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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MARES DE SANGUE / Scott Lynch
MARES DE SANGUE / Scott Lynch

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT 

 

 

Series & Trilogias Literarias

 

 

 

 

 

Locke Lamora estava parado no píer de Tal Verrar, com o vento quente de um navio em chamas às costas e a picada fria de uma flecha de balestra no pescoço.
Deu um sorriso torto e se concentrou em manter sua balestra ao nível do olho esquerdo do oponente. Os dois se achavam próximos o bastante para se sujarem com o sangue um do outro caso disparassem ao mesmo tempo.
– Seja razoável – disse o homem que o encarava. O suor deixava riscas visíveis ao escorrer pela testa e pelas bochechas cobertas de sujeira. – Considere as desvantagens da sua situação.
Locke fungou.
– A não ser que seus globos oculares sejam feitos de ferro, a desvantagem é mútua. Não acha, Jean?
Estavam parados dois a dois: Locke e Jean frente a frente com seus rivais. Eram quatro flechas de metal frio nas armas retesadas, a poucos centímetros da cabeça de quatro homens compreensivelmente nervosos. A essa distância ninguém poderia errar, nem se todos os deuses acima ou abaixo do céu quisessem o contrário.
– Parece que nós quatro estamos enfiados em areia movediça até os bagos – comentou Jean.
Na água atrás deles, o velho galeão gemia e estalava à medida que as chamas violentas o consumiam de fora para dentro. A noite virava dia num raio de centenas de metros ao redor e o casco era entrecruzado por riscas de um laranja esbranquiçado nos pontos em que as tábuas se separavam. A fumaça saía daquelas rachaduras infernais em pequenas erupções negras, os últimos suspiros trêmulos de uma enorme fera de madeira em agonia. Os quatro homens estavam no píer, estranhamente sozinhos no meio da luz e do barulho que atraíam a atenção de toda a cidade.
– Baixe a arma, pelo amor dos deuses – pediu o oponente de Locke. – Fomos instruídos a não matá-los se não fosse necessário.
– E tenho certeza de que você diria a verdade se a ordem fosse justamente o contrário, é claro – replicou Locke. Seu sorriso se alargou. – Faço questão de jamais confiar em homens com armas encostadas no meu pescoço. Desculpe.
– Sua mão vai começar a tremer muito antes da minha.
– Vou apoiar a ponta do meu quadrelo no seu nariz quando me cansar. Quem mandou vocês atrás de nós? Quanto estão pagando? Não estamos desprovidos de fundos; poderíamos chegar a um feliz acordo.
– Na verdade – interveio Jean –, eu sei quem os mandou.
– Sério?
Locke lançou um olhar para Jean antes de encarar o adversário outra vez.
– E foi feito um acordo, mas eu não diria que é feliz.
– Ah... Jean, acho que não estou acompanhando você.
– Não.
Jean levantou uma das mãos para o homem à sua frente, com a palma para fora. Depois virou a mira devagar, com cuidado, para a esquerda, até apontar a balestra contra a cabeça de Locke. O homem que ele estivera ameaçando anteriormente piscou, surpreso.
– Sou eu que não estou acompanhando você, Locke.
– Jean. – O sorriso de Locke desapareceu. – Isso não é engraçado.
– Concordo. Me entregue sua arma.
– Jean...
– Entregue agora. Depressa. E você aí, por acaso é imbecil? Tire essa coisa da minha cara e aponte para ele.
O antigo oponente de Jean umedeceu os lábios, nervoso, mas não se mexeu. Jean trincou os dentes.
– Olhe, seu macaco de cais com cérebro de esponja, estou fazendo o serviço para vocês. Aponte a balestra para a droga do meu ex-parceiro para podermos sair deste píer!
– Jean, eu descreveria esta reviravolta como muito pouco favorável – disse Locke, e parecia a ponto de falar mais, só que o oponente de Jean escolheu esse momento para aceitar o conselho.
Agora Locke sentia o suor descendo numa cascata pelo rosto, como se sua própria umidade traiçoeira estivesse abandonando o recinto antes que algo pior acontecesse.
– Pronto. Três contra um. – Jean cuspiu no cais. – Você não me deu escolha, tive que fazer um acordo com o patrão desses cavalheiros antes de partirmos. Maldição, você me obrigou. Desculpe, achei que eles fariam contato antes de partirem para cima de nós. Agora entregue sua arma.
– Jean, que diabo você acha que está...
– Não. Não diga mais porra nenhuma. Não tente vir com artimanhas para cima de mim; conheço você bem demais para deixá-lo falar. Silêncio, Locke. Tire o dedo do gatilho e entregue a arma.
Locke olhou a ponta de aço do quadrelo de Jean com a boca aberta, incrédulo. O mundo ao redor se dissipou até restar apenas aquela ponta minúscula, reluzente, viva com o reflexo laranja do inferno que chamejava no ancoradouro atrás dele.
– Não acredito – disse Locke. – Eu só...
– É a última vez que vou mandar, Locke. – Jean manteve a mira firme, bem entre os olhos dele. – Tire o dedo do gatilho e me dê a droga da arma. Agora.

 

 


 

 

 


LIVRO I
CARTAS NA MÃO

CAPÍTULO UM
Joguinhos
1
O jogo era Carrossel da Sorte, as apostas representavam mais ou menos metade de toda a riqueza que eles possuíam e a verdade era que Locke Lamora e Jean Tannen estavam
levando uma sova como dois tapetes empoeirados.
– Última oferta para a quinta mão – anunciou o crupiê com casaca de veludo em seu pódio ao lado da mesa circular. – Os cavalheiros desejam receber novas cartas?
– Não, não, os cavalheiros desejam confabular – respondeu Locke, inclinando-se à esquerda para aproximar a boca do ouvido de Jean, e acrescentou em um sussurro:
– Como estão suas cartas?
– Um deserto terrível – murmurou Jean, movendo casualmente a mão direita para cobrir a boca. – E as suas?
– Um ermo de frustração amarga.
– Merda.
– Será que estivemos negligenciando as orações esta semana? Será que algum de nós peidou num templo ou algo assim?
– Achei que a expectativa de perder fazia parte do plano.
– E faz. Eu só esperava que pudéssemos lutar com mais honra.
O crupiê tossiu recatadamente na mão esquerda – numa mesa de jogo, isso era o equivalente a dar um tapa na nuca dos Nobres Vigaristas. Locke se afastou de Jean,
bateu com as cartas de leve na superfície laqueada da mesa e sorriu, como se dissesse “sei o que estou fazendo”. Suspirou por dentro, olhando a pilha considerável
de fichas de madeira que fariam a curta viagem do centro da mesa para os montes dos oponentes.
– Claro, estamos preparados para encontrar nosso destino com um estoicismo heroico, digno de ser mencionado por historiadores e poetas.
O crupiê assentiu.
– As damas e os cavalheiros recusam a última oferta. A casa pede que baixem as cartas pela última vez.
Houve um farfalhar de cartas sendo embaralhadas e descartadas enquanto os quatro jogadores formavam as últimas sequências e as baixavam, viradas para baixo.
– Muito bem – disse o funcionário. – Virem e revelem.
Os sessenta ou setenta ociosos mais ricos de Tal Verrar, apinhados na sala atrás deles para assistir ao desdobramento de cada estágio da humilhação de Locke e Jean,
agora se inclinavam como se fossem um só, ansiosos para ver como eles ficariam desconcertados dessa vez.
2
Tal Verrar, a Rosa dos Deuses, fica na fronteira oeste do que o povo terim chama de mundo civilizado.
Se você pudesse ficar parado a mil metros acima das torres verraris mais altas ou sobrevoá-las como as gaivotas que infestam as frestas e telhados da cidade, veria
por que suas ilhas vastas e escuras deram o antigo apelido a esse lugar. Elas formam um redemoinho a partir do coração de Tal Verrar: uma série de crescentes em
tamanho cada vez maior, como as pétalas estilizadas de uma rosa no mosaico de um artista.
Não são naturais como o continente que se ergue alguns quilômetros a nordeste e se racha diante do vento e do clima, revelando a própria idade. As ilhas verraris
não estão desgastadas e talvez sejam impossíveis de se desgastar, pois são formadas por quantidades inimagináveis do vidro preto dos Ancestres, em inúmeros níveis
cobertos por camadas de pedra e terra, cruzados por diversas passagens, de onde brota uma cidade de homens e mulheres.
Essa Rosa dos Deuses é cercada por um recife artificial, um círculo partido com 5 quilômetros de diâmetro. Contra essa muralha escondida, o inquieto Mar de Bronze
acaba se acalmando para permitir a travessia de embarcações com bandeiras de uma centena de reinos e domínios. Seus mastros e vergas erguem-se numa floresta, brancos
com as velas enfunadas.
Se você pudesse virar os olhos para a ilha mais a oeste da cidade, veria, em seu interior, paredões pretos e íngremes mergulhando por muitas dezenas de metros até
as ondas suaves do porto, onde uma teia de docas de madeira se agarra à base do penhasco. O lado voltado para o mar é formado por seis lajes grandes e chatas, como
enormes degraus, com escarpas lisas de 15 metros.
O bairro mais ao sul dessa ilha chama-se Degraus de Ouro e seus seis níveis são repletos de cervejarias, antros de jogatina, clubes particulares, bordéis e ringues
de luta. Ele é alardeado como a capital do jogo das cidades-estado terins, um lugar onde as pessoas perdem dinheiro com qualquer coisa, desde os vícios mais corriqueiros
até os crimes mais perversos. As autoridades de Tal Verrar, num magnânimo gesto de hospitalidade, decretaram que nenhum estrangeiro pode ser escravizado nos Degraus
de Ouro. Como resultado, há poucos lugares a oeste de Camorr onde seja mais seguro para os estrangeiros tomar um porre e cair no sono nas sarjetas e praças.
Há uma estratificação rígida nos Degraus de Ouro: a cada nível mais alto aumenta a qualidade dos estabelecimentos, assim como o tamanho, o número e a veemência dos
guardas junto às portas. Coroando o bairro, há uma dúzia de mansões barrocas feitas de pedra antiga e madeira-bruxa engastadas no verde úmido e luxuriante de jardins
bem cuidados e florestas em miniatura.
Essas são as “casas de tavolagem de qualidade”, clubes seletos onde endinheirados podem jogar no estilo permitido por suas cartas de crédito. Durante séculos, elas
têm sido centros informais de poder, em que nobres, burocratas, mercadores, capitães de navios, emissários e espiões se reúnem para apostar fortunas, tanto pessoais
quanto políticas.
Todas as comodidades possíveis existem nessas casas. Visitantes notáveis embarcam em caixas-carruagens nas docas particulares na base do penhasco interior e são
içados por reluzentes motores de latão acionados a água, evitando, assim, as rampas estreitas, sinuosas e apinhadas que sobem pelos cinco Degraus mais baixos, no
lado voltado para o mar aberto. Existe inclusive uma área pública de duelos, um amplo espaço de grama aparada exatamente no centro do nível superior, de modo que
as cabeças mais frias não prevaleçam quando alguém fez seu sangue esquentar.
As casas de qualidade são sacrossantas. Um costume mais antigo e mais firme do que a lei proíbe que soldados ou guardas ponham os pés dentro delas, a não ser para
reagir aos crimes mais hediondos. Elas são a inveja de todo um continente: nenhum clube estrangeiro, por mais luxuoso e seleto que seja, pode sequer imitar a atmosfera
característica de uma genuína casa de tavolagem verrari. E todas, absolutamente todas, são superadas de longe pela Agulha do Pecado.
Com quase 45 metros de altura, a Agulha do Pecado se projeta em direção ao céu na extremidade sul do último Degrau, que já fica a mais de 75 metros acima do porto.
É uma torre de Vidrantigo, reluzindo com um brilho preto e perolado, e uma ampla sacada cheia de lampiões alquímicos envolve cada um dos oito andares. À noite, o
edifício é uma constelação de luzes em escarlate e azul-crepúsculo, as cores heráldicas de Tal Verrar.
A casa de tavolagem mais exclusiva, mais famosa e mais bem-guardada do mundo está aberta do nascer ao pôr do sol para quem for suficientemente poderoso, rico ou
belo para passar pelos caprichos dos porteiros. Cada andar supera o inferior em luxo, exclusividade e risco. O acesso a cada nível superior precisa ser obtido através
de bom crédito, comportamento divertido e jogo impecável. Alguns aspirantes passam anos e gastam milhares de solaris tentando atrair a atenção do Senhor da Agulha
do Pecado, cujo apego implacável ao seu posto especial tornou-o o mais poderoso árbitro dos favores sociais na história da cidade.
O código de conduta na Agulha do Pecado nunca foi escrito, mas é tão rígido quanto o de um culto religioso: quem é pego trapaceando é condenado à morte. Se o próprio
Arconte de Tal Verrar fosse detectado com uma carta na manga, não receberia ajuda nem mesmo dos deuses para se livrar das consequências. De tempos em tempos, os
funcionários da torre encontram alguém querendo escapar da regra e ocorre mais uma morte discreta de overdose alquímica numa carruagem ou um “escorregão” trágico
de uma sacada, oito andares acima das pedras duras e chatas do pátio da Agulha do Pecado.
Locke Lamora e Jean Tannen precisaram de dois anos e uma série de identidades falsas para subir trapaceando até o quarto andar.
Na verdade, estão trapaceando agora mesmo, esforçando-se ao máximo para rivalizar com seus oponentes, que não precisam disso.
3
– As damas têm uma sequência de cúspides e uma de sabres, coroadas pela chancela do sol – anunciou o crupiê. – Os cavalheiros têm uma sequência de cálices e uma
mão mista, coroadas pelo cinco de cálices. A quinta rodada é das damas.
Locke mordeu o lado interno da bochecha enquanto uma onda de aplausos atravessava o ar quente do salão. As damas já haviam ganhado quatro das cinco rodadas e a multidão
mal se dignara a notar a única vitória de Locke e Jean.
– Ora, que coisa – disse Jean, numa fingida surpresa digna de crédito.
Locke se virou para a oponente à sua direita. Maracosa Durenna era uma mulher magra e de pele escura, com quase 40 anos, cabelos densos cor de fumaça de óleo e várias
cicatrizes bem visíveis no pescoço e nos antebraços. Na mão direita segurava um charuto fino e preto enrolado com fio de ouro e levava no rosto um sorriso de contentamento
distanciado. Obviamente o jogo não estava exigindo seu esforço máximo.
Usando uma espécie de pequeno rodo de madeira de cabo comprido, o crupiê empurrou a pilha de fichas de madeira perdidas por Locke e Jean na direção das mulheres
e puxou todas as cartas de volta às suas mãos. Era rigidamente proibido que os jogadores tocassem nelas depois que o crupiê pedia que fossem reveladas.
– Bem, madame Durenna – falou Locke –, parabéns pela condição cada vez mais robusta de suas finanças. Sua bolsa parece ser a única coisa que cresce mais rápido do
que minha iminente ressaca.
Locke fez uma das suas fichas caminhar sobre os nós dos dedos da mão direita. O pequeno disco de madeira valia 5 solaris, mais ou menos oito meses de salário de
um trabalhador comum.
– Meus pêsames pela mão particularmente infeliz, mestre Kosta.
Madame Durenna deu um trago longo no charuto, depois uma baforada que pairou entre Locke e Jean, a uma distância apenas suficiente para evitar o insulto direto.
Locke tinha percebido que ela usava a fumaça como seu strat péti, seu “joguinho” – um maneirismo aparentemente civilizado, na verdade desenvolvido para distrair
ou irritar os oponentes à mesa e instigá-los a cometer erros. Jean havia planejado usar os próprios charutos com o mesmo objetivo, mas a mira de Durenna era melhor.
– Nenhuma mão pode ser considerada infeliz na presença de uma dupla de oponentes tão belas – replicou Locke.
– Eu quase posso admirar um homem capaz de permanecer tão charmosamente desonesto enquanto toda a sua prata é arrancada – comentou a parceira de Durenna, sentada
entre ela e o crupiê.
Izmila Corvaleur era quase do tamanho de Jean, ampla e espalhafatosa, prodigiosamente redonda em todos os lugares em que uma mulher poderia ser redonda. Sem dúvida
era atraente, mas a inteligência que brilhava em seus olhos era afiada e cheia de desprezo. Locke reconhecia nela uma belicosidade equivalente à de um arruaceiro
de esquina – um apetite afiado pelas disputas difíceis. Corvaleur mordiscava constantemente cerejas cobertas de chocolate em pó que tirava de uma caixa, chupando
os dedos com ruído após saborear cada uma. Era seu próprio strat péti.
Ela era perfeita para o Carrossel da Sorte, pensou Locke. Uma mente sagaz para as cartas e um corpo capaz de suportar o castigo especial do jogo no caso da perda
de uma rodada.
– Penalidade – avisou o crupiê, acionando o mecanismo que fazia o carrossel girar.
O instrumento ficava no centro da mesa e era um conjunto de estruturas circulares de latão que sustentavam fileiras e mais fileiras de minúsculos frascos de vidro
grosso, cada um com uma tampa de prata. Ele girou sob a luz suave dos lampiões no salão de jogos até se transformar em riscas contínuas de prata sobre latão e, em
seguida... houve estalos, um chacoalhar e o carrossel cuspiu dois frascos. Eles rolaram na direção de Locke e Jean e bateram com ruído na borda um pouco mais alta
da mesa.
O Carrossel da Sorte era um jogo caro para duas duplas, porque o mecanismo de relojoaria do carrossel era muito dispendioso. No fim de cada rodada, eram liberadas
aleatoriamente duas garrafinhas para a dupla que perdia, contendo bebida alcoólica misturada com óleos doces e suco de fruta para disfarçar o teor. As cartas eram
apenas um aspecto das partidas: os contendores também precisavam manter a concentração sob os efeitos cada vez mais fortes dos frasquinhos demoníacos. O jogo só
terminava quando um participante ficava bêbado demais para prosseguir.
Teoricamente, não poderia haver trapaça no jogo. A Agulha do Pecado fazia a manutenção no mecanismo e preparava os frascos, e as tampinhas de prata eram presas com
lacres de cera. Os jogadores não tinham permissão de tocar no carrossel ou nos frascos de outros jogadores sob pena de perder de imediato a rodada. Até os chocolates
e charutos consumidos pelos jogadores precisavam ser fornecidos pela casa. Locke e Jean poderiam ter chegado ao ponto de recusar a madame Corvaleur o luxo de seus
doces, mas seria má ideia, por vários motivos.
– Bom – disse Jean enquanto quebrava o lacre de sua bebida minúscula. – Aos perdedores charmosos, acho.
– Se ao menos soubéssemos onde encontrar alguns! – observou Locke, e juntos engoliram o conteúdo.
A bebida de Locke deixou na garganta um rastro quente com sabor de ameixa; era das fortes. Ele suspirou e pôs o frasco vazio à frente do corpo. Quatro frascos a
um e ele já começava a sentir os efeitos dos líquidos em sua concentração.
Enquanto o funcionário separava e embaralhava as cartas para a rodada seguinte, madame Durenna deu mais uma tragada longa e satisfeita no charuto e bateu as cinzas
num pote de ouro maciço sobre um pedestal atrás de sua mão direita. Deu duas baforadas preguiçosas pelo nariz e olhou para o carrossel por trás de um véu cinza.
Durenna era uma predadora com queda natural pelas emboscadas, pensou Locke, sempre mais confortável atrás de alguma camuflagem. Segundo as informações que ele havia
recebido, ela chegara apenas recentemente à vida de especuladora mercantil estabelecida na cidade. Antes, fora comandante de bucaneiros caçadores de recompensa,
perseguindo e afundando em alto-mar os navios de escravos de Jerem. Não tinha adquirido aquelas cicatrizes tomando chá em uma sala de visitas.
Seria uma infelicidade muito, muito grande, se uma mulher como ela percebesse que Locke e Jean contavam com o que Locke gostava de chamar de “métodos discretamente
não ortodoxos” para vencer. Diabos, seria preferível perder do modo antigo ou ser apanhado trapaceando pelos funcionários da Agulha do Pecado. Eles, pelo menos,
seriam carrascos rápidos e eficientes; tinham um estabelecimento muito movimentado para administrar.
– Espere um pouco – falou madame Corvaleur ao crupiê, interrompendo os pensamentos de Locke. – Mara, os cavalheiros tiveram de fato várias mãos de má sorte. Será
que não deveríamos lhes permitir um recesso?
Locke escondeu sua empolgação instantânea; a dupla que assumisse a dianteira no Carrossel da Sorte podia oferecer aos oponentes uma pequena pausa no jogo, mas essa
cortesia raramente era dada, pelo motivo óbvio de que concedia aos perdedores um tempo precioso para afastar os efeitos da bebida. Será que Corvaleur estava tentando
encobrir alguma inquietação?
– Os cavalheiros fizeram mesmo um esforço extenuante a nosso favor, contando todas essas fichas e empurrando-as repetidamente na nossa direção. – Durenna tragou
fumaça e expeliu-a. – Queiram nos dar a honra, senhores, de consentir uma pequena pausa para se recuperarem e se revigorarem.
Ah. Locke sorriu e cruzou as mãos sobre a mesa. Então esse era o jogo: representar para a plateia e mostrar como as damas tinham pouca consideração pelos oponentes,
como consideravam a vitória inevitável. Isso era esgrima de etiqueta e Durenna dera o equivalente a uma estocada em direção ao pescoço. A recusa direta seria um
movimento terrível; Locke e Jean precisariam aparar o golpe com delicadeza.
– Como algo poderia ser mais revigorante – perguntou Jean – do que continuar o jogo contra uma dupla tão magnífica?
– O senhor é muito gentil, mestre de Ferra – respondeu madame Durenna. – Mas gostaria que dissessem que não temos coração? Os senhores não impediram nenhum dos nossos
confortos. – Ela usou o charuto para indicar os doces de madame Corvaleur. – Iriam nos recusar o desejo de conceder um conforto em troca?
– Não recusaríamos nada às senhoras, madame, no entanto imploramos que nos permitam atender ao seu maior desejo, pelo qual se incomodaram em vir aqui esta noite:
o desejo de jogar.
– Ainda temos muitas mãos pela frente e Jerome e eu ficaríamos magoados caso criássemos qualquer inconveniência às damas – acrescentou Locke, encarando o crupiê.
– Até agora os senhores não nos causaram nenhuma inconveniência – replicou madame Corvaleur com doçura.
Locke tinha uma consciência desconfortável da atenção que os espectadores dedicavam a essa conversa. Ele e Jean haviam desafiado as duas mulheres, consideradas as
melhores jogadoras do Carrossel da Sorte em Tal Verrar, e uma plateia considerável apinhara todas as outras mesas no quarto andar da Agulha. Naquelas mesas deveriam
estar acontecendo outros jogos, mas, devido a algum entendimento não verbalizado entre a casa e os clientes, todas as outras ações na sala tinham cessado durante
a matança.
– Muito bem – concordou Durenna. – Não temos objeção a continuar. Talvez a sorte dos senhores até mude.
O alívio de Locke por ela ter abandonado a manobra verbal era pequeno. Afinal, ela mantinha todas as expectativas de arrancar dinheiro dele e de Jean, como um cozinheiro
arrancaria carunchos de um saco de farinha.
– Sexta rodada – anunciou o crupiê. – A aposta inicial será de 10 solaris.
Cada jogador empurrou duas fichas de madeira e o crupiê jogou três cartas diante deles.
Madame Corvaleur terminou de comer outra cereja coberta de chocolate e sugou o resíduo doce dos dedos. Antes de tocar suas cartas, Jean deslizou os dedos da mão
esquerda brevemente sob a lapela da casaca e moveu-as, como se estivesse se coçando. Depois de alguns segundos, Locke fez o mesmo. Locke pegou madame Durenna observando-os
e viu-a revirar os olhos. Os sinais entre os jogadores eram aceitáveis, mas em geral se usava de um pouco mais de sutileza.
Durenna, Locke e Jean olharam para as cartas quase ao mesmo tempo; Corvaleur demorou um instante a mais do que eles, com os dedos ainda úmidos. Ela riu baixinho.
Sorte genuína ou strat péti? Durenna parecia tremendamente satisfeita, porém Locke não tinha dúvida de que ela mantinha aquela mesma expressão até enquanto dormia.
O rosto de Jean não revelava nada e Locke, por sua vez, arriscou um sorriso débil, ainda que suas três primeiras cartas fossem puro lixo.
Do outro lado da sala, uma escada curva, com corrimão de latão e um funcionário enorme postado na base, levava ao quinto andar, expandindo-se brevemente numa espécie
de galeria na metade do caminho. Um movimento rápido nessa passagem atraiu a atenção de Locke: meio escondida na sombra, havia uma figura pequena e bem-vestida.
A luz quente e dourada dos lampiões se refletiu num par de ópticos e Locke sentiu um arrepio de empolgação.
Lamora tentou manter um dos olhos no vulto ao mesmo tempo que fingia se fixar nas cartas. O brilho daqueles ópticos não se mexeu nem se alterou; sem dúvida o homem
observava a mesa deles.
Ele e Jean haviam afinal atraído a atenção – ou trombado nela e, pelos deuses, aproveitariam esse pouquinho de sorte – do homem cuja sala ficava no oitavo andar:
o Senhor da Agulha do Pecado, o governante clandestino de todos os ladrões de Tal Verrar, um homem que mantinha com punho de ferro tanto o mundo do roubo quanto
o do luxo. Em Camorr seria chamado de Capa, mas ali não usava nenhum título além do nome.
Requin.
Locke pigarreou, voltou o olhar para a mesa e se preparou para perder outra rodada com elegância. Lá fora, na água escura, podia-se ouvir o eco suave dos sinos dos
navios, soando a décima hora da tarde.
4
– Décima oitava mão – anunciou o crupiê. – A aposta inicial será de 10 solaris.
Locke precisou empurrar de lado os onze frasquinhos à sua frente, com a mão visivelmente trêmula, para deslizar seus marcadores. Madame Durenna, firme como um navio
em doca seca, fumava o quarto charuto da noite. Madame Corvaleur parecia oscilar na cadeira – estaria com as bochechas mais vermelhas do que o usual? Locke tentou
não olhar com muita intensidade enquanto ela fazia a primeira aposta; talvez a oscilação se devesse apenas à iminente embriaguez dele próprio. Era quase meia-noite
e o ar temperado de fumaça na sala cheia irritava os olhos e a garganta de Locke.
O crupiê, sem emoção e alerta como sempre – ele parecia ter mais mecanismos por dentro do que o carrossel – jogou três cartas sobre a mesa diante de Locke, que passou
os dedos sob a lapela do casaco, depois olhou para as cartas e exclamou “Aaaa-rá!” com um tom de prazer interessado. Elas formavam uma espantosa constelação de bosta;
sua pior mão até aquele momento. Locke piscou e franziu os olhos, imaginando se, de algum modo, o álcool estaria mascarando cartas decentes, mas, infelizmente, ao
se concentrar de novo, elas continuavam sem valor.
Na rodada anterior, as damas tinham sido forçadas a beber, mas a não ser que Jean ocultasse um tremendo milagre, o outro frasquinho rolaria animado pela mesa em
direção à mão frouxa de Locke.
Dezoito mãos, pensou Locke, equivalentes a uma perda de 980 solaris. Sua mente, bem lubrificada pelo álcool da Agulha do Pecado, divagava em cálculos. O valor correspondia
a um ano de roupas finas para um homem de alto nível. Um pequeno navio. Uma casa muito grande. A vida inteira de rendimentos de um artesão honesto, como um mestre
de cantaria. Ele já pretendera ser um mestre de cantaria?
– Primeiras opções – anunciou o crupiê, trazendo-o de volta ao jogo.
– Carta – disse Jean. O crupiê empurrou uma para ele; Jean olhou-a, assentiu e empurrou outro marcador de madeira para o centro da mesa. – Aumento a aposta.
– Calma aí – reagiu madame Durenna. Ela empurrou dois marcadores de madeira de sua pilha substancial. – Revelação ao parceiro.
Ela mostrou duas cartas de sua mão a madame Corvaleur, que não pôde conter um sorriso.
– Carta – falou Locke.
O crupiê passou-lhe uma e ele virou uma ponta apenas o suficiente para ver o que era: o dois de cálices, que nessa situação valia exatamente um cocô molhado de um
cachorro doente. Obrigou-se a sorrir.
– Aumento a aposta – acrescentou, empurrando dois marcadores. – Estou me sentindo abençoado.
Todos os olhos se viraram cheios de expectativa para madame Corvaleur, que pegou uma cereja salpicada de chocolate em seu suprimento cada vez menor e jogou-a na
boca, chupando às pressas os dedos.
– Oh-ho – fez ela, olhando suas cartas e batucando os dedos pegajosos suavemente na mesa. – Ah... ho... oh... Mara, essa é... a coisa mais estranha...
E tombou para a frente, pousando a cabeça em sua grande pilha de marcadores de madeira sobre a mesa. Suas cartas caíram, viradas para cima, e ela bateu nelas, sem
coordenação, tentando cobri-las.
– Izmila – chamou madame Durenna, com um tom de ansiedade na voz. – Izmila! – Ela sacudiu a parceira pelos ombros pesados.
– ’Zmila – concordou madame Corvaleur numa voz sonolenta, borbulhante. Sua boca se abriu e ela babou restos de chocolate e cereja em seus marcadores de 5 solaris.
– Mmmmmmmilllaaaaaa. Mooooitcho... es... estranha...
– A vez é de madame Corvaleur. – O crupiê não conseguia esconder a surpresa em sua voz. – Madame Corvaleur deve declarar uma preferência.
– Izmila! Concentre-se! – sussurrou madame Durenna, com urgência.
– Tem... cartas... – murmurou Corvaleur. – Cuidado, Mara... teeem... taaantas... cartas. Na mesa. Blembou... na... fla... gaá.
E apagou.
– Desistência final – anunciou o crupiê após alguns segundos.
Com seu pequeno rodo, puxou todos os marcadores de madame Durenna, contando depressa. Locke e Jean ficariam com tudo que estava na mesa. A ameaça de uma perda de
mil solaris havia se revertido e Locke suspirou aliviado.
O crupiê avaliou madame Corvaleur, que usava os marcadores de madeira como travesseiro, e tossiu na mão.
– Senhores, a casa irá... é... fornecer novas fichas de valor equivalente no lugar das... que ainda estão em uso.
– Claro – concordou Jean, batendo suavemente na pequena montanha dos marcadores de Durenna empilhados à sua frente.
Locke podia ouvir ruídos de perplexidade, consternação e surpresa entre as pessoas aglomeradas atrás de si. Uma pequena onda de aplausos acabou sendo instigada por
alguns observadores mais generosos, mas morreu depressa. Todos estavam um pouco constrangidos, em vez de empolgados, ao ver uma pessoa notável como madame Corvaleur
inebriada por meras seis doses.
– Huummpf – fez madame Durenna, apagando o charuto no pote de ouro e se levantando.
Ajeitou desnecessariamente o casaco de veludo de brocado preto decorado com botões de platina e tecido de prata, valendo uma boa fração de tudo que ela havia apostado
naquela noite.
– Mestre Kosta, mestre de Ferra... devemos admitir que perdemos.
– Mas sem dúvida não jogaram mal – completou Locke, conseguindo dar um charmoso sorriso sedutor com os restos pulverizados de seu raciocínio sóbrio. – As senhoras
praticamente nos... bem, nos massacraram.
– E o mundo inteiro está oscilando ao meu redor – observou Jean, cujas mãos estavam firmes como as de um joalheiro, da mesma forma que haviam estado durante todo
o jogo.
– Cavalheiros, apreciei sua estimulante companhia – comentou madame Durenna, num tom que indicava não ser verdade. – Outro jogo mais tarde, esta semana, quem sabe?
Com certeza os senhores devem nos conceder uma chance de dar a revanche, em nome da honra.
– Nada nos agradaria mais – garantiu Jean, e Locke assentiu com entusiasmo, sentindo uma dor no crânio.
Madame Durenna estendeu a mão com frieza e consentiu que os dois beijassem o ar acima dela. Então, como se prestassem respeitos a uma cobra particularmente irritadiça,
quatro funcionários de Requin apareceram para ajudar a levar madame Corvaleur, que roncava a plenos pulmões, a algum local mais decoroso.
– Pelo deuses, deve ser tedioso assistir às pessoas embebedarem umas às outras, noite após noite – comentou Jean e jogou um marcador de 5 solaris para o crupiê.
Era o costume deixar uma pequena gorjeta para o funcionário.
– Não acho, senhor. Como o senhor gostaria de seu troco?
– Que troco? – Jean sorriu. – Fique com tudo.
Pela segunda vez naquela noite, o crupiê revelou emoções humanas; por mais que estivesse relativamente bem de vida, um pequeno marcador de madeira valia metade de
seu ganho anual. Ele conteve um som ofegante quando Locke lhe lançou mais uma dúzia.
– A fortuna é uma dama que gosta de ser passada adiante – disse Locke. – Compre uma casa, por exemplo. No momento estou com alguma dificuldade para contar.
– Doces deuses. Muito obrigado, cavalheiros! – O crupiê olhou rapidamente em volta e acrescentou baixinho: – Essas duas damas não perdem com frequência, os senhores
sabem. Na verdade esta é a primeira vez que me lembro.
– A vitória tem seu preço – afirmou Locke. – Suspeito que minha cabeça vá pagar quando eu acordar amanhã.
Madame Corvaleur foi carregada cuidadosamente escada abaixo e madame Durenna a acompanhou para ficar de olho nos homens que levavam a parceira desmaiada. A multidão
se dispersou; os observadores que permaneceram às mesas chamaram funcionários, pediram comida e novos baralhos.
Locke e Jean juntaram seus marcadores nas costumeiras caixas de madeira forradas de veludo – peças novas, sem baba, haviam sido fornecidas pelo funcionário para
substituir as de madame Corvaleur – e se dirigiram para a escada.
– Parabéns, cavalheiros – congratulou o funcionário que vigiava a subida para o quinto andar. O tilintar de vidro contra vidro e o murmúrio de conversas vinha de
cima, meio abafado.
– Obrigado – agradeceu Locke. – Infelizmente, algo em madame Corvaleur se desconjuntou, e apenas uma ou duas mãos antes que o mesmo acontecesse comigo.
Ele e Jean desceram devagar a escada que se curvava acompanhando a parede exterior da Agulha do Pecado. Estavam vestidos no auge da atual moda de verão verrari.
O cabelo de Locke fora alterado alquimicamente para um tom de louro ensolarado e ele usava um casaco caramelo com cintura justa e caudas espalhafatosas que iam até
a altura dos joelhos; os punhos enormes, com três camadas, tinham acabamento em laranja e preto e eram decorados com botões de ouro. Ele não trajava colete, apenas
uma túnica encharcada de suor, da seda mais fina, sob um lenço de pescoço preto e frouxo. Jean se vestia de modo semelhante e tinha a barriga apertada por uma larga
faixa preta, da mesma cor dos pelos curtos e encaracolados da barba.
Desceram passando por andares cheios de pessoas notáveis: rainhas do comércio verrari de braços dados com seus decorativos companheiros jovens de ambos os sexos,
que eram como cachorrinhos; homens e mulheres com títulos lashanis, olhando por cima de cartas e jarras de vinho para Dons e Doñas inferiores vindos de Camorr; capitães
de navios vadrãs usando casacos pretos apertados, a pele curtida pelo sol em alto-mar parecendo máscaras sobre as feições afiladas. Locke reconheceu pelo menos dois
membros do Priori, o conjunto de conselhos mercantis que teoricamente governava Tal Verrar; bolsos fundos pareciam ser a qualificação principal para fazer parte
dele.
Dados rolavam e taças tilintavam; pessoas festejavam, riam, tossiam, xingavam e suspiravam. Correntes de fumaça moviam-se languidamente no ar abafado, carregando
cheiros de perfume e vinho, suor e carne assada, e aqui e ali a sugestão resinosa de drogas alquímicas.
Locke já vira palácios e mansões dos melhores; a Agulha do Pecado, por mais opulenta que fosse, não era muito mais bonita do que os lares para onde muitas daquelas
pessoas retornariam quando enfim não restasse mais noite para jogar. A verdadeira magia da Agulha do Pecado resultava de sua exclusividade caprichosa: se você negar
algo a certo número de pessoas, cedo ou tarde essa coisa ganhará uma mística densa como neblina.
Quase escondida nos fundos do térreo, havia uma pesada cabine de madeira onde trabalhavam vários funcionários de uma robustez incomum. Por sorte, não havia fila.
Locke pôs sua caixa no balcão, embaixo da única janela da cabine, com um pouco de exagero.
– Tudo na minha conta.
– O prazer é meu, mestre Kosta – disse o atendente-chefe, pegando a caixa.
Leocanto Kosta, especulador mercante de Talisham, era bem conhecido nesse reino de vapores de vinho e apostas. O funcionário trocou rapidamente a pilha de marcadores
por algumas anotações num livro-caixa. Ao vencer Durenna e Corvaleur, mesmo descontando a gorjeta para o crupiê, Locke ganhara quase 500 solaris.
– Vejo que ambos merecem os parabéns, mestre de Ferra – continuou o homem enquanto Locke recuava para deixar que Jean se aproximasse do balcão com sua caixa.
Jerome de Ferra, também de Talisham, era o jovial companheiro de Leocanto. Eram dois fictícios amigos inseparáveis.
De repente, Locke sentiu uma mão baixar sobre seu ombro. Virou-se com cautela e se viu diante de uma mulher de cabelos escuros encaracolados, vestida ricamente nas
mesmas cores das vestes dos funcionários da Agulha do Pecado. Um dos lados de seu rosto era de uma beleza sublime; o outro era uma meia-máscara de um marrom coriáceo,
enrugada como se tivesse sido queimada por completo. Quando sorriu, o lado danificado dos lábios não se mexeu. Para Locke, era como se uma mulher viva estivesse
lutando para sair de uma escultura tosca de argila.
Selendri, a governanta de Requin.
A mão que ela pousou em Locke – a esquerda, no lado queimado – não era verdadeira: tratava-se de um sólido simulacro de bronze dourado e brilhava de forma opaca
à luz do lampião.
– A casa lhes dá os parabéns – disse ela em sua voz fantasmagórica, ciciante –, tanto pelos bons modos como pela coragem considerável, e deseja que o senhor e mestre
de Ferra saibam que ambos serão bem-vindos ao quinto andar, caso optem por exercer esse privilégio.
O sorriso de Locke era genuíno.
– Muito obrigado, em meu nome e do meu companheiro – agradeceu, com um relaxamento embriagado. – A consideração gentil da casa nos é, claro, bastante lisonjeira.
Ela assentiu evasivamente e se afastou pela multidão, tão depressa quanto havia chegado. Sobrancelhas se ergueram em apreciação aqui e ali – poucos convidados de
Requin, pelo que Locke sabia, eram informados sobre seu status social crescente pela própria Selendri.
– Somos uma mercadoria desejada, meu caro Jerome – comentou, atravessando a multidão em direção à porta da frente.
– Por enquanto – retrucou Jean.
– Mestre de Ferra. – O porteiro-chefe sorriu. – E mestre Kosta. Posso chamar uma carruagem?
– Não precisa, obrigado – respondeu Locke. – Vou desmaiar se não aliviar a cabeça com um pouco de ar noturno. Vamos caminhar.
– Muito bem, então, senhor.
Com precisão militar, quatro funcionários mantiveram a porta aberta para a passagem de Locke e Jean. Os dois ladrões desceram com cuidado os largos degraus de pedra
cobertos por um tapete de veludo vermelho. Esse tapete, como toda a cidade sabia, era substituído toda noite, portanto só em Tal Verrar era possível encontrar sempre
exércitos de mendigos dormindo em pilhas de retalhos de veludo vermelho.
A vista era de tirar o fôlego. À direita, toda a vastidão da ilha em forma de crescente era visível para além das silhuetas de outras casas de tavolagem. Havia uma
relativa escuridão ao norte, em contraste com a claridade dos Degraus de Ouro que parecia uma aura. Para além da cidade, ao sul, a oeste e ao norte, o Mar de Bronze
rebrilhava em prata-fosforescente, iluminado pelas três luas num céu sem nuvens. Aqui e ali, as velas de navios distantes se destacavam do fundo cor de mercúrio,
numa palidez fantasmagórica.
À esquerda, Locke podia olhar por cima dos telhados escalonados dos cinco níveis inferiores da ilha, uma visão capaz de provocar vertigem, apesar da solidez das
pedras sob os pés. A toda volta, havia os murmúrios do prazer humano e o estardalhaço de carruagens puxadas por cavalos sobre o calçamento; pelo menos uma dúzia
delas se movia ou esperava ao longo da avenida reta sobre o sexto Degrau. Acima de tudo, a Agulha do Pecado se erguia na escuridão opalescente, com seus lampiões
alquímicos reluzindo, como uma vela destinada a atrair a atenção dos deuses.
– E agora, meu caro pessimista profissional... – disse Locke ao se afastarem da Agulha do Pecado e obterem relativa privacidade. – Meu mercador de preocupações,
minha incansável fonte de dúvida e escárnio... o que tem a dizer diante disso tudo?
– Ah, muito pouco, sem dúvida, mestre Kosta. É muito difícil pensar, pasmo como estou diante da genialidade sublime do seu plano.
– Isso tem uma leve semelhança com sarcasmo.
– Que os deuses não permitam. Você me magoa! Suas indescritíveis virtudes criminosas triunfaram de novo, algo inexorável como o ir e vir das ondas. Lanço-me aos
seus pés e imploro absolvição. Seu gênio alimenta o coração do mundo.
– E agora você está...
– Se ao menos houvesse um leproso disponível, para que você pusesse as mãos sobre ele e o curasse...
– Ah, você só está cagando pela boca porque sente inveja.
– É possível. Na verdade estamos substancialmente enriquecidos, e não presos, nem mortos, mais famosos e bem-vindos ao andar de cima. Devo admitir que estava errado
ao dizer que era uma trama idiota.
– Sério? Ahn. – Locke enfiou a mão embaixo da lapela do casaco à procura de algo enquanto falava. – Devo admitir que era uma trama idiota. Tremendamente irresponsável.
Mais um gole e eu estaria acabado. Na verdade, estou bastante surpreso por termos conseguido.
Tirou um pequeno chumaço de lã mais ou menos da largura e do comprimento de seu polegar e o enfiou num dos bolsos exteriores, soltando pó. Depois, esfregou a mão
vigorosamente nas mangas do casaco.
– “Quase perdemos” é só outro modo de falar “por fim vencemos” – disse Jean.
– Mesmo assim, a bebida quase acabou comigo. Na próxima vez que eu ficar tão otimista com minha própria capacidade, me corrija com uma machadada no crânio.
– Ficarei feliz em corrigir você com duas machadadas.
Madame Corvaleur é que havia possibilitado a trama. Ela cruzara o caminho de “Leocanto Kosta” pela primeira vez numa mesa de jogatina algumas semanas antes e Locke
percebera seu hábito de comer com os dedos para irritar os oponentes.
O Carrossel da Sorte não poderia realmente ser trapaceado por qualquer meio tradicional. Nenhum funcionário de Requin fraudaria um baralho, nem uma vez em cem anos,
nem mesmo em troca de um ducado. E nenhum jogador poderia alterar o carrossel, escolher um frasco em favor de outro ou servir um frasco a qualquer outra pessoa.
Com a vigilância irrestrita contra o fornecimento de uma substância estranha ao adversário, a única possibilidade que restava era o jogador fazer isso pessoalmente,
de forma voluntária, ingerindo algo sutil e não ortodoxo. Algo inserido com um artifício que estivesse além do âmbito até mesmo de uma paranoia saudável.
Como um pó narcótico salpicado nas cartas em quantidades minúsculas por Locke e Jean, depois passado aos poucos ao redor da mesa, para uma mulher que lambia os dedos
continuamente enquanto jogava.
A bela paranella era um pó alquímico incolor, sem sabor, também conhecido como “amiga da noite”. Era popular entre os ricos nervosos, que a tomavam para cair num
sono profundo e reparador. Quando misturada ao álcool, era rapidamente eficaz em quantidades microscópicas; as duas substâncias eram tão complementares quanto fogo
e pergaminho seco. Seria amplamente usada para fins criminosos se não fosse vendida por vinte vezes o valor de seu peso em ferro branco.
– Pelos deuses, aquela mulher tinha a constituição de uma galera de guerra – praguejou Locke. – Deve ter começado a ingerir um pouco do pó na terceira ou quarta
mão... uma quantidade menor talvez matasse um par de javalis no cio.
– Pelo menos conseguimos o que queríamos – observou Jean, tirando seu reservatório de pó do casaco. Olhou-o por um momento, deu de ombros e enfiou-o num bolso.
– Nós conseguimos mesmo... e eu o vi! – exclamou Locke. – Requin. Estava na escada, vigiando-nos na maioria das rodadas. Devemos ter provocado um interesse pessoal.
– As empolgantes consequências disso ajudaram a dissipar um pouco da névoa dos seus pensamentos. – Por que outro motivo a própria Selendri viria dar um tapinha nas
nossas costas?
– Bom, presumo que você esteja certo. E agora? Quer pressionar, como falou, ou ir devagar? Quem sabe jogar um pouco no quarto e no quinto andar durante mais algumas
semanas?
– Mais algumas semanas? Para o inferno. Já estamos batendo pernas nesta maldita cidade há dois anos. Se finalmente rompemos a couraça do Requin, acho que temos de
ir em frente.
– Você vai sugerir que as coisas se passem amanhã à noite, certo?
– A curiosidade dele foi atiçada. Vamos atacar enquanto a lâmina está quente da forja.
– Acho que toda aquela bebida deixou você impulsivo.
– A bebida faz com que eu enxergue de um modo engraçado; os deuses me deixam impulsivo.
– Vocês aí – chamou alguém na rua à frente deles. – Parem!
Locke se retesou.
– Perdão?
Um verrari jovem, com cabelos pretos e compridos, parecendo nervoso, estendia as mãos, com as palmas viradas para Locke e Jean. Um pequeno grupo de pessoas bem-vestidas
havia se reunido ao lado dele, nos limites de um gramado bem aparado que Locke reconheceu como a área dos duelos.
– Parem, senhores, por favor – pediu o rapaz. – Infelizmente, está acontecendo uma disputa, uma flecha pode passar voando. Poderia implorar que esperem um momento?
– Ah. Ah.
No mesmo instante, Locke e Jean relaxaram. Se alguém estava duelando com balestras, era uma cortesia comum, além de bom senso, esperar ao lado da área do duelo até
que os disparos fossem feitos. Desse modo, nenhum participante se distrairia com um movimento ao fundo nem cravaria uma flecha por acidente em um transeunte.
A área dos duelos tinha cerca de 40 metros de comprimento e 20 de largura, iluminada por um suave lampião branco pendurado num suporte de ferro preto em cada um
dos quatro cantos. Dois duelistas estavam no centro com seus padrinhos, lançando quatro sombras de um cinza claro num padrão entrecruzado. Locke não desejava assistir
àquilo, mas lembrou que deveria interpretar Leocanto Kosta, um homem indiferente a estranhos abrindo buracos uns nos outros. Ele e Jean se espremeram para dentro
da turba de espectadores do modo mais discreto possível; uma plateia semelhante havia se formado no outro lado da área gramada.
Um dos duelistas era um rapaz muito jovem, vestindo roupas de cavalheiro, finas e frouxas, de corte elegante; usava ópticos e o cabelo descia até os ombros em cachos
bem cuidados.
O oponente, de casaco vermelho, era muito mais velho, um pouco encurvado e desgastado. Mas parecia suficientemente ativo e decidido para representar uma ameaça.
Cada um deles segurava uma balestra leve, o que os ladrões camorris chamavam de “arma de beco”.
– Cavalheiros – disse o padrinho do duelista mais novo. – Por favor, não podemos chegar a um acordo?
– Se o cavalheiro lashani retirar sua imprecação – acrescentou o jovem duelista com a voz aguda e nervosa –, eu ficaria eminentemente satisfeito, com o mínimo reconhecimento...
– Não, não podemos – retrucou o homem parado junto ao duelista mais velho. – O lorde não tem o hábito de se desculpar por meras declarações de um fato óbvio.
– ... com o mínimo reconhecimento – continuou o outro duelista, desesperado – de que o incidente foi um equívoco infeliz e que não é preciso...
– Se o lorde condescender em falar com você outra vez – replicou o padrinho do duelista mais velho –, sem dúvida observará também que você geme feito uma cadela
e indagaria se você é igualmente capaz de morder como uma.
O jovem duelista ficou parado, sem fala, por alguns segundos, depois fez um gesto grosseiro com a mão livre na direção do homem mais velho.
– Sou obrigado – disse seu padrinho –, sou... é... obrigado... a permitir que não haja acordo. Que os cavalheiros fiquem imóveis... costas contra costas.
Os dois oponentes se aproximaram – o mais velho marchava com vigor e o jovem continuava pisando com hesitação – e deram-se as costas.
– Os senhores darão dez passos – informou o padrinho do jovem, com resignação amarga. – Em seguida, esperem e, ao meu sinal, podem se virar e disparar.
Contou lentamente os passos e os adversários se afastaram um do outro. O jovem tremia demais. Locke sentiu uma tensão pouco costumeira crescendo no estômago. Quando
havia se tornado um sujeito de coração tão mole? Só porque preferia não assistir, não significava que deveria ter medo de fazer isso... mas o estômago não ligava
para sua cabeça.
– ... nove... dez. Parados – ordenou o padrinho do jovem duelista. – Parados... Virem-se e disparem!
O jovem se virou primeiro, o rosto parecendo uma máscara de terror; estendeu a mão direita e disparou. Um tóin agudo soou no gramado. O oponente nem se mexeu enquanto
a flecha passava sibilando pelo ar junto à sua cabeça, errando no mínimo por um palmo.
O velho de casaco vermelho completou o giro mais devagar, os olhos brilhantes e a boca numa carranca. O jovem o encarou por um tempo, como se tentasse forçar a flecha
a voar de volta como um pássaro treinado. Estremeceu, baixou a balestra e jogou-a na grama. Com as mãos nos quadris, ficou esperando, respirando em haustos profundos
e ruidosos.
O outro homem olhou-o por um breve momento, depois bufou.
– Foda-se – disse, e levantou a balestra com as duas mãos.
O disparo foi perfeito; houve um estalo úmido e o jovem duelista tombou com uma flecha emplumada no centro do peito. Caiu de costas, agarrando o casaco e a túnica,
cuspindo sangue escuro. Meia dúzia de espectadores correram para ele enquanto uma jovem com vestido de noite prateado caía de joelhos e gritava.
– Estaremos de volta bem a tempo para o jantar – falou o duelista mais velho para ninguém em especial.
Em seguida, jogou sua arma descuidadamente para trás e foi andando para uma das casas de tavolagem mais próximas, com o padrinho ao lado.
– Porra, doce Perelandro – praguejou Locke, esquecendo por um momento que era Leocanto Kosta e pensando em voz alta. – Que modo de resolver as coisas!
– O senhor não aprova? – Uma adorável jovem num vestido de seda preta encarou Locke com olhos perturbadoramente penetrantes; não devia ter mais de 19 anos.
– Sei que algumas diferenças de opinião precisam ser resolvidas com aço – interveio Jean, parecendo reconhecer que Locke estava bêbado além da conta. – Ficar parado
diante de uma flecha parece idiotice. Os floretes me parecem um teste de habilidade mais honesto.
– Eles são tediosos: todos aqueles avanços e recuos, e é raro um golpe mortal se dar de imediato – rebateu a jovem. – As flechas são rápidas, limpas e misericordiosas.
Você pode acertar uma pessoa com um florete a noite inteira e não matá-la.
– Sou obrigado a concordar com você – voltou a falar Locke.
A mulher arqueou uma sobrancelha, mas permaneceu em silêncio; um instante depois, fora embora, desaparecendo na multidão.
O murmúrio contente da noite – risos e conversas dos grupinhos que matavam o tempo sob as estrelas – havia morrido brevemente após o início do duelo, mas nesse momento
voltou a surgir. A mulher de vestido prateado batia os punhos na grama, soluçando, e as pessoas ao redor do duelista caído começavam a se dispersar. O trabalho da
flecha fora realizado, sem dúvida.
– Rápidas, limpas e misericordiosas – repetiu Locke baixinho. – Idiotas.
Jean suspirou.
– Nenhum de nós dois tem o direito de fazer essa observação, já que a expressão “malditos idiotas” provavelmente estará gravada nas nossas lápides.
– Tive motivos para fazer o que fiz, e você também.
– Tenho certeza de que aqueles duelistas achavam o mesmo.
– Vamos dar o fora daqui. Vamos andar até tirar os vapores da minha cabeça e voltar à estalagem. Pelos deuses, estou me sentindo velho e azedo. Vejo coisas assim
e me pergunto se eu era tão idiota quando tinha a idade daquele garoto.
– Era pior – afirmou Jean. – Até bem recentemente. Na certa ainda é.
5
A melancolia de Locke se evaporou lentamente, junto com um pouco mais da bruma alcoólica, enquanto desciam e atravessavam os Degraus de Ouro, indo na direção nor-nordeste
até a Grande Galeria. Os Ancestres (seriam homens? Também mulheres? Ou coisas?) responsáveis por Tal Verrar haviam coberto o distrito inteiro com um teto de Vidrantigo
aberto na lateral, que descia inclinado desde o topo sobre o sexto nível e mergulhava no mar na base oeste da ilha, fazendo com que houvesse pelo menos 10 metros
de pé-direito em qualquer ponto intermediário da cobertura. Estranhas colunas de vidro retorcido surgiam a intervalos irregulares, parecendo trepadeiras sem folhas
esculpidas em gelo. Aquele teto tinha facilmente um comprimento de mil metros.
Para além da Grande Galeria, na parte inferior da ilha, ficava o Quarteirão Descartável: níveis ao ar livre em que os miseráveis tinham permissão de montar barracos
e qualquer tipo de abrigo que pudessem construir com refugo. O problema era que qualquer vento mais forte soprado do norte, em especial durante o inverno chuvoso,
bagunçava o lugar por completo.
De modo perverso, o bairro acima e imediatamente a sudeste do Quarteirão Descartável, o Savrola, era um caro enclave para expatriados, cheio de estrangeiros com
dinheiro de sobra. Todas as melhores estalagens ficavam ali, inclusive o estabelecimento onde Locke e Jean estavam, que lhes servia para firmar suas identidades
falsas. O Savrola era isolado do Quarteirão Descartável por altos muros de pedra, fortemente patrulhado por policiais e mercenários particulares.
Durante o dia, a Grande Galeria era o mercado de Tal Verrar. Mil mercadores montavam suas barracas nela toda manhã e havia espaço para mais cinco mil, caso a cidade
crescesse mais. Visitantes com aposentos no Savrola que não andavam de barco eram obrigados, por uma coincidência maliciosa, a cruzar todo o mercado para ir aos
Degraus de Ouro ou voltar de lá.
Um vento leste soprava do continente, através das ilhas de vidro, penetrando na Galeria. Os passos de Locke e Jean ecoavam na escuridão do vasto espaço aberto; lampiões
suaves em algumas colunas de vidro criavam irregulares ilhas de luz. Pedaços de lixo estavam dispersos aos seus pés, além de fiapos de fumaça de madeira vindos de
fogueiras fora de vista. Alguns mercadores mantinham familiares dormindo a noite toda em locais particularmente desejáveis... e, claro, sempre havia desgarrados
do Quarteirão Descartável buscando privacidade nas sombras da Galeria vazia. Toda noite, patrulhas percorriam várias vezes os níveis da Galeria, mas no momento não
se via nenhuma.
– Que deserto estranho esse lugar se torna depois que escurece! – exclamou Jean. – Não sei se isso me desgosta ou encanta.
– Você provavelmente estaria menos inclinado a se encantar se não tivesse um par de machadinhas enfiadas nas costas do casaco.
– Hummm.
Continuaram andando por alguns minutos. Locke esfregou a barriga e murmurou consigo mesmo.
– Jean... por acaso você está com fome?
– Em geral estou. Precisa de mais lastro para aquele álcool?
– Pode ser uma boa ideia. Carrossel maldito. Se eu perdesse outra mão, poderia ter pedido aquele dragão fumante desgraçado em casamento. Ou simplesmente caído da
cadeira.
– Bom, vamos atacar o Mercado Noturno.
No nível mais alto da Grande Galeria, perto da extremidade nordeste do distrito coberto, Locke podia ver a luz tremeluzente de fogueiras em barris e lampiões e os
vultos de várias pessoas. O comércio nunca parava totalmente em Tal Verrar: como milhares de pessoas iam e vinham dos Degraus de Ouro, havia moedas suficientes circulando
para que algumas dúzias de barraqueiros trabalhassem logo depois do crepúsculo, todas as noites. O Mercado Noturno podia ser muito conveniente e era mais excêntrico
do que o diurno.
Enquanto caminhavam na direção do mercado com a brisa da noite soprando em sentido contrário, Locke e Jean tinham uma bela visão do porto interior com sua escura
floresta de mastros. Para além, as outras ilhas da cidade dormiam, salpicadas aqui e ali com pontos de luz, diferentemente do brilho profuso dos Degraus de Ouro.
No coração da cidade, as três ilhas em forma de crescente que pertenciam às Grandes Guildas (Alquimistas, Artífices e Mercadores) enroscavam-se como animais sonolentos
ao redor da base da alta e rochosa ilha da Castellana. E no topo dela, como uma colina de pedras plantada num campo de mansões, ficava a silhueta escura do Mon Magisteria,
a fortaleza do Arconte.
Tal Verrar era supostamente governada pelo Priori, mas na realidade um grau significativo do poder ficava com o homem que residia naquele palácio, o senhor das armas
da cidade. O cargo do Arconte fora criado depois da trágica Guerra dos Mil Dias contra Camorr, para tirar o comando do exército e da marinha das mãos dos birrentos
conselhos mercantis. Mas o problema ao se criar ditadores militares, refletia Locke, era livrar-se deles assim que a crise passasse. O primeiro Arconte havia “rejeitado”
a aposentadoria e seu sucessor era, no mínimo, mais interessado ainda em interferir nas questões civis. Fora dos vigiados bastiões de frivolidade como os Degraus
de Ouro e dos enclaves de expatriados como o Savrola, as discordâncias entre o Arconte e o Priori mantinham a cidade tensa.
– Cavalheiros! – chamou uma voz à esquerda deles, interrompendo os pensamentos de Locke. – Honrados senhores. Um passeio pela Grande Galeria não pode ser completo
sem uma pequena refeição.
Locke e Jean tinham chegado aos limites do Mercado Noturno; não havia outros fregueses à vista e os rostos de pelo menos uma dúzia de comerciantes os encaravam ansiosos
de dentro de seus pequenos círculos de fogueiras ou lampiões.
O primeiro verrari a investir com sua arenga contra o bom juízo dos dois era um homem maneta, bem velho, com cabelo branco e comprido trançado até a cintura. Ele
balançou uma concha de madeira na direção deles, indicando quatro barriletes em cima de um balcão portátil que não era diferente de um carrinho de mão com a superfície
plana.
– O que você vende? – perguntou Locke.
– Iguarias da mesa do próprio Iono, o sabor mais doce que o oceano tem a oferecer. Olhos de tubarão em salmoura, todos recém-arrancados. Casca crocante, humores
macios, sumos doces.
– Olhos de tubarão? Pelos deuses, não. – Locke fez uma careta. – Tem alguma carne mais comum? Fígado, guelras? Uma torta de guelras seria bem-vinda.
– Guelras? Senhor, as guelras não têm nenhuma das virtudes dos olhos; são eles que dão tonicidade aos músculos, impedem o cólera e firmam os mecanismos do homem
para certos... ahn... deveres conjugais.
– Não tenho necessidade de nenhum firmador de mecanismos nesse sentido. E acho que meu estômago está inquieto demais para os esplendorosos olhos de tubarão.
– Que pena, senhor. Eu gostaria de ter algum pedaço de guelra para ofertar, mas há apenas olhos, e pouco mais. Porém, tenho de vários tipos: tubarão-foice, tubarão-lobo,
viúvo-azul...
– Por hoje vamos deixar passar, amigo – replicou Jean, avançando ao lado de Locke.
– Frutas, dignos senhores?
Na barraca seguinte, estava uma jovem esguia, abrigada confortavelmente num casaco creme comprido bem maior do que o seu tamanho. Ela também usava um chapéu de quatro
bicos com um pequeno globo alquímico pendurado numa corrente, balançando logo acima do ombro esquerdo, e tomava conta de vários cestos trançados.
– Frutas alquímicas, híbridos frescos. Já viram a Laranja Sofia de Camorr? Ela produz seu próprio álcool, muito doce e poderosa.
– Nós nos... conhecemos – respondeu Locke. – E mais álcool não é o que tenho em mente. Pode recomendar alguma coisa para um estômago inquieto?
– Peras, senhor. O mundo não teria estômagos inquietos se todos tivéssemos a sensatez de comer muitas peras por dia.
Ela pegou um cesto com frutas até a metade e segurou-o à frente dele. Locke analisou as peras, que pareciam firmes e frescas, e escolheu três.
– São 5 centiras – informou a vendedora.
– Um volani inteiro? – Locke fingiu ultraje. – Nem se a puta favorita do Arconte as tivesse colocado entre as pernas e rebolado para mim. Um centira já é demais
pelo lote.
– Com 1 centira o senhor não compraria nem os cabinhos. Pelo menos não vou perder dinheiro se cobrar 4.
– Seria um ato de suprema piedade eu lhe dar 2. Felizmente, para você, estou transbordando de generosidade; o botim é seu.
– Dois seria um insulto aos homens e mulheres que plantaram essas frutas nas estufas dos jardins do Crescente das Mãos Negras. Mas sem dúvida podemos concordar em
3, não?
– Ok, 3 – assentiu Locke com um sorriso. – Nunca antes fui roubado em Tal Verrar, mas estou com fome suficiente para lhe permitir essa honra.
Ele entregou duas peras a Jean sem olhar enquanto remexia num bolso para pegar as moedas. Jogou três para a vendedora e ela fez um gesto afirmativo de cabeça.
– Boa noite, mestre Lamora.
Locke se imobilizou e fixou o olhar nela.
– Perdão?
– Eu só lhe desejei boa noite, digno senhor.
– Você não...
– Não o quê?
– Ah, nada. – Locke suspirou, nervoso. – É só que eu bebi um pouco demais. Boa noite para você também.
Saiu andando com Jean e deu uma mordida hesitante em sua pera. A fruta estava em boas condições, nem firme e seca demais, nem madura e pegajosa demais.
– Jean – falou entre duas mordidas –, você ouviu o que ela disse?
– Acho que não ouvi nada a não ser o grito da morte desta pera infeliz. Ouça com atenção: “Nããão, não me coma, por favor, nããão...”
Jean já havia reduzido sua primeira pera ao miolo, que foi enfiado na boca, mastigado ruidosamente e engolido inteiro. Sobrou só o cabinho, que ele jogou longe.
– Pelos treze deuses, você precisa fazer isso?
– Eu gosto do miolo – alegou Jean, carrancudo. – Todos os pedacinhos crocantes.
– As cabras comem os malditos pedaços crocantes.
– Você não é minha mãe.
– Bom, isso é verdade. Sua mãe devia ser feia. Ah, não me olhe desse jeito. Ande, coma o seu outro miolo; ele tem uma pera bela e suculenta em volta.
– O que a mulher disse?
– Ela disse... ah, pelos deuses, nada. Estou tonto, só isso.
– Lanternas alquímicas, senhor? – Um homem barbudo estendeu o braço, de onde pelo menos meia dúzia dos artefatos, em armações ornamentais douradas, pendiam. – Dois
cavalheiros bem-vestidos não deveriam ficar sem luz. Apenas os vagabundos andam por aí na escuridão sem poder enxergar! Os senhores não encontrarão lanternas melhores
em toda a Galeria, nem de dia nem de noite.
Jean dispensou o homem com um gesto, ainda comendo a pera. Locke jogou seu miolo descuidadamente por cima do ombro enquanto Jean enfiava o dele na boca, esforçando-se
para garantir que Locke visse.
– Hummmmm – murmurou com a boca cheia. – Parece ambrosia. Mas você jamais saberá, você e todos os seus colegas covardes em termos culinários.
– Cavalheiros. Escorpiões?
Isso fez Locke e Jean pararem. Quem falava era um homem careca de capa com a pele cor de café de alguém que nascera nas ilhas de Okanti; ele estava a vários milhares
de quilômetros de casa. Seus dentes brancos e bem cuidados se destacavam enquanto ele sorria e fazia uma leve reverência por cima de uma dúzia de pequenas gaiolas
de madeira; formas escuras podiam ser vistas movendo-se em várias delas.
– Escorpiões? De verdade? Vivos? – Locke se curvou para olhar melhor dentro das gaiolas, mas manteve distância. – Para que raios eles servem?
– Bom, os senhores devem ser visitantes recentes. – O sujeito falava terim com um leve sotaque. – Muitas pessoas no Mar de Bronze são bem familiarizadas com o escorpião-cinzento-da
s-rochas. Será que os senhores são de Kartane? De Camorr?
– Talisham – respondeu Jean. – Estes são escorpiões-cinzentos-das-rochas, daqui?
– Do continente – esclareceu o mercador. – E seu uso é principalmente... bom... recreativo.
– Recreativo? São bichos de estimação?
– Ah, na verdade, não. A picada, veja bem, a picada desse escorpião é uma coisa complexa. Primeiro vem a dor, aguda e quente, como seria de esperar. Mas depois de
alguns minutos há um entorpecimento agradável, uma espécie de febre onírica. Não é muito diferente do efeito de alguns pós jeremitas. Após algumas picadas, o corpo
fica mais acostumado. A dor diminui e os sonhos se aprofundam.
– Espantoso!
– É uma coisa comum. Um bom número de verraris mantém um sempre à mão, mesmo que não falem disso em público. O efeito é tão agradável quanto o do álcool, só que
muito menos custoso.
– Hummm. – Locke coçou o queixo. – Mas eu nunca precisei me furar para sentir os efeitos do vinho. Isso não é somente uma tramoia, uma diversão para visitantes desavisados?
O sorriso do vendedor se alargou. Ele estendeu o braço direito e puxou a manga da capa; a pele escura de seu antebraço magro era salpicada de pequenas cicatrizes
circulares.
– Eu jamais ofereceria um produto pelo qual não estivesse disposto a me responsabilizar.
– Admirável – comentou Locke. – E fascinante, mas... talvez haja alguns costumes de Tal Verrar que seria melhor permanecerem inexplorados.
– Seja fiel aos seus próprios gostos. – Ainda sorrindo, o homem baixou a manga e cruzou as mãos diante do corpo. – Afinal de contas, uma cruza de falcão com escorpião
nunca foi do seu agrado, mestre Lamora.
Locke sentiu uma pressão súbita e fria no peito. Lançou um olhar rápido para Jean e percebeu o outro igualmente tenso. Lutando para manter a calma exterior, Locke
pigarreou.
– Perdão?
– Desculpe. – O comerciante piscou para ele com ar inocente. – Apenas lhes desejei boa noite, cavalheiros.
– Certo.
Locke o encarou por mais um tempo, depois deu um passo atrás, girou nos calcanhares e começou a andar de novo pelo Mercado Noturno, acompanhado por Jean.
– Você ouviu aquilo – sussurrou Locke.
– Muito claramente. Para quem será que o amigável vendedor de escorpiões trabalha?
– Não só ele – murmurou Locke. – A vendedora de frutas me chamou de “Lamora” também. Você não escutou, mas eu, sim, perfeitamente.
– Merda. Quer voltar e pegar um deles?
– Está indo a algum lugar, mestre Lamora?
Ao girar, Locke quase trombou com uma vendedora de meia-idade e conseguiu impedir que o punhal de 15 centímetros escondido na manga direita caísse num reflexo na
sua mão. Jean enfiou um dos braços sob as costas do casaco.
– Parece que está enganada, senhora. Meu nome é Leocanto Kosta.
A mulher não se moveu mais na direção deles; meramente deu um risinho.
– Lamora... Locke Lamora.
– Jean Tannen – disse o vendedor de escorpiões, que havia saído de trás de sua mesinha coberta de gaiolas.
Outros comerciantes moviam-se devagar atrás deles, fitando Locke e Jean.
– Parece que está havendo um equívoco – retrucou Jean.
Ele deslizou a mão de baixo do casaco; pela longa experiência, Locke sabia que o amigo já empunhava uma das suas machadinhas escondida.
– Não há equívoco – replicou o vendedor de escorpiões.
– Espinho de Camorr... – falou uma menininha que ficou no meio do caminho para o Savrola.
– Espinho de Camorr... – repetiu a mulher de meia-idade.
– Nobres Vigaristas – disse o homem careca. – Longe de casa.
Locke olhou ao redor, o coração martelando no peito. Decidindo que a hora da discrição havia passado, deixou o punhal cair nos dedos que coçavam. Todos os comerciantes
do Mercado Noturno pareciam ter se interessado por eles e apertavam o cerco sobre os dois, lançando sombras longas, escuras, nas pedras aos pés de Locke e Jean.
Algumas das luzes estavam ficando mais fracas ou era só imaginação de Locke? O ambiente parecia mais escuro – maldição, algumas lanternas estavam de fato se apagando.
– Isso já foi longe demais.
Jean deixou sua machadinha cair visivelmente na mão direita e se postou de costas para Locke, junto a ele.
– Não cheguem mais perto! – gritou Locke. – Parem com essa merda bizarra ou vai haver sangue!
– Já houve sangue... – retrucou a menininha.
– Locke Lamora... – murmurava um coro suave ao redor.
– Já houve sangue, Locke Lamora – repetiu a mulher de meia-idade.
As últimas lanternas alquímicas na periferia do Mercado Noturno se apagaram; as últimas fogueiras se extinguiram e agora Locke e Jean encaravam o círculo de vendedores
apenas à luz fraca vinda do porto interior e do tremeluzir fantasmagórico de lampiões distantes sob a vasta galeria deserta, longe demais para dar algum conforto.
A menininha deu um último passo na direção deles, os olhos cinzentos e sem piscar.
– Mestre Lamora, mestre Tannen – disse de forma clara e suave. – O Falcoeiro de Kartane manda lembranças.
6
Locke encarou a menina. Ela deslizou adiante como uma aparição, até que apenas dois passos os separavam. Locke sentiu-se um idiota por estar segurando um punhal
diante de uma garota que ainda não teria um metro de altura. Mas então ela deu um sorriso frio e malicioso em meio à penumbra e Locke segurou com mais força a arma.
A menina tocou o próprio queixo.
– Ainda que ele não possa falar – disse ela.
– Ainda que ele não possa falar por si mesmo... – entoou em coro o círculo de vendedores, agora imóveis no escuro.
– Ainda que ele esteja louco – completou a garota, abrindo lentamente as mãos na direção de Locke e Jean, com as palmas para fora.
– Louco de dor, louco para além de qualquer medida... – sussurrou o círculo.
– Seus amigos permanecem. Seus amigos se lembram.
Locke sentiu Jean se mexer junto às suas costas e, então, as duas machadinhas surgiram, lâminas de aço enegrecido nuas na noite.
– Essas pessoas são marionetes. Existem Magos-Servidores em algum lugar por aí – sussurrou ele.
– Mostrem-se, seus covardes da porra! – berrou Locke, fitando a menina.
– Nós mostramos o nosso poder – rebateu ela.
– De que mais vocês precisam... – murmurou o coro, os olhos vazios.
– O que mais você precisa ver, mestre Lamora?
A garota fez uma sinistra paródia de reverência.
– Independentemente do que vocês quiserem – respondeu Locke –, deixem essas pessoas fora disso. Só falem conosco, porra. Não queremos machucar essas pessoas.
– Claro, mestre Lamora...
– Claro... – sussurrou o círculo.
– Claro, esse é o objetivo – concordou a menina. – Por isso, vocês devem escutar o que temos a dizer.
– Digam o que querem, então.
– Vocês devem pagar.
– Pagar pelo que foi feito ao Falcoeiro – entoou o coro.
– Vocês devem pagar. Os dois.
– Ah, vão se foder! – reagiu Locke aos berros. – Nós já pagamos: uma língua e dez dedos perdidos em troca de três amigos mortos. Vocês o receberam de volta vivo
e era mais do que ele merecia!
– Não cabe a você julgar – sibilou a menina.
– ... julgar os Magos de Kartane... – murmurou o círculo.
– Não cabe a você julgar ou presumir que entende nossas leis.
– Todo mundo sabe que matar um Mago-Servidor significa a morte – interveio Jean. – Isso e mais um pouco. Nós o deixamos vivo e nos esforçamos para devolvê-lo a vocês.
Nosso negócio está encerrado. Se vocês quisessem um tratamento mais complexo do que esse, deveriam ter mandado a porra de uma carta.
– Isso não é um negócio – rebateu a garota.
– É pessoal – entoou o círculo.
– Pessoal – repetiu a menina. – Um irmão foi sangrado. Não podemos deixar que isso fique sem resposta.
– Seus filhos da puta – xingou Locke. – Acham mesmo que são as porras de uns deuses, não é? Eu não acertei o Falcoeiro pelas costas num beco e roubei a carteira
dele. Ele ajudou a assassinar meus amigos! Não lamento que ele esteja louco e não lamento pelo resto de vocês! Matem-nos e terminem com seus negócios ou deem o fora
e libertem essas pessoas.
– Não – negou o vendedor de escorpiões. Um coro sussurrado de “não” ecoou no círculo ao redor.
– Covardes. Vermes! – gritou Jean, apontando uma das machadinhas para a menina. – Vocês não podem nos amedrontar com esse teatro de araque!
– Se vocês nos obrigarem – completou Locke –, vamos lutar até Kartane com as armas que estão nas nossas mãos. Vocês vão sangrar como nós. Parece que tudo que vocês
podem fazer é nos matar.
– Não – disse a menina, rindo.
– Podemos fazer coisas piores – completou a vendedora de frutas.
– Podemos deixar vocês viverem – emendou o comerciante de escorpiões.
– Viverem inseguros – retomou a garota.
– Inseguros... – entoaram os vendedores, começando a recuar.
– Vigiados – acrescentou a menina.
– Seguidos – prosseguiu o círculo.
– Agora aguardem – falou a garota. – Façam seus joguinhos e persigam suas pequenas fortunas...
– E aguardem – sussurrou o coro. – Aguardem nossa resposta. Aguardem nossa hora.
– Vocês estão sempre ao nosso alcance – ameaçou a menina – e sempre às nossas vistas.
– Sempre – murmurou o círculo, dispersando-se lentamente de volta às posições de apenas alguns minutos atrás.
– Vocês encontrarão o infortúnio – finalizou a garota, afastando-se. – Isso tudo é pelo Falcoeiro de Kartane.
Locke e Jean permaneceram em silêncio enquanto as lanternas e as fogueiras se acendiam de novo para encher a área com luz quente. Então tudo terminou: os vendedores
retomaram as atitudes anteriores de interesse aguçado ou tédio vigilante. Os Nobres Vigaristas esconderam às pressas as armas antes que alguém as notasse.
– Pelos deuses – praguejou Jean, tremendo visivelmente.
– De repente estou sentindo que não bebi o bastante daquela porcaria de carrossel – observou Locke em voz baixa.
Havia uma névoa nos limites de seu campo de visão; ele levou as mãos ao rosto e ficou surpreso ao se descobrir chorando.
– Desgraçados – murmurou. – Crianças. Malditos covardes querendo se exibir.
– É – concordou Jean.
Os dois voltaram a andar, olhando com cautela ao redor. A menininha que mais havia falado pelos Magos-Servidores estava sentada junto a um homem idoso, arrumando
pequenos cestos de figos secos sob a supervisão dele, e lhes abriu um sorriso tímido.
– Odeio esses malditos – sussurrou Locke. – Odeio isso. Você acha que eles planejaram mesmo algo para nós ou foi só um blefe?
– Acho que pode ser as duas coisas – suspirou Jean. – Pelos deuses. Strat péti. Vamos recuar ou continuar apostando? No pior das hipóteses, temos alguns milhares
de solaris na conta na Agulha. Podemos tirar o dinheiro, pegar um navio e ir embora antes do meio-dia de amanhã.
– Para onde?
– Qualquer lugar.
– Não há como fugir desses escrotos, se eles estiverem falando sério.
– É, mas...
– Foda-se Kartane. – Locke fechou os punhos. – Sabe, acho que entendo. Acho que agora entendo os sentimentos do Rei Cinza. Eu nunca estive lá, mas se pudesse esmagar
Kartane, queimar a porra do lugar, fazer com que fosse engolida pelo oceano... faria isso. Que os deuses me ajudem, eu faria.
De repente Jean estacou.
– Há... outro problema, Locke. Que os deuses me perdoem.
– O quê?
– Mesmo se você ficar... eu não deveria. Sou eu que deveria ir embora, para o mais longe possível.
– Que porra de maluquice é essa?
– Eles sabem o meu nome!
Jean agarrou Locke pelos ombros e o amigo se encolheu; aquele aperto de aço não caía bem no antigo ferimento embaixo de sua clavícula esquerda. Jean percebeu imediatamente
o erro e afrouxou os dedos, mas sua voz continuou ansiosa:
– Meu nome verdadeiro, e eles podem usá-lo. Podem me transformar numa marionete, como esses coitados. Sou uma ameaça a você a cada momento em que estou perto.
– Não ligo a mínima para isso! Está doido?
– Não, mas você ainda está bêbado, sem raciocinar direito.
– Claro que estou raciocinando! Você quer ir embora?
– Não! Pelos deuses, não, claro que não! Mas eu vou...
– Calar a boca neste segundo, se sabe o que é bom para você.
– Você precisa entender que está correndo perigo!
– Claro que estou correndo perigo. Eu sou mortal. Jean, os deuses amam você, não vou mandar você embora, porra, e não vou deixar que você vá embora! Nós perdemos
Calo, Galdo e Pulga. Se eu o expulsar, vou perder o último amigo que tenho no mundo. Quem ganha, então, Jean? Quem estará protegido, então?
Os ombros de Jean desabaram e, de repente, Locke sentiu o início da transição da embriaguez para a dor de cabeça latejante. Gemeu.
– Jean, sempre vou me sentir péssimo pelo que fiz você passar em Vel Virazzo. E nunca vou me esquecer de quanto tempo você ficou comigo quando deveria ter amarrado
pesos nos meus tornozelos e me jogado na baía. Que os deuses me ajudem, nunca vou estar melhor sem você. Não me importa quantos Magos-Servidores sabem a droga do
seu nome.
– Eu gostaria de ter certeza de que você sabe o que está falando.
– Essa é a nossa vida. Esse é o nosso golpe, no qual investimos dois anos. É a nossa fortuna, esperando ser roubada da Agulha do Pecado. São todas as nossas esperanças
para o futuro. Foda-se Kartane. Se eles quiserem nos matar, não podemos impedir. Então o que mais podemos fazer? Não vou me sobressaltar com sombras por causa daqueles
sacanas. Vamos em frente! Nós dois, juntos.
A maioria dos vendedores do Mercado Noturno havia notado a intensidade da conversa particular entre Locke e Jean e evitara apregoar mais mercadorias. Mas um dos
últimos comerciantes no limite norte do local era menos sensível ou estava mais desesperado para vender.
– Brinquedos esculpidos, cavalheiros? Algo para uma mulher ou uma criança da vida de vocês? Algo artístico da Cidade dos Artífices?
O homem tinha dezenas de brinquedinhos exóticos sobre um caixote virado. Seu casaco marrom, comprido e velho, era forrado com retalhos numa infinidade de cores espalhafatosas
– laranja, roxo, prateado, amarelo-mostarda. Ele balançava na mão esquerda uma peça de madeira pintada, um soldado em miniatura carregando uma lança, pendurada por
quatro cordões, e com pequenos gestos dos dedos fazia a figura golpear um inimigo imaginário.
– Uma marionete? – insistiu o homem. – Um bonequinho para se lembrar de Tal Verrar?
Jean o encarou por alguns segundos antes de responder baixinho:
– Perdão, eu prefiro qualquer coisa a uma marionete.
Com uma dor no coração similar à que crescia na cabeça, Locke acompanhou o amigo para fora da Grande Galeria, entrando no Savrola, ansioso para se refugiar atrás
dos altos muros e das portas trancadas, mesmo que isso não fizesse muita diferença.
R E M I N I S C Ê N C I A
O Capa de Vel Virazzo
1
Locke Lamora chegou a Vel Virazzo querendo morrer e Jean Tannen estivera inclinado a deixar que ele realizasse o desejo.
Vel Virazzo é um porto de águas profundas cerca de 150 quilômetros a leste de Tal Verrar, esculpido nos altos penhascos rochosos que dominam o litoral do continente
no Mar de Bronze. Cidade de oito ou nove mil almas, há muito tempo tem sido uma carrancuda serviçal dos verraris, comandada por um governador nomeado diretamente
pelo Arconte.
Uma linha de estreitos pináculos de Vidrantigo se ergue 60 metros acima da água do lado de fora do porto, mais um artefato dos Ancestres de função inescrutável num
litoral repleto de maravilhas abandonadas. As colunas de vidro têm plataformas de 4,5 metros no topo e agora são usadas como faróis, mantidas por condenados por
pequenos crimes. Barcos os trazem e os deixam para subir as escadas de cordas que pendem pelas colunas. Os criminosos içam suas provisões e se acomodam para algumas
semanas de exílio, cuidando de lâmpadas alquímicas vermelhas do tamanho de pequenas cabanas. Nem todos voltam com a cabeça no lugar ou mesmo sobrevivem.
Mais de dois anos antes do fatídico jogo de Carrossel da Sorte, um pesado galeão passou na direção de Vel Virazzo sob os faróis. As pessoas nas pontas das vergas
da embarcação acenaram, meio por pena, meio por zombaria, para as figuras solitárias no topo das colunas. O sol fora engolido por nuvens densas no horizonte oeste
e uma luz suave, agonizante, ondulava na água sob as primeiras estrelas.
Uma brisa quente e úmida soprava do litoral para o mar e pequenos fiapos de névoa pareciam vazar das rochas cinzentas para os dois lados da velha cidade portuária.
As amareladas velas de mezena do galeão estavam caçadas enquanto ele se preparava para ficar à capa a 800 metros da costa. Um pequeno escaler do mestre do porto
veio ao encontro do galeão, com lanternas verdes e brancas balouçando na proa ao ritmo dos oito remadores.
O mestre do porto se levantou ao lado das lanternas da proa, a 30 metros de distância, e gritou através de uma corneta alto-falante:
– Identifique a embarcação!
– Ganho Dourado, de Tal Verrar – foi o grito de volta da meia-nau do galeão.
– Vão querer atracar?
– Não! São só passageiros, vão sair de bote.
A cabine inferior de popa do Ganho Dourado tinha um forte cheiro de suor e doença. Jean Tannen havia acabado de retornar do convés de cima e perdera parte da tolerância
ao odor, o que fez seu mau humor crescer. Ele jogou uma túnica azul remendada para Locke e cruzou os braços.
– Pelo amor da porra, chegamos. Vamos sair deste maldito navio e voltar para a boa e velha rocha. Vista a maldita túnica; eles estão baixando um bote.
Locke sacudiu a roupa com a mão direita e franziu a testa. Estava sentado na beira de um catre, vestindo apenas os calções, e mais magro e sujo do que Jean jamais
o vira. As costelas se destacavam sob a pele pálida como o madeiramento do casco de um navio inacabado. O cabelo estava escuro, oleoso, comprido e desalinhado de
todos os lados e uma fina camada de barba emoldurava o rosto.
A parte de cima do braço esquerdo era entrecruzada por linhas vermelhas e brilhantes, de ferimentos mal cicatrizados; havia um buraco coberto por casca no antebraço
esquerdo e, abaixo, um pano sujo enrolado no pulso. A mão esquerda era uma confusão de hematomas sumindo. Uma bandagem descolorida cobria parcialmente um ferimento
feio no ombro esquerdo, poucos centímetros acima do coração. As três semanas no mar tinham ajudado muito a reduzir o inchaço nas bochechas, nos lábios e no nariz
quebrado de Locke, mas ele ainda parecia ter tentado beijar uma mula escoiceante. Várias vezes.
– Pode me dar uma mãozinha?
– Não, você pode se virar sozinho. Deveria ter se exercitado esta semana, preparando-se. Nem sempre posso estar aqui, pairando em cima de você feito a porra de uma
fada enfermeira.
– Bom, deixe-me atravessar o seu ombro com a droga de um florete e sacudir, então vamos ver como você vai ficar ansioso para se exercitar.
– Eu também sofri cortes, seu bebê chorão, e fiz exercícios. – Jean levantou sua túnica: acima da curva substancialmente reduzida de sua barriga estava uma longa
cicatriz lívida nas costelas. – Não me importa o quanto dói; você precisa se mexer, caso contrário eles vão sarar contraídos, e aí você vai ficar mesmo na merda.
– É o que você vive me dizendo. – Locke jogou a túnica no chão, junto aos pés descalços. – Mas a não ser que essa roupa ganhe vida ou que você faça as honras, parece
que devo ir para o bote assim.
– O sol está se pondo e vai estar frio lá fora. Mas, se você quer ser idiota, acho que vai assim mesmo.
– Você é um filho da puta, Jean.
– Se você estivesse saudável, eu quebraria seu nariz de novo por causa disso, seu sujeitinho lamuriento...
– Cavalheiros? – A voz abafada de um tripulante atravessou a porta, seguida por uma batida alta. – Trago os cumprimentos do capitão, o bote está pronto.
– Obrigado! – gritou Jean. Em seguida, passou a mão pelo cabelo e suspirou. – Por que me importei em salvar sua vida, afinal? Seria melhor trazer o cadáver do Rei
Cinza. Seria a porra de uma companhia melhor.
– Por favor – pediu Locke enfaticamente, indicando com o braço bom. – Nós podemos chegar a um meio-termo. Eu puxo com meu braço bom e você cuida do lado ruim. Me
tire desse navio e eu começo a fazer os exercícios.
– Já era tempo – falou Jean.
Após mais uma hesitação, abaixou-se para pegar a túnica.
2
A tolerância de Jean aumentou nos dias depois de serem libertados do mundo úmido, fedorento e oscilante do galeão; mesmo para os pagantes, a viagem de longa distância
pelo mar ainda tinha mais em comum com uma sentença de prisão do que com férias.
Locke e Jean converteram os sólons camorris em um punhado de volanis de prata a uma taxa extorsiva, cobrada pelo imediato do Ganho Dourado. O homem argumentou que
isso ainda seria preferível ao prejuízo que teriam com os cambistas da cidade. Com o dinheiro, os Nobres Vigaristas conseguiram um quarto no segundo andar da Lanterna
de Prata, uma estalagem decrépita à beira-mar.
Jean começou imediatamente a procurar uma fonte de rendimentos. Se o submundo de Camorr era um lago profundo, o de Vel Virazzo se tratava de um lago estagnado. Com
facilidade, descobriu as principais quadrilhas do porto e os relacionamentos entre elas. Havia pouca organização em Vel Virazzo e nenhum chefão para estragar as
coisas. Bastaram algumas noites bebendo nas espeluncas certas e ele soube exatamente quem abordar.
Eles se intitulavam Malandros do Bronze e se escondiam num curtume abandonado nas docas do leste da cidade, onde o mar batia contra os pilares de cais apodrecidos
inativos nos últimos vinte anos. À noite, formavam um grupo de ladrões furtivos, assaltantes e trapaceiros. De dia, dormiam, jogavam dados, bebiam a maior parte
dos lucros. Jean chutou a porta deles – apesar de ela estar pendendo frouxa no umbral e não estar trancada – às duas da tarde de um dia ensolarado.
Havia uma dúzia deles, rapazes entre 15 e 20 e poucos anos. O padrão de uma gangue de pequena abrangência. Os que não estavam acordados foram trazidos à consciência
pelos colegas com tapas enquanto Jean caminhava até o centro da área do curtume.
– Boa tarde! – Ele fez uma pequena reverência, apenas com o pescoço, depois abriu os braços. – Quem é o maior filho da puta, o mais cruel aqui? Quem é o melhor brigão
dos Malandros do Bronze?
Após alguns segundos de silêncio e olhares surpresos, um jovem relativamente atarracado, com nariz torto e cabeça raspada, saltou de uma escada para o piso empoeirado,
andou até Jean e deu um risinho.
– Você está olhando para ele.
Jean assentiu, sorriu, depois deu um telefone no rapaz que cambaleou. Jean o segurou com força, cruzando os dedos atrás de sua nuca e puxou a cabeça do valentão
para baixo com força e deu-lhe três joelhadas. Enfim, soltou-o e o garoto se esparramou de costas no piso do curtume, sem sentidos como uma peça de carne-seca fria.
– Errado – disse Jean, nem ao menos alterando a respiração. – Eu sou o filho da puta mais cruel aqui. Eu sou o maior brigão dos Malandros do Bronze.
– Você não é dos Malandros do Bronze, babaca – gritou outro garoto, que mesmo assim tinha um ar de inquietação espantada no rosto.
– Vamos matar esse merda!
Um terceiro rapaz, usando um velho chapéu de quatro bicos e vários colares feitos à mão, com pequenos ossos enfiados, saltou na direção de Jean com um punhal na
mão direita. Quando o golpe veio, Jean deu um passo atrás, pegou o garoto pelo pulso e bateu com o outro punho em seu rosto. O moleque cuspiu sangue e tentou piscar
para afastar as lágrimas de dor e Jean chutou-o na virilha, depois passou-lhe uma rasteira. O punhal do adversário apareceu na mão esquerda de Jean como por magia
e ele a girou lentamente.
– Sem dúvida vocês, garotos, sabem fazer somas simples – falou ele. – Um mais um é igual a “não mexam comigo, porra”.
O garoto que o atacara soluçou e vomitou.
– Vamos falar de tributos. – Jean foi andando pelo perímetro do recinto, chutando algumas garrafas de vinho vazias; havia dúzias delas espalhadas por ali. – Parece
que vocês ganham dinheiro suficiente para comer e beber e isso é bom. Vou querer quarenta por cento de tudo, em metal frio. Não quero mercadorias. Vocês vão pagar
seus tributos de dois em dois dias, a começar por hoje. Abram as bolsas e virem os bolsos.
– Porra nenhuma! – bradou um rapaz junto à parede mais distante do curtume com os braços cruzados.
Jean foi em direção a ele.
– Não gostou? Então me bata.
– Ahn...
– Você não acha justo? Você bate em pessoas para viver, não é? Feche o punho, filho.
– Ahn...
Jean o agarrou, girou, segurou pelo pescoço e pelo cós do calção e acertou-o de cabeça várias vezes contra a parede de madeira. O garoto bateu no chão com um grunhido
e não conseguiu se defender enquanto Jean revistava sua túnica e se levantava com uma pequena bolsa de couro.
– Penalidade extra por danificar a parede do meu curtume com a cabeça. – Jean esvaziou o conteúdo dentro da sua bolsa, depois jogou o pano vazio perto do garoto.
– Agora, todos vocês venham aqui e façam fila. Façam fila! Quatro décimos não é demais. Sejam honestos, ou vocês podem deduzir o que vou fazer.
– Quem diabos é você? – perguntou o primeiro rapaz que se aproximou de Jean com moedas na mão.
– Vocês podem me chamar...
O garoto fez surgir uma adaga na outra mão, largou as moedas e deu uma estocada. Jean bloqueou o braço estendido do adversário empurrando-o para longe e acertou
sua barriga com o ombro direito ao mesmo tempo que agarrava seu tronco. Levantou-o sem esforço e o jogou por cima de suas costas, fazendo-o acertar o piso quase
de cara ao lado do último Malandro que havia puxado uma arma contra ele.
– Callas. Tavrin Callas. – Jean sorriu. – Foi uma boa ideia me atacar enquanto eu falava. Isso, pelo menos, eu tenho que respeitar. – Jean deu vários passos atrás
para bloquear a porta. – Mas parece que o conceito filosófico sutil que estou tentando transmitir é demais para a cabeça de vocês. Será que vou precisar mesmo chutar
a bunda de todo mundo para vocês entenderem?
Houve um coro de murmúrios e um considerável número de garotos balançou a cabeça, ainda que com relutância.
– Ótimo.
Dessa forma, a extorsão aconteceu com tranquilidade; Jean terminou com uma quantidade satisfatória de moedas, sem dúvida o bastante para ficar abrigado mais uma
semana com Locke na estalagem.
– Estou indo, então. Descansem e trabalhem bem esta noite. Vou voltar amanhã, às duas da tarde. Podemos começar a falar sobre como as coisas vão ser agora que sou
o novo chefe dos Malandros do Bronze.
3
Naturalmente, todos se armaram e, às duas da tarde do dia seguinte, esperavam emboscar Jean.
Para surpresa do bando, ele entrou no velho curtume com uma policial de Vel Virazzo. A mulher era alta e musculosa, vestia um casaco ameixa reforçado com forro de
fina malha de ferro; tinha dragonas de bronze nos ombros e cabelo castanho comprido puxado para trás num apertado rabo de espadachim, com anéis de bronze. Mais quatro
policiais se posicionaram do lado de fora da porta. Trajavam casacos semelhantes, mas também carregavam porretes compridos e laqueados e pesados escudos de madeira
pendurados às costas.
– Olá, rapazes – cumprimentou Jean. Por todo o curtume, adagas, punhais, garrafas quebradas e porretes foram desaparecendo das vistas. – Tenho certeza de que vocês
reconhecem a chefe de polícia Levasto e seus homens.
– Olá, rapazes – disse ela despreocupadamente, enfiando os polegares no cinturão de couro da espada. De todos os policiais, era a única que usava um alfanje numa
bainha preta e simples.
– Levasto é uma mulher sensata e comanda homens sensatos. Como eles gostam de dinheiro, vou começar a fornecê-lo, em consideração à dureza e ao tédio de seus deveres.
Se por acaso algo me acontecer, bom, eles perderão uma nova fonte daquilo de que mais gostam.
– Seria de partir o coração – completou a chefe de polícia.
– E teria consequências – observou Jean.
A mulher pisou numa garrafa de vinho vazia, despedaçando-a.
– De partir o coração – repetiu com um suspiro.
– Tenho certeza de que todos vocês são rapazes inteligentes – continuou Jean. – Tenho certeza de que todos gostaram da visita da chefe de polícia.
– Eu não gostaria de repeti-la – falou Levasto com um sorrisinho.
Virou-se lentamente e foi embora. O som de seu esquadrão marchando para longe logo sumiu à distância.
Os Malandros do Bronze olharam para Jean, carrancudos. Os quatro rapazes mais próximos da porta, com as mãos às costas, eram os que tinham hematomas pretos e verdes,
do dia anterior.
– Por que você está fazendo isso, porra? – resmungou um deles.
– Não sou seu inimigo, rapazes. Acreditem ou não, acho que vão apreciar o que posso fazer por vocês. Agora calem a boca e escutem. Primeiro – Jean levantou a voz
para todos ouvirem –, eu gostaria de dizer que é triste pensar no tempo em que vocês ficaram por aí sem colocar a guarda citadina na jogada. Eles estavam ansiosos
por isso. Como cachorrinhos tristes e abandonados.
Jean estava usando um colete preto e comprido sobre uma túnica branca manchada. Levou a mão direita às costas, por baixo do colete.
– Mas pelo menos o fato de que o primeiro pensamento de vocês foi de me matar mostra algum espírito. Vejamos esses brinquedos de novo. Mostrem.
Constrangidos, os garotos sacaram as armas e Jean as inspecionou com um movimento rápido de cabeça.
– Hummmm. Aço fraco, garrafas quebradas, porretes pequenos, um martelo... Rapazes, o problema é que vocês acham que isso serve de ameaça – falou Jean. – Mas apenas
me ofendem – completou, já enfiando as mãos por baixo do colete. Num borrão, ele lançou as duas machadinhas.
Um par de odres com vinho pela metade pendurados em ganchos na parede mais distante explodiu num jorro de vinho tinto barato verrari que molhou vários dos garotos.
As machadinhas atravessaram os odres bem no centro e se cravaram na madeira.
– Isso foi uma ameaça – afirmou, estalando as juntas dos dedos. – E é por isso que agora vocês trabalham para mim. Mais alguém quer questionar?
Os rapazes mais próximos dos odres se esgueiraram para trás no momento que Jean se aproximou para arrancar as armas da parede.
– Foi o que achei. Mas não levem a mal: isso funciona a favor de vocês também. Um chefe precisa proteger o que é seu se quiser continuar como chefe. Se alguém que
não for eu tentar prejudicar vocês, me digam. Eu faço uma visita à pessoa. Esse é o meu serviço.
No dia seguinte, os Malandros do Bronze se enfileiraram de má vontade para pagar seus tributos. Enquanto jogava as moedas de cobre nas mãos de Jean, o último da
fila murmurou:
– Você disse que ajudaria se alguém atrapalhasse a gente. Uns Malandros foram sacaneados hoje de manhã pelos Mangas Pretas, lá do lado norte.
Jean assentiu e enfiou seus ganhos no bolso do casaco.
Na noite seguinte, depois de sondar, foi andando petulante até uma espelunca no lado norte chamada Marco do Copo Transbordante. A única coisa que transbordava na
taberna eram bandidos, sete ou oito, todos com panos pretos sujos amarrados em volta dos braços das jaquetas e túnicas. Eram os únicos fregueses e levantaram os
olhos com suspeita quando ele fechou a porta e empurrou cuidadosamente o trinco de madeira.
– Boa noite! – Jean sorriu e estalou os nós dos dedos. – Estou curioso. Quem é o maior filho da puta, o mais cruel dos Mangas Pretas?
No dia seguinte, ele recolheu os tributos dos Malandros do Bronze com os nós dos dedos da mão direita envoltos em um unguento. Pela primeira vez, a maioria dos garotos
pagou com entusiasmo. Alguns até começaram a chamá-lo de “Tav”.
4
Mas Locke não exercitava os membros feridos como prometera.
Seu parco suprimento de moedas era usado para o vinho; seu veneno preferido era uma porcaria local, particularmente barata. Mais roxo do que vermelho, com um quê
de terebintina, o cheiro da bebida logo saturou o quarto que ele dividia com Jean na Lanterna de Prata. Locke o tomava sempre “para a dor”. Uma noite Jean observou
que a dor dele devia estar aumentando com a passagem dos dias, porque as garrafas e os odres vazios se multiplicavam. Eles discutiam – ou melhor, reacendiam a discussão
constante – e Jean saía pisando forte para a noite.
Naqueles primeiros tempos em Vel Virazzo, em algumas noites Locke descia com cuidado a escada até o salão, onde jogava algumas partidas arbitrárias de cartas com
moradores da cidade. Enganava-os, de forma melancólica, com qualquer truque de prestidigitação que conseguisse fazer apenas com a mão em bom estado. Logo eles começaram
a se afastar de seus jogos e seu mau comportamento e ele voltou ao segundo andar, para beber sozinho em silêncio. A alimentação e a limpeza continuavam sendo pensamentos
secundários. Jean tentou trazer um sanguessuga de cachorro para examinar os ferimentos de Locke, mas o amigo expulsou o sujeito com um jorro de palavrões que fez
ruborizar Jean, cuja fala podia ser inflamada a ponto de acender lenha molhada.
– Do seu amigo não posso encontrar nenhum traço – afirmou o homem. – Ele parece ter sido comido por um daqueles macacos magros e pelados das ilhas de Okanti: tudo
o que faz é berrar comigo. O que aconteceu com o último sanguessuga que deu uma olhada nele?
– Nós o deixamos em Talisham – respondeu Jean. – Infelizmente, a atitude do meu amigo convenceu-o a apressar o fim de sua viagem pelo mar.
– Bom, eu faria o mesmo. Em um gesto de profunda solidariedade, não vou cobrar a consulta. Guarde a sua prata: você vai precisar dela para o vinho. Ou para o veneno.
Jean se pegava passando cada vez mais tempo com os Malandros do Bronze, apenas para evitar Locke. Uma semana se passou, depois outra. “Tavrin Callas” estava se tornando
uma figura conhecida e solidamente respeitada na fraternidade dos patifes de Vel Virazzo. As discussões de Jean com Locke se tornaram mais repetitivas, mais frustrantes,
mais sem sentido. Jean reconhecia instintivamente o arco descendente de autopiedade terminal, mas nunca havia sonhado que teria de arrastar Locke, logo ele, para
fora daquilo. Evitava o problema treinando os Malandros.
A princípio, dava só algumas sugestões: como usar sinais simples de mão quando estavam perto de estranhos, como distrair as pessoas antes de bater suas carteiras,
como identificar pedras preciosas verdadeiras e evitar roubar imitações. Começou a receber respeitosos pedidos para mostrar “uma ou duas coisas” dos truques que
ele havia usado para derrubar quatro Malandros. Os primeiros a solicitarem foram os derrotados.
Uma semana depois, a alquimia se deu com força total. Meia dúzia de rapazes rolava pela poeira do piso do curtume enquanto Jean os treinava em todos os pontos essenciais
das lutas corpo a corpo: usar o adversário como alavanca, ter iniciativa e percepção da situação. Demonstrou as habilidades, tanto misericordiosas quanto cruéis,
que o haviam mantido vivo após metade de uma vida passada argumentando com os punhos e as machadinhas.
Sob a influência de Jean, os garotos se interessaram mais pela condição do velho curtume. Ele os encorajou a ver o lugar como um quartel-general, o que exigia alguns
confortos. Lanternas alquímicas apareceram, penduradas nos caibros. Papel impermeável novo foi pregado sobre as janelas quebradas e os buracos do telhado foram tapados
com tábuas e palha. Os rapazes roubavam almofadas, tapetes baratos e prateleiras.
– Encontrem uma pedra alquímica para mim – disse Jean. – Roubem uma grande e eu ensino a vocês, seus pobres coitados, a cozinhar também. Vocês não são capazes de
superar os cozinheiros de Camorr; até os ladrões de lá são chefes de cozinha. Eu tive anos de treino.
Ele observou o curtume cada vez mais bem-cuidado, o grupo cada vez mais disposto de ladrões jovens, e falou consigo mesmo:
– Todos nós tivemos...
Tentara fazer Locke se interessar pelo projeto dos Malandros do Bronze, mas foi rechaçado. Naquela noite, tentou de novo, falando do ganho noturno cada vez maior,
do quartel-general, das dicas e do treinamento que estava dando. Locke o encarou por longo tempo, sentado na cama com um copo rachado, vinho roxo pela metade.
– Bom... Bom, dá para ver que você encontrou substitutos, não foi?
Jean ficou pasmo demais para responder.
Locke esvaziou o copo e prosseguiu, a voz monótona e sem humor:
– Sem dúvida foi rápido. Mais rápido do que eu esperava. Uma nova gangue, um esconderijo novo. E não é de vidro, mas provavelmente você pode resolver isso se procurar
por tempo suficiente. Então cá está você, brincando de Padre Correntes, acendendo de novo um fogo sob aquela alegre chaleira cheia de bosta.
Jean saltou pelo quarto, explosivo, e arrancou o copo da mão de Locke com um tapa. O copo bateu na parede e cobriu metade do recinto com cacos brilhantes. Mas Locke
nem piscou: ele se recostou em seus travesseiros manchados de suor e suspirou.
– Já tem algum par de gêmeos? E que tal uma nova Sabeta? Um novo eu?
– Vá para o inferno! – Jean apertou os punhos até sentir o sangue quente, pegajoso, brotar sob as unhas. – Vá para o inferno, Locke! Eu não salvei sua maldita vida
para você ficar enfiado neste pardieiro desgraçado e fingir que inventou o sofrimento. Você não é tão especial, porra!
– Então por que me salvou, São Jean?
– Nunca ouvi uma pergunta mais idiota...
– POR QUÊ? – Locke se levantou da cama e sacudiu os punhos para Jean; o efeito seria cômico se seu olhar não fosse assassino. – Eu disse para você me deixar! Será
que devo agradecer por isso? Por este maldito quarto?
– Eu não transformei este quarto no seu mundo inteiro, Locke. Você fez isso.
– Foi para isso que eu fui salvo? Três semanas enjoado no mar e agora Vel Virazzo, o cu de Tal Verrar? Isto é uma piada dos deuses e eu sou o ponto alto. Teria sido
melhor morrer com o Rei Cinza. Eu disse para você me deixar lá, porra! – E acrescentou num sussurro: – E eu sinto falta deles. Pelos deuses, como sinto. Eles estão
mortos por minha culpa. Não consigo... não consigo... suportar...
– Nem ouse – rosnou Jean.
Ele empurrou com força o peito de Locke, que caiu de costas na cama e bateu na parede, fazendo chacoalhar os postigos da janela.
– Não ouse usá-los como desculpa para o que você está fazendo consigo mesmo! Não ouse, porra.
Sem mais uma palavra, Jean virou-se e saiu do quarto batendo a porta.
5
Locke se deixou afundar na cama, pôs o rosto nas mãos e ouviu os rangidos dos passos de Jean se afastando no corredor lá fora.
Para sua surpresa, os rangidos retornaram minutos depois, cada vez mais altos. Jean empurrou a porta bruscamente, o rosto sério, e marchou direto até Locke segurando
um grande balde de madeira cheio d’água. Sem aviso, jogou todo o líquido em cima do amigo, que caiu de costas contra a parede outra vez, ofegando de surpresa. Ele
sacudiu a cabeça feito um cachorro e afastou o cabelo encharcado dos olhos.
– Jean, você perdeu a porra da...
– Você precisava tomar um banho. Estava coberto de autopiedade.
Em seguida, atirou o balde no chão e andou pelo quarto, pegando qualquer garrafa ou odre de vinho que ainda contivesse líquido. Terminou a tarefa antes que Locke
percebesse o que ele estava fazendo; depois recolheu a bolsa de moedas de Locke na mesinha e colocou no lugar uma fina carteira de couro.
– Ei, Jean, Jean, você não pode... Isso é meu!
– Antigamente era “nosso” – retrucou Jean com frieza. – Eu gostava mais assim.
Locke tentou sair da cama, mas Jean o empurrou de volta sem esforço. Saiu intempestivamente e fechou a porta. Houve um estalo curioso e mais nada, nem mesmo o ranger
das tábuas do piso; Jean estava esperando do outro lado.
Rosnando, Locke atravessou o quarto e tentou abrir a porta, mas ela permaneceu firme. Franziu a testa, perplexo, pois o trinco ficava do seu lado e não estava fechado.
Sacudiu a madeira mais algumas vezes.
– É curioso que os quartos do Lanterna de Prata possam ser trancados por fora com uma chave especial que só o estalajadeiro possui – comentou Jean. – Para o caso
de ele querer manter um hóspede indisciplinado sob controle enquanto chama a guarda.
– Jean, abra a porra dessa porta!
– Não. Abra você.
– Não posso! Você mesmo disse que está com a chave especial!
– O Locke Lamora que eu conhecia cuspiria em você. Sacerdote do Guardião Torto. Garrista dos Nobres Vigaristas. Discípulo do Padre Correntes. Irmão de Calo, Galdo
e Pulga! Diga: o que Sabeta pensaria de você?
– Seu... seu desgraçado! Abra essa porta!
– Olhe para você, Locke. Você é a porra de um miserável. Abra você mesmo.
– Você. Está. Com. A. Porradamerdadachave.
– Você sabe enfeitiçar uma fechadura, não é? Eu deixei algumas gazuas na mesa. Se quer seu vinho de volta, abra você mesmo a porcaria da porta.
– Seu filho da puta!
– Minha mãe era uma santa. A joia mais doce que Camorr já produziu. A cidade não a merecia. Posso esperar aqui a noite toda, você sabe. Vai ser fácil: estou com
todo o seu vinho e o seu dinheiro.
– Gaaaaah!
Locke agarrou a carteira de couro na mesa. Mexeu os dedos da mão boa, a direita, e olhou para a esquerda em dúvida; o pulso quebrado estava se curando, mas doía
constantemente.
Curvou-se sobre o mecanismo da fechadura, fez uma carranca e começou a trabalhar. Ficou surpreso ao ver a rapidez com que os músculos das costas começaram a protestar
contra a postura desconfortável. Parou por tempo suficiente para puxar a cadeira de modo a trabalhar sentado.
Enquanto as gazuas chacoalhavam dentro da fechadura e ele mordia a língua, concentrado, ouviu rangidos pesados do lado de fora e uma série de pancadas fortes.
– Jean?
– Ainda estou aqui, Locke – respondeu Jean, agora animado. – Pelos deuses, você está demorando um bocado. Ah, desculpe, você ao menos começou?
– Quando eu abrir essa porta, você vai morrer, Jean!
– Quando você abrir essa porta? Então ainda tenho muitos anos de vida.
Locke redobrou a concentração, voltando ao ritmo que havia aprendido em tantas horas laboriosas na infância: movendo as gazuas ligeiramente, buscando as sensações.
Os rangidos e as pancadas haviam recomeçado do outro lado da porta! O que Jean estava fazendo agora? Locke fechou os olhos e tentou bloquear o som... tentou deixar
o mundo se estreitar até apenas a mensagem das gazuas contra seus dedos...
O mecanismo deu um estalo. Locke se levantou cambaleando, jubiloso e em fúria, e abriu a porta com violência.
Jean havia sumido e o corredor estreito do lado de fora estava atulhado, de parede a parede, com caixotes e barris – uma barreira intransponível a cerca de um metro
do rosto de Locke.
– Jean, que diabo é isso?
– Desculpe, Locke. – Pela voz, dava para saber que Jean estava logo atrás da parede improvisada. – Peguei algumas coisas emprestadas na despensa do estalajadeiro
e consegui que alguns rapazes que você passou para trás no carteado semana passada me ajudassem a carregar tudo aqui para cima.
Locke deu um belo empurrão na parede, mas ela não se moveu; provavelmente Jean estava colocando todo o peso contra ela. Houve um coro de risos abafado em algum lugar
do outro lado, provavelmente no salão. Locke trincou os dentes e bateu com a palma da mão boa num barril.
– Que raios está acontecendo com você, Jean? Você está fazendo um teatrinho ridículo!
– Semana passada eu disse ao estalajadeiro que você era um Dom camorri que viajava incógnito, tentando se recuperar de um surto de loucura. Agora mesmo coloquei
uma boa quantidade de prata sobre o balcão. Você lembra o que é prata, não lembra? Nós costumávamos roubá-la das pessoas, quando você era uma companhia agradável.
– Isso já deixou de ser engraçado, Jean! Devolva a droga do meu vinho!
– É uma droga mesmo. E acho que, se você quiser pegá-lo, vai ter de sair pela janela.
Locke deu um passo atrás e olhou a parede improvisada, perplexo.
– Jean, você não pode estar falando sério.
– Nunca falei mais sério.
– Vá para o inferno. Vá para o inferno! Não posso pular uma maldita janela. Meu pulso...
– Você lutou contra o Rei Cinza com o braço quase decepado. Saiu por uma janela a 150 metros de altura na Pontacorvo. E aqui está, a dois andares do chão, impotente
feito um gatinho num barril de gordura. Bebê chorão. Amarelão.
– Você está tentando me provocar.
– Não brinca! Você é um gênio.
Locke voltou para o quarto pisando forte, soltando fogo pelas ventas. Olhou a janela fechada e voltou para a parede de Jean.
– Por favor, me deixe sair – pediu o mais calmamente possível. – Engoli o seu argumento.
– Eu enfiaria esse argumento pela sua goela com um espeto de aço em brasa. Por que está falando comigo quando deveria estar pulando pela janela?
– Desgraçado!
De volta ao quarto, Locke andou de um lado para o outro furiosamente. Balançou os braços, testando-os; os cortes no esquerdo doíam e o ferimento profundo no ombro
ainda provocava pontadas cruéis. O sofrido pulso esquerdo talvez servisse. Com ou sem dor... Ele fechou o punho da mão esquerda, encarou-a, depois fitou a janela
com os olhos semicerrados.
– Foda-se. Vou mostrar umas coisinhas a você, seu filho de um maldito mercador de seda...
Locke rasgou a roupa de cama, amarrando as extremidades do lençol com as dos cobertores, o que lhe provocou pontadas nas juntas. A dor só servia para impulsioná-lo.
Apertou o último nó, abriu os postigos e jogou a corda improvisada pela janela. Amarrou a ponta à cama. Não era um móvel lá muito robusto, mas Locke também já não
pesava tanto assim.
Passou pela janela.
Vel Virazzo era uma cidade antiga de edificações baixas; as impressões de Locke, pendurado ali, dois andares acima da rua coberta por uma névoa fraca, vinham em
clarões. Construções de teto plano, meio arruinadas, feitas de pedra e reboco... velas enroladas em mastros pretos no porto... luar reluzindo na água escura... luzes
vermelhas ardendo sobre pináculos de vidro, recuando em linha em direção ao horizonte. Locke fechou os olhos, agarrou-se aos lençóis e se conteve para não vomitar.
Parecia mais fácil apenas deslizar para baixo; fez isso aos trancos e, quando as palmas das mãos arderam com o atrito, ele resolveu parar. Desceu 3 metros... 6...
equilibrou-se precariamente na verga superior da janela do salão no térreo e ofegou algumas vezes antes de continuar. Por mais que a noite estivesse quente, ele
sentia arrepios por estar encharcado.
A última tira do último lençol terminava 2 metros acima do chão. Locke deslizou para baixo o máximo que pôde, depois soltou-se. Seus calcanhares bateram com força
nas pedras do calçamento e ele encontrou Jean já o esperando, com uma capa cinza barata nas mãos. Antes que Locke pudesse se mexer, Jean jogou a roupa em volta de
seus ombros.
– Seu filho da puta! – gritou Locke, enrolando a capa no corpo com as duas mãos. – Seu filho da puta com alma de cobra e mente suja! Espero que um tubarão tente
chupar o seu pau!
– Ora, mestre Lamora, olhe para o senhor: arrombando uma fechadura, descendo por uma janela. Quase como se já tivesse sido um ladrão.
– Eu já cometia crimes grandiosos quando você ainda mamava no colo da sua mãe!
– E eu venho cometendo crimes grandiosos enquanto você fica emburrado no quarto, bebendo até perder as habilidades.
– Eu sou o melhor ladrão de Vel Virazzo – resmungou Locke. – Bêbado ou sóbrio, acordado ou dormindo, e você sabe muito bem.
– Antigamente eu poderia acreditar nisso. Mas esse era um homem que eu conhecia em Camorr e já faz um tempo que ele não está comigo.
– Que se dane! – gritou Locke, se aproximando de Jean e lhe dando um soco na barriga.
Mais surpreso do que dolorido, Jean empurrou-o com força. Locke voou para trás, a capa girando enquanto ele tentava manter o equilíbrio, até que colidiu com um transeunte.
– Olha onde pisa, porra!
O estranho, um homem de meia-idade com um comprido casaco laranja e as roupas afetadas de escriturário ou escrivão, lutou por alguns segundos com Locke, que o agarrou
em busca de apoio.
– Mil perdões – desculpou-se Locke. – Mil perdões, senhor. Meu amigo e eu estávamos apenas tendo uma discussão. A culpa é toda minha.
– Claro que é – reagiu o estranho, enfim conseguindo arrancar Locke das lapelas de seu casaco e empurrando-o. – Seu hálito parece um barril de vinho! Maldito camorri.
Locke ficou olhando até o homem se distanciar 20 ou 30 metros, então se voltou para Jean, balançando uma bolsinha de couro preto no ar à sua frente. Ela tilintava
com um bom suprimento de moedas pesadas.
– Rá! O que diz disso, hein?
– Foi uma reles brincadeira de criança. Não significa nada.
– Brincadeira de criança? Morra gritando, Jean, isso foi...
– Você está nojento. Está mais sujo do que um órfão do Morro das Sombras. Perdeu peso... não sei como é possível você ter ficado mais magro. Não fez exercícios para
melhorar os ferimentos nem deixou que alguém cuidasse deles por você. Estava enfurnado num quarto, deixando-se enferrujar, e está bêbado há duas semanas seguidas.
Você não é mais o que era e a culpa é sua.
– Certo. – Locke fez cara feia para Jean, enfiou a bolsa num compartimento da túnica e ajeitou a capa nos ombros. – Você exige uma demonstração. Ótimo. Volte para
dentro, remova sua parede idiota e me espere no quarto. Retorno em algumas horas.
– Eu...
Mas Locke já havia coberto a cabeça com o capuz e começado a andar pela rua, pela noite quente de Val Virazzo.
6
Jean tirou a barreira do corredor do terceiro andar, deixou mais algumas moedas da bolsa de Locke com um perplexo estalajadeiro e andou pelo quarto, permitindo que
parte do fedor do ambiente fechado se dissipasse pela janela aberta. Pensando melhor, desceu ao bar e voltou com uma garrafa de vidro cheia d’água.
Estava andando de um lado para o outro, preocupado, quando Locke voltou cerca de quatro horas mais tarde, logo depois das três da madrugada. Ele pousou um enorme
cesto de vime na mesa, tirou a capa, pegou o balde que Jean usara para encharcá-lo e vomitou nele.
– Peço perdão – murmurou ao terminar. Estava vermelho e ofegante, tão molhado como antes, mas agora de suor quente. – O vinho não saiu todo da minha cabeça... e
meu fôlego quase me abandonou.
Jean lhe entregou a jarra e Locke bebeu despudoradamente, como um cavalo num cocho. Jean ajudou-o a se sentar na cadeira. Durante alguns segundos, Locke ficou em
silêncio, então, de súbito, pareceu notar a mão de Jean em seu ombro e se encolheu.
– Cá... estamos... então – falou, arfando. – Está vendo o que acontece quando você me provoca? Acho que teremos de fugir da cidade.
– O que... o que você fez?
Locke tirou a tampa do cesto; era do tipo usado comumente por vendedores para levar pequenas quantidades de mercadoria para uma feira. Dentro havia uma variedade
prodigiosa de coisas e Locke começou a descrevê-las enquanto as pegava e mostrava a Jean.
– O que é isso? Ora, são várias bolsinhas... uma, duas, três, quatro, todas arrancadas de cavalheiros sóbrios em ruas abertas. Aqui está uma faca, duas garrafas
de vinho, uma caneca de estanho... meio amassada, mas o metal ainda é bom. Um camafeu, três broches de ouro, dois brincos. Brincos, mestre Tannen, arrancados de
orelhas, e eu gostaria de ver você tentando fazer isso. Aqui está uma pequena peça de seda boa, uma caixa de doces, dois pães, bem crocantes, com todos os temperos
assados juntos, como você tanto gosta. E agora, especialmente para a edificação de certo filho da puta pessimista que gosta de violar a paz e cujo nome não será
citado...
Locke ergueu um colar brilhante, uma trança de ouro e prata com um pesado medalhão de ouro cravejado de safiras no padrão estilizado de uma flor. As pedras faiscavam
feito fogo azul mesmo à luz do único lampião fraco do quarto.
– É uma bela peça – elogiou Jean, esquecendo-se brevemente de ficar chateado. – Você não roubou isso na rua.
– Não. – Locke tomou outro grande gole da água morna da garrafa. – Tirei do pescoço da amante do governador.
– Você não pode estar falando sério.
– Na mansão do governador.
– É a coisa mais...
– Na cama do governador.
– Lunático desgraçado!
– Com o governador dormindo ao lado dela.
O silêncio da noite foi rompido pelo trinado distante de um apito, o som tradicional de alerta dos guardas citadinos em todo lugar. Vários outros apitos se juntaram
àquele alguns instantes depois.
– É possível que eu tenha sido um pouquinho ousado demais – continuou Locke com um sorriso constrangido.
Jean sentou-se na cama e passou as mãos pelo cabelo.
– Locke, durante as últimas semanas, fiz de Tavrin Callas a melhor coisa que já apareceu no triste bandozinho de Pessoas Certas desta cidade em séculos! Quando os
guardas começarem a fazer perguntas, alguém vai apontar para mim... e alguém vai mencionar o tempo todo que eu passei aqui com você... e se tentarmos passar adiante
um pedaço de metal assim num lugar tão pequeno...
– Como eu disse, acho que teremos de fugir da cidade.
– Fugir da cidade? – Jean deu um salto e apontou um dedo acusador para Locke. – Você estragou semanas de trabalho! Eu estava treinando os Malandros: sinais, truques,
despistes, lutas, a coisa toda! Eu ia... eu ia começar a ensinar a cozinhar!
– Aahh, isso é sério. Não iria demorar muito para o pedido de casamento, certo?
– Droga, isso é sério! Eu estava construindo algo! Estava trabalhando enquanto você passava o tempo aqui dentro soluçando, resmungando e mijando.
– Foi você que acendeu uma fogueira embaixo de mim porque queria me ver dançar. Agora eu dancei e acho que ganhei a disputa. Vai pedir desculpa?
– Desculpa? Você é que tem sido um merdinha insuportável! Deixar você viver já é um pedido de desculpas suficiente! Todo o meu trabalho...
– Capa de Vel Virazzo? É assim que você se via, Jean? Outro Barsavi?
– Outro qualquer coisa. Há coisas piores para ser. Capa Lamora, por exemplo, Senhor de Um Quarto Fedido. Não vou ser um maldito derrotado, Locke. Sou um ladrão honesto
e farei o que for preciso para manter uma mesa posta e um teto sobre nossa cabeça!
– Então vamos a algum lugar, voltar para algo lucrativo de verdade. Quer um trabalho de patifaria honesto? Ótimo. Vamos fisgar um peixe grande como fazíamos em Camorr.
Você queria me ver roubando, então vamos sair e roubar!
– Mas Tavrin Callas...
– Ele já morreu uma vez. Buscando os mistérios de Aza Guilla, lembra? Deixe-o buscar de novo.
– Maldição. – Jean foi até a janela e deu uma olhada para fora; apitos soavam, vindos de várias direções. – Pode demorar alguns dias para arranjarmos vaga num navio
e nós não vamos sair por terra com o que você roubou: eles vão verificar todo mundo nos portões, provavelmente durante uma ou duas semanas.
– Jean, agora você está me desapontando. Portões? Navios? Faça-me o favor. Estamos falando de nós. Poderíamos contrabandear uma vaca viva, passando por cada policial
desta cidade, ao meio-dia. Pelados.
– Locke? Locke Lamora? – Jean esfregou os olhos de forma exagerada. – Ora, onde você esteve durante todas essas semanas? E eu aqui, pensando que estava morando com
um escroto egoísta que...
– Certo. Ótimo. Rá. É, talvez eu tenha merecido esse chute na cara. Mas estou falando sério, sair daqui é fácil como cozinhar. Vá até o estalajadeiro. Acorde-o e
jogue mais um pouco de prata para dele. Há muita nessas bolsas. Eu sou um Dom camorri maluco, certo? Diga a ele que tive um acesso de loucura. Me arranje mais roupas
sujas, algumas maçãs, uma pedra alquímica e um pote de ferro preto cheio de água.
– Maçãs? – Jean coçou a barba. – Maçãs? Está falando... do truque do purê de maçã?
– Isso mesmo. Me arrume essas coisas e eu vou cozinhar e poderemos sair daqui ao amanhecer.
– Ahn... – Jean abriu a porta, saiu para o corredor e se virou. – Vou retirar parte do que disse antes: você ainda pode ser um filho da puta mentiroso, trapaceiro,
baixo, ganancioso, avarento, ardiloso e batedor de carteiras.
– Obrigado – agradeceu Locke.
7
Uma garoa caía fraca quando eles passaram pelo portão norte de Vel Virazzo algumas horas depois. O amanhecer era uma linha aquosa de amarelo no horizonte leste,
sob nuvens rápidas cor de carvão. Soldados com casacas roxas olhavam com repulsa de cima da muralha de 5 metros; a pesada portinhola de madeira do portão se fechou
atrás deles como se também estivesse satisfeita por se livrar dos dois.
Locke e Jean vestiam roupas esfarrapadas e estavam enrolados em retalhos de uma dúzia de lençóis rasgados e pedaços de roupa, fazendo as vezes de bandagens. Uma
fina camada de purê de maçã cozido, ainda quente, vazava por algumas delas, nos braços e no peito, e estava emplastrada prodigamente nos rostos. Andar usando uma
camada daquela coisa por baixo de panos era nauseante, mas não havia disfarce melhor em todo o mundo.
A pele-solta era uma doença dolorosa e incurável e os que sofriam dela eram menos tolerados ainda que os leprosos. Se Locke e Jean tivessem se aproximado de fora
dos muros de Vel Virazzo, jamais teriam permissão para entrar. Os guardas nem se interessaram em saber como haviam entrado na cidade; quase tropeçaram nos próprios
pés na pressa de vê-los partir.
O exterior da cidade era um local de aparência infeliz: alguns quarteirões de construções meio desmoronadas, de um e dois andares, enfeitados aqui e ali com as improvisadas
torres de moinhos de vento usadas para mover foles de forjas e fornos. A fumaça desenhava linhas cinzentas e sinuosas no ar úmido e o trovão ribombava à distância.
Mais além, onde as pedras da velha Estrada do Trono Terim se transformava numa trilha de terra molhada, Locke podia ver uma região de mato baixo, interrompida aqui
e ali por penhascos rochosos e pilhas de entulho.
As moedas deles – e todos os pequenos bens que valiam a pena ser transportados – estavam numa bolsinha enfiada sob as roupas de Jean, onde nenhum guarda ousaria
procurar, nem se houvesse um superior atrás dele com uma espada na mão e dando ordem de fazer isso sob pena de morte.
– Pelos deuses – murmurou Locke enquanto caminhavam ao lado da estrada. – Estou ficando cansado demais para pensar direito. Realmente perdi a condição física.
– Bom, você vai fazer alguns exercícios nos próximos dias, goste ou não. Como estão os ferimentos?
– Têm coçado. Essa porcaria de purê não é muito boa para eles, acho. Mesmo assim, não estão ruins como antes. Algumas horas de movimento parecem fazer algum bem.
– Sábio com relação a isso é Jean Tannen. Mais sábio do que a maioria, especialmente do que aqueles chamados Lamora.
– Fecha essa boca gorda, feia e indiscutivelmente sábia. Hummmm. Olhe aqueles idiotas correndo para longe de nós.
– Você faria outra coisa se visse dois sujeitos atacados por pele-solta na beira da estrada?
– É. Acho que não. Malditos pés doloridos.
– Vamos nos afastar uns 2 quilômetros da cidade, depois encontraremos um lugar para descansar. Assim que nos afastarmos algumas léguas, vamos poder tirar essa gosma
e posar de novo como viajantes respeitáveis. Alguma ideia do lugar em que você quer investir?
– Eu achava que era óbvio – respondeu Locke. – Essas cidadezinhas são para unhas de fome. Estamos atrás de ouro e ferro branco, não de pedaços de cobre. Vamos para
Tal Verrar. Alguma coisa vai surgir por lá.
– Hummm. Tal Verrar. Bom, fica perto.
– Os camorris têm uma história longa e gloriosa de pisar nos calos de nossos pobres primos verraris, portanto digo: vamos para Tal Verrar. E para a glória. – Continuaram
caminhando sob a névoa da garoa matinal que pinicava na pele. – E para os banhos.
CAPÍTULO DOIS
Requin
1
Locke percebeu que Jean continuava tão inquieto quanto ele com a experiência no Mercado Noturno, mas os dois não falaram mais sobre isso. Havia um serviço a ser
feito.
Quando o dia de trabalho terminava para as pessoas honestas de Tal Verrar, o deles estava só começando. A princípio, os Nobres Vigaristas estranharam o ritmo de
uma cidade onde o sol simplesmente caía a cada noite por trás do horizonte como uma vítima inerte de assassinato, sem o brilho da Falsaluz para marcar a passagem.
Mas Tal Verrar fora construída para gostos e necessidades diferentes dos de Camorr e seu Vidrantigo apenas espelhava o céu, sem produzir luz própria.
A suíte dos dois na Villa Candessa tinha teto alto e era opulenta; custando 5 volanis de prata por noite, não seria de esperar nada menos do que isso. A janela no
terceiro andar dava para um pátio calçado com pedras em que carruagens cravejadas de lanternas e com escoltas de guardas mercenários iam e vinham, provocando ecos
ruidosos.
– Magos-Servidores – murmurou Jean enquanto amarrava um de seus lenços de pescoço diante do espelho. – Nunca vou contratar um desses desgraçados nem mesmo para esquentar
meu chá, nem se viver para ficar mais rico do que o Duque de Camorr.
– Isso me faz pensar... – disse Locke, que já estava vestido e tomava café. Um dia inteiro de sono havia feito maravilhas por sua cabeça. – Se fôssemos mais ricos
do que o Duque de Camorr, poderíamos contratar um bando deles e dar instruções para se perderem na porra de uma ilha remota.
– Humm. Acho que os deuses não fizeram nenhuma ilha suficientemente remota para o meu gosto.
Jean terminou de amarrar seus lenços de pescoço com uma das mãos e pegou o desjejum com a outra. Um dos serviços mais estranhos que a Villa Candessa prestava aos
hóspedes de longo prazo eram seus “bolos-retratos”: pequenos simulacros de glacê, feitos à semelhança dos hóspedes por um escultor de doces treinado em Camorr. Numa
salva de prata ao lado do espelho, um pequenino Locke de pão doce (com olhos de passas e cabelo louro de creme de amêndoas) estava ao lado de um Jean mais rotundo,
com cabelo e barba de chocolate preto. As pernas do Jean assado já haviam sumido.
Instantes depois, Jean espanava as últimas migalhas amanteigadas da frente do casaco.
– Pobres Locke e Jean.
– Definharam até morrer – completou Locke.
– Eu gostaria de estar lá para ver você falar com Requin e Selendri.
– Humm. Posso confiar em que você ainda estará em Tal Verrar quando eu terminar? – Ele tentou abrandar a pergunta com um sorriso, conseguindo apenas um sucesso parcial.
– Você sabe que eu não vou a lugar nenhum. Ainda não tenho certeza se é sensato, mas você sabe que não vou.
– Sei. Desculpe. – Ele terminou de tomar o café e pousou a xícara. – E minha conversa com Requin não vai ser tão interessante assim.
– Bobagem. Ouvi certo prazer na sua voz. Outras pessoas sentem isso ao terminar o serviço; você sorri feito idiota antes que o seu comece de verdade.
– Quem disse que eu sorri? Estou com a bochecha frouxa como um cadáver. Só estou ansioso para acabar logo com isso. Negócio tedioso. Estou prevendo uma reunião chata.
– Reunião chata é o meu rabo. Não depois de você andar direto até a mulher que tem aquela maldita mão de bronze e dizer: “Com licença, senhora, mas...
2
– ... eu estive trapaceando – falou Locke. – Constantemente. Em todos os jogos de que participei desde que cheguei à Agulha do Pecado pela primeira vez com meu sócio,
há dois anos.
Receber um olhar penetrante de Selendri era uma coisa curiosa: o olho esquerdo dela não passava de um buraco escuro, meio coberto por um toldo translúcido que já
fora uma pálpebra; o olho bom concentrava a expressão dos dois e isso era tremendamente irritante.
– A senhora é surda? Estou falando de todos. Trapaceei. Subindo e descendo esta preciosa Agulha do Pecado, trapaceando um andar após o outro, levando seus outros
clientes num passeio muito alegre.
– Imagino se o senhor de fato entende o que significa me dizer isso, mestre Kosta – respondeu ela em seu sussurro lento, de bruxa. – Está bêbado?
– Estou tão sóbrio quanto um bebê que ainda mama.
– O senhor inventou isso?
– Estou falando sério. E é com o seu mestre que gostaria de falar sobre minhas motivações. Em particular.
O quinto andar da Agulha do Pecado estava silencioso. Locke e Selendri se achavam sozinhos, com quatro dos funcionários uniformizados esperando a 6 metros de distância.
Ainda era cedo demais para que a clientela rarefeita do andar tivesse terminado sua lenta migração farrista pelos andares mais animados.
No coração do quinto andar ficava uma alta escultura dentro de um cilindro de Vidrantigo transparente. Ainda que aquele vidro não pudesse ser trabalhado através
das artes humanas, havia literalmente milhões de fragmentos abandonados e pedaços moldados espalhados pelo mundo, alguns dos quais podiam ser aproveitados. Corporações
dedicavam-se a encontrar Vidrantigo para necessidades especiais, cobrando quantias exorbitantes.
Dentro do cilindro, havia algo que Locke só poderia descrever como a escultura de uma cachoeira rochosa, mais alta do que um homem, na qual as pedras eram feitas
inteiramente de volanis de prata e a “água” era um fluxo constante de milhares de centiras de cobre. O ruído dentro do invólucro de vidro à prova de som devia ser
tremendo, mas para quem estava do lado de fora a coisa acontecia em silêncio absoluto. Algum mecanismo no piso mantinha o fluxo de moedas contínuo. Era algo excêntrico
e hipnótico... Locke nunca conhecera alguém capaz de decorar um salão com uma pilha de dinheiro.
– Mestre? O senhor supõe que eu tenha um.
– A senhora sabe que estou falando de Requin.
– Ele seria o primeiro a corrigir sua suposição. Violentamente.
– Então uma audiência particular nos daria a chance de esclarecer vários mal-entendidos.
– Ah, sem dúvida Requin falará com o senhor, muito em particular.
Selendri estalou os dedos da mão direita duas vezes e os quatro funcionários convergiram para Locke. A mulher apontou para cima; dois deles seguraram os braços do
Nobre Vigarista com firmeza e começaram a levá-lo pela escada. Selendri os acompanhou, alguns degraus atrás.
O sexto andar era dominado por outra escultura dentro de um recipiente ainda maior de Vidrantigo. Parecia um círculo de ilhas vulcânicas, também construídas com
volanis, flutuando num mar de solaris. De cada um dos picos de prata jorravam moedas de ouro maciço, até caírem no “oceano” borbulhante e reluzente. Os guardas de
Requin mantinham um passo vigoroso demais para Locke captar outros detalhes da obra ou do salão. Passaram por mais dois funcionários uniformizados ao lado da escada
e continuaram a subir.
No coração do sétimo andar havia um terceiro espetáculo envolvido por vidro, o maior até então. Locke piscou várias vezes e conteve um risinho de admiração.
Era uma escultura estilizada de Tal Verrar, ilhas de prata aninhadas num mar de moedas de ouro. Sobre a maquete da cidade, com um pé de cada lado dela, como um deus,
havia a estátua de mármore em tamanho real de um homem que Locke reconheceu imediatamente. Assim como a pessoa representada, tinha um queixo redondo e protuberante,
olhos grandes, malares curvos e proeminentes que davam ao rosto estreito um ar jovial, além de orelhas de abano que pareciam ter sido grudadas na cabeça em ângulo
reto. Era Requin, cujas feições tinham uma semelhança razoável com uma marionete montada às pressas por um titereiro meio furioso.
Os braços da estátua estavam estendidos à frente, com as palmas viradas para cima na altura da cintura e, dos punhos do casaco de pedra, moedas de ouro jorravam
continuamente na cidade embaixo.
Distraído, Locke só não tropeçou nos próprios pés porque os funcionários que o seguravam apertaram seus braços com mais força. No topo da escada do sétimo andar,
havia uma porta dupla de madeira laqueada. Selendri passou por Locke e pelos funcionários e enfiou sua mão de bronze em um pequeno nicho na parede à esquerda da
porta. Acomodou-a em algum tipo de mecanismo e fez um meio giro com ela para a esquerda. Houve um estalo mecânico dentro da parede e a porta se abriu.
– Revistem-no – ordenou, passando pela porta sem se virar.
O casaco de Locke foi tirado rapidamente e ele foi cutucado, sondado, revistado e apalpado mais meticulosamente do que em sua última visita a um bordel. Os punhais
da manga (algo perfeitamente comum para um homem importante carregar) foram confiscados, a bolsa foi sacudida, os sapatos tirados e um funcionário chegou a passar
as mãos pelos seus cabelos. Quando o procedimento terminou, Locke – sem sapatos, sem casaco e um tanto desgrenhado – recebeu um empurrão pouco gentil na direção
da porta por onde Selendri sumira.
Locke se viu em um espaço escuro não muito maior do que um armário grande. Uma escada em caracol de ferro preto, com largura suficiente para uma pessoa passar, levava
até um quadrado de suave luz amarela. Locke subiu-a e saiu no escritório de Requin.
O recinto ocupava todo o oitavo andar da Agulha do Pecado; uma área junto à parede mais distante, isolada por cortinas de seda, provavelmente servia de quarto. Havia
uma porta de sacada na parede da direita, coberta por uma tela deslizante. Locke podia ver um grande trecho escuro de Tal Verrar através dela, por isso presumiu
que a porta desse para o leste.
Todas as outras paredes do escritório, como ouvira falar, eram prodigamente decoradas com pinturas a óleo: quase vinte quadros ao longo do perímetro visível do salão,
em elaboradas molduras de madeira dourada. Obras-primas dos últimos anos do Trono Terim, época em que quase todo nobre da corte do Imperador mantinha um pintor ou
escultor na coleira do patronato, ostentando-os como se fossem bichos de estimação. Locke não sabia identificá-los apenas olhando, mas segundo boatos havia dois
Morestras e um Ventathis nas paredes de Requin. Esses dois artistas – com todos os seus esboços, livros de teoria e aprendizes – haviam morrido centenas de anos
antes, na tempestade de fogo que consumira a cidade imperial de Terim Pel.
Selendri estava ao lado de uma ampla mesa de madeira cor de café fino, atulhada de livros, papéis e minúsculos instrumentos mecânicos. Havia uma cadeira atrás dela,
afastada, e Locke pôde ver os restos de um jantar – algum tipo de peixe num prato de ferro branco acompanhado por uma garrafa pela metade de vinho dourado claro.
Selendri encostou a mão de carne no simulacro de bronze e houve um estalo. A mão se desdobrou como as pétalas de uma flor reluzente. Os dedos foram para dentro,
se encaixando ao longo do pulso e revelando um par de lâminas de aço enegrecido, com 15 centímetros de comprimento. Selendri mexeu-as como se fossem garras e fez
um gesto para Locke ficar diante da mesa, virado para ela.
– Mestre Kosta. – A voz vinha de algum lugar atrás dele, de dentro da área oculta pela cortina de seda. – Que prazer! Selendri me disse que o senhor expressou interesse
por ser morto.
– Nem de longe, senhor. Eu só disse à sua assistente que venho trapaceando com meu parceiro nos jogos dos quais participamos em sua Agulha do Pecado. Durante praticamente
os dois últimos anos.
– Em todos os jogos – interveio Selendri. – O senhor falou todos os jogos.
– Ah, bom. – Locke deu de ombros. – Apenas pareceu mais dramático falar assim. É mais certo dizer quase todos os jogos.
– Esse homem é um palhaço – sussurrou Selendri.
– Ah, não. Bom, talvez de vez em quando. Mas agora, não.
Locke ouviu passos movendo-se às suas costas pelo piso de madeira de lei.
– O senhor veio aqui por causa de uma aposta – afirmou Requin, muito mais perto.
– Não no sentido que o senhor costuma usar.
Requin rodeou Locke e ficou diante dele, as mãos às costas, olhando-o com muita atenção. O homem era quase idêntico à estátua no andar abaixo; talvez alguns quilos
mais gordo, com os cachos eriçados de cabelo cinza-aço em entradas maiores. O casaco comprido e justo era de veludo preto e as mãos estavam cobertas por luvas de
couro marrom. Ele usava ópticos e Locke ficou surpreso ao ver que o brilho que na noite anterior havia considerado luz refletida estava de fato embutido no vidro.
As lentes brilhavam num laranja translúcido, dando um tom demoníaco aos olhos grandes que estavam por trás. Certamente era alguma alquimia nova e cara, da qual Locke
nunca ouvira falar.
– O senhor bebeu alguma coisa incomum esta noite, mestre Kosta? Um vinho desconhecido, talvez?
– A não ser que a própria água de Tal Verrar embriague, estou seco como areia cozida.
Requin foi para trás da mesa, pegou um pequeno garfo de prata, fisgou um pedaço de peixe e apontou para Locke com ele.
– Então o senhor teve sucesso em trapacear aqui durante dois anos e, sem levar em conta a impossibilidade dessa afirmação, agora o senhor quer se entregar a mim.
Consciência pesada?
– Nem remotamente.
– Um desejo sério de cometer um suicídio elaborado?
– Pretendo sair vivo deste escritório.
– Ah, o senhor não estará necessariamente morto até bater nas pedras do calçamento lá embaixo.
– Talvez eu possa convencê-lo de que valho mais intacto.
Requin mastigou o peixe antes de falar de novo.
– Como o senhor andou trapaceando, mestre Kosta?
– Principalmente usando prestidigitação.
– É mesmo? Eu consigo identificar os dedos de um carteador rápido só de olhar. Vejamos sua mão direita.
Requin estendeu a mão esquerda enluvada e Locke obedeceu, hesitante, como se os dois fossem se cumprimentar.
Requin agarrou a mão direita de Locke acima do pulso e bateu com ela em cima da mesa, mas em vez do estalo agudo que Locke esperava, sua mão acertou algum painel
disfarçado e deslizou para uma abertura sob o tampo. Houve o clac alto de algum mecanismo, e uma pressão fria beliscou seu pulso. Locke saltou para trás, mas a mesa
havia engolido sua mão como a bocarra de uma fera. As duas garras de aço de Selendri se viraram casualmente em sua direção e ele se imobilizou.
– Pronto. Mãos, mãos, mãos. Elas colocam os donos em muita encrenca, mestre Kosta. Selendri e eu sabemos muito bem disso.
Requin se virou para a parede atrás da mesa e deslizou um painel de madeira laqueada, revelando uma prateleira comprida e estreita engastada na parede.
Dentro, havia dezenas de frascos de vidro lacrados, cada um contendo algo escuro e murcho... Aranhas mortas? Não, eram mãos humanas. Cortadas, secas e guardadas
como troféus, os anéis ainda brilhando em muitos dedos curvados e secos.
– Antes de prosseguirmos para o inevitável, é isso que costumamos fazer – explicou Requin num tom levemente casual. – Mão direita, ta-ta. Cheguei a elaborar um belo
procedimento. Antes eu tinha tapetes aqui, mas a droga do sangue fazia bastante sujeira.
– É muito prudente da sua parte. – Locke sentiu uma única gota de suor começar a deslizar devagar pela testa. – Estou tão pasmo e humilhado quanto o senhor sem dúvida
esperava. Posso ter minha mão de volta?
– Na condição original? Duvido. Mas responda a algumas perguntas e veremos. Bom, dedos rápidos funcionam, como o senhor diz. Mas perdoe-me, meus funcionários são
extremamente capazes de identificar prestidigitadores.
– Tenho certeza de que seus funcionários têm boa intenção. – Locke se ajoelhou diante da mesa, na posição mais confortável possível, e sorriu. – Mas eu posso fazer
um gato vivo aparecer dançando num baralho comum de 56 cartas e escondê-lo de novo sem problema. Outros jogadores podem reclamar do barulho, mas nunca vão descobrir
a fonte.
– Ponha um gato vivo na minha mesa, então.
– Foi... ahn... uma pitoresca figura de linguagem. Infelizmente, gatos vivos não estão na moda como acessórios noturnos para os cavalheiros de Tal Verrar nesta estação.
– Que pena. Mas não é nenhuma surpresa: já houve um bocado de homens mortos ajoelhados onde o senhor está agora, soltando pitorescas figuras de linguagem e pouca
coisa a mais.
Locke suspirou.
– Seus rapazes tiraram meu casaco e meus sapatos e, se tateassem um pouco mais, iriam manusear meu fígado. Mas o que é isso?
Ele sacudiu a manga esquerda e ergueu a mão para mostrar que, de algum modo, um baralho havia caído nela.
Selendri ameaçou o pescoço de Locke com suas lâminas, mas Requin fez um gesto para que ela parasse e abriu um sorriso.
– Ele não pode me matar com um maço de cartas, querida. Nada mau, mestre Kosta.
– Agora, vejamos.
Locke estendeu o braço para o lado, com o baralho firme em sua mão, virado para cima. Uma torção do pulso, um peteleco com o polegar e o baralho foi cortado. Ele
começou a flexionar e abrir os dedos, aumentando cada vez mais o ritmo até que eles se moviam como uma aranha tendo aulas de esgrima. Cortando e embaralhando, cortando
e embaralhando, nada menos que uma dúzia de vezes. Então, com um floreio suave, bateu com o baralho e abriu-o num longo arco, deslocando vários dos badulaques de
Requin.
– Escolha uma. Qualquer uma. Veja qual é, mas não mostre a mim.
Requin obedeceu. Enquanto ele olhava a carta que havia escolhido, Locke juntou o resto do maço com um movimento reverso por cima da mesa; embaralhou e cortou de
novo, deixando metade em cima da mesa.
– Ponha a carta que o senhor escolheu em cima da metade do baralho. Lembre-se dela agora.
Requin devolveu a carta e Locke bateu com a outra metade do baralho em cima. Pegando o maço inteiro, fez mais cinco vezes seu movimento de cortar e embaralhar com
apenas uma das mãos. Depois deslizou a carta de cima do baralho – o quatro de cálices – para cima da mesa e sorriu.
– Esta, Senhor da Agulha do Pecado, é a sua carta.
– Não – replicou Requin com um risinho.
– Merda. – Locke tirou a próxima carta do topo, a chancela do sol. – Arrá, eu sabia que ela estava por aí, em algum lugar.
– Não – repetiu Requin.
– Maldição. – Locke rapidamente mostrou as próximas cartas. – Oito de cúspides? Três de cúspides? Três de cálices? Chancela dos Doze? Cinco de sabres? Merda. Mestra
das Flores?
Requin balançou a cabeça para cada uma delas.
– Ahn... Desculpe.
Locke pousou o baralho na mesa de Requin, em seguida abriu a abotoadura da manga direita e arregaçou a manga, procurando algo. Depois de alguns segundos, colocou
tudo de volta no lugar e, de repente, havia outro maço de cartas em sua mão esquerda.
– Vejamos... Sete de sabres? Três de cúspides? Não, já falamos essa... Dois de cálices? Seis de cálices? Mestre dos Sabres? Três de flores? Droga, droga. Esse baralho
não era tão bom, afinal de contas.
Locke posicionou o segundo baralho ao lado do primeiro, pareceu coçar um ponto perto da faixa preta e estreita acima da calça, então ergueu um terceiro maço. Sorriu
para Requin e ergueu as sobrancelhas.
– Esse truque funcionaria melhor se eu pudesse usar a mão direita.
– Por quê, se você parece estar se saindo tão bem sem ela?
Locke suspirou e levantou a carta de cima do novo baralho sobre a pilha crescente em volta da mesa.
– Nove de cálices! Parece familiar?
Requin riu e balançou a cabeça. Lock pousou o terceiro maço ao lado dos que já estavam na mesa de Requin, levantou-se e conjurou mais um na região superior das calças.
– Mas seus empregados saberiam, claro, se eu estivesse carregando quatro baralhos escondidos, já que são tão hábeis em identificar algo assim num homem sem paletó
nem sapatos... Espere, quatro? Posso ter contado errado...
De algum lugar dentro da túnica de seda, ele pegou um quinto baralho, que se juntou à pequena torre de cartas empilhadas cada vez mais precariamente na beira da
mesa.
– Sem dúvida eu não poderia ter escondido cinco baralhos dos seus guardas, mestre Requin. Cinco seria ridículo. Mas aí estão. Para fazer surgir mais, eu teria de
começar a tirá-las de algum lugar desagradável. E sinto dizer que não tenho a carta que o senhor escolheu. Mas espere um minuto... Sei onde ela pode ser encontrada...
Ele estendeu a mão por cima da mesa de Requin, tateou junto à base da garrafa de vinho e exibiu uma carta virada para baixo sob ela.
– Sua carta – anunciou, girando-a nos dedos da mão esquerda. – Dez de sabres.
Requin riu, mostrando uma ampla arcada de dentes amarelados sob os círculos de fogo laranja de seus ópticos.
– Muito bom. Muito bom. E com apenas uma das mãos. Mas, mesmo que eu admita que o senhor consegue realizar esses truques sempre, diante de meus funcionários e meus
outros clientes... o senhor e mestre de Ferra passaram muito tempo em jogos que são mais rigorosamente controlados do que as mesas de baralho abertas.
– Posso explicar como vencemos esses também. É só me libertar.
– Por que abrir mão de uma vantagem nítida?
– Então troque-a por outra. Liberte minha mão direita – pediu Locke, pondo em suas palavras o máximo de sinceridade passional – e eu lhe direi exatamente por que
o senhor não deve confiar na segurança atual da Agulha do Pecado.
Requin o encarou, cruzou os dedos enluvados e enfim assentiu para Selendri. Ela afastou suas lâminas – mas manteve-as apontadas para Locke – e apertou um interruptor
atrás da mesa. De repente, Locke ficou livre para se levantar cambaleando, esfregando o pulso direito.
– Muito gentil da sua parte – agradeceu Locke com uma tranquilidade que era pura invenção. – Agora... sim, nós jogamos muito mais do que nas mesas abertas. Mas que
jogos evitamos deliberadamente? Vermelhos e Pretos. Conte até Vinte. Desejo da Bela Donzela. Todos os jogos em que um cliente compete com a Agulha do Pecado, e não
com outro cliente. Jogos planejados matematicamente para dar uma vantagem substancial à casa.
– É difícil lucrar de outro modo, mestre Kosta.
– Sim. Eles não prestam aos objetivos de um trapaceiro como eu, pois preciso de carne e sangue para enganar. Não me importa quantos mecanismos e quantos funcionários
o senhor coloque. Num jogo entre clientes, a trapaça sempre encontra um modo de se imiscuir, com tanta certeza quanto a água penetra nas rachaduras de um navio.
– Mais falas ousadas – comentou Requin. – Admiro a loquacidade nos condenados, mestre Kosta. Mas o senhor e eu sabemos que não há como trapacear, digamos, no Carrossel
da Sorte, a não ser com uma cumplicidade quádrupla entre os participantes, o que tornaria o jogo absolutamente sem sentido.
– Certo. Não há como trapacear no carrossel ou nas cartas, pelo menos aqui na sua Agulha. Mas, quando não podemos trapacear no jogo, devemos trapacear os jogadores.
O senhor sabe o que é bela paranella?
– Um soporífero. Alquimia cara.
– Isso. Incolor, insípida e duplamente eficaz se tomada com álcool. Jerome e eu empoamos os dedos antes de pegar nossas cartas em cada partida, ontem à noite. Madame
Corvaleur tem um conhecido hábito de comer e lamber os dedos enquanto joga. Cedo ou tarde ela acabaria ingerindo a droga em quantidade suficiente para apagar.
– Ora, ora! – Requin parecia genuinamente perplexo. – Selendri, você sabe alguma coisa sobre isso?
– Posso responder pelo menos pelos hábitos de Corvaleur – sussurrou ela. – Parece que é seu método preferido para irritar os oponentes.
– E irritava mesmo – concordou Locke. – Foi um tremendo prazer vê-la se estrepar.
– Admito que sua história é remotamente plausível – observou Requin. – Eu estava... curioso com a estranha incapacitação de Izmila.
– Aquela mulher parece um casarão de Vidrantigo. Jerome e eu tínhamos mais frascos vazios do que ela; o que ela havia bebido não afetaria nem os cílios, se não fosse
o pó.
– Talvez. Mas vamos falar de outros jogos. Que tal Alianças Cegas?
O jogo de Alianças Cegas era disputado numa mesa circular com divisórias altas especialmente desenhadas, postas diante das mãos de cada jogador, de modo que todo
mundo, menos a pessoa diretamente à frente – o parceiro –, pudesse ver pelo menos algumas cartas. Cada participante silencioso deveria colocar o pé direito em cima
do pé esquerdo da pessoa à direita, assim nenhum jogador poderia fazer sinais para o aliado. Dessa forma, os parceiros precisavam jogar por instinto e dedução desesperada,
isolados da visão, da voz e do toque um do outro.
– Estratagema de criança. Jerome e eu mandamos construir botas especiais, com dedos de ferro fundido embaixo do couro. Deslizávamos os pés cuidadosamente para trás
e o ferro fornecia a sensação de uma bota para a pessoa ao lado. Poderíamos sinalizar livros inteiros um para o outro com o código que temos. O senhor já conheceu
alguém que dominasse aquele jogo tão completamente como nós fizemos?
– O senhor não pode estar falando sério.
– Posso lhe mostrar as botas.
– Bom, foi uma sorte extraordinária... mas e o bilhar? O senhor teve uma vitória bastante famosa contra lorde Landreval. Como pode ter trapaceado naquilo? Minha
casa fornece todo o material do jogo.
– Sim, de modo que não pode ser alterado. Eu paguei 10 solaris ao galeno de Landreval para que me informasse sobre seus problemas médicos. Por acaso, ele é alérgico
a limões. Toda noite, antes de jogarmos com ele, Jerome e eu esfregávamos o pescoço, as bochechas e as mãos com limões cortados e usávamos outros óleos para encobrir
o cheiro. Depois de meia hora na nossa presença, o lorde ficava tão inchado que mal conseguia enxergar. Não sei bem se ele chegou a perceber qual era o problema.
– O senhor está dizendo que ganhou mil solaris com algumas fatias de limão? Absurdo.
– Na verdade, eu perguntei educadamente se ele me emprestaria mil solaris e ele se ofereceu para deixar que o humilhássemos publicamente em seu jogo predileto, por
pura gentileza.
– Hmmmmpf.
– Com que frequência Landreval perdia antes de conhecer a mim e Jerome? Uma vez em cada cinquenta jogos?
– Limões. Não é possível!
– Quando não se pode trapacear no jogo, é melhor encontrar um modo de trapacear o jogador. Tendo informações e preparando-se, não há um só jogador na Agulha que
Jerome e eu não possamos fazer dançar como uma marionete. Diabos, alguém com meus talentos, que soubesse o bastante sobre mim, provavelmente poderia me enganar direitinho
também.
– É uma boa história, mestre Kosta. – Requin tomou um gole de seu vinho. – Imagino que posso, por caridade, acreditar pelo menos em parte das afirmações. Eu suspeitava
que o senhor e seu amigo não fossem mais especuladores mercantis do que eu, mas na minha torre o senhor pode afirmar que é um duque ou um dragão de três dedos, desde
que tenha crédito sólido. O senhor certamente tinha isso antes de entrar no meu escritório esta noite. O que nos traz à pergunta mais importante de todas: por que,
diabos, está me contando isso?
– Eu precisava da sua atenção.
– O senhor já a possuía.
– Eu precisava de mais do que isso. Precisava de que o senhor conhecesse minhas habilidades e minhas inclinações.
– E agora o senhor tem isso também, na medida em que aceito sua história. O que exatamente o senhor acha que isso lhe garante?
– Uma chance de que o que vou falar em seguida será ouvido.
– Verdade?
– Não estou aqui para enganar seus clientes em troca de milhares de solaris, Requin. Foi divertido, mas é algo secundário com relação ao meu objetivo real. – Locke
abriu as mãos e sorriu como se pedisse desculpas. – Fui contratado para invadir seu cofre assim que descobrir um modo de tirar tudo o que há dentro, bem debaixo
do seu nariz.
3
Requin piscou, surpreso.
– Impossível!
– Inevitável.
– Agora não estamos falando de prestidigitação ou de limões, mestre Kosta. Explique-se.
– Meus pés estão começando a doer. E minha garganta está meio seca.
Requin encarou-o, depois deu de ombros.
– Selendri, uma cadeira para mestre Kosta. E uma taça.
Franzindo a testa, Selendri se virou e pegou junto à parede uma cadeira de madeira escura, lindamente entalhada e com uma fina almofada de couro. Colocou-a atrás
de Locke, que sentou-se com um sorriso no rosto. Após um tempo, ela voltou com uma taça de cristal, que entregou a Requin. O homem pegou a garrafa de vinho e serviu
uma dose generosa de líquido vermelho. Líquido vermelho? Locke piscou, mas então relaxou. Kameleona, o vinho mutável, claro. Uma das centenas de famosas safras alquímicas
verraris. Requin entregou-lhe a taça e sentou-se no tampo da mesa com os braços cruzados.
– À sua saúde – disse Requin. – Ela precisa de toda ajuda possível.
Locke tomou um longo gole do vinho quente e se permitiu alguns segundos de contemplação. Maravilhou-se com o modo com que o sabor de abricós se transmutava no gosto
mais pungente de maçã um pouquinho ácida na metade do gole. Esse gole valera 20 volanis, se seu conhecimento sobre o mercado da bebida ainda era exato. Assentiu
com apreciação para Requin, que gesticulou com desinteresse.
– Não pode ter escapado à sua atenção, mestre Kosta, que meu cofre é o mais seguro de Tal Verrar: o espaço mais bem-protegido de toda a cidade, até mais do que os
aposentos particulares do próprio Arconte. – Requin repuxou o couro justo da luva direita com os dedos da mão esquerda. – Ou que ele fica dentro de uma estrutura
de Vidrantigo puríssimo e só é acessível através de vários níveis de artifícios mecânicos e metalúrgicos que, se é que posso acariciar meu próprio ego, são inigualáveis.
Ou que metade dos conselheiros do Priori o têm em tão alta conta que colocam nele boa parte de suas fortunas pessoais.
– É claro. Dou-lhe os parabéns por uma clientela tão lisonjeira. Mas as portas de seu cofre são guardadas por engrenagens feitas por homens. O que um homem tranca,
cedo ou tarde outro destranca.
– Repito: é impossível.
– E eu corrijo de novo: é difícil. “Difícil” e “impossível” são primos que costumam ser confundidos, mas têm muito pouco em comum.
– O senhor tem mais chance de dar à luz um hipopótamo do que o melhor ladrão tem de passar pelos dispositivos do cofre. Mas isso é bobagem; poderíamos ficar aqui
a noite toda disputando quem tem o pau maior. Eu digo que o meu mede 1,5 metro, o senhor diz que o seu mede 2 e dispara sob comando. Vamos voltar logo à conversa
significativa. O senhor admite que é fora de questão enganar meus jogos. Meu cofre é o mecanismo mais seguro de todos; portanto eu sou a carne e o sangue que o senhor
presumia lograr?
– É possível que esta conversa represente minha desistência dessa esperança.
– O que o fato de enganar meus clientes tem a ver com tramar a entrada no meu cofre?
– Originalmente, nós jogávamos apenas para nos misturar aos clientes e esconder que observávamos suas operações. O tempo passou e não fizemos progresso. A trapaça
era uma diversão para tornar os jogos mais interessantes.
– Minha casa o deixa entediado?
– Jerome e eu somos ladrões. Andamos trapaceando nas cartas e afanando coisas a leste e oeste, daqui até Camorr e vice-versa, durante anos. Girar carrosséis com
os ricaços só é divertido por um tempo e não estávamos indo longe com o trabalho, por isso precisávamos continuar nos divertindo.
– Trabalho. É, o senhor disse que foi contratado para vir aqui. Seja mais claro.
– Meu parceiro e eu fomos mandados aqui como homens de frente para uma coisa muito elaborada. Alguém por aí quer que seu cofre seja esvaziado. Não meramente penetrado
e, sim, pilhado. Saqueado e deixado para trás sem nada.
– Alguém?
– Alguém. Não faço a mínima ideia de quem seja; Jerome e eu fomos contratados através de intermediários. Todos os nossos esforços para descobri-los foi em vão. Nosso
contratante é tão anônimo para nós quanto era há dois anos.
– O senhor trabalha frequentemente para contratantes anônimos, mestre Kosta?
– Só para os que me pagam com grandes pilhas de ouro, em metal vivo. E posso garantir: esse tem nos pagado muito bem.
Requin sentou-se atrás da mesa, tirou os ópticos e esfregou os olhos com as mãos enluvadas.
– Qual é esse jogo novo, mestre Kosta? Por que me conta tudo isso?
– Estou cansado do nosso patrão. Estou cansado da companhia de Jerome. Percebi que Tal Verrar é muito do meu gosto e desejo arranjar uma nova situação para mim.
– Deseja virar a casaca?
– Se o senhor prefere colocar desse modo, sim.
– E o que eu tenho a ganhar com isso?
– Primeiro, um meio de trabalhar contra meu patrão atual. Jerome e eu não somos os únicos agentes enviados contra o senhor. Nosso serviço é o cofre, e nada mais.
Todas as informações que reunimos sobre suas operações são repassadas a outra pessoa. Eles estão esperando que encontremos um modo de invadir sua caixa de dinheiro
e, em seguida, têm outros planos para o senhor.
– Continue.
– O outro benefício seria mútuo. Eu quero um emprego. Estou cansado de correr de uma cidade para outra atrás de trabalho. Quero me acomodar em Tal Verrar, encontrar
uma casa, talvez uma mulher. Depois de ajudá-lo a cuidar do meu patrão atual, quero trabalhar para o senhor aqui.
– Fazendo espetáculos, talvez?
– O senhor precisa de um chefe de segurança dos salões. Responda com sinceridade: o senhor continua tão complacente agora com relação à segurança quanto antes? Eu
sei como trapacear em cada jogo que pode ser trapaceado aqui, e, se não fosse mais inteligente do que os seus funcionários, já estaria morto. Quem melhor do que
eu para manter seus clientes jogando limpo?
– Seu pedido é... lógico. Sua disposição a abandonar seu patrão não é. Não tem medo da vingança?
– Não se eu puder ajudar o senhor a superar essa situação. O problema é a identificação. O senhor tem todas as quadrilhas de Tal Verrar sob seu punho e é ouvido
pelo Priori. Certamente poderia fazer os arranjos caso descobríssemos um nome.
– E o seu parceiro, mestre de Ferra?
– Nós trabalhamos bem juntos, mas não faz muito tempo que discutimos com relação a uma questão intensamente pessoal. Ele acredita que o insulto está esquecido; garanto
que não. Quero ficar quite com ele quando tivermos cuidado do nosso patrão atual. Quero que ele saiba, antes de morrer, que já estou farto. Se possível, gostaria
de matá-lo pessoalmente. Isso e o trabalho são meus últimos pedidos.
– Hummmm. O que acha de tudo isso, Selendri?
– Alguns mistérios ficam melhores com a garganta cortada – sussurrou ela.
– Você pode temer que eu queira substituí-la – disse Locke. – Garanto: quando falei em ser chefe de segurança dos salões, quis dizer chefe de segurança dos salões.
Não quero o seu cargo.
– E você jamais poderia tê-lo, mestre Kosta, mesmo se quisesse. – Requin passou os dedos pelo antebraço direito de Selendri e apertou sua mão intacta. – Admiro sua
ousadia só até certo ponto.
– Desculpem-me os dois. Não tinha intenção de ser presunçoso. Selendri, se é que isso vale alguma coisa, eu concordo com você. Na sua posição, livrar-se de mim pareceria
o mais sensato. Os mistérios são perigosos para as pessoas na nossa profissão. Não estou mais satisfeito com o mistério do meu trabalho atual. Quero uma vida mais
previsível. O que peço e o que ofereço são coisas objetivas.
– E em troca – falou Requin – eu recebo possíveis informações sobre uma suposta ameaça contra um cofre que incrementei, com um projeto feito por mim, para se tornar
impenetrável.
– Há alguns instantes o senhor expressou a mesma confiança quando falava de seus funcionários e da capacidade de eles identificarem trapaceiros.
– O senhor penetrou na segurança do meu cofre tão completamente quanto diz que dançou ao redor dos meus funcionários, mestre Kosta? O senhor ao menos penetrou nele?
– Só preciso de tempo. Se eu tiver tempo, um modo irá se tornar claro, cedo ou tarde. Não estou desistindo porque é difícil e, sim, porque é o que quero. Mas não
aceite apenas minha palavra como prova de sinceridade; examine as atividades de Jerome e as minhas. Pesquise tudo que estivemos realizando em sua cidade nos últimos
dois anos. Fizemos alguns progressos que podem abrir seus olhos.
– Farei isso. E, nesse meio-tempo, o que devo fazer com o senhor?
– Nada de extraordinário. Faça suas sondagens. Fique de olho em Jerome e em mim. Continue a deixar que joguemos na Agulha; prometo jogar mais limpo, pelo menos nos
próximos dias. Permita-me pensar nos meus planos e reunir as informações que puder sobre meu empregador anônimo.
– Deixar que o senhor saia daqui incólume? Por que não prendê-lo num lugar seguro enquanto vasculho seu passado?
– Se me levar a sério o bastante para considerar qualquer parte da minha oferta, o senhor também deve levar a sério a ameaça de meu empregador. A qualquer sugestão
de que fui descoberto, Jerome e eu podemos ser dispensados. E lá se vai sua oportunidade.
– E lá se vai sua utilidade, é o que quer dizer. Devo aceitar muita coisa apenas pela fé, tratando-se de um homem que promete trair e matar o parceiro de trabalho.
– O senhor segura minha bolsa tão bem quanto sua mesa segurou minha mão. Todas as moedas que tenho estão em Tal Verrar, mantenho-as aqui na Agulha do Pecado. O senhor
pode procurar meu nome em qualquer casa de contabilidade da cidade e não irá encontrá-lo. Voluntariamente, lhe dou essa vantagem sobre mim.
– Um homem com um ressentimento genuíno poderia mijar em todo o ferro branco do mundo em troca de uma chance contra seu alvo verdadeiro, mestre Kosta. Já fui esse
tipo de alvo por vezes demais para me esquecer disso.
– Não sou obtuso. – Locke pegou de volta um dos seus baralhos na mesa de Requin e o embaralhou algumas vezes sem olhar. – Jerome me insultou sem motivo. Se me pagar
bem e me tratar bem, jamais lhe darei motivo para um desprazer.
Locke tirou a primeira carta do maço e depositou-a virada para cima, ao lado do resto do jantar de Requin. Era o Mestre das Cúspides, do naipe pontiagudo como agulhas.
– Eu escolhi deliberadamente ficar do seu lado, se o senhor me aceitar. Faça uma aposta, mestre Requin. As chances são favoráveis.
Requin tirou os ópticos do bolso do casaco e colocou-os no rosto. Olhou para a carta, pensativo; o silêncio se manteve por um tempo. Locke tomou um gole de vinho,
que havia se transformado em azul-claro e agora tinha gosto de junípero.
– Por que, deixando de lado todas as outras considerações, eu deveria permitir que você viole a regra básica da minha Agulha por iniciativa própria e não sofra nada
em troca? – indagou Requin.
– Só porque imagino que os trapaceiros são comumente descobertos por seus funcionários enquanto os outros clientes estão observando – respondeu Locke, tentando parecer
o mais sincero e contrito possível. – Fora desta sala, ninguém sabe da minha confissão. Selendri nem disse aos seus funcionários por que estavam me trazendo aqui.
Requin suspirou, tirou um solari de dentro do casaco e colocou-o em cima da carta do Mestre das Cúspides.
– Vou fazer uma pequena aposta por enquanto. Se fizer alguma coisa incomum ou alarmante, o senhor não viverá o bastante para reconsiderar. Diante da menor sugestão
de que algo que me contou era mentira, mandarei que derramem vidro derretido pela sua garganta.
– Ah... parece justo.
– Quanto dinheiro o senhor tem no livro-caixa aqui?
– Pouco mais de 3 mil solaris.
– Dois mil deles não são mais seus. Permanecerão no livro-caixa para que mestre de Ferra não suspeite, mas vou dar instruções de que o dinheiro não seja dado ao
senhor. Considere isso uma lembrança de que minhas regras não devem ser violadas por iniciativa de ninguém, além de mim.
– Ui. Acho que devo me sentir grato. Quero dizer, eu estou. Obrigado.
– Ande pisando em ovos comigo, mestre Kosta. Pise delicadamente.
– Então posso ir? E posso considerar que o senhor é meu patrão?
– Pode ir. E pode considerar que eu o suporto. Falaremos de novo quando eu souber mais sobre seu passado recente. Selendri vai acompanhá-lo de volta ao térreo. Saia
da minha vista.
Com um ar de leve desapontamento, Selendri dobrou os dedos de bronze de sua mão artificial até ela estar inteira de novo e as lâminas escondidas. A mulher fez um
gesto para a escada com essa mão. No olho bom, via-se exatamente quanta paciência ela possuía de sobra para ele, caso a de Requin começasse a se esvair.
4
Jean estava sentado, lendo, num reservado particular no Claustro de Ouro, um clube no segundo nível do Savrola, a poucos quarteirões da Villa Candessa. O local era
um labirinto de recintos de madeira escura forrados com couro e acolchoados para atender a clientes que desejavam comer com algum grau de solidão. Os garçons, com
seus aventais de couro e gorros vermelhos pendentes, eram proibidos de falar, respondendo aos pedidos de todos os clientes apenas com movimentos de cabeça.
O jantar de Jean, enguia-da-rocha defumada em molho de conhaque caramelo, estava retalhado e espalhado como restos de uma batalha. Ele ia abrindo caminho lentamente
pela sobremesa, um amontoado de libélulas de marzipã com asas de açúcar cristalizado que reluziam no brilho fixo das velas do reservado. Estava absorto por um exemplar
encadernado em couro da Tragédia dos dez vira-casacas honestos, de Lucarno, e só notou Locke quando o amigo já estava sentado diante dele no reservado.
– Leocanto! Você me deu um susto.
– Jerome. – Os dois falavam praticamente aos sussurros. – Você estava mesmo nervoso, não estava? O nariz enterrado num livro para não enlouquecer. Certas coisas
não mudam nunca.
– Eu não estava nervoso. Apenas um tanto quanto preocupado.
– Não precisava.
– Então está feito? Fui traído com sucesso?
– Bem traído. Completamente vendido. É um defunto ambulante.
– Maravilhoso! E a reação dele?
– Desconfiado. Eu diria que é o ideal. Se estivesse entusiasmado demais, eu me preocuparia. E se não estivesse nem um pouco entusiasmado, bom... – Locke fez a mímica
de enfiar uma faca no peito e sacudi-la várias vezes. – Isso é enguia defumada?
– Sirva-se. É recheada com abricós e cebolas amarelas macias. Não é totalmente do meu gosto.
Locke pegou o garfo de Jean e comeu alguns pedaços de enguia; sentiu-se menos avesso ao recheio do que Jean.
– Parece que vamos perder dois terços da minha conta – informou depois de fazer algum progresso no prato. – Uma penalidade pela trapaça, para me lembrar de não abusar
muito da paciência de Requin.
– Bom, de qualquer modo nós não esperávamos sair da cidade com o dinheiro que está naquelas contas. Mas seria bom tê-lo pelo menos por mais algumas semanas.
– É verdade. Mas acho que a alternativa seria uma mão amputada. O que você estava lendo?
Jean mostrou o título e Locke fingiu engasgar.
– Por que é sempre Lucarno? Você carrega as porcarias dos romances dele aonde quer que vá. Seu cérebro vai amolecer com toda essa bobagem. Você vai acabar servindo
apenas para cuidar de canteiros de flores, e não para participar de roubos.
– Bom, sem dúvida eu criticaria os seus hábitos de leitura, mestre Kosta, caso visse o senhor desenvolver algum.
– Já li um bocado!
– História e biografias, principalmente o que Correntes receitava para você.
– O que poderia haver de errado com esses temas?
– Quanto à história, nós estamos vivendo nas ruínas dela. E quanto às biografias, estamos convivendo com as consequências de todas as decisões que já foram tomadas
nelas. Não costumo lê-las por prazer. Não é diferente de examinar com cuidado um mapa quando já chegamos ao destino.
– Mas os romances não são reais, e certamente nunca foram. Isso não tira parte do sabor?
– Que escolha interessante de palavras! “Não são reais, e certamente nunca foram”. Poderia haver literatura mais adequada a homens da nossa profissão? Por que você
é sempre tão avesso à ficção, quando nós a utilizamos como meio de vida?
– Eu vivo no mundo real e meus métodos são do mundo real. Como você acaba de dizer, eles são parte da minha profissão. Uma questão prática, não uma loucura romântica.
Jean pousou o livro na mesa e bateu na capa.
– É para aí que você e eu vamos, Espinho, ou pelo menos você vai. Procure por nós nos livros de história e estaremos à margem. Procure por nós nas lendas e talvez
nos encontre exaltados.
– Descritos com mentiras, de maneira exagerada, você quer dizer. Caluniados ou pisoteados. A verdade de tudo que fazemos morrerá conosco e ninguém jamais saberá
de nada.
– Melhor isso do que a obscuridade! Lembro que você já sentiu uma tremenda atração pelo drama. Por peças de teatro, no mínimo.
– É. – Locke cruzou as mãos sobre a mesa e acrescentou ainda mais baixo: – E você sabe o que aconteceu.
– Desculpe – disse Jean com um suspiro. – Eu sei que não deveria falar de novo desse assunto ruivo específico.
Um garçom apareceu na entrada do pequeno reservado, olhando atentamente para Locke.
– Ah, não – falou Locke, pousando o garfo de Jean no prato de enguias. – Para mim, nada, infelizmente. Só estou aqui esperando meu amigo terminar suas pequenas vespas
açucaradas.
– Libélulas. – Jean colocou a última na boca, engoliu-a quase inteira e guardou o livro dentro do casaco. – Traga a conta e eu resolvo a coisa com você.
O garçom assentiu, tirou os pratos usados e deixou um pedaço de papel preso numa pequena tabuleta de madeira.
– Bom – disse Locke enquanto Jean contava as moedas de cobre tiradas da bolsa –, não temos compromissos pelo resto da noite. Sem dúvida Requin está nos espiando
agora. Acho que uma ou duas noites de relaxamento brando seria adequado, para não incomodá-lo.
– Fantástico. Por que não perambulamos um pouco, e que tal pegar um barco até as Galerias de Esmeralda? Lá há cafés e música. Leo e Jerome poderiam ficar de pileque
e perseguir dançarinas de tavernas?
– Jerome pode matar quanta cerveja quiser e incomodar dançarinas de taverna até o sol nos perseguir de volta para casa. Leo vai sentar-se e assistir às festividades.
– Que tal brincar de “identificar a sombra” com o pessoal do Requin?
– Talvez. Maldição, eu gostaria que tivéssemos o Pulga para espreitar nos telhados para nós. Seria bom ter um par de olhos no alto; não há nenhum de confiança nesta
porcaria de cidade.
– Eu gostaria que ainda tivéssemos o Pulga, e ponto final – replicou Jean com um suspiro.
Foram até o saguão do clube, conversando baixinho sobre negócios imaginários entre os mestres Kosta e De Ferra, improvisando para os possíveis ouvidos curiosos.
Passava pouco mais da meia-noite quando entraram na ordem discreta e familiar e nos muros altos do Savrola. O lugar era artificialmente limpo: ali não havia camelôs,
nem sangue nos becos, nem mijo nas sarjetas. As ruas de tijolos cinza eram bem iluminadas por lanternas prateadas em suportes de ferro oscilantes. Todo o distrito
parecia emoldurado pelo luar claro, apesar de o céu naquela noite estar coberto por um alto teto de nuvens escuras.
A mulher os esperava nas sombras, à esquerda de Locke.
Ela acompanhou sua passada enquanto ele e Jean seguiam pela rua. Um dos punhais na manga de Locke caiu na palma de sua mão antes que ele pudesse controlar o reflexo,
mas a mulher permaneceu a um metro de distância, com as mãos às costas. Era um tanto jovem, baixa e magra, com cabelo escuro repuxado num rabo de cavalo longo. Usava
um casaco escuro elegante e um chapéu de quatro bicos com um lenço de pescoço cinza e comprido que tremulava atrás de si como uma flâmula de navio.
– Leocanto Kosta – chamou ela, com uma voz agradável e tranquila. – Sei que você e seu amigo estão armados. Não vamos criar dificuldades.
– Perdão, senhora?
– Se mexer com esse punhal na sua mão, uma flecha vai atravessar suas costas. Diga ao seu amigo para manter as machadinhas dentro do casaco. Apenas vamos continuar
andando.
Jean começou a mover a mão esquerda por baixo do casaco; Locke o conteve com a mão direita e balançou a cabeça com vigor. Não estavam sozinhos na rua; pessoas andavam
aqui e ali a negócios ou por prazer, mas algumas encaravam os dois ou estavam paradas em becos e sombras, usando casacos pesados além da conta.
– Merda – murmurou Jean. – Nos telhados.
Locke olhou de relance para cima. Do outro lado da rua, sobre os prédios de pedra de três e quatro andares, podia ver as silhuetas de pelo menos dois homens movendo-se
devagar, carregando objetos finos e curvados nas mãos. Arcos.
– Parece que nos pegou em desvantagem, senhora – disse Locke, enfiando o punhal num bolso do casaco e mostrando a mão vazia. – A que devemos o prazer de sua atenção?
– Alguém quer ter uma conversa com os senhores.
– Sem dúvida essa pessoa sabe onde nos encontrar. Por que ela simplesmente não janta conosco?
– A conversa deveria ser particular, não acha?
– Um homem numa torre muito alta mandou a senhora?
Ela apenas sorriu em resposta. Um instante depois, fez um gesto à frente.
– Na próxima esquina virem à esquerda. Os senhores verão uma porta aberta, no primeiro prédio à direita. Entrem. Sigam as instruções.
De fato, a porta aberta prometida estava esperando logo após a próxima encruzilhada, um retângulo de luz amarela que se derramava pelo chão. A mulher entrou primeiro.
Consciente da presença de pelo menos quatro ou cinco pessoas espreitando, além dos arqueiros nos telhados, Locke suspirou e fez um rápido sinal de mão para Jean:
calma, calma.
O lugar parecia uma oficina inativa, mas em bom estado. Havia mais seis pessoas no cômodo, homens e mulheres de gibões de couro com debruns prateados, as costas
junto às paredes. Quatro seguravam balestras carregadas, o que apagou por completo qualquer pensamento de resistência que Locke poderia estar nutrindo. Nem Jean
poderia compensar a desvantagem.
Um dos homens com balestra fechou silenciosamente a porta e a mulher que trouxera Locke e Jean se virou. A frente de seu casaco se abriu e Locke pôde ver que ela
também usava uma armadura de couro reforçado. Ela estendeu as mãos.
– Armas – pediu com educação, mas de modo firme. – Depressa, agora.
Locke e Jean se entreolharam e ela riu.
– Não sejam burros, cavalheiros. Se quiséssemos matá-los, os senhores já estariam pregados à parede. Eu cuido de seus bens para os senhores.
Lentamente, resignado, Locke removeu um dos seus punhais do bolso e sacudiu o outro da manga do casaco e Jean entregou o par de machadinhas e nada menos do que três
adagas.
– Gosto de homens que viajam preparados – comentou a mulher.
Ela entregou as armas a um dos homens atrás dela e tirou dois capuzes de dentro da capa. Jogou um para Locke e outro para Jean.
– Enfiem na cabeça, por favor. Assim, poderemos continuar nossos negócios.
– Por quê? – Jean farejou o capuz, em guarda, e Locke o imitou. O tecido parecia limpo.
– Para sua própria proteção. Querem mesmo estar com o rosto à mostra enquanto os arrastamos pela rua sob guarda?
– Acho que não – respondeu Locke.
Enfiou o capuz na cabeça e descobriu que isso o deixava na escuridão completa.
Houve som de passos e o farfalhar de capas. Mãos fortes agarraram os braços de Locke e os forçaram unidos às costas. Um instante depois, ele sentiu algo sendo amarrado
com força em volta dos pulsos. Houve um tumulto alto e vários grunhidos irritados ao lado dele; provavelmente fora preciso um bom número de pessoas para render Jean.
– Pronto – falou a mulher, a voz vindo de trás de Locke. – Agora andem depressa. Não se preocupem, vocês serão amparados.
Com “amparados”, ela obviamente queria dizer que eles seriam agarrados e carregados. Locke sentiu mãos apertando seus bíceps e pigarreou.
– Aonde vamos?
– Dar um passeio de barco, mestre Kosta. Não faça mais perguntas, porque não vou responder. Vamos indo.
Houve o rangido da porta sendo aberta de novo e uma breve sensação de tontura quando ele foi empurrado e reorientado pelas pessoas que o seguravam. Estavam retornando
para a escura noite verrari e Locke podia sentir grandes gotas de suor começando a escorrer por sua testa.
R E M I N I S C Ê N C I A
Planejamento desnecessário
– Merda – praguejou Locke quando o baralho voou de sua mão machucada.
Jean se encolheu para escapar da tempestade de cartas no compartimento da carruagem.
– Tente de novo – disse Jean. – Talvez a décima oitava vez seja a boa.
– Eu era bom demais em embaralhar com uma das mãos. – Locke começou a pegar as cartas e reorganizá-las numa pilha. – Aposto que podia fazer isso melhor até mesmo
do que Calo e Galdo. Droga, minha mão está doendo.
– Bom, eu sei que pressionei você para se exercitar, mas você estava meio sem prática mesmo antes de se ferir. Dê um tempo.
Uma chuva forte caía ao redor da sacolejante carruagem preta de luxo que seguia pela velha Estrada do Trono Terim, aos pés das montanhas a leste do litoral de Tal
Verrar. Uma mulher de meia-idade, encurvada, segurava as rédeas dos seis cavalos sentada na boleia aberta em cima da cabine, com o capuz da capa impermeável puxado
para a frente, protegendo o fornilho aceso de seu cachimbo. Dois guardas se encolhiam, miseráveis, no estribo da traseira, presos por largas tiras de couro em volta
da cintura.
Jean estudava um maço de anotações, folheando páginas de pergaminho para trás e para a frente, murmurando sozinho. A chuva batia com força na lateral direita da
cabine fechada, mas eles podiam manter a janela do lado esquerdo aberta, com suas telas e os postigos de couro recolhidos para que o ar sujo que fedia a campos adubados
com esterco e pântanos salgados pudesse entrar. Um pequeno globo alquímico amarelo no assento acolchoado junto de Jean proporcionava luz para a leitura.
Tinham saído de Vel Verazzo duas semanas antes, estavam a uns 150 quilômetros a noroeste e haviam ultrapassado em muito a necessidade de se disfarçar com purê de
maçã para se moverem com liberdade.
– Minhas fontes dizem o seguinte – começou Jean, quando Locke havia terminado de recolher as cartas. – Requin tem 40 e tantos anos. É um verrari nativo, mas fala
um pouco de vadrã e supostamente é um gênio em trono terim. É colecionador de arte, louco pelos pintores e escultores dos últimos anos do Império. Ninguém sabe o
que ele fazia mais de vinte anos atrás. Parece que ganhou a Agulha do Pecado numa aposta e jogou o proprietário anterior pela janela.
– E é unha e carne com os membros do Priori?
– Com a maioria deles, parece.
– Alguma ideia de quanto ele guarda nos cofres?
– Numa avaliação conservadora, pelo menos o bastante para pagar qualquer dívida em que a casa possa incorrer. Ele jamais se permitiria ficar embaraçado nesse sentido.
Portanto, digamos 50 mil solaris, pelo menos. Além de sua fortuna pessoal e dos bens e das fortunas combinados de muitas pessoas importantes. Ele não paga juros,
ao contrário das melhores casas de contabilidade, mas também não mantém livros-caixas das transações para os cobradores de impostos. Supostamente, ele possui um
livro, escondido só os deuses sabem onde, com registros apenas de próprio punho. No geral, essas informações são mais boatos.
– Esses 50 mil não cobrem nada além das verbas operacionais da casa, certo? Então quanto você presume que valha o conteúdo total do cofre?
– Isso não passa de leitura de entranhas sem as entranhas, mas... Trezentos mil? Trezentos e cinquenta?
– Parece razoável.
– É, bem, os detalhes do próprio cofre são muito mais sólidos. Aparentemente, Requin não se importa em deixar que alguns fatos sejam divulgados. Acha que isso dissuade
os ladrões.
– Eles são sempre dissuadidos, não é?
– Nesse caso, podem ter motivo. Escute. A Agulha do Pecado tem cerca de 50 metros de altura, é um grosso cilindro de Vidrantigo. Você conhece bem estruturas desse
tipo, já que tentou pular de uma há uns dois meses. Desce terra adentro cerca de 30 metros. Tem uma porta no nível da rua e outra para o cofre embaixo da torre.
Uma. Sem segredos, sem entradas laterais. O chão é de Vidrantigo puríssimo: não há como abrir um túnel através dele, nem em mil anos.
– Mmmm-hummm.
– Requin tem pelo menos quatro guardas em cada andar a qualquer momento, além de dezenas de funcionários das mesas, crupiês e garçons. No terceiro andar, há um salão
onde ele mantém outros funcionários fora das vistas. Logo, pensemos em, no mínimo, cinquenta ou sessenta trabalhadores leais em serviço e mais vinte ou trinta que
ele pode chamar. E muitos são brutamontes malignos. Ele gosta de recrutar ex-soldados, mercenários, ladrões e pessoas do gênero. Dá cargos confortáveis às suas Pessoas
Certas como prêmio por serviços bem-feitos e paga como se fosse uma mãe zelosa. Além disso, há histórias de crupiês que ganham de figurões sortudos gorjetas equivalentes
ao salário de um ano, isso em apenas uma ou duas noites. Suborno não deve funcionar com ninguém.
– Mmmm-hummm.
– Ele tem três níveis de portas no cofre, todas de madeira-bruxa engastada com ferro, 7 a 10 centímetros de espessura. A última porta é supostamente revestida de
aço enegrecido, logo, mesmo que você tivesse uma semana para arrebentar as outras duas, jamais passaria pela terceira. Todas têm mecanismos de engrenagens, os melhores
e mais caros de Tal Verrar, projetos particulares de mestres da Guilda dos Artífices. As ordens são de que nenhuma porta se abra a não ser que ele esteja lá pessoalmente
para supervisionar; ele assiste a cada depósito e cada retirada. E abre as portas no máximo duas vezes por dia. Atrás da primeira porta, ficam entre quatro e oito
guardas, em salas com catres, comida e água. Eles podem ficar lá durante uma semana, sob cerco.
– Mmm-humm.
– A porta interna só se abre com uma chave que ele mantém no pescoço. As portas externas só se abrem com uma chave que ele sempre dá à sua governanta. Portanto você
precisaria das duas para ir a qualquer lugar.
– Mmm-hmm.
– E as armadilhas... são uma coisa de louco, ou pelo menos é o que dizem os boatos. Placas de pressão, contrapesos, balestras nas paredes e nos tetos. Venenos de
contato, jatos de ácido, câmaras cheias de serpentes ou aranhas venenosas... Um sujeito chegou a dizer que há uma câmara antes da última porta que se enche com uma
nuvem de pó de pétalas de Orquídeas de Estrangulador e, enquanto você está sufocando, um bocado de fósforos de enrolar cai do teto, incendeia a coisa toda e você
queima até virar carvão. Pior não pode ficar.
– Mmm-hummm.
– Para agravar a situação, a parte interna do cofre é guardada por um dragão tratado por cinquenta mulheres nuas armadas com lanças envenenadas, e cada uma jurou
morrer a serviço de Requin. Todas ruivas.
– Isso é tudo invencionice, Jean.
– Queria ver se você estava escutando. Mas o que quero dizer é que não me importo se ele tem 1 milhão de solaris lá dentro, colocados em sacos para facilitar o carregamento.
Estou inclinado à ideia de que esse cofre pode não ser penetrável, a não ser que você tenha trezentos soldados, seis ou sete carroças e uma equipe de mestres artífices
mecânicos sobre os quais não me falou.
– Certo.
– Você tem trezentos soldados, seis ou sete carroças e uma equipe de mestres artífices mecânicos sobre os quais não me falou?
– Não, tenho você, eu, o conteúdo das nossas bolsas de moedas, esta carruagem e um baralho. – Ele tentou uma complicada manipulação das cartas e elas irromperam
da sua mão de novo, espalhando-se no assento oposto. – Foda-me com uma alabarda!
– Então devo insistir, Senhor da Prestidigitação: talvez haja em Tal Verrar algum outro alvo que devamos considerar...
– Não sei se seria sensato. Tal Verrar não tem uma aristocracia otária para nós brincarmos. O Arconte é um tirano com uma rédea comprida: pode mexer nas leis o quanto
quiser, prefiro não passar a perna nele. O conselho do Priori é formado por mercadores de origem comum, tremendamente difíceis de ser enganados. Há uma boa quantidade
de possíveis vítimas de golpes pequenos, mas, se quisermos um dos grandes, Requin é o melhor alvo. Ele tem o que nós queremos.
– Mas o cofre dele...
– Deixe-me dizer exatamente o que vamos fazer com relação ao cofre.
Locke falou durante alguns minutos enquanto juntava o baralho, delineando os menores detalhes da trama. As sobrancelhas de Jean se levantaram, tentando se descolar
do rosto.
– ... Então é isso. O que me diz, Jean?
– Incrível. Pode funcionar se...
– Se...?
– Você tem certeza de que lembra como usar um arnês de escalada? Eu estou meio enferrujado.
– Teremos um bom tempo para treinar, não é?
– Espero que sim. Hummm. E vamos precisar de um carpinteiro. De fora de Tal Verrar, obviamente.
– Podemos procurar isso também, assim que tivermos um pouco de moedas de volta nos bolsos.
Jean suspirou e todo o humor o abandonou como vinho saindo de um odre furado.
– Acho... que com isso só resta... Droga.
– O quê?
– Eu, ah... Bom, diabos. Você vai ter outro colapso? Vai permanecer confiável?
– Permanecer confiável? Jean, você pode... Maldição, veja você mesmo! O que eu estive fazendo? Me exercitando, planejando e pedindo desculpas a droga do tempo todo!
Sinto muito, Jean, de verdade. Vel Virazzo foi uma fase ruim. Sinto falta de Calo, Galdo e Pulga.
– Eu também, mas...
– Eu sei. Deixei minha tristeza me dominar. Fui tremendamente egoísta e sei que você deve estar sofrendo tanto quanto eu. Falei coisas idiotas. Mas achei que tinha
sido perdoado... Entendi mal? – indagou Locke, endurecendo a voz. – Agora devo entender que o perdão é uma coisa que tende a ir e vir como as marés?
– Ah, isso não é justo. Só...
– Só o quê? Eu sou especial, Jean? Sou nosso único ponto fraco? Quando foi que já duvidei da sua capacidade? Quando foi que tratei você como criança? Você não é
a minha mãe, porra, e certamente não é o Correntes. Não podemos ser parceiros se você vai ficar me julgando desse jeito.
Os dois se encararam, tentando transparecer uma indignação fria, mas fracassando. O clima dentro da pequena cabine se tornou soturno e Jean olhou carrancudo pela
janela por alguns instantes enquanto Locke embaralhava as cartas, deprimido. Locke tentou de novo cortar com apenas uma das mãos e não se surpreendeu por acabar
lançando as cartas no banco oposto, ao lado de Jean.
– Desculpe – falou Locke. – Falei outra merda. Pelos deuses, quando foi que descobrimos como é fácil sermos cruéis um com o outro?
– Você está certo – admitiu Jean, baixinho. – Não sou o Correntes e certamente não sou sua mãe. Não deveria pegar no seu pé.
– Deveria, sim. Você me empurrou para fora daquele galeão e de Vel Virazzo. Você estava certo. Eu me comportei de modo terrível e entendo que você ainda esteja...
nervoso comigo. Eu fiquei tão preso às minhas perdas que esqueci o que ainda tinha. Fico feliz porque você ainda se preocupa comigo a ponto de chutar meu rabo quando
é necessário.
– Eu, ah, olha... Peço desculpa também. Eu só...
– Droga, não me interrompa quando estou me sentindo virtuosamente autocrítico. Me envergonho de meu comportamento em Vel Virazzo. Foi uma desconsideração por tudo
o que passamos juntos. Prometo melhorar. Isso tranquiliza você?
– Sim. Sim, tranquiliza.
Jean começou a pegar as cartas espalhadas e o esboço de um sorriso reapareceu no seu rosto. Locke se acomodou no assento e esfregou os olhos.
– Pelos deuses, precisamos de um alvo, Jean. Precisamos de um golpe. Precisamos de alguém em quem trabalhar, como uma equipe. Não vê? Não é só pelo que podemos arrancar
do Requin. Eu quero que sejamos nós contra o mundo, vívidos e perigosos, como antes. Onde não haja espaço para esse tipo de dúvida, certo?
– Porque estaríamos constantemente a centímetros de uma morte sangrenta e terrível.
– Isso. Bons tempos.
– Esse plano pode levar um ano – falou Jean devagar. – Talvez dois.
– Para um golpe tão interessante, eu estou disposto a gastar um ou dois anos. Você tem algum outro compromisso urgente?
Jean negou, entregou as cartas a Locke e voltou às suas anotações com uma expressão profundamente pensativa. Locke acompanhou a borda do baralho com os dedos da
mão esquerda, que parecia um pouco menos útil do que uma garra de caranguejo. Podia sentir as cicatrizes ainda recentes coçando por baixo da túnica de algodão –
cicatrizes tão vastas a ponto de parecer que a maior parte de seu lado esquerdo fora costurada a partir de pedaços de trapos. Maldição, ele se sentia pronto para
estar curado naquele momento. Estava pronto para ter de volta sua antiga agilidade despreocupada. Imaginou que se sentia como um homem com o dobro da sua idade.
Tentou de novo embaralhar com a mão esquerda e o maço de cartas se desfez nas suas mãos. Pelo menos não havia disparado em todas as direções. Seria uma melhora?
Ele e Jean ficaram em silêncio por um bom tempo.
A carruagem chacoalhou ao redor de uma última colina pequena e de súbito Locke estava contemplando uma paisagem que parecia um tabuleiro de xadrez verde, descendo
até os penhascos marítimos a 8 ou 9 quilômetros. Pontos cinzentos, brancos e pretos salpicavam o cenário, adensando-se na direção do horizonte, onde a parte continental
de Tal Verrar se apinhava junto às bordas dos penhascos. A área litorânea da cidade parecia comprimida sob a chuva; grandes cortinas prateadas passavam atrás, bloqueando
as ilhas verraris. Raios espocavam azuis e brancos à distância e trovões fracos ecoavam até eles através dos campos.
– Chegamos – disse Locke.
– Só na região continental – retrucou Jean sem levantar os olhos. – É melhor encontrarmos uma estalagem; vai ser difícil arranjar um barco para as ilhas com um tempo
assim.
– Quem nós seremos quando chegarmos?
Jean levantou os olhos e mordeu o lábio antes de engolir a isca do antigo jogo.
– Não vamos ser camorris por um tempo. Ultimamente, Camorr não nos trouxe nada de bom.
– Talishanis?
– Parece bom. – Jean ajustou um pouco a voz, adotando o sotaque fraco mas característico da cidade de Talisham. – Desconhecido Anônimo e seu sócio Anônimo Desconhecido.
– Que nomes deixamos nos livros-caixas da Meraggio?
– Bom, Lukas Fehrwight e Evante Eccari estão fora de cogitação. Mesmo se aquelas contas não tiverem sido confiscadas pelo Estado, estarão sendo vigiadas. Você acredita
que o Aranha não vai ficar com coceira no rabo se descobrir que estamos ativos em Tal Verrar?
– Acho que estou lembrando... Jerome de Ferra, Leocanto Kosta e Milo Voralin.
– Eu mesmo abri a conta de Milo Voralin. Ele deveria ser vadrã. Acho que podemos deixá-lo como reserva.
– E é só isso que nos resta? Três contas úteis?
– Infelizmente, sim. Porém, é mais do que a maioria dos ladrões tem. Eu vou ser Jerome.
– Então, acho que eu vou ser Leocanto. O que estamos fazendo em Tal Verrar, Jerome?
– Somos... contratados de uma condessa lashani. Ela está pensando em comprar uma casa de veraneio em Tal Verrar e viemos procurar uma para ela.
– Hummm. Isso pode ser bom durante alguns meses, mas e depois que tivermos olhado todas as propriedades disponíveis? Isso vai dar muito trabalho, se não queremos
que todo mundo desconfie. E se nos intitularmos... especuladores mercantis?
– Especuladores mercantis. Boa. Não precisa significar porcaria nenhuma.
– Exato. Se passarmos o tempo todo nas casas de tavolagem cortando baralhos, bem, só estamos deixando o tempo passar até que uma condição de mercado amadureça.
– Ou somos tão bons no trabalho que nem precisamos trabalhar.
– Tudo se realiza por si só. Como foi que nos conhecemos e há quanto tempo estamos juntos?
– Nós nos conhecemos há cinco anos. – Jean coçou a barba. – Numa viagem marítima. Viramos sócios por puro tédio. Desde então somos inseparáveis.
– Só que o meu plano exige que eu trame a sua morte.
– É, mas eu não sei disso, sei? Bom companheiro! Não suspeito de nada.
– Otário! Mal posso esperar para ver você se dar mal.
– E o saque? Presumindo que consigamos ganhar a confiança de Requin, controlar os movimentos e sair da cidade com tudo intacto... nós não falamos de fato do que
vem depois.
– Vamos ser ladrões velhos, Jean. – Locke estreitou os olhos e tentou captar detalhes da paisagem varrida pela chuva enquanto a carruagem dava a última volta na
estrada longa e reta que entrava em Tal Verrar. – Ladrões velhos de 27, ou talvez 28 anos ao fim disso. Não sei. O que acha de se tornar visconde?
– De Lashane – divagou Jean. – Comprar dois títulos, é o que você quer dizer? Nos estabelecer lá de uma vez por todas?
– Não sei se eu iria tão longe. Mas na última vez que ouvi falar, os títulos fracos estavam valendo cerca de 10 mil solaris e os melhores, de 15 a 20. Isso nos daria
um lar e algum poder. Poderíamos fazer o que quiséssemos a partir daí. Tramar mais golpes. Envelhecer com conforto.
– Aposentadoria?
– Não podemos andar por aí disfarçados para sempre, Jean; nós dois sabemos disso. Cedo ou tarde vamos precisar escolher outro tipo de crime. Vamos aplicar um grande
golpe neste lugar e depois mergulhar em alguma coisa útil. Construir algo de novo. O que vier em seguida... bom, podemos nos entreter com esse enigma quando chegarmos
a ele.
– Visconte Desconhecido Anônimo de Lashane e seu vizinho, o Visconde Anônimo Desconhecido. Acho que existem destinos piores.
– Certamente... Jerome. Então, você está comigo?
– Claro, Leocanto. Você sabe disso. Talvez mais dois anos de roubos honestos me deixem pronto para me aposentar. Eu poderia voltar para as sedas e os navios, como
mamãe e papai, talvez buscar alguns dos antigos contatos deles, se lembrar direito quem são.
– Acho que Tal Verrar vai ser boa para nós. É uma cidade intacta. Nunca trabalhamos nela e ela nunca viu algo como nós. Ninguém nos conhece, ninguém nos espera.
Teremos liberdade total de movimento.
A carruagem seguiu em frente, barulhenta sob a chuva, chacoalhando em trechos onde as gastas pedras da Estrada do Trono Terim foram lavadas de suas camadas de terra
protetora. Os raios iluminavam o céu ao longe, mas o véu cinza redemoinhava denso entre a terra e o mar, e a grande massa de Tal Verrar estava escondida dos olhos
deles.
– Você está certo, Locke: acho que precisamos mesmo de um golpe. – Jean pousou as anotações no colo e estalou os nós dos dedos. – Pelos deuses, vai ser bom perambular
por aí. Vai ser bom sermos predadores outra vez.
CAPÍTULO TRÊS
Hospitalidade calorosa
1
A câmara era um cubo de tijolos rústicos com cerca de 2,5 metros de lado. Estava completamente escura e um árido calor de sauna irradiava das paredes quentes demais
para serem tocadas por mais do que alguns segundos. Só os deuses sabiam havia quanto tempo Locke e Jean estavam sufocando ali dentro – provavelmente horas.
– Argh – fez Locke, a voz falha.
Ele e Jean estavam sentados na escuridão, apoiados um nas costas do outro, com os casacos dobrados embaixo. Locke bateu os calcanhares nas pedras do chão, não pela
primeira vez.
– Maldição! Deixem-nos sair. Vocês já provaram seu argumento!
– Que argumento seria esse? – perguntou Jean, rouco.
– Não sei. – Locke tossiu. – Não importa. O que quer que seja, eles provaram, não acha?
2
A remoção dos capuzes foi um alívio durante uns dois segundos.
Antes, viera um período interminável tropeçando na escuridão sufocante, puxados e cutucados por captores que pareciam ter alguma pressa. Depois houve mesmo um trecho
percorrido de barco; Locke sentiu o cheiro da névoa salgada subindo do porto da cidade enquanto o convés oscilava suavemente embaixo dele e remos estalavam de modo
compassado.
Por fim, o barco se imobilizou e balançou quando alguém se levantou e se moveu. Os remos foram puxados para dentro e uma voz desconhecida pediu varas. Após alguns
instantes, a embarcação bateu em alguma coisa e mãos fortes colocaram Locke de pé outra vez e o ajudaram a alcançar uma superfície firme. O capuz foi tirado bruscamente
da sua cabeça e ele olhou ao redor e piscou sob a luz súbita.
– Ah, merda.
A Castellana era a propriedade fortificada dos duques de Tal Verrar séculos antes. Agora que a cidade havia dispensado a nobreza e seus títulos, o território tomado
por mansões era lar de um novo tipo de pequena nobreza abastada: os conselheiros do Priori, os ricos independentes e os chefes de guildas cujas posições sociais
exigiam as demonstrações mais ostensivas de opulência.
No coração da Castellana, guardado por um fosso vazio como um cânion circular feito de Vidrantigo, ficava o Mon Magisteria, o palácio do Arconte, um altíssimo feito
humano brotando da grandiosidade excêntrica. Uma elegante erva daninha de pedra crescendo num jardim de vidro.
Locke e Jean tinham sido trazidos a um ponto diretamente abaixo dele. Locke achou que estavam no espaço vazio que separava o Mon Magisteria da ilha ao redor; uma
caverna com milhões de facetas de Vidrantigo escuro subia em volta deles e a parte superior da ilha, ao ar livre, ficava a 15 ou 20 metros acima de suas cabeças.
O canal por onde o barco viajara serpenteava à esquerda e o som da água batendo era abafado por um ribombar distante sem causa visível.
Havia um largo atracadouro de pedra na base da ilha particular do Mon Magisteria com vários barcos amarrados, inclusive uma barca cerimonial fechada, com toldos
de seda e entalhes dourados. Suaves lâmpadas alquímicas azuis em postes de ferro enchiam o espaço com luz e, atrás, uma dúzia de soldados estava em posição de sentido.
Se Locke ainda não soubesse a identidade de seu captor, aqueles soldados revelariam tudo.
Usavam gibões e calções azul-escuros com braçadeiras de couro preto, coletes e botas adornados com desenhos em relevo feitos de latão reluzente. Os capuzes azuis
estavam levantados e os rostos eram cobertos por máscaras ovais sem feições, feitas de bronze polido. Tramas de furos minúsculos permitiam que enxergassem e respirassem,
mas, à distância, qualquer impressão de humanidade era apagada – os soldados eram esculturas sem rosto trazidas à vida.
Os Olhos do Arconte.
– Cá estão vocês, então, mestre Kosta, mestre de Ferra. – A mulher que havia sequestrado Locke e Jean subiu no atracadouro entre eles e segurou-os pelos cotovelos,
sorrindo como se estivessem saindo para uma noitada na cidade. – Este não é um lugar mais privado para uma conversa?
– O que fizemos para merecer o transporte até aqui? – perguntou Jean.
– Não sou a pessoa certa para responder a isso – disse a mulher, empurrando-os gentilmente. – Meu trabalho é buscar e entregar.
Ela soltou os Nobres Vigaristas diante da primeira fila de soldados do Arconte. As expressões inquietas dos dois se refletiam numa dúzia de reluzentes máscaras de
bronze.
– E às vezes – continuou a mulher, retornando ao bote –, quando os convidados não voltam, meu serviço é esquecer que já os vi.
Os Olhos do Arconte se moveram sem um sinal aparente; Locke e Jean foram envolvidos e seguros por vários soldados.
– Vamos subir – falou outra mulher. – Vocês não devem lutar nem falar.
– Ou o quê? – indagou Locke.
O Olho que havia falado foi até Jean sem hesitar e lhe deu um soco na barriga. O grandalhão exalou com surpresa e fez uma careta enquanto o Olho se virava para Locke.
– Se algum de vocês causar encrenca, sou instruída a castigar o outro. Fui clara?
Locke trincou os dentes e assentiu.
Uma ampla escadaria em ziguezague subia a partir do ancoradouro; o vidro sob os pés era áspero como tijolo. Um lance depois do outro, os soldados do Arconte levaram
Locke e Jean para cima, passando por paredes brilhantes, até que a úmida brisa noturna da cidade atingiu-os de novo no rosto.
Emergiram junto ao abismo de vidro. Havia uma guarita ao lado deles, perto da abertura de 10 metros de largura, ao lado de uma ponte levadiça atualmente erguida
em ângulo reto e engastada numa pesada estrutura de ferro. Locke presumiu que fosse o meio usual de entrar nos domínios do Arconte.
O Mon Magisteria era uma fortaleza ducal no verdadeiro estilo do Trono Terim, tinha facilmente quinze andares de altura e uma largura três ou quatro vezes maior.
Camada após camada de muralhas com ameias se erguiam, formadas de pedras chatas e pretas que absorviam as fontes de luz lançadas para cima por dezenas de lanternas
que ardiam no terreno do castelo. Aquedutos sobre colunas envolviam as muralhas e torres em todos os níveis e jorros de água decorativa cascateavam de esculturas
de dragões e monstros marinhos colocadas nos cantos da fortaleza.
Os Olhos do Arconte levaram Locke e Jean para a frente do palácio, descendo por um caminho largo salpicado de cascalho branco. Havia luxuriantes jardins verdes dos
dois lados, atrás de bordas de pedras decorativas que faziam os gramados parecerem ilhas. Mais Olhos permaneciam presos ao longo do caminho, segurando alabardas
de aço enegrecido com luzes alquímicas engastadas nos cabos de madeira.
Onde a maioria dos castelos teria um portão frontal, o Mon Magisteria tinha uma cachoeira mais larga que a do caminho que percorriam; essa era a fonte do som que
Locke ouvira ecoando no atracadouro lá embaixo. Múltiplas torrentes de água despencavam de enormes buracos escuros em linha que subiam direto pela parede do castelo;
juntavam-se e caíam num fosso borbulhante na base da estrutura, mais largo ainda do que o cânion que separava o terreno do castelo do resto da Castellana.
Uma ponte ligeiramente arqueada sumia dentro da violenta cachoeira branca, mais ou menos na metade da distância acima do fosso. Uma névoa quente se elevava ao redor
do grupo enquanto eles se aproximavam da extremidade da passagem, que, agora Locke podia ver, tinha uma espécie de sulco entalhado, seguindo do centro por toda a
extensão visível. Ao lado da ponte, havia uma corrente de ferro pendurada no topo de um estreito pilar de pedra. Um dos Olhos lhe deu três puxões rápidos.
Um instante depois, soou um ruído metálico e chacoalhado vindo da ponte. Uma forma escura surgiu do outro lado da cachoeira, cresceu e irrompeu na direção deles
com névoa e água explodindo do teto. Era uma caixa longa, de madeira e tiras de ferro, com 5 metros de altura e da mesma largura da ponte. Veio deslizando e ribombando
pelo trilho escavado na ponte até parar com um guincho de metal contra metal, logo à frente deles. Uma porta dupla se abriu, empurrada de dentro por dois empregados
usando casacos azul-escuros com acabamento trançado de prata.
Locke e Jean foram levados para o espaçoso meio de transporte, que tinha janelas na extremidade virada para o castelo. Através delas, Locke não conseguia ver nada
além da água caindo.
Os Nobres Vigaristas e todos os Olhos entraram na caixa e os empregados fecharam a porta. Um deles puxou uma corrente na parede da direita e, com um ribombar e uma
sacudida, a caixa foi puxada de volta para o lugar de onde viera. A cachoeira batia forte no teto; o som era como estar numa carruagem sob uma tempestade violenta.
Locke supôs que a queda-d’água teria entre 5 e 6 metros de largura. Uma pessoa desprotegida jamais conseguiria passar por baixo sem ser lançada no fosso; aliás,
esse talvez fosse o objetivo.
Além disso, era uma tremenda ostentação.
Logo chegaram ao outro lado da cachoeira. Locke pôde ver que eles estavam sendo levados para um enorme salão hemisférico com uma parede curva do lado oposto e um
teto com cerca de 10 metros de altura. Lustres alquímicos lançavam luzes prateadas, brancas e douradas e o lugar brilhava feito um cofre de tesouro através da distorção
das janelas cobertas de água. Quando a caixa parou rangendo, os empregados manipularam trancas escondidas para abrir as janelas da frente como uma gigantesca porta
dupla.
Locke e Jean foram empurrados para fora, porém mais gentilmente do que antes. As pedras aos seus pés estavam escorregadias de água e eles seguiram o exemplo dos
guardas, pisando com cuidado. A cachoeira rugiu às suas costas por mais um momento e, então, duas portas enormes se fecharam atrás do veículo e o ruído ensurdecedor
virou um eco abafado.
Algum tipo de motor movido a água podia ser visto num nicho de parede à esquerda de Locke. Vários homens e mulheres estavam diante de reluzentes cilindros de latão,
acionando alavancas ligadas a equipamentos mecânicos cujas funções estavam muito além da capacidade de Locke adivinhar. Pesadas correntes de ferro desapareciam em
buracos escuros no piso logo ao lado da trilha por onde a enorme caixa de madeira corria. Jean também inclinou a cabeça para olhar melhor, mas, assim que ultrapassaram
as perigosas pedras escorregadias, os soldados voltaram a empurrar os dois ladrões a passos rápidos.
Passaram depressa pelo saguão de entrada, suficientemente amplo para abrigar vários bailes ao mesmo tempo. O recinto não tinha janelas abertas para o exterior e,
sim, panoramas bastante artificiais feitos com vitrais iluminados. Cada uma mostrava uma paisagem estilizada do que seria visto através de um buraco verdadeiro aberto
na pedra: mansões e prédios brancos, céus escuros, as camadas de ilhas do outro lado do porto, dezenas de velas no ancoradouro principal.
Locke e Jean foram escoltados por um corredor secundário, subiram um lance de escada e seguiram por outro corredor, passando por guardas de casaco azul parados rigidamente
em posição de sentido. Seria imaginação de Locke ou algo além do respeito comum se insinuava no rosto deles? Não havia mais tempo para pensar, porque de súbito eles
foram imobilizados diante de uma porta de metal em um corredor com outras de madeira.
Um Olho destrancou a porta e empurrou-a. O cômodo do outro lado era pequeno e escuro. Soldados desataram rapidamente as amarras nos pulsos de Jean e Locke, que foram
empurrados para dentro.
– Ei, que droga é... – começou Locke, mas a porta se fechou com um estrondo atrás deles e o breu se tornou absoluto.
– Por Perelandro – praguejou Jean. Ele e Locke passaram alguns segundos trombando um no outro antes de conseguirem recuperar algum equilíbrio e dignidade. – Como
diabos atraímos a atenção desses malditos escrotos?
– Não sei, Jerome. – Locke deu uma leve ênfase ao pseudônimo. – Mas talvez as paredes tenham ouvidos. Ei! Seus escrotos desgraçados! Não se acanhem! Nós nos comportamos
muito bem quando somos encarcerados com civilidade.
Locke cambaleou na direção do que achava ser a parede mais próxima, para bater os punhos nela. Descobriu que era de tijolos ásperos.
– Maldição – murmurou, e chupou um dedo ralado.
– Estranho – disse Jean.
– O quê?
– Não tenho certeza.
– O quê?
– É só impressão minha ou está ficando mais quente aqui dentro?
3
O tempo passou com a velocidade de uma noite insone.
Locke estava vendo cores piscando e ondulando no escuro. Parte dele sabia que não eram reais, mas estava ficando menos assertiva a cada minuto. O calor era como
um peso sobre cada centímetro de sua pele. Sua túnica estava totalmente aberta e ele havia tirado os lenços de pescoço para enrolá-los nas mãos, de modo a se firmar
enquanto apoiava as costas em Jean.
Quando a porta se abriu com um estalo, ele demorou vários segundos para perceber que aquilo não era fruto da sua imaginação. A fresta de luz branca cresceu até virar
um quadrado e Locke se encolheu, tapando os olhos com as mãos. O ar vindo do corredor o atingiu como uma brisa fresca de outono.
– Cavalheiros, houve um equívoco terrível – disse alguém do outro lado.
– Angh gah ah – foi a única resposta que Locke conseguiu dar enquanto tentava lembrar como seus joelhos funcionavam. Sua boca estava mais seca do que se tivesse
sido enchida com farinha.
Mãos fortes e frescas se estenderam para ajudá-lo a se levantar; a cela oscilou ao redor no momento que ele foi levado até o abençoado corredor, acompanhado por
Jean. Foram cercados de novo por gibões azuis e máscaras de bronze, mas Locke estreitou os olhos contra a luz e sentiu mais vergonha do que medo. Sabia que estava
confuso, quase como se estivesse bêbado, e se sentia impotente para fazer qualquer coisa além de apreender aquela vaga percepção. Foi carregado por corredores e
escadas que subiam (Escadas! Pelos deuses, quantas escadas era possível haver num maldito palácio?), com as pernas apenas algumas vezes suportando parte do peso.
Sentia-se como uma marionete numa comédia cruel com um palco de tamanho espantosamente grande.
– Água – conseguiu pronunciar, ofegante.
– Em breve – garantiu um dos soldados que o carregavam. – Daqui a pouco.
Por fim, ele e Jean foram conduzidos através de uma porta dupla, alta e preta, para um escritório iluminado de modo suave com paredes que pareciam feitas de milhares
e milhares de minúsculas células de vidro, cheias de pequenas sombras tremeluzentes. Locke piscou e amaldiçoou o estado em que se encontrava; tinha ouvido marinheiros
falarem da “embriaguez seca”, da estupidez, da fraqueza e da irritabilidade que tomava conta de um homem sedento ao extremo, mas nunca imaginara que iria experimentar
isso em primeira mão. Aquilo tornava tudo muito estranho: sem dúvida estava incrementando os detalhes de uma sala perfeitamente comum.
O escritório tinha uma mesa pequena e três cadeiras simples de madeira. Locke se dirigiu até uma delas, mas foi firmemente contido e mantido de pé pelos soldados
que seguravam seus braços.
– O senhor deve esperar – alertou um deles.
Pouco depois, outra porta se abriu para o escritório e entrou, agitado, um homem usando um manto azul-marinho comprido e com acabamento em pele.
– Que os deuses defendam o Arconte de Tal Verrar – saudaram os quatro soldados ao mesmo tempo.
Maxilan Stragos, percebeu Locke, atordoado, o maldito supremo líder militar de Tal Verrar.
– Por piedade, deixem que esses homens se sentem – disse o Arconte. – Já causamos um tremendo mal a eles, Oficial das Espadas. Agora vamos lhes oferecer todas as
cortesias possíveis. Afinal de contas... não somos camorris.
– Claro, Arconte.
Locke e Jean foram rapidamente ajudados a sentar-se. Quando os soldados se certificaram de que eles não tombariam de imediato, recuaram e ficaram em posição de sentido
atrás dos dois. O Arconte gesticulou, irritado.
– Dispensado, Oficial das Espadas.
– Mas... Vossa Excelência...
– Fora das minhas vistas. Você já causou um sério embaraço, apesar das minhas instruções claríssimas sobre esses homens. Eles nem mesmo estão em condições de representar
uma ameaça a mim.
– Mas... sim, Arconte.
O homem fez uma reverência rígida, que os outros soldados imitaram. Os quatro saíram rapidamente do escritório, fechando a porta com o elaborado clique-claque de
um mecanismo de engrenagens.
– Cavalheiros – começou o Arconte –, os senhores devem aceitar minhas mais profundas desculpas. Minhas instruções foram mal interpretadas. Os senhores deveriam receber
todas as cortesias. Em vez disso, foram levados à câmara do suadouro, reservada aos piores tipos de criminosos. Eu confiaria que meus Olhos conseguiriam rivalizar
com inimigos dez vezes mais numerosos em qualquer luta, mas nesta simples questão eles me desonraram. Devo assumir a responsabilidade. Os senhores devem perdoar
esse equívoco e me permitir a honra de mostrar uma hospitalidade melhor.
Locke reuniu as forças para responder adequadamente, mas sussurrou uma oração silenciosa de agradecimento ao Guardião Torto quando Jean falou primeiro:
– A honra é nossa, Protetor. – Sua voz estava rouca, mas a consciência parecia retornar mais depressa que a de Locke. – A câmara foi um preço pequeno a pagar pelo
prazer de uma... audiência inesperada. Não há o que perdoar.
– O senhor é um homem de generosidade incomum – comentou Stragos. – Por favor, vamos dispensar as superfluidades: podem me chamar de “Arconte”.
Houve uma batida fraca à porta pela qual o Arconte havia surgido.
– Entre – disse ele.
Um homem baixo e careca, com elaborada libré azul e prateada, entrou. Carregava uma salva de prata em que havia três taças de cristal e uma garrafa grande de algum
líquido âmbar-claro. Locke e Jean fixaram o olhar nela com a intensidade de caçadores a ponto de disparar os últimos dardos contra alguma fera que estivesse vindo
em sua direção.
Quando o serviçal pousou a bandeja, o Arconte sinalizou para o homem se afastar e ele próprio pegou a garrafa.
– Vá – ordenou. – Sou perfeitamente capaz de servir sozinho esses pobres cavalheiros.
O homem fez uma reverência e desapareceu pela porta. Stragos tirou a rolha já afrouxada da garrafa e encheu duas taças até a borda com o conteúdo. O gorgolejar úmido
provocou uma dor de expectativa na parte interna das bochechas de Locke.
– Nesta cidade, é costumeiro que o anfitrião beba primeiro quando está servindo... – explicou Stragos. – Para estabelecer uma base de confiança no que ele está servindo.
Ele derramou dois dedos do líquido na terceira taça, levou-a aos lábios e engoliu o conteúdo de uma vez só.
– Ahh – fez ele enquanto entregava as taças cheias a Locke e Jean sem mais hesitação. – Pronto. Bebam. Não precisam ser delicados. Sou um soldado velho de guerra.
Os Nobres Vigaristas não foram nem um pouco delicados; engoliram a bebida com um abandono agradecido. Locke não se importaria se aquilo fosse sumo de minhoca espremida,
mas na verdade era algum tipo de cidra de pera, com uma acidez levíssima. Uma bebida para criança, quase incapaz de inebriar um pardal, e uma escolha astuta, dada
a condição deles. O líquido agradavelmente fresco jorrou pela garganta torturada de Locke e ele estremeceu de prazer.
Ele e Jean estenderam as taças vazias sem pensar, mas Stragos já estava esperando com a garrafa na mão e voltou a enchê-las, com um sorriso benevolente. Locke engoliu
metade da nova dose, depois se obrigou a fazer a segunda metade durar. Seu estômago já parecia irradiar energia para o organismo e ele suspirou de alívio.
– Muito agradecido, Arconte. Posso... ahn... perguntar como Jerome e eu o ofendemos?
– Ofenderam? De modo algum.
Ainda sorrindo, Stragos pousou a garrafa e sentou-se atrás da mesinha. Estendeu a mão para a parede e puxou uma corda de seda; um facho de luz de um âmbar claro
foi emitido do teto, focando o centro da mesa.
– O que os senhores fizeram, jovens amigos, foi atrair meu interesse.
Stragos estava emoldurado pelo facho de luz e Locke o examinou pela primeira vez. Era um homem sem dúvida próximo dos 60 – se é que já não havia passado dessa idade
– e tinha feições estranhamente quadradas. A pele era rosada e gasta pelo tempo; o cabelo, um teto cinza e chapado. Pela experiência de Locke, a maioria dos homens
poderosos eram ascetas ou glutões; Stragos não parecia uma coisa nem outra – era um homem equilibrado. E seus olhos eram astutos como os de um usurário diante de
um cliente necessitado. Locke bebericou sua cidra e rezou por inteligência.
A luz dourada era captada e refletida pelas células de vidro que formavam as paredes da sala. Quando Locke deixou seu olhar vaguear por um momento, ficou espantado
ao ver o conteúdo delas se movendo. As pequenas sombras eram borboletas, mariposas, besouros – centenas deles, talvez milhares. Cada um em sua pequenina prisão de
vidro... As paredes do escritório do Arconte eram a maior coleção de insetos de que Locke já ouvira falar, quanto mais vira com os próprios olhos. Ao seu lado, Jean
ofegou, evidentemente notando o mesmo. O Arconte deu um risinho de indulgência.
– Minha coleção. Não é impressionante?
Ele estendeu a mão de novo para a parede e puxou outra corda de seda; uma luz branca e suave cresceu por trás das paredes de vidro até que todos os detalhes de cada
espécime se tornaram claramente visíveis. Havia borboletas com asas escarlates, asas azuis, asas verdes... algumas com padrões multicoloridos, mais intrincados do
que tatuagens. Havia mariposas cinzentas, pretas e cor de ouro, com antenas enroladas. Besouros com carapaças reluzentes que brilhavam como metais preciosos e vespas
com asas translúcidas batendo ligeiras sobre os corpos sinistros e esguios.
– É incrível – comentou Locke. – Como é possível?
– Na verdade, não é. São todos artificiais, o melhor que a arte pode oferecer. Um mecanismo de relojoaria, vários andares abaixo, aciona um conjunto de foles, lançando
jatos de ar por tubos atrás das paredes deste escritório. Cada célula tem uma abertura minúscula atrás. A agitação das asas é bastante aleatória e realista... na
penumbra a pessoa pode nunca perceber a verdade.
– Mesmo assim não é menos incrível – opinou Jean.
– Bom, esta é a cidade dos artífices. Criaturas vivas exigem um cuidado muito tedioso. Os senhores podem pensar no meu Mon Magisteria como um repositório de coisas
artificiais. Aqui, bebam e deixem que eu sirva o resto da garrafa.
Stragos deu a cada um mais alguns dedos de bebida antes que a garrafa se esvaziasse. Em seguida, se acomodou atrás da mesa e tirou algo da salva de prata: uma espécie
de pasta fina revestida por uma capa marrom com lacres de cera partidos em três lados.
– Coisas artificiais. Assim como os senhores, mestre Kosta e mestre de Ferra. Ou será que devo chamá-los mestre Lamora e mestre Tannen?
Se Locke tivesse força para esmagar o pesado cristal verrari com as mãos, o Arconte teria perdido uma taça.
– Peço perdão – disse Locke, adotando um sorriso solícito, um pouco confuso –, mas não conheço ninguém com esses nomes. Jerome?
– Deve haver algum engano – respondeu Jean, com o mesmíssimo tom de perplexidade educada de Locke.
– Não há engano, senhores. – O Arconte abriu a pasta e examinou brevemente o conteúdo, cerca de doze páginas de pergaminho cobertas por belas letras pretas. – Recebi
uma carta curiosa há vários dias, por meio de canais seguros do meu aparato de inteligência. Uma carta contendo a mais singular coletânea de histórias. De um conhecido
pessoal, uma fonte pertencente à hierarquia dos Magos-Servidores de Kartane.
Nem mesmo as mãos de Jean podiam espatifar uma taça de cristal verrari, pensou Locke, caso contrário naquele momento a sala do Arconte seria decorada por cacos e
sangue.
Locke se forçou a arquear uma sobrancelha, ainda se recusando a ceder.
– Os Magos-Servidores? Pelos deuses, isso parece nefasto. Mas, ah, o que os Magos-Servidores teriam a ver comigo e com Jerome?
Stragos coçou o queixo, examinando os documentos da pasta.
– Aparentemente, os senhores são dois ladrões vindos de algum tipo de enclave secreto que tinha como base a Casa de Perelandro, no Bairro dos Templos, em Camorr:
achei um tanto ousado. Os senhores atuavam sem a permissão do Capa Vencarlo Barsavi, que não está mais entre os vivos. Roubaram dezenas de milhares de coroas de
vários Dons de Camorr. São responsáveis pela morte de um tal Luciano Anatolius, capitão bucaneiro que contratou um Mago-Servidor para ajudar em seus planos. E, talvez
o mais importante, vocês frustraram esses planos, mutilaram o Mago-Servidor e o derrotaram. Extraordinário. Mandaram-no de volta para Kartane meio morto e bastante
louco. Sem dedos, sem língua.
– Na verdade, Leocanto e eu somos de Talisham, e nós...
– Os dois são de Camorr. Jean Estevan Tannen, que é seu nome de verdade, e Locke Lamora, que não é o seu. Isso é enfatizado por algum motivo. Vocês estão na minha
cidade como parte de uma trama contra aquele patife do Requin... Supostamente estavam se preparando para invadir o cofre dele. Boa sorte. Precisamos continuar com
este joguinho? Parece que os Magos-Servidores querem acabar com vocês.
– Aqueles escrotos – murmurou Locke.
– Vejo que vocês de fato os conhecem pessoalmente – prosseguiu Stragos. – No passado, contratei alguns deles. São um pessoal sensível. Então vocês admitem que este
relatório é verdadeiro? Vamos lá, Requin não é meu amigo. É ligado ao Priori e poderia muito bem fazer parte da droga do conselho.
Os Nobres Vigaristas se entreolharam e Jean deu de ombros.
– Muito bem – respondeu Locke. – Parece que o senhor tem uma tremenda vantagem sobre nós, Arconte.
– Para ser exato, tenho três: este relatório documentando detalhadamente suas atividades; vocês aqui no centro do meu império; e, para meu conforto, tenho-os presos
na coleira.
– E o que isso significa? – perguntou Locke.
– Talvez meus Olhos não tenham me embaraçado, senhores. Talvez tenha sido intencional vocês dois permanecerem algumas horas na câmara do suadouro, para sentirem
uma sede que precisasse ser aplacada.
Ele fez um gesto para as taças de Locke e Jean, que agora tinham apenas algumas gotas.
– O senhor colocou alguma coisa na cidra – disse Jean.
– É claro. Um excelente venenozinho.
4
Por um momento, a sala ficou completamente silenciosa, a não ser pelo adejar suave de asas de insetos artificiais. Então, Locke e Jean se levantaram das cadeiras
ao mesmo tempo, mas Stragos nem sequer se mexeu.
– Sentem-se. A não ser que prefiram não ouvir o que se passa.
– O senhor bebeu da mesma garrafa – retrucou Locke, ainda de pé.
– Claro que bebi. O veneno não estava na cidra, mas nas taças, passado no fundo. Incolor e insípido. Uma substância alquímica criada para mim, bastante cara. Vocês
deveriam se sentir lisonjeados. Aumentei seu valor pessoal.
– Eu sei uma ou duas coisas sobre venenos. O que é?
– Qual seria o sentido de contar mais alguma coisa? Vocês podem tentar criar um antídoto. Do contrário, sua única fonte possível seria eu.
Ele sorriu e qualquer fingimento de gentileza contrita foi arrancado de suas feições como uma casca abandonada por um inseto. Agora havia um Stragos muito diferente
com eles, de voz ríspida.
– Sentem-se. Agora vocês estão à minha disposição, obviamente. Vocês não são o que eu desejaria, pelos deuses, mas talvez seja o que eu tenha de melhor para usar.
Locke e Jean se acomodaram nas cadeiras, inquietos. Locke jogou sua taça no tapete, onde ela quicou e rolou até parar junto à mesa de Stragos.
– Você também deve saber que já fui envenenado antes com propósitos coercitivos – disse Locke.
– Já? Que conveniente. Então certamente vai concordar que é melhor do que ser envenenado com propósitos homicidas.
– O que o senhor quer que façamos?
– Algo útil. Algo grandioso. De acordo com este relatório, você é o Espinho de Camorr. Meus agentes me trouxeram histórias a seu respeito... os boatos mais ridículos,
que agora vejo serem verdadeiros. Achei que você era um mito.
– O Espinho de Camorr é um mito. E nunca foi só eu. Nós sempre trabalhamos em grupo, em equipe.
– Claro. Não precisa enfatizar a importância de mestre Tannen. Está tudo aqui neste dossiê. Vou manter os dois vivos enquanto me preparo para a tarefa que tenho
em mente para vocês. Ainda não estou pronto para falar dela, portanto digamos que os estou reservando nesse meio-tempo. Cuidem dos seus negócios. Quando eu chamar,
vocês virão.
– Nós viremos? – cuspiu Locke.
– Ah, vocês podem sair da cidade, mas se fizerem isso, vão ter uma morte lenta e sofrida antes que se passe outra estação. E isso desapontaria todos nós.
– O senhor pode estar blefando – retrucou Jean.
– É, é, mas vocês são homens racionais: um blefe os seguraria tanto quanto um veneno de verdade, não é? Mas convenhamos, Tannen, eu tenho recursos para não blefar.
– E o que nos impede de fugir depois de recebermos o antídoto?
– O veneno é latente, Lamora. Fica no corpo por muitos, muitos meses, se é que não anos. Eu lhes darei o antídoto a intervalos, desde que vocês me satisfaçam.
– E que garantia temos de que o senhor vai continuar nos dando o antídoto quando tivermos realizado a tarefa que o senhor deseja?
– Vocês não têm nenhuma.
– E não temos alternativas melhores.
– Claro que não.
Locke fechou os olhos e os massageou gentilmente com os nós dos dedos indicadores.
– Esse suposto veneno vai interferir de algum modo em nossa vida cotidiana? Vai complicar nossa percepção, agilidade ou saúde?
– Nem um pouco. Vocês só sentiriam algo muito depois da hora de receber o antídoto. Até lá seus negócios não terão obstáculos.
– Mas o senhor já colocou obstáculos – replicou Jean. – Estamos num ponto muito delicado das negociações com Requin.
– Ele nos deu ordens rígidas – completou Locke – de não fazer nada de suspeito enquanto ele fareja nossas atividades recentes. Desaparecer das ruas aos cuidados
do pessoal do Arconte provavelmente pareceria suspeito.
– Isso já foi levado em consideração – afirmou o Arconte. – A maioria das pessoas que tiraram vocês das ruas faz parte de uma das gangues de Requin. Ele só não sabe
que elas trabalham para mim. Vão lhes informar que viram vocês por aí, mesmo que outros não tenham visto.
– Você acredita que Requin é cego à verdadeira lealdade deles?
– Que os deuses abençoem sua divertida insolência, Lamora, mas não vou justificar todas as minhas ordens. Vocês vão aceitá-las como meus outros soldados e, se precisarem
confiar, confiem no julgamento que me mantém como Arconte há quinze anos.
– É a nossa vida que vai estar na mão de Requin se você estiver errado, Stragos.
– A vida de vocês está na minha mão, independentemente de qualquer coisa.
– Requin não é idiota!
– Então por que estão tentando roubá-lo?
– Gostamos de nos lisonjear... – começou Jean.
– Vou lhes dizer por quê – interrompeu Stragos, fechando a pasta e cruzando as mãos. – Vocês não são apenas gananciosos. Vocês dois sentem uma luxúria doentia pela
empolgação. Contemplar chances remotas deve deixá-los embriagados. Caso contrário, por que escolheriam a vida que têm, quando obviamente poderiam ter sucesso como
ladrões de um tipo mais comum, nos limites permitidos por Barsavi?
– Se você acha que essa pilhazinha de papéis lhe dá conhecimento suficiente para nos julgar...
– Vocês dois gostam de correr riscos. São excepcionais, profissionais em correr riscos. Eu tenho exatamente o risco certo para vocês. Talvez até gostem dele.
– Eu poderia acreditar antes de saber da cidra.
– Sei que o que fiz os deixa com o pé atrás, me querendo mal. Avaliem minha posição. Eu fiz isso com vocês porque respeito suas habilidades. Não posso me dar ao
luxo de tê-los ao meu serviço sem controle. Vocês dois são uma alavanca e um ponto de apoio procurando uma cidade para virar de cabeça para baixo.
– Por que diabos você não poderia simplesmente nos contratar?
– Como o dinheiro seria suficiente para instigar dois homens que podem consegui-lo com tanta facilidade quanto vocês?
– Então o fato de que está fodendo a gente como uma concubina jeremita é, na verdade, um doce elogio? – perguntou Jean. – Seu...
– Calma, Tannen – falou Stragos.
– Por que ele deveria se acalmar? – Locke ajeitou a túnica amarrotada e suada e começou a amarrar os lenços no pescoço com uma agitação irritada. – Você nos envenena,
nos impõe uma tarefa misteriosa e não oferece pagamento. Complica nossa vida e espera nos convocar à vontade quando decidir revelar essa tarefa. Pelos deuses. E
quanto a despesas, nós é que deveremos arcar com elas?
– Vocês terão qualquer verba e materiais de que necessitem para atuar a meu serviço. E antes que fiquem animados, lembrem que vão prestar contas de cada centira.
– Ah, esplêndido. E que outras mordomias seu trabalho garante? Almoço grátis no alojamento dos Olhos? Leitos de convalescença depois que Requin cortar nossos bagos
e costurá-los nas órbitas dos olhos?
– Não estou acostumado a que falem comigo desse...
– Acostume-se – retrucou Locke rispidamente, levantando-se da cadeira e começando a espanar o casaco. – Tenho uma contraproposta, que insisto em que leve bastante
a sério.
– Verdade?
– Esqueça isso, Stragos. – Locke repuxou o casaco, sacudiu os ombros para ajeitá-lo e segurou-o pelas lapelas. – Esqueça essa trama ridícula. Dê-nos antídoto suficiente,
se é que existe, para nos tranquilizar por enquanto. Ou diga o que é e mandaremos nosso próprio alquimista cuidar disso, com nossas próprias verbas. Mande-nos de
volta ao Requin, por quem você não professa amor, e nos deixe continuar a roubá-lo. Não nos incomode mais e retribuiremos o favor.
– O que eu poderia ganhar com isso?
– Meu argumento é que isso lhe permitiria manter tudo o que você tem atualmente.
– Meu caro Lamora... – Stragos riu com um som suave e seco como um eco dentro de um caixão – Sua fanfarronice pode bastar para convencer um Dom vagabundo e covarde
de Camorr a entregar sua bolsa de moedas. Talvez até pudesse bastar para completar a tarefa que tenho em mente. Mas agora vocês são meus e os Magos-Servidores foram
bastante claros sobre como vocês podem ser vencidos.
– Ah, é? Como?
– Se me ameaçar mais uma vez, mandarei que Jean seja levado de volta à câmara do suadouro pelo resto da noite. Você pode esperar, acorrentado do lado de fora em
total conforto, imaginando como deve ser a situação para ele. E o contrário, Jean, caso você decida bancar o rebelde.
Locke trincou o maxilar e olhou para os pés. Jean suspirou e lhe deu um tapinha no braço. Locke assentiu ligeiramente.
– Ótimo. – Stragos deu um sorriso frio. – Assim como respeito suas habilidades, respeito a lealdade de cada um, o suficiente para usá-la, para o bem e para o mal.
Portanto vocês virão ao meu chamado e vão aceitar a tarefa que tenho para vocês... Quando eu me recusar a recebê-los é que vocês começarão a ter motivo de preocupação.
– Que seja – disse Locke. – Mas quero que você lembre.
– Lembre o quê?
– Que eu fiz uma oferta para deixar isso para lá e simplesmente ir embora.
– Pelos deuses, mas você se acha mesmo o máximo, não é, mestre Lamora?
– Só o suficiente. Não mais do que os Magos-Servidores, eu diria.
– Está sugerindo que Kartane teme você, mestre Lamora? Faça-me o favor. Se fosse assim, eles já o teriam matado. Não, eles não o temem, mas querem que você seja
castigado. Entregá-lo a mim para servir aos meus propósitos parece realizar isso, aos olhos deles. Ouso dizer que você tem bons motivos para querer mal a eles.
– De fato.
– Pense por um momento na possibilidade de que eu não goste deles, assim como vocês. E que apesar de usá-los por necessidade, e de aceitar livremente o que eles
mandam para mim... o serviço de vocês pode acabar atuando contra eles. Isso não o intriga?
– Nada que você diga pode ser aceito – reagiu Locke, fuzilando-o com os olhos.
– Ahhh. É aí que você está errado, Lamora. Com o tempo você verá como tenho pouca necessidade de mentir. Bom, esta audiência terminou. Reflitam sobre sua situação
e não façam nada temerário. Vocês devem agora sair do Mon Magisteria e voltar quando forem chamados.
– Espere, o que...
O Arconte se levantou, enfiou a pasta sob o braço e saiu da sala pela mesma porta que havia usado para entrar. Ela se fechou imediatamente atrás dele, com estalos
de mecanismos de aço.
– Diabos – praguejou Jean.
– Desculpe – murmurou Locke. – Eu fiquei tão ansioso para vir para a porra de Tal Verrar.
– A culpa não é sua. Nós dois estávamos ansiosos para pular na cama com a puta; foi azar ela ter gonorreia.
A porta principal da sala se abriu, revelando uma dúzia de Olhos à espera no corredor.
Locke encarou os soldados por um tempo, depois sorriu e pigarreou.
– Ah, ótimo. Seu patrão deixou instruções rígidas, colocando vocês à nossa disposição. Queremos um barco, oito remadores, uma refeição quente, 500 solaris, seis
mulheres que saibam fazer uma boa massagem e...
Uma coisa que Locke diria sobre os Olhos é que, quando agarraram os dois para “escoltá-los” para fora do Mon Magisteria, foram firmes sem ser necessariamente cruéis.
Seus porretes permaneceram nos cintos e houve um número mínimo de golpes físicos para amaciar a petulância dos prisioneiros. No todo, era um pessoal muito eficiente.
5
Foram levados de volta ao cais inferior do Savrola num escaler comprido com área coberta. Era quase de manhã e uma luz alaranjada e aquosa se espalhava pela região
continental de Tal Verrar, espiando por cima das ilhas, que, em contraste, pareciam obscuras. Cercados pelos remadores do Arconte e observados por quatro Olhos com
balestras, Locke e Jean seguiam em silêncio.
A saída foi rápida: o barco chegou à beira de um cais deserto e Locke e Jean saltaram. Um dos soldados do Arconte jogou um saco de couro nas pedras aos pés deles,
o escaler já estava recuando e todo aquele episódio maldito havia terminado. Locke sentiu um atordoamento estranho e esfregou os olhos, que pareciam secos nas órbitas.
– Pelo amor dos deuses! – exclamou Jean. – Devemos parecer que fomos atacados.
– E fomos. – Locke se abaixou, pegou o saco e examinou o conteúdo: as duas machadinhas de Jean e as adagas e punhais dos dois. Grunhiu. – Magos. Malditos Magos-Servidores!
– Deve ser isso que eles tinham em mente.
– Espero que seja só isso que eles tinham em mente.
– Eles não sabem de tudo, Locke. Devem ter pontos fracos.
– Será? E você sabe quais são? Será que algum deles pode ser alérgico a comidas exóticas ou tem um relacionamento ruim com a mãe? Isso será muito útil para nós quando
eles estiverem fora do alcance das adagas. Guardião Torto, por que esses cus de cachorro feito o Stragos nunca desejam nos contratar em troca de dinheiro? Eu ficaria
feliz em trabalhar pelo pagamento.
– Não ficaria, não.
– Bah.
– Pare de choramingar e pense por um momento. Você ouviu o relatório do Stragos. Os Magos-Servidores sabem dos preparativos que fizemos para atacar o cofre do Requin,
mas não sabem de toda a história. A parte importante.
– Certo... mas que necessidade eles teriam de contar tudo ao Stragos?
– Nenhuma, claro, mas além disso... eles sabiam de nossa base em Camorr, mas ele não mencionou nossa história. Stragos falou sobre Barsavi, mas não sobre Correntes.
Talvez porque Correntes tenha morrido antes que o Falcoeiro chegasse a Camorr e começasse a nos observar. Não creio que os Magos-Servidores possam ler nossos pensamentos,
Locke. Acho que são espiões magníficos, mas não infalíveis. Ainda temos alguns segredos.
– Hummm. Desculpe se acho que isso não serve muito de consolo, Jean. Você sabe o que parece filosófica quando falamos nas fraquezas mais insignificantes dos inimigos?
A impotência.
– Você parece resignado a isso sem ao menos...
– Não estou resignado, Jean. Estou com raiva. Precisamos parar de ser impotentes o quanto antes.
– Certo. E por onde começamos?
– Bom, vou voltar à estalagem. Vou entornar um galão de água fria goela abaixo. Vou me deitar na cama, colocar um travesseiro em cima da cabeça e ficar lá até o
pôr do sol.
– Aprovado.
– Ótimo. Aí nós dois estaremos bem descansados na hora de levantar e encontrar um alquimista negro. Quero uma segunda opinião sobre venenos latentes. Quero saber
tudo que há para saber sobre esse assunto e se há algum antídoto que possamos começar a experimentar.
– Concordo.
– Depois disso, podemos acrescentar um pequeno item à nossa agenda de férias em Tal Verrar.
– Quebrar os dentes do Arconte?
– Pelos deuses, sim – respondeu Locke, batendo com o punho na mão aberta. – Independentemente se vamos terminar primeiro o serviço com o Requin. Quer haja ou não
um veneno! Vou pegar esse maldito palácio e enfiar no cu dele até ele estar com as torres de pedra no lugar das amígdalas!
– Algum plano?
– Nenhuma ideia. Não tenho absolutamente nenhuma. Vou refletir, com certeza. Mas quanto a não ser temerário, bom, não prometo nada.
Jean grunhiu. Os dois começaram a andar pelo cais, na direção da escada de pedra que levaria, após muito esforço, até o nível superior da ilha. Locke esfregou a
barriga e sentiu a pele formigar... sentia-se violado, sabendo que algo mortal poderia estar penetrando, sem ser percebido, nas fendas mais escuras de seu corpo,
esperando para fazer algo maligno.
À direita, o sol era um medalhão de bronze ardente assomando no horizonte, como a máscara de um dos soldados do Arconte, olhando-os com firmeza.
R E M I N I S C Ê N C I A
A dama da viga de vidro
1
Não era fácil falar com Azura Gallardine. Ela era famosa – Segunda Mestra da Grande Guilda de Artífices, Calculistas e Artesãos Minuciários – e seu endereço era
de conhecimento comum: o cruzamento da Rua dos Vidreiros com a Avenida dos Raspadores de Engrenagens, Cantezzo Oeste, Quarta Camada, Crescente dos Artífices. Mas
qualquer um que se aproximasse daquela casa teria de se afastar 12 metros da principal rua de pedestres.
Esses 12 metros eram uma coisa infernal de percorrer.
Seis meses haviam se passado desde que Locke e Jean tinham chegado a Tal Verrar; as personalidades de Leocanto Kosta e Jerome de Ferra haviam evoluído desde os esboços
básicos até segundas peles confortáveis. O verão estava no fim quando eles desceram a estrada em direção à cidade pela primeira vez, mas agora os ventos fortes e
secos do inverno tinham dado lugar às brisas turbulentas do início da primavera. Era o mês de Saris, no Septuagésimo Oitavo Ano de Nara, a Portadora das Pestes,
Senhora das Doenças Onipresentes.
Jean estava numa cadeira acolchoada na popa de um luxuoso barco de aluguel baixo e esguio tripulado por seis remadores. A embarcação deslizava pelas águas revoltas
do principal ancoradouro de Tal Verrar como um inseto apressado, serpenteando entre veículos maiores segundo as orientações de uma adolescente empoleirada na proa.
Era um dia agitado pelo vento, com a luz leitosa do sol se irradiando de trás de altos véus de nuvens, mas sem emitir calor. O ancoradouro estava apinhado de batelões
de carga, barcas, botes e os grandes navios de uma dúzia de nações. Um esquadrão de galeões de Emberlane e Parlay avançava com os estandartes azul-marinho e dourados
do Reino dos Sete Tutanos balançando nas popas. A algumas centenas de metros, Jean podia ver um brigue com a bandeira branca de Lashane e, atrás dele, uma galera
com o estandarte dos Tutanos sobre a flâmula menor do Cantão de Balinel, que ficava a apenas centenas de quilômetros ao norte de Tal Verrar, seguindo pelo litoral.
O barco de Jean estava rodeando a ponta sul do Crescente dos Mercadores, uma das três ilhas em forma de foice que cercavam a Castellana como as pétalas de uma flor.
Seu destino era o Crescente dos Artífices, lar dos que haviam feito a arte da mecânica de relojoaria passar de um passatempo excêntrico a uma indústria vibrante.
As engrenagens verraris eram mais delicadas, mais sutis, mais duráveis – mais qualquer coisa que se quisesse – do que as construídas por mais de meia dúzia de mestres
em qualquer outra parte do mundo conhecido.
Estranhamente, quanto mais Jean se familiarizava com Tal Verrar, mais esquisito o lugar lhe parecia. Cada cidade construída nas ruínas dos Ancestres adquiria seu
caráter especial, em muitos casos moldada pela natureza desses destroços. Os camorris viviam em ilhas separadas por nada mais do que canais, ou no máximo pelo rio
Angevino, o que parecia muito apertado comparado com a vastidão que Tal Verrar tinha a oferecer. As cerca de cem mil almas que ocupavam as ilhas faziam uso total
desse espaço, dividindo-se em tribos com uma precisão incomum.
A oeste, os pobres se agarravam a alguns locais do Quarteirão Descartável, onde podiam pelo menos viver livres de aluguel. A leste, eles se apinhavam no Bairro Ístrio
e forneciam mão de obra para os jardins em camadas do Crescente das Mãos Negras. Ali cuidavam de plantações cujos frutos não podiam comprar, em terrenos enriquecidos
alquimicamente que jamais poderiam possuir.
Tal Verrar tinha apenas um cemitério, o velho Monturo das Almas, que ocupava a maior parte da ilha a leste da cidade, no lado oposto ao Crescente das Mãos Negras.
O local tinha seis camadas cravejadas de lápides memoriais, esculturas e mausoléus que pareciam mansões em miniatura. Os mortos eram tão rigidamente separados na
morte quanto haviam sido em vida: cada nível acima representava uma classe superior de cadáveres. Era um espelho mórbido dos Degraus de Ouro do outro lado da baía.
O Monturo era quase tão grande quanto toda a cidade de Vel Virazzo e abrigava sua própria estranha sociedade: sacerdotes e sacerdotisas de Aza Guilla, gangues de
carpideiros de aluguel (todos proclamavam em altos brados suas especialidades cerimoniais ou floreios teatrais a qualquer um que pudesse ouvir), escultores de mausoléus
e, os mais estranhos de todos: os Vigilantes do Monturo. Eles eram criminosos condenados por roubos de sepulturas. Em vez de executados, eram confinados a máscaras
de aço e ruidosas armaduras de escamas e obrigados a patrulhar o Monturo das Almas como parte de uma polícia sombria. Cada um deles só seria liberto quando outro
ladrão de sepultura fosse capturado para ocupar seu lugar. Alguns precisavam esperar durante anos.
Tal Verrar não tinha enforcamentos, decapitações e nenhum dos tipos de luta entre criminosos e animais selvagens que eram populares em quase todos os outros lugares.
Ali naquela cidade os condenados por crimes capitais simplesmente desapareciam, com boa parte do lixo da cidade, no Abismo do Monturo. Era um poço quadrado e aberto,
com 12 metros de lado, localizado ao norte do cemitério. Suas paredes de Vidrantigo mergulhavam na escuridão absoluta, não dando qualquer indício de até onde iam
de verdade. Dizia a lenda que o poço era sem fundo, e os criminosos empurrados pelas pranchas de execução em geral iam gritando e implorando. O pior boato sobre
o lugar, claro, era que os lançados no Abismo não morriam. De algum modo continuavam caindo. Para sempre.
– Tudo a bombordo! – gritou a garota na proa do barco.
Os remadores à esquerda de Jean tiraram os remos da água e os da direita puxaram com força, deslizando a embarcação para fora do caminho de uma galera de carga apinhada
com bois e vacas bastante assustados. Um homem na amurada da galera sacudiu o punho para o barco que passava, talvez 3 metros abaixo do nível das suas botas.
– Tira a merda dos seus olhos, sua puta anã!
– Volte a dar prazer ao seu gado, seu vira-lata de pau mole!
– Sua puta! Sua puta insolente! Pare o barco e eu mostro quem tem pau mole! Com o seu perdão, gentil senhor.
Sentado em sua cadeira parecida com um trono, vestindo um casaco comprido de veludo com arrebiques dourados suficientes para brilhar até mesmo à luz fraca de um
dia nublado, Jean parecia um homem poderoso. Era importante que o sujeito da galera garantisse que suas saudações verbais não fossem mal recebidas; ainda que elas
fossem aceitas no porto de Tal Verrar, a classe endinheirada era sempre tratada como se estivesse levitando acima da água, sem depender das embarcações e dos trabalhadores
que as conduziam. Jean acenou despreocupadamente.
– Não preciso chegar mais perto para ver que ele é mole, pau de toucinho! – A garota fez um gesto grosseiro com as mãos. – Daqui dá para ver como a porra das suas
vacas estão desapontadas!
O barco já estava fora do alcance de uma resposta audível; a galera ficou para trás e a borda sudoeste do Crescente dos Artífices se ergueu diante deles.
– Por esse momento, 1 volani extra para todo mundo aqui – anunciou Jean.
Enquanto a garota animada e sua equipe entusiasmada o levavam rapidamente para o cais do Crescente dos Artífices, o olhar de Jean foi atraído por um tumulto na água
algumas centenas de metros à esquerda. Um batelão de carga com algum tipo de estandarte de uma corporação verrari que Jean não reconheceu foi cercado por pelo menos
uma dúzia de embarcações menores. Homens e mulheres nos barcos tentavam abordar o batelão enquanto a pequena tripulação assediada procurava afastá-los com remos
e uma bomba de água. Uma embarcação cheia de policiais parecia estar se aproximando, mas ainda a vários minutos de distância.
– Ora, que diabo é aquilo?! – gritou Jean para a garota.
– O quê? Onde? Ah, aquilo. É a Rebelião da Pena agindo como sempre.
– Rebelião da Pena?
– A Guilda dos Escribas. Aquele barco de carga está com uma bandeira da Guilda dos Impressores. Deve estar carregando uma prensa vinda do Crescente dos Artífices.
Já viu uma delas?
– Ouvi falar pela primeira vez só há alguns meses, na verdade.
– Os escribas não gostam delas. Acham que vão acabar com o trabalho deles. Por isso têm feito emboscadas quando os Impressores tentam atravessar a baía. Deve haver
umas seis ou sete dessas prensas novas no fundo da água. Além de alguns corpos. É uma tremenda encrenca.
– Estou inclinado a concordar.
– Bom, espero que eles não inventem nada que possa substituir uma boa tripulação de remadores honestos. Aqui está o seu cais, senhor, um pouquinho antes da hora
programada, se estou correta. Quer que esperemos?
– Sem dúvida – respondeu Jean. – É difícil encontrar trabalhadores divertidos. Espero demorar apenas uma hora.
– Ao seu dispor, então, mestre de Ferra.
2
O crescente não era exclusivo da Grande Guilda dos Artífices, mas era onde a maioria deles optava por se estabelecer, onde seus salões e clubes ocupavam quase todas
as esquinas e onde seu hábito de deixar à vista instrumentos incompreensíveis e ocasionalmente perigosos era tolerado.
Jean subiu os degraus íngremes da Avenida do Basilisco de Latão, passou por mercadores de velas, amoladores e veniparsifais: místicos que afirmavam ser capazes de
ler todo o destino de uma pessoa com base no padrão de vasos sanguíneos visíveis nas mãos e nos antebraços. No topo da avenida, desviou-se de uma jovem magra com
chapéu de quatro bicos e véu, passeando com uma valcona presa numa guia de couro reforçado. Essas criaturas eram aves de ataque que não voavam, maiores do que cães
de caça. Com as asas vestigiais dobradas junto aos corpos robustos, saltitavam sobre garras do tamanho de punhos capazes de rasgar nacos de carne humana. Elas se
ligavam afetuosamente a uma pessoa enquanto eram filhotes e se regozijavam por matar qualquer outra pessoa em todo o mundo, a qualquer momento.
– Grande ave assassina – murmurou Jean. – Bela ameaça à vida e aos membros. Que garotinha, garotinho ou coisinha linda você é.
A criatura arrulhou um pequeno alerta para ele e foi saltando atrás da dona.
Bufando e suando, Jean subiu outro lance de escada em zigue-zague e, irritado, gravou em sua mente um lembrete de que algumas horas de treinamento fariam bem à sua
crescente pança. Jerome de Ferra era um homem que só via os exercícios como um meio de ir e voltar da cama para as mesas de jogo. Seguiu 15 metros, 20 metros, 25
metros... saindo da beira-d’água, subindo o segundo e o terceiro níveis da ilha, subindo até o quarto e mais alto, onde a influência excêntrica dos artífices era
mais forte.
As lojas e casas da quarta camada do crescente recebiam água a partir de uma rede de aquedutos extremamente elaborada. Alguns eram os de pedras e colunas da era
do Trono Terim, ao passo que outros eram apenas tubos de couro sustentados por estruturas de madeira. Rodas-d’água, moinhos de vento, engrenagens, contrapesos e
pêndulos oscilavam em toda parte para onde Jean olhava. Rearranjar o suprimento de água era um jogo que os artífices faziam entre si; a única regra era que o suprimento
de ninguém poderia ser cortado no ponto de entrega final. A cada poucos dias, uma nova ramificação ou um novo aparato de bombeamento aparecia, roubando água de um
canal mais antigo. Dias depois, outro artífice desviava a água por mais uma passagem nova e a batalha continuava. As tempestades tropicais cobriam as ruas do crescente
com engrenagens, mecanismos e tubos, e os artífices sempre reconstruíam seus canais com o dobro da estranheza anterior.
A Rua dos Vidreiros percorria toda a extensão da camada superior. Jean virou à esquerda e foi andando rapidamente pelas pedras do calçamento. Os cheiros estranhos
da produção do vidro saíam das oficinas; através de portas abertas, ele via artesãos girando fôrmas reluzentes cor de laranja nas pontas de varas compridas. Um pequeno
grupo de aprendizes de alquimistas passou por ele, apinhando a rua. Usavam os característicos gorros vermelhos de sua profissão e exibiam queimaduras alquímicas
ao longo das mãos e do rosto, que eram seu distintivo de orgulho.
Passou pela Avenida dos Raspadores de Engrenagens, onde um bom número de trabalhadores estava sentado diante de suas oficinas, limpando e polindo peças de metal.
Alguns estavam sob o exame direto de artífices impacientes, que resmungavam orientações pouco úteis e batiam os pés, nervosos. Esse cruzamento era a extremidade
sudoeste da quarta camada; não havia para onde seguir, a não ser descendo – ou pelos 12 metros até o lar de Azura Gallardine.
No beco sem saída da Rua dos Vidreiros, havia um arco de fachadas de lojas, com uma abertura que parecia um dente arrancado de um sorriso. Projetando-se além dessa
abertura, existia uma viga de Vidrantigo, fincada na pedra da quarta camada pelos Ancestres sabe-se lá por quê. Tinha cerca de 45 centímetros de largura e era plana
em cima. Projetava-se no ar, 15 metros acima dos telhados de uma rua sinuosa na terceira camada.
A casa de Azura Gallardine ficava empoleirada na extremidade oposta dessa viga como um ninho de pássaro, com três andares de altura, na ponta de um galho. A Segunda
Mestra da Grande Guilda dos Artífices descobrira um meio ideal de garantir a privacidade – só os que tinham negócios muito sérios, ou uma necessidade muito sincera
de suas habilidades, seria suficientemente louco para andar ao longo da viga que levava à sua porta.
Jean engoliu em seco, esfregou as mãos e fez uma breve prece ao Guardião Torto antes de pisar no Vidrantigo.
– Não pode ser tão difícil assim – falou baixinho. – Já passei por coisa pior. É só uma caminhada curta. Não é preciso olhar para baixo. Ficarei tão firme quanto
um galeão carregado.
Com os braços estendidos dos lados do corpo para se equilibrar, começou a andar cuidadosamente pela viga. Era curioso como a brisa parecia aumentar à medida que
ele atravessava e como o céu parecia de repente mais vasto acima... Fixou os olhos na porta e, sem perceber, só voltou a respirar no instante que a alcançou. Respirou
fundo, ofegante, e enxugou a testa, onde havia brotado uma quantidade embaraçosa de suor.
A casa de Azura Gallardine era solidamente construída com blocos de pedra branca. Tinha um teto alto e pontudo coroado por um cata-vento que guinchava e uma grande
bolsa para coleta de chuva numa estrutura de madeira. A porta era decorada com relevos de engrenagens e outros mecanismos e, ao lado, havia uma placa de latão engastada
na pedra. Jean apertou a placa e ouviu um gongo ecoar dentro da residência. Fumaça escapava dos fogões das casas abaixo e passou por Jean enquanto ele esperava.
Já ia apertar a placa de novo quando a porta se entreabriu com um rangido. Uma mulher baixa e mal-encarada apareceu. Devia ter mais de 60 anos, pensou Jean – a pele
avermelhada era enrugada como as pregas de uma velha roupa de couro. Era robusta, com malares altos, bochechas caídas e uma papada que lembrava vagamente a de um
sapo. O cabelo branco era trançado com anéis alternados de latão e ferro preto, e boa parte da pele visível das mãos, dos antebraços e do pescoço estava coberta
por tatuagens elaboradas e um pouco desbotadas.
Jean pôs o pé direito à frente do esquerdo e fez uma reverência num ângulo de 45 graus, com a mão esquerda estendida para fora e a direita enfiada sob a barriga.
Já ia começar a soltar floreios verbais quando a Mestra Gallardine o agarrou pelo colarinho e puxou-o para dentro de casa.
– Ai! Senhora, por favor! Permita que eu me apresente!
– Você é gordo demais e está bem-vestido demais para ser um aprendiz buscando patronato. Portanto, deve estar aqui para pedir um favor e, quando gente do seu tipo
diz olá, a coisa costuma demorar um pouco. Fique quieto.
A casa cheirava a óleo, suor, pó de pedra e metal aquecido. O interior era um recinto único alto e aberto, coberto pelo mais estranho aglomerado de objetos que Jean
já vira. Havia janelas em arco, do tamanho de um homem, nas paredes da esquerda e da direita, mas todos os outros centímetros das paredes estavam tomados por uma
espécie de andaime que sustentava uma centena de prateleiras apinhadas de ferramentas, materiais e entulho. No topo do andaime, acima de um improvisado piso de tábuas,
Jean podia ver um estrado para dormir e uma escrivaninha sob um par de lâmpadas alquímicas penduradas. Escadas e cordas de couro pendiam em vários lugares; livros,
rolos de pergaminho e garrafas arrolhadas, com líquido pela metade, cobriam a maior parte do piso.
– Se eu vim numa hora ruim...
– Em geral a hora é ruim, Jovem Senhor Intrometido. Um cliente com um pedido interessante é praticamente a única coisa que muda isso. Então, do que se trata?
– Mestra Gallardine, todos a quem perguntei juraram que a artesã mais sutil, mais completa, mais imitada de toda Tal Verrar é ninguém menos do que...
– Pare de me banhar em elogios, garoto – interrompeu a velha, balançando as mãos. – Olhe ao redor. Engrenagens e alavancas, pesos e correntes. Você não precisa lambê-las
com palavras bonitas para fazer com que elas funcionem, nem me lamber.
– Como quiser. – Jean se empertigou e enfiou a mão no casaco. – Mas eu não suportaria viver se não fizesse uma pequena cortesia.
Ele retirou um pequeno pacote de brocado de prata. O embrulho era fechado por um lacre de cera vermelha, estampado num disco ondulado de raspa de ouro.
Todos os informantes de Jean haviam mencionado o único ponto fraco de Gallardine: um gosto por presentes tão grande quanto sua aversão pela lisonja e por interrupções.
Ela franziu as sobrancelhas, mas conseguiu dar um pequeno sorriso ao pegar o embrulho com as mãos tatuadas.
– Ora, ora, certamente todos devemos suportar viver...
Ela quebrou o disco-lacre e abriu o brocado com a ansiedade de uma menininha. Tratava-se de uma garrafa retangular com tampa de latão, cheia de um líquido branco
leitoso. Ela ofegou ao ler o rótulo.
– Ameixa-Branca Austershalin – sussurrou. – Pelos Doze. Com quem você andou falando?
As misturas de conhaque eram uma peculiaridade de Tal Verrar: conhaques finos de outros lugares (nesse caso, o inigualável Austershalin de Emberlane) mesclados a
um licor verrari, feito de raras frutas alquímicas – e não havia nenhuma mais rara do que a celestial ameixa-branca –, engarrafados e envelhecidos para produzir
bebidas especiais capazes de fazer a língua explodir em entorpecimento com a riqueza do sabor. A garrafa teria talvez dois cálices de Ameixa-Branca Austershalin
e valia 45 solaris.
– Algumas almas conhecedoras – respondeu Jean –, que disseram que a senhora poderia apreciar um trago modesto.
– Isso não é nem um pouco modesto, mestre...
– De Ferra. Jerome de Ferra, ao seu dispor.
– Pelo contrário, mestre de Ferra. O que deseja que eu faça para o senhor?
– Bom, se a senhora prefere mesmo ir ao cerne do assunto, ainda não tenho uma necessidade específica. O que tenho são... perguntas.
– Sobre o quê?
– Cofres.
A Mestra Gallardine aninhou sua mistura de conhaque como se fosse um bebê recém-nascido.
– Cofres, mestre de Ferra? Cofres para depósito, com mecanismos simples, ou cofres seguros, com defesas mecânicas?
– Meu gosto, senhora, tende mais para o segundo tipo.
– O que o senhor deseja guardar?
– Nada. É mais uma questão de algo que desejo desguardar.
– O senhor precisa acessar um cofre? Precisa que alguém o abra para o senhor?
– Sim, senhora. É só...
– Só o quê?
Jean umedeceu os lábios e sorriu.
– Eu ouvi, bom, boatos dignos de crédito, que a senhora pode ser receptiva ao tipo de trabalho que eu desejo sugerir.
Ela o encarou com um olhar de quem sabe das coisas.
– Está sugerindo que o senhor não é necessariamente dono do cofre que quer acessar?
– Humm. Não necessariamente.
Ela andou pela casa, passando por cima de livros, garrafas e instrumentos mecânicos.
– A lei da Grande Guilda proíbe qualquer um de interferir diretamente no trabalho de outra pessoa, a não ser por convite, ou por necessidade do Estado. – Houve uma
pausa. – No entanto... é verdade que conselhos são dados, projetos são examinados... no interesse de fazer progredir o conhecimento, é claro. É uma espécie de teste
destrutivo. É desse modo que nós criticamos uns aos outros, por assim dizer.
– Tudo que eu pediria são conselhos. Nem preciso de um serralheiro, apenas de informações para armar um serralheiro.
– Poucas pessoas poderiam armar um profissional desses melhor do que eu. Antes de discutirmos a questão da compensação, diga: o senhor conhece o projetista do cofre
em que está de olho?
– Conheço.
– E ele é?
– Azura Gallardine.
A mestra da guilda deu um passo para longe de Jean, como se uma língua bifurcada tivesse saltado de repente do meio dos lábios dele.
– Ajudá-lo a violar meu próprio trabalho? Está louco?
– Eu esperava que a identidade do dono do cofre não pudesse provocar qualquer simpatia.
– Quem, e onde?
– Requin. Na Agulha do Pecado.
– Pelos Doze, você é louco! – Gallardine olhou ao redor como se verificasse a presença de espiões. – Isso certamente provoca simpatia! Simpatia por mim mesma!
– Meus bolsos são fundos, senhora. Sem dúvida deve haver uma quantia que aplaque suas dúvidas.
– Não existe quantia neste mundo grande o suficiente para me convencer a lhe dar o que o senhor pede. Seu sotaque, mestre de Ferra... acho que consigo situar. O
senhor é de Talisham, certo?
– Sou.
– E Requin... o senhor o estudou, não é?
– Meticulosamente, claro.
– Não faz sentido. Se estivesse estudado meticulosamente, não estaria aqui. Deixe-me dizer uma coisinha sobre o Requin, seu pobre talishani simplório. O senhor conhece
a mulher dele, Selendri? A da mão de bronze?
– Ouvi dizer que ele não mantém nenhuma outra pessoa por perto.
– E é só isso que você sabe?
– Ah, mais ou menos.
– Até vários anos atrás, era costume de Requin dar um grande baile de máscaras na Agulha do Pecado no Dia das Transformações. Uma festa louca, com fantasias de mil
solaris, e a dele era sempre a mais grandiosa. Bom, num ano ele e aquela sua jovem linda decidiram trocar de fantasias e máscaras. Por nenhum motivo aparente.
Ela respirou fundo.
– Um assassino havia salpicado o interior da fantasia de Requin com uma coisa demoníaca. O tipo de alquimia mais negra, uma espécie de água régia para carne humana.
Era só um pó... precisava de suor e calor para ser trazido à vida. E assim aquela mulher usou a roupa durante quase meia hora, até que começou a suar e se divertir.
E foi então que começou a gritar.
Ela fez uma pausa e prosseguiu:
– Eu não estava lá. Mas havia artífices conhecidos meus no meio da multidão e eles dizem que ela gritou e gritou até que sua voz falhou. Até que não saía mais nada
da garganta, a não ser um sibilo, e ela continuava tentando gritar. Só um lado da fantasia foi empoado... um gesto perverso. A pele dela borbulhou e escorreu feito
alcatrão quente. A carne soltou vapor, mestre de Ferra. Ninguém teve coragem de tocar nela, a não ser Requin. Ele cortou a roupa dela, exigiu água, trabalhou febrilmente.
Limpou a pele queimada com seu casaco, com pedaços de pano, com as mãos nuas. Ele também se queimou tanto que usa luvas até hoje para esconder as cicatrizes.
– Espantoso.
– Ele salvou a vida dela, o que restava para ser salvo. Sem dúvida você já viu o rosto de Selendri. Um olho se evaporou, como uma uva numa fogueira. Os dedos dos
pés precisaram ser amputados. Os das mãos eram gravetos queimados; a palma e o dorso, uma devastação de bolhas. A mão teve de ser cortada também. Precisaram tirar
um seio, mestre de Ferra. Garanto, o senhor não pode avaliar o que isso significa. Significaria até para mim, agora, e já faz muitos anos desde que fui considerada
atraente pela última vez.
Gallardine continuou:
– Quando ela estava acamada, Requin deu um aviso a todas as suas gangues, a todos os seus ladrões, a todos os seus contatos, a todos os seus amigos entre os ricos
e poderosos. Ofereceu mil solaris, sem perguntas, a qualquer um que lhe revelasse a identidade do envenenador. Mas muitos temiam esse assassino e Requin não era
nem de longe tão respeitado quanto hoje. Não recebeu resposta. Na noite seguinte, o valor passou para 5 mil solaris, mas não houve retorno. Na terceira noite, aumentou
a oferta para 10 mil solaris, sem resultado. Na quarta noite, o prêmio já era de 20 mil... e ainda assim nenhuma pessoa se apresentou.
Ela fez mais uma pausa.
– E assim os assassinatos começaram na noite seguinte. Aleatoriamente. Entre os ladrões, entre os alquimistas, entre os empregados do Priori. Qualquer um que pudesse
ter acesso a informações úteis. Um por noite, trabalho silencioso, absolutamente profissional. Cada vítima tinha a pele arrancada do lado esquerdo com uma faca.
Como lembrete. Depois disso, as gangues dele, os jogadores e os sócios imploraram que ele parasse. “Encontrem o assassino e eu paro”, retrucou ele. E todos imploraram,
fizeram investigações e voltaram sem nada. Por isso, ele começou a matar duas pessoas por noite. Começou a matar esposas, maridos, filhos, amigos. Uma das suas gangues
se rebelou e todos foram encontrados mortos na manhã seguinte. Todos. Cada tentativa de atingi-lo fracassava. Ele aumentou o controle sobre as gangues e expurgou
os de coração fraco. Matou, matou e matou, até que toda a cidade estava num frenesi revirando cada pedra, chutando cada porta para ele. Até que nada poderia ser
pior do que continuar desapontando-o. Por fim, foi trazido um homem que satisfez suas perguntas.
Gallardine soltou um suspiro longo e seco.
– Requin colocou esse homem acorrentado, deitado sobre o lado esquerdo, dentro de uma estrutura de madeira, que foi preenchida com cimento alquímico. A substância
endureceu e a estrutura foi colocada de pé, de modo que, veja bem, o homem estava lacrado pela metade numa parede de concreto, desde os pés até o topo da cabeça.
Foi deixado dentro do cofre de Requin para morrer. Requin entrava pessoalmente e forçava o homem a beber água todo dia. Os membros presos no cimento apodreceram,
infeccionaram, deixaram-no doente. Ele morreu devagar, faminto e tomado pela gangrena, lacrado na tortura física mais perfeitamente hedionda de que já ouvi falar
em todos os meus longos anos.
Ela pegou Jean pelo braço com delicadeza e levou-o para a janela do lado esquerdo.
– Portanto, você vai me desculpar se Requin é um cliente cuja absoluta confiança eu pretendo manter até que a Gentilíssima Senhora arranque minha alma deste velho
saco de ossos.
– Mas ele não precisa saber, certo?
– Ah, com certeza, mestre de Ferra, eu jamais me arriscaria. Jamais.
– Porém, sem dúvida, uma pequena consideração...
– Já ouviu dizer o que acontece com os que são apanhados trapaceando na torre dele, mestre de Ferra? Requin coleciona as mãos deles, joga os corpos num pátio de
pedras e cobra das famílias ou dos sócios para que os restos sejam limpos. E sabe do último homem que começou uma briga dentro da Agulha do Pecado, sujando-a de
sangue? Requin mandou amarrá-lo a uma mesa. As patelas foram tiradas por um sanguessuga de cachorro e formigas vermelhas foram despejadas nos ferimentos. Em seguida,
as patelas foram amarradas de volta com barbante. O homem implorou que cortassem seu pescoço. O pedido não foi concedido.
A mestra prosseguiu:
– Requin tem um poder independentemente de qualquer coisa ou pessoa. O Arconte não pode tocar nele, por medo de irritar o Priori, que por sua vez o considera muito
útil para se virar contra ele. Desde que Selendri quase morreu, ele se tornou um ás da crueldade, do tipo que esta cidade nunca viu. Não há recompensa no mundo que
valha a pena aceitar em troca de provocar esse homem.
– Eu levo tudo isso muito a sério, senhora. Então será que não podemos minimizar cuidadosamente seu envolvimento? Apenas um esquema básico dos mecanismos do cofre,
uma visão bastante geral? O tipo de coisa que jamais pudesse ser ligada especificamente à senhora?
– O senhor não escutou direito. – Ela balançou a cabeça e fez um gesto em direção à janela esquerda de sua casa. – Deixe-me perguntar outra coisa, mestre de Ferra:
o senhor consegue ver a paisagem de Tal Verrar por esta janela?
Jean deu um passo adiante para olhar através do vidro. A visão dava para o sul, por cima da ponta ocidental do Crescente dos Artífices, acima do ancoradouro e da
água prateada e reluzente até a Marina da Espada. Ali, a marinha do Arconte estava ancorada, protegida por altas muralhas e catapultas.
– É... uma visão muito bonita – comentou ele.
– Não é? Bom, o senhor deve considerar que esta é minha última declaração sobre o assunto. O senhor sabe alguma coisa sobre contrapesos?
– Não posso dizer que...
Nesse momento, a mestra da guilda puxou uma das cordas de couro que pendiam de seu teto.
A vista de Tal Verrar pareceu subitamente se mover para o teto; os sentidos de Jean conferenciaram sobre o que isso significava e se desorientaram por uma fração
de segundo, até que seu estômago pesou com uma confirmação nauseante de que não era a paisagem que estava se movendo.
Ele mergulhou pelo piso aberto a seus pés e bateu numa dura plataforma quadrada suspensa logo abaixo da casa de Gallardine por correntes de ferro nos cantos. Seu
primeiro pensamento foi de que devia ser uma espécie de elevador – e então aquilo começou a mergulhar rumo à rua, cerca de 12 metros abaixo.
As correntes chacoalhavam e a brisa súbita varreu-o; ele caiu de bruços e se agarrou à plataforma alarmado, os nós dos dedos brancos. Telhados, carroças e pedras
do calçamento corriam em sua direção e ele se preparou para a forte dor do impacto, mas ela não veio. A plataforma estava diminuindo a velocidade com uma suavidade
impossível... a morte certa regrediu para um possível ferimento e depois para o mero embaraço. A descida terminou 30 centímetros acima da rua, as correntes à direita
de Jean se afrouxaram e a base se inclinou com uma sacudida, largando-o embolado no chão.
Jean sentou-se e respirou agradecido; a rua girava um pouco ao redor. Ele olhou para cima e viu que a plataforma subia rapidamente de volta para a posição anterior.
Uma fração de segundo antes de se encaixar embaixo do piso de Gallardine, algo pequeno e brilhante caiu do alçapão acima dela. Jean conseguiu se afastar e cobrir
o rosto logo antes que os cacos de vidro e o líquido da garrafa de conhaque estilhaçada o atingissem.
Enxugou o equivalente a uns bons solaris de Ameixa-Branca Austerhalin do cabelo enquanto se levantava cambaleando, de olhos arregalados e xingando.
– Ótima tarde para o senhor. Mas, espere, não diga, deixe-me adivinhar: proposta recusada pela mestra da guilda?
Tonto, Jean deparou com um sorridente vendedor de cerveja a menos de 2 metros à direita, encostado na parede de um prédio de dois andares fechado e sem qualquer
identificação. O homem era um espantalho bronzeado com um chapéu de couro de aba larga que pendia devido aos anos de uso até quase tocar nos ombros ossudos. Ele
tamborilou num grande barril com rodas, ao qual várias canecas de madeira estavam presas por longas correntes.
– Ah, algo assim – respondeu Jean.
Uma machadinha escorregou de seu casaco e bateu com estrépito nas pedras. Ruborizado, ele se abaixou, pegou-a de volta e a fez desaparecer de novo.
– Pode-se dizer que isto é tirar vantagem, e certamente eu seria o primeiro a concordar, mas o senhor me parece um homem que precisa beber alguma coisa. Isto é,
uma bebida que não se despedace nas pedras e quase arrebente seu crânio.
– Preciso? O que o senhor tem?
– Burgle, senhor. Presumindo que já tenha ouvido falar nisso, é uma especialidade verrari e, se o senhor já provou em Talisham, não provou de verdade. Não tenho
nada contra talishanis, é claro: alguns parentes meus moram em Talisham, sabe.
Burgle era uma cerveja densa, escura, geralmente temperada com algumas gotas de óleo de amêndoas. Tinha um efeito comparável ao de muitos vinhos. Jean assentiu.
– Uma caneca cheia, por favor.
O vendedor tirou a rolha do barril e encheu uma das canecas acorrentadas com um líquido que parecia quase preto. Entregou-a a Jean com uma das mãos e tampou o barril
com a outra.
– Ela faz isso algumas vezes por semana, sabe.
Jean engoliu a cerveja quente e deixou o sabor de levedo e noz escorrer pelo fundo da garganta.
– Algumas vezes por semana?
– Ela fica meio impaciente com alguns visitantes. Não espera para terminar a conversa com todas as amenidades usuais. Mas o senhor já sabe disso.
– Mmm-hummm. Isto aqui não é ruim mesmo.
– Obrigado, senhor. Um centira a caneca cheia... Obrigado, muito obrigado. Eu faço um bom negócio com as pessoas que caem do piso da Mestra Gallardine. Em geral,
tento vigiar este local para o caso de chover um ou dois clientes. Lamento muito que o senhor não tenha encontrado satisfação na conversa com ela.
– Satisfação? Bom, ela pode ter se livrado de mim antes do que eu esperava, mas acho que tive sucesso. – Jean entornou o resto da cerveja, enxugou a boca com a manga
do casaco e devolveu a caneca. – Na verdade, só estou plantando uma semente para o futuro.
CAPÍTULO QUATRO
Alianças cegas
1
– Por favor, mestre Kosta, seja razoável. Por que eu estaria escondendo alguma coisa do senhor? Se eu tivesse um tratamento para sugerir, isso significaria um bocado
de ouro a mais no meu bolso, não é?
Therese Pálida, a Consultora de Venenos, mantinha uma sala bastante confortável para conversas sobre negócios confidenciais com os clientes. Locke e Jean estavam
sentados com as pernas cruzadas em almofadas macias e grandes, segurando pequenas xícaras de porcelana com um grosso café jereshti, mas sem tomá-lo. Ela era uma
vadrã séria, de olhos gélidos, com cerca de 30 anos, e o cabelo tinha uma cor que lembrava tecido novo de vela, batendo na gola de seu casaco de veludo preto enquanto
ela andava de um lado para o outro na frente dos dois visitantes. Sua guarda-costas – uma verrari bem-vestida e portando um florete com guarda em forma de meia-esfera
e um porrete de madeira laqueada pendurado no cinto – estava encostada, silenciosa e atenta, na parede ao lado da única porta da sala, que estava trancada.
– Claro – respondeu Locke. – Perdão, senhora, se pareço nervoso. Espero que a senhora possa entender nossa situação... possivelmente envenenados, sem ter como saber,
para começo de conversa, quanto mais para conseguir um antídoto.
– Sim, mestre Kosta. O senhor está mesmo numa situação que provoca ansiedade.
– Esta é a segunda vez que sou envenenado por propósitos coercitivos. Tive bastante sorte de escapar da primeira vez.
– Uma pena que esse seja um meio eficaz de manter alguém acorrentado, não é?
– A senhora não precisa parecer tão satisfeita.
– Ora, mestre Kosta, não deve me considerar desprovida de simpatia. – Therese levantou a mão esquerda, mostrando uma série de anéis de cicatrizes alquímicas, e Locke
ficou surpreso ao ver que faltava o quarto dedo daquela mão. – Um acidente descuidado, quando eu era aprendiz, trabalhando com uma coisa que não permitia erros.
Eu tinha dez segundos para escolher: meu dedo ou minha vida. Felizmente, havia uma faca pesada bem perto. Sei o que significa provar os frutos da minha arte, senhores.
Sei como é sentir-se enjoado, ansioso e desesperado, querendo saber o que acontece em seguida.
– Claro – concordou Jean. – Desculpe o meu sócio. É só que... bem, o nível artístico de nosso aparente envenenamento nos deixou na expectativa de alguma solução
milagrosa.
– Como regra básica, é sempre mais fácil envenenar do que curar. – Therese esfregou distraidamente o cotoco do dedo que faltava, um gesto que parecia um tique antigo
e familiar. – Os antídotos são coisas delicadas; em muitos casos também são venenos. Não existe panaceia, nada que cure tudo, nenhuma bebida que elimine todos os
venenos conhecidos na minha profissão. E como a substância que o senhor descreve parece de fato ser personalizada, seria mais fácil cortar o pescoço dos senhores
do que tentar tratamentos com antídotos aleatórios. Eles poderiam prolongar seu sofrimento ou mesmo aumentar o efeito da substância que já está aí dentro.
Jean apoiou o queixo numa das mãos e olhou a sala ao redor. Therese tinha decorado uma das paredes com um altar ao gordo e maroto Gandolo, Senhor das Moedas e do
Comércio, pai celestial das transações comerciais. Na parede oposta, havia outro, dedicado à velada Aza Guilla, Senhora do Longo Silêncio, Deusa da Morte.
– Mas a senhora disse que existem substâncias conhecidas que se demoram no organismo, como a que supostamente ingerimos. Será que elas não estreitariam o campo dos
tratamentos que poderiam ser realizados?
– Existem, sim. A essência de Rosa do Crepúsculo perdura no corpo durante vários meses e aniquila os nervos se a pessoa não tomar um antídoto regular. O secante
branco faz com que nenhuma comida ou bebida nutra o organismo; a vítima pode se empanturrar o quanto quiser e ainda assim definhar até a morte. O pó de anuella faz
a vítima sangrar através dos poros semanas depois de ser inalada... Mas os senhores não veem o problema? Três venenos que demoram a agir, três meios muito diferentes
de causar dano. Um antídoto para, digamos, um veneno do sangue pode muito bem matá-los se o seu veneno atuar por outro meio.
– Maldição – praguejou Locke. – Certo, então. Estou me sentindo idiota por falar isso, mas... Jerome, você disse que havia mais uma possibilidade...
– Bezoares – completou Jean. – Li um bocado sobre eles na infância.
– Infelizmente, os bezoares são um mito. – Therese cruzou as mãos diante de si e suspirou. – É só uma história fantasiosa, como os Dez Vira-Casacas Honestos, a Espada
que Come Corações, o Clarim de Terim Pel e todos aqueles absurdos maravilhosos. Eu li os mesmos livros, mestre de Ferra. Sinto muito. Para extrair pedras mágicas
do estômago de dragões, teríamos de ter dragões vivos em algum lugar, não é?
– Parece que o suprimento deles anda escasso.
– Se o que vocês estão procurando é milagroso e caro, há mais um caminho que eu poderia sugerir.
– Qualquer coisa... – disse Locke.
– Os Magos-Servidores de Kartane. Meus relatórios são dignos de crédito e informam que eles têm meios de impedir envenenamentos que nós, os alquimistas, não conseguimos
impedir. Para quem pode pagar o que eles cobram, claro.
– ... menos isso – murmurou Locke.
– Bom – falou Therese com certo ar resignado –, ainda que nem minha bolsa nem minha consciência se beneficiem ao mandá-los de volta para a rua sem solução, infelizmente
posso fazer pouca coisa, já que nossas informações são tão escassas. O senhor tem certeza absoluta de que o envenenamento ocorreu recentemente?
– Ontem à noite, senhora, foi a primeira oportunidade que nosso... atormentador teve.
– Então aceitem o pouco consolo que posso dar. Permaneçam úteis a esse indivíduo e talvez tenham semanas ou meses de segurança pela frente. Nesse tempo, algum golpe
de sorte pode lhes trazer mais alguma informação sobre a tal substância. Observem e ouçam atentamente em busca de qualquer pista. Voltem com dados mais sólidos para
mim e eu instruirei meu pessoal a deixá-los entrar a qualquer hora, noite ou dia, para ver o que posso fazer.
– É muita gentileza sua, senhora – agredeceu Locke.
– Pobres cavalheiros! Ofereço-lhes minhas melhores orações pela boa sorte. Sei que viverão durante um tempo com um peso nos ombros... e caso não encontrem uma solução,
sempre posso lhes oferecer meus outros serviços. Dar o troco, como dizem, é jogo limpo.
– A senhora é do nosso tipo de negociante – afirmou Jean, levantando-se. Em seguida, pousou a pequena xícara de café e, ao lado, pôs 1 solari. – Agradecemos pelo
seu tempo e sua hospitalidade.
– Sem problema, mestre de Ferra. Então estão prontos para ir?
Locke se levantou e ajeitou o casaco comprido. Ele e Jean assentiram ao mesmo tempo.
– Muito bem. Valista vai acompanhá-los por onde os senhores entraram. De novo peço desculpas pelas vendas, mas... algumas precauções são tanto para o seu benefício
quanto para o meu.
O local exato da sala de Therese Pálida era segredo, enfiado em algum ponto em meio às centenas de empresas respeitáveis, cafeterias, tavernas e casas nos labirintos
de madeira das Galerias de Esmeralda, onde tanto a luz do sol quanto o luar se filtravam num tranquilizante verde-piscina através das cúpulas de Vidrantigo transversais.
Os guardas de Therese levavam os clientes até ela, vendados, por uma longa série de passagens. A jovem armada afastou-se da porta com um par de vendas na mão.
– Entendemos completamente – garantiu Locke. – E nunca tememos. Estamos ficando acostumados a ser conduzidos no escuro.
2
Locke e Jean se entediaram no Savrola durante duas noites, de olho em cada telhado e cada beco, mas nenhum Mago-Servidor nem agentes do Arconte apareceram e se anunciaram.
Eles estavam sendo seguidos e observados por várias equipes, isso era claro. Locke achava que era gente de Requin, com instruções de se fazer notar algumas vezes
para alertá-los.
Na terceira noite, decidiram tomar coragem e retornar à Agulha do Pecado. Vestindo roupas que valiam muitas centenas de solaris, subiram pelo tapete de veludo vermelho
e colocaram volanis nas mãos dos guardas à porta enquanto uma multidão considerável de fulanos bem-vestidos ficavam ali perto, esperando um vislumbre de misericórdia
social.
O olhar treinado de Locke captou os criminosos no meio deles: homens e mulheres com dentes piores, rostos mais magros e olhos mais desconfiados do que o resto da
turba, vestindo roupas de noite que não pareciam cortadas sob medida ou usando acessórios ou cores errados. Eram as Pessoas Certas de Requin, saindo para uma noitada
na Agulha do Pecado como recompensa por algum trabalho bem-feito. Teriam permissão de entrar, mas com certeza não passariam do primeiro andar. Sua presença era apenas
mais um componente da mística da torre: uma chance para os grandes e bons se misturarem aos sujos e perigosos.
– Mestres Kosta e De Ferra – disse um dos porteiros. – Bem-vindos de volta.
Quando a grande porta dupla se abriu na direção de Locke e Jean, uma onda de ruídos, calor e cheiros passou por eles e saiu à noite – a exalação familiar da decadência.
O térreo estava apinhado, mas o primeiro andar era um mar de carne e roupas finas de parede a parede. A multidão começava na escada e Locke e Jean precisaram usar
os cotovelos e ameaças para subir em meio à confusão.
– O que está acontecendo, em nome de Perelandro? – perguntou Locke a um homem comprimido contra ele. O sujeito se virou, rindo com empolgação.
– É um espetáculo de jaula!
No centro do primeiro andar, havia uma jaula de latão cúbica de 4 metros de lado que podia ser baixada do teto e presa em aberturas no piso. Naquela noite, a jaula
estava também coberta com uma tela muito fina – não, corrigiu-se Locke, duas camadas de tela, uma dentro da jaula e outra fora. Uma minoria sortuda dentre os clientes
da Agulha do Pecado se achava em mesas elevadas junto às paredes externas; o restante, pelo menos cem pessoas, precisava ficar de pé.
Locke e Jean foram andando pela turba em sentido anti-horário, tentando chegar perto o bastante para descobrir qual era o espetáculo. O murmúrio empolgado de conversas
os cercava, mais frenético do que Locke jamais ouvira dentro daquelas paredes. Mas, enquanto ele e Jean se aproximavam da jaula, percebeu de repente que nem todo
o barulho vinha da multidão.
Algo do tamanho de um pardal batia asas contra a tela e zumbia raivoso, um som baixo e entrecortado que fez um calafrio de puro pavor subir pela espinha de Locke.
– Isso é a porra de uma vespa-estilete – sussurrou a Jean, que assentiu com vigor.
Locke jamais tivera a infelicidade de encontrar pessoalmente um daqueles insetos. Eles eram o flagelo de várias ilhas tropicais grandes a milhares de quilômetros
a leste, muito além de Jerem e Jeresh e das terras detalhadas na maioria dos mapas terins. Anos antes, Jean encontrara um relato pavoroso daquelas criaturas num
dos seus livros de filosofia natural e o lera em voz alta para os outros Nobres Vigaristas, arruinando o sono deles durante várias noites.
Eram chamadas de vespas-estilete por causa de descrições feitas pelos raros sobreviventes de suas picadas. Eram pesadas como pássaros, de cor vermelha brilhante,
e os ferrões eram maiores do que o dedo médio de um homem adulto. A posse de uma vespa-estilete rainha em qualquer cidade-estado terim era punível com a morte, para
que aquelas coisas não se estabelecessem. Diziam que suas colmeias eram do tamanho de casas.
Um rapaz se abaixava e se movia para os lados dentro da jaula, vestido com nada mais do que uma túnica de seda, calções de algodão e botas curtas. Grossas luvas
de couro eram suas armas e sua única armadura, presas a braçadeiras afiveladas em volta dos antebraços; ele mantinha as mãos diante do rosto, como um boxeador. Com
luvas assim, um homem poderia pensar em dar um tapa ou esmagar uma vespa-estilete, mas teria de ser muito rápido e confiante.
Numa mesa do outro lado da jaula, estava um pesado armário de madeira com dezenas de células cobertas de tela, algumas já abertas. As outras, a julgar pelo ruído,
estavam apinhadas de vespas-estilete tremendamente agitadas, só esperando para ser soltas.
– Mestre Kosta! Mestre de Ferra!
O grito atravessou a multidão ruidosa, mas ainda assim era difícil identificar a origem. Locke precisou olhar ao redor várias vezes antes de encontrar a fonte: Maracosa
Durenna, acenando para ele e Jean de seu lugar numa das mesas encostadas a uma parede distante.
Seu cabelo preto estava preso numa espécie de rabo-leque em volta de um reluzente ornamento prateado e ela fumava um cachimbo curvo de prata quase do comprimento
do braço. Argolas de ferro branco e jade chacoalhavam em seu pulso esquerdo enquanto ela chamava Locke e Jean. Os dois arquearam as sobrancelhas um para o outro,
mas abriram caminho pela multidão até ela e logo estavam parados junto à sua mesa.
– Onde vocês andaram nas últimas noites? Izmilla continua indisposta, mas eu estive cruzando as águas com outros jogos em mente.
– Pedimos desculpas, madame Durenna – falou Jean. – Os negócios nos mantiveram em outro lugar. Ocasionalmente, prestamos consultoria avulsa para clientes muito...
exigentes.
– Houve uma breve viagem por água – acrescentou Locke.
– Negociações relativas a investimentos futuros em cidra de pera – emendou Jean.
– Viemos altamente recomendados por antigos sócios – completou Locke.
– Investimentos futuros em cidra de pera? Que negócio romântico e perigoso vocês devem realizar! E são tão bem-sucedidos quanto no Carrossel da Sorte?
– Devemos ser – respondeu Jean. – Caso contrário, não teríamos as verbas para jogar nele.
– Bom, então, que tal uma demonstração? O duelo da jaula. Que participante vocês acham que têm uma perspectiva mais feliz de futuro?
Na jaula, a vespa-estilete livre disparou na direção do rapaz, que lhe deu um tapa no ar e a esmagou sob uma das botas com um estalo audível de algo liberando líquido.
A maioria da multidão aplaudiu.
– Parece que é tarde demais para nossa opinião, não importando qual ela fosse – disse Locke. – Ou há mais alguma coisa na apresentação?
– O show apenas começou, mestre Kosta. Aquela colmeia tem 120 células. Há um mecanismo abrindo as portas, em geral de modo aleatório. Ele pode ser atacado por uma
de cada vez ou por seis, por exemplo. Impressionante, não é? Ele só pode sair da jaula quando tiver 120 vespas mortas aos pés ou... – Ela pontuou a frase com uma
inalação profunda de fumaça do cachimbo e um arqueio das sobrancelhas. – Acho que até agora ele matou oito.
– Ah – fez Locke. – Bom... se eu fosse escolher, tenderia ao rapaz. Pode me chamar de otimista.
– E é mesmo. – Ela liberou dois grandes jatos de fumaça do nariz como débeis cachoeiras cinzentas e sorriu. – Eu ficaria com as vespas. Vamos apostar? Seriam 200
solaris meus, 100 de cada um de vocês.
– Eu gosto de uma pequena aposta tanto quanto qualquer um, mas vamos perguntar ao meu parceiro: Jerome?
– Se for do seu agrado, senhora, nossas bolsas de moedas estão ao seu dispor.
– Que fonte de graciosas inverdades são vocês dois!
Ela chamou um dos funcionário de Requin e os três ofereceram seu crédito em troca de marcadores. Receberam quatro palitos curtos gravados com dez círculos cada.
O funcionário registrou os nomes deles numa tabuleta e se afastou; o ritmo das apostas no salão estava aumentando.
Na jaula, mais dois insetos mortalmente irritados saíram de suas células e voaram na direção do jovem.
– Eu mencionei – perguntou Durenna, colocando seus marcadores na mesinha – que a morte de vespas próximas parece excitar as outras a um frenesi maior? As oponentes
daquele rapaz vão se tornar cada vez mais furiosas à medida que a luta continuar.
As duas que tinham se libertado pareciam bastante furiosas; o rapaz executava uma dança frenética para mantê-las longe das costas e dos flancos.
– Fascinante – comentou Jean, esticando o pescoço para assistir ao duelo ao mesmo tempo que fazia uma série de gestos.
Havia alguns usos criativos de sinais bastante limitados na mensagem de Jean, mas Locke acabou decifrando o significado: Precisamos mesmo ficar assistindo a isso
com ela?
Ele já ia responder quando um peso familiar e firme caiu em seu ombro esquerdo.
– Mestre Kosta – chamou Selendri antes mesmo que Locke terminasse de se virar. – Um membro do Priori deseja falar com o senhor no quinto andar. Um assunto de pouca
importância. Algo relativo a... truques com cartas. Ele disse que o senhor entenderia.
– Senhora, eu... é... ficaria feliz em ir. Pode avisar a ele que estou indo?
– Farei melhor – respondeu ela com um meio sorriso que não moveu o lado devastado do rosto. – Eu mesma posso acompanhá-lo, para acelerar a sua passagem.
Locke sorriu como se fosse exatamente isso que ele desejasse e se voltou para madame Durenna com as mãos espalmadas.
– O senhor se move mesmo em círculos interessantes, mestre Kosta. É melhor se apressar; Jerome pode cuidar da sua aposta e compartilhar uma bebida comigo.
– Um prazer muito imprevisto – disse Jean, já chamando um funcionário para pedir a bebida.
Selendri não perdeu mais nenhum instante; virou-se e entrou no meio da turba, rumando para a escada do lado oposto do salão circular. Movia-se às pressas, com a
mão de bronze aninhada na de carne à frente do corpo, como uma oferenda, e o aglomerado se dividia quase milagrosamente. Locke se apressou atrás dela, passando logo
antes de a multidão se fechar de novo atrás dele como uma colônia de criaturas perturbadas por um breve momento. Taças tilintavam, fumaça redemoinhava e vespas zumbiam.
Subiram a escada até o segundo andar; de novo as massas bem-vestidas se dissolviam diante da governanta de Requin. No lado sul daquele patamar, ficava uma área de
serviço cheia de funcionários se agitando ao redor de prateleiras de garrafas de bebidas. Nos fundos dela, havia uma estreita porta de madeira com um nicho ao lado,
onde Selendri enfiou a mão artificial. A porta se entreabriu para um espaço escuro pouco maior do que um caixão. Ela entrou primeiro, apoiou as costas na parede
e o chamou para dentro.
– O armário ascensor – informou ela. – Muito mais fácil do que passar pela escada e a multidão.
Era um espaço apertado; Jean não poderia dividir o compartimento com ela. Locke ficou espremido contra o lado esquerdo de Selendri e podia sentir o peso de sua mão
de bronze em suas costas. Ela estendeu a outra mão, passando-a por ele, e fechou o recinto. Ficaram trancados numa escuridão quente e Locke teve uma consciência
intensa dos cheiros: seu suor fresco e o almíscar dela, e algo no cabelo de Selendri, como a fumaça de uma tora de pinheiro queimando. Amadeirada, pungente, nem
um pouco desagradável.
– Bom, é aqui que eu sofreria um acidente, não é? Se eu fosse sofrer um acidente.
– Não seria acidente, mestre Kosta. Mas, não, o senhor não vai sofrê-lo na subida.
Ela se moveu e ele ouviu o estalo de algum mecanismo na parede à direita dela. Um instante depois, o compartimento estremeceu e um leve rangido cresceu ao redor
dos dois.
– A senhora não gosta de mim – disse Locke num rompante. Houve um breve silêncio.
– Já conheci muitos traidores, mas talvez nenhum tão falastrão.
– Só os que iniciam a traição são de fato traidores – replicou Locke, dando à sua voz um tom de mágoa. – O que eu desejo é compensar um malfeito.
– O senhor está tentando amenizar a verdade – sussurrou ela.
– Ofendi a senhora de algum modo.
– Pode chamar isso como quiser.
Locke se concentrou furiosamente no tom de suas próximas palavras. No escuro, virado de costas para ela, sua voz estaria isolada de todas as sugestões do rosto e
dos maneirismos. Jamais teria outra oportunidade tão propícia de teatralizar. Como um alquimista, misturou ardis muito ensaiados na mistura emocional desejada: arrependimento,
confusão, desejo.
– Se eu a ofendi, senhora, desdiria o que disse ou desfaria o que fiz. – Uma hesitação brevíssima, o bastante para transmitir sinceridade, a ferramenta mais confiável
em seu kit verbal. – Eu faria isso no momento em que a senhora me dissesse como, se ao menos me desse a chance.
Ela se remexeu ligeiramente contra ele; a mão de bronze o pressionou com mais força por um momento fugaz. Locke fechou os olhos e forçou os ouvidos, a pele e os
instintos a captar qualquer pista minúscula que pudesse perceber no escuro. Será que Selendri desprezava a piedade ou ansiava por ela? Locke podia sentir as batidas
trêmulas de seu próprio coração, ouvir a leve pulsação nas têmporas.
– Não há nada a desdizer ou desfazer – retrucou ela, baixinho.
– Eu quase desejo que houvesse. Para deixá-la à vontade.
– O senhor não pode. – Ela suspirou. – Não poderia.
– E a senhora nem deixaria que eu tentasse?
– O senhor fala do mesmo modo como realiza seus truques com cartas, mestre Kosta. É exímio demais. Temo que seja ainda melhor em esconder coisas com palavras do
que com as mãos. Para o seu conhecimento, é sua possível utilidade contra seu empregador, e somente isso, que preserva meu consentimento em deixá-lo viver.
– Não quero ser seu inimigo, Selendri. Nem quero representar encrenca.
– As palavras são baratas. Baratas e sem significado.
– Eu não posso... – Pausa judiciosa outra vez. Locke foi cuidadoso como um mestre escultor colocando pés de galinha ao redor dos olhos de uma estátua de pedra. –
Olhe, talvez eu seja falastrão. Não sei ser de outro modo, Selendri. – O uso repetido do nome dela, uma compulsão, quase um feitiço. Mais íntimo e efetivo do que
os pronomes de tratamento. – Eu sou quem sou.
– E imagina que eu desconfie do senhor por causa disso?
– Eu imagino se há algo de que a senhora não desconfie.
– Desconfie de todo mundo e o senhor jamais será traído. As pessoas se oporão, mas nunca conseguirão traí-lo.
– Hummm. – Locke mordeu a língua e pensou rapidamente. – Mas você não desconfia dele, não é, Selendri?
– Isso não é da sua conta, mestre Kosta.
Houve um chacoalhar alto vindo do teto do armário ascensor, que tremeu forte pela última vez e depois ficou silencioso.
– Desculpe-me de novo – disse Locke. – Não é o quinto andar, claro. É o oitavo?
– O oitavo.
Num segundo ela abriria a porta. Eles tinham um último instante a sós na escuridão íntima. Locke avaliou as opções, sopesou o último dardo verbal. Algo arriscado,
mas potencialmente inquietante.
– Eu sentia muito menos consideração por ele, você sabe. Antes de descobrir que ele era sábio a ponto de realmente amá-la. – Outra pausa, e ele acrescentou o mais
baixo possível: – Acho que você deve ser a mulher mais corajosa que já conheci.
Locke contou as próprias batidas do coração no escuro até que ela respondeu:
– Que bela suposição – sussurrou ela, e havia ácido por trás de suas palavras.
Houve um estalo e uma linha de luz amarela rompeu o breu, ardendo nos olhos dele. Selendri lhe deu um empurrão firme com a mão artificial, impelindo-o contra a porta
que se abriu no coração iluminado do escritório de Requin.
Bom, que ela remoesse suas palavras por um tempo. Que lhe desse os sinais dizendo como ir adiante. Ele não tinha um objetivo específico; bastaria mantê-la incerta,
menos inclinada a cravar uma faca nas suas costas. E se alguma parte pequena dele sentia um azedume por remexer nas emoções de Selendri (pelos deuses, essa parte
raramente havia se manifestado antes!), Locke lembrou que poderia fazer o que quisesse e sentir o que quisesse enquanto era Leocanto Kosta. Mestre Kosta não era
real.
Saiu do armário ascensor, sem saber se estava mais convencido por si mesmo do que Selendri.
3
– Mestre Kosta! Meu misterioso novo sócio. Que homem ocupado o senhor tem sido!
O escritório de Requin estava tão atulhado quanto na última visita. Locke sentiu-se satisfeito ao ver seus baralhos empilhados aleatoriamente em vários pontos em
cima e perto da mesa de Requin. O armário ascensor se abrira num nicho de parede entre duas pinturas que Locke não havia notado na vez anterior.
Requin estava de pé, olhando pela tela que cobria a porta de sacada, usando um pesado casaco marrom e comprido com lapelas pretas. Coçou o queixo com uma das mãos
enluvadas e olhou de lado para Locke.
– Na verdade, Jerome e eu tivemos alguns dias bem calmos. Como acredito que prometi que faríamos.
– Não estou falando só destes últimos dias. Andei fazendo sondagens sobre os dois anos em que vocês estão em Tal Verrar.
– Como eu esperava. Foi esclarecedor?
– Tremendamente educativo. Sejamos diretos: o seu parceiro tentou dar um arrocho em Azura Gallardine para obter informações sobre meu cofre. Há pouco mais de um
ano. Você sabe quem é ela?
Selendri andava na sala à esquerda de Locke, devagar, vigiando-o por cima do ombro direito.
– Claro. Membro do alto nível de bosta da Guilda dos Artífices. Eu disse ao Jerome onde encontrá-la.
– E como você soube que ela teve participação no projeto do meu cofre?
– É espantoso o quanto se pode descobrir pagando bebidas em bares de artífices e fingindo que cada história que a gente ouve é incrivelmente fascinante.
– Sei.
– Mas a vaca velha não contou nada a ele.
– Ela não contaria. Também não me contou sobre a indagação que ele fez. Mas eu espalhei a pergunta há algumas noites e, por acaso, um vendedor de cerveja que está
na minha lista de olhos confiáveis viu uma vez alguém parecido com o seu colega despencar do céu.
– É. Jerome disse que a mestra da guilda tem um método especial de interromper as conversas.
– Bom, Selendri teve uma conversa sem interrupções com ela ontem à noite. Ela foi instigada a lembrar tudo que podia sobre a visita de Jerome.
– Instigada?
– Financeiramente, mestre Kosta.
– Ah.
– E também fiquei sabendo que o senhor inquiriu algumas das minhas gangues na Marina de Prata. Mais ou menos no período em que Jerome visitou a Mestra Gallardine.
– É. Eu falei com um velho chamado Drava, e uma mulher chamada... como era mesmo...
– Armania Cantazzi.
– Isso, ela mesma. Obrigado. Mulher lindíssima; tentei ir além dos negócios e ser mais amigável, porém ela não pareceu apreciar meus encantos.
– Armania não apreciaria: ela prefere a companhia de outras mulheres.
– Ah, isso é um alívio. Achei que eu estava perdendo o jeito.
– Você se mostrou curioso com relação a transporte por navio, do tipo que as autoridades da alfândega jamais ouvem falar. Discutiu alguns termos com meu pessoal
e nunca mais apareceu. Por quê?
– Após refletir, Jerome e eu concordamos que seria mais sensato obter navios de fora de Tal Verrar. Então poderíamos simplesmente contratar algumas barcas pequenas
para transportar o que roubássemos do senhor e evitar as negociações mais complicadas para conseguir um batelão de carga.
– Se eu estivesse planejando me roubar, acho que concordaria. Agora, a questão dos alquimistas. Tenho informações confiáveis me informando do seu encontro com vários
no ano passado. Respeitáveis e não respeitáveis.
– Claro. Eu realizei algumas experiências com óleos de fogo e ácidos em mecanismos de segunda mão. Achei que poderia economizar o tempo tedioso de arrombar fechaduras.
– Essas experiências deram fruto?
– Eu compartilharia essas informações com um empregador – respondeu Locke, sorrindo.
– Hummmm. Deixe para lá, por enquanto. Mas de fato parece que vocês estavam tramando alguma coisa. Muitas atividades disparatadas que se combinam para sustentar
sua história. Só há mais uma coisa.
– E qual é?
– Estou curioso: como estava o velho Maxilan quando você o viu há três noites?
De repente, Locke percebeu que Selendri não estava mais andando de um lado para o outro, mas havia se posicionado alguns passos atrás dele. Guardião Torto, me dê
um belo papo furado e a sabedoria para saber quando interrompê-lo, pensou.
– Ah, bem, ele é um sacana.
– Isso não é segredo. Qualquer criança na rua poderia me dizer isso. Mas você admite que esteve no Mon Magisteria?
– Sim. Tive uma audiência particular com Stragos. Por acaso, o Arconte tem a impressão de que os agentes dele que fazem parte das suas gangues não foram detectados.
– Esse é meu objetivo. Mas você realmente circula, Leocanto. O que o Arconte de Tal Verrar iria querer com você e Jerome? Ainda por cima no meio da noite? Na mesma
noite em que nós tivemos uma conversa tão interessante?
Locke suspirou para ganhar alguns segundos e pensar.
– Posso lhe dizer – respondeu, após o máximo de hesitação que seria prudente –, mas duvido que o senhor vá gostar.
– Claro que não vou gostar. Mas ouçamos assim mesmo.
Locke suspirou de novo. Era mergulhar de cabeça numa mentira ou pela janela.
– É o Stragos que tem feito os nossos pagamentos. Os intermediários com quem estivemos lidando são agentes do Arconte. Ele é o homem tão ansioso para ver seu cofre
parecendo uma despensa depois de um banquete. E achou que era a hora de estalar o chicote nas nossas costas.
Leves rugas apareceram no rosto de Requin enquanto ele trincava os dentes, e ele levou as mãos às costas.
– Você ouviu isso da própria boca do Arconte?
– Ouvi.
– Que consideração espantosa ele deve sentir por você, para lhe fazer um relato pessoal dos negócios. E qual é a sua prova?
– Bom, pedi uma declaração assinada sobre as intenções dele de sacanear o senhor e ele ficou feliz em me entregar, mas, desastrado que sou... perdi no caminho para
cá esta noite! – Locke se virou para a esquerda e fechou a cara. Podia ver que Selendri o vigiava atentamente, com a mão de verdade sob a jaqueta. – Pelo amor da
porra, se não acredita, posso pular pela janela agora e poupar um bocado de tempo para todos nós.
– Não... não precisa pintar as pedras do calçamento com seu cérebro por enquanto – replicou Requin, erguendo uma das mãos. – Mas é incomum que alguém na posição
de Stragos lide diretamente com agentes que devem estar... ah... num nível um tanto baixo de sua hierarquia e de sua consideração. Sem querer ofender.
– Tudo bem. Imagino que Stragos esteja impaciente por algum motivo. Suspeito que ele queira resultados mais rápidos. E... tenho quase certeza de que Jerome e eu
não estamos mais destinados a sobreviver a qualquer sucesso. É a única suposição razoável.
– E isso economizaria um bocado de dinheiro para ele, acho. Gente do tipo de Stragos é mais parcimoniosa com o ouro do que com vidas. – Requin estalou os nós dos
dedos. – A desgraça é que tudo isso faz um tremendo sentido. Eu tenho uma regra: se você tem uma charada e as respostas são elegantes e simples, significa que alguém
está tentando foder com você.
– A única pergunta que eu ainda tenho – interveio Selendri – é por que Stragos lidaria com vocês pessoalmente, sabendo muito bem que vocês poderiam acusá-lo se fossem
levados à... persuasão.
– Há uma coisa que eu não tinha pensado em mencionar – falou Locke, parecendo sem graça. – É uma questão de grande embaraço para mim e Jerome. Stragos nos deu cidra
para beber durante a audiência. Não ousando ser grosseiros, bebemos um bocado. Ele diz que colocou dentro um veneno, algo sutil e latente. Algo que exigiria que
nós dois tomássemos um antídoto dado por ele a intervalos regulares, para não morrermos de modo desagradável. Portanto, agora ele nos tem presos pela coleira e,
se quisermos o antídoto, devemos ser seus bichos de estimação.
– É um velho truque – comentou Requin. – Velho e confiável.
– Eu disse que ficamos devidamente embaraçados. E assim o senhor vê: ele já tem um meio de abrir mão de nós quando tivermos servido aos seus propósitos. Tenho certeza
de que, por enquanto, ele confia muito em nossa lealdade.
– E ainda assim você quer se virar contra ele?
– Seja sincero, Requin: se você fosse Stragos, nos daria o antídoto e deixaria que fôssemos embora alegremente? Para ele já estamos mortos. Logo, agora eu tenho
o fardo de duas vinganças para executar antes de morrer. Mesmo que eu sucumba à maldita cidra de Stragos, quero meu último momento com Jerome. E quero que o Arconte
sofra. O senhor é o melhor meio que tenho para realizar os dois objetivos.
– É uma suposição razoável – ronronou Requin, ficando um pouco mais caloroso.
– Fico feliz porque o senhor pensa assim, pois aparentemente sei menos sobre a política desta cidade do que imaginava. Que diabo está acontecendo, Requin?
– O Arconte e o Priori estão rilhando os dentes uns para os outros de novo. Bom, metade do Priori guarda grande parte de suas fortunas pessoais no meu cofre, tornando
impossível para os espiões do Arconte saberem a verdadeira extensão de seus recursos. Esvaziar meu cofre não só iria privá-los de fundos como também mancharia minha
reputação com eles. Neste momento, Stragos jamais poderia me tirar dos negócios sem uma grande provocação, por medo de iniciar uma guerra civil. Mas patrocinar um
aparente terceiro grupo para atacar meu cofre... ah, sim, isso serviria muitíssimo bem. Eu estaria ocupado caçando você e Jerome, o Priori estaria ocupado tentando
me agarrar e me esquartejar, e então Stragos poderia simplesmente...
Requin ilustrou o que o Arconte poderia fazer colocando um punho fechado dentro da palma da outra mão e esfregando com força, como se espremesse algo.
– Eu tinha a impressão de que o Arconte era subordinado aos conselhos do Priori.
– Tecnicamente, é. O Priori tem um lindo pergaminho que diz isso. Stragos tem um exército e uma marinha que lhe garantem uma opinião contrária.
– Fantástico. E o que fazemos agora?
– Boa pergunta. Não tem mais sugestões, nem tramas, nem truques com cartas, mestre Kosta?
Locke decidiu que era uma boa hora de tornar Leocanto Kosta um pouquinho mais humano.
– Olhe, quando meu empregador era apenas um anônimo que mandava um saco de moedas todo mês, eu sabia exatamente o que estava fazendo. Mas agora outra coisa acontece,
facas aparecem, e o senhor pode ver de todos os ângulos possíveis. Diga-me o que fazer e eu farei.
– Hummm. Stragos. Ele perguntou sobre a conversa que nós dois tivemos?
– Nem mencionou. Não creio que ele soubesse a respeito dela. Acho que Jerome e eu já seríamos mesmo levados naquela noite, independentemente de qualquer coisa.
– Tem certeza?
– O máximo de certeza possível.
– Diga uma coisa, Leocanto. Se Stragos tivesse se revelado antes de você ter a chance de fazer seus truques de cartas para mim... se soubesse que era ele que você
estava traindo, mesmo assim teria feito isso?
– Bom... – Locke fingiu pensar na questão. – Se eu gostasse dele, se confiasse nele, talvez só enfiasse uma faca nas costas de Jerome e trabalhasse para o Arconte.
Mas... Para Stragos nós somos ratos, não é? Somos as porras de uns insetos. Stragos é um filho da puta presunçoso. Acha que conhece nós dois. Eu... não gosto dele,
nem um pouco, mesmo sem levar em conta o veneno.
– Ele deve ter falado com você longamente para inspirar tamanha aversão – comentou Requin com um sorriso. – Que seja. Se você quiser entrar na minha organização,
haverá um preço. O preço é Stragos.
– Ah, pelo amor dos deuses. Que diabo isso significa?
– Quando Stragos estiver morto ou sob minha custódia, você pode ter o que pede. Toda a ajuda que eu possa oferecer com relação ao veneno dele. E Jerome de Ferra
chorando sob sua faca. É aceitável?
– Como eu faria isso?
– Não espero que você faça tudo sozinho. Mas Maxilan já governou por tempo suficiente. Ajude-me a forçar sua aposentadoria por qualquer meio ao seu alcance ou qualquer
meio que eu ordene. Então acho que eu teria um novo chefe de segurança dos salões.
– É a melhor coisa que ouço em muito tempo. E o, ahn... o dinheiro que está na minha conta, inacessível por sua ordem?
– Permanecerá inacessível, perdido por suas próprias ações. Não sou um homem caridoso, Leocanto. Lembre-se disso se quiser me servir.
– Claro. Claro. Mas agora, por favor, responda a uma pergunta. Por que não está preocupado com a possibilidade de eu servir como agente duplo para o senhor e para
Stragos? De que eu possa correr para ele e contar tudo isso?
– Por que você presume que eu não estou escondendo alguma coisa de você? – Requin deu um largo sorriso, divertindo-se.
– Todas essas possibilidades fazem minha cabeça doer. Prefiro trapacear com cartas a criar intrigas. Se o senhor não for merecedor de confiança, logicamente é melhor
eu ir para casa e me enforcar esta noite.
– É. Mas vou lhe dar uma resposta melhor. O que você poderia contar a Stragos? Que eu não gosto dele, que guardo o dinheiro dos inimigos dele e quero que ele morra?
Para que ele tivesse confirmação da minha hostilidade? Bobagem. Ele sabe que eu sou hostil. Sabe que o submundo de Tal Verrar é um impedimento para ele afirmar seu
poder. Meus felantozzis preferem ser governados pelas guildas a serem comandados pelo governo dos uniformes e das lanças: há menos dinheiro na ditadura das armas.
Felantozzi era um termo da época do Trono Terim que significava “soldados de infantaria”. Algumas vezes Locke o ouvira sendo usado em referência a criminosos, mas
nunca os ouvira usando-o entre si.
– Tudo o que resta – continuou Requin – é seu outro juiz concordar que vale a pena investir em você.
– Outro juiz?
Requin fez um gesto em direção a Selendri.
– Você ouviu tudo, minha cara. Vamos jogar Leocanto pela janela ou mandá-lo de volta para onde você o buscou?
Locke a encarou, cruzou os braços e sorriu, esforçando-se para parecer um cachorrinho inofensivo. Ela fez uma carranca inescrutável por alguns instantes, depois
suspirou.
– Há coisas demais de que desconfiar. Mas se houver uma chance de colocar um vira-casaca relativamente perto do Arconte... acho que vai nos custar pouco. Podemos
aceitar.
– Pronto, mestre Kosta. – Requin se aproximou e pôs a mão no ombro de Locke. – Que tal este sonoro endosso ao seu caráter?
– Aceitarei o que puder receber.
Locke tentou não deixar que boa parte de seu genuíno alívio transparecesse.
– Por enquanto, sua tarefa será manter o Arconte feliz, para que ele lhe dê o antídoto.
– Farei isso se os deuses quiserem. – Locke coçou o queixo, pensativo. – Farei com que ele saiba que nós dois nos conhecemos; ele deve ter outros olhos em sua Agulha,
que vão descobrir isso cedo ou tarde. É melhor que seja explicado cedo.
– Claro. Será que ele vai levá-lo de volta ao Mon Magisteria em breve?
– Não sei quando, mas sim. É muito mais do que provável.
– Ótimo. Isso significa que ele pode falar de novo sobre seus planos. Agora vamos levá-lo de volta ao mestre de Ferra e seus negócios noturnos. Está passando a perna
em alguém esta noite?
– Acabamos de chegar. Estávamos assistindo ao espetáculo da jaula.
– Ah, as vespas. A chegada desses monstros foi uma surpresa inesperada.
– É uma propriedade perigosa.
– É. Um capitão jeremita possuía uma colmeia-semente e uma rainha que ele tentava vender. Meu pessoal subornou a alfândega, fez com que ele fosse executado, queimou
a rainha e o resto sumiu sob minha posse depois de ser apreendido. Eu sabia que arranjaria alguma utilidade para elas.
– E o rapaz que as está enfrentando?
– Algum oitavo filho de um nobre falido, com areia no lugar dos miolos e dívidas com a Agulha. Ele garantiu que cobriria as dívidas ou morreria tentando, e eu aceitei
sua palavra.
– Bom, eu apostei 100 solaris nele, por isso espero que ele viva para cobrir as tais dívidas. – Locke se virou para Selendri. – O armário ascensor outra vez?
– Só até o quinto andar. De lá o senhor pode voltar andando. – Ela deu um pequeno sorriso afetado. – Sozinho.
4
Quando Locke finalmente conseguiu abrir caminho até o primeiro andar, o jovem na jaula mancava, sangrando, meio instável. Meia dúzia de vespas-estilete voavam na
jaula, mergulhando em volta dele. Locke suspirou ao atravessar a multidão.
– Mestre Kosta! Voltou a nós bem a tempo de a aposta ser resolvida, acho.
Madame Durenna sorriu segurando uma bebida, algum licor laranja leitoso numa esguia taça de vidro com quase 30 centímetros de altura. Jean bebericava algo castanho-claro
num copo menor; Locke recebeu um idêntico e assentiu, agradecido. Rum com mel: forte o bastante para evitar o desprezo de Durenna, mas não o bastante para começar
a prejudicar o bom senso de alguém.
– Já? Desculpem pela ausência. Um negociozinho idiota.
– Idiota? Com um conselheiro do Priori envolvido?
– Eu cometi o erro de lhe mostrar um truque de cartas semana passada. Agora ele está fazendo arranjos para que eu realize o mesmo truque para... ahn... um amigo
dele.
– Deve ser um truque impressionante, então. Mais impressionante do que o que você faz em geral numa mesa de carteado?
– Duvido, senhora. – Locke tomou um longo gole de sua bebida. – Para começo de conversa, não preciso me preocupar com uma oposição tão magnífica quando estou realizando
um truque de cartas.
– Alguém já tentou cortar sua língua abominavelmente eloquente, mestre Kosta?
– Isso se tornou um tradicional passatempo em várias cidades.
Na jaula, o zumbido insano das vespas ficou mais alto no momento que outras saltaram das células... duas, três, quatro... Locke estremeceu e ficou olhando, impotente,
enquanto as formas escuras e turvas circulavam. O rapaz tentou permanecer firme, depois entrou em pânico e começou a balançar os braços loucamente. Uma vespa encontrou
sua luva e foi jogada no chão, mas outra pousou nas costas, junto à cintura, e impeliu o corpo para baixo. O rapaz uivou, bateu nela e arqueou as costas. A multidão
ficou num silêncio mortal, numa mistura de horror e antecipação.
Foi rápido, mas Locke jamais chamaria de misericordioso. As vespas envolveram o rapaz, saltando e picando, cravando as pernas com garras em sua camisa empapada de
sangue. Uma no peito, outra no braço, o abdômen pulsando loucamente para cima e para baixo... Uma adejou perto do seu cabelo e outra cravou o ferrão em sua nuca.
Os gritos histéricos do rapaz se tornaram ruídos engasgados e úmidos. Uma espuma escorreu de sua boca, o sangue escorria pelo rosto e pelo peito. Por fim, ele caiu,
em convulsão. Os insetos zumbiam e pousavam no corpo, horrivelmente parecidos com formigas cor de sangue, ainda picando.
O estômago de Locke tentava expulsar o pequeno desjejum comido na Villa Candessa e ele mordeu com força um dos seus dedos dobrados, usando a dor para garantir algum
autocontrole. Ao virar para madame Durenna, sua expressão já se tornara plácida.
– Bom, esta é uma compensação tolerável pelos ferimentos que ainda tenho do nosso último encontro – disse ela, balançando os quatro marcadores para ele e Jean. –
Mas quando teremos o prazer de uma revanche completa?
– Quanto antes, melhor – afirmou Locke. – Mas nos desculpe por esta noite: temos algumas... dificuldades políticas a discutir. E antes de irmos embora, vou despejar
minha bebida no corpo do homem que nos custou 200 solaris.
Madame Durenna acenou despreocupadamente e estava enchendo de novo seu cachimbo de prata com fumo de uma bolsa de couro antes que Locke e Jean tivessem dado dois
passos.
O enjoo de Locke voltou a aumentar conforme ele se aproximava da vítima. A multidão se espalhava ao redor dele, trocando marcadores e travando conversas entusiasmadas.
Mas a área de alguns passos ao redor da jaula já estava vazia. O barulho e o movimento no salão ao redor mantinha as vespas agitadas. Um par delas saltou no ar e
pairou ameaçadoramente, batendo com força contra a camada interna de tela, acompanhando suas passadas. Seus olhos pretos pareciam se fixar nos dele. Ele se encolheu,
mesmo contra a vontade.
Ajoelhou-se o mais perto possível do corpo do rapaz e, em segundos, metade das vespas estava zumbindo e se chocando contra a tela a apenas meio metro de seu rosto.
Locke jogou o resto de seu rum em cima do cadáver coberto de insetos. Atrás dele, houve uma erupção de gargalhadas.
– Esse é o espírito, amigo – disse uma voz engrolada. – O filho da puta desajeitado me custou 500 solaris. Dê uma mijada nele, já que está aí.
– Guardião Torto – falou Locke baixinho e rapidamente. – Um copo derramado em homenagem a um estranho sem amigos. Senhor dos galantes e dos idiotas, alivie a passagem
deste homem até a Senhora do Longo Silêncio. Foi um modo infernal de morrer. Faça isso por mim e tentarei não pedir nada durante um tempo. Desta vez estou falando
sério mesmo.
Locke beijou o dorso da mão esquerda e se levantou. Tendo feito a oração, subitamente não suportava mais ficar perto da jaula.
– Para onde agora? – sussurrou Jean.
– Para o mais longe possível desses insetos desgraçados.
5
O céu estava límpido sobre o mar e coberto por nuvens a leste; um alto teto perolado pairava por lá, como fumaça congelada sob as luas. Uma brisa forte soprava enquanto
eles caminhavam pelo cais que cercava a parte interna da Grande Galeria, dispersando papéis e outros pedaços de lixo. Um sino de navio ecoou pela água prateada.
À esquerda, uma escura parede de Vidrantigo subia, como um penhasco altíssimo, atravessada aqui e ali por escadas precárias com fracas lanternas para guiar o caminho
dos que subiam e desciam. No topo, ficava o Mercado Noturno e a borda do vasto teto que cobria as camadas da ilha até as ondas do outro lado.
– Ah, fantástico – comentou Jean quando Locke terminou de narrar o que acontecera no escritório de Requin. – Então agora Requin pensa que Stragos está decidido a
acabar com ele. Nunca ajudei a precipitar uma guerra civil antes. Deve ser divertido.
– Eu não tinha muita opção. Você pode pensar em algum outro motivo convincente para Stragos sentir um interesse pessoal por nós? Sem uma boa explicação, eu iria
voar por aquela janela, isso estava claro.
– Se ao menos tivesse caído de cabeça, não teria nada a temer a não ser a conta pelas pedras do calçamento danificadas. Você acha que Stragos precisa saber que Requin
não é tão cego aos agentes dele quanto ele acha?
– Ah, foda-se o filho da puta. Pelo que sabemos, Stragos está mesmo querendo acabar com Requin. Certamente os dois não são amigos e esta cidade maldita está borbulhando.
Quanto aos créditos do livro-caixa, acho que Selendri pode ser ganhada com papo furado, pelo menos um pouquinho. E parece que Requin acha mesmo que eu sou dele.
– É, isso é bom. Você acha que é hora de dar as cadeiras a ele?
– É, as cadeiras... as cadeiras. É. Vamos fazer isso antes que Stragos decida nos pressionar mais um pouco.
– Farei com que elas sejam tiradas do depósito e trazidas numa carroça quando você quiser.
– Ótimo. Então vou entregá-las no fim desta semana. Você se incomoda em evitar a Agulha do Pecado por uma ou duas noites?
– Claro que não. Algum motivo específico?
– Só quero desapontar Durenna e Corvaleur. Até estarmos um pouco mais seguros com a situação, eu preferiria não desperdiçar mais uma noite perdendo dinheiro e ficando
bêbado. O truque da bella paranella pode levantar suspeitas se o usarmos de novo.
– Se é assim, não posso recusar. Que tal se eu xeretasse alguns outros lugares para ver se consigo descobrir um boato sobre o Arconte e o Priori? Acho que poderíamos
nos armar com um pouco mais da história desta cidade.
– Maravilhoso. Que diabo é isso?
Os dois não estavam sozinhos no cais: além de estranhos apressados fazendo negócios, barqueiros dormiam sob capas ao lado das embarcações atracadas e um bom número
de bêbados e mendigos enrolavam-se em qualquer abrigo que pudessem encontrar. Havia uma pilha de caixotes a poucos passos à esquerda dos dois e, à sombra deles,
estava sentada uma figura magra coberta com camadas de trapos rasgados, perto de um minúsculo globo alquímico vermelho-claro. A pessoa segurava um pequeno saco de
aniagem e gesticulava para eles com a mão pálida.
– Senhores, senhores! – A voz alta e grasnada parecia feminina. – Por piedade, finos cavalheiros. Por piedade, por Perelandro. Uma moeda, qualquer moeda, uma fina
de cobre serve. Tenham piedade, por Perelandro.
A mão de Locke foi até a bolsa dentro do casaco comprido. Jean havia tirado a dele e agora a carregava junto ao braço direito; parecia contente em deixar que Locke
cuidasse do ato de caridade da noite.
– Por Perelandro a senhora pode ter mais do que apenas 1 centira.
Temporariamente distraído pelo brilho de sua própria galanteria afetada, Locke começou a estender 3 volanis antes que se desse conta de algumas questões. A mendiga
ficaria feliz em ter uma moeda fina de cobre e tinha voz alta... Por que não a ouviram falar com nenhum dos estranhos que haviam passado logo antes deles?
E por que ela estava estendendo o saco de aniagem, e não a mão aberta?
Jean foi mais rápido do que ele e, sem se preocupar com delicadeza na hora de colocar o amigo em segurança, deu um empurrão em Locke com o braço esquerdo. Uma seta
de besta abriu um buraco no saco de aniagem e sibilou pelo ar entre os dois; Locke sentiu-a repuxar o casaco enquanto caía de lado. Ele tropeçou num caixote pequeno
e se esparramou desajeitadamente de costas.
Sentou-se bem a tempo de ver Jean chutar a mendiga no rosto. A cabeça da mulher foi virada bruscamente para trás, mas ela apoiou as mãos no chão e deu uma tesoura
nas pernas de Jean, derrubando-o. Enquanto ele batia no chão e seu casaco dobrado era jogado longe, a mendiga plantou bananeira e se lançou para a frente num arco.
Estava de pé num segundo, jogando os trapos longe.
Ah, merda. É uma boxeadora de pés – uma maldita chassoneur, pensou Locke, levantando-se desajeitadamente. Jean odeia isso. Locke sacudiu as mangas do casaco e um
punhal caiu em cada mão. Movendo-se com cautela, foi andando em direção à agressora, que chutava as costelas de Jean enquanto o grandalhão tentava rolar para longe.
Locke estava a três passos da chassoneur quando a batida de uma bota no chão o alertou sobre outra presença perto dele. Levantou o punhal na mão direita como se
fosse atacar a mulher, então se abaixou e girou, estocando às cegas para trás com a lâmina da mão esquerda.
Ficou feliz por ter se abaixado: algo passou junto à sua cabeça, perto o bastante para puxar-lhe dolorosamente o cabelo. O novo atacante era outro “mendigo”, um
homem quase da sua estatura, e tinha acabado de errar o golpe com uma comprida corrente de ferro que teria aberto o crânio de Locke como um ovo. A força do ataque
do sujeito fez com que ele se impulsionasse contra a ponta do punhal de Locke, que mergulhou até o cabo logo abaixo da sua axila direita. O homem ofegou e Locke
aproveitou a vantagem sem dó, enterrando a outra lâmina na sua clavícula esquerda.
Locke remexeu os dois punhais com a maior violência possível e o homem gemeu. A corrente escorregou de seus dedos e bateu no chão com estardalhaço. Um segundo depois,
Locke arrancou as armas como se estivesse tirando espetos de uma peça de carne e deixou o pobre coitado despencar no chão. Levantou as lâminas sangrentas, virou-se
e, com um súbito ímpeto autoconfiante desaconselhável, atacou a agressora de Jean.
Ela deu um chute de lado, mal lançando-lhe um olhar. O pé acertou seu esterno; foi como bater numa parede de tijolos. Locke cambaleou para trás e ela aproveitou
a oportunidade para se afastar de Jean, que parecia fora de combate, e avançar contra Locke.
Locke viu que ela era jovem, provavelmente mais do que ele, usando roupas largas e escuras e um colete fino e bem-feito de couro com nervuras. Era terim, de pele
relativamente escura e cabelo preto com uma trança apertada que envolvia a cabeça como uma coroa. Sua postura dizia que já havia matado antes.
Sem problema, pensou Locke, movendo-se para trás, eu também já matei. Porém, nesse instante tropeçou no corpo do homem que ele havia acabado de apunhalar.
Ela se aproveitou de imediato do passo em falso. No momento em que ele recuperava o equilíbrio, ela golpeou com a perna direita num arco. Seu pé atingiu o antebraço
esquerdo de Locke como uma marreta e ele praguejou ao ver seu punhal voar dos dedos subitamente sem força. Furioso, estocou com a lâmina da mão direita.
Movendo-se com mais agilidade do que Jean jamais havia se movido, ela agarrou o pulso direito de Locke com a mão esquerda, puxou-o para a frente e bateu com a base
da mão direita em seu queixo. O outro punhal voou para o escuro como alguém que mergulhasse de um prédio alto e, de repente, o céu negro acima dele foi substituído
por pedras cinzentas. Ele bateu nelas com força suficiente para que os dentes chacoalhassem como dados num copo.
Ela chutou-o uma vez para rolá-lo de costas, depois colocou um pé em seu peito para prendê-lo ao chão. Tinha apanhado um dos seus punhais e se dobrou para golpear
Locke, que olhava atordoado. Suas mãos estavam entorpecidas, lentas, e ele sentiu uma coceira insuportável no pescoço desprotegido.
De repente, a mulher se arqueou e soltou o punhal, que bateu com força no chão ao lado do rosto de Locke, que se encolheu. Ela tombou de joelhos ao seu lado, respirando
em haustos rápidos, e tentou se retorcer para longe. Locke viu uma das Irmãs Malvadas de Jean enterrada numa mancha escura que se espalhava na base das costas dela,
à direita da espinha dorsal.
Jean abaixou-se e arrancou a machadinha. A mulher ofegou, caiu para a frente e foi puxada de volta violentamente por Jean, que ficou parado atrás dela e encostou
a lâmina da arma em seu pescoço.
– Lo... Leo! Leocanto! Você está bem?
– Com tanta dor assim, sei que não posso estar morto – respondeu Locke, ofegando.
– Que bom. – Jean aplicou mais força na machadinha, que segurava próximo à lâmina, como um barbeiro com uma navalha. – Comece a falar. Eu posso ajudá-la a morrer
sem mais dor ou posso até ajudá-la a viver. Você não é uma simples bandida. Quem a mandou aqui?
– Minhas costas – gemeu a mulher, soluçando, a voz trêmula e sem tom ameaçador. – Por favor, por favor, está doendo.
– É para doer mesmo. Quem mandou você aqui? Quem contratou você?
– Ouro – falou Locke, tossindo. – Ferro branco. Podemos pagar a você. O dobro. Só nos dê um nome.
– Ah, pelos deuses, está doendo...
Jean segurou-a pelos cabelos com a mão livre e puxou; ela gritou e se empertigou. Locke piscou ao ver o que parecia ser uma forma escura, emplumada, explodir do
peito dela, só registrando a pancada úmida do quatrelo de balestra uma fração de segundo depois. Jean saltou para trás, perplexo, e largou a mulher no chão. Após
um instante, olhou para além de Locke e fez um gesto ameaçador com a machadinha.
– Você!
– Ao seu dispor, mestre de Ferra.
Locke virou a cabeça para trás a ponto de captar um vislumbre invertido da mulher que os tirara da rua e entregara ao Arconte algumas noites antes. O cabelo escuro
ondulava atrás dela, na brisa. Ela usava uma jaqueta preta e justa por cima de colete e saia cinzentos e segurava uma balestra descarregada na mão esquerda. Andava
na direção deles com tranquilidade, da mesma direção de onde eles tinham vindo. Locke gemeu e rolou até vê-la de pé.
Ao seu lado, a mendiga chassoneur soltou uma última tosse úmida e morreu.
– Maldição! – exclamou Jean. – Eu já ia obter algumas respostas dela!
– Não ia, não – retrucou a agente do Arconte. – Dê uma olhada na mão direita dela.
Locke começara a se levantar, trêmulo, e fitou a falsa mendiga ao mesmo tempo que Jean: uma faca fina, com lâmina curva, brilhava à luz fraca das luas e das poucas
lâmpadas no cais.
– Estou aqui para vigiar vocês dois – informou a mulher, postando-se ao lado de Locke com um sorriso contente.
– Belo trabalho, porra – replicou Jean, esfregando as costelas com a mão esquerda.
– Vocês pareciam estar se saindo bastante bem antes do momento final. – Ela olhou para a faquinha e assentiu. – Olhem, ela tem um sulco extra ao longo do gume. Geralmente
isso significa alguma coisa maligna na lâmina. Ela estava ganhando tempo para espetar você com ela.
– Sei o que significa um sulco ao longo da lâmina – murmurou Jean, petulante. – Você sabe para quem, diabos, esses dois trabalham?
– Tenho algumas teorias.
– E poderia compartilhá-las? – perguntou Locke.
– Se eu recebesse ordens a respeito – respondeu ela com doçura.
– Que os deuses amaldiçoem todos os verraris e deem mais feridas nas partes privadas deles do que cabelos na cabeça – disse Locke baixinho.
– Eu nasci em Vel Virazzo – avisou a mulher.
– Você tem nome? – indagou Jean.
– Um monte. Todos lindos e nenhum verdadeiro. Vocês dois podem me chamar de Merrane.
– Merrane. Ai. – Locke se encolheu e massageou o antebraço esquerdo com a mão direita. Jean pôs a mão em seu ombro.
– Alguma coisa quebrada, Leo?
– Não muito. Talvez minha dignidade e minhas preciosas presunções de benevolência divina. – Locke suspirou. – Vimos pessoas nos seguindo nas últimas noites, Merrane.
Devemos ter visto você.
– Duvido. Os cavalheiros deveriam recolher suas coisas e começar a andar. Na mesma direção em que iam antes. Logo vão aparecer policiais, que não recebem ordens
do meu patrão.
Locke recuperou os punhais e limpou-os na calça do homem que ele matara antes de devolvê-los às mangas do casaco. Agora que a raiva da luta havia esfriado, sentiu
ânsia de vômito diante da visão do cadáver e se afastou o mais rápido que pôde.
Jean pegou seu casaco e enfiou a machadinha dentro. Logo os três andavam lado a lado, Merrane no meio, de braços dados com eles.
– Meu patrão desejava que eu vigiasse vocês esta noite e que, quando fosse conveniente, os levasse até um barco.
– Maravilhoso – comentou Locke. – Outra conversa particular.
– Não sei. Mas, se fosse conjecturar, acho que ele arranjou um trabalho para vocês dois.
Jean lançou um olhar rápido para os dois corpos caídos na escuridão atrás deles e tossiu no punho fechado.
– Esplêndido – resmungou. – Até agora esse lugar tem estado muito monótono e descomplicado.
R E M I N I S C Ê N C I A
A Guerra do Entretenimento
1
A seis dias pela estrada litorânea ao norte de Tal Verrar, Salon Corbeau fica numa fenda de um verde incomum nas rochas negras junto ao mar. Mais do que uma propriedade
privada, não exatamente uma povoação funcional, a semicidade se agarra à sua vida peculiar à sombra abrasadora do Monte Azar.
Na época do Trono Terim, o Monte Azar explodiu para a vida, soterrando três cidades e dez mil almas em questão de minutos. Atualmente, ele parece contente em apenas
roncar e permanecer meditativo, lançando plumas de carvão retorcido para o mar, e bandos de corvos giram sem preocupação sob a fumaça do vulcão velho e cansado.
Ali começa a planície quente e poeirenta chamada de Adra Morcala, habitada por poucos e amada por ninguém. Ela segue como um mar rachado e seco até o limite sul
de Balinel, o cantão mais a oeste e desolado do Reino dos Sete Tutanos.
Locke adentrou Salon Corbeau no nono dia de Aurim, no Septuagésimo Oitavo Ano de Nara. Era um ameno inverno ocidental e mais de um ano frutífero se passara desde
que ele e Jean haviam posto os pés em Tal Verrar. Na caixa-forte blindada atrás da carruagem de aluguel estavam mil solaris, roubados no bilhar de um certo lorde
Landreval de Espara, que tinha uma sensibilidade incomum a limões.
O pequeno porto que servia à semicidade estava apinhado de embarcações pequenas – iates, barcas de lazer e galeras costeiras com velas de seda quadradas. Mais longe,
no mar aberto, um galeão e uma chalupa estavam ancorados, cada uma com a flâmula de Lashane sob brasões e insígnias de famílias que Locke não reconheceu. A brisa
era fraca e o sol estava pálido, mais prateado do que dourado detrás das exalações nevoentas da montanha.
– Bem-vindo a Salon Corbeau – disse um lacaio de libré preta e verde-oliva, com chapéu alto de feltro preto. – Qual é o seu título e como o senhor deve ser anunciado?
Uma mulher de libré pôs um bloco de madeira sob a porta aberta da carruagem e Locke começou a sair, cruzando as mãos às costas e se espreguiçando com alívio antes
de saltar. Usava um bigode preto e caído, sob ópticos de aro preto e cabelo puxado para trás; o casaco negro e pesado era justo no peito e nos ombros, mas se abria
da cintura até os joelhos, balançando-se atrás dele como uma capa. Ele havia descartado a calça justa com sapatos, mais refinados, em troca de pantalonas cinzas
enfiadas em botas de campo que iam até os joelhos, em preto opaco por baixo de uma leve película de poeira da estrada.
– Sou Mordavi Fehrwight, mercador de Emberlane – apresentou-se. – Duvido que precise de anúncio, já que não tenho qualquer título importante.
– Muito bem, mestre Fehrwight – falou o lacaio suavemente. – Lady Saljesca aprecia sua visita a Salon Corbeau e deseja seriamente sorte em seus negócios.
“Aprecia sua visita”, pensou Locke, em vez de “teria o maior prazer em recebê-lo em audiência”. A condessa Vira Saljesca de Lashane era a governante absoluta de
Salon Corbeau; a semicidade era construída em uma das suas propriedades. Equidistante de Balinel, Tal Verrar e Lashane, fora do alcance de qualquer uma delas, era
mais ou menos um estado balneário para os ricos da Costa de Bronze.
Além da chegada constante de carruagens ao longo das estradas costeiras e de embarcações de lazer vindas por mar, Salon Corbeau atraía outra forma de tráfego digno
de nota, a respeito do qual Locke havia meditado com melancolia durante a viagem.
Grupos esparsos de camponeses, pobres urbanos e desgraçados rurais caminhavam cansados pelas estradas poeirentas até o domínio de Lady Saljesca. Vinham em fluxos
intermitentes mas incessantes, fluindo para a estranha cidade particular sob a montanha sombria.
Locke imaginou que já sabia o motivo da vinda deles, mas seus próximos dias em Salon Corbeau provariam que sua compreensão era lamentavelmente incompleta.
2
A princípio, Locke havia esperado que uma viagem por mar até Lashane ou mesmo Issara poderia ser necessária para garantir as últimas peças de sua trama na Agulha
do Pecado, mas conversas com diversos verraris ricos o convenceram de que Salon Corbeau teria exatamente o que era preciso.
Imagine um vale junto ao mar, esculpido em pedra escura como a noite, talvez com 300 metros de comprimento e 100 de largura. Seu pequeno porto fica no lado oeste,
com uma praia de areia fina e preta em forma de crescente. Na extremidade leste, um riacho subterrâneo jorra por uma fissura, descendo por um íngreme arranjo de
pedras. As terras acima desse fluxo de água são ocupadas pela residência da condessa Saljesca, uma mansão de pedra acima de duas muralhas com ameias: uma pequena
fortaleza.
As paredes do vale de Salon Corbeau devem ter 20 metros de altura e, por quase todo o comprimento, possuem terraços com jardins. Samambaias densas, trepadeiras sinuosas,
orquídeas em flor, fruteiras e oliveiras prosperam ali, uma cortina de marrom e verde formando um vívido contraste contra o negro, com pequenos dutos de água serpenteando
para impedir que o paraíso artificial de Saljesca fique com sede.
No centro do vale fica um estádio circular e os jardins dos dois lados dessa estrutura de pedra compartilham seus muros com várias construções sólidas, feitas de
pedra polida e madeira laqueada. Uma cidade em miniatura repousa em palafitas, plataformas e terraços, charmosamente cercada por passarelas e escadas em todos os
níveis.
Locke caminhava por essas passarelas na tarde de sua chegada, rumo a seu objetivo final, com uma falta de pressa majestosa – esperava ficar muitos dias ali, talvez
até semanas. Salon Corbeau, como as casas de tavolagem de Tal Verrar, atraíam os ricos ociosos em grande número. O Nobre Vigarista caminhava entre mercadores verraris
e nobres lashanis, em meio a herdeiros dos Tutanos ocidentais, damas de companhia de Nesse (uma companhia de peso, pois carregavam mais brocado de ouro do que Locke
achava possível) e as famílias desembarcadas a quem elas serviam. Aqui e ali, ele tinha certeza até mesmo de ver alguns camorris, altivos e de pele azeitonada, se
bem que, felizmente, nenhum importante o suficiente para reconhecê-lo.
Tantos guarda-costas e tantas costas a serem guardadas! Pessoas que podiam pagar alquimistas e galenos adequados para suas doenças. Nenhuma ferida purulenta nem
tumores faciais, nenhum dente torto saindo de gengivas sangrentas, nenhum rosto esquelético. Os frequentadores da Agulha do Pecado podiam ser mais VIPs, mas aquelas
pessoas eram ainda mais refinadas, ainda mais mimadas. Músicos contratados seguiam algumas delas, portanto até mesmo as caminhadas de 30 ou 40 metros não ameaçavam
gerar um segundo de tédio. Homens e mulheres podres de ricos desperdiçavam muito dinheiro. Até um homem como Mordavi Fehrwight poderia gastar menos para comer durante
um mês do que alguns daqueles indivíduos esbanjaria a cada dia só para ser notado durante o desjejum.
Ele viera a Salon Corbeau por causa dessas pessoas; pela primeira vez não para roubá-las e, sim, para aproveitar sua existência privilegiada. No lugar onde os ricos
se aninhavam como pássaros de plumagem brilhante, os fornecedores dos luxos e serviços com os quais eles contavam vinham atrás. Salon Corbeau tinha uma comunidade
permanente de alfaiates, costureiros, produtores de instrumentos, vidreiros, alquimistas, fornecedores de alimentos, artistas e carpinteiros. Um pequeno agrupamento,
sem dúvida, mas da maior reputação, adequada ao patronato aristocrático e que cobrava de acordo com ele.
Quase no meio da galeria sul de Salon Corbeau, Locke encontrou a loja que viera visitar: um prédio de pedra, bastante comprido e com dois andares, sem janelas na
face voltada para a passarela. A placa de madeira sobre a porta única dizia:
B. BAUMONDAIN E FILHAS
EQUIPAMENTOS DOMÉSTICOS E MÓVEIS FINOS
ATENDIMENTO COM HORA MARCADA
Na porta da loja, havia uma decoração em volutas, o brasão da família Saljesca (como o que Locke vislumbrara em estandartes que tremulavam aqui e ali e nos cinturões
diagonais dos guardas de Salon Corbeau), dando a entender a aprovação pessoal de lady Vira ao trabalho que era feito ali. O que não significava nada para Locke,
uma vez que ele conhecia muito pouco o gosto de Saljesca para tê-lo como parâmetro... mas a reputação de Baumondain se estendia até Tal Verrar.
Ele mandaria uma mensageira de manhã cedo, como era adequado, e pediria um encontro para discutir a encomenda de algumas cadeiras peculiares.
3
Às duas horas da tarde seguinte, caía uma chuva quente e suave, uma coisa fraca e fina que pairava no ar, mais parecendo gaze úmida do que água. Vagas colunas de
névoa redemoinhavam no meio das plantas e acima do vale e, pela primeira vez, as passarelas estavam livres da maior parte do trânsito de alto nível. Nuvens cinzentas
formavam um colar na montanha alta e preta a noroeste. Locke parou diante da porta da oficina Baumondain com água pingando pela nuca e bateu três vezes com força.
A porta abriu para dentro imediatamente; um homem magro, de cerca de 50 anos, espiou Locke através de ópticos redondos. Usava uma túnica de algodão simples repuxada
acima dos cotovelos, revelando nos antebraços magros tatuagens de guilda em verde e preto desbotados, e um comprido avental de couro com pelo menos seis bolsos visíveis
na frente. A maioria deles tinha ferramentas; num estava um gatinho cinza, com apenas a cabeça visível.
– Mestre Fehrwight? Mordavi Fehrwight?
– Estou muito feliz porque o senhor pôde arranjar uma hora para mim.
Locke falava com um leve sotaque vadrã, só o bastante para sugerir uma origem no norte distante. Ele decidira ser preguiçoso e deixar que esse Fehrwight fosse o
mais fluente possível em terim. Locke estendeu a mão direita para cumprimentar o artesão. Na esquerda, carregava uma pasta de couro preto com um fecho de ouro na
aba.
– Mestre Baumondain, presumo?
– O próprio. Entre logo, senhor, saia da chuva. Aceita um café? Permita-me trocar uma xícara pelo seu casaco.
– Com prazer.
O saguão da loja era uma sala alta, revestida de painéis de madeira e iluminada com pequenas lanternas douradas em candelabros nas paredes. Um balcão com porta de
vaivém atravessava os fundos do cômodo e, atrás, Locke podia ver prateleiras com grandes pilhas de amostras de madeira, tecido, cera e óleos em frascos de vidro.
O lugar cheirava a madeira lixada, um odor forte e agradável. Diante do balcão, havia uma pequena área de estar, onde duas poltronas construídas de modo soberbo,
com almofadas de veludo preto, tinham sido colocadas sobre um tapete.
Locke pousou a pasta junto aos pés, virou-se para permitir que Baumondain o ajudasse a tirar o casaco preto e úmido, pegou a pasta de novo e se acomodou na poltrona
mais perto da porta. O carpinteiro pendurou o casaco de Locke num gancho de latão preso à parede.
– Só um momento, por favor.
Baumondain foi para trás do balcão e empurrou para o lado uma cortina de lona que devia tapar a passagem para a oficina.
– Lauris! O café!
Do outro lado, veio uma resposta abafada que ele evidentemente achou satisfatória. Baumondain contornou às pressas o balcão até ocupar seu lugar na poltrona diante
de Locke, franzindo o rosto enrugado num sorriso de boas-vindas. Alguns instantes depois, entrou uma menina sardenta, de 15 ou 16 anos, cabelo castanho, magra como
o pai, mas com musculatura mais firme nos ombros e nos braços. Segurava uma bandeja de madeira com xícaras e bules de prata que, ao passar pela porta do balcão,
Locke viu ter pernas, como uma mesa muito pequena.
Ela posicionou na horizontal o móvel entre Locke e o pai e assentiu respeitosa para o visitante.
– Minha filha mais velha, Lauris – apresentou mestre Baumondain. – Lauris, este é o mestre Fehrwight, da Casa de bel Sareton, de Emberlane.
– Encantado – disse Locke. Lauris ficou suficientemente perto para que ele visse que o cabelo dela estava cheio de pequenas aparas de madeira encaracoladas.
– A seu dispor, mestre Fehrwight. – Lauris assentiu de novo, preparada para se retirar, então viu o gatinho cinza pondo a cabeça para fora do bolso do avental do
pai. – Papai, o senhor se esqueceu do Animadinho. O senhor não vai querer que ele participe do café.
– Esqueci? Ora, estou vendo que sim.
Baumondain tirou o gatinho do avental. Locke ficou atônito ao ver como o bicho pendia frouxo nas mãos do homem, as patas e a cauda penduradas e a cabecinha frouxa.
Que gato com respeito próprio dormiria ao ser apanhado e carregado pelo ar? Então Locke viu a resposta no momento que Lauris pegou Animadinho nas mãos e se virou
para sair: os olhos do gato estavam arregalados e eram totalmente brancos.
– Essa criatura foi neutralizada – afirmou Locke em voz baixa depois que Lauris retornou à oficina.
– Infelizmente, sim – disse o carpinteiro.
– Nunca vi uma coisa dessas. A que propósito isso serve num gato?
– Nenhum, mestre Fehrwight, nenhum. – O sorriso de Baumondain havia sumido, substituído por uma expressão cautelosa e desconfortável. – E sem dúvida não fui eu que
fiz isso. Minha filha mais nova, Parnella, encontrou-o abandonado atrás da Villa Verdante.
Baumondain se referia à enorme estalagem de luxo onde se hospedava a classe intermediária dos visitantes de Salon Corbeau, os ricos que não eram convidados particulares
de lady Saljesca. O próprio Locke estava num quarto lá.
– Tremendamente estranho.
– Nós o chamamos de Animadinho, como uma espécie de piada, mas ele faz pouca coisa. Precisa ser instigado a comer e cutucado para... fazer as necessidades, veja
bem. Parnella achou que seria mais gentil esmagar o crânio dele, mas Lauris não quis saber disso e não pude recusar. O senhor deve achar que sou fraco e as mimo.
– Nem um pouco – garantiu Locke, balançando a cabeça. – O mundo é cruel o bastante sem nossa participação. Eu aprovo. Eu quis dizer que foi tremendamente estranho
alguém fazer isso com um animal desses.
– Mestre Fehrwight... – O carpinteiro umedeceu os lábios, nervoso. – O senhor parece humano e deve entender... Nossa posição aqui nos traz um negócio constante e
lucrativo. Minhas filhas terão uma herança quando eu deixar esta loja para elas. Existem... existem coisas em Salon Corbeau, coisas que acontecem, em que nós, artesãos...
não nos intrometemos. Não devemos nos intrometer. Se é que o senhor me entende.
– Entendo – falou Locke, ansioso por manter o homem de bom humor. No entanto, registrou em sua mente que deveria xeretar para descobrir o que incomodava o carpinteiro.
– Entendo mesmo. Portanto não falemos mais sobre isso, vamos aos negócios.
– Gentileza da sua parte. – Baumondain demonstrou alívio. – Como o senhor prefere o café? Tenho mel e creme.
– Mel, por favor.
Baumondain serviu o café fumegante do bule de prata numa grossa xícara de vidro e derramou colheradas de mel até que Locke assentiu. Locke bebericou enquanto Baumondain
bombardeava a outra xícara com creme suficiente para deixá-lo de um castanho cor de couro. Era café de qualidade, intenso e muito quente.
– Meus parabéns – murmurou Locke com a língua ligeiramente escaldada.
– É de Issara. A casa de lady Saljesca tem uma sede implacável por isso. O resto de nós implora um pouco aos fornecedores quando eles aparecem. Bom, a sua mensageira
disse que o senhor desejava discutir uma encomenda que, nas palavras dela, era muito particular.
– É, é particular mesmo – confirmou Locke. – Um projeto e uma finalidade que o senhor pode achar excêntricos. Garanto que estou falando sério.
Locke pousou seu café, pôs a pasta no colo e tirou uma pequena chave do bolso do colete para abrir o fecho. Enfiou a mão dentro e pegou alguns pergaminhos dobrados.
– O senhor deve estar familiarizado com o estilo dos últimos anos do Trono Terim, não é? – continuou Locke. – Os últimos mesmo, logo antes da morte de Talatri em
batalha contra os Magos-Servidores?
Ele entregou um dos pergaminhos e Baumondain tirou os ópticos para examiná-los.
– Ah, sim – respondeu o carpinteiro lentamente. – O Barroco Talatri, também chamado de Último Florescer. É, já fiz peças assim... Lauris também. O senhor tem interesse
por esse estilo?
– Preciso de um conjunto de cadeiras. Quatro, com encosto de couro, feitas em crescente-cisalha com incrustações em ouro verdadeiro.
– Crescente-cisalha é uma madeira um tanto delicada, serve apenas para uso ocasional. Para uso mais regular, tenho certeza de que o senhor desejaria madeira-bruxa.
– Meu patrão tem gostos muito específicos, por mais que sejam peculiares. Ele insistiu várias vezes em crescente-cisalha para garantir que seus desejos estivessem
claros.
– Bom, se o senhor desejasse que elas fossem entalhadas em marzipã, acho que eu teria de fazer... claro, com a compreensão de que eu avisei contra o uso intenso.
– Naturalmente. Garanto, mestre Baumondain, que o senhor não será responsabilizado por nada que aconteça com as cadeiras depois de elas saírem de sua loja.
– Ah, eu jamais deixaria de responder por nosso trabalho, mas não posso fazer uma madeira macia endurecer, mestre Fehrwight. Bom, então, eu tenho alguns livros com
excelentes ilustrações desse estilo. O seu artista fez um bom trabalho, para começar, mas eu gostaria de lhe dar mais variedades para escolher...
– Perfeitamente – interrompeu Locke, e bebericou seu café, satisfeito, enquanto o carpinteiro se levantava e retornava à porta da oficina.
– Lauris! Meus três volumes de Velonetta... É, esses.
Voltou um instante depois carregando três livros pesados, encadernados em couro, que cheiravam a idade e algum pungente conservante alquímico.
– Velonetta. – Ele pousou os livros no colo. – O senhor é familiarizado com ela? Não? Foi a principal estudiosa do Último Florescer. Só existem seis conjuntos de
volumes de sua obra em todo o mundo, pelo que sei. A maioria destas páginas é sobre escultura, pintura, música, alquimia... mas há belas passagens sobre mobília,
pedras preciosas que valem a pena ser mineradas. Por favor...
Passaram meia hora examinando os desenhos que Locke havia fornecido e as páginas que Baumondain desejava lhe mostrar. Juntos chegaram a um meio-termo agradável para
o projeto das cadeiras que “mestre Fehrwight” receberia. Baumondain pegou uma pena e rabiscou anotações em garatujas ilegíveis. Locke jamais pensara antes em quantos
detalhes poderiam ter em uma cadeira: quando haviam terminado a discussão sobre pernas, travamentos, preenchimento do estofado, couros, ornamentação e encaixes,
seu cérebro estava em polvorosa.
– Excelente, mestre Baumondain, excelente. Exatamente isso, em crescente-cisalha, laqueadas de preto, com folhas de ouro nas decorações em baixo-relevo e nos rebites.
Devem parecer que foram tiradas ontem mesmo da corte do imperador Talatri, novas e não queimadas.
– Ah, então surge uma questão delicada. Sem querer causar a menor ofensa, devo deixar claro que elas jamais vão passar por originais. Serão reconstruções exatas
do estilo, réplicas perfeitas, de uma qualidade capaz de se igualar a qualquer mobília do mundo, mas um especialista conseguiria distingui-las. Eles são poucos e
estão dispersos, mas alguém assim jamais confundiria uma réplica brilhante nem mesmo com um original modesto. Os originais têm séculos de uso e essas cadeiras serão
obviamente novas.
– Sei o que o senhor quer dizer, mestre Baumondain. Não tema: estou encomendando estas cadeiras com objetivos excêntricos, e não para enganar alguém. Essas cadeiras
jamais serão consideradas originais, dou minha palavra. E o homem que vai recebê-las é um especialista, na verdade.
– Muito bem, então, muito bem. Mais alguma coisa?
– Sim – respondeu Locke, entregando duas folhas de pergaminho cobertas de desenhos. – Agora que acertamos um projeto para as cadeiras, isto... ou algo muito parecido
com isto, sujeito aos seus ajustes mais especializados... deve ser incluído nos planos.
À medida que Baumondain absorvia as implicações dos desenhos, suas sobrancelhas se erguiam tanto que pareciam ter sido puxadas até os limites da testa e que seriam
atiradas ao chão como setas de balestra quando alcançassem o zênite.
– Isso é uma curiosidade prodigiosa – comentou, por fim. – Uma coisa muito estranha para incorporar... Não tenho certeza...
– É essencial. Isso, ou algo muito parecido com isso, de acordo com o seu discernimento. É absolutamente necessário. Meu patrão não encomendará as cadeiras se essas
características não forem incluídas. O custo não é problema.
– É possível – disse o carpinteiro depois de pensar alguns segundos. – É possível, com alguns ajustes nos projetos. Acredito que entendo sua intenção, mas posso
melhorar o plano... preciso melhorar, se as cadeiras tiverem de funcionar como cadeiras. Posso perguntar por que isto é necessário?
– Meu patrão é um velho afável, mas, como o senhor deve ter percebido, é bastante excêntrico e tem um medo mórbido de fogo. Ele tem pânico de ficar preso em seu
escritório ou em sua torre-biblioteca cercado por chamas. Sem dúvida o senhor agora percebe como esses mecanismos poderiam ajudar a aliviar a mente dele, não é?
– Creio que sim – murmurou Baumondain, a relutância perplexa se transformando em interesse por um desafio profissional.
Depois disso, foi apenas uma questão de regatear, ainda que educadamente, sobre detalhes cada vez mais delicados, até que enfim Locke pôde arrancar uma sugestão
de preço por parte de Baumondain.
– Em que moeda o senhor gostaria de fazer o acerto, mestre Fehrwight?
– Eu presumi que solaris seriam convenientes.
– Digamos... 6 solaris por cadeira?
Baumondain falava com despreocupação fingida; aquela era uma sugestão inicial presunçosa, mesmo para um artesanato de luxo. Locke deveria barganhar, mas apenas sorriu
e assentiu.
– Se o que o senhor pede são 6 por cadeira, o senhor terá 6.
– Ah – fez Baumondain, quase surpreso demais para ficar satisfeito. – Ah. Ótimo, então! Ficarei feliz em aceitar sua promissória.
– Ainda que isso fosse bom em circunstâncias comuns, vamos fazer algo mais conveniente para nós dois. – Locke enfiou a mão na pasta e pegou uma bolsa de moedas,
de onde contou 24 solaris de ouro e colocou sobre a mesinha de centro enquanto Baumondain olhava com empolgação crescente. – Aí estão, adiantados. Prefiro carregar
dinheiro vivo ao vir a Salon Corbeau. Esta cidadezinha precisa de um emprestador de dinheiro.
– Bom, obrigado, mestre Fehrwight, obrigado! Eu não esperava... Bom, deixe-me preparar um pedido e alguns papéis para o senhor levar e estaremos combinados.
– Agora, deixe-me perguntar: o senhor tem todos os materiais necessários para a encomenda do meu patrão?
– Ah, sim! Sei disso sem precisar pensar.
– Armazenados aqui, na sua oficina?
– Sim, mestre Fehrwight.
– E quanto tempo devo imaginar que a construção demore?
– Hummm... dados os meus outros serviços e as suas exigências... seis semanas, talvez sete. O senhor mesmo virá pegá-las ou precisaremos acertar o transporte?
– Nisso também eu esperava algo um pouco mais conveniente.
– Ah, bom... como o senhor foi tão educado, tenho certeza de que eu poderia mexer na minha programação. Cinco semanas, talvez?
– Mestre Baumondain, se o senhor e suas filhas trabalhassem no pedido do meu patrão mais ou menos exclusivamente, começando esta tarde, o mais rápido possível...
quanto tempo o senhor acha que demoraria?
– Ah, mestre Fehrwight, mestre Fehrwight, o senhor deve entender, eu tenho outros pedidos na fila, para clientes de alguma importância. Pessoas significativas, se
é que me entende.
Locke pôs mais quatro moedas de ouro em cima da mesinha.
– Mestre Fehrwight, seja razoável! São apenas cadeiras! Farei todos os esforços para terminar seu pedido o quanto antes, mas não posso simplesmente deixar de lado
meus clientes atuais ou as peças deles...
Locke colocou mais quatro moedas perto da pilha anterior.
– Mestre Fehrwight, por favor, nós nos esforçaríamos ao máximo por muito menos se já não tivéssemos clientes em número satisfatório! Como eu poderia explicar isso
a eles?
Locke pôs mais oito moedas entre as duas pilhas de quatro, criando uma pequena torre.
– Quanto é isso agora, Baumondain: 40 solaris, quando o senhor estava tão satisfeito em receber apenas 24?
– Senhor, por favor, minha única consideração é que os clientes que fizeram o pedido antes do seu patrão devem, com toda a cortesia, ter precedência...
Locke suspirou e colocou mais 10 solaris na mesinha, derrubando a pequena torre e esvaziando a bolsa.
– O senhor pode estar com escassez de materiais. Algum tipo de madeira, óleo ou couro especial. O senhor precisou mandar buscar. Digamos, seis dias até Tal Verrar
e seis dias de volta. Certamente isso já aconteceu antes. Certamente o senhor pode explicar.
– Ah, mas a chateação; eles ficariam tão incomodados...
Locke pegou uma segunda bolsa de moedas na pasta e segurou-a como uma adaga à frente do corpo.
– Devolva parte do dinheiro deles. Aqui, pegue mais do meu.
Ele sacudiu a bolsa para fazer cair mais moedas ao acaso. O clinc-clinc-clinc de metal contra metal ecoou no salão.
– Mestre Fehrwight, quem é o senhor?
– Um homem que fala tremendamente sério sobre cadeiras. – Locke largou a bolsa com moedas até a metade em cima da pilha de ouro ao lado do bule. – Cem solaris, redondos.
Deixe de lado seus outros compromissos e serviços, invente desculpas e reembolse. Quanto tempo demoraria?
– Talvez uma semana – respondeu Baumondain, num sussurro derrotado.
– Então o senhor concorda? Até que minhas quatro cadeiras estejam terminadas, esta é a Oficina de Móveis Fehrwight? Tenho mais ouro no cofre da Villa Verdante. O
senhor precisará me matar para impedir-me de forçá-lo a aceitar, caso diga não. Estamos de acordo?
– Sim, que os deuses nos ajudem!
– Então mexa-se. O senhor tem entalhes a fazer e eu vou começar a passar o tempo na minha estalagem. Mande mensageiros se precisar que eu inspecione alguma coisa.
Vou ficar até que o senhor termine.
4
– Como podem ver, minhas mãos estão vazias e é impensável que algo possa ser escondido nas mangas desta túnica tão bem-cortada.
Locke estava diante do espelho de corpo inteiro de sua suíte na Villa Verdante, olhando com atenção para o próprio reflexo, usando apenas os calções e uma leve túnica
de seda fina, cujas mangas estavam arregaçadas.
– Claro que seria impossível que eu fizesse surgir um baralho de cartas no ar... mas o que é isso?
Ele moveu a mão direita na direção do espelho com um floreio e um baralho caiu dela desajeitadamente, espalhando-se numa confusão e flutuando até pousar no piso.
– Ah, que inferno da porra – murmurou Locke.
Tinha uma semana de tempo livre e sua prestidigitação melhorava com lentidão tortuosa. Logo voltou a atenção para a instituição curiosa que ficava no âmago de Salon
Courbeau, o motivo para tantos ricos ociosos fazerem a peregrinação até lá e para tantos desesperados e arruinados comerem a poeira das carruagens deles indo na
mesma direção.
Chamavam aquilo de Guerra do Entretenimento.
O estádio de lady Saljesca era uma miniatura do lendário Stadia Ultra de Terim Pel, até mesmo com ídolos de mármore dos deuses enfeitando o exterior, em altos nichos
de pedra. Corvos se empoleiravam em suas cabeças e em seus ombros divinos, grasnando meio desanimados para a multidão ao redor dos portões. Enquanto abria caminho
em meio ao tumulto, Locke notou todo tipo de funcionários conhecidos da humanidade. Havia galenos cacarejando junto aos idosos, liteireiros transportando enfermos
– ou os descaradamente preguiçosos –, músicos e malabaristas, guardas, tradutores e dezenas de homens e mulheres balançando leques ou segurando altos guardasóis
de seda, que pareciam frágeis cogumelos de tamanho humano enquanto perseguiam os clientes sob o sol da manhã cada vez mais forte.
Dizia-se que o piso da Arena Imperial era grande demais até mesmo para que o arqueiro mais forte disparasse uma flecha de uma extremidade à outra, porém o piso da
recriação de Saljesca tinha apenas 50 metros de diâmetro. Não havia arquibancadas comuns: as paredes de pedra lisa subiam 6 metros acima do piso de mesmo material
e eram encimadas por galerias luxuosas cujas telas de pano para proteger do sol balançavam suavemente à brisa.
Três vezes por dia, os guardas uniformizados de lady Saljesca abriam os portões públicos para a melhor classe de visitantes. Havia uma única galeria para espectadores
ficarem de pé – que até permitia uma visão decente –, cuja entrada era grátis, mas a vasta maioria de espectadores no estádio não aceitaria nada menos do que os
assentos de luxo e os camarotes que precisavam ser reservados a um custo considerável. Por menos elegante que fosse, Locke escolheu, para sua primeira visita à Guerra
do Entretenimento, não se sentar: Mordavi Fehrwight não tinha reputação a proteger.
No piso da arena, havia um padrão reluzente de quadrados de mármore pretos e brancos, cada um com um metro de lado. Os quadrados eram desenhados de vinte em vinte,
como um gigantesco tabuleiro de Pegue o Duque. Em vez de pequenas peças de madeira ou marfim esculpidos, o campo de jogo de Saljesca tinha peças vivas. Os pobres
e destituídos ocupavam o campo, quarenta de cada lado, usando tabardos brancos ou pretos para se distinguirem. Esse estranho serviço era o motivo para se arriscarem
à caminhada longa e difícil até Salon Corbeau.
Locke já havia descoberto que existiam dois grandes alojamentos atrás do estádio de lady Saljesca, muito bem-guardados, onde os pobres eram abrigados depois de chegar
a Salon Corbeau. Ali eram forçados a se limpar e recebiam duas refeições simples por dia, durante todo o tempo de permanência, que podia ser indefinido. Cada “aspirante”,
como eram conhecidos, recebia um número. Três vezes por dia, eram feitos sorteios para escolher dois times de quarenta pessoas para a próxima Guerra do Entretenimento.
A única regra era que as peças vivas deviam ser capazes de ficar de pé, mover-se e obedecer a ordens; crianças de 8 ou 9 anos estavam entre os mais novos a serem
aceitos. Os que se recusavam a participar quando seu número era sorteado, mesmo que apenas uma vez, eram expulsos imediatamente da semicidade de Saljesca e proibidos
de retornar. Lançar alguém na estrada naquela terra seca, sem suprimentos ou preparativos, era quase o mesmo que condená-lo à morte.
Os aspirantes eram obrigados a marchar até a arena sob a vigilância de duas dúzias de guardas de Saljesca armados com escudos curvos e porretes de madeira laqueada.
Eram homens e mulheres robustos que se moviam com a tranquilidade que vem da experiência; nem mesmo um levante geral dos pobres teria chance contra eles. Os guardas
enfileiravam os aspirantes em suas posições iniciais no tabuleiro, quarenta “peças” brancas e quarenta “peças” pretas, com dezesseis fileiras de quadrados separando
cada exército de duas fileiras.
Em extremidades opostas do estádio, havia dois camarotes especiais, um com cortinas pretas e outro com brancas, reservados com muita antecedência através de uma
lista de espera, assim como clientes de uma casa de tavolagem reivindicavam mesas de bilhar ou salas particulares em horas determinadas. Quem fizesse a reserva ganhava
o direito de comandar a respectiva cor durante uma Guerra.
A Senhora Branca da Guerra naquela manhã era uma jovem viscondessa lashani cujo séquito parecia tão nervoso com aquilo quanto ela estava entusiasmada e rabiscavam
anotações e consultavam tabelas. O Senhor Negro da Guerra era um iridani de meia-idade com a aparência bem nutrida e o olhar calculista de um mercador próspero.
Tinha um filho e uma filha pequenos com ele na galeria.
Ainda que as peças vivas pudessem usar – se autorizadas pelos dois comandantes – tabardos especiais que lhes davam privilégios incomuns ou permissão de movimentos,
as regras daquela Guerra do Entretenimento específica pareciam ser as mesmas do Pegue o Duque, sem variações. Os controladores começaram a gritar ordens e o jogo
se desenvolveu lentamente, peças brancas e pretas se movendo com nervosismo, diminuindo aos poucos a distância entre as forças opostas. Locke se pegou perplexo com
a reação da plateia.
Havia sessenta ou setenta espectadores nos camarotes e o dobro disso em criados, guarda-costas, ajudantes e mensageiros à disposição, para não mencionar os empregados
de lady Saljesca correndo para cá e para lá, atendendo aos pedidos de alimentos. O zumbido de antecipação ansiosa parecia incongruente, dada a natureza lenta da
disputa.
– O que é tão fascinante assim? – murmurou Locke consigo mesmo, em vadrã.
A Senhora Branca da Guerra pôs deliberadamente em risco uma das suas peças, um homem de meia-idade. Outros membros de seu exército estavam atrás dele, numa armadilha
óbvia, mas o Senhor Negro da Guerra decidiu que era uma troca vantajosa. Sob as ordens gritadas do Auxiliar Negro, uma jovem adolescente vestida de preto saiu de
um quadrado, andou em diagonal e tocou o homem de meia-idade no ombro. Ele baixou a cabeça e os aplausos de apreciação da turba foram abafados um instante depois
por um guincho ensandencido que se ergueu na extrema direita da área de visão de Locke.
Seis homens saíram correndo de um portal lateral, vestidos com elaboradas roupas de couro com debruns em preto e laranja; usavam grotescas máscaras laranja-chama
e jubas negras desgrenhadas. Os Demônios levantavam os braços, gritando e uivando coisas sem sentido, e a multidão aplaudiu enquanto eles atravessavam a arena indo
na direção do homem de branco. Agarraram-no pelos braços e pelos cabelos e o carregaram, aos soluços, para a lateral do tabuleiro, sendo exibido à multidão como
um animal pronto para o sacrifício. Um dos Demônios, um homem com voz trovejante, apontou para o Senhor Negro da Guerra e gritou:
– Escolha a pena!
– Eu quero escolher – disse o menino na galeria do mercador.
– Nós concordamos que sua irmã seria a primeira – retrucou o pai. – Teodora, escolha a pena.
A menina olhou concentrada para o piso da arena, depois sussurrou ao pai. Ele pigarreou e berrou:
– Ela quer que os guardas batam nele com os porretes! Nas pernas!
Os Demônios seguraram o homem que se retorcia e gritava, com os membros abertos, enquanto dois guardas, obedientemente, davam-lhe uma surra. A queda dos porretes
ecoava pela arena; eles deixaram as coxas, as canelas e os tornozelos do homem cobertos de hematomas, até que o chefe dos Demônios gesticulou para afastá-los. A
plateia aplaudiu delicadamente, sem entusiasmo, e os Demônios arrastaram para fora do estádio o homem que tremia e sangrava.
Voltaram em pouco tempo; um dos Brancos retirou um Preto no movimento seguinte.
– Escolha a pena! – ecoou o grito de novo na arena.
– Vendo o direito por 5 solaris! – berrou a viscondessa. – O primeiro a oferecer leva.
– Eu pago! – exclamou um homem na área dos espectadores de pé, vestindo camadas de veludo e brocado de ouro.
O chefe dos Demônios apontou para ele, que chamou um empregado vestindo um casaco comprido logo atrás de si. O serviçal jogou uma bolsa para um dos guardas de Saljesca,
que a levou até o lado do campo ocupado pela Senhora Branca da Guerra e jogou-a em sua galeria. Os Demônios arrastaram a jovem de preto para ser examinada pelo velho.
Depois de um momento de contemplação exagerada, ele gritou:
– Livrem-se da roupa dela!
O tabardo preto e o vestido de algodão sujo da jovem foram rasgados pelos Demônios; em segundos, ela estava nua. Parecia decidida a não fazer uma cena como a do
homem que se fora antes e olhou com expressão dura para o velho, sem se importar se era um pequeno nobre ou um príncipe mercador.
– Só isso? – gritou o chefe dos Demônios.
– Ah, não – respondeu o velho. – Livrem-se do cabelo dela também!
A multidão irrompeu em aplausos e vivas e, pela primeira vez, a mulher revelou um medo verdadeiro. Tinha uma farta cabeleira preta e brilhante que vinha até a base
das costas, algo para dar orgulho até mesmo a quem não possuía um tostão – talvez fosse tudo que ela tivesse para se orgulhar no mundo. O chefe dos Demônios fez
um teatro, levantando uma adaga reluzente e torta acima da cabeça e uivando de alegria. A mulher tentou lutar em vão contra os cinco homens que a seguravam. Rapidamente,
dolorosamente, o chefe cortou suas madeixas compridas. Elas cobriram o chão e restaram apenas pelos curtos e irregulares no couro cabeludo da jovem. Ela foi arrastada
para fora da arena, entorpecida demais para continuar lutando, com fios de sangue escorrendo pelo rosto e pelo pescoço.
O espetáculo seguiu assim, assistido por Locke com inquietação crescente, enquanto o sol implacável se arrastava pelo céu e as sombras encurtavam. As peças se moviam
nos quadrados quentes e brilhantes, sem água e sem alívio, até serem tiradas do tabuleiro e sujeitas a uma pena escolhida pelo Senhor da Guerra oposto. Logo ficou
aparente para Locke que a pena poderia ser praticamente qualquer coisa, menos a morte. Os Demônios obedeciam às ordens com um entusiasmo frenético, realizando cada
nova injúria ou humilhação para a plateia entretida.
Pelo amor dos deuses, entendeu Locke, praticamente nenhum deles está aqui pelo jogo: só vieram ver as penalidades.
As fileiras de guardas armados dissuadiam qualquer tentativa de recusa ou rebelião. As peças que não queriam ir logo para os lugares indicados ou que ousavam sair
de seus quadrados sem receber a ordem eram espancadas até obedecer. E a crueldade das penas não diminuía à medida que o jogo prosseguia.
– Fruta podre! – gritou o menininho no camarote do Senhor Negro da Guerra.
Uma mulher idosa, com tabardo branco, foi jogada contra a parede do estádio e recebeu uma saraivada de maçãs, peras e tomates atirados por quatro Demônios. Ela desabou
e eles continuaram a jogar as frutas até que a mulher não passava de um amontoado trêmulo, tentando se proteger com os braços frágeis, e grandes bocados de polpa
e suco azedos pingavam da parede atrás dela.
A retaliação da jogadora branca foi rápida. Ela pegou um rapaz atarracado de preto, e, pela primeira vez, escolheu ela mesma a pena:
– Devemos manter limpo o estádio da nossa anfitriã. Leve-o à parede manchada de frutas e deixem que ele a limpe com a língua!
A multidão irrompeu em aplausos frenéticos; o homem foi empurrado até a parede pelo chefe dos Demônios.
– Comece a lamber, seu imprestável!
Os primeiros esforços dele foram sem muito empenho. Outro Demônio pegou um chicote que terminava em sete cordas com nós e golpeou os ombros do sujeito, jogando-o
contra a parede com força suficiente para sangrar-lhe o nariz.
– Faça por merecer o pagamento, seu verme! – gritou o Demônio, chicoteando-o de novo. – Nunca tinha ouvido uma dama mandar você se abaixar e usar a língua?
O homem passou a língua desesperadamente pela parede, engasgando a intervalos de alguns segundos, o que provocava outro estalo do chicote. Quando finalmente foi
levantado do piso, o sujeito era um destroço sangrento e com ânsias de vômito.
E assim continuou, durante toda a manhã.
– Pelos deuses, por que eles suportam isso? Por que aceitam isso?
Locke estava de pé na galeria grátis, sozinho, olhando os ricos e poderosos, seus guardas e criados, e a quantidade cada vez menor de peças vivas no jogo abaixo.
Ficou taciturno, suando em suas pesadas vestes pretas.
Ali estavam as pessoas mais ricas e livres do mundo terim, que tinham posição e dinheiro mas não deveres políticos que os restringissem, reunidos para fazer o que
a lei e o costume proibiam fora do feudo particular de Saljesca: humilhar e brutalizar os inferiores como quisessem, para sua diversão. A arena e a Guerra do Entretenimento
em si eram obviamente apenas pretextos. Meios para a realização de um fim.
Não havia ordem naquilo, nem justiça. Gladiadores e prisioneiros lutando diante de uma multidão arriscavam a vida pela glória ou pagavam o preço por ser apanhados.
Homens e mulheres eram enforcados num patíbulo porque o Guardião Torto só podia ajudar até certo ponto os idiotas, os lentos e os azarados. Mas aquilo ali era puro
capricho.
Locke sentiu a raiva crescendo como um cancro nas entranhas.
Eles não tinham ideia de quem ele era nem do que era capaz de fazer. Não tinham ideia do que o Espinho de Camorr podia fazer com eles, solto em Salon Corbeau, com
o auxílio de Jean! Tendo meses para planejar e observar, os Nobres Vigaristas poderiam despedaçar aquele local, encontrar modos de fraudar a Guerra do Entretenimento
– roubar os participantes, roubar lady Saljesca, embaraçar e humilhar os desgraçados, manchar a reputação da semicidade de tal modo que ninguém jamais iria querer
visitá-la.
Mas...
– Guardião Torto... – sussurrou Locke. – Por que agora? Por que me mostrar isso agora?
Jean o esperava em Tal Verrar e eles já estavam enfiados até o pescoço num golpe que demorara um ano para ser montado. Jean não sabia o que acontecia em Salon Corbeau.
Ele esperava que Locke voltasse rapidamente com quatro cadeiras, para que os dois pudessem dar continuidade ao plano que haviam combinado, um plano que já era desesperadamente
delicado.
5
Camorr, anos antes. As névoas úmidas e penetrantes envolviam Locke e Padre Correntes em cortinas de cinza-escuro enquanto o velho levava o garoto de volta para casa,
depois do primeiro encontro com o Capa Vencarlo Barsavi. Bêbado e encharcado de suor, Locke se agarrava às costas de seu bode neutralizado com o máximo de força
possível.
– ... você não pertence a Barsavi – disse Correntes. – Ele vale pelo que é: um bom aliado para se ter e um homem a quem você deve aparentar obedecer o tempo todo.
Mas você com certeza não lhe pertence. No final das contas, nem a mim.
– Quer dizer que eu não tenho...
– Que obedecer à Paz Secreta? Que ser um pezon bonzinho? Só de mentirinha, Locke. Só para impedir os lobos de entrarem pela porta. A menos que os seus olhos e orelhas
estivessem costurados com couro cru nos últimos dois dias, a esta altura você já deve ter percebido que a minha intenção é fazer de você, Calo, Galdo e Sabeta nada
menos do que um tiro de balestra bem no coração da preciosa Paz Secreta de Vencarlo – confidenciou Correntes com um sorriso cruel.
– Ahn... – Locke tentou compreender aquilo por um tempo. – Por quê?
– Hum... é... complicado. Tem a ver com o que eu sou e o que espero que você seja um dia. Um sacerdote juramentado do Guardião Torto.
– O Capa está fazendo alguma coisa errada?
– Bom, bom, garoto, essa é uma boa pergunta. Ele está fazendo o que é certo segundo as Pessoas Certas? Pelos deuses, sim: a Paz Secreta doma a guarda da cidade,
acalma todo mundo, faz com que um número menor de nós seja enforcado. Mesmo assim, todo sacerdócio tem o que chamamos de obrigações: leis estabelecidas pelos próprios
deuses para os que os servem. Na maioria dos templos, essas são coisas complexas, confusas, irritantes. No sacerdócio do Benfeitor, é tudo fácil. Só temos duas leis.
A primeira é: que os ladrões prosperem. Simples. Temos ordem de ajudar uns aos outros, esconder uns aos outros, estabelecer a paz sempre que possível e garantir
que nossa espécie prospere, por bem ou por mal. Barsavi cumpre essa obrigação, jamais duvide disso. Mas a segunda obrigação – continuou Correntes, baixando a voz
e olhando a névoa ao redor para se certificar de que não estavam sendo entreouvidos – é a seguinte: que os ricos se lembrem.
– Lembrem-se de quê?
– De que não são invencíveis. Que fechaduras podem ser arrombadas e tesouros podem ser roubados. Nara, a Senhora das Doenças Onipresentes, que Sua mão seja contida,
manda doenças para os homens de modo que eles jamais esqueçam que não são deuses. Nós agimos mais ou menos assim em relação aos ricos e poderosos. Somos a pedra
no sapato deles, o espinho na carne deles, um pouquinho de reciprocidade neste lado do julgamento divino. Esta é a nossa segunda obrigação, tão importante quanto
a primeira.
– E... a Paz Secreta protege os nobres, por isso o senhor não gosta dela?
– Não é que eu não goste. – Correntes pensou nas próximas palavras antes de soltá-las. – Barsavi não é sacerdote do Treze Sem Nome. Não jurou cumprir as obrigações
como eu; ele tem que ser prático. Apesar de eu aceitar, não posso simplesmente deixar por isso mesmo. Meu dever divino é garantir que os sangues-azuis, com seus
belos títulos, recebam um pouquinho do que a vida entrega ao resto de nós todo dia: um belo chute na bunda de vez em quando.
– E Barsavi... não precisa saber disso?
– Pelas bostas sangrentas, não. Se Barsavi cuidar de que os ladrões prosperem e eu cuidar de que os ricos se lembrem, esta vai ser uma cidade muito santa aos olhos
do Guardião Torto.
6
– Por que eles suportam? Sei que são pagos, mas as penalidades! Pelos deuses... ahn... pelos Tutanos Sagrados, por que eles vêm aqui e suportam isso? Ficar imundos,
ser humilhados, espancados, apedrejados... com que objetivo?
Locke andava de um lado para outro, agitado, na oficina Baumondain, fechando e abrindo os punhos. Era a tarde de seu quarto dia em Salon Corbeau.
– Como o senhor disse, eles são pagos, mestre Fehrwight. – Lauris pousou uma das mãos suavemente nas costas da cadeira semiacabada que Locke viera ver. Com a outra,
acariciava o pobre e imóvel Animadinho, enfiado num bolso de seu avental. – Se a pessoa for escolhida para um jogo, recebe 1 centira. Se receber uma penalidade,
ganha 1 volani. Também há um sorteio: uma pessoa por Guerra, uma em cada oitenta, ganha 1 solari.
– Elas devem estar desesperadas.
– Fazendas vão à falência. Negócios vão à falência. Terras alugadas são tomadas de volta. Pestes arrancam todo o dinheiro e a saúde das cidades. Quando as pessoas
não têm mais aonde ir, vêm para cá. Há um teto sob o qual dormir, refeições, esperança de ouro ou prata. A pessoa só precisa ir até lá vezes suficientes e... diverti-los.
– É perverso. É infame.
– O senhor tem coração mole, apesar do que está gastando em apenas quatro cadeiras, mestre Fehrwight. – Lauris olhou para baixo e torceu a mãos. – Desculpe. Falei
sem pensar.
– Fale como quiser. Não sou rico, Lauris. Sou apenas serviçal do meu patrão. Mas até mesmo ele... nós somos pessoas frugais, droga. Frugais e justas. Podem nos chamar
de excêntricos, mas não de cruéis.
– Já vi nobres dos Tutanos na Guerra do Entretenimento muitas vezes, mestre Fehrwight.
– Nós não somos nobres. Somos mercadores... mercadores de Emberlane. Não posso falar pelos nossos nobres e, frequentemente, não desejo fazer isso. Olhe, eu conheço
muitas cidades. Sei como as pessoas vivem. Já vi lutas de gladiadores, execuções, sofrimento, pobreza e desespero. Mas nunca vi nada assim. O rosto daqueles espectadores.
O modo como assistiam e aplaudiam. Como chacais, como corvos, como uma coisa... uma coisa muito errada.
– Aqui só existem as leis de Saljesca. Aqui eles podem se comportar como quiserem. Na Guerra do Entretenimento, podem fazer exatamente o que querem fazer com as
pessoas pobres e simples. Coisas proibidas em outros lugares. O senhor só está vendo o que eles são quando param de fingir que ligam para alguma coisa. De onde o
senhor acha que o Animadinho veio? Minha irmã viu uma nobre mandando neutralizarem gatinhos para que seus filhos pudessem torturá-los com facas. Porque estavam entediados
na hora do chá. Portanto, bem-vindo a Salon Corbeau, mestre Fehrwight. Lamento que não seja o paraíso que aparenta ser a distância. Nosso trabalho com as cadeiras
está à altura da sua aprovação?
– Está – respondeu Locke lentamente. – É, acho que sim.
– Se eu tivesse a presunção de lhe dar conselhos, sugeriria que evitasse a Guerra do Entretenimento pelo resto da sua estadia. Faça o que nós fazemos: ignore-a.
Apague-a de sua mente e finja que ela não está ali.
– Como quiser, madame Baumondain. – Locke suspirou. – Acho que farei isso mesmo.
7
Mas Locke não conseguia se distanciar. De manhã, tarde e noite, pegava-se na galeria pública, de pé, sem comer nem beber. Via uma multidão após a outra, Guerra após
Guerra, humilhação após humilhação. Os Demônios cometiam erros hediondos em várias ocasiões, surras e estrangulamentos saíam do controle. Os aspirantes que fossem
acidentalmente machucados sem esperança de recuperação tinham os crânios esmagados ali mesmo, sob os aplausos educados da plateia. Sem misericórdia.
– Guardião Torto – murmurou Locke sozinho na primeira vez que isso aconteceu –, eles nem têm um sacerdote... nenhum...
Percebeu, debilmente, o que estava fazendo consigo mesmo. Sentiu a agitação por dentro, como se sua consciência fosse um lago profundo e imóvel com uma fera lutando
para chegar à superfície. Cada humilhação brutal, cada penalidade dolorosa decretada com empolgação por alguma criança nobre e mimada enquanto os pais gargalhavam
dava força a essa fera, que se debatia contra a sensatez de Locke, contra seu sangue-frio, sua disposição para ater-se ao plano.
Ele estava tentando reunir raiva suficiente para ceder.
O Espinho de Camorr fora uma máscara que ele havia usado, sem muito empenho, como um jogo. Agora era quase uma entidade separada, uma coisa faminta, um fantasma
cada vez mais insistente.
Deixe-me sair, sussurrava a fera. Deixe-me sair. Os ricos precisam se lembrar. Pelos deuses, eu posso garantir que eles jamais esqueçam.
– Espero que perdoe minha intromissão se eu observar que o senhor não parece estar se divertindo!
Locke foi arrancado dos pensamentos pela chegada de outro homem na galeria. O estranho era bronzeado e estava em forma, teria uns cinco ou seis anos a mais do que
Locke, com cachos marrons caindo até o colarinho e um cavanhaque aparado com precisão. Seu casaco comprido de veludo tinha acabamento em brocado de prata e ele segurava
às costas, com as duas mãos, uma bengala com castão de ouro.
– Mas desculpe-me... Fernand Genrusa, nobre da Terceira, de Lashane.
Nobre da Terceira Ordem – um barão –, uma patente lashani comprada, assim como Locke e Jean haviam brincado com a possibilidade de adquirir uma. Locke se curvou
ligeiramente e inclinou a cabeça.
– Mordavi Fehrwight, milorde. De Emberlane.
– Mercador, então? O senhor deve estar se saindo bem, mestre Fehrwight, para passar seu tempo aqui. E o que está por trás desse rosto fechado?
– O que o faz pensar que estou insatisfeito?
– O senhor está aqui sozinho, sem beber nada, e assiste a cada nova Guerra com uma expressão... como se alguém estivesse enfiando carvões quentes em seus calções.
Já o observei várias vezes da minha galeria. O senhor está perdendo dinheiro? Eu poderia compartilhar algumas ideias que cultivei sobre o melhor modo de apostar
na Guerra do Entretenimento.
– Não fiz apostas, milorde. É só que... não consigo parar de olhar.
– Curioso. No entanto, isso não lhe agrada.
– Não.
Locke se virou um pouco para o barão Genrusa e engoliu em seco, nervoso. A etiqueta exigia que alguém de classe inferior, como Mordavi Fehrwight, e ainda mais vadrã,
fosse deferente para com um barão e não entabulasse uma conversa desagradável, mas o outro homem parecia convidá-lo a uma explicação. Locke se perguntou até que
ponto poderia ir.
– O senhor já presenciou um acidente de carruagem, milorde, ou o atropelamento de um homem por uma parelha de cavalos? Já viu o sangue e os destroços e se viu totalmente
incapaz de afastar os olhos do espetáculo?
– Não posso dizer que sim.
– Peço permissão para discordar. O senhor tem uma galeria particular para assistir a isso três vezes por dia se quiser. Milorde.
– Ahhhh. Então o senhor acha a Guerra do Entretenimento... o quê... indecorosa?
– Cruel, milorde Genrusa. De uma crueldade tremendamente incomum.
– Cruel? Comparada com o quê? Com a guerra? Os tempos de peste? O senhor já esteve em Camorr, por acaso? Este é um parâmetro que poderia fazê-lo pensar de modo mais
sensato, mestre Fehrwight.
– Mesmo em Camorr, não acredito que alguém tenha permissão de espancar velhas em plena luz do dia por simples capricho. Ou rasgar as roupas delas, apedrejá-las,
estuprá-las, cortar os cabelos com violência, jogar produtos alquímicos cáusticos... é como... como crianças arrancando as asas de um inseto. Para poderem olhar
e gargalhar.
– Quem os obrigou a vir aqui, Fehrwight? Quem encostou uma espada nas costas deles e os fez marchar até Salon Corbeau por essas estradas quentes e vazias? A peregrinação
deles demora dias, a partir de qualquer lugar digno de nota.
– Que opção eles têm, milorde? Só estão aqui porque se sentem desesperados. Porque não podem se sustentar no lugar onde estavam. Fazendas vão à falência, negócios
vão à falência... é desespero, só isso. Eles não podem simplesmente decidir que não vão comer.
– Fazendas vão à falência, negócios vão à falência, navios afundam, impérios caem. – Genrusa tirara a bengala das costas e pontuava a fala gesticulando com o castão
de ouro para Locke. – É a vida, sob os deuses, pela vontade dos deuses. Talvez se eles houvessem rezado mais, economizado mais ou sido menos insensatos com o que
tinham, não precisassem vir se arrastando até aqui em busca da caridade de Saljesca. Parece justo que ela exija que a maioria faça por onde merecer.
– Caridade?
– Eles têm um teto, comida e a chance de ganhar dinheiro. Os que conquistam os prêmios em ouro parecem não ver problema em pegar sua moeda e ir embora.
– Um em cada oitenta ganha 1 solari, milorde. Sem dúvida é mais dinheiro do que já viram de uma só vez na vida. E para os outros 79 esse ouro é apenas uma promessa
que os mantém aqui dia após dia, semana após semana, penalidade após penalidade. E os que morrem porque os Demônios se descontrolaram? De que serve o ouro ou a promessa
de ouro para eles? Em qualquer outro lugar seria puro e simples assassinato.
– É Aza Guilla que os leva, e não o senhor, eu ou qualquer mortal, Fehrwight. – As sobrancelhas de Genrusa estavam franzidas e suas bochechas se avermelhavam. –
E, sim, em qualquer outro lugar poderia ser simples assassinato. Mas estamos em Salon Corbeau e eles estão aqui por livre e espontânea vontade. Assim como o senhor
e eu. Eles poderiam optar por não vir.
– E passar fome e morrer em outro lugar.
– Faça-me o favor. Eu conheço o mundo, mestre Fehrwight. Posso recomendá-lo ao senhor, para ter uma perspectiva. Certamente alguns deles devem estar sem sorte. Mas
aposto que o senhor vai descobrir que a maioria só está faminta por ouro, esperando um ganho fácil. Olhe os que estão na arena agora... há um bom número de jovens
saudáveis, não é?
– Quem mais poderia terminar a viagem até aqui a pé sem ter uma sorte extraordinária, milorde Genrusa?
– Vejo que não há como sobrepor o bom senso ao sentimento, mestre Fehrwight. Eu imaginava que vocês, beija-moedas de Emberlane, eram mais duros.
– Duros, talvez, mas não vulgares.
– Ora, contenha-se, mestre Fehrwight. Eu queria trocar uma palavra porque estava genuinamente curioso com seu humor; acho que agora entendo de onde ele vem. Um pequeno
conselho... Salon Corbeau pode não ser o lugar mais saudável para nutrir esse tipo de ressentimento.
– Meus negócios aqui serão... encerrados em breve.
– Melhor assim, então. Mas talvez o seu negócio na Guerra do Entretenimento possa ser encerrado mais cedo ainda. Não sou o único que se interessou pelo senhor. Os
guardas de lady Saljesca são... sensíveis com relação ao descontentamento. Tanto acima da arena quanto nela.
Eu poderia deixá-lo sem um tostão e soluçando, sussurrou a voz na cabeça de Locke. Poderia fazê-lo empenhar seus baldes de mijo para impedir que os credores cortem
seu pescoço.
– Desculpe, milorde. Levarei muito a sério o que o senhor diz – murmurou Locke. – Duvido... que incomodarei alguém aqui outra vez.
8
Na manhã do nono dia de Locke em Salon Corbeau, os Baumondains haviam terminado suas cadeiras.
– Estão magníficas – elogiou Locke, passando os dedos de leve sobre a madeira laqueada e o estofamento em couro. – Muito elegantes, tanto quanto eu poderia esperar.
E as... características adicionais?
– Construídas segundo suas especificações, mestre Fehrwight. Exatamente segundo suas especificações.
Lauris estava parada junto ao pai na oficina e Parnella, de 10 anos, lutava para preparar chá numa pedra alquímica em uma mesa de canto, coberta com ferramentas
desconhecidas e jarros meio vazios de óleos de marcenaria. Locke fez uma anotação mental para cheirar com muito cuidado antes de beber qualquer chá que lhe fosse
oferecido.
– Vocês se superaram, todos vocês.
– Nós estivemos... ah... inspirados financeiramente, mestre Fehrwight – disse Baumondain.
– Gosto de construir coisas esquisitas – acrescentou Parnella.
– Humm. É, acho que essas cadeiras poderiam ser descritas dessa forma. – Locke olhou para as quatro peças iguais e suspirou numa mistura de alívio e aborrecimento.
– Bem, se o senhor puder prepará-las para o transporte, vou contratar duas carruagens e partir esta tarde.
– Está com tanta pressa assim?
– Espero que o senhor me desculpe se digo que cada momento desnecessário que passo neste lugar é um fardo. Salon Corbeau e eu não combinamos. – Locke tirou uma bolsa
de couro do bolso do casaco e jogou-a para Baumondain. – Vinte solaris adicionais. Pelo seu silêncio e para que estas cadeiras nunca tenham existido. Está claro?
– Eu... bom, tenho certeza de que podemos realizar seu pedido... Devo dizer que sua generosidade é...
– Um assunto que não precisa ser mais discutido. Agora ceda ao meu desejo. Partirei logo.
Então é isso, disse a voz na cabeça de Locke. Atenho-me ao plano. Deixo tudo para trás, não faço nada e retorno a Tal Verrar com o rabo entre as pernas.
Enquanto ele e Jean enriqueciam às custas de Requin e trapaceavam para subir pelos andares luxuosos da Agulha do Pecado, no piso de pedra da arena de lady Sanjesca
as penalidades continuariam e os rostos dos espectadores seriam os mesmos, dia após dia. Crianças arrancando as asas de insetos para rir de como eles se agitavam
e sangravam... e de vez em quando pisando neles.
– Que os ladrões prosperem – murmurou Locke.
Apertou os lenços de pescoço e se preparou para contratar as carruagens, sentindo um mal-estar.
CAPÍTULO CINCO
Num rio mecânico
1
A caixa de transporte irrompeu da cachoeira do Mon Magisteria outra vez e se encaixou com um solavanco no interior do palácio. A água sibilou nos tubos de ferro,
os portões altos atrás da caixa se fecharam com estrondo e os funcionários abriram a porta dupla para Locke, Jean e Merrane.
Uma dúzia de Olhos do Arconte os esperava no saguão de entrada. Eles se posicionaram em silêncio dos dois lados de Locke e Jean, e Merrane começou a guiá-los, aparentemente
não para a mesma sala de antes.
Locke olhava ao redor de tempos em tempos enquanto passavam por corredores mal iluminados e subiam escadas sinuosas. O Mon Magisteria era de fato mais uma fortaleza
do que um palácio; as passagens eram desprovidas de decoração e o ar cheirava principalmente a umidade, suor, couro e óleo de armas. Água trovejava por canais invisíveis
atrás das paredes. Às vezes, o grupo passava por criados que ficavam parados no canto com as cabeças abaixadas até que os Olhos se afastassem.
Merrane conduziu-os até uma porta reforçada com ferro num corredor comum, a vários andares da entrada. Um débil luar prateado podia ser visto ondulando através de
uma janela em arco na outra extremidade do corredor. Locke forçou a vista e percebeu que a água de um dos aquedutos ao redor do palácio escorria pelo vidro.
Merrane bateu três vezes na porta, que se entreabriu com um estalo, deixando passar um feixe de luz amarela e suave. Ela dispensou os Olhos com um aceno. Enquanto
eles se distanciavam, abriu mais a porta e fez um gesto para que Locke e Jean entrassem.
– Finalmente – disse Stragos, levantando os olhos. – Eu esperava vê-los antes. Vocês deviam estar fora dos seus antros usuais quando Merrane os encontrou.
Stragos estava sentado em uma das duas únicas cadeiras na sala pequena e desnuda e folheou os papéis que estivera examinando. Um empregado careca estava sentado
na outra cadeira, com várias pastas na mão.
– Eles passaram por dificuldades nas docas internas da Grande Galeria – informou Merrane, fechando a porta atrás de Locke e Jean. – Uma dupla de assassinos bastante
motivados.
– É mesmo? – Stragos pareceu sentir um incômodo genuíno. – Com que negócio isso poderia se relacionar?
– Eu gostaria de saber – respondeu Locke. – Mas nossa futura interrogada recebeu uma seta de balestra no peito.
– A mulher ia cravar uma faca envenenada num desses dois, Protetor. Achei que o senhor preferiria ter ambos intactos por enquanto.
– Hummm. Uma dupla de assassinos. Vocês estiveram na Agulha do Pecado esta noite?
– Estivemos – falou Jean.
– Bom, então não foi Requin. Ele pegaria vocês lá mesmo. Portanto, é outra coisa. Algo que você deveria ter me contado antes, Kosta?
– Ah, com seu perdão, Arconte. Achei que, com seus amiguinhos, os Magos-Servidores, e todos os espiões que o senhor deve ter colocado nas nossas costas, já estaria
mais bem-informado.
– Isso é sério, Kosta. Eu vou usar vocês; não me agrada envolver a vingança de outra pessoa. Vocês não imaginam quem pode tê-los mandado?
– Sinceramente, não fazemos a mínima ideia.
– Vocês deixaram os corpos desses assassinos no cais?
– Sem dúvida os policiais já os recolheram – respondeu Merrane.
– Eles vão jogar os corpos no Abismo do Monturo, mas primeiro vão deixá-los na casa da morte por um ou dois dias. Quero que alguém vá até lá dar uma olhada. Anotem
as características físicas, inclusive tatuagens ou outras marcas que possam ser significativas.
– Claro – falou Merrane.
– Diga ao oficial da guarda para cuidar disso agora. Você saberá onde me encontrar depois.
– Como quiser... Arconte. – Merrane parecia a ponto de acrescentar algo, mas apenas se virou, abriu a porta e saiu rapidamente.
– Você me chamou de Kosta – disse Locke quando a porta havia se fechado outra vez. – Ela não sabe nossos nomes de verdade, não é? Curioso. Não confia no seu pessoal,
Stragos? Seria bem fácil subjugá-los, como fez conosco.
– Aposto – completou Jean, dirigindo-se ao empregado de Stragos – que você nunca aceita a oferta de uma bebida amigável de seu patrão quando está fora de serviço,
hein, carequinha?
O homem fez um muxoxo mas permaneceu em silêncio.
– Vá em frente – incentivou Stragos em voz tranquila –, provoque meu alquimista pessoal, responsável por “subjugar” vocês e por preparar o seu antídoto.
O careca deu um sorrisinho. Locke e Jean pigarrearam e remexeram os pés ao mesmo tempo, um hábito que haviam sincronizado na infância.
– Você parece um sujeito razoável – comentou Locke. – Eu, pelo menos, sempre achei uma cabeça sem pelos uma coisa nobre, sensata em qualquer clima...
– Cale a boca, Lamora. Temos as pessoas de que precisamos, então?
Stragos entregou os papéis ao funcionário.
– Sim, Arconte: 44 no total. Garantirei que sejam transportadas amanhã à tarde.
– Ótimo. Deixe os frascos e pode ir.
O homem assentiu e juntou os papéis. Entregou dois pequenos frascos de vidro ao Arconte, depois saiu sem uma palavra, fechando a porta com deferência.
– Bom, vocês dois – prosseguiu Stragos. – Parece que vocês atraem atenção, não é? Têm certeza de que não fazem ideia de quem mais pode estar tentando matá-los? Alguma
rixa antiga de Camorr que não foi resolvida?
– Existem rixas antigas demais para serem resolvidas – respondeu Locke.
– Devem existir mesmo, não é? Bom, meu pessoal continuará a protegê-los da melhor forma possível. Mas vocês dois terão que ser mais... discretos.
– Esse comportamento não é exatamente algo novo para nós – replicou Locke.
– Restrinjam seus movimentos aos Degraus de Ouro e ao Savrola até segunda ordem. Colocarei agentes extras nas docas internas; usem-nas quando precisarem viajar.
– Maldição, não podemos operar assim! Durante alguns dias, talvez, mas não pelo resto da nossa estadia em Tal Verrar.
– Nisso você está mais certo do que imagina, Locke. No entanto, se mais alguém estiver atrás de vocês, não posso deixar que interfira em minhas necessidades. Reduzam
seus movimentos ou farei com que eles sejam reduzidos.
– Você disse que não atrapalharia o golpe a Requin!
– Não, eu disse que o veneno não atrapalharia o golpe.
– Você parece confiar demais no nosso bom comportamento, apesar de estar totalmente sozinho conosco numa sala pequena – ameaçou Jean, dando um passo à frente. –
O seu alquimista não vai voltar, certo? Nem Merrane.
– Eu deveria estar preocupado? Vocês não têm nada a ganhar me machucando.
– A não ser uma imensa satisfação – retrucou Locke. – Você presume que temos a cabeça no lugar. Presume que damos a mínima para o seu precioso veneno e que não arrancaríamos
um membro seu após o outro e assumiríamos as consequências.
– Isso é de fato necessário? – Stragos permaneceu sentado, uma perna cruzada sobre a outra, com a expressão levemente entediada. – Ocorreu-me que vocês dois pudessem
ser teimosos o bastante para nutrir um pouquinho de revolta no coração. Então ouçam com atenção: se saírem desta sala sem mim, os Olhos no corredor lá fora vão matá-los
assim que os virem. E se me fizerem mal de qualquer modo, repito a promessa anterior. Eu darei o troco em um de vocês, só que dez vezes pior, enquanto o outro será
obrigado a assistir tudo.
– Você é um monte de bosta de um doente de pele-solta com cara de bode.
– Pode ser. Mas se vocês estão sob meu poder, por favor, digam, o que isso os torna?
– Completamente constrangidos – murmurou Locke.
– É muito provável. Será que vocês dois podem deixar de lado essa necessidade infantil de vingar sua autoimagem e aceitar a missão que tenho para vocês? Querem ouvir
o plano e manter suas línguas civilizadas?
– Sim. – Locke fechou os olhos e suspirou. – Acho que de fato não temos escolha. Jean?
– Eu gostaria de não ser obrigado a aceitar.
– Gostando ou não, o importante é que aceite. – Stragos se levantou, abriu a porta do corredor e sinalizou para Locke e Jean o acompanharem. – Meus Olhos vão levá-los
ao meu jardim. Quero mostrar algo a vocês... enquanto temos uma conversa mais privada sobre sua missão.
– O que exatamente o senhor pretende conosco? – perguntou Jean.
– Em suma, tenho uma frota naval ancorada na Marina da Espada que pouco tem o que fazer. Como ainda dependo do Priori para ajudar a pagá-la e provê-la, não posso
mandá-la toda sem uma desculpa decente. – Stragos sorriu. – Por isso mandarei vocês dois ao mar, para achar essa desculpa para mim.
– Ao mar?! – exclamou Locke. – Você perdeu a porr...
– Levem-nos ao meu jardim – ordenou Stragos, girando nos calcanhares.
2
Era mais uma floresta do que um jardim, estendendo-se pelo que deviam ser centenas de metros ao norte do Mon Magisteria. Sebes entrelaçadas com trepadeiras que reluziam
suavemente em prata marcavam os caminhos entre o negrume oscilante das árvores. Devido a alguma alquimia, as trepadeiras refletiam luar artificial suficiente para
que os dois ladrões e os guardas caminhassem com facilidade pelas trilhas cobertas de cascalho. As luas já haviam surgido, mas estavam ocultas pelo palácio de quinze
andares e não podiam ser vistas por Locke e Jean.
O ar perfumado estava úmido e pesado; a chuva espreitava no arco de nuvens que envolvia o céu a leste. Vindo da escuridão das árvores, ouvia-se o zumbido de asas
e, aqui e ali, pálidas luzes douradas e escarlate pairavam em volta dos troncos como algum feitiço feérico.
– Besouros-lanterna – disse Jean, hipnotizado mesmo contra a vontade.
– Pense em quanta terra devem ter carregado até aqui a fim de cobrir o Vidrantigo o suficiente para que essas árvores crescessem... – sussurrou Locke.
– É bom ser Duque. Ou Arconte.
No centro do jardim, havia uma estrutura baixa, parecendo uma casa de barcos, iluminada por lampiões alquímicos no azul heráldico de Tal Verrar. Locke ouviu o som
fraco de água batendo em pedra e notou que havia um canal escuro, talvez com 6 metros de largura, logo depois da pequena construção. Ele serpenteava na escuridão
do jardim-floresta como um rio em miniatura. De fato, percebeu Locke, a estrutura era uma casa de barcos.
Quatro guardas apareceram no escuro, meio guiados e meio arrastados por dois enormes cães pretos com arneses que serviam como armadura. Essas criaturas, cujos dorsos
chegavam à cintura dos homens e que tinham uma largura quase igual, mostraram os dentes e farejaram com desdém os dois ladrões, depois fungaram e puxaram seus condutores
pelo jardim do Arconte.
– Muito bem – disse Stragos, surgindo alguns passos atrás da equipe dos cachorros. – Tudo está preparado. Vocês dois, venham comigo. Oficial das Espadas, vocês estão
dispensados.
Os Olhos se viraram como se fossem um só e marcharam na direção do palácio. Stragos chamou Locke e Jean com um gesto, depois levou-os até a beira do canal, onde
um barco flutuava, amarrado a um pequeno poste atrás da casa de barcos. A embarcação parecia construída para quatro pessoas, com um banco acolchoado em couro na
frente e outro na popa. Stragos sinalizou outra vez, agora para os Nobres Vigaristas entrarem e ocuparem o banco da frente.
Locke teve de admitir que era bastante agradável acomodar-se nas almofadas e descansar o braço na amurada. Stragos balançou o barco ligeiramente ao descer atrás
deles, desamarrou a corda e sentou-se em seu banco. Pegou um remo e mergulhou-o por cima da amurada esquerda.
– Tannen, faça a gentileza de acender nossa lanterna de proa.
Jean olhou por cima do ombro e viu uma lanterna alquímica do tamanho de um punho num suporte de vidro facetado, pendurada para fora da embarcação. Mexeu num regulador
de latão no topo dela até que os vapores dentro se misturarem e ganharem vida como um diamante azul-celeste refletindo-se na água embaixo.
– Foi aqui que os duques do Trono Terim edificaram seu palácio – informou Stragos. – Um canal cortado no vidro, com 8 metros de profundidade, como um rio particular.
Esses jardins foram construídos ao redor. Nós, Arcontes, herdamos o palácio, assim como o Mon Magisteria. Meu predecessor se contentava com águas paradas, mas eu
fiz modificações.
Enquanto ele falava, o som de água batendo nas laterais do canal ficou mais alto e mais irregular. Locke percebeu que o barulho fluido e gorgolejante que se intensificava
lentamente ao redor era o de uma correnteza. O reflexo da lanterna tremeluzia conforme a água ondulava feito seda escura.
– Feitiçaria? – perguntou Locke.
– Artifícios, Lamora. – O barco começou a deslizar suavemente, afastando-se da borda do canal, e Stragos usou o remo para alinhá-lo no centro do rio. – Há uma brisa
forte soprando do leste esta noite, além de moinhos de vento do lado oposto do meu jardim. Eles podem ser usados para impelir rodas-d’água sob a superfície do canal.
Se o ar está parado, quarenta ou cinquenta homens podem girar os mecanismos manualmente. Eu posso chamar a correnteza quando achar necessário.
– Qualquer homem pode peidar num cômodo fechado e dizer que comanda o vento – comentou Locke. – Mas devo admitir que todo esse jardim tem... mais elegância do que
eu imaginava que você tivesse.
– Que agradável ter sua aprovação sobre meu senso estético.
Stragos guiou-os em silêncio por alguns minutos, passou por uma curva ampla, por barrancos de trepadeiras prateadas e pelo farfalhar de folhas nos galhos baixos.
O aroma do rio artificial se elevava ao redor deles à medida que a corrente ficava mais forte – não era desagradável, porém mais rançoso e menos puro, de algum modo,
do que o cheiro dos lagos e rios naturais de que Locke se recordava.
– Presumo que este rio seja um circuito fechado – falou Jean.
– Ele serpenteia, mas é fechado, sim.
– Então, ah... desculpe, mas aonde, exatamente, você está nos levando?
– Tudo a seu tempo.
– Por falar no lugar aonde está nos levando – disse Locke –, poderia voltar ao assunto anterior? Um dos seus guardas deve ter batido na minha cabeça; pensei ter
ouvido você afirmar que queria que fôssemos para o mar.
– E quero. E vocês irão.
– Com que objetivo?!
– Vocês estão familiarizados com a história da Armada Livre das Ilhas dos Ventos Fantasmas?
– Vagamente – respondeu Locke.
– O levante de piratas no Mar de Bronze – lembrou Jean. – Há seis ou sete anos. Foi sufocado.
– Eu o sufoquei – frisou o Arconte. – Há sete anos, aqueles idiotas lá nos Ventos Fantasmas puseram na cabeça que iam tomar o poder. Diziam ter o direito de cobrar
impostos dos navios no Mar de Bronze, e com impostos queriam dizer abordar e saquear tudo que tivesse um casco. Eles possuíam uma dúzia de embarcações boas e uma
dúzia de tripulações mais ou menos boas.
– Bonaire – recordou Jean. – Era a capitã que todos eles seguiam, não era? Laurella Bonaire?
– Era – confirmou Stragos. – Bonaire e seu Basilisco. Ela era um dos meus oficiais e o Basilisco era um dos meus navios antes que ela virasse a casaca.
– E logo contra você, um patrão tão agradável e modesto – ironizou Locke.
– Aquele esquadrão de bandoleiros atacou Nicora e Vel Virazzo, assim como praticamente todos os pequenos povoados no litoral próximo. Tomou navios à vista deste
palácio e enfunou as velas até o horizonte enquanto minha galeras iam ao seu encontro. Foi o maior insulto que esta cidade enfrentou desde a guerra contra Camorr,
na época do meu predecessor.
– Não me lembro de isso ter durado muito tempo – comentou Jean.
– Meio ano, talvez. Essa declaração sobre os impostos foi a queda deles. Piratas podem fugir e se esconder, mas se fazem declarações desse tipo, em geral acabam
numa batalha para sustentá-las. Eles não são páreo para marinheiros de verdade quando se trata de linha contra linha em mar aberto. Nós os atacamos perto de Nicora,
afundamos metade da frota e mandamos o resto mijando nos calções de volta aos Ventos Fantasmas. Bonaire terminou numa gaiola pendurada acima do Abismo do Monturo.
Depois de fazê-la ver toda a sua tripulação cair lá dentro, eu mesmo cortei a corda que a segurava.
Locke e Jean ficaram em silêncio. Houve alguns estalos fracos e aquosos enquanto Stragos ajustava o rumo do barco. Outra curva no rio artificial vinha se aproximando.
– Bom, essa pequena demonstração tornou a pirataria uma profissão bastante impopular no Mar de Bronze. Desde então, as circunstâncias têm sido bastante boas para
os mercadores honestos. Claro que ainda há piratas na região dos Ventos Fantasmas, mas eles não se aproximam a menos de 500 quilômetros de Tal Verrar nem chegam
perto de Nicora ou do litoral. Minha marinha não teve que lidar com nada mais sério do que incidentes de alfândega e navios de peste em três ou quatro anos. É uma
época calma... uma época próspera.
– O seu trabalho não é propiciar exatamente isso? – questionou Jean.
– Você parece um homem bastante letrado, Tannen. Com certeza suas leituras devem ter lhe ensinado que, quando homens e mulheres de armas sangram para garantir um
tempo de paz, as pessoas que mais se beneficiam dessa paz também são as que têm mais chance de esquecer esse derramamento de sangue.
– O Priori – completou Locke. – Essa vitória o deixou nervoso, não foi? O povo gosta de vitórias. São elas que tornam populares os generais... e os ditadores.
– Você é astuto, Lamora. Assim como era do interesse dos conselhos mercantis me enviar para livrá-los da pirataria, era de seu interesse, logo em seguida, enfraquecer
minha marinha até acabar com ela. Dividendos da paz... pagar apenas por metade dos navios, colocá-los na reserva, tirar algumas centenas de marinheiros treinados
da folha de pagamento e deixar que os mercadores os pegassem... Os impostos de Tal Verrar pagaram pelo treinamento e o Priori e seus sócios ficaram felizes em roubá-los.
E foi assim, e é assim, com o Mar de Bronze em paz, os Tutanos de birra entre si, Lashane sem uma marinha e Kartane longe de pensar em ter uma. Este canto do mundo
está tranquilo.
– Se você e o Priori se sentem tão infelizes uns com os outros, por que eles não o deixam completamente sem verbas? – Locke se recostou em seu canto do barco e deixou
a mão esquerda pender por cima da amurada, riscando a água quente.
– Tenho certeza de que eles fariam isso se pudessem, mas a constituição da cidade me garante um orçamento mínimo com base na receita geral. Porém, todos os esmiuçadores
e fiscais da cidade são deles e criam mentiras tremendamente elaboradas para reduzir até mesmo isso. Meus próprios guarda-livros estão com as mãos cheias perseguindo-os.
Mas são as verbas discricionárias que eles não liberam. Em tempo de necessidade, eles podem inflar minhas forças com ouro e suprimentos de uma hora para a outra.
Em tempo de paz, se ressentem até do último centira que me dão. Esquecem por que o Arconato foi instituído.
– Ocorre-me – interveio Locke – que o seu predecessor deveria... dissolver o cargo quando Camorr concordou em parar de chutar o rabo de vocês.
– Uma força a postos é a única força profissional, Lamora. Deve haver uma continuidade de experiência e treinamento nas fileiras; um exército ou uma marinha digno
de nota não pode simplesmente ser conjurado do nada. Tal Verrar pode não se dar ao luxo de ter três ou quatro anos para montar uma defesa no momento da próxima crise.
E os membros do Priori, os que tagarelam mais alto sobre “opor-se à ditadura” e “garantias civis”, seriam os primeiros a debandar feito ratos carregando suas fortunas
e a pegar um navio para qualquer canto do mundo que lhes desse refúgio. Eles jamais ficariam ou morreriam com a cidade. Assim, a inimizade entre nós é mais do que
pessoal, da minha parte.
– Apesar de eu ter conhecido muitos grandes mercadores para discordar de sua ideia geral sobre o caráter deles, tive uma percepção súbita e aguçada de para onde
essa conversa está se encaminhando – comentou Locke.
– Eu também – concordou Jean, pigarreando. – Parece que, com o seu poder diminuindo, esta seria uma hora bastante conveniente para o surgimento de novos problemas
em algum ponto do Mar de Bronze, não é?
– Muito bem – disse Stragos. – Há sete anos, os piratas dos Ventos Fantasmas se rebelaram e eu dei ao povo de Tal Verrar motivo para ficar feliz com a marinha que
eu comando. Seria conveniente se eles pudessem ser convencidos a nos incomodar de novo... e ser esmagados de novo.
– Mandar-nos ao mar para encontrar uma desculpa para você – observou Locke. – Mandar a gente para o mar. O seu cérebro inchou dentro do crânio? Como, pela porra
do inferno, você espera que nós dois incitemos a droga de uma armada de piratas num lugar onde nunca estivemos e a convençamos a vir alegremente morrer nas mãos
da marinha que a virou de bruços na mesa e comeu seu rabo na última vez?
– Vocês convenceram os nobres de Camorr a jogar fora uma fortuna com suas tramas – argumentou Stragos sem a mínima raiva. – Eles adoravam o dinheiro que tinham,
mas vocês o arrancaram deles como se fosse fruta madura numa árvore. Vocês foram mais espertos do que um Mago-Servidor. Enganaram Capa Barsavi na cara dele. Escaparam
da armadilha que pegou Capa Barsavi e toda a sua corte.
– Só alguns de nós – sussurrou Locke. – Só alguns de nós escapamos, seu escroto.
– Preciso de mais do que agentes. Preciso de provocadores. Vocês dois caíram nas minhas mãos numa hora ideal. Sua tarefa, sua missão, será provocar o inferno no
Mar de Bronze. Quero navios saqueados desde aqui até Nicora. Quero o Priori batendo à minha porta, implorando para eu aceitar mais ouro, mais navios, mais responsabilidade.
Quero que o comércio ao sul de Tal Verrar enfune as velas e corra em busca de um porto seguro. Quero os seguradores cagando nas calças. Sei que posso não conseguir
tudo isso, mas, pelos deuses, vou aceitar tudo que vocês puderem me dar. Façam com que as pessoas tenham pavor dos piratas como não têm há anos.
– Você está pirando – comentou Jean.
– Nós podemos roubar dos nobres – observou Locke. – Podemos invadir casas. Podemos descer por chaminés, abrir trancas, roubar diligências, arrombar cofres e fazer
uma bela variedade de truques com cartas. Eu poderia cortar seus bagos, se você tivesse algum, e substituir por bolas de gude, e você demoraria uma semana para notar.
Mas odeio dizer que uma classe de criminosos com que jamais nos associamos, jamais, são as porras dos piratas!
– Não temos a mínima ideia de como iríamos nos aproximar deles – acrescentou Jean.
– Nesse sentido, como em tantas outras coisas, estou bem à frente de vocês – replicou Stragos. – Vocês não devem ter problemas para conhecer os piratas dos Ventos
Fantasmas porque vocês mesmos vão se tornar piratas respeitáveis. Capitão e imediato de uma chalupa, na verdade.
3
– Você é mais do que louco – falou Locke depois de um bom tempo imerso em pensamentos furiosos. – A loucura de pedra é um estado de bem-aventurança racional à qual
você não pode aspirar. Homens que vivem nas sarjetas bebendo o próprio mijo recusariam sua companhia. Você é um lunático destrambelhado.
– Esse não é o tipo de coisa que eu esperaria ouvir de um homem que deseja seu antídoto.
– Bom, que escolha magnífica você nos deu... a morte pelo veneno lento ou a morte pela desventura insana!
– Ora, isso também não é o tipo de coisa que eu esperaria ouvir de um homem que comprovou conseguir escapar de situações extremamente complicadas.
– Estou ficando meio entediado com os elogios a nossas aventuras anteriores que servem de desculpa para nos obrigar a embarcar em outras mais arriscadas ainda. Olha,
se você quiser que façamos um serviço, ofereça um serviço na nossa área de experiência. Ela não é ampla o bastante para você? Só estamos dizendo que não sabemos
coisa alguma sobre vento, clima, navios, piratas, Mar de Bronze, Ilhas dos Ventos Fantasmas, velas, cordas e... clima, navios...
– Nossa única experiência com navios – interveio Jean – consiste em entrar, ficar enjoados e sair.
– Eu pensei nisso – contrapôs Stragos. – O capitão de uma tripulação de criminosos deve ter, acima de todas as outras coisas, carisma. Capacidade de liderança. Poder
de decisão. Os patifes devem ser comandados. Acredito que você pode fazer isso, Lamora... fingindo, se necessário. Isso o torna a melhor escolha possível em alguns
aspectos. Você pode fingir confiança enquanto um homem sincero poderia tender ao pânico. E seu amigo Jean pode fazer valer sua liderança; um bom lutador corpo a
corpo é alguém a ser respeitado num navio.
– Certo, fantástico – disse Locke. – Eu sou carismático, Jean é durão. Isso deixa de fora todas as outras coisas que eu citei...
– Quanto às artes náuticas, vou lhes fornecer um experiente mestre de navegação. Um homem que pode treiná-los nas coisas essenciais e tomar as decisões adequadas
para você, quando estiver no mar, o tempo todo fingindo que as ordens vêm de você. Não está vendo? Só peço que você represente um papel... Ele vai fornecer o conhecimento
para tornar esse papel convincente.
– Doce Venaporta! – exclamou Locke. – Você pretende mesmo que a gente saia por aí e deseja de verdade que tenhamos sucesso?
– Sem dúvida.
– E o veneno? – perguntou Jean. – Você vai colocar antídoto suficiente nas nossas mãos para permitir que singremos pelo Mar de Bronze?
– De jeito nenhum. Vocês precisarão vir a Tal Verrar a cada dois meses. Meu alquimista disse que o tempo máximo que vocês devem ter é de 62 a 65 dias.
– Ei, espere aí um minuto – disse Locke. – Não basta que sejamos marinheiros sem a menor noção, mascarados de piratas durões, confiando em outro homem para fazer
com que pareçamos competentes. Ou que tenhamos de nos arriscar em sei lá que mares, adiando nossos planos para Requin. Agora você espera que voltemos à saia da mamãe
a cada dois meses?
– São duas ou três semanas até os Ventos Fantasmas. Vocês terão tempo suficiente para fazer seus negócios a cada viagem, independentemente da duração desse projeto.
O quanto vocês terão de mexer na sua programação, claro, é da sua conta. Com certeza vocês entendem que precisa ser assim.
– Não. – Locke riu. – Francamente, não entendo!
– Vou querer relatórios de progresso. Posso ter novas ordens e informações para vocês. Vocês podem ter novos pedidos ou sugestões. Faz muito sentido permanecer em
contato regular.
– E se por acaso nós encontrarmos um daqueles trechos de... maldição, Jean, como é que se chama? Sem vento nenhum...
– Calmarias – respondeu Jean.
– Exato. Até mesmo nós sabemos que não dá para supor uma velocidade constante quando se trata de vento e velas; a gente utiliza o que os deuses mandam. Podemos ficar
presos num oceano liso a 80 quilômetros de Tal Verrar, no dia 63, morrendo sem qualquer motivo.
– É remotamente possível, mas improvável. Tenho toda a consciência de que há um grande elemento de risco na tarefa que estou propondo; a possibilidade de um ganho
gigantesco me impele a me aventurar. Agora... por enquanto não vamos mais falar nisso. Eis o que vim mostrar a vocês.
Adiante, havia uma ondulação dourada na água negra e leves linhas da mesma cor que pareciam oscilar no ar acima dela. À medida que chegaram mais perto, Locke viu
que uma forma ampla e escura cobria totalmente o rio artificial, de uma margem à outra. Era algum tipo de construção... e as linhas douradas pareciam ser fendas
em cortinas que pendiam até a água. O barco chegou a essa barreira e passou por ela com pouca dificuldade; Locke empurrou um tecido pesado e úmido para longe do
rosto e a embarcação irrompeu em plena luz do dia.
Estavam dentro de um jardim fechado, o teto a pelo menos 12 metros de altura, preenchido com salgueiros, oliveiras e árvores cítricas, de madeira-bruxa e espinhâmbar.
Troncos pretos, marrons e cinzentos se erguiam em fileiras compactas, os galhos emaranhados de cipós estendendo-se para cima em vastas constelações de folhas brilhantes
que se entrelaçavam sobre o rio como um segundo teto.
Quanto ao teto de verdade, era cintilante, azul-celeste e brilhante como ao meio-dia, com fiapos de nuvens brancas passando entre os galhos. O sol ardia inclemente
à direita de Locke e lançava raios de luz... mas lá fora sem dúvida ainda era o meio da noite.
– Isso é alquimia, feitiçaria ou as duas coisas – disse Jean.
– Um pouco de alquimia – explicou Stragos em voz suave e entusiasmada. – O teto é de vidro, as nuvens são fumaça, o sol é um vaso ardente de óleos alquímicos e espelhos.
– Luminoso a ponto de manter esta floresta viva sob um teto? Incrível – admirou-se Locke.
– Poderia mesmo ser luminoso o suficiente, Lamora, mas se você olhar com atenção, verá que nada sob este teto, além de nós mesmos, está vivo.
Enquanto Locke e Jean contemplavam o entorno, incrédulos, Stragos levou o barco de encontro a uma das margens do rio, onde o curso d’água se estreitava até meros
3 metros de largura, para dar espaço às árvores, cipós e arbustos dos dois lados. Stragos estendeu a mão para segurar um tronco e parar a embarcação e apontou para
o ar.
– Um jardim mecânico para o meu rio mecânico. Não existe sequer uma planta de verdade aqui. É madeira, argila, arame e seda, tinta, tintura e alquimia. Tudo foi
projetado segundo minha orientação; os artífices e seus assistentes levaram seis anos para construir. Meu pequeno vale de mecanismos.
Locke percebeu que o Arconte dizia a verdade. Afora o movimento das nuvens de fumaça branca lá no alto, o lugar permanecia numa imobilidade que não era natural,
mas quase fantasmagórica. E o ar no jardim fechado era inerte, cheirando a água rançosa e lona. Deveria estar repleto dos odores luxuriantes de terra, flores e podridão.
– Ainda pareço um homem que peida numa sala fechada, Lamora? Aqui eu comando o vento.
Stragos levantou o braço acima da cabeça e um ruído farfalhante encheu o jardim artificial. Uma corrente de ar roçou o couro cabeludo de Locke e aumentou cada vez
mais até haver uma brisa firme contra seu rosto. As folhas e galhos ao redor oscilaram suavemente.
– E a chuva! – gritou Stragos.
Sua voz ecoou por cima da água e se perdeu nas profundezas da floresta. Um instante depois, uma névoa leve e quente começou a baixar, pinicando, fazendo redemoinhos
em curvas fantasmagóricas através da mata e envolvendo o barco. Começaram a cair gotas com um plic-plac suave, ondulando a superfície do rio mecânico. Locke e Jean
se encolheram sob suas capas e Stragos gargalhou.
– Posso fazer mais. Talvez até possa invocar uma tempestade!
Um sopro de ar mais forte começou a jogar a chuva e a névoa contra eles; o pequeno rio se agitou com uma contracorrente vinda de algum lugar adiante. Pequenas ondas
com espuma branca estouravam sob o barco como se a água fervesse e Stragos se agarrou com as duas mãos a um tronco enquanto o barco balançava de modo nauseante.
As gotas de chuva ficaram mais pesadas e mais fortes; Locke precisou proteger os olhos para enxergar. Uma névoa densa, escura se inquietava acima, embotando o sol
artificial. A floresta ganhara vida, sacudindo-se no ar nevoento como se guerreasse contra deuses invisíveis.
– Mas só até certo ponto – completou Stragos, e sem qualquer sinal aparente dado por ele a chuva foi parando.
Gradualmente, a agitação da floresta se reduziu a um farfalhar suave e, depois, à imobilidade; as correntes do rio foram diminuindo e, em minutos, o jardim mecânico
tinha restaurado uma paz relativa. Dedos de névoa se esvaindo redemoinhavam ao redor das árvores, o sol espiava de trás das “nuvens” ralas e o ambiente ecoou com
o som de água pingando de mil galhos e troncos.
Locke se sacudiu e afastou o cabelo molhado dos olhos.
– É... bastante singular, Arconte. Tenho de admitir. Nunca imaginei uma coisa assim.
– Um jardim engarrafado com o clima engarrafado – observou Jean.
– Por quê? – Locke fez a pergunta pelos dois.
– Funciona como um lembrete. – Stragos soltou o tronco e deixou o barco deslizar com suavidade para o meio do riacho outra vez. – Do que as mãos e as mentes dos
seres humanos podem realizar. Do que esta cidade, única em todo o mundo, é capaz de produzir. Eu lhes disse que meu Mon Magisteria é um repositório de coisas artificiais.
Pensem nelas como os frutos da ordem... ordem que devo garantir e salvaguardar.
– Como, diabos, interferir no comércio oceânico de Tal Verrar significa garantir e salvaguardar a ordem?
– Sacrifício de curto prazo para um ganho de longo prazo. Há algo latente nesta cidade que vai florescer, Lamora. Algo que vai brotar. Você pode imaginar que maravilhas
o Trono Terim poderia ter produzido se tivesse havido séculos de paz, se ele não tivesse sido estilhaçado em cidades-estados que guerreiam e discutem? Enfim algo
está se preparando para emergir de todo o nosso infortúnio, e isso acontecerá aqui. Os alquimistas e artífices de Tal Verrar são inigualáveis e os eruditos do Colégio
Terim estão a apenas alguns dias de distância... deve ser aqui!
– Maxilan, meu querido. – Locke levantou uma sobrancelha e sorriu. – Eu sabia que você era empolgado, mas não tinha ideia de que era capaz de pegar fogo. Venha,
me possua! Jean não vai se incomodar; ele vai desviar os olhos como um cavalheiro.
– Pode zombar de mim o quanto quiser, Lamora, mas escute minhas palavras. Escute e compreenda, seu desgraçado. O que você acabou de testemunhar exigiu o esforço
de sessenta homens e mulheres. Vigias esperando meus sinais. Alquimistas para cuidar dos cilindros de fumaça e equipes ocultas para mover os foles e os leques que
produzem o vento. Havia várias dezenas meramente puxando fios metálicos: os galhos das minhas árvores artificiais são como marionetes, podem ser sacudidos de modo
mais convincente. Um pequeno exército de trabalhadores treinados, esforçando-se para produzir um espetáculo de cinco minutos para três homens num barco. E nem mesmo
isso seria possível sem a arte e o artifício dos séculos anteriores.
Stragos fez uma pausa e continuou:
– O que mais poderíamos conseguir, tendo tempo? E se trinta pessoas pudessem produzir o mesmo resultado? Ou dez? Ou uma? E se instrumentos melhores puderem gerar
ventos mais fortes, mais chuva, uma corrente mais intensa? E se nossos mecanismos de controle ficassem tão sutis e tão poderosos que deixassem de ser um espetáculo?
E se pudéssemos prepará-los para mudar qualquer coisa, controlar qualquer coisa, até mesmo nós próprios? Nossos corpos? Nossas almas? Nós nos escondemos nas ruínas
do mundo dos Ancestres e à sombra dos Magos de Kartane. Mas homens e mulheres comuns poderiam possuir um poder igual. Após séculos, com a graça dos deuses, eles
poderiam eclipsar o poder dos kartanis.
– E todas essas ideias grandiosas de algum modo exigem que nós dois finjamos ser piratas? – perguntou Jean.
– Tal Verrar nunca será forte enquanto seu destino estiver controlado pelos que espremeriam o ouro dela como leite de uma vaca e depois fugiriam para o horizonte
ao primeiro sinal de perigo. Eu preciso de mais poder, com a vontade do povo por trás de mim. Sua missão, caso seja bem-sucedida, abriria uma porta que impede o
caminho para coisas mais grandiosas. – Stragos deu um risinho e espalmou as mãos. – Vocês são ladrões. Eu estou lhes oferecendo a chance de ajudar a roubar a própria
história.
– O que é um pequeno consolo comparado com o dinheiro numa casa de contabilidade e um teto sobre a cabeça – rebateu Locke.
– Você odeia os Magos de Kartane – argumentou Stragos sem nenhuma entonação especial.
– Acho que sim – concordou Locke.
– O último imperador do Trono Terim tentou lutar contra eles com magia: feitiçaria contra feitiçaria. Fracassou e morreu. Kartane jamais poderá ser conquistada pela
arte que ela comanda; eles garantiram que nenhuma autoridade em nosso mundo tenha feiticeiros suficientemente numerosos ou poderosos para igualá-los. Eles devem
ser enfrentados com isto. – Ele pousou o remo e indicou o entorno. – Máquinas. Artifícios. Alquimia e engenharia. Os frutos da mente.
– Tudo isso, toda essa trama ridícula... – disse Locke – ... uma Tal Verrar mais poderosa, conquistando este canto do mundo... tudo isso é para atingir Kartane?
Não acho a ideia desagradável, mas por quê? O que eles fizeram a você para levá-lo a imaginar isso?
– Algum de vocês conhece a antiga arte do ilusionismo? Já leram sobre ela nos livros de história?
– Um pouco – respondeu Locke. – Não muito.
– Há um bom tempo, a apresentação de ilusões... mágica imaginária, não feitiçaria de verdade, apenas truques inteligentes... era muito disseminada, popular e lucrativa.
Os plebeus pagavam para vê-la nas ruas; nobres do Trono Terim pagavam para vê-la nas cortes. Mas essa cultura está morta. A arte não existe mais, a não ser como
joguinhos de prestidigitadores. Os Magos-Servidores assolaram nossas cidades como lobos, prontos para esmagar a menor sugestão de competição. Nenhuma pessoa sensata
jamais apareceria em público se declarando capaz de fazer mágica. O medo matou toda a tradição há centenas de anos.
Stragos prosseguiu:
– Os Magos-Servidores distorcem nosso mundo apenas com sua presença. Eles nos governam, e isso não tem nada a ver com política. O fato de podermos contratá-los para
nos servir não tem importância. Aquela pequena guilda paira sobre tudo o que planejamos, sobre tudo o que sonhamos. O medo dos Magos envenena nosso povo até o cerne
de suas ambições. Impede-o de imaginar um destino maior... impede a esperança de refazer o império que já tivemos. Sei que vocês consideram imperdoável o que lhes
fiz. Mas, acreditem ou não, admiro-os por enfrentar os Magos-Servidores. Eles os entregaram a mim como um castigo, mas peço que me ajudem a atingi-los.
– Grande abstração – retrucou Jean. – Você faz parecer que sermos obrigados a servi-lo é uma espécie de privilégio incrível para nós.
– Não preciso de desculpa para odiar os Magos-Servidores – acrescentou Locke. – Nem para odiá-los nem para lutar contra eles. Eu já os insultei. Eu e Jean. Mas você
deve ser louco se acha que eles vão deixá-lo construir algo explicitamente poderoso a ponto de derrubá-los.
– Não espero viver para ver isso. Só espero plantar a semente. Olhe o mundo ao redor, Lamora. Examine as pistas que eles nos deram. A alquimia é reverenciada em
toda parte, não é? Ela ilumina nossos aposentos, cura nossos ferimentos, conserva nossa comida... melhora nossa cidra. – Ele deu um sorriso satisfeito para Locke
e Jean. – A alquimia é uma forma inferior de magia, mas os Magos-Servidores jamais tentaram impedi-la ou controlá-la.
– Porque não ligam a mínima – afirmou Locke.
– Errado – reagiu Stragos. – Porque ela é necessária demais para muitas coisas. Seria como tentar nos negar o direito à água ou ao fogo. Isso nos pressionaria demais.
Não importando o custo, não importando a carnificina, isso nos obrigaria a lutar contra eles em nome da nossa própria existência. E eles sabem disso. Seu poder tem
limites. Um dia vamos ultrapassar esses limites, se ao menos tivermos uma chance.
– É um belo conto de fadas – replicou Locke. – Se você escrevesse um livro sobre isso, eu pagaria por dez exemplares autografados. Mas aqui e agora você está interferindo
na nossa vida. Está nos arrancando de uma coisa em que trabalhamos por longo tempo e tão arduamente.
– Estou preparado para expandir meus termos anteriores e oferecer uma recompensa financeira em troca da realização da tarefa.
– Quanto? – perguntaram Jean e Locke simultaneamente.
– Sem promessas. Sua recompensa será proporcional ao seu feito. Vou torná-los tão felizes quanto me tornarem. Está claro?
Locke encarou Stragos por alguns segundos, coçando o pescoço. Stragos estava usando um truque de confiança: um apelo a ideais mais elevados seguido por um apelo
à cobiça. E essa era uma clássica situação do tipo “foda o agente”: Stragos não tinha qualquer inclinação a cumprir a promessa e não tinha nada a perder fazendo-a.
Além disso, não havia nenhum motivo para ele deixar Locke e Jean viverem assim que a tarefa fosse concluída. Locke fez contato visual com Jean e coçou o queixo várias
vezes, um simples sinal de mão: Mentira.
Jean suspirou e bateu com os dedos algumas vezes na amurada do barco. Parecia compartilhar com Locke o pensamento de que sinais elaborados deveriam ser evitados,
já que Stragos estava tão perto. Sua resposta foi também simples: Concordo.
– Isso é uma boa notícia – comentou Locke, forjando um tom de otimismo contido. O conhecimento de que ele e Jean estavam pensando do mesmo modo sempre lhe dava uma
energia renovada para atuar. – Uma pilha de solaris quando tudo terminar ajudaria muito a mitigar nossa aversão pelas circunstâncias em que fomos empregados.
– Ótimo. Minha única preocupação é que a missão deve se beneficiar de mais entusiasmo da sua parte.
– Essa missão, para ser franco, vai precisar de toda ajuda possível.
– Não se preocupe com isso, Lamora. E cuidado aí atrás, estamos chegando ao lado oposto do meu pequeno vale.
O barco deslizava para outra barreira de lona. Segundo a avaliação casual de Locke, todo o jardim artificial devia ter cerca de 80 metros de comprimento.
– Digam adeus ao sol – observou o Arconte.
Passaram pela lona, voltando à noite negra e prateada com seus fugazes besouros-lanterna e o perfume genuíno de floresta. Um cão de guarda latiu perto, rosnou e
ficou quieto após uma ordem sussurrada. Locke esfregou os olhos para que eles se ajustassem de novo à escuridão.
– Vocês começarão a treinar esta semana – avisou Stragos.
– Como assim, treinar? Há um monte de perguntas a que você não respondeu – reagiu Locke. – Onde está o nosso navio? Onde está nossa tripulação? Como vamos ser conhecidos
como piratas? Há mil detalhes a examinar...
– Tudo a seu tempo. – A voz de Stragos tinha um ar de satisfação inconfundível, agora que Locke mostrava que iria levar o plano adiante. – Disseram-me que vocês
costumam fazer as refeições no Claustro de Ouro. Passem alguns dias levantando-se com o sol. No Dia do Trono, tomem o desjejum no Claustro. Esperem que Merrane os
encontre. Ela vai levá-los ao destino com a discrição usual e vocês começarão suas lições. Elas ocuparão a maior parte dos dias, portanto não façam nenhum plano.
– Droga – praguejou Jean. – Por que não nos deixa terminar nosso negócio com Requin? Só vai demorar algumas semanas. Então poderemos fazer o que você quiser, sem
distração.
– Já pensei nisso – garantiu Stragos. – Mas não. Adiem o golpe. Quero que vocês tenham algo para fazer depois de terminarem minha missão. E não posso esperar algumas
semanas. Preciso de vocês no mar dentro de um mês. No máximo em seis semanas.
– Um mês para passar de homens de terra ignorantes a umas porras de piratas profissionais? – questionou Jean. – Que os deuses nos acudam.
– Será um mês movimentado – afirmou Stragos.
Locke gemeu.
– Vocês estão à altura da tarefa? Ou será que devo lhes negar o antídoto, lhes dar uma cela e ficar observando os resultados?
– Só garanta que a porra do antídoto esteja pronta a cada vez que voltarmos – respondeu Locke. – E pense seriamente em quanto dinheiro nos deixaria felizes quando
esse negócio terminar. Acho que, nesse aspecto, você deve ser do tipo que subestima. Portanto eu pensaria grande.
– Recompensas proporcionais aos resultados, Lamora. Isso e a vida de vocês. Quando a bandeira vermelha for vista de novo nas águas da minha cidade e o Priori estiver
implorando que eu o salve, vocês podem voltar seus pensamentos para a questão da recompensa. Entendido?
Mentira, sinalizou Locke a Jean, certo de que isso era desnecessário e igualmente certo de que Jean apreciaria um pouco de petulância.
– Seja feita a sua vontade, então. Se os deuses forem gentis, cutucaremos qualquer ninho de vespas que ainda reste lá nas Ilhas dos Ventos Fantasmas. Afinal de contas,
não temos escolha, certo?
– Essa era a minha intenção – falou Stragos.
– Sabe, Locke – observou Jean num tom muito casual. – Eu gosto de imaginar que existem ladrões por aí que só são apanhados em aventuras comuns, descomplicadas. Um
dia desses, nós deveríamos pensar em encontrar alguns e perguntar qual é o segredo deles.
– Provavelmente é simples: ficando longe de escrotos como esse – disse Locke, indicando o Arconte.
4
Um esquadrão de Olhos estava esperando ao lado da casa de barcos quando o pequeno bote completou o circuito do rio artificial.
– Aqui – falou Stragos depois que um dos seus soldados pegou o remo.
Tirou dois frascos de vidro dos bolsos e estendeu um para cada ladrão camorri.
– Seu primeiro adiamento da execução. O veneno teve tempo de penetrar. Não quero ter que me preocupar com vocês nas próximas semanas.
Locke e Jean tomaram o líquido, engasgando.
– Tem gosto de giz – reclamou Locke, enxugando a boca.
– Se ao menos fosse tão barato assim... – disse o Arconte. – Agora devolvam os frascos. As tampas também.
Locke suspirou.
– Seria demais esperar que você fosse negligente com esse detalhe.
Stragos amarrou o barco de novo ao poste enquanto os dois ladrões eram levados de volta ao Mon Magisteria.
Ele se levantou, espreguiçou-se e sentiu os velhos rangidos familiares, as pontadas nos quadris, nos joelhos e nos pulsos. Maldito reumatismo... Ele ainda estava
correndo à frente de sua idade, ainda adiante da maioria dos homens que se aproximavam dos 60 anos, mas sabia, no fundo do coração, que jamais poderia correr suficientemente
rápido. Cedo ou tarde, a Senhora do Longo Silêncio dançaria com Maxilan Stragos, quer seu trabalho no mundo estivesse terminado ou não.
Merrane esperava nas sombras do lado não iluminado da casa de barcos, imóvel e quieta como uma aranha-caranguejeira até surgir ao lado dele. O longo treino permitia
que ele não se encolhesse.
– Obrigado por salvar esses dois, Merrane. Você tem sido muito útil nestas últimas semanas.
– Como fui instruída a ser. Mas tem certeza de que eles servem para seu plano?
– Eles estão com toda a desvantagem possível nesta cidade, minha cara. – Stragos estreitou os olhos, fitando as silhuetas turvas de Locke, Jean e sua escolta, que
desapareciam no jardim. – Os Magos-Servidores os entregaram a nós, que prevemos cada passo deles. Não creio que esses dois estejam acostumados a ser controlados.
Sozinhos, sei que vão atuar como é necessário.
– Seus relatórios lhe dão tanta confiança assim?
– Não são apenas os relatórios. Requin ainda não os matou, não é?
– É verdade.
– Eles vão servir. Conheço o coração deles. À medida que os dias passam, o ressentimento vai diminuir e a novidade vai dominá-los. Logo vão estar se divertindo.
Honestamente, acho que eles podem ser bem-sucedidos. Se sobreviverem. O certo é que não tenho outros agentes adequados para a tarefa.
– Então posso informar aos meus senhores que o plano está encaminhado?
– É, acho que nos cabe fazer isso. – Stragos olhou o vulto esguio ao seu lado e suspirou. – Que eles saibam que tudo começa mais ou menos daqui a um mês. Espero,
por eles, que estejam preparados para as consequências.
– Ninguém está preparado para as consequências. Isso vai significar mais sangue do que já foi visto em duzentos anos. Tudo o que podemos fazer é esperar que outros
fiquem com a maior parte da encrenca. Com licença, Arconte, eu gostaria de redigir minhas mensagens para eles.
– Claro – concordou Stragos. – Mande minhas lembranças, com seu relatório, e minhas orações para que possamos continuar prosperando... juntos.
Ú L T I M A R E M I N I S C Ê N C I A
Com a própria corda
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– Ah, este é um lugar maravilhoso para se lançar para a morte – disse Locke.
Seis meses haviam se passado desde seu retorno de Salon Corbeau e as quatro cadeiras exóticas estavam trancadas em segurança num depósito particular na Villa Candessa.
A versão de Tal Verrar para um inverno tardio mantinha a região sob temperaturas tão baixas que as pessoas precisavam trabalhar de verdade para suar.
A cerca de uma hora de cavalgada intensa ao norte de Tal Verrar, logo depois do povoado de Vo Sarmara e dos campos ao redor, uma floresta de madeira-bruxa e espinhâmbar
crescia junto a um vale amplo e rochoso. As encostas eram da cor acinzentada da pele de cadáveres, o que dava ao lugar a aparência de um ferimento gigantesco na
terra. O fino capim verde-oliva abandonava a luta pela vida a uns 3 metros da borda do penhasco sobre o vale, onde Locke e Jean contemplavam a queda íngreme de 30
metros até o chão de cascalho lá embaixo.
– Creio que deveríamos ter dado prosseguimento aos treinos – comentou Jean, começando a se soltar da corda enrolada e pendurada do ombro direito até o quadril esquerdo.
– Mas, afinal de contas, não me lembro de ter tido muitas oportunidades de usar isso nos últimos anos.
– Na maioria dos lugares em Camorr, nós podíamos simplesmente escalar com as mãos. Acho que você nem estava conosco naquela noite em que usamos cordas para subir
na torre de Dona de Marre, aquela propriedade velha e horrível dela... Calo, Galdo e eu fomos bicados quase até a morte por pombos. Deve ter sido há cinco, seis
anos.
– Ah, mas eu estava com vocês! No chão, vigiando. Vi a parte dos pombos. É difícil ficar de sentinela quando a gente está se mijando de tanto rir.
– Lá de cima não era engraçado. Aqueles sacaninhas bicudos eram malignos.
– A Morte por Mil Bicadas – disse Jean. – Vocês virariam lendas se morressem de modo tão horrível. Eu teria escrito um livro sobre os pombos comedores de gente e
entrado para o Colégio Terim. Me tornaria uma pessoa respeitável. Pulga e eu ergueríamos uma estátua memorial para os Sanzas, com uma bela placa.
– E eu?
– Uma nota de rodapé na placa. Se o espaço permitisse.
– Passe um pouco de corda ou eu lhe mostro a beira do penhasco, se o espaço permitir.
Jean jogou um rolo para Locke, que o pegou no ar e voltou para a borda da floresta, a uns 10 metros do penhasco. A corda era muito bem-trançada em semisseda, muito
mais leve do que o cânhamo e muito mais cara. Locke escolheu um velho pé de madeira-bruxa quase tão largo quanto os ombros de Jean. Soltou um bom pedaço da sua corda,
passou-a em volta do tronco e olhou durante alguns segundos para a ponta um pouco esfiapada, tentando reavivar as lições sobre nós.
Movimentando os dedos de modo hesitante, ele olhou por um instante ao redor, para a paisagem melancólica. Um vento forte soprava do noroeste e o céu era uma vasta
extensão de névoa. A carruagem alugada estava no lado oposto da floresta, a uns 300 metros. Ele e Jean tinham dado ao cocheiro uma jarra de cerâmica com cerveja
e um esplêndido cesto de lanche da Villa Candessa, prometendo que demorariam poucas horas.
– Jean – murmurou Locke quando o amigo chegou ao seu lado –, esse é um nó de ancoragem mesmo, certo?
– É o que parece. – Jean avaliou o nó elaborado e assentiu. Pegou a ponta da corda e deu mais meio nó, para garantir. – Pronto. Está bom.
Ele e Locke trabalharam juntos por alguns minutos, repetindo o nó de ancoragem com mais três pedaços de corda até a velha árvore de madeira-bruxa estar coberta de
semisseda justa. Os outros rolos de corda foram postos de lado. Tiraram os casacos compridos e os coletes, revelando pesados cintos de couro com argolas de ferro.
Os cintos não eram como os arneses de escalada costumeiros, preferidos pelos ladrões mais responsáveis de Camorr; eram, na verdade, de origem náutica, usados pelos
felizes marinheiros cujos patrões se importavam a ponto de gastar um pouco de dinheiro para preservar sua saúde. Os apetrechos haviam custado barato e poupado Locke
e Jean da necessidade de arranjar um contato no submundo verrari que pudesse fazer um par sob encomenda... e se lembrar da transação. Seria melhor Requin não saber
de algumas coisas até que enfim chegasse o momento de aplicar o golpe contra ele.
– Certo, então. Aqui está o seu descensor.
Jean entregou a Locke um pedaço de ferro igual ao seu, razoavelmente pesado, em forma de oito, com um lado maior do que o outro e uma barra grossa bem no meio. Tinham
sido encomendados a um ferreiro no Crescente Ístrio algumas semanas antes.
– Vamos arrumar você primeiro. Corda principal, depois a reserva.
Locke prendeu seu descensor num dos anéis do arnês e passou por ele uma das cordas de semisseda ligadas à árvore. A outra ponta dessa linha foi deixada livre e jogada
na direção do penhasco. Uma segunda corda foi amarrada firme num anel do arnês sobre o quadril oposto de Locke. Muitos ladrões camorris “dançavam nus” ao trabalhar,
sem a segurança a mais de um cabo reserva para o caso de a corda primária se partir, mas para a sessão de treino de hoje os Nobres Vigaristas concordavam firmemente
que iriam fazer do jeito seguro e tedioso.
Foram necessários alguns minutos para preparar Jean do mesmo modo; logo cada um estava preso à árvore por duas cordas, como um par de marionetes humanas. Os dois
ladrões usavam apenas túnicas, calções, botas de montaria e luvas de couro. Jean colocou seus ópticos de leitura.
– Bom, parece um ótimo dia para rapel. Quer fazer as honras antes de darmos adeus à terra sólida?
– Guardião Torto – rezou Locke –, os homens são idiotas. Proteja-nos de nós mesmos. Se não puder, faça com que seja rápido e indolor.
– Muito bem-falado. – Jean respirou fundo. – A parte maluca no três?
– No três.
Cada um deles pegou sua corda principal e lançou a ponta livre por cima do penhasco; as duas se desenrolaram com um sibilo fraco.
– Um – disse Locke.
– Dois – continuou Jean.
– Três – falaram juntos.
Correram para o penhasco e se jogaram, gritando de júbilo.
Por um breve momento, o estômago de Locke e o céu cinza nevoento pareciam estar dando cambalhotas ao mesmo tempo. Então sua corda se retesou e a face do penhasco
veio até ele um pouco ansiosa demais para o seu gosto. Como um pêndulo humano, ele balançou, levantou as pernas e bateu na parede de pedra uns 2 metros abaixo da
borda, mantendo os joelhos dobrados para absorver o choque. Disso, pelo menos, ele se lembrava muito bem. Jean bateu com um tump mais forte, 60 centímetros abaixo.
– Deveria haver um modo mais fácil de testar se a corda foi bem trançada, Jean – comentou Locke, com o coração batendo nos ouvidos suficientemente alto para disputar
com o sussurro do vento.
– Uau!
Jean moveu um pouco os pés, segurando sua corda com ambas as mãos. Com os descensores, ficava fácil diminuir a velocidade ou parar por meio de fricção. Em relação
ao que tinham aprendido na infância, aquelas ferramentas eram uma clara evolução. Ainda que sem dúvida pudessem deslizar por uma corda usando seus próprios corpos,
como já haviam feito em outra ocasião, era comum esfolar certa parte proeminente da anatomia masculina com essa abordagem se o sujeito fosse descuidado ou azarado.
Durante alguns instantes, permaneceram imóveis, os pés encostados no penhasco, desfrutando do novo ponto de observação enquanto as nuvens vaporosas passavam acima.
As cordas balançando no ar abaixo só chegavam à metade da distância até o chão, mas eles não pretendiam chegar lá hoje de qualquer modo. Haveria tempo suficiente
para testar descidas maiores nos treinos futuros.
– Sabe, essa era a única parte do plano, devo admitir, da qual eu não estava muito seguro – revelou Locke. – É muito mais fácil contemplar alguém descendo do que
pular de um penhasco tendo apenas dois pedaços de corda entre você e Aza Guilla.
– Cordas e penhascos não são problema – replicou Jean. – Precisamos é estar atentos aos pombos carnívoros.
– Ah, dobre-se e morda a própria bunda.
– Sério. Estou aterrorizado. Vou ficar de olho, para que a última coisa que a gente sinta na vida não sejam aquelas bicadas velozes terríveis...
– Jean, sua corda reserva deve estar pesando demais. Aqui, deixe eu cortá-la para você.
Durante alguns minutos, ficaram se chutando e empurrando bem-humorados, Locke girando e tentando usar a agilidade para superar a força e a massa maiores de Jean.
Mas parecia que o grande amigo estava levando vantagem, por isso, numa crise de autopreservação, ele sugeriu que treinassem a descida.
– Claro – concordou Jean. – Vamos descer uns 2 metros tranquilamente e parar quando eu disser, está bem?
Cada um deles segurou sua corda principal e soltou um pouco da tensão no descensor. Eles deslizaram devagar cerca de dois metros e Jean gritou:
– Pare!
– Nada mau – comentou Locke. – A destreza parece voltar depressa, não é?
– Acho que sim. Na verdade, eu passei a não gostar muito disso desde que voltei das minhas pequenas férias na Casa da Revelação. Isso era uma coisa mais sua e dos
Sanzas. E, ah, de Sabeta, claro.
– É – confirmou Locke, pensativo. – É, ela era tão louca... tão louca e tão linda! Eu adorava olhá-la escalar. Ela não gostava de cordas. Ela... tirava as botas
e soltava o cabelo e às vezes nem usava luvas. Só o calção e a blusa... e eu só ficava...
– Sentado ali, hipnotizado. Totalmente pateta. Ei, meus olhos funcionavam naquela época também, Locke.
– É. Acho que devia ser óbvio. Pelos deuses. – Locke encarou Jean e deu um riso nervoso. – Pelo amor dos deuses, eu estou mesmo falando dela. Não acredito. – Sua
expressão ficou astuta. – Estamos bem um com o outro, Jean? Quero dizer, confortáveis na presença um do outro de novo?
– Diabos, estamos pendurados juntos 25 metros acima de uma morte terrível, não é? Não faço isso com pessoas de quem não gosto.
– Bom saber.
– É, eu diria que nós estamos...
– Cavalheiros! Olá aí embaixo!
A voz tinha um sotaque verrari, com um tom áspero e rústico. Locke e Jean olharam para cima, surpresos, e viram um homem parado na beira do penhasco com as mãos
nos quadris, sua silhueta destacada contra o céu agitado. Usava uma capa puída com o capuz levantado.
– Ah... olá aí em cima – disse Locke.
– Belo dia para um pouco de esporte, hein?
– É exatamente o que nós pensamos! – gritou Jean.
– Um belo dia mesmo, com o seu perdão, senhores. E um belo conjunto de casacos e coletes os senhores deixaram aqui em cima. Eu gostei muito deles, mas não têm bolsas.
– Claro que não, não somos idi... Ei, espera aí. Faça a gentileza de não mexer nas nossas coisas – exigiu Jean.
Como se tivessem combinado, ele e Locke estenderam ao mesmo tempo as mãos para se firmar contra o penhasco, encontrando pontos de apoio o mais rápido possível.
– Por que não? São coisas tão elegantes, senhores, que não consigo deixar de me sentir atraído por elas.
– Se o senhor esperar aí – falou Locke, preparando-se para começar a escalar –, um de nós pode subir daqui a alguns minutos e tenho certeza de que poderemos discutir
isso civilizadamente.
– Também me sinto meio atraído pela ideia de manter os dois aí embaixo, se isso não faz diferença para os senhores. – O homem se moveu um pouco e uma machadinha
apareceu em sua mão direita. – E um belo par de machadinhas os senhores deixaram aqui com os casacos. Belíssimo. Nunca vi nada igual.
– O senhor é muito gentil! – gritou Locke.
– Ah, puta que pariu – murmurou Jean.
– Mas eu poderia observar – continuou Locke – que o nosso homem na carruagem deve vir logo verificar como estamos e vai trazer a balestra dele.
– Ah, o senhor quer dizer o cara inconsciente que eu... ahn... acertei na cabeça com uma pedra? Lamento informar que ele estava bêbado.
– Não acredito. Nós não demos tanta cerveja assim para ele!
– Peço perdão, mas ele não era tão homem assim, senhores. Era um cara magricelo. Ele está dormindo. De qualquer forma, não tinha uma balestra. Eu me certifiquei
disso.
– Bom, espero que você não nos culpe por tentar – falou Locke.
– Não culpo, nem um pouquinho. Boa tentativa. Dava para alguém acreditar. Mas estou meio interessado, se não se importam, no paradeiro de suas bolsas.
– Em segurança aqui embaixo conosco – informou Locke. – Nós podemos ser convencidos a entregá-las, mas você teria de nos ajudar a subir se quiser ficar com elas.
– Bom, nesse aspecto o senhor e eu temos uma opinião um pouco diferente. Como sei que os senhores estão com elas, acho mais fácil cortar as cordas e depois pegá-las
com tranquilidade.
– A não ser que você seja um escalador muito melhor do que parece – interveio Jean –, é um baita percurso só para pegar nossas bolsinhas!
– E elas são pequenas – completou Locke. – Nossas bolsas de escalada. Feitas especialmente para não pesar. Não têm quase nada!
– Talvez a gente tenha ideias diferentes sobre o que é quase nada. E eu não teria que escalar. Há caminhos mais fáceis até o fundo do vale se o senhor souber aonde
ir.
– Ah... não seja bobo – replicou Jean. – Essas cordas são de semisseda. Você vai demorar um tempo para cortá-las. Mais do que nós vamos demorar para subir, sem dúvida.
– Provavelmente – falou o homem de capa. – Mas eu ainda vou estar aqui se os senhores subirem, não é? Posso apenas empurrar os dois pela borda e transformar seus
crânios em tigelas de sopa.
– Mas se ficarmos aqui, vamos morrer de qualquer modo, por isso podemos muito bem subir e morrer lutando – retrucou Locke.
– Bom, como quiserem, senhor. Essa conversa toda está ficando meio repetitiva, se não se importam que eu diga, por isso vou começar a cortar a corda. Eu ficaria
parado e quieto se fosse os senhores.
– É, bem, você é um patife miserável! – gritou Locke. – Qualquer criança de 3 anos poderia assassinar homens impotentes pendurados num penhasco. Houve um tempo em
que um bandoleiro tinha bagos para lutar conosco cara a cara e merecer o que ganhava.
– Eu pareço um comerciante honesto, senhor? Tenho tatuagens de guildas nos braços? – Ele se ajoelhou e começou a golpear algo com firmeza, usando a machadinha de
Jean. – Esborrachá-los naquelas pedras lá embaixo parece um bom modo de merecer meu ganho. Ainda mais se vão ficar falando com tão pouca gentileza.
– Você é um canalha! – gritou Locke. – Um capacho, um lixo, condenado não somente pela avareza mas pela covardia! Os deuses cospem nos que não têm honra, sabia?
Vai ser um inferno frio e escuro para você!
– Estou engasgado de tanta honra, senhor. Tenho bastante dela. Guardo bem aqui, entre minha barriga vazia e meu cu branco e franzido, que o senhor pode lamber, aliás.
– Ótimo, ótimo – disse Locke. – Eu só queria ver se você poderia ser instigado a cometer um deslize. Aplaudo seu autocontrole! Mas com certeza há mais vantagem em
nos puxar para cima e cobrar resgate por nós!
– Somos pessoas importantes – completou Jean.
– Com amigos ricos e importantes. Por que não nos manter em cativeiro e mandar uma carta pedindo resgate?
– Bom, para começo de conversa, eu não sei ler nem escrever – replicou o homem.
– Nós ficaríamos felizes em escrever o pedido para você!
– Não vejo como isso daria certo. Os senhores poderiam escrever qualquer coisa que quisessem, não é? Pedir policiais e soldados em vez de ouro, se é que me entendem.
Eu disse que não sei ler, e não que tenho mijo de verme no lugar dos miolos.
– Ei! Espere aí! Pare de cortar! – Jean subiu mais 30 centímetros e firmou a corda no descensor para sustentá-lo. – Pare de cortar! Tenho uma pergunta séria!
– O que é?
– De onde, diabos, você veio?
– De aqui e ali, inicialmente passando pelo útero da minha mãe – respondeu o homem, que continuou cortando.
– Não, quero dizer, você sempre fica vigiando este penhasco esperando escaladores? Parece bastante improvável que eles sejam comuns a ponto de valer a pena ficar
esperando.
– Ah, não são. Nunca vi nenhum antes dos senhores. Fiquei tão curioso que tive de vir dar uma olhada, e não é que fui agraciado? – Chop, chop, chop. – Não, na maior
parte das vezes eu me escondo no mato, às vezes nos morros. Vigio as estradas.
– Sozinho?
– Eu estaria cortando as cordas dos senhores mais depressa se não estivesse sozinho, não é?
– Então você vigia as estradas. Para roubar o quê, carruagens?
– Em geral, sim.
– Você tem um arco ou uma balestra?
– Infelizmente, não. Talvez eu possa comprar uma arma se conseguir ganhar o bastante com as coisas dos senhores.
– Você se esconde no mato sozinho e tenta emboscar carruagens sem uma arma de verdade?
– Bom... – começou o homem, um tanto hesitante – ...já faz um tempo que eu não pego uma. Mas hoje é meu dia de sorte, não é?
– Eu diria que sim. Pelo Guardião Torto, você deve ser o pior salteador de estradas da face da terra – comentou Jean.
– O que o senhor disse?
– Ele disse – explicou Locke – que em sua opinião altamente abalizada você é o...
– Não, a outra parte.
– Ele mencionou o Guardião Torto. Isso significa alguma coisa para você? Somos membros da mesma fraternidade, amigo! O Benfeitor, o Vigia-Ladrões, o Treze Sem Nome,
patrono seu, meu e de quem pega o caminho sinuoso pela vida. Na verdade, somos servidores consagrados do Guardião Torto! Não precisa ter animosidade e não precisa
cortar nossas cordas.
– Ah, preciso, sim – rebateu o sujeito com veemência. – Agora vou mesmo cortar.
– O quê?! Por quê?
– Vocês são as porras de uns hereges malditos! Não existe Treze! Não há nada além dos Doze, essa é a verdade! É, eu já estive umas duas vezes em Verrar, encontrei
rapazes e moças das gangues que tentaram me falar sobre esse Treze. Não aceito isso. Não é como eu fui criado. Então vocês vão para baixo, rapazes!
O homem começou a golpear as cordas de semisseda com violência crescente.
– Merda. – Jean se balançou para perto de Locke e falou com urgência em voz baixa: – Quer tentar prendê-lo nas cordas reserva?
Locke assentiu e, assim como o amigo, segurou uma ponta. Olharam para cima e, ao sinal sussurrado de Jean, puxaram-nas para baixo.
Não foi uma armadilha eficiente: as cordas estavam frouxas e enroladas acima da borda do penhasco. O homem olhou para baixo, deu um pulo e ficou longe enquanto 2
ou 3 metros de cada corda deslizavam pela borda do penhasco.
– Rá! Os senhores terão de chegar aqui em cima antes disso, se não se importam que eu diga!
Assobiando desafinado, ele sumiu de vista e continuou a cortar. Um instante depois, deu um grito de triunfo e a corda reserva de Locke foi lançada. Locke afastou
o rosto no momento em que ela passou por ele; logo ela estava pendurada no ar, a partir de seu cinto, com a ponta esfarrapada ainda muitos metros acima do chão.
– Merda – praguejou Locke. – Certo, Jean, vamos fazer o seguinte. Agora ele deve cortar a minha corda principal. Vamos nos dar os braços. Eu escorrego pela sua corda
principal, amarro o que resta da minha na parte de baixo, e isso deve nos levar provavelmente a uns 6 metros do chão. Se eu puxar meu cabo reserva e amarrá-lo na
ponta dos outros dois, podemos descer até o fundo.
– Depende da velocidade com que esse escroto vai cortar. Você acha que pode dar os nós com rapidez suficiente?
– Acho que não tenho opção. Minhas mãos parecem capazes da tarefa, pelo menos. Mesmo que eu só consiga prender uma corda, 6 metros é uma queda muito melhor do que
24.
Nesse momento, houve uma leve trovoada acima. Locke e Jean olharam para o alto bem no instante de sentir as primeiras gotas de chuva no rosto.
– É possível que isso fosse realmente divertido pra caralho se fosse qualquer outra pessoa, menos nós, nessas cordas – comentou Locke.
– Neste momento, acho que eu preferiria me arriscar com os seus pombos se pudesse. Droga, lamento ter deixado as Irmãs Malvadas lá em cima, Locke.
– Por que, em nome de Venaporta, você iria trazê-las? Não há motivo para se desculpar.
– Se bem que talvez haja outra coisa que eu poderia tentar. Você está com os punhais nas mangas?
– Estou com um, mas na bota. – Agora a chuva caía com bastante força, encharcando as túnicas e molhando as cordas. A roupa leve e a brisa forte faziam parecer que
estava mais frio. – E você?
– Estou com a minha aqui. – Locke viu um clarão de metal brilhante na mão direita de Jean. – A sua é balanceada para atirar, Locke?
– Merda, não. Desculpe.
– Não se preocupe. Então segure a sua, de reserva. E faça uma oração silenciosa. – Jean parou para tirar os ópticos e prendê-los na gola da túnica, depois ergueu
a voz. – Ei! Amante de ovelhas! Uma palavrinha, por favor!
– Achei que a gente tinha acabado com a conversa – respondeu o homem, fora de vista.
– Sem dúvida! Aposto que usar tantas palavras num tempo tão curto faz o seu cérebro parecer um limão espremido, não é? Você não teria inteligência para achar a porra
do chão se eu o jogasse por uma maldita janela! Está ouvindo? Você teria de tirar os sapatos e o calção para contar até 21! Teria de olhar para cima para ver o lado
de baixo de um cocô de barata!
– Ajuda alguma coisa gritar comigo assim? Os senhores deveriam estar rezando para o seu inútil Treze ou algo do tipo, mas o que eu entendo disso? Não sou um dos
seus figurões felantozzis verraris ou sei lá o quê, sou?
– Quer saber por que você não deveria nos matar? Quer saber por que não deveria deixar que a gente batesse no fundo desse vale? – Jean berrava a plenos pulmões,
firmando mais os pés contra o penhasco e levando o braço direito para trás. Trovões ecoavam acima. – Está vendo isso, idiota? Está vendo o que eu tenho nas mãos?
Uma coisa que você só vai ver uma vez na vida! Uma coisa que você nunca vai esquecer.
Após alguns segundos, a cabeça e o tronco do sujeito apareceram na beira do penhasco. Jean soltou um grito enquanto atirava o punhal com toda a força. Ele exultou
ao ver a arma acertar o rosto do atormentador... mas então gemeu, frustrado, pois ela ricocheteou: tinha batido com o cabo.
– Porra de chuva!
Pelo menos o bandoleiro estava sentindo muita dor. Ele gemeu e apertou o rosto, cambaleando para a frente. Uma bela pancada no olho? Jean esperava fervorosamente
que sim – talvez ainda tivesse alguns segundos para tentar de novo.
– Locke, seu punhal, depressa!
Locke estava estendendo a mão para a bota direita quando o homem abriu os braços, instável, se desequilibrou e tombou gritando penhasco abaixo. Segurou o cabo principal
de Locke com uma das mãos e bateu no descensor de ferro preso ao cinto. O choque afastou as pernas de Locke do penhasco e arrancou o ar de seus pulmões e, por um
segundo, ele e o bandoleiro estavam em queda livre, sacudindo-se e gritando num emaranhado de braços e pernas, sem pressão adequada da corda no descensor.
Esforçando-se ao máximo, Locke enrolou a mão esquerda no lado livre do cabo e puxou com força, aplicando tensão suficiente para os dois estacarem. Balançaram juntos
contra a face do penhasco, o bandido recebendo a maior parte do impacto, e ficaram pendurados numa luta confusa de membros enquanto Locke se esforçava para respirar
e entender o mundo. O homem chutava e gritava.
– Para com isso, seu imbecil da porra!
Pareciam ter caído mais ou menos 5 metros; Jean desceu rapidamente até o lado deles e estendeu uma das mãos para agarrar o sujeito pelo cabelo. Locke pôde ver que
o homem era acinzentado feito um cão mal alimentado, com cerca de 40 anos, cabelo comprido e oleoso e uma barba grisalha tão rala quanto o capim da borda do penhasco.
O olho esquerdo estava se fechando, inchado.
– Pare de chutar, idiota! Fique parado!
– Ah, pelos deuses, por favor, não me largue! Por favor, não me mate, senhor!
– Por que não, porra?
Locke gemeu, firmou os calcanhares no penhasco e conseguiu alcançar a bota direita. Colocou o punhal no pescoço do bandido e os chutes de pânico dele viraram um
tremor aterrorizado.
– Está vendo isto? – sussurrou Locke. O homem assentiu. – É um punhal. Isto existe na porra do lugar de onde você veio? – O homem voltou a assentir. – Então você
sabe que eu posso rasgá-lo agora e deixar você cair, certo?
– Por favor, por favor, não...
– Cale a boca e ouça. Esse cabo único em que você e eu estamos pendurados agora... Único, solitário, sozinho! Será que era esse cabo que você estava cortando lá
em cima?
O homem aquiesceu vigorosamente, com o olho bom arregalado.
– Não é esplêndido? Bom, se o choque da sua queda não o arrebentou, talvez estejamos seguros por mais um tempinho. – Uma luz branca relampejou em algum lugar acima
deles e o trovão soou, mais alto do que antes. – Se bem que eu já estive muito mais confortável. Portanto, não chute. Não se sacuda. Não lute. E não faça nenhuma
porra idiota. Entendeu?
– Ah, não, senhor, ah, por favor...
– Cala a boca logo.
– Loc... é, Leocanto – chamou Jean. – Acho que esse cara merece umas aulas de voo.
– Estou achando a mesma coisa. Mas que os ladrões prosperem, não é, Jerome? Me ajude a puxar esse sacana lá para cima de algum modo.
– Ah, obrigado, obriga...
– Sabe por que estou fazendo isso, seu palhaço silvestre imbecil?
– Não, mas eu...
– Cala a boca. Qual é o seu nome?
– Trav!
– Trav do quê?
– Nunca tive sobrenome, senhor. Só Trav de Vo Sarmara.
– E você é ladrão? Salteador de estrada?
– É, é, sou...
– Nada mais? Faz algum trabalho honesto?
– É... não, não, já faz um bom tempo...
– Ótimo. Então somos mais ou menos irmãos. Olha, meu amigo fedorento, a coisa que você precisa entender é que existe um Treze. Ele tem um sacerdócio e eu sou um
dos sacerdotes dele, entendeu?
– Se o senhor diz...
– Cala a boca. Não quero que você concorde comigo, mas que use a noz que está no lugar do seu cérebro antes que o esquilo venha procurá-la de novo. Estou com uma
lâmina no seu pescoço, nós estamos a 25 metros do chão, está caindo uma bela chuva e você acabou de tentar me assassinar. Eu teria todo o direito de lhe dar um sorriso
vermelho de orelha a orelha e fazer você voar. Você concordaria com isso?
– Ah, provavelmente, senhor, pelos deuses, sinto muito...
– Quieto agora, meu querido imbecil. Então você admite que eu tenho um motivo bem forte para não me satisfazer com sua morte?
– Eu, ahn... acho que sim!
– Eu sou sacerdote do Guardião Torto, como disse. Juramentado ao serviço e às ordens do deus da nossa classe. Parece um desperdício cuspir na cara do deus que cuida
de você e dos seus, não é? Até porque não tenho muita certeza de que venho agindo da forma correta recentemente.
– Ahn...
– Eu deveria matar você. Em vez disso, vou tentar salvar sua vida. Só quero que você pense nisso. Ainda pareço um herege para você?
– Ah... ah, pelo amor dos deuses, não consigo pensar direito...
– Bom, não há nada incomum nisso, aposto. Lembre-se do que eu falei. Não se sacuda, não chute, não grite. E se você tentar lutar, mesmo que só um pouquinho de nada,
nosso acordo acabou. Passe os braços em volta do meu peito e cale a boca. Nós estamos muito, muito longe da segurança.
2
Por insistência de Locke, Jean subiu primeiro, escalando a face escorregadia do penhasco mais ou menos na metade de sua velocidade usual. Em cima, desamarrou rapidamente
seu cabo reserva do cinto e passou-o a Locke e seu passageiro trêmulo. Em seguida, tirou seu arnês e baixou a corda principal pela borda do precipício até que ela
também estivesse ao lado dos dois. Eles não pareciam confortáveis, mas com três cabos bons ao alcance, pelo menos estavam um pouquinho mais seguros.
Jean pegou seu casaco do chão e o vestiu, sentindo-se grato por se cobrir, mesmo que a vestimenta estivesse tão encharcada quanto ele próprio. Pensou depressa. Trav
dava a impressão de ser um sujeito bastante desprovido de carne e Locke era leve... sem dúvida não pesavam juntos mais de 140 quilos. Jean tinha certeza de que poderia
levantar esse peso até o peito, talvez até acima da cabeça. Mas na chuva, com tanta coisa em jogo?
Seus pensamentos se voltaram para a carruagem, a quase 400 metros dali através da floresta. Um cavalo seria um grande auxílio, mas o tempo demandado e o problema
de desatrelar, acalmar e guiar o animal cujo dono fora deixado inconsciente...
– Foda-se – praguejou, e voltou para a beira do penhasco. – Leocanto!
– Ainda estou aqui, como você deve ter adivinhado.
– Vocês dois podem prender uma das minhas cordas no seu cinto?
Houve uma breve conversa em voz baixa entre Locke e Trav.
– Vamos dar um jeito! – gritou Locke. – O que você tem em mente?
– Faça o idiota se agarrar firme a você. Apoie bem os braços e as pernas no penhasco assim que tiverem se amarrado a um dos meus cabos. Vou começar a puxar com toda
a força, mas tenho certeza de que sua ajuda não vai fazer mal.
– Certo. Você o ouviu, Trav. Vamos dar um nó. Veja bem onde põe as mãos.
Quando Locke ergueu os olhos e fez o sinal particular de mão que significava vá em frente, Jean assentiu. A corda presa era o antigo cabo reserva de Jean; ele segurou-o
logo antes do rolo que estava no chão molhado e franziu a testa. O chão lamacento deixaria as coisas mais interessantes do que já estavam, mas não havia outra saída.
Deu uma laçada na corda, colocou-a ao redor de si e deixou-a deslizar, apertando-se em volta da cintura. Inclinou-se para trás, para longe do penhasco, com uma das
mãos na corda à frente e a outra atrás, e pigarreou.
– Estão cansados de ficar pendurados ou devo deixá-los mais alguns minutos aí embaixo?
– Jerome, se eu tiver de segurar o Trav aqui no colo mais um segundo do que for absolutamente necessário, vou...
– Então subam!
Jean firmou os calcanhares no chão, inclinou-se ainda mais para trás e começou a puxar a corda. Maldição, ele era um homem poderoso, com uma força incomum, mas por
que sempre surgiam momentos para lembrá-lo de que poderia ser mais forte ainda? Estivera amolecendo; não havia outra palavra para isso. Deveria arranjar alguns caixotes,
enchê-los de pedras e levantá-los algumas vezes, como fazia na juventude... Cacete, será que a corda iria se mexer?
Finalmente, após um longo e desconfortável intervalo, Jean conseguiu dar um passo lento atrás. E depois outro... e outro. Hesitando, com uma ardência que coçava,
subindo de forma constante pelos músculos das coxas, fez seu melhor papel de cavalo de arado, abrindo sulcos fundos na lama cinza e arenosa. Por fim, um par de mãos
apareceu na borda do penhasco e, numa torrente de gritos e palavrões, Trav puxou-se para cima e rolou de costas, ofegando. Imediatamente, a tensão sobre Jean diminuiu;
ele manteve o nível anterior de esforço e, em pouco tempo, Locke surgiu. Ele se levantou com dificuldade, foi até Trav e chutou a barriga do aspirante a bandoleiro.
– Seu jumento da porra! De todos os idiotas desgraçados... Seria muito difícil dizer “Vou baixar uma corda, amarrem as bolsas nela e mandem para cima, caso contrário
não deixo vocês subirem de volta”? Você não avisa às malditas vítimas que vai matá-las! Primeiro você banca o razoável e, quando está com o dinheiro, sai correndo!
– Ah... ai! Pelos deuses, por favor. Ai! O senhor falou que... não ia me matar!
– E é verdade. Não vou matar, seu pateta com cérebro de repolho, só vou chutar você até que eu pare de achar bom!
– Ai! Aaagh! Por favor! Aaaaiii!
– Devo dizer que ainda está bem fascinante.
– Aiiiah! Au!
– Ainda estou me divertindo.
– Uuuuf! Agh!
Por fim, Locke parou de golpear o infeliz verrari, desafivelou o cinto do arnês e o largou na lama. Jean, ofegante, aproximou-se e lhe entregou seu casaco ensopado.
– Obrigado, Jerome. – Ter o casaco de volta, mesmo encharcado, pareceu resgatar um pouco da dignidade ferida de Locke. – Quanto a você, Trav... Trav de Vo Sarmara,
foi o que você disse?
– Foi! Ah, por favor, não me chute de novo...
– Olhe aqui, Trav. Você vai fazer o seguinte. Primeiro: não conte a ninguém sobre isso. Segundo: não chegue perto de Tal Verrar. Entendeu?
– Eu não estava mesmo planejando fazer isso, senhor.
– Ótimo. Aqui. – Locke enfiou a mão na bota esquerda e tirou uma bolsa bem delgada. Jogou-a no chão ao lado de Trav, onde ela bateu com um tilintar. – Deve haver
10 volanis aí dentro. Um bom bocado de prata. E você pode... Espere um minuto, você tem certeza absoluta de que nosso cocheiro ainda está vivo?
– Ah, pelos deuses, está! É a mais pura verdade, mestre Leocanto, ele estava respirando e gemendo depois que eu o acertei, estava, sim.
– Tanto melhor para você, então. Pode ficar com a prata que está nessa bolsa. Quando Jerome e eu tivermos ido embora, você pode voltar e pegar o que tivermos deixado.
Meu colete e parte dessa corda, com certeza. E ouça com muita atenção. Eu salvei sua vida hoje, mas poderia tê-lo matado num piscar de olhos. Parece certo?
– É, sim, o senhor fez isso, e eu sou muito...
– Cala a boca. Um dia, Trav de Vo Sarmara, talvez eu esteja por aí e precise de alguma coisa. Informação. Um guia. Um guarda-costas. Que o Treze me ajude se for
a você que eu tiver de pedir, mas se alguém chegar perto de você e sussurrar o nome de Leocanto Kosta, você se vire para fazer o que a pessoa mandou, ouviu?
– Ouvi!
– Jura diante dos deuses?
– Pelos meus lábios, pelo coração, diante dos deuses, ou que eu caia morto e seja mal pesado na balança da Senhora do Longo Silêncio.
– Está bom. Lembre-se disso. Agora suma na direção que escolher, desde que não seja de volta para a nossa carruagem.
Jean e Locke olharam-no se afastar atabalhoadamente por um ou dois minutos até que tivesse sumido de vista por trás das cortinas cinzentas do aguaceiro.
– Bom, acho que é treino suficiente por um dia, não é? – indagou Jean.
– Sem dúvida. O serviço na Agulha do Pecado vai ser a porcaria de um baile comparado com isso. O que acha de pegarmos os dois rolos de corda que sobraram e ir para
a carruagem? Vamos deixar o Trav passar o resto da tarde aqui, desatando nós.
– Um belo plano. – Jean inspecionou as Irmãs Malvadas, recuperadas da beira do penhasco, e deu um tapinha possessivo nas lâminas antes de enfiá-las no bolso do casaco.
– Pronto, queridas. Aquele jumento deve ter cegado vocês um pouco, mas logo vou amolar as duas outra vez.
– É difícil acreditar... Quase fomos assassinados por um caipira imbecil comedor de lama. Sabe, acredito que é a primeira vez, desde Vel Virazzo, que alguém tenta
matar um de nós.
– Parece que é mesmo. Dezoito meses? – Jean passou um rolo de corda molhada em volta do ombro e entregou o outro a Locke. Juntos, viraram-se e começaram a voltar
pela floresta. – É bom saber que certas coisas nunca mudam, não é?

 

 

 


CONTINUA