, também, que ele entrasse em cena e fizesse a apresentação, o que fez da melhor maneira que pôde, cheio de embaraço. Sir Thomas recebeu Mr. Yates com toda a aparência de cordialidade que era própria de seu próprio caráter, mas realmente estava tão longe de ficar satisfeito com a nova relação como da maneira por que esta havia começado. Conhecia suficientemente a família e as relações de Mr. Yates, para que lhe agradasse a apresentação dele como “amigo particular”, – mais um dos amigos particulares do seu filho; e era preciso que toda a felicidade de estar novamente em casa e a indulgência que por causa disso demonstrava, para que Sir Thomas não ficasse furioso ao se sentir como que perdido em sua própria casa, tomando parte numa ridícula exibição, no meio de uma cena teatral absurda, e forçado, numa tão desagradável ocasião, a travar conhecimento com um rapaz cuja aproximação estava certo de desaprovar, e cuja tranqüila indiferença e volubilidade no correr dos primeiro cinco minutos, pareciam demonstrar ser, dos dois, o que estava mais à vontade.
Tom compreendeu o pensamento do pai e desejando sinceramente que ele conservasse o bom humor, começou a ver mais nitidamente agora do que antes, que de fato havia motivos para o desagradar, e que se justificava o olhar que Sir Thomas dirigia para o teto da sala; e quando o pai perguntou com indulgente seriedade pelo destino que haviam dado à mesa de bilhar, não o tinha feito senão por uma curiosidade muito razoável. Alguns minutos de poucas prazenteiras sensações foram suficientes para cada lado; e Sir Thomas tendo-se esforçado a ponto de dizer algumas palavras de serena aprovação em resposta a uma entusiástica referência de Mr. Yates sobre a felicidade dos preparativos, os três cavalheiros voltaram juntos para a sala de visitas; Sir Thomas vindo com uma expressão muito mais grave, o que não escapou aos presentes.
– Acabo de vir do teatro – disse ele tranquilamente ao sentar-se. – Encontrei-me nele inesperadamente. Como está vizinho ao meu gabinete... Mas realmente, fiquei surpreendido, pois não tinha a menor idéia de que a representação de vocês houvesse assumido caráter tão sério. Pareceu-me, porém, um trabalho perfeito, o que dá crédito ao meu amigo Christopher Jackson. – Mudou então de assunto e calmamente tomou o café, falando sobre coisas domésticas; mas Mr. Yates, sem sagacidade bastante para perceber a intenção de Sir Thomas, e sem suficiente modéstia, delicadeza ou discrição para o deixar espontaneamente voltar ao assunto, insistiu sobre o tópico do teatro, atormentou-o com perguntas e observações a esse respeito e finalmente fê-lo ouvir toda a história do seu desapontamento em Ecclesford. Sir Thomas ouvia muito delicadamente, encontrando porém do princípio ao fim da história, muitos motivos para ofender seus sentimentos de decoro e para confirmar a má opinião que fizera dos hábitos e da maneira de pensar de Mr. Yates. E quando a história terminou, ele não lhe pôde dar outra demonstração de simpatia além de uma leve inclinação de cabeça.
– Assim foi, de fato, como começou a nossa idéia de representar – disse Tom depois de refletir um pouco. – Meu amigo Yates saiu infeccionado de Ecclesford e a doença nos contaminou; talvez estivéssemos predispostos por ter o senhor mesmo, antigamente, nos estimulado tantas vezes para esta espécie de divertimento. Era como se estivéssemos voltando ao passado.
Mr. Yates logo que pôde tomou a palavra e imediatamente deu conta a Sir Thomas de tudo que haviam feito e estavam fazendo; contou-lhe como seus planos se haviam gradualmente ampliado, o feliz desfecho de suas primeiras dificuldades e o estado promissor em que estavam os negócios presentemente; relatando tudo com um interesse tão cego que o fazia não só absolutamente alheio aos movimentos de inquietação de seus amigos, à transformação de suas fisionomias, à ansiedade com que o ouviam, como, e principalmente, o impedia de notar a expressão do rosto sobre o qual se fixavam seus olhos – de ver as escuras sobrancelhas de Sir Thomas se contraírem quando dirigia o olhar com escrutadora veemência para as filhas e Edmund, demorando-se particularmente sobre o último, demonstrando-lhe numa linguagem muda, uma censura, uma reprovação, que ele recebia em cheio no coração. Não menos agudamente ela era recebida por Fanny, que tratou de se entrincheirar atrás do sofá de sua tia, e, assim protegida, podia observar tudo o que se passava à frente. Uma tal exprobração como a que o tio lançava sobre Edmund ela nunca esperaria testemunhar; e sentir que de uma certa maneira ele a merecia, era, na verdade, uma circunstância agravante. O olhar de Sir Thomas significava: “Contava com o seu juízo, Edmund; que aconteceu com você?” Em espírito ela se ajoelhava diante do tio e implorava “Oh! Ele não! Dirija-se a todos os outros, mas não a ele!”
Mr. Yates continuava falando.
– Para lhe dizer a verdade, Sir Thomas, estávamos no meio de um ensaio quando o senhor chegou. Estávamos repassando os três primeiros atos, aliás com bastante sucesso. Esta noite, porém, não se pode fazer mais nada pois com a retirada dos Crawford, nossa companhia está toda dispersa; mas se amanhã à noite o senhor nos quiser honrar com a sua presença, não tenho receio do resultado. Nós apenas, como atores inexperientes que somos, pedimos sua indulgência; de antemão pedimos sua indulgência.
– Minha indulgência será dada, senhor – respondeu Sir Thomas gravemente, porém, acabando de vez com os ensaios. E com um sorriso enternecido acrescentou: – Voltei para casa para ser feliz e indulgente. – Depois virando-se para os outros, disse tranquilamente: – Mr. e Miss Crawford foram mencionados nas últimas cartas que recebi de Mansfield. Vocês acham conveniente mantermos relações com eles?
Tom foi de todos o único pronto a responder, e como estivesse inteiramente livre de interesse por qualquer dos dois, sem ciúme, sem amor, sem despeito, podia referir-se a ambos sem constrangimentos.
– Mr. Crawford é um rapaz muito agradável e distinto; a irmã uma moça gentil, bonita, elegante e muito viva.
Mr. Rushworth não pôde permanecer em silencio por mais tempo.
– Não digo que ele não seja distinto, dum modo geral; mas você devia dizer ao seu pai que ele não tem mais do que um metro e oitenta de altura; do contrário Sir Thomas ficará esperando um cavalheiro de boa aparência.
Sir Thomas não compreendeu bem esta insinuação e olhou admirado para o futuro genro.
– Se me dão licença de expor o que penso – continuou Mr. Rushworth – na minha opinião, é muito desagradável estar sempre ensaiando. É exagerar demais. Por mim já não estou tão interessado no espetáculo como estive a princípio. Acho que empregaremos muito melhor nosso tempo, sentando-nos confortavelmente aqui em família e não fazendo nada.
Sir Thomas olhou novamente para ele e então respondeu com um sorriso de aprovação:
– Alegro-me por ver que temos os mesmos sentimentos sobre este assunto. Sinto-me sinceramente satisfeito. Que eu tenha a cautela e a previsão e que sinta muitos escrúpulos que meus filhos não sentem, é perfeitamente natural; da mesma forma, o valor que dou à tranqüilidade doméstica, a um lar que esteja fechado aos prazeres ruidosos, deve muito naturalmente exceder ao deles. Mas na sua idade sentir tudo isto, demonstra uma qualidade que é favorável não só ao senhor mesmo como a todos os que lhe estão ligados; e eu reconheço a vantagem de ter um aliado como o senhor.
A intenção de Sir Thomas era louvar a opinião de Mr. Rushworth com palavras mais convincentes, que, entretanto, não pôde encontrar. Sabia que não podia encontrar nenhum gênio em Mr. Rushworth ; mas pretendeu-lhe dar muito valor como rapaz ajuizado, de caráter firme. Os outros não puderam deixar de sorrir. Mr. Rushworth não sabia o que fazer com tantos elogios; mas aparentando estar, como realmente estava, excessivamente satisfeito com a boa opinião que Sir Thomas fazia dele, embora sem falar muito, empregou seus melhores esforços para conservar aquela boa impressão o maior tempo possível.
A primeira coisa em que Edmund se ocupou na manhã seguinte foi falar a sós com o pai e lhe fazer uma exposição sincera de todo o projeto da representação; explicou a parte que tomara no caso, porém só se defendeu no que, conscientemente se poderia julgar isento de culpa. E reconheceu, ingenuamente que a sua confissão fora ouvida com uma benevolência tão parcial que o deixou a duvidar se não teria sido melhor ficar calado. Enquanto se defendia, procurava ansiosamente não dizer nada que pudesse desfavorecer os outros; mas, entre todos, havia unicamente uma pessoa a quem ele se poderia referir sem necessidade de se justificar ou defender.
– Todos nós tivemos mais ou menos culpa; todos nós, exceto Fanny. Fanny foi a única que teve juízo durante o tempo todo: a única que se manteve firme. Foi intransigente desde o princípio até o fim. Nunca deixou de pensar no respeito que devia ao senhor. Fanny tem todas as qualidades que o senhor poderia desejar.
Sir Thomas, com um vigor de que nunca o filho julgaria capaz, expôs toda a inconveniência que havia num tal projeto, no meio daquele grupo e justamente naquela ocasião. Ficara realmente muito ressentido; e, apertando a mão de Edmund, quis com isso significar que procurava desmanchar a impressão desagradável e esquecer o quanto ele próprio havia sido esquecido, logo que isso lhe fosse possível – quando a casa, livre de todos os objetos que forçavam a recordação, voltasse ao seu estado normal. Não entrou em explicações com os outros filhos; preferia acreditar que tivessem reconhecido seus erros, a correr o risco de uma decepção. A determinação de que tudo fosse eliminado e o desaparecimento de todos os preparativos seria o suficiente.
Havia, porém, uma pessoa na casa a quem ele não poderia expor seu ressentimento apenas pela maneira com que se conduzia. Não pôde deixar de insinuar a Mrs. Norris haver contado com a sua interferência para impedir a realização de uma idéia que o seu bom senso deveria, certamente, desaprovar. Os filhos haviam se conduzido com muita leviandade ao formarem tal plano; deveriam ter agido com mais critério; mas enfim eram jovens e com exceção de Edmund, não tinham o caráter muito firme; por isso, ele via com mais surpresa a submissão da tia àquelas desastradas medidas, a sua proteção àqueles perigosos divertimentos, do que a imaginação de tais medidas e divertimentos. Mrs. Norris ficou um pouco desapontada e tão calada como jamais estivera em toda sua vida; pois envergonhava-se de confessar que nunca havia achado nenhuma das inconveniências manifestadas por Sir Thomas e não queria admitir que a sua influência era insuficiente – que ela teria falado em vão. Sua única saída era fugir do assunto o mais depressa possível, desviando as idéias de Sir Thomas para um plano mais feliz. Tinha muitas coisas para contar, a seu próprio favor, quanto ao cuidado que tivera em geral sobre os interesses e confortos da família dele, muito esforço e muitos sacrifícios para exibir, representados pelas caminhadas precipitadas e repentinos afastamentos de sua própria casa e os excelentes conselhos e avisos que dera a Lady Bertram e a Edmund sobre os negócios e despesas domésticas, conselhos que lhe valeram as mais consideráveis economias e surpreenderam em falta mais de um empregado. Porém o seu principal orgulho estava em Sotherton. Seu maior apoio e glória se baseavam em ter sido ela quem fizera a ligação com os Rushworth. Naquela questão ela era inacessível. Avocou a si todo o mérito por haver transformado em realidade a admiração de Mr. Rushworth por Maria.
– Se não fosse eu ter me mexido – disse ela – e feito questão de ser apresentada à mãe dele, depois haver persuadido minha irmã a lhe fazer uma visita, tenho tanta certeza como a de estar aqui sentada, de que aquilo não daria em nada; pois Mr. Rushworth é desses rapazes excessivamente modestos; que necessitam ser estimulados; não faltariam moças que o quisessem agarrar, se nós ficássemos aqui inativos. Eu, porém, não deixei a pedra por virar. Virei céu e terra por convencer minha irmã, o que por fim consegui. O senhor conhece a distância daqui a Sotherton; foi no meado do inverno e as estradas estavam impraticáveis, mas assim mesmo o consegui.
– Eu sei quão grande, quão justamente grande é a sua influência sobre Lady Bertram e meus filhos, por isso mesmo é que me admiro de não ter sido...
– Meu caro Sir Thomas, se o senhor tivesse visto o estado em que estavam as estradas naquele dia! Pensei que nunca chegaríamos a travessa-las, embora, naturalmente, tivéssemos levado os quatro cavalos; e o pobre velho, o cocheiro, nos serviu com a maior bondade e afeição, apesar de quase não poder sentar-se na boléia por causa do reumatismo, do qual eu o venho tratando desde o dia de São Miguel. Até que enfim consegui curá-lo; mas durante todo o inverno ele esteve muito mal – e aquele dia estava de tal forma, que não pude deixar de o ir ver no quarto, antes de sairmos e aconselhá-lo a não se arriscar; ele estava justamente colocando a peruca; então eu disse: – Escute, cocheiro, é melhor você não ir; Lady Bertram e eu não corremos perigo; você sabe que Stephen é muito firme e Charles tem guiado tantas vezes ultimamente que estou certa de que não haverá motivo para receio. Mas logo percebi que não adiantava; ele estava resolvido a ir e como não gosto de contrariar, não disse mais nada; sentia porém uma grande dor de coração por ele, cada vez que o carro dava um solavanco e mais aflita ainda fiquei quando passamos pelos ásperos caminhos próximos a Stokes, onde, com o gelo e a neve acamada sobre as pedras, foi pior do que o senhor imagina. E os pobres cavalos então! Ver o esforço que faziam! O senhor sabe como eu sempre me preocupo com os cavalos. Quando chegamos ao vale de Sandcroft Hill, sabe o que eu fiz? O senhor vai até rir-se de mim; pois desci do carro e me pus a caminhar. Fiz isso, sim senhor. Não era lá grande alívio para eles, mas sempre era algum, e eu não podia suportar a idéia de ficar sentada muito comodamente e ser carregada à custa daqueles nobres animais. Apanhei foi um tremendo resfriado, mas isso eu não levei em consideração. Meu objetivo estava alcançado com a visita.
– Espero que sempre tenhamos motivo para considerar a ligação digna do trabalho que deu para a estabelecer. Mr. Rushworth não tem nada de muito notável em suas maneiras, mas fiquei satisfeito ontem à noite com o que me pareceu ser a opinião dele sobre certo assunto: a sua evidente preferência por uma reunião sossegada em família em vez da balbúrdia e a confusão de um teatro. Ele parecia sentir-se exatamente como era de desejar.
– Sim, não há dúvida, e quanto mais o conhecer mais gostará dele. Ele não é o que se chama uma inteligência brilhante, mas tem milhares de qualidades excelentes e está tão disposto a seguir o seu exemplo que até já caçoam de mim porque todos os consideram como um achado meu. “Palavra de honra”, disse-me Mrs. Grant outro dia, “se Mr. Rushworth fosse seu próprio filho, creio que não teria mais respeito a Sir Thomas do que lhe tem.”
Sir Thomas desistiu de prosseguir no assunto, derrotado pelas evasivas da cunhada e desarmado com as suas lisonjas; e foi obrigado a se conformar com a convicção de que onde o prazer momentâneo daqueles a quem ela amava se encontrava em jogo, a sua bondade algumas vezes subjugava o seu julgamento.
Foi uma manhã ocupada para ele. As conversações que tivera, não lhe tomaram senão uma parte do dia. Tinha que se reintegrar aos afazeres habituais da vida em Mansfield; ver o seu mordomo e o seu administrador; examinar e avaliar e, nos intervalos dos negócios, andar pelas estrebarias, pelos jardins e plantações mais próximas. Ativo e metódico, quando se sentou à mesa de jantar, já havia não só feito tudo isso e assumido o comando como chefe da casa, como também já ordenara ao carpinteiro que pusesse abaixo tudo que acabara de construir na sala de bilhar e despedira o pintor de cenários há tempo bastante para justificar a agradável suposição de que, àquela hora, ele já se achava bem distante de lá. O pintor havia se retirado, tendo apenas entregado o assoalho de uma sala, gasto todas as escovas do cocheiro e deixado cinco dos trabalhadores preguiçosos e descontentes; e Sir Thomas tinha esperança de que um ou dois dias mais seriam suficientes para apagar todos os vestígios do que se havia passado, até mesmo a destruição das inúmeras cópias de “Juras de Amor” existentes em casa, pois ele próprio ia queimando todas que encontrava.
Mr. Yates começava agora a compreender a intenção de Sir Thomas, embora longe de entender os seus motivos. Ele e o amigo tinham estado fora com as suas espingardas a maior parte da manhã e Tom aproveitara a oportunidade para lhe explicar o caso, desculpando como pôde o comportamento do pai. Mr. Yates ficou tão decepcionado quanto se poderia supor. Ser logrado pela segunda vez da mesma maneira, era realmente uma falta de sorte; e sua indignação foi tal que, se não fosse por delicadeza ao amigo, e pela irmã mais moça do amigo, tinha a certeza de que atacaria o baronete pelo absurdo do seu procedimento e o levaria a raciocinar com um pouco mais de critério. Acreditava nisso muito resolutamente enquanto estava na floresta de Mansfield e durante todo o caminho para casa; mas quando se sentaram à mesma mesa, havia uma qualquer coisa em Sir Thomas , que fez Mr. Yates achar mais avisado deixá-lo prosseguir em seus próprios intentos e observar sua loucura sem discutir. Conhecera já muitos pais desagradáveis e freqüentemente havia se escandalizado com os embaraços que eles causavam, mas nunca, em toda a sua vida, tinha encontrado um daquela espécie, de moral tão incompreensível, tão infamemente tirânico como Sir Thomas. Era homem que só mesmo em atenção aos filhos se poderia aturar, e se Mr. Yates ainda pretendia permanecer por mais alguns dias sob seu teto, ele o deveria agradecer à sua linda filha Julia.
O serão passou-se aparentemente suave, embora quase todos estivessem contrariados; e a música que Sir Thomas pediu às filhas para tocarem, auxiliou a disfarçar a falta de harmonia verdadeira. Maria estava numa grande agitação. Era da maior importância para ela que Crawford agora não perdesse tempo em declarar-se, e estava perturbada por ver passar um dia sem haver qualquer progresso naquele ponto. Esperou-o durante toda a manhã e durante todo o serão continuava a esperá-lo. Mr. Rushworth havia partido logo cedo para Sotherton, levando a grande novidade; ela havia aguardado ansiosamente aquele afastamento, que poderia poupá-lo ao trabalho de voltar. Mas não tinha visto ninguém do Presbitério, nem uma só criatura, e a notícia que lhe chegou foi um amável bilhete de felicitações de Mrs. Grant a Lady Bertram. Aquele era o primeiro dia, depois de muitas, muitas semanas, em que as duas famílias estavam inteiramente separadas. Desde o princípio de agosto, nunca mais se haviam passado vinte e quatro horas sem que eles, de uma forma ou de outra, arranjassem um jeito para se reunirem. Fora um dia triste, cheio de ansiedade; e o dia seguinte, embora diferindo na espécie de contrariedades, não foi menos pesaroso. Alguns momentos de alegria febril foram seguidos de horas de intenso sofrimento. Henry Crawford aparecera novamente em casa, viera com o Dr. Grant, que estava ansioso por apresentar seus cumprimentos a Sir Thomas e numa hora, aliás muito cedo, foram recebidos na sala de almoço, onde se encontrava quase toda a família. Sir Thomas apareceu em seguida e Maria viu, com prazer e agitação, ser apresentado ao pai o homem a quem ela amava. Sua comoção foi indescritível. Alguns minutos depois, entretanto, ela ouviu Henry Crawford, que se achava sentado entre ela e Tom, perguntar a este em voz baixa, se havia algum plano para a continuação do espetáculo, depois daquela feliz interrupção. (E deu um olhar de cortesia para Sir Thomas). Nesse caso, ele estaria pronto a voltar para Mansfield a qualquer hora que desejassem: é que partiria para Bath imediatamente, onde devia encontrar-se com o tio, com urgência; mas se havia alguma esperança de recomeçar “Juras de Amor” ele fazia questão de manter aquele compromisso, mesmo que tivesse que romper com todos os outros; imporia ao tio a condição de procurá-lo logo e sempre que ele precisasse. A peça não seria prejudicada com a sua ausência.
– De Bath, Norfolk, Londres, York; onde eu estiver – disse ele – atenderei ao seu chamado na mesma hora, de qualquer parte da Inglaterra.
Foi bom que naquele momento fosse Tom que tivesse que responder e não a irmã. Ele podia dizer imediatamente, sem o menor embaraço.
– Sinto muito que você tenha que partir; mas quanto à nossa peça, está tudo acabado – inteiramente terminado – (olhou significativamente para o pai). O pintor foi despedido ontem, e amanhã muito pouco restará do teatro. Aliás eu já sabia de início que havia de acontecer isto. Mas ainda é cedo para ir a Bath. Não encontrará ninguém lá.
– É quando meu tio costuma ir.
– Quando tenciona ir?
– Hoje mesmo, talvez vá até Banbury.
– Qual é a estrebaria que você usa quando está em Bath? – foi a pergunta seguinte; e enquanto este assunto estava em discussão, Maria, a quem não faltava nem orgulho nem resolução, preparava-se para enfrentar a sua parte, com tolerável serenidade.
Crawford virou-se depois para ela, repetindo a maior parte do que já havia dito, apenas dando às palavras uma tonalidade mais suave e uma expressão mais forte de sentimento. Mas de que serviam suas expressões ou a suavidade de suas palavras? Ele ia partir e se não ia partir voluntariamente, pelo menos a sua intenção de permanecer afastado não seria involuntária; pois, excetuando-se o encontro que deveria ter com o tio, todos os seus compromissos eram arranjados por ele próprio. Podia falar em necessidade mas ela conhecia a sua independência. A mão que havia tão ternamente apertado a sua contra o coração dele! Tanto a mão quanto o coração estavam agora igualmente parados, impassíveis! A sua força de vontade amparava-a, mas a agonia em sua consciência era enorme. Ela não teve que aturar por muito tempo a dor de ouvi-lo dizer o que os seus atos contradiziam, nem ocultar o tumulto de seus sentimentos sob a capa da polidez; pois as cortesias gerais logo o obrigaram a se desviar dela e a visita de despedida foi muito curta. Ele se fora – tocara sua mão pela última vez, fizera-lhe um cumprimento ao afastar-se e a ela, agora, só restava procurar conformar-se com a solidão. Henry Crawford havia partido, saíra de sua casa e dentro de duas horas depois estaria fora da paróquia.
Assim terminaram todas as esperanças que a vaidade e o egoísmo haviam proporcionado a Maria e Julia Bertram.
Julia podia alegrar-se com a idéia de que ele partira. A sua presença já se lhe estava tornando odiosa; e se Maria não o tinha conquistado, ela agora estava bastante indiferente para dispensar qualquer outra vingança. E já que Henry Crawford se afastara ela poderia até lastimar a irmã.
Fanny alegrou-se com aquele afastamento, porém com um espírito mais puro. Deram-lhe a notícia na hora do jantar e ela a considerou como uma benção. Por todos os outros a notícia foi comentada com tristeza; e os méritos do moço foram enumerados com as respectivas gradações de sentimento, desde a sinceridade do interesse muito particular de Edmund, até ao desinteresse de sua mãe, que falava inteiramente por tabela. Mrs. Norris começou a refletir e admirar-se de que a paixão dele por Julia tivesse dado em nada; e quase se culpava por se haver descuidado de a incentivar; mas também com tanta coisa em que pensar, como era possível fazer tudo ao mesmo tempo?
Mais um dia ou dois, Mr. Yates também partiu. Na sua partida Sir Thomas sentiu o maior interesse; desejando estar só com a família, a presença de um estranho, mesmo superior a Mr. Yates teria sido um aborrecimento; e aquele hóspede, frívolo e confiado, preguiçoso e gastador, era uma contrariedade em todos os sentidos. Por si mesmo já era aborrecido, mas como amigo de Tom e admirador de Julia tornou-se ofensivo. Sir Thomas havia ficado indiferente a que Mr. Crawford partisse ou não; mas os seus votos de boa viagem a Mr. Yates, quando o acompanhou até a porta do hall, foram dados com verdadeira satisfação. Mr. Yates esperava para ver a destruição de todos os preparativos do teatro, em Mansfield, a remoção de tudo o que pertencera à peça: partiu deixando a casa entregue à sua antiga sobriedade. E Sir Thomas teve a esperança de que, vendo-o pelas costas, estaria livre do pior objeto ligado àquela idéia, do último que lhe teria, inevitavelmente, recordado a sua existência.
Mrs. Norris tratou de esconder da vista dele uma coisa que lhe teria desagradado. E a cortina, cuja confecção ela havia dirigido com tanto talento e tanto sucesso, encaminhou-se para sua própria casa, onde, por acaso, se estava precisando tanto de um tapete verde.
A volta de Sir Thomas causou uma mudança notável nos hábitos da família, independente de “Juras de Amor”. Sob a sua direção, Mansfield era um lugar diferente. Afastados os alegres amigos e entristecido os espíritos de muitos, entre os da casa, estava tudo monótono, sombrio, comparado com os dias passados – uma severa reunião de família, raramente animada. Com a gente do Presbitério havia poucas relações. Sir Thomas, pouco afeito a intimidades em geral, naquela ocasião estava particularmente inclinado a não aceitar senão determinados compromissos. Os Rushworth eram os únicos que ele admitia no círculo de sua vida doméstica.
Edmund não se admirava que tais fossem os sentimentos do pai, nem tinha pesar algum a não ser a exclusão dos Grants.
– É que eles – observava à Fanny – têm o direito. É como se nos pertencessem; como se fossem uma parte de nós mesmos. Desejaria que papai lhes fosse mais reconhecido pela grande atenção que deram à mamãe e às minhas irmãs durante o tempo que esteve ausente. Receio que se sintam ofendidos. A verdade é que papai quase não os conhece. Ainda não estavam aqui, há doze meses, quando papai deixou a Inglaterra. E se os conhecesse melhor, havia de dar à companhia deles o valor que merece, pois são exatamente a espécie de gente que meu pai haveria de gostar. Nós bem que precisamos, às vezes, de um pouco de animação no nosso meio: minhas irmãs parecem desanimadas e Tom não está certamente à vontade. O Dr. e Mrs. Grant haviam de nos alegrar, e fazer com que nossos serões fossem mais divertidos, até mesmo para papai.
– Você acha? – disse Fanny – na minha opinião, titio não havia de gostar de nenhum acréscimo. Creio que ele dá valor justamente à calma de que você fala e que o repouso no círculo de sua própria família é tudo que ele deseja. E não me parece que nós estejamos mais sérios agora do que costumávamos ser – isto é, antes de titio ir para o estrangeiro. Se não me falha a memória, era justamente a mesma coisa. Nunca houve muita risada na presença dele; ou se há alguma diferença, creio que não será senão aquela que uma ausência tende a produzir logo no princípio. Deve ser um certo acanhamento; mas não me recordo de que nossos serões antigamente tivessem sido mais alegres, a não ser quando titio estava na cidade. Nenhuma gente moça pode ser alegre, suponho, quando aqueles a quem olham com respeito se acham em casa.
– Acho que você tem razão, Fanny – foi a resposta dele, depois de pensar um pouco. – Creio que nossos serões apenas voltaram ao que eram antes e não assumiram novo aspecto. A novidade foi se terem tornado animados. No entanto, que forte impressão apenas algumas poucas semanas podem causar! Eu me estava sentindo como se nunca tivéssemos vivido senão assim, antigamente.
– Creio que eu sou mais séria que as outras pessoas – disse Fanny. – Os serões não me parecem longos. Gosto de ouvir titio falar das Antilhas. Poderia ouvi-lo uma hora inteira. Distraio-me mais com isto do que com muitas outras coisas; enfim, eu sou diferente dos outros, parece.
– Que quer você dizer com isto? – sorriu – Quer que lhe diga que você é diferente das outras pessoas apenas porque é mais ajuizada e discreta? Mas quando você, ou qualquer outra pessoa, já recebeu de mim um cumprimento, Fanny? Dirija-se a meu pai se quiser ser cumprimentada. Ele lhe fará a vontade. Pergunte a seu tio o que ele pensa e você ouvirá bastante elogios; e embora esses elogios sejam na maioria sobre a sua pessoa física, você os deverá suportar e esperar que ele veja igualmente tanta beleza na sua alma.
Essas expressões eram tão novas para Fanny que ela ficou inteiramente embaraçada.
– Seu tio acha você muito bonita, Fanny – essa é que é a verdade. Qualquer pessoa que não fosse eu, havia de tirar disso outra conclusão e qualquer pessoa, menos você, havia de se ressentir por não ter sido achada muito bonita há mais tempo; mas a verdade é que seu tio até agora nunca a tinha admirado – e agora ele a admira. Sua pele está tão bonita! E você ganhou tanto em aspecto! E o seu porte – não, Fanny, não vire o rosto – é apenas um tio. Se você não pode suportar a admiração de um tio, que será de você? Você deve realmente ir se acostumando com a idéia de ser admirada. Deve se habituar a ser uma mulher bonita.
– Oh! Não fale assim, não fale assim – exclamava Fanny, perturbada por sentimentos que ele não poderia adivinhar; vendo porém que ela estava embaraçada, o rapaz mudou de assunto e apenas acrescentou mais seriamente:
– Seu tio está inclinado a gostar de você em todos os sentidos; eu só desejaria que conversasse mais com ele. Você é uma das que ficam mais caladas durante o serão.
– Mas eu falo com ele mais do que costumava. Não ouviu eu o interrogar ontem à noite sobre o tráfico de escravos?
– Ouvi – e tive esperança de que à pergunta fosse seguida de outras. Seu tio havia de gostar que lhe tivesse pedido outras informações.
– E eu queria muito fazer outras perguntas – mas estava um silêncio tão pavoroso! E enquanto meus primos estavam ali sentados sem dizer uma palavra, parecendo não se interessar absolutamente pelo assunto, eu não quis... – parecia que eu queria me exibir à custa do silêncio deles, mostrando uma curiosidade e um prazer pelas informações que ele decerto desejaria fossem manifestados pelas suas próprias filhas.
– Miss Crawford tinha razão no que me disse de você outro dia: que você parecia ter tanto medo de ser notada e elogiada como as outras mulheres têm medo de ser esquecidas. Estivemos falando a seu respeito no Presbitério, e essas foram as palavras dela. “Aquela moça tem muita penetração. Não conheço ninguém que distinga melhor os caracteres.” Para uma pessoa tão jovem, é notável! Ela certamente compreende você melhor do que a maioria daqueles que lhe conhecem já há tanto tempo; e a respeito de algum dos outros, já percebi, por insinuações ocasionais ou expressões que lhe escapam, que ela poderia definir o caráter de cada um com a mesma segurança, se não fosse impedida pela delicadeza. Tinha vontade de saber o que ela pensa de papai! Deve admirá-lo como a um homem de boa aparência, dignidade e boas maneiras, mas, talvez, tendo-o visto tão poucas vezes, a reserva dele tenha sido um tanto repulsiva. Se eles se encontrassem mais vezes não tenho dúvida de que haviam de gostar um do outro. Meu pai haveria de apreciar a vivacidade dela, e Miss Crawford é bastante inteligente para dar valor aos predicados dele. Desejaria que se encontrassem mais freqüentemente! Espero que ela não imagine que papai lhe tem alguma antipatia.
– Miss Crawford deve estar bem segura do interesse que todo o resto da família lhe tem – disse Fanny com um leve suspiro – e não há de ficar apreensiva. E é tão natural que Sir Thomas queira agora estar só com a família, que ela não pode se queixar por isso. Depois de algum tempo suponho que tornaremos a nos encontrar como antigamente, com a única diferença da estação do ano.
– É a primeira vez, desde criança, que ela passa um mês de outubro no campo. Pois não considero Tunbridge ou Chelteham como campo; e novembro é um mês ainda pior. Mrs. Grant está aflita, com receio de que ela ache Mansfield muito enfadonho quando chegar o inverno.
Fanny podia ter dito muitas coisas, mas achou melhor calar-se, e não tocar em nenhum dos muitos predicados de Miss Crawford, seus talentos, seu caráter, sua importância, seus amigos, para não correr o risco de fazer qualquer observação que pudesse parecer mesquinha. A bondade com que Miss Crawford a tratava merecia pelo menos um pouco de gratidão e assim ela mudou de assunto, falando de outras coisas.
– Creio que amanhã titio janta em Sotherton e você e Mr. Bertram também. Nossa reunião em casa vai ficar muito reduzida. Espero que titio continue a gostar de Mr. Rushworth.
– É impossível, Fanny. Depois de passar cinco horas com ele nesta visita de amanhã, papai há de gostar muito menos. Se fosse somente aturar a estupidez do dia que vamos passar! Mas a pior desgraça é que virá depois – a impressão que ele vai deixar em Sir Thomas, que não poderá se iludir por muito mais tempo. Tenho pena de todos, e só desejaria que Mr. Rushworth e Maria nunca se tivessem encontrado.
Neste plano, de fato, o desapontamento de Sir Thomas estava iminente. Nem toda a sua boa vontade para com Mr. Rushworth, nem toda a consideração de Mr. Rushworth por ele, poderiam impedi-lo de em breve descobrir uma parte da verdade – que Mr. Rushworth era um homem inferior, tão ignorante em negócios quanto em livros, com opinião em geral indecisas e parecendo não estar muito certo de si mesmo.
Esperava encontrar um genro muito diferente; e começando a preocupar-se pelo futuro de Maria, procurou estudar os sentimentos dela. Um pouco de observação foi o suficiente para perceber a indiferença que havia entre eles. A atitude de Miss Bertram para com Mr. Rushworth era fria, desinteressada. Ela não podia, não gostava dele. Sir Thomas resolveu falar seriamente com a filha. Por muito vantajosa que fosse a união, por muito prolongado e público que estivesse o noivado, a felicidade dela não deveria ser sacrificada por causa disso. Ela havia, talvez, aceitado o pedido de Mr. Rushworth muito cedo e ao conhecê-lo melhor estava arrependida.
Com solene bondade Sir Thomas a interpelou; falou sobre os receios que ele tinha, indagou sobre os desejos dela, pediu-lhe que fosse franca, sincera, assegurou-lhe que se responsabilizaria por todos os inconvenientes e que o noivado seria desmanchado se ela se sentia infeliz com a idéia de tal casamento. Tomaria todas as providências e ela ficaria livre. Maria teve um momento de indecisão enquanto ouvia, mas apenas um momento; quando o pai parou de falar, ela já estava apta a lhe responder imediatamente, com decisão e aparente calma. Agradeceu-lhe a grande atenção, a sua bondade; porém estava inteiramente enganado supondo que ela tivesse o menor desejo de desmanchar o noivado ou que estivesse resolvida a mudar de opinião ou de afeto. Tinha a maior consideração pelo caráter e pelo temperamento de Mr. Rushworth e estava certa de que ele a faria feliz.
Sir Thomas tranqüilizou-se; e alegrou-se talvez por poder ficar tranqüilo e apressar o negócio tanto quanto a sua consciência teria aconselhado aos outros. Era uma aliança que ele teria desmanchado com pesar; assim, raciocinou: Mr. Rushworth era muito jovem e ainda poderia mudar; Mr. Rushworth, num bom meio, se aperfeiçoaria; e se Maria podia agora aludir com tanta segurança à sua felicidade com ele, falando certamente sem a insensatez, a cegueira do amor, deveria ser acreditada. Os sentimentos dela, provavelmente, não eram fortes; nem ele nunca pensara que o fossem; mas por isso mesmo a sua felicidade não seria menor; e se ela não fazia questão que o marido tivesse um caráter forte, brilhante, tudo o mais, certamente, estava a favor dela. Uma jovem bem intencionada, mesmo quando não se casa por amor, em geral é mais ligada a sua própria família; e o fato de Sotherton ser tão perto de Mansfield devia naturalmente ser a maior atração e seria, com todas as probabilidades, uma contínua fonte das mais amáveis e inocentes alegrias. Tais e tais eram as reflexões de Sir Thomas, feliz por escapar ao embaraçante desgosto de um rompimento, do espanto, dos comentários, das censuras que isso provocaria; feliz por poder assegurar um casamento que lhe traria um acréscimo de respeitabilidade e influência e muito feliz por julgar ver no temperamento da filha qualquer coisa que só seria favorável àquele fim.
Para ela, a conferência terminara com tanta satisfação como para o pai. No estado de espírito em que se achava, sentia-se contente por ter resolvido seu destino definitivamente; por se ter de novo empenhado a Sotherton; por estar livre de dar possibilidade a Crawford o triunfo de governar seus atos e destruir seus projetos; e retirou-se com altiva resolução, decidida, porém, a portar-se mais cautelosamente para com Mr. Rushworth dali em diante, a fim de que seu pai não tivesse novas suspeitas.
Tivesse Sir Thomas interpelado a filha nos três ou quatro dias depois que Henry Crawford saíra de Mansfield, antes de seus sentimentos estarem de todo acalmados, antes de ela ter perdido todas as esperanças ou de estar absolutamente resolvida a conformar-se com a sua sorte, a resposta teria sido diferente; mas depois de se passarem mais três ou quatro dias, não havendo sinal de volta, nem carta, nem recado, nem sintoma de saudade, nem a esperança de que a separação pudesse trazer alguma vantagem, ela esfriou suficientemente para encontrar no orgulho e na desforra o consolo que estes lhe pudessem dar.
Henry Crawford havia destruído a sua felicidade, mas nunca saberia o que tinha feito; e sua honra, sua dignidade, sua prosperidade, porém, ele não haveria de destruir. Ele não teria o gosto de a ver definhar por ele em Mansfield, rejeitando Sotherton e Londres, independência e esplendor, só por sua causa. Agora mais do que nunca tinha necessidade de independência; e em Mansfield ainda mais sentia aquela falta de liberdade. Dia a dia sentia-se menos capaz de suportar o constrangimento a que seu pai a obrigava. A liberdade que a ausência dele dera tornava-se agora absolutamente necessária. Ela tinha que escapar dele e de Mansfield o mais depressa possível e procurar consolo na riqueza e na posição, na balbúrdia, na sociedade, a fim de curar a chaga de sua alma. Estava perfeitamente resolvida e não pretendia mudar de idéia.
Para tais sentimentos a demora, mesmo a demora dos preparativos, teria sido uma desgraça e Mr. Rushworth não poderia estar menos impaciente do que ela pela realização do casamento. Moralmente Maria estava bem preparada: preparada para o matrimônio pelo ódio que tinha do seu lar, pelo constrangimento e sua tranqüilidade; pelo sofrimento de um amor desiludido e pelo desprezo ao homem com quem se ia casar. O resto podia esperar. As novas carruagens e mobílias podiam esperar até a primavera quando ela estivesse em Londres e onde o seu próprio gosto tivesse maior influência.
As partes interessadas neste assunto estando todas de acordo, parecia que apenas algumas semanas seriam suficientes para os determinados preparos que devem preceder um casamento.
Mrs. Rushworth estava pronta para retirar-se e entregar a casa à jovem afortunada que seu filho havia escolhido; e logo nos primeiros dias de novembro mudou-se, com o verdadeiro decoro de uma nobre dama, com sua criada, seu mordomo e seu carro, para Bath, onde, nas suas reuniões passou a ostentar os esplendores de Sotherton; gozando-os, talvez, mais intensamente na animação de uma mesa de jogo, do que jamais os havia gozado quando morava lá; e antes do fim daquele mesmo mês realizou-se a cerimônia que deu a Sotherton uma nova dona.
O casamento foi muito bonito. A noiva estava elegantemente vestida; as duas damas de honra mostravam-se exatamente como convinha, um pouco menos bonitas; o pai levou-a ao altar; a mãe permaneceu com o vidro de sais todo o tempo na mão, esperando ficar aflita; a tia tentou chorar; e o ofício foi lido solenemente pelo Dr. Grant. Os vizinhos, quando comentaram o casamento, não encontraram nada para censurar, exceto que a carruagem em que os noivos e Julia se retiraram da igreja havia sido a mesma já usada por Mr. Rushworth há doze meses passados. Em tudo mais as formalidades do dia poderiam enfrentar a investigação mais minuciosa.
Estava tudo terminado e eles haviam partido. Sir Thomas sentia-se como se deve sentir um pai zeloso e sofria, de fato, a aflição que sua mulher havia pensado sofrer mas que de felizmente escapara. Mrs. Norris, muito feliz em ajudar nos preparativos, em passar o dia todo no Park, a fim de amparar o espírito de sua irmã, em beber à saúde de Mr. e Mrs. Rushworth com um ou dois copos de vinho a mais, estava radiante; pois ela é quem fizera aquele casamento; ela havia feito tudo e ninguém teria imaginado, vendo o seu orgulho, que ela tivesse jamais em sua vida de infidelidade conjugal ou que tivesse o menor pressentimento sobre as disposições da sobrinha, que vira crescer. A idéia do jovem casal era viajar, depois de poucos dias, para Brighton, onde tomaria uma casa por algumas semanas. Todos os lugares de divertimentos eram novos para Maria, e Brighton era quase tão alegre no inverno como no verão. Depois que se tivessem divertido bastante por lá, então chegaria o tempo para um círculo mais amplo como Londres.
Julia ia com eles para Brighton. Desde que cessara entre as irmãs a rivalidade, estas gradualmente foram recobrando a intimidade, e estava, pelo menos, suficientemente amigas para que cada uma, numa ocasião como aquela, encontrasse excessivo prazer na companhia da outra. Qualquer companhia que não fosse o marido era essencial para a senhora de Mr. Rushworth; e Julia estava tão ansiosa por novidades e prazeres quanto Maria, embora não tivesse necessidade de lutar tanto para os conseguir e fosse mais capaz de suportar uma situação inferior.
A partida deles trouxe outras mudanças para Mansfield, uma lacuna que não se encheria senão depois de algum tempo. A roda da família tornou-se muito reduzida; e embora ultimamente as duas Misses Bertram não tivessem trabalhado muito para a alegrar, assim mesmo faziam falta. Até a mãe lhes sentia a ausência; e muito mais ainda a meiga prima, que vagava pela casa pensando nelas com uma tristeza e um afeto que elas jamais mereceriam, pelo pouco que fizeram para isso.
Com a saída das primas, aumentou a importância de Fanny. Tornando-se como se tornou, a única moça nos serões da sala de visitas, a única a ocupar aquele interessante lugar numa família em que ela, até ali, estivera colocada num humilde terceiro plano, era impossível que não fosse agora mais observada, mais considerada e cuidada do que jamais o fora; e a pergunta “Onde anda Fanny?” tornou-se comum, mesmo quando não precisavam dela para qualquer serviço.
Não foi somente em casa que seu prestígio aumentou, mas no Presbitério. Naquela casa onde não entrara senão duas vezes por ano, desde a morte de Mr. Norris, tornou-se a convidada desejada e favorita, muito apreciada por Mary Crawford nos dias tristes e chuvosos de novembro. Suas visitas lá, tendo começado por acaso, continuavam por convite. Mrs. Grant, que de fato ansiava por obter qualquer distração para a irmã, facilmente se persuadia de que estava fazendo uma grande bondade a Fanny e lhe dando, com seus freqüentes convites, as maiores oportunidades para instruir-se.
Tendo Fanny ido à vila numa incumbência qualquer da tia Norris, foi surpreendida, perto do Presbitério, por uma pesada carga d'água; e tendo sido vista por uma das janelas tentando encontrar abrigo em baixo dos ramos de um carvalho logo adiante daquele local, foi forçada a entrar, embora, por modéstia, tivesse relutado um pouco. Teria resistido se o convite partisse apenas de uma empregada; mas quando o próprio Dr. Grant saiu com um guarda-chuva, não havia mais nada a fazer senão ficar muito envergonhada e entrar quanto antes; e para a pobre Miss Crawford, que estava justamente contemplando a chuva num desesperado estado de espírito, suspirando porque ela arruinaria todos os seus planos de exercício naquela manhã e todas as possibilidades de ver uma única criatura além deles próprios durante as seguintes vinte e quatro horas, o som de um certo movimento na porta da frente e a aparição de Miss Price, escorrendo água no vestíbulo, foi um encanto. Reconheceu o valor que tem um acontecimento qualquer num dia chuvoso no campo. Imediatamente tornou a ficar cheia de vivacidade e a mais empenhada a ser útil a Fanny, em descobrir que ela estava mais molhada do que a princípio parecia e em lhe arranjar roupas secas; Fanny, depois de ser obrigada a submeter-se a todas essas atenções, depois de ser socorrida e servida por patroas e empregadas, tendo sido, também, obrigada, ao descer, a permanecer com elas no salão de visitas durante uma hora enquanto a chuva continuava, foi considerada como uma benção, uma coisa nova para se ver e distrair, o que fez Miss Crawford ficar de bom humor até a hora de vestir-se para o jantar.
As duas irmãs foram tão amáveis com ela, tão agradáveis, que Fanny teria apreciado a visita, se não estivesse certa de as estar incomodando e se tivesse previsto que o tempo certamente, depois de uma hora, havia de clarear e salvá-la da vergonha de ter de aceitar a carruagem e os cavalos do Dr. Grant para ir para casa, como haviam sugerido. Quanto à ansiedade que poderia causar em casa a sua ausência com um tempo daqueles, ela não precisava preocupar-se; pois como as duas tias eram as únicas que tinham conhecimento de sua saída, sabia perfeitamente que não seria sentida, e que, qualquer que fosse a cabana em que a imaginação da tia Norris resolvesse abrigá-la durante a chuva, era evidente para a tia Bertram acreditar que na tal cabana ela deveria estar.
Começava a clarear quando Fanny, observando uma harpa no salão, fez algumas perguntas sobre o instrumento, o que logo deu a entender que ela desejava muito ouvi-la tocar e obrigou-a à confissão, quase inacreditável, de que nunca a ouvira desde que a harpa se achava em Mansfield. Para Fanny aquilo parecia uma circunstância muito simples e natural. Ela raramente ia ao Presbitério depois da vinda do instrumento; não houvera motivo para que fosse lá; mas Miss Crawford, lembrando-se de um desejo há muito tempo demonstrado sobre o assunto, ficou aflita com seu próprio descuido; e imediatamente, acompanhadas da maior boa vontade, seguiram-se as perguntas:
– Quer que eu toque para você agora? Que prefere que eu toque?
Dessa forma começou a tocar; feliz por ter um novo ouvinte, uma ouvinte que parecia tão agradecida, tão cheia de admiração pela sua execução e que não mostrava falta de gosto. Tocou até que o olhar de Fanny, tendo-se dirigido casualmente para a janela, notou que o tempo estava evidentemente claro; a moça fez menção de sair.
– Mais um quarto de hora – disse Miss Crawford – e vamos ver como fica o tempo. Não queira fugir logo no primeiro sinal de bom tempo. Aquelas nuvens estão ameaçadoras.
– Mas já passaram – respondeu Fanny. – Eu as estive observando. Esta chuva veio do sul.
– Do sul ou do norte, conheço muito bem uma nuvem escura quando a vejo; e não deve sair enquanto ainda estiver ameaçando. Além disso, quero tocar mais alguma coisa para você – uma música muito bonita – a favorita do seu primo Edmund. Tens que ficar, para ouvir a música preferida de seu primo.
Fanny sentiu que devia ficar; embora não esperasse por aquela referência para pensar em Edmund, naquele momento a lembrança dele veio-lhe muito nítida na memória e ela o imaginou, sentado naquela sala dias e dias, talvez no mesmo lugar onde se achava agora, ouvindo enlevado a ária favorita, tocada, como ela supunha, com um timbre e expressão superior, e conquanto ela mesma estivesse encantada e contente por gostar do que ele gostava, ao terminar a música ela estava mais impaciente de sair do que estivera antes; e como parecia evidentemente resolvida, foi tão amavelmente convidada a voltar, ou passar por lá sempre que pudesse para ouvir mais um pouco de música, que achou necessário aceitar, caso não fizessem objeção em casa.
Tal foi a origem daquela espécie de intimidade que se fez entre elas logo na primeira quinzena depois da partida das Misses Bertram – uma intimidade que havia resultado principalmente do fato de Miss Crawford precisar de novidade e que da parte de Fanny não era muito real. Fanny visitava-as cada dois ou três dias: aquilo era como que uma fascinação: ela não podia deixar de ir e, contudo, não a estimava, não podia pensar como a outra e não podia sentir-se agradecida por ser convidada agora, quando não havia mais ninguém para convidarem; e não encontrando na conversação maior prazer a não ser casualmente, e isto mesmo muitas vezes à custa do seu próprio raciocínio, quando por acaso faziam um gracejo sobre pessoas e assuntos que Fanny não admitia fossem desrespeitados. Ela ia, porém, e muitas vezes passeavam durante meia hora no jardim de Mrs. Grant, estando o tempo extraordinariamente bom para aquela época do ano; e aventuravam-se mesmo, algumas vezes, a sentarem-se num dos bancos, relativamente desprotegidos, permanecendo ali até que, no meio de alguma terna exclamação de Fanny sobre a doçura de um outono tão prolongado, eram obrigadas por uma súbita rajada de vento frio que derrubava sobre elas as últimas folhas amarelas, a se erguerem à procura de aquecimento.
– Isto é lindo, muito lindo – disse Fanny, olhando em volta quando um dia estavam assim sentadas; – cada vez que venho a este jardim fico mais admirada do crescimento e da beleza dele. Há três anos passados isto não era senão uma sebe rústica ao longo da parte alta do campo, que ninguém acreditava pudesse dar em nada; e agora está transformado num passeio, difícil de dizer se mais precioso como utilidade ou como ornamento; talvez com mais três anos já se tenha esquecido – ou quase esquecido o que fora antes. Que coisa admirável, como é admirável a ação do tempo e as transformações do cérebro humano! – E seguindo o curso desse último pensamento, ela acrescentou em seguida: – Se qualquer uma das nossas faculdades pode ser classificada como a mais admirável de todas, creio que deve ser a memória. Parece haver qualquer coisa de mais incompreensível na força, nas falhas nas desigualdades da memória do que em qualquer outro dos nossos sentidos. A memória algumas vezes é tão fiel, tão serviçal, tão obediente; outras vezes tão embrulhada, tão fraca; e ainda outras, tão tirânica, tão descontrolada! Nós somos, por assim dizer, um milagre em todos os sentidos; mas as nossas faculdades de lembrar e esquecer parecem impossíveis de adivinhar.
Miss Crawford, desinteressada e distraída, não encontrou o que dizer; e Fanny percebendo-o, levou a conversa para um assunto que supunha interessá-la mais.
– Pode parecer impertinência eu estar elogiando, mas tenho que admirar o gosto com que Mrs. Grant tratou de tudo isto. Há uma simplificação tão suave no traçado dos caminhos! Tudo é tão espontâneo!
– Sim – respondeu Miss Crawford indiferente – está muito bem para um lugar como este. Aqui ninguém pensa em progresso: e, entre nós, até eu vir para Mansfield, nunca imaginei que um pastor do interior jamais aspirasse a ter um jardim ou coisa semelhante.
– Gosto tanto de ver os pinheiros crescerem! – respondeu Fanny. – O jardineiro de titio sempre diz que a terra aqui é melhor do que a nossa. E parece, realmente, pelo crescimento dos loureiros e pinheiros. Os pinheiros! Como são lindos! Pensando-se neles fica-se admirada das variedades que existem na natureza! Sei que em alguns países as árvores que mudam as folhas são a raridade; mas nem por isso é menos estranho que o mesmo solo e o mesmo sol possam modificar a natureza das plantas. Você vai pensar que eu estou fazendo poesia; mas quando saio fico atacada deste ímpeto de admiração. Não se pode fixar os olhos na coisa mais comum da natureza sem se encontrar motivo para uma divagação da fantasia.
– Para falar a verdade – replicou Miss Crawford – eu sou mais ou menos como o famoso Doge na corte de Luiz XIV; e posso declarar que não vejo motivo para admiração neste jardim. Se alguém me tivesse dito há um ano atrás que este lugar ia ser meu lar, que eu passaria meses e meses aqui, como tenho feito, certamente não acreditaria. Já estou aqui há cinco meses, que foram, aliás, os cinco meses mais calmos da minha vida.
– Calmos demais para você, não é?
– Teoricamente eu mesma pensaria isto, mas – e seus olhos brilharam enquanto falava – levando tudo em conta, nunca passei um verão tão feliz. Mas daí, acrescentou com um ar mais pensativo e baixando a voz, não se sabe em que isto dará.
O coração de Fanny bateu apressado e ela sentiu-se incapaz de fazer conjecturas e pedir explicações. Miss Crawford, porém, com renovada animação, logo prosseguiu:
– Mas a consciência me diz que eu estou muito mais reconciliada com a residência no campo do que jamais havia esperado. Acho que até seria agradável passar a metade do ano no campo; muito agradável realmente, em certas circunstâncias. Uma casa elegante, relativamente pequena, próxima das relações da família, em ligação constante com eles, presidindo a melhor sociedade da região; presidindo-a talvez, até mais do que aqueles de maior fortuna e passando do alegre círculo de tais divertimentos para um não menos agradável “tête-à-tête” com a pessoa de quem se gosta mais no mundo... Não há nada de assustador neste quadro, não acha, Miss Price? Não é preciso invejar a nova Mrs. Rushworth por ter uma casa como aquela.
– Invejar Mrs. Rushworth! – foi tudo o que Fanny pôde dizer.
– Ora, ora, seria muito ingrato nós censurarmos Mrs. Rushworth, pois estou prevendo que haveremos de lhe dever muitas horas de alegre e brilhante felicidade. Espero que para o ano haveremos de ir muitas vezes a Sotherton. Um casamento como o que fez Miss Bertram é um benefício para a comunidade; pois o principal prazer da esposa de Mr. Rushworth deve ser de encher a casa e dar os melhores bailes de toda a redondeza.
Fanny ficou em silêncio e Miss Crawford recaiu em meditação até que depois de alguns minutos despertou de repente e exclamou:
– Ah, lá vem ele. – Não se referia a Mr. Rushworth, mas a Edmund que aparecia naquele momento, caminhando com Mrs. Grant em direção a elas. – Minha irmã e Mr. Bertram! Fico tão contente por seu primo mais velho ter ido embora, para que o segundo possa ser chamado Mr. Bertram de novo! Mr. Edmund Bertram é um nome que soa de modo tão formal, tão insignificante, tão inferior, que eu o detesto.
– Como nós pensamos de maneira diferente! – exclamou Fanny. – Para mim o som de Mr. Bertram é tão frio e sem significação, tão inteiramente sem ardor ou caráter! É somente muito distinto, nada mais. Mas no nome de Edmund há nobreza. É um nome heróico e célebre; de reis, príncipes e cavaleiros; parece exalar o espírito de cavalaria e o calor das afeições.
– Reconheço que o nome em si é bom, e Lord Edmund ou Sir Edmund soa deliciosamente; mas ponha-se-lhe na frente um Mister, e Mr. Edmund não será mais do que Mr. John ou Mr. Thomas. Bem, vamos ao encontro deles e deixá-los desapontados pela metade do sermão que nos vão fazer por estarmos sentadas ao ar livre nesta época do ano, levantando-nos antes que eles comecem?
Edmund mostrou um prazer especial em encontrá-las. Era a primeira vez que as via juntas desde que começara aquela amizade, da qual ouvia falar com grande satisfação. Uma amizade entre as duas pessoas que lhe eram tão queridas, era tudo que ele poderia desejar: e para se fazer justiça ao apaixonado, diga-se que ele, de forma alguma, considerava Fanny como a única, ou mesmo a mais beneficiada com aquela intimidade.
– Bem – disse Miss Crawford – então não nos vão repreender pela nossa imprudência? Para que pensam que estivemos sentadas aqui senão para que falassem, e nos implorassem e suplicassem que não fizéssemos mais isto?
– Eu devia, talvez, repreendê-las – disse Edmund – se qualquer uma das duas estivesse aqui sozinha; mas desde que cometeram a falta juntas, fecho os olhos a muitas coisas.
– Elas não devem estar aí há muito tempo – interpôs Mrs. Grant – pois quando subi para apanhar meu chalé, olhei-as pela janela da escada e vi que estavam andando.
– E realmente – acrescentou Edmund – o dia está tão suave, que dificilmente se poderia considerar imprudência estarem sentadas por alguns minutos. Nossas estações nem sempre se podem regular pelo calendário. Muitas vezes se podem tomar maiores liberdades no mês de novembro do que no de maio.
– Palavra de honra – exclamou Miss Crawford – vocês dois são os amigos mais decepcionantes e insensíveis que já encontrei! Não há meios de se lhes dar um momento de inquietação! Nem sabem quanto nós sofremos nem os arrepios que tivemos! Mas eu já há muito tempo percebi que Mr. Bertram não é desses que se impressionam com esses dengues com que as mulheres gostam de atormentar os homens. Desde o princípio tive poucas esperanças com ele; mas você, Mrs. Grant, minha irmã, minha própria irmã, pensei que tivesse o direito de a assustar um pouco.
– Não se adule a si mesma, minha querida Mary. Não adianta querer me comover. Tenho minhas inquietações sim, mas essas são inteiramente diferentes; se eu tivesse o poder de modificar o tempo, você teria era um bom vento de leste soprando sobre si... Lá estão algumas de minhas plantas que Robert cismou de deixar do lado de fora porque as noites têm sido tão suaves. E eu sei bem como isto vai acabar: de repente vem uma mudança brusca, uma geada forte vai cair sobre elas, pegando todo mundo (pelo menos Robert) de surpresa; e eu as perderei todas. E há coisa pior: a cozinheira acabou de me dizer que o peru, que eu estava guardando para domingo, – e você sabe quão mais o Dr. Grant o apreciaria no domingo, depois das fadigas do dia, – não poderá passar de amanhã. Isto é uma injustiça e o culpado de tudo é o tempo.
– As delícias de uma dona de casa numa vila do interior! – disse Miss Crawford com ironia. – Recomende-me ao homem das sementeiras e ao tratador das galinhas.
– Minha querida filha, recomende o Dr. Grant ao decano de Westminster ou de St. Paul, e eu ficarei tão satisfeita quanto você. Mas aqui em Mansfield não temos gente importante assim. Que quer que eu faça?
– Oh! Você não pode fazer mais do que já faz: atormentar-se constantemente e ficar sempre de bom humor.
– Obrigada; mas ninguém pode escapar dessas pequenas contrariedades, Mary, esteja onde estiver; e quando você estiver estabelecida na capital e eu a for visitar, aposto que a encontrarei com os seus aborrecimentos, apesar dos seus jardineiros e vendedores de galinhas – ou talvez por causa deles mesmo. A escassez e a impontualidade dessa gente ou os preços exorbitantes e os furtos, vão lhe dar mais contrariedade.
– Pretendo ser bastante rica para não precisar me lamentar nem me incomodar com coisa alguma dessa ordem. Uma grande fortuna é a melhor receita que eu conheço para felicidade. Havendo dinheiro está resolvida toda esta parte de jardins e perus.
– Pretende, então, ser muito rica? – perguntou Edmund, com um olhar que para Fanny parecia ter uma significação muito séria.
– Com toda a certeza. E você não? Não é o que todos nós queremos?
– Não posso pretender uma coisa que está completamente fora de meu alcance. Miss Crawford tem o direito de escolher a posição que lhe pareça melhor. Só precisa estabelecer o número de milhões que deseja por ano e não há dúvida que eles virão. Minhas intenções são de apenas não ser pobre.
– Por meio de moderação e economia, cortando as suas necessidades de acordo com a renda de que dispuser, e tudo isto. Compreendo-o – um plano muito adequado para uma pessoa na sua idade, com meios tão restritos e poucas relações. Que mais poderia desejar senão uma vida decente? O senhor não tem muito tempo à sua frente; e suas relações não estão em situação de fazer qualquer coisa por si nem tampouco poderão mortificá-lo pelo contraste de suas próprias fortunas e importâncias. Seja pobre e honesto, se assim o quiser – eu é que não o invejo; creio mesmo que nem o hei de respeitar. Tenho muito mais respeito por aqueles que são honestos e ricos.
– Seu grau de respeito pela honestidade, do rico ou do pobre, é o que precisamente o que não me interessa. Eu não tenciono ser pobre. A pobreza é exatamente o que eu estou resolvido a ser contra. Honestidade, apesar de não ser rico, mesmo na circunstância de uma situação remediada, é tudo de que eu não quero que a senhora faça pouco caso.
– Mas eu faço pouco caso, sim. Não posso deixar de desprezar uma pessoa que se contenta com a obscuridade quando podia elevar-se a uma posição mais distinta.
– Mas como acha que eu poderia elevar-me? Porque acha que eu teria mais honestidade se subisse a uma posição mais elevada?
Esta pergunta não foi fácil de responder e tirou dos lábios da gentil senhora um “Oh!” prolongado, antes de acrescentar:
– Poderia ter entrado para o Parlamento ou ter seguido a carreira das armas há dez anos passados.
– Isto agora já não vem a propósito; e quanto à minha entrada para o Parlamento, creio que não tenho de esperar por uma assembléia especial para a representação dos filhos que não são primogênitos e não têm meios suficientes para viver. Não, Miss Crawford – acrescentou ele num tom mais sério – há certas distinções para as quais eu me sentiria infeliz se me julgasse incapaz – absolutamente incapaz ou sem possibilidade de obter – mas essas são de caráter diferente.
Um olhar significativo enquanto ele falava e o que pareceu uma íntima compreensão da parte de Miss Crawford quando respondeu gracejando, foi observado com tristeza por Fanny: e sentindo-se inteiramente incapaz de prestar atenção a Mrs. Grant, ao lado de quem ela agora ia acompanhando os outros, estava quase resolvida a voltar imediatamente para casa, esperando apenas ter coragem para o dizer, quando o grande relógio de Mansfield Park batendo três horas lhe provou que realmente tinha estado ausente muito mais tempo do que de costume. E de novo perguntou a si mesma se deveria despedir-se sem demora ou esperar mais um pouco. Convencida de que deveria ir, imediatamente começou a dizer adeus; e Edmund, nesta ocasião, lembrou-se de que a mãe havia perguntado por ela e que ele havia ido ao Presbitério com o fim de levar Fanny de volta.
A pressa de Fanny aumentou; e teria corrido para casa sozinha sem esperar por Edmund; mas todos apressaram o passo e a alcançaram dentro de casa, onde tinha que passar. O Dr. Grant estava no vestíbulo e quando o passaram para o cumprimentar, a moça viu pelo modo de Edmund que este tencionava voltar com ela: o primo também se estava despedindo. Ficou agradecida. No momento em que iam sair, o Dr. Grant convidou Edmund para jantar com ele no dia seguinte; e Fanny não teve nem tempo de se sentir deslocada, pois Mrs. Grant, imediatamente, virou-se para ela e pediu que lhe desse o prazer de vir também. Esta atenção era tão inesperada, uma circunstância tão inteiramente nova na vida de Fanny, que ela ficou cheia de surpresa e embaraço; e enquanto gaguejava seu enorme agradecimento e suas desculpas – “não sabia se poderia” – olhava para Edmund como que pedindo sua opinião e seu auxílio. Edmund, porém, encantado por terem oferecido tal felicidade à prima, e assegurando-lhe com o olhar e à meia voz que ela não tinha outra objeção senão a que sua tia por acaso fizesse, e como ele não acreditava que sua mãe pusesse qualquer dificuldade em dispensá-la, aconselhou-a francamente a aceitar o convite; e embora Fanny não se aventurasse, mesmo com o apoio dele, a assumir uma tal independência, resolveram que, se não houvesse nada ao contrário, Mrs. Grant poderia contar com ambos.
– E já sabem o que vai ser o jantar – disse Mrs. Grant sorrindo – o peru, e eu garanto que há de estar muito bom; pois meu caro – disse virando-se para o marido – a cozinheira insiste em matar o peru amanhã.
– Muito bem, muito bem – exclamou o Dr. Grant – tanto melhor; fico contente por ver que você tem em casa uma moça tão boa. Miss Price e Mr. Edmund Bertram, porém, têm que se arriscar. Nenhum de nós quer ouvir o cardápio. Uma reunião entre amigos e não um jantar fabuloso, é o que temos em vista. Um peru, ou um ganso, ou uma perna de carneiro, ou qualquer coisa que sua cozinheira nos queira dar.
Os dois primos foram juntos para casa; e, exceto os comentários imediatos sobre o convite, de que Edmund falou com grande satisfação, como sendo particularmente vantajoso, para o progresso da intimidade que ele com tanto prazer via estabelecer-se, andaram todo o tempo em silêncio; depois, terminado aquele assunto, ele ficou pensativo e sem vontade de falar sobre qualquer outro.
– Mas porque teria Mrs. Grant convidado Fanny? – disse Lady Bertram. – Por que motivo ela se lembrou de convidar Fanny? Fanny nunca janta lá, como você sabe. Eu não a posso dispensar e, além disso, estou certa de que ela não quer ir. Fanny, você não quer ir, não é?
– Se a senhora lhe pergunta desta maneira – exclamou Edmund, impedindo a prima de falar – Fanny imediatamente dirá: “Não”; no entanto tenho certeza, querida mamãe, de que ela gostaria de ir; e não vejo razão para que não vá.
– Não compreendo por que Mrs. Grant teria pensado em convidá-la. Nunca fez isto antes. Costumava convidar suas irmãs uma vez ou outra, mas nunca convidou Fanny.
– Se a senhora precisa de mim... – prontificou-se Fanny tentando iludir-se.
– Mas mamãe ficará com papai toda a tarde.
– É verdade que sim.
– Suponhamos que a senhora peça a opinião de papai.
– Isto é bem pensado. É o que eu farei, Edmund. Perguntarei a Sir Thomas, logo que ele chegue, se eu posso dispensa-la.
– Como queira, mamãe; mas o que eu quero saber é a opinião de papai sobre a conveniência de ser ou não aceito o convite; e acho que ele julgará, não só por Mrs. Grant como por Fanny, que sendo este o primeiro convite, deve ser aceito.
– Não sei. Perguntaremos. Ele, porém, vai ficar muito admirado de que Mrs. Grant tenha convidado Fanny.
Não havia mais nada a dizer, ou que pudesse ser dito que interessasse, até que Sir Thomas estivesse presente; mas o assunto envolveria, como envolveu, seu próprio conforto no serão do dia seguinte; por isso Lady Bertram estava tão preocupada que, meia hora depois, quando o marido, vindo da plantação, passou um minuto pela sala, em caminho para seu quarto de vestir, ela o chamou quando ele já ia quase fechando a porta:
– Sir Thomas, espere um pouco – tenho uma coisa para lhe dizer.
O tom calmo e lânguido, pois ela nunca se dava ao trabalho de erguer a voz, era sempre ouvido e atendido; e Sir Thomas voltou. A história começou; Fanny imediatamente desapareceu da sala; pois, para ela, ser o próprio objeto de qualquer discussão com o tio, era insuportável. Estava ansiosa, sabia – mais ansiosa, talvez, do que devia estar – pois que lhe importava, afinal, se fosse ou deixasse de ir? Se o tio levasse muito tempo considerando e decidindo, com a fisionomia muito séria e o olhar grave dirigido para ela e finalmente decidisse contra, tinha receio de não ser capaz de aparentar convenientemente a submissão e a indiferença devida. Sua causa, neste ínterim, prosseguia bem. Começou, da parte de Lady Bertram:
– Vou lhe dizer uma coisa que o vai surpreender muito. Mrs. Grant convidou Fanny para jantar.
– Bem – disse Sir Thomas, como se estivesse esperando mais alguma coisa para completar a surpresa.
– Edmund quer que ela vá. Mas como poderei eu dispensá-la?
– Ela voltará tarde – disse Sir Thomas, olhando para o relógio – mas quais são as suas dificuldades?
Edmund viu-se obrigado a falar e preencher os claros na história da mãe. Contou todo o ocorrido; e ela apenas teve que acrescentar:
– Que coisa estranha! Mrs. Grant nunca costumava convidá-la.
– Não é, porém, tão natural – observou Edmund – que Mrs. Grant procure uma visita tão agradável para a irmã?
– Nada mais natural – disse Sir Thomas, depois de uma curta deliberação; – nem tão pouco, houvesse ou não irmã no caso, poderia uma coisa ser mais natural. O fato de Mrs. Grant mostrar-se delicada com Miss Price, com a sobrinha de Lady Bertram, não precisa explicações. A minha surpresa é que esta seja a primeira vez que a convida. Fanny fez muito bem em dar apenas uma resposta condicional. Ela parece que pensa com juízo. Mas como eu compreendo que queira ir, e já que todas as pessoas jovens gostam de estar juntas, não vejo razão para que lhe seja negado este prazer.
– Mas e eu, posso passar sem ela, Sir Thomas?
– Na verdade, creio que pode.
– Ela sempre faz o chá quando minha irmã não está aqui, como sabe.
– Sua irmã, talvez, possa ser induzida a passar o dia conosco, e eu certamente estarei em casa.
– Bem, então Fanny pode ir, ouviu Edmund?
As boas notícias logo a seguiram. Edmund ao dirigir-se para seu quarto, bateu na porta do quarto da prima.
– Olhe, Fanny, tudo foi resolvido satisfatoriamente e sem a menor hesitação por parte de papai. Ele só teve uma opinião. Você deve ir.
– Obrigada, estou tão contente – respondeu Fanny instintivamente; embora depois, quando ele saiu e ele fechou a porta, não pudesse deixar de pensar: – E por que fico eu contente? Pois não tenho eu a certeza de ver ou ouvir qualquer coisa lá que irá me fazer sofrer?
Apesar disso, porém, estava contente. Simples como poderia parecer a outros olhos aquele convite, para ela tinha valor e era uma novidade, pois, excetuando-se o dia em Sotherton, raras vezes havia jantado fora de casa; e embora o jantar agora não fosse nem a um quilômetro de distância e apenas de três pessoas, em todo caso era jantar fora e todos os pequenos interesses dos preparativos eram por si um divertimento. Não contou nem com a simpatia nem com o auxílio daqueles que deveriam ter tomado parte nos seus sentimentos ou dirigido seu gosto; pois Lady Bertram nunca pensava em ser útil a ninguém e Mrs. Norris, quando veio no dia seguinte, em conseqüência de uma visita matinal e do convite que Sir Thomas lhe fizera, estava de muito mau humor e parecia empenhada, apenas, em diminuir o prazer da sobrinha, tanto no presente como no futuro, quanto pudesse.
– Palavra de honra, Fanny, você está com muita sorte recebendo tal atenção e benevolência! Deve ficar muito grata a Mrs. Grant por ter pensado em você e à sua tia por ter consentido em que vá; na verdade deve considerar isto como uma coisa extraordinária; pois espero que esteja convencida que não é muito lógico você ser convidada assim, principalmente para jantar; é uma coisa que não deve esperar que se repita. Nem tampouco deve imaginar que o convite foi feito em atenção particular a você; o cumprimento foi intencionalmente feito a seus tios e a mim. Mrs. Grant achou que fazia uma delicadeza a nós lhe prestando um pouco de atenção; do contrário nunca teria pensado nisso, e pode ficar certa que se sua prima Julia estivesse em casa, não seria você a convidada, de forma alguma.
Mrs. Norris havia tão engenhosamente destruído toda a parte de Mrs. Grant no favor, que Fanny, vendo-se na iminência de ter que responder, apenas pôde dizer que se sentia muito grata à tia Bertram por tê-la dispensado e que estava procurando deixar todos os trabalhos de sua tia bem adiantados para que não sentisse a sua falta.
– Oh! Pode ficar tranqüila, sua tia pode passar muito bem sem você, senão não lhe dariam permissão para ir. Eu estarei aqui. Pode ficar bem descansada quanto à sua tia. E espero que tenha um dia muito agradável e ache tudo muito divertido. Mas devo observar que cinco pessoas numa mesa é um número dos mais azarentos que existem; e me admiro de que uma senhora tão elegante como é Mrs. Grant não tivesse pensado nisto! E além disso, ao redor daquela enorme mesa que enche toda a sala! Será um horror! Se o doutor, ao menos, como qualquer pessoa de bom senso, tivesse se contentado em ficar com a minha mesa de jantar, quando eu deixei a casa, em vez de trazer aquela mesa absurda dele, que é maior, muito maior do que a mesa de jantar daqui, teria sido infinitamente melhor! E ele seria muito considerado! Pois ninguém tem consideração por uma pessoa que sai do seu próprio meio. Lembre-se disso, Fanny. Cinco – apenas cinco ao redor daquela mesa. No entanto, aposto que haverá jantar suficiente para dez pessoas.
Mrs. Norris tomou fôlego e continuou:
– Essa tolice das pessoas saírem da sua classe e procurarem parecer mais do que são, faz-me lembrar que devo dar um conselho a você, Fanny, agora que vai fazer uma visita sem a nossa companhia. Peço e digo a você que não se mostre muito, falando e dando opiniões como se fosse uma de suas primas, como se fosse a querida Mrs. Rushworth ou Julia. Seria muito impróprio, pode crer. Lembre-se sempre, esteja onde estiver, que deve ser sempre a mais humilde, a última: e não obstante Miss Crawford estar no Presbitério como em sua própria casa, você não deve querer igualar-se a ela. Quanto à hora de sair, deve deixar que Edmund decida isto.
– Sim, senhora. Não pensaria em fazer outra coisa.
– E se por acaso chover, o que está com muito jeito, pois nunca vi na minha vida uma tarde ameaçar tanta chuva, deve se arranjar da melhor maneira que puder e não esperar que a carruagem vá buscá-la. Eu com certeza não vou para casa hoje à noite e, portanto, a carruagem não terá que sair por minha causa; assim é melhor que vá preparada para o que der e vier.
A sobrinha achou isso muito razoável. Ela própria, mais do que Mrs. Norris, fazia de seus direitos uma avaliação muito baixa; e quando Sir Thomas logo depois, ao abrir a porta disse:
– Fanny, a que horas quer que lhe mande a carruagem? – ela ficou tão espantada que não lhe foi possível falar.
– Meu caro Sir Thomas! – exclamou Mrs. Norris, vermelha de raiva – Fanny pode vir à pé.
– Vir à pé! – repetiu Sir Thomas com a mais incontestável dignidade, entrando na sala. – Minha sobrinha ir a um jantar, caminhando a pé com um tempo destes! Quatro e vinte está bem para você?
– Sim, senhor – respondeu Fanny humildemente, sentindo-se como uma criminosa perante Mrs. Norris; e vendo-se incapaz de permanecer com ela, numa atitude que poderia parecer de triunfo, saiu da sala em companhia do tio, não tendo, porém, deixado de ouvir estas palavras, ditas na agitação de um grande despeito:
– É inútil! É bom demais! Enfim, Edmund vai também; sem dúvida é por causa de Edmund. Observei na terça feira à noite que ele estava rouco.
Mas Fanny não lhe deu importância. Ela sabia que a carruagem era exclusivamente por sua causa; e ao ficar sozinha, a consideração do tio para com ela, vindo imediatamente após as recriminações da tia, custou-lhe algumas lágrimas de gratidão.
Num minuto o cocheiro parou à porta; outro minuto, trouxe o cavalheiro, e como a dama, receosa de ficar atrasada, já se achava há muitos minutos sentada na sala de visitas, Sir Thomas viu-os partir em boa hora, como exigiam seus próprios hábitos correntemente pontuais.
– Agora deixe-me olhar para você, Fanny – disse Edmund sorrindo bondosamente como um irmão afetuoso – e dizer se está bonita; tanto quanto eu posso julgar com esta claridade, parece que está realmente uma beleza. Com que vestido está?
– Com o vestido novo que titio teve a bondade de me dar para o casamento de minha prima. Espero que não esteja elegante demais; pensei que devia usá-lo logo que pudesse e que talvez eu não tenha outra oportunidade durante o inverno. Espero que você não me ache ataviada demais.
– Uma mulher está sempre bem quando se veste toda de branco. Não, não acho que você esteja ataviada demais; está muito bem. Seu vestido me parece muito bonito. Gosto dessas manchas brilhantes. Miss Crawford não tem um vestido parecido com este?
Ao aproximarem-se do Presbitério passaram pelas cavalariças.
– Hei! – exclamou Edmund – temos companhia, veja uma carruagem! A quem terão eles convidado? – E baixando a vidraça lateral para poder distinguir: – É o carro de Crawford, garanto! Lá estão os dois empregados dele levando-o para dentro da cocheira. Ele está aqui, naturalmente. É uma grande surpresa, Fanny. Gostarei muito de o ver.
Não houve oportunidade, não houve tempo para Fanny dizer quão diferente ela pensava; mas a idéia de que havia mais uma pessoa, e que pessoa, para observá-la, aumentou-lhe enormemente o tremor com que executou a terrível cerimônia de entrar no salão de visitas.
Mr. Crawford estava de fato no salão de visitas; tendo chegado já há bastante tempo, estava pronto para o jantar; e os sorrisos e os olhares satisfeitos dos três outros que se achavam à sua roda, mostravam que a sua súbita resolução de passar alguns dias ali, ao sair de Bath, tinha sido recebida com grande prazer. O seu encontro com Edmund foi muito cordial; com exceção de Fanny, o prazer era geral; e até mesmo para ela havia alguma vantagem na presença dele, visto que todo o acréscimo à reunião só poderia fazer com que lhe fosse permitido sentar em silêncio e despercebida. Em pouco tempo ela própria se convenceu disso; pois conquanto ela tivesse que se resignar, como sua própria consciência lhe dizia, e apesar da opinião de sua tia Norris, a que era a convidada de honra naquela reunião, enquanto estavam na mesa, prevaleceu um fluxo de conversação tão animada, na qual ela não foi chamada a tomar parte (havia tanto a ser dito entre os dois irmãos sobre Bath, tanto entre os dois rapazes sobre caçadas e tanto de política entre Mr. Crawford e o Dr. Grant e de tudo e de todos ao mesmo tempo, entre Mr. Crawford e Mrs. Grant) que lhe permitiu a liberdade de ter apenas que ouvir em silêncio e passar assim uma tarde muito agradável. Ela não poderia, porém, cumprimentar o recém chegado com qualquer demonstração de interesse pela idéia de prolongar a sua estada em Mansfield, mandando buscar seus caçadores em Norfolk. E essa idéia, sugerida pelo Dr. Grant, aconselhada por Edmund e ardentemente apoiada pelas duas irmãs, logo se apossou da cabeça de Crawford que parecia esperar apenas pela aprovação de Fanny para se resolver. Sua opinião foi solicitada apenas quanto à probabilidade de o tempo continuar firme, mas a sua resposta foi tão curta e indiferente quanto a delicadeza permitia. Ela não poderia desejar que ele ficasse e preferia que não lhe falasse.
Ao vê-lo, suas duas primas ausentes, especialmente Maria, lhe voltavam muito vivas à memória; mas ele não parecia embaraçado. Ali estava, no mesmo local onde tudo se havia passado, e aparentemente desejando permanecer e divertir-se com as Misses Bertram, como se nunca tivesse conhecido Mansfield em outro aspecto. Ouviu-o apenas referir-se a elas de modo geral, até ao se reunirem todos no salão; lá, Edmund conversando à parte com o Dr. Grant, sobre qualquer negócio que parecia absorvê-los, Mrs. Grant ocupada na mesa do chá, ele começou a falar delas com mais particularidades a Mary. Com um sorriso significativo que fez Fanny odiá-lo, o rapaz disse:
– Quer dizer que Rushworth e sua linda noiva estão em Brighton? Homem feliz!
– É, estão lá já há uma quinzena, não é Miss Price? E Julia está com eles.
– E Mr. Yates, como presumo, não deve andar longe.
– Mr. Yates! Oh! Não sabemos nada de Mr. Yates. Não creio que ele apareça muito nas cartas que escrevem para Mansfield Park; não é Miss Price? Acho que minha amiga Julia é esperta demais para falar ao pai sobre Mr. Yates.
– Pobre Mr. Rushworth e seus quarenta e dois diálogos! – continuou Crawford. – Ninguém os poderia esquecer. Pobre diabo! Parece que o vejo agora – o cansaço e o desespero dele. Bem, pode ser que esteja muito enganado, mas não creio que a sua linda Maria queira jamais que ele lhe diga quarenta e dois diálogos. – Depois acrescentou com seriedade passageira. – Ela é boa demais para ele – boa demais. – E então, mudando novamente de tom, dirigiu-se a Fanny com uma tranqüila galanteria: – A senhorita era a melhor amiga de Mr. Rushworth. Sua bondade e paciência nunca poderão ser esquecidas, – sua infatigável paciência em procurar fazer com que ele decorasse o papel – em procurar lhe dar o cérebro que a natureza lhe negou. Ele talvez não tenha senso o bastante para avaliar a sua bondade, mas eu posso me arriscar a dizer que todos os outros a apreciaram muito.
Fanny corou e ficou calada.
– Parece um sonho, um sonho agradável! – exclamou ele, e acrescentou depois de alguns minutos de meditação: – Hei de me lembrar sempre de nossas representações com um esquisito prazer. Havia tanto interesse, uma tal animação, uma tão grande difusão de espírito. Todos o sentiam. Estávamos todos cheios de vida. Havia ocupação, esperança, solicitude, barulho o dia todo. Sempre alguma pequena objeção, alguma pequena dúvida, uma pequena ansiedade para transpor. Nunca fui tão feliz.
Com muita indignação Fanny repetia para si mesma: “Nunca foi mais feliz – nunca foi tão feliz como quando fez o que sabia não ser justo! – nunca foi tão feliz como quando se portou de modo tão desonesto e insensível! Oh! Que alma corrompida!”
– Não tivemos sorte, Miss Price – continuou ele baixando a voz, a fim de não ser ouvido por Edmund, e sem perceber absolutamente os sentimentos dela; – não resta dúvida de que fomos muito sem sorte. Uma semana mais, apenas mais uma semana, teria sido suficiente. Creio que se tivéssemos podido dispor dos acontecimentos – se Mansfield Park tivesse tido o poder de governar os ventos apenas por uma semana ou duas, teria sido diferente. Não que desejássemos arriscar a vida dele com um tremendo temporal – mas apenas com um permanente vento contrário ou uma calmaria. Acho, Miss Price, que poderíamos nos contentar com uma semana de calmaria no Atlântico.
Ele parecia determinado a obter uma resposta; e Fanny, virando o rosto, disse com mais firmeza do que habitualmente:
– Quanto a mim, senhor, não teria retardado a volta do meu tio por um dia sequer. Meu tio, quando chegou, desaprovou tanto tudo aquilo, de modo que, na minha opinião, nós já havíamos ido longe demais.
Nunca havia falado tanto de uma só vez com ele e nunca tão zangada com ninguém; e quando terminou, tremia e corava da sua própria ousadia. Ele surpreendeu-se; mas depois de a observar em silêncio por um momento, respondeu mais calmo, num tom mais sério, como se estivesse convencido:
– Creio que tem razão. Foi mais agradável do que prudente. Estávamos nos tornando muito espalhafatosos. – E então mudando de conversa, quis interessá-la em outros assuntos; porém ela respondia com tanto acanhamento e relutância, que ele não conseguiu levar avante qualquer conversação.
Miss Crawford, que não tirava os olhos do Dr. Grant e Edmund, observou naquele momento:
– Aqueles dois devem estar discutindo algum assunto de grande interesse.
– O mais interessante do mundo – respondeu o irmão: – a maneira de fazer dinheiro; como tornar maior uma boa renda. O Dr. Grant está instruindo Mr. Bertram sobre a paróquia que ele irá receber brevemente. Soube que ele vai ordenar-se dentro de algumas semanas. Na mesa de jantar já estavam falando sobre isto. Estou contente por saber que Bertram vai ficar tão bem de vida. Terá uma bela renda para criar patos e marrecos, sem fazer muito esforço. Presumo que não serão menos de setecentas libras por ano. Setecentas libras por ano é uma bela renda para um irmão mais moço; e como ele continuará a viver na casa dos pais, tal renda se destinará por completo para seus menus plaisirs; e um sermão no Natal e um na Páscoa, creio eu, será toda a soma de seus sacrifícios.
A irmã tentou disfarçar seus sentimento dizendo risonha:
– Não há nada que me divirta mais do que ver a felicidade com que todos se referem à abundância daqueles que têm muito menos do que nós. Você, Henry, ficaria bem atrapalhado se os seus menus plaisirs tivessem de se limitar a setecentas libras por ano.
– Talvez ficasse; mas tudo isto que você conhece é inteiramente relativo. Direitos de primogenitura e hábitos têm de ser levados em conta. Bertram, para um filho segundo, mesmo da família de um baronete, está muito bem. Quando ele tiver vinte e quatro ou vinte e cinco anos terá setecentas libras, e nada que fazer para as conseguir.
Miss Crawford poderia dizer que havia alguma coisa que fazer e sofrer, a que ela não deveria ser indiferente; mas controlou-se e deixou passar; procurou mostrar-se calma e desinteressada quando, logo depois, os dois cavalheiros se reuniram a eles.
– Bertram – disse Henry Crawford – faço questão de vir a Mansfield para ouvir o seu primeiro sermão. Venho de propósito para dar coragem a um jovem principiante. Quando vai ser? Miss Price, não se associará a mim para darmos coragem a seu primo? Quer se comprometer a ajudá-lo com os olhos fixos sobre ele o tempo todo – como eu o farei – a fim de que não perca uma única palavra; ou desviando apenas o olhar para anotar alguma frase muito bonita? Nós nos muniremos naturalmente de papel e lápis. Quando é que vai ser? Você deve pregar em Mansfield, para que Sir Thomas e Lady Bertram o possam ouvir.
– Hei de fugir de você, Crawford, tanto quanto puder – disse Edmund; – pois seria muito capaz de me desconcertar; e eu sentiria mais que você o fizesse do que qualquer outro homem.
“Será que ele não se comove com isto? – pensou Fanny. – Não, ele não sente coisa alguma como devia.”
Como todos os convivas se achavam reunidos e os mais faladores se atraíram mutuamente, Fanny ficou tranqüila; e como depois do chá organizaram uma mesa de whist, – formada realmente para o divertimento do Dr. Grant pela sua atenciosa esposa, embora não se quisesse dar a perceber – e Miss Crawford tomou a harpa, ela não tinha mais nada a fazer senão ouvir. A sua tranqüilidade não foi perturbada todo o resto do serão exceto quando Mr. Crawford uma vez ou outra lhe dirigia uma pergunta ou uma observação, que ela não podia deixar de responder. Miss Crawford estava por demais contrariada com o que se havia passado para se sentir inclinada por qualquer outra coisa que não fosse a música. Com isto ela se consolava a si mesma e divertia a amiga.
A certeza de que Edmund tomaria ordens tão brevemente, caíra sobre ela como um golpe que estava em suspenso; esperava intimamente que qualquer coisa o impedisse ou adiasse. Sentia-se agora cheia de amarguras e mortificação. Estava furiosa com ele. Pensara ter mais influência sobre o moço. Já estava começando a pensar nele; acreditava mesmo que o estivesse, com grande interesse, com quase decisiva intenção; porém agora lhe iria pagar com a mesma indiferença. Estava claro que Edmund não tinha sérias intenções, que não a queria de verdade, do contrário não aceitaria uma situação a que ela, como devia saber, nunca se submeteria. Haveria de aprender a igualá-lo em indiferença. Dali em diante admitiria as suas atenções sem qualquer outra idéia que não fosse a de divertir-se. Se ele podia controlar seus afetos dessa forma, os dela não haviam de lhe causar nenhum dano.
No dia seguinte Henry Crawford estava inteiramente resolvido a passar outros quinze dias em Mansfield e, depois de mandar buscar seus caçadores e escrever algumas linhas de explicação ao almirante, olhou em roda enquanto selava a carta; vendo que o resto da família estava ausente, virou-se para a irmã com um sorriso e disse:
– E como pensa que eu vou me divertir, Mary, nos dias em que não for caçar? Estou ficando velho demais para sair mais que três vezes por semana; tenho porém um plano para os dias de intervalo. Que pensa você que seja?
– Caminhar e passear a cavalo comigo, talvez?
– Não exatamente, embora tenha muito prazer em ambas as coisas, mas isto seria exercício apenas para o corpo e eu preciso cuidar da minha alma. Ademais isto seria um divertimento fácil, sem a salutar mistura de dificuldade e eu não gosto de comer o pão de ociosidade. Não, o meu plano é fazer com que Fanny Price se apaixone por mim.
– Fanny Price! Loucura! Não, não. Você deve ficar satisfeito com as duas primas dela.
– Mas eu não me satisfaço senão com Fanny Price; preciso deixar uma marca no coração de Fanny Price. Parece que você não percebeu bem que ela é digna de admiração. Quando estivemos falando de Fanny ontem à noite, nenhum de vocês pareciam ter conhecimento da espantosa mudança que se operou nela nestas últimas seis semanas. É que a vêem todos os dias e por isso não o notaram; eu, porém, posso afirmar que está uma criatura inteiramente diferente da que foi no outono passado. Naquela época, era apenas uma menina calada, modesta e não muito feia. Agora está incrivelmente bonita. Eu costumava pensar que ela não tivesse nem cara, nem temperamento; mas naquela pele macia, que cora tão facilmente, há decisiva beleza; e, pelo que lhe observei nos olhos e na boca, não desanimo de que serão capazes de bastante expressão quando tiverem alguma coisa a exprimir. E então o seu ar, seus modos, seu tout ensemble estão tão mudados! Deve ter crescido pelo menos cinco centímetros desde outubro.
– Ora, ora! Isto é só porque não havia outra pessoa mais alta para comparar com ela, porque ela estava com um vestido novo e você nunca a tinha visto antes tão bem vestida. Ela está a mesma coisa que estava em outubro, pode crer. A verdade é que era a única moça presente a quem se podia namorar, e você não pode passar sem namorar alguém. Eu sempre a achei bonita – não de uma beleza estonteante – mas “bastante bonita” como se diz; uma espécie de beleza que é individual. Os olhos poderiam ser um pouco mais escuros, porém ela tem o sorriso muito meigo; quanto a esta espantosa mudança, estou certa de que foi por conta de um vestido mais elegante e de você não ter mais ninguém para olhar; de modo que, se você começar a namorá-la, nunca me há de convencer que foi em homenagem à beleza dela, ou que tal namoro provenha de outro qualquer sentimento senão de sua própria ociosidade e loucura.
O irmão sorriu apenas dessa acusação e em seguida disse:
– Eu mesmo ainda não sei bem o que vou fazer de Miss Fanny. Não a compreendo. Não poderia dizer o que ela pretendia ontem à noite. Que temperamento tem ela? Será solene? Será esquisita? Será afetada? Por que teria se retraído e olhado para mim com um ar tão sério? Mal pude arrancar-lhe algumas palavras. Nunca estive tanto tempo em companhia de uma moça, procurando entretê-la, que fosse tão mal sucedido! Nunca encontrei uma pequena que me olhasse com tanta severidade! Preciso tirar o melhor partido disto. O olhar dela me diz: “Não hei de gostar de você e estou decidida a não gostar”; e eu digo que ela gostará.
– Sujeito louco! Então este é o atrativo que ela tem afinal? Isto é, o fato de ela não se interessar por você, é que faz com que ela tenha uma pele tão macia, o que a faz tão mais alta e que produz todos estes encantos e graças? Só desejo realmente que você não a faça infeliz; um pouquinho de amor, talvez, lhe faça bem e sirva para a animar, mas não admito que a fira profundamente; ela é a melhor criatura deste mundo e é muito sensível.
– Não há de durar mais do que quinze dias – afirmou Henry; – e se uma quinzena for suficiente para matá-la é porque ela tem uma constituição que nada poderá salvar. Não, não lhe causarei nenhum mal, minha maninha! Quero só que ela me olhe com mais simpatia, que me sorria e core, que guarde uma cadeira ao lado dela para mim e que se alegre se eu me sentar nessa cadeira e lhe falar; que pense como eu penso, que se interesse por todos os meus bens e prazeres, que procure me conservar mais tempo em Mansfield e que, quando eu for embora, sinta que nunca mais poderá ser feliz. É só isso que eu quero.
– É muito modesto! – disse Mary. – Agora não preciso ter mais escrúpulos. Bem, não faltará oportunidade para você se fazer recomendado, pois estamos muitas vezes juntas.
E sem tentar qualquer outra exprobração, deixou Fanny entregue ao seu destino, um destino que, não estivesse o coração de Fanny resguardado de certa maneira não suspeitada por Miss Crawford, poderia ter sido muito mais cruel do que ela merecia. Sei que há, sem dúvida, algumas jovens de dezoito anos que são inconquistáveis (ou senão nunca se tinha lido sobre elas), que nunca se deixam persuadir a amar contra suas vontades, mesmo que sejam empregados todos os artifícios do talento, da polidez, da atenção e da galanteria; porém estou inclinada a não acreditar que Fanny seria uma destas, ou a pensar que, com tanta ternura de temperamento e tanto gosto, ela não teria escapado ilesa da corte (embora apenas por quinze dias) de um homem como Crawford, apesar da má opinião precedente que teria de transpor, se sua afeição já não estivesse empenhada noutra parte. Com toda a segurança que o amor por outro e o desprezo por ele davam à tranqüilidade da consciência que ele estava atacando, as contínuas atenções – contínuas mas não importunas, adaptando-se mais e mais à suavidade de seu caráter – obrigaram-na muito rapidamente a desgostar menos dele do que de início. Ela não havia de forma alguma esquecido o passado e continuava como sempre a fazer dele o pior conceito; mas não podia negar a sua sedução; era divertido, os seus modos estavam tão mudados, tão delicado, tão séria e irrepreensivelmente delicado, que era impossível não lhe retribuir também com delicadeza.
Poucos dias foram suficientes para operar esta mudança; e no fim destes poucos dias, as perspectivas dele de a agradar tiveram um auxílio proveniente de certa circunstância a qual trouxe para Fanny tal felicidade que a tornou disposta a agradar todo o mundo. Seu irmão William, o irmão ternamente amado e há muito tempo ausente, estava na Inglaterra de novo. Ela própria recebera dele uma carta, algumas linhas apressadas e felizes, escritas quando o navio estava no Canal e enviadas a Portsmouth pelo primeiro barco que deixou o “Antuérpia”, ancorado em Spithead; e quando Crawford entrou com o jornal na mão, esperando ser o primeiro a trazer a feliz notícia, encontrou-a trêmula de alegria por aquela carta e ouvindo com os olhos brilhantes, grata pelo bondoso convite que o tio, muito calmo, estava ditando em resposta.
Fora apenas no dia precedente que Crawford tivera conhecimento de que ela tinha tal irmão e que ele estava em tal navio, mas o interesse então suscitado trouxe-lhe muita animação e ele decidiu que na sua volta à capital tomaria informação sobre a data provável em que o “Antuérpia” voltaria do Mediterrâneo, etc.; e a sorte que o fez examinar a lista de navios naquela manhã, pareceu ser a recompensa pelo seu talento em procurar tal método para agradá-la. Aconteceu, porém, que chegou atrasado. Todos aqueles primeiros sentimentos, que ele esperara incitar, já haviam sido proporcionados. Mas a sua intenção, a bondade de sua intenção, foi reconhecida com gratidão; muita gratidão e ardor, pois em virtude da efusão de seu amor por William, ela estava acima de sua usual timidez.
Este querido William brevemente estaria entre eles. Não restava dúvida de que conseguiria licença para se ausentar imediatamente, pois que ainda era apenas aspirante de marinha; e como os pais, que moravam naquela cidade, já deviam tê-lo visto e o viam, talvez, diariamente, as suas férias deveriam, com justiça, ser passadas junto à irmã que havia sido a sua melhor correspondente durante um período de sete anos, e do tio que havia feito tanto para seu sustento e progresso; assim, não tardou a chegar a resposta à carta dela, marcando uma data próxima para a sua chegada; e não haviam ainda passado dez dias desde que Fanny passara pela agitação do seu primeiro jantar fora de casa, quando se encontrou novamente tomada de outra agitação de natureza mais elevada, vigiando o hall, o corredor, as escadas, a fim de ouvir o primeiro ruído da carruagem que lhe traria um irmão.
Felizmente chegou enquanto estava assim esperando, e como não havia nem cerimônia nem receio para retardar o momento do encontro, ela foi ter com ele no mesmo instante em que entrava, e os primeiros minutos de esquisita emoção não tiveram interrupção nem testemunha, a menos que os criados, ocupados em abrir as portas, pudessem ser classificados como tal. Isto era exatamente o que Sir Thomas e Edmund lhe haviam, separadamente, tencionado proporcionar, como cada um provou ao outro pela presteza com que ambos aconselharam Mrs. Norris a permanecer onde se achava, em vez de correr para o hall logo que ouviram os ruídos da chegada.
William e Fanny não custaram a aparecer; e Sir Thomas teve o prazer de receber, no seu protegido, certamente uma pessoa muito diferente daquele que ele havia encaminhado há sete anos passados, um rapaz de rosto aberto, franco, simples e de maneiras sensíveis e respeitáveis.
Não foi senão depois de algum tempo que Fanny conseguiu acalmar-se da agitação causada pelos últimos trinta minutos de espera e o primeiro de prazer; custou mesmo um pouco para que ela se sentisse realmente feliz, antes de desaparecer o desapontamento que sempre acompanha a mudança da pessoa e ela pudesse ver no irmão o mesmo William de antigamente e falar com ele como seu coração desejava fazer há mais de um ano. Aquele dia, porém, chegara, percebido de afeição da parte dele e de ternura da sua parte e muito menos embaraçado pela polidez ou desconfiança.
No dia seguinte estiveram passeando juntos com verdadeira alegria; e em cada dia consecutivo se renovava o tête-à-tête que Sir Thomas não poderia olhar senão com complacência, mesmo antes de Edmund o comentar com carinho.
Excetuando-se os momentos de particular prazer causado por qualquer intencional ou imprevista consideração de Edmund por ela, Fanny nunca havia sido tão feliz em sua vida, como nesta época de livre, imparcial, confiante camaradagem com o irmão e amigo, que abria seu coração para ela, falando-lhe de todas as suas esperanças e receios, planos e inquietações sobre a promoção, há tanto tempo esperada e caramente merecida; que lhe poderia dar notícias diretas e minuciosas sobre o pai, a mãe e irmãos, dos quais raramente sabia; que se interessava por todos os seus confortos e pequenos trabalhos no seu lar em Mansfield, pronto a julgar cada membro daquele lar de acordo com a opinião dela ou diferindo apenas por uma menos escrupulosa opinião e mais ruidosa injúria à tia Norris; um irmão com quem podia recordar todas as tristezas e alegrias de seus primeiros anos e relembrar com a mais terna saudade, todos os antigos sofrimentos e prazeres mútuos. Filhos da mesma família, do mesmo sangue, com os mesmos hábitos e recordações de infância, têm em seu poder certa maneira de encontrar a alegria, que nenhuma ligação subseqüente pode conseguir; e somente por um longo e forçado afastamento, por uma separação que nenhuma subseqüente ligação consegue justificar, é que esses preciosos rostos das primeiras afeições podem ser inteiramente esquecidos. Muito freqüentemente, ah! é isto que acontece. O amor fraternal é algumas vezes considerado como tudo, outras é pior do que nada. Mas entre William e Fanny Price este sentimento ainda conservava toda a primavera e frescura, isento de qualquer oposição de interesses, não esfriado por qualquer outro afeto, e sofrendo a influência do tempo e da ausência apenas à medida que estes se prolongavam.
Uma tão bonita afeição não poderia deixar de engrandecer cada um na opinião de todos aqueles que possuíam coração para dar valor aos bons sentimentos. Henry Crawford foi um dos mais atingidos. Ele respeitava tanto a cordial e brusca ternura do jovem marinheiro, que chegou a dizer, com as mãos estendidas na direção da cabeça de Fanny:
– Sabe, já estou começando a gostar desta farda esquisita, apesar de não ter acreditado que fossem feitas na Inglaterra, quando as vi pela primeira vez. E quando Mrs. Brown e outras mulheres de comissários em Gibraltar apareceram com esses uniformes, pensei que estivessem loucas; Mas Fanny, porém, tem o poder de me reconciliar com qualquer coisa; – e Crawford viu, com viva admiração, o rubor das faces de Fanny, o brilho de seus olhos, o profundo interesse, a atenção com que ouvia o irmão descrever qualquer dos perigos iminentes ou cenas espantosas que um tal período no mar devem proporcionar.
Era um quadro que Henry Crawford não poderia deixar de apreciar. Os atrativos de Fanny aumentavam – aumentavam duplamente; pois a sensibilidade que embelezava a sua pele e iluminava o seu rosto já era em si um atrativo. Ele já não tinha dúvidas sobre as capacidades do coração dela. Ela tinha sentimento, genuíno sentimento. Seria alguma coisa ser amado por uma criatura, despertar os primeiros ardores daquela jovem e pura consciência! Estava mais interessado por ela do que havia previsto. Uma quinzena não seria suficiente. Sua permanência tornou-se indefinida.
William era freqüentemente convocado pelo tio para entabular a conversação. Sir Thomas divertia-se com as narrativas dele, mas o seu principal objetivo em as solicitar, era compreender o narrador, conhecer o jovem pelas suas histórias; e ouvia os claros, simples e espirituosos detalhes com grande satisfação, vendo neles uma prova de bons princípios, de conhecimento profissional, energia, coragem e disposição, tudo o que merecia ou prometia ser bom. Jovem como era, William já havia visto muitas coisas. Tinha estado no Mediterrâneo; nas Antilhas; novamente no Mediterrâneo; estivera muitas vezes em terra por favor de seu capitão e, no período de sete anos havia conhecido todas as espécies de perigos que o mar e a guerra poderiam oferecer. Com tais meios ao seu alcance, era justo que fosse ouvido; e embora Mrs. Norris se agitasse pela sala e os perturbasse com seus apartes sobre qualquer coisa trivial, no meio da narração de um naufrágio ou de um combate, todos os outros estavam atentos; e até Lady Bertram não podia ouvir tais horrores impassível e sem de vez em quando levantar os olhos de seu trabalho para dizer:
– Meu Deus! Que coisa desagradável! Admiro-me se pode querer ser marinheiro!
Para Henry Crawford esses relatos produziam emoções diferentes. Desejava ter sido marinheiro, ver, fazer e passar por todos aqueles sofrimentos. Seu coração estava ardente, a imaginação incendiada e ele sentia o maior respeito por aquele rapaz que, antes dos vinte anos, já havia passado por tais trabalhos e dado tais provas de caráter. A glória do heroísmo, da utilidade, do esforço, do sofrimento, fez que seus próprios hábitos de egoísta fraqueza aparecessem em vergonhoso contraste. E ele desejou ser um William Price, distinguindo-se e trabalhando pela sua fortuna e distinção com aquele amor próprio e ardente felicidade, em vez de ser o que era!
O desejo foi mais intenso do que durável. Despertou de seu sonho de retrospecção e arrependimento por uma pergunta de Edmund sobre seus planos para a caçada do dia seguinte; e reconheceu que era muito bom ser um homem já rico, com cavalos e palafreneiros a sua disposição. Num certo respeito foi melhor, pois lhe garantiu os meios de proporcionar uma gentileza a quem ele desejava obsequiar. Com vivacidade, coragem e curiosidade por todas as coisas, William exprimiu o desejo de caçar e Crawford poderia dar-lhe montaria sem o menor inconveniente para si próprio, tendo apenas que desfazer alguns escrúpulos de Sir Thomas, que sabia melhor do que o sobrinho avaliar o valor de um tal empréstimo e eliminar algumas inquietações de Fanny. Ela receava por William; embora com todos os relatos dele sobre as suas proezas de equitação em vários países, as partidas em que havia tomado parte, os rústicos cavalos e mulas que havia montado e as vezes em que por pouco escapara de quedas tremendas, ela não ficara convencida de que ele pudesse governar um robusto cavalo de caça na Inglaterra. E só depois que o viu voltar salvo e disposto, sem acidente ou vergonha, é que se acalmou e sentiu por Mr. Crawford, por ter emprestado o cavalo, a gratidão que ele contava merecer. Quando, pois, ficou provado que William não sofrera nenhum dano, ela admitiu que havia sido uma bondade e até recompensou o dono com um sorriso, quando o animal foi novamente oferecido para que ele o usasse por alguns minutos; e outra vez, com a maior cordialidade, de maneira a que ele não pudesse resistir, o cavalo foi posto inteiramente à sua disposição por todo o tempo em que o moço permanecesse em Northamptonshire.
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