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MARES DE SANGUE
MARES DE SANGUE

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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CAPÍTULO SEIS
Uma questão de equilíbrio
1
– Quem quer que tenha colocado aqueles assassinos lá obviamente sabia que nós usávamos aquele caminho para voltar ao Savrola – disse Locke.
– O que não quer dizer muita coisa, pois nós usamos as docas com frequência. Qualquer um poderia ter nos visto e ficado lá esperando. – Jean tomou um gole de café
e passou uma das mãos preguiçosamente na velha capa de couro do livrinho que havia trazido para o desjejum. – Talvez durante várias noites. Não seria necessário
nenhum conhecimento ou recurso especial.
O Claustro de Ouro estava ainda mais silencioso do que o usual às sete da manhã daquele Dia do Trono. A maioria dos farristas e comerciantes que formavam a clientela
devia ter ficado acordada até tarde nos Degraus de Ouro e demoraria várias horas para se levantar. Segundo um consentimento não verbalizado, naquela manhã o desjejum
de Locke e Jean era projetado para um mordiscar nervoso: filés frios de carne de tubarão em conserva com limão, pão preto e manteiga, algum tipo de peixe amarronzado
cozido em suco de laranja, e café – o maior bule de cerâmica que a garçonete pôde trazer para a mesa. Os dois ladrões ainda estavam com dificuldade para se ajustar
à súbita reviravolta em suas noites e dias.
– A não ser que os Magos-Servidores tenham dado a dica a outro grupo sobre nossa presença aqui em Tal Verrar – continuou Locke. – Eles podiam até estar ajudando-os.
– Se os Magos-Servidores estivessem ajudando aqueles dois no cais, você acha mesmo que teríamos sobrevivido? Qual é. Nós dois sabíamos que eles provavelmente viriam
atrás de nós por causa do que fizemos com o Falcoeiro e, se nos quisessem mortos, já seríamos agora carne defumada. Stragos está certo com relação a uma coisa: sem
dúvida eles querem brincar conosco. Por isso, ainda acho mais provável que uma terceira pessoa tenha se ofendido com algo que fizemos como mestres Kosta e De Ferra.
Isso torna Durenna, Corvaleur e Landreval os suspeitos óbvios.
– Landreval já foi embora há meses.
– Isso não o descarta por completo. As belas damas, então.
– Eu só... Para mim, elas viriam pessoalmente atrás de nós. Durenna tem boa reputação no manejo da espada e ouvi dizer que Corvaleur já esteve em alguns duelos.
Talvez elas contratassem alguma ajuda, mas são do tipo que põe a mão na massa.
– Nós incomodamos alguém importante no jogo de Alianças Cegas? Ou em algum outro jogo enquanto subíamos de nível? Pisamos nos calos de alguém? Peidamos alto?
– Não acredito que deixamos de perceber alguém descontente a ponto de contratar assassinos. Ninguém gosta de perder no jogo de cartas, mas algum perdedor bastante
incomodado lhe vem à memória?
Jean fez uma careta e tomou um gole de café.
– Até sabermos mais, essa especulação é inútil. Todo mundo na cidade é suspeito. Diabos, todo mundo no planeta.
– Então, na verdade só sabemos que, independentemente de quem seja, queria que fôssemos mortos. Não desejava dar um susto nem bater um papo. Apenas matar. Talvez,
se pudermos pensar nisso, consigamos encontrar alguns...
Locke parou de falar no instante que viu a garçonete se aproximando do reservado... depois olhou com mais atenção e percebeu que não era a garçonete deles. A mulher
com avental de couro e gorro vermelho era Merrane.
– Ah – fez Jean. – Hora de pagar a conta.
Merrane assentiu e entregou a Locke uma tabuleta de madeira com dois pedacinhos de papel presos. Um era de fato a conta; o outro tinha uma única linha escrita em
letras floreadas: Lembram-se do primeiro lugar aonde os levei? Não percam tempo.
– Bom – Locke entregou o bilhete a Jean –, adoraríamos ficar, mas a qualidade do serviço caiu demais. Não espere gorjeta. – Ele colocou moedas de cobre sobre a tabuleta
de madeira e se levantou. – O mesmo velho lugar de sempre, Jerome.
Merrane recolheu a tabuleta e o dinheiro, fez uma reverência e sumiu na direção da cozinha.
– Espero que ela não se ofenda com a gorjeta – disse Jean quando estavam na rua.
Locke olhou ao redor, em todas as direções, e notou que Jean fazia o mesmo. Os punhais na manga de Locke eram um peso reconfortante dentro de cada manga do casaco
e ele não tinha dúvida de que Jean estava preparado para pegar as Irmãs Malvadas com um movimento brusco dos pulsos.
– Deuses – murmurou Locke. – Deveríamos dormir o dia todo. Será que já estivemos menos no controle da nossa vida do que agora? Não podemos fugir do Arconte e do
veneno dele, o que significa que não podemos simplesmente abandonar o golpe na Agulha do Pecado. Os deuses sabem que nem podemos ver os Magos-Servidores espreitando
e, de repente, temos assassinos saindo pelo cu. Sabe de uma coisa? Eu apostaria que, contando as pessoas que estão nos seguindo e as que estão nos caçando, nós viramos
o principal meio de emprego desta cidade. Toda a economia de Tal Verrar está baseada agora em foder com a gente.
Foi uma caminhada curta, ainda que nervosa, até a encruzilhada logo ao norte do Claustro de Ouro. Carroças de carga chacoalhavam pela rua e comerciantes caminhavam
placidamente rumo ao trabalho. Para eles, pensou Locke, o Savrola era o bairro mais calmo e mais bem-guardado da cidade, um lugar onde nada mais do que um ocasional
estrangeiro bêbado perturbava a calma.
Na encruzilhada, Locke e Jean viraram à esquerda e se aproximaram da porta da primeira loja inativa à direita. Enquanto Jean ficava de olho na rua atrás deles, Locke
foi até a porta e bateu com força três vezes. Ela se abriu de imediato e um rapaz atarracado, com casaco de couro marrom, os fez entrar.
– Fiquem longe da janela – ordenou ele assim que havia fechado e trancado a porta atrás dos dois.
A janela estava coberta por cortinas de pano de vela esticadas, mas Locke concordou que não havia necessidade de dar chance ao azar. A única luz no cômodo vinha
do sol nascente, filtrada em rosa suave através da cortina, permitindo que Locke visse dois pares de homens esperando nos fundos da loja. Cada dupla consistia de
um homem robusto, de ombros largos, e um menor, e os quatro estranhos usavam capas cinza idênticas e chapéus cinza de abas largas.
– Vistam-se – mandou o homem com casaco de couro, apontando para uma pilha de roupas numa mesa menor.
Num instante, Locke e Jean estavam colocando capas e chapéus iguais aos dos outros.
– Nova moda de verão em Tal Verrar? – perguntou Locke.
– Um truquezinho para qualquer um que tente seguir vocês – respondeu o homem. Em seguida, estalou os dedos e uma dupla de estranhos de cinza moveu-se para ficar
atrás da porta. – Eu vou primeiro. Vocês fiquem atrás desses dois, sigam-nos, depois entrem na terceira carruagem. Entenderam?
– Que carru... – começou a dizer Locke, mas interrompeu-se ao ouvir o som de cascos e rodas na rua do lado de fora. Sombras passaram diante da janela e o homem de
casaco marrom destrancou a porta.
– Terceira carruagem. Andem rápido – ordenou sem se virar, abriu a porta e saiu para a rua.
Junto ao meio-fio, três carruagens idênticas estavam enfileiradas. Todas eram de madeira preta laqueada sem brasões ou estandartes que as identificassem, tinham
cortinas pesadas sobre as janelas e eram puxadas por dois cavalos pretos. Até os cocheiros pareciam vagamente semelhantes e usavam os mesmos uniformes avermelhados
por baixo de sobretudos de couro.
O primeiro par de estranhos de cinza saiu pela porta e foi às pressas para a primeira carruagem da fila. Locke e Jean deixaram o prédio um segundo depois, andando
rápido até a última. Locke captou um vislumbre da última dupla de cinza praticamente correndo para o veículo do meio. Jean abriu o trinco da porta da carruagem de
trás, manteve-a aberta para Locke e se jogou dentro em seguida.
– Bem-vindos a bordo, senhores.
Merrane estava à vontade no canto direito da frente do compartimento, tendo abandonado a roupa de garçonete. Agora se vestia como se fosse cavalgar numa sela aberta,
com botas de montaria, calções pretos, uma camisa de seda vermelha e colete de couro. Locke e Jean se acomodaram lado a lado no banco diante dela. Quando Jean bateu
a porta, ficaram na penumbra e a carruagem começou a se mover.
– Aonde, diabos, nós vamos? – questionou Locke, começando a tirar a capa cinza.
– Fique como está, mestre Kosta. O senhor vai precisar dela lá fora. Primeiro, vamos circular um pouco pelo Savrola. Depois, vamos nos separar, uma carruagem para
os Degraus de Ouro, uma para o limite norte da Grande Galeria, e nós vamos para o cais pegar um barco.
– Um barco para onde?
– Não seja impaciente. Recoste-se e aproveite o passeio.
Algo difícil de fazer, para dizer o mínimo, no compartimento quente e abafado. Locke sentiu o suor escorrendo pela testa e, carrancudo, tirou o chapéu e segurou-o
no colo. Ele e Jean bombardearam Merrane com perguntas, mas ela respondia apenas “hummmm”, que nada significava, até que eles desistiram. Passaram-se minutos de
tédio. Locke sentiu a carruagem virando em várias esquinas, então descendo uma série de ladeiras que deviam ser as rampas das partes mais altas do Savrola que davam
nas docas ao nível do mar.
– Estamos quase chegando – avisou Merrane após mais alguns minutos de silêncio desconfortável e sacolejante. – Ponham os chapéus de novo. Quando a carruagem parar,
vão direto para o barco. Sentem-se na parte de trás e, pelo amor dos deuses, caso virem algo perigoso, abaixem-se.
Fiel à palavra dela, a carruagem parou apenas alguns segundos depois. Locke colocou de volta o chapéu, tateou em busca do mecanismo da porta e a abriu, estreitando
os olhos para a luz forte da manhã.
– Para fora – mandou Merrane. – Não percam tempo.
Estavam nas docas interiores na ponta nordeste do Savrola, com uma parede íngreme de Vidrantigo preto atrás deles e dezenas de navios ancorados na água luzidia e
agitada à frente. Havia um barco amarrado ao píer mais próximo, um escaler esguio, de cerca de 12 metros, com uma galeria alta e fechada na popa. Duas filas de remadores,
cinco de cada lado, o ocupavam.
Locke desceu da carruagem e passou por dois homens alertas usando capas tão pesadas quanto a dele, muito inadequadas para o clima. Estavam parados praticamente em
posição de sentido, sem relaxar, e Locke captou um vislumbre de um punho de espada mal escondido sob uma capa.
Quase correu pela prancha frágil do barco, saltou para dentro e se jogou no banco na parte de trás da galeria de passageiros. Felizmente, ela só era fechada em três
lados; uma visão razoável frontal, naquela próxima viagem, seria muitíssimo melhor do que outro passeio dentro de uma caixa escura. Jean vinha logo atrás, mas Merrane
virou à direita, passou pelo grupo de remadores e sentou-se na posição do timoneiro, junto à proa.
Os soldados no cais logo tiraram a prancha, desamarraram o barco e deram-lhe um bom empurrão para longe com as pernas.
– Remem – ordenou Merrane, e os homens partiram para a ação.
Em pouco tempo, o barco estalava com o ritmo constante dos remos e cortava as ondas pequenas do porto de Tal Verrar.
Locke aproveitou a oportunidade para examinar os homens e mulheres aos remos: eram todos esguios e musculosos, com o cabelo cortado bem curto, a maioria com cicatrizes
bastante visíveis. Nenhum parecia ter menos de 35 anos. Então eram soldados veteranos. Talvez até mesmo Olhos, sem as máscaras e capas.
– Devo dizer que o pessoal do Stragos tem um bom nível de produção – comentou Jean, e acrescentou, levantando a voz: – Ei! Merrane! Já podemos tirar essa roupa ridícula?
Ela se virou apenas o suficiente para assentir, depois voltou a atenção para as águas do porto. Locke e Jean tiraram ansiosos os chapéus e as capas e os amontoaram
no piso, junto aos pés.
Locke achou que o passeio demorou cerca de vinte minutos. Teria preferido estar livre para estudar o porto em todas as direções, mas o que podia ver pela frente
aberta da galeria revelava o suficiente. Primeiro, foram para o sudoeste, seguindo a curva do cais interior, passando pela Grande Galeria e os Degraus de Ouro. Depois
viraram para o sul, deixando o mar aberto à direita, e aceleraram na direção de uma enorme ilha em forma de crescente, mais ou menos do tamanho da que abrigava a
Agulha do Pecado.
O crescente sudoeste de Tal Verrar não era escalonado: mais parecia uma colina naturalmente irregular, cravejada com torres e fortificações de pedra. O enorme cais
de pedra e as compridas docas de madeira na ponta noroeste abrigavam a Marina de Prata, onde embarcações comerciais podiam atracar para reparos e reformas. Depois
dela, além das formas bamboleantes de velhos galeões esperando novos mastros ou velas, ficava uma série de muros altos e cinza que formavam baías fechadas. No topo
dele, havia torres redondas, em que podiam ser vistas os vultos de catapultas e soldados em patrulha. A proa do barco apontou para o mais próximo desses enormes
recintos de pedra.
– Não é possível – disse Jean. – Acho que estão nos levando para a Marina da Espada.
2
À medida que o barco se aproximava, gritos soaram nas ameias das vastas muralhas da baía artificial e o som de correntes pesadas ecoou nas pedras e na água. As duas
enormes portas da entrada giraram lentamente para dentro, provocando uma pequena onda diante deles. Locke tentou avaliar o tamanho de tudo que estava vendo; a abertura
devia ter de 20 a 25 metros de largura e a madeira do portão era grossa como o tronco de um homem mediano.
Merrane gritou instruções para os remadores e eles conduziram o barco com cuidado, deslizando suavemente até um pequeno cais de madeira, onde um homem esperava para
recebê-los. A embarcação fora posicionada formando um ângulo com o cais, logo o casco no trecho entre os remadores e a galeria mal raspava a terra firme.
– É a sua parada, senhores – avisou Merrane. – Não há tempo para atracar, infelizmente. Sejam ágeis ou se molhem.
– A senhora é a gentileza em pessoa, madame – disse Locke. – Abandonei qualquer pesar que restasse por não ter lhe dado uma gorjeta.
Ele saiu da galeria e foi até a amurada à direita. O estranho esperava com um braço estendido para ajudá-lo. Locke saltou para o cais com facilidade, ajudado pelo
homem, e os dois, por sua vez, puxaram Jean.
Os remadores afastaram o barco imediatamente; Locke o observou se afastar. Correntes chacoalharam de novo e a água borbulhou à medida que os portões se fechavam.
Locke olhou para cima e viu que grupos de homens giravam enormes cabrestantes de cada lado do porão da baía.
– Bem-vindos – falou o homem que os auxiliara no desembarque. – Bem-vindos à aventura mais idiota de que já ouvi falar, quanto mais de que fui obrigado a fazer parte.
Não consigo imaginar de quem era a mulher que vocês comeram para serem postos numa missão tão suicida, senhores.
O homem poderia ter qualquer idade entre 50 e 60 anos; seu peito era parecido com um toco de árvore e a barriga pendia por cima do cinto como se ele estivesse tentando
esconder um saco de grãos embaixo da túnica. Mas seus braços e o pescoço eram quase esqueléticos de tão magros, tomados por veias saltadas e as cicatrizes de uma
vida dura. Tinha rosto redondo, barba branca e lanosa e cabelos brancos e oleosos que caíam como uma cachoeira. Os olhos escuros eram aninhados em bolsões de rugas
sob um franzido permanente na testa.
– Poderia ser uma diversão agradável se soubéssemos aonde iríamos parar, afinal – falou Jean. – Quem é você?
– Meu nome é Caldris. Mestre de navio sem navio. Vocês dois devem ser os mestres De Ferra e Kosta.
– Devemos ser – respondeu Locke.
– Deixe-me mostrar o lugar. Não tem muita coisa para ver agora, aliás, não costuma ter muita coisa mesmo.
Ele foi até uma escada precária na parte traseira do cais, que dava numa praça de pedra a no máximo 1,5 metro acima da água. Toda a baía artificial, percebeu Locke,
era um quadrado com cerca de 90 metros de lado. Muros a cercavam em três lados e, na parte de trás, erguia-se a íngreme colina de vidro da ilha, de onde se projetavam
plataformas. Havia várias estruturas construídas ali, provavelmente depósitos, armarias e coisas do tipo.
A reluzente vastidão de água ladeando a praça, agora isolada outra vez do porto pelos portões de madeira, tinha tamanho suficiente para abrigar vários navios de
guerra, portanto Locke ficou surpreso ao ver apenas uma embarcação atracada. Um esquife de um mastro, com apenas 4 metros de comprimento, balançava suavemente.
– Tremenda baía para um barco pequeno – comentou.
– Bom, os ignorantes precisam de espaço para arriscar a vida sem incomodar ninguém por um tempo – explicou Caldris. – Isso aqui é nosso poço particular para mijar.
Não se preocupem com os soldados nos muros; eles vão nos ignorar. A não ser que nós nos afoguemos. Então, talvez eles riam.
– Exatamente o que você acha que estamos fazendo aqui, Caldris? – perguntou Locke.
– Tenho cerca de um mês para transformar dois homens de terra ignorantes, de pernas tortas e dedos desajeitados, em algo que se pareça com oficiais-marinheiros.
Com todos os deuses como testemunhas, senhores, suspeito que tudo isso vai terminar em gritos e afogamento.
– Eu poderia me ofender se não soubesse que cada coisa de que você nos chamou é verdadeira – comentou Locke. – Nós dissemos ao Stragos que não sabíamos porcaria
nenhuma sobre navegação.
– Mas ainda assim o Protetor parece bastante decidido a mandá-los para o mar. Isso não faz sentido.
– Há quanto tempo você está na marinha dele? – perguntou Jean.
– Fiquei no mar durante 45 anos, talvez. Na marinha verrari antes mesmo de existirem Arcontes; estive na Guerra dos Mil Dias, nas antigas batalhas contra Jerem,
na guerra contra a Armada dos Ventos Fantasmas... Vi um monte de merda, senhores. Achei que tinha fechado o ciclo... Fui mestre de navegação das embarcações do Arconte
por vinte anos. O pagamento era bom. Até estava prestes a comprar uma casa, ou pelo menos achei que estava. Antes desta merda. Sem querer ofender.
– Não tem problema – garantiu Locke. – Essa é uma espécie de tarefa-castigo?
– Ah, é castigo, sim, Kosta. É castigo, sem dúvida. Só não houve crime que o justificasse. O Arconte me pôs como voluntário. Que eu me foda, mas foi isso que toda
a minha lealdade rendeu. Isso e uma provinha do vinho do Arconte, para eu não desistir ou abandonar vocês. Vinho envenenado. Do tipo de veneno que espera para agir.
Se eu levar vocês para o mar, sobreviver a todo este absurdo, recebo o antídoto. Talvez minha casa, se tiver sorte.
– O Arconte deu vinho envenenado para você? – indagou Locke.
– Eu não sabia que estava envenenado, obviamente. O que eu deveria fazer? – Caldris cuspiu. – Não beber, porra?
– Claro que não – respondeu Locke. – Estamos no mesmo barco, amigo. Só que conosco foi cidra. Estávamos com uma sede infernal.
– Ah, verdade? – Caldris ficou boquiaberto. – Rá! Estou fodido! E eu aqui pensando que era o maior idiota de todo o Mar de Bronze. E eu aqui pensando que era o velho
mais imbecil, inútil, cego... ah...
Ele notou o olhar irado que Locke e Jean lhe lançavam e tossiu alto.
– O que quer dizer, senhores, que o sofrimento adora companhia e posso ver que todos vamos ficar bem entusiasmados com essa missão do tipo “faça ou morra”.
– Certo. Então, ah, diga – pediu Jean. – Exatamente como vamos seguir adiante?
– Bom, primeiro acho que conversamos, depois acho que navegamos. Eu tenho algumas coisas a dizer antes de desafiar os deuses, por isso abram os ouvidos. Em primeiro
lugar, é preciso dizer que demora cerca de cinco anos para transformar um homem de terra num marinheiro razoavelmente digno. De dez a quinze para fazer dele um oficial-marinheiro
razoavelmente digno. Então entendam, porra: vocês não terão nem metade da decência de oficiais-marinheiros verdadeiros. Vou torná-los impostores. Vou fazer com que
vocês não fiquem embaraçados ao falar sobre cordas e lonas perto de marinheiros autênticos, apenas isso. Talvez, vejam bem, talvez seja isso que eu consiga fazer
em um mês. Assim, os dois poderão fingir que dão ordens quando, na verdade, irão recebê-las de mim. E recebê-las muito bem.
– É justo – disse Locke. – Sinceramente, quanto mais você estiver no controle, mais à vontade nós vamos ficar.
– Só não quero que vocês decidam que são heróis que aprenderam o negócio inteiro e comecem a mexer nas velas, no equilíbrio e no rumo sem minha autorização. Façam
isso e todos vamos morrer, tão depressa quanto uma foda de 1 cobre num bordel de uma puta só. Espero que isso esteja claro.
– Não devemos nos meter a fazer o que não sabemos – resumiu Jean. – Mas onde, diabos, está esse navio em que nunca, jamais, ousaremos fazer algo assim?
– Por aí – respondeu Caldris. – Recebendo o acabamento em outra baía, só para ajudá-lo a ficar inteiro. Por enquanto essa é a única embarcação que vocês têm condições
de ocupar. – Ele apontou para o esquife. – É nele que vou ensinar a vocês.
– O que essa coisinha tem a ver com um navio de verdade? – indagou Locke.
– Foi nessa coisinha que eu aprendi, Kosta. É nessa coisinha que qualquer oficial-marinheiro começa. É como a gente absorve o básico: casco, vento e água. Se você
souber dessas coisas num barco, pode pensar nelas num navio. Portanto, tirem os casacos, os coletes e essa merda chique. Deixem para trás tudo que não queiram que
se molhe. Botas também. Vocês vão fazer tudo descalços.
Assim que Locke e Jean haviam se despido até ficar só com as túnicas e os calções, Caldris levou-os a um grande cesto coberto que estava nas pedras perto do esquife
atracado. Tirou a tampa, enfiou a mão e pegou uma gata viva.
– Olá, sua pequena monstruosidade necessária.
– Mrrrrauuuuuu – fez a pequena monstruosidade necessária.
– Kosta. – Caldris colocou o animal se retorcendo nos braços de Locke. – Cuide dela por alguns minutos.
– Ah... por que você mantém uma gata nesse cesto?
A gatinha, insatisfeita com os braços de Locke, decidiu enrolar as patas no pescoço dele e testá-lo com as garras.
– Quando a gente vai para o mar, existem duas necessidades, para dar sorte. Primeiro, vocês estão cortejando um destino medonho se levarem um barco ao mar sem pelo
menos uma oficial, uma mulher. É a lei do Senhor das Águas Revoltas. Seu mandamento. Ele tem uma fixação pelas filhas da terra; esmaga qualquer navio que singre
sem levar pelo menos uma a bordo. Além disso, é simplesmente bom senso. Elas são boas oficiais. Como marinheiras são decentes, mas são oficiais melhores do que vocês
e eu. Foi assim que os deuses as fizeram.
Ele fez uma pausa.
– Segundo, é um tremendo azar partir sem ter gatos a bordo. Não só porque eles matam os ratos, mas porque são as criaturas mais orgulhosas que existem, no seco ou
no molhado. Iono admira os escrotinhos. Pegue um navio com mulheres e gatos a bordo e você terá a maior sorte possível. Bom, o nosso barquinho é tão pequeno que
acho que vamos ficar bem sem uma mulher. As embarcações de pesca e do porto partem assim o tempo todo, sem preocupação. Mas, com vocês dois a bordo, de jeito nenhum
vou deixar de levar um gato. Um pequeno serve para um barco pequeno.
– Então... temos de cuidar dessa gatinha enquanto estamos lá fora arriscando a vida?
– Prefiro jogar vocês no mar a perdê-la, Kosta. – Caldris deu um risinho. – Se acha que estou mentindo, pode me testar. Mas ela vai ficar no cesto coberto.
Ele enfiou a mão no cesto de novo e pegou um pequeno pedaço de pão e uma faca de prata. Locke viu que o pão tinha muitas marcas pequenas, mais ou menos do tamanho
da boca da criatura que tentava escapar dos seus braços. Caldris não pareceu se incomodar.
– Mestre de Ferra, estenda a mão direita e não choramingue.
Jean obedeceu. Sem hesitar, o capitão cortou sua palma. O grandalhão não reclamou e Caldris grunhiu como se estivesse agradavelmente satisfeito. Em seguida, virou
a mão de Jean para baixo e manchou o pão com o sangue que escorria do corte.
– Agora o senhor, mestre Kosta. Mantenha essa gatinha imóvel. Seria um tremendo azar cortá-la por acidente. Além disso, ela está armada.
Caldris fez o mesmo com Locke e apertou o pão contra a mão dele, como se quisesse estancar o sangue. Quando decidiu que Locke havia sangrado o suficiente, sorriu
e foi para a borda da praça de pedra.
– Sei que vocês dois já pegaram navios – disse. – Mas ser passageiro não significa nada. Passageiros não se envolvem. Agora os senhores vão estar envolvidos, por
isso preciso primeiro acertar as coisas para nós.
Ele pigarreou, ajoelhou-se à beira-d’água e levantou os braços. Numa das mãos, segurava o pão; na outra, a faca de prata.
– Iono! Iono, Portador das Tormentas! Senhor das Águas Revoltas! Seu serviçal Caldris bal Comar chama. Por muito tempo o senhor se dispôs a demonstrar misericórdia
com seu serviçal, e seu serviçal se ajoelha para mostrar devoção. Certamente o senhor sabe que a porra de uma confusão enorme espera por ele além do horizonte.
Caldris jogou a faca ensanguentada na baía.
– Este é o sangue de homens de terra. Todo sangue é água. Todo sangue é seu. Esta é uma faca de prata, metal do céu, céu que toca a água. Seu serviçal lhe dá sangue
e prata para mostrar devoção.
Segurou o pão com as duas mãos, partiu-o ao meio e jogou as duas metades na água.
– Este pão é de homens de terra, porque os homens de terra precisam viver. Dê ao seu serviçal ventos fortes e águas abertas. Mostre-lhe misericórdia durante a viagem.
Mostre a força de sua vontade em meio às ondas e mande-o de volta para casa em segurança. Salve, Iono! Senhor das Águas Revoltas!
Caldris se levantou gemendo e limpou algumas manchas de sangue da túnica.
– Certo. Se isso não puder ajudar, nunca tivemos nenhuma chance, porra.
– Perdão, mas parece que você poderia ter nos mencionado também – disse Jean.
– Não se incomode com isso, De Ferra. Se eu prosperar, vocês também prosperam. Se eu me danar, vocês estão fodidos. Rezar pela minha saúde favorece vocês. Agora
ponha a gata no cesto, Kosta, e vamos fazer alguma coisa.
Minutos depois, Locke e Jean estavam sentados lado a lado na popa do esquife, que continuava amarrado com firmeza a várias argolas de ferro engastadas na pedra da
praça. O cesto estava no convés minúsculo aos pés de Locke, ocasionalmente emitindo sacudidas e ruídos de raspar.
– Certo – falou Caldris. – Começando pelo básico, um barco é apenas um navio pequeno e um navio é apenas um barco maior. O casco vai na água, o mastro aponta para
o céu.
– Claro – disseram Locke e Jean vigorosamente.
– O nariz do seu barco se chama proa, o rabo se chama popa. E no mar não existe direita e esquerda. Direita é estibordo, esquerda é bombordo. Se disserem esquerda
ou direita, é provável que vocês sejam chicoteados. E lembrem-se: quando estiverem direcionando outra pessoa, vocês devem tomar como referencial o navio, e não vocês.
– Olhe, por menos que nós saibamos, Caldris, ouso dizer que disso nós sabemos – observou Locke.
– Bom, longe de mim corrigir o jovem mestre, mas como esta aventura tende a ser uma porra completamente louca, e como nossas vidas parecem não valer nada, vou começar
presumindo que vocês não sabem a diferença entre água e mijo de fuinha. Tudo bem para os cavalheiros?
Locke abriu a boca para responder algo mal-educado, mas Caldris continuou:
– Agora soltem os remos. Enfiem-nos nas forquetas. Kosta, você é o remo de estibordo. Ferra, você é o de bombordo. – Caldris desatou o esquife das argolas de ferro,
jogou as cordas no fundo do barco e pulou nele, caindo logo antes do mastro. Acomodou-se e sorriu quando o barco oscilou. – Por enquanto, o leme está travado. Vocês
dois vão fazer todo o trabalho de guiar, que os deuses nos ajudem o tempo todo.
– De Ferra, empurre o barco para longe do cais. Isso mesmo. Fácil. Não é possível usar velas logo ao sair do cais; primeiro, é preciso percorrer um trecho. Além
disso, não há brisa atrás desses muros... Vejam como estou fazendo a gente balançar. Não gostam disso, não é? Você está ficando verde, Kosta.
– Nem um pouco – murmurou Locke.
– Isso é importante. O que estou tentando explicar agora se chama equilíbrio. O peso precisa ser distribuído de modo sensato num barco ou num navio. Se eu me mover
para estibordo, nós nos inclinamos abruptamente na direção de mestre Kosta. Se eu me mover para bombordo, nos inclinamos na direção de mestre de Ferra. Não dá para
ser assim. Por isso é tão importante acondicionar a carga em um navio da forma adequada. É preciso equilibrar popa e proa, bombordo e estibordo. Não se pode ter
a proa no ar nem a popa mais alta do que o mastro. Parece idiota, mas então vocês afundam e morrem. Basicamente é isso que quero dizer com “equilíbrio”. Agora é
hora de aprender a remar.
– Nós já sabemos...
– Não importa o que vocês acham que sabem, Kosta. Até segunda ordem, vamos supor que vocês são idiotas demais para contar até um.
Mais tarde, Locke juraria que haviam passado duas ou três horas remando em círculos naquela baía artificial enquanto Caldris gritava “Tudo a bombordo! A ré! Tudo
a estibordo!” e uma dúzia de outras ordens, aparentemente de modo aleatório. O mestre de navegação mudava o peso do corpo a todo momento, à esquerda e à direita,
para a frente e para o centro, a fim de obrigá-los a lutar pela estabilidade. Para tornar as coisas mais interessantes ainda, existia uma diferença óbvia entre a
força das remadas de Jean e as de Locke, e eles precisavam se concentrar para não virar sempre a estibordo. Estavam nisso havia tanto tempo que Locke levou um susto
quando Caldris enfim pediu que parassem.
– Parem de remar, seus moleques de merda. – Caldris se espreguiçou e bocejou. O sol ia se aproximando do zênite. Os braços de Locke estavam exaustos, a túnica encharcada
de suor, e ele desejou fervorosamente ter tomado menos café e ingerido mais comida de verdade no desjejum. – Melhor agora do que vocês estavam há duas horas, devo
admitir. Isso e pouco mais. Vocês precisam conhecer estibordo e bombordo, proa e popa, barcos e remos como sabem o tamanho do seu pau. Não existe emergência calma
ou conveniente no meio do oceano.
Caldris pegou um lanche num saco de couro que estava na proa do esquife e eles ficaram flutuando relaxadamente no meio do quadrado isolado enquanto comiam. Os homens
compartilharam pão preto e queijo duro e a gatinha foi solta para engolir um bocado de manteiga num pote de pedra. O odre que Caldris passou estava cheio de “aguarrosa”,
água quente de chuva misturada com apenas a quantidade suficiente de vinho tinto barato para esconder um pouco o gosto de ranço e de couro. Caldris tomou só alguns
goles, mas os dois ladrões acabaram rapidamente com tudo.
– Então nosso navio está nos esperando em algum lugar por aí – disse Locke quando a sede foi aplacada por um tempo. – Mas onde vamos conseguir uma tripulação?
– Boa pergunta, Kosta. Eu gostaria de saber a resposta. O Arconte garantiu que isso estava sendo resolvido, e só.
– Eu suspeitei que você falaria algo assim.
– Não há sentido em ficar preocupado com o que está além do nosso poder no momento. – O mestre de navegação levantou a gatinha, que ainda lambia o focinho e as patas
gordurosos, e colocou-a de volta no cesto com ternura surpreendente. – Bem, vocês remaram um pouco. Agora, vou mandar os homens lá de cima abrirem o portão, pegar
o leme e vamos sair e ver se pegamos brisa suficiente para içar um pouco de vela. Vocês dois têm dinheiro nas coisas que deixaram em terra?
– Um pouco – respondeu Locke. – Uns 20 volanis. Por quê?
– Aposto seus 20 volanis que vocês dois vão nos emborcar pelo menos uma vez antes do pôr do sol.
– Achei que você estava aqui para nos ensinar a fazer a coisa do jeito certo.
– E estou. E vou ensinar! Só que conheço bem demais os marinheiros de primeira viagem. Apostem e o dinheiro pode ser considerado meu. Diabos, eu pago 1 solari inteiro
contra suas vinte moedas de prata se eu estiver errado.
– Aposto – disse Locke. – Jerome?
– Nós temos a gatinha e uma bênção de sangue do nosso lado – respondeu Jean. – Pode nos subestimar o quanto quiser, mestre de navegação.
3
A princípio, tinha sido revigorante trabalhar por um tempo com a túnica e os calções completamente encharcados. Depois de desemborcarem o esquife e resgatarem a
gatinha, claro.
Mas agora o sol baixava no oeste, dando um halo dourado às fortificações e torres acima da Marina da Espada, e a brisa suave do porto havia começado a dar calafrios
em Locke, apesar do calor que perdurava no ar estival.
Ele e Jean remavam em direção ao portão aberto da baía privada. Caldris ficara feliz por ganhar seus 20 volanis, mas não o suficiente a ponto de confiar que eles
cuidassem das velas outra vez.
– Parar remos – mandou Caldris quando eles enfim deslizaram para a borda da praça de pedra.
Caldris amarrava as cordas de novo ao mesmo tempo que Locke guardava seu remo e soltava um grande suspiro de alívio. Todos os músculos de suas costas atritavam dolorosamente
um contra o outro, como se alguém tivesse jogado areia entre eles. A cabeça latejava por causa da claridade do sol na água e o velho ferimento no ombro direito exigia
atenção prioritária, em detrimento das outras dores.
Locke e Jean saíram às pressas do barco e se esticaram. Caldris, obviamente se divertindo, destampou o cesto e tirou a gatinha desgrenhada.
– Pronto, pronto – acalmou-a, deixando que ela se aninhasse nos seus braços cruzados. – Os jovens senhores não tinham má intenção quando encharcaram você. Eles também
se deram mal.
– Mrrrrriiiiiau – fez ela.
– Imagino que isso signifique “vão se foder” – falou Caldris –, mas pelo menos mantivemos nossas vidas. Então, o que acham, senhores? Foi um dia educativo?
– Espero que tenhamos demonstrado alguma aptidão, pelo menos. – Locke gemeu, tentando aliviar um nó nas costas.
– Passos de bebê, Kosta. Quanto a ser marinheiros, vocês ainda nem aprenderam a sugar leite de uma teta. Mas agora sabem a diferença entre estibordo e bombordo e
eu estou mais rico.
– Está mesmo.
Locke suspirou, pegando no chão o casaco, o colete, os lenços de pescoço e os sapatos. Jogou uma pequena bolsa de couro para o mestre de navegação, que a balançou
na frente da gatinha, falando-lhe suavemente, como se com uma criança.
Por acaso, Locke olhou para o portão no instante em que jogou o casaco por cima da túnica úmida e viu o escaler de Merrane deslizar para dentro da baía artificial.
Ela estava sentada na proa de novo, como se houvessem se separado alguns minutos antes, e não dez horas.
– Sua carona de volta para a civilização, senhores. – Caldris ergueu a bolsa de moedas de Locke em saudação. – Verei vocês bem animados amanhã cedo. A coisa só vai
piorar, portanto preparem-se. Aproveitem as belas camas enquanto ainda estão disponíveis.
Merrane se mostrou totalmente avessa a responder perguntas durante o trajeto até o cais abaixo do Savrola, o que serviu bem ao humor de Locke. Ele e Jean solidarizaram-se
das dores um do outro, acomodados na galeria de popa da melhor forma possível.
– Eu poderia dormir uns três dias, acho – comentou Locke.
– Vamos pedir um grande jantar e alguns banhos para desfazer os nós. Depois disso, vou disputar corrida com você até a inconsciência.
– Não posso. – Locke suspirou. – Não posso. Preciso ver o Requin esta noite. A esta altura, ele provavelmente sabe que Stragos nos levou de novo há algumas noites.
Preciso lhe contar antes que ele fique chateado. E preciso lhe dar as cadeiras. E preciso de algum modo falar sobre tudo isso e convencê-lo a não nos estrangular
com nossos próprios intestinos se partirmos durante alguns meses.
– Que os deuses nos acudam! – exclamou Jean. – Estive tentando não pensar nisso. Você mal conseguiu convencê-lo de que fomos contratados para abrir o cofre dele
na Agulha do Pecado... Como tornar plausível essa viagem pelo mar?
– Não faço ideia. – Locke massageou a região dolorida do antigo ferimento no ombro. – Esperemos que as cadeiras o deixem misericordioso. Caso contrário, você vai
receber a conta pela limpeza dos meus miolos das pedras da praça.
Quando chegaram ao cais do Savrola, onde uma carruagem esperava com vários guardas, Merrane deixou a proa e foi até onde Locke e Jean estavam sentados.
– Às sete da manhã, amanhã, haverá uma carruagem junto à Villa Candessa. Vamos variar os movimentos de vocês durante algumas manhãs, em nome da segurança. Fiquem
na estalagem esta noite.
– Isso está fora de questão – rebateu Locke. – Tenho negócios esta noite nos Degraus de Ouro.
– Cancele.
– Vá para o inferno. Como você pretende me impedir?
– Você poderia ficar surpreso. – Merrane esfregou as têmporas como se sentisse a chegada de uma dor de cabeça, depois suspirou. – Tem certeza de que não pode cancelar?
– Se eu cancelar meus negócios esta noite, você sabe quem, na Agulha do Pecado, provavelmente vai nos cancelar.
– Se está preocupado com Requin, eu poderia arranjar alojamentos na Marina da Espada. Ele jamais poderia alcançar vocês lá; estariam seguros até o fim do treinamento.
– Jerome e eu afundamos dois anos nesta maldita cidade por causa dos planos para Requin. Pretendemos ir com eles até o fim. Esta noite é fundamental.
– A responsabilidade é sua, então. Posso mandar uma carruagem com alguns dos meus homens. Isso pode esperar duas horas?
– Se for necessário, tudo bem. – Locke sorriu. – Na verdade, mande duas. Uma para mim, outra para a carga.
– Não abuse da sua...
– Com licença, mas o dinheiro vai sair do seu bolso? Se você quer me proteger, me cercar com seus agentes, ótimo, aceito. Apenas mande duas carruagens. Vou me comportar
muitíssimo bem.
– Então que seja. Duas horas. Antes, não.
4
O horizonte oeste havia engolido o sol, e as duas luas visíveis no céu sem nuvens tinham uma coloração vermelha suave, como moedas de prata mergulhadas em vinho.
O cocheiro bateu três vezes no teto da carruagem anunciando a chegada à Agulha do Pecado e Locke puxou a cortina da janela para tapar a brecha por onde estivera
espiando.
Havia demorado um tempo para as duas carruagens saírem do Savrola, atravessarem a Grande Galeria e passarem pelo tráfego movimentado dos Degraus de Ouro. Locke se
alternara entre bocejos e xingamentos à viagem sacudida. Sua companhia, uma espadachim magra com um florete bastante usado repousando sobre as pernas, o havia ignorado
por completo, sentada à sua frente.
Ela saiu antes dele, enfiando a arma sob uma capa comprida e azul que ia até os tornozelos. Após ter examinado a noite quente em busca de encrenca, sinalizou para
Locke segui-la.
Segundo as instruções de Locke, o cocheiro entrara na passagem calçada de pedras que levava a um pátio atrás da Agulha do Pecado. Ali, duas construções abrigavam
as cozinhas principais e os depósitos de comida da torre. À luz de lanternas vermelhas e douradas balouçando em fios invisíveis, funcionários da Agulha iam e vinham
em grupos, carregando refeições elaboradas e voltando com travessas vazias. O cheiro de carne intensamente condimentada enchia o ar.
A guarda-costas de Locke continuava a olhar ao redor, assim como os dois soldados na carruagem, ambos usando uniformes comuns de cocheiro. O segundo veículo, que
carregava o conjunto de cadeiras de Locke, parou atrás do primeiro. Sua parelha de cavalos cinza bateu as patas e bufou, como se o cheiro da cozinha não fosse de
seu agrado. Um corpulento funcionário da Agulha de cabelos ralos veio correndo até Locke e fez uma reverência.
– Mestre Kosta, peço desculpas, mas aqui é o pátio de serviço. Não podemos recebê-lo aqui do modo costumeiro; a porta da frente é muito mais adequada a...
– Estou no lugar certo. – Locke pôs a mão no ombro do funcionário e enfiou 5 volanis no bolso do seu colete, deixando as moedas tilintarem umas contra as outras
ao escorregarem da mão. – Encontre Selendri o mais rápido que puder.
– Encontrar... ah... bom...
– Selendri. Ela se destaca na multidão. Ache-a agora.
– Ah... sim, senhor. Claro!
Locke passou os cinco minutos seguintes andando de um lado para outro na frente da carruagem enquanto a espadachim tentava parecer casual e ao mesmo tempo mantê-lo
a poucos passos de distância. Certamente ninguém seria idiota a ponto de tentar alguma coisa, em especial ali, no coração dos domínios de Requin. Ainda assim, ele
ficou aliviado ao ver Selendri sair pela porta de serviço, usando um vestido de noite flamejante que fazia o bronze de sua mão artificial parecer derretido nos pontos
com reflexos laranja.
– Kosta, a que devo esta distração?
– Preciso ver Requin.
– Ah, mas Requin precisa ver você?
– Muito. Por favor. Preciso vê-lo pessoalmente. E vou precisar de alguns dos seus funcionários mais fortes. Trouxe presentes que necessitam de cuidados especiais.
– Presentes?
Locke levou-a até a segunda carruagem e abriu a porta. Ela lançou um olhar rápido à guarda-costas de Locke, depois acariciou a mão de bronze, avaliando o conteúdo
do compartimento.
– Tem certeza de que um suborno tão óbvio é a solução para os seus problemas, Kosta?
– Não é isso, Selendri. É uma longa história. Ele estaria me fazendo um favor ao aceitá-las. Ele tem uma torre para decorar. Tudo que eu tenho é uma suíte alugada
e um cômodo de depósito.
– Interessante. – Ela fechou a porta da segunda carruagem, virou-se e começou a andar de volta para a torre. – Mal posso esperar para ouvir. Você, venha comigo.
Seus ajudantes ficam aqui, claro.
A espadachim pareceu a ponto de protestar, por isso Locke balançou a cabeça firmemente e apontou, sério, para a primeira carruagem. O olhar furioso que ela lhe retribuiu
deixou-o feliz por ela ter ordens de protegê-lo.
Assim que entraram na Agulha do Pecado, Selendri sussurrou instruções ao funcionário corpulento e guiou Locke através da multidão de sempre até a área de serviço
no segundo andar. Logo estavam trancados na escuridão do armário ascensor, subindo devagar até o oitavo andar. Locke ficou surpreso ao senti-la se virar para ele.
– Encontrou uma guarda-costas interessante, mestre Kosta. Não sabia que o senhor merecia um Olho do Arconte.
– É, nem eu. Eu suspeitei, mas não sabia. O que lhe dá tanta certeza?
– A tatuagem nas costas da mão esquerda. Um olho sem pálpebras no centro de uma rosa. Ela provavelmente não está acostumada a andar à paisana; deveria ter usado
luvas.
– Você deve ter olhos afiados. Olho. Desculpe. Você sabe o que eu quero dizer. Eu vi, mas não pensei muito a respeito.
– A maioria das pessoas não é familiarizada com essa chancela. – Selendri lhe deu as costas de novo. – Eu tinha uma igual na mão esquerda.
– Eu... bom. Isso é... eu não fazia ideia.
– As coisas que o senhor não sabe, mestre Kosta... As coisas que o senhor simplesmente não sabe...
Maldição, pensou Locke. Ela estava tentando irritá-lo, aplicando seu próprio strat péti para dar o troco nas investidas simpáticas dele. Será que todo mundo naquela
porcaria de cidade tinha um joguinho?
– Selendri – falou ele, tentando parecer sério e um tanto magoado –, nunca desejei nada mais do que ser seu amigo.
– Assim como você é amigo de Jerome de Ferra?
– Se você soubesse o que ele fez comigo, entenderia. Mas, como parece que você deseja alardear que tem segredos, acho que também vou guardar alguns dos meus.
– À vontade. Mas o senhor deve se lembrar de que minha opinião a seu respeito será, em última instância, muito mais importante do que sua opinião sobre mim.
O armário ascensor parou rangendo e se abriu para o escritório de Requin. O Senhor da Agulha do Pecado ergueu os olhos de sua escrivaninha; os ópticos de Requin
estavam enfiados na gola de sua túnica preta e ele examinava uma grande pilha de pergaminhos.
– Kosta, já era tempo. Preciso de algumas explicações.
– E com certeza vai tê-las.
Merda, pensou Locke, espero que ele não tenha descoberto sobre os assassinos no cais. Já tenho coisas demais para explicar.
– Posso me sentar?
– Pegue uma cadeira.
Locke escolheu uma das que estavam junto à parede e colocou-a diante da mesa de Requin. Disfarçadamente, enxugou o suor das mãos no calção ao se sentar. Selendri
se curvou junto de Requin e sussurrou durante um bom tempo em seu ouvido. Ele assentiu e encarou Locke.
– Você andou pegando sol.
– Hoje – confirmou Locke. – Jerome e eu fomos velejar no porto.
– Exercício agradável?
– Não particularmente.
– Que pena. Mas parece que você esteve no porto há algumas noites. Foi visto voltando do Mon Magisteria. Por que esperou tanto para trazer as novidades dessa visita
à minha consideração?
– Ah.
Locke sentiu-se aliviado. Talvez Requin não soubesse que havia qualquer elo relevante entre Jean, ele e os dois assassinos mortos. O que Locke precisava nesse momento
era de um lembrete de que Requin não era onisciente, e ele sorriu.
– Supus que, se o senhor quisesse saber antes, uma das suas gangues nos arrastaria até aqui para uma conversa.
– Você deveria fazer uma pequena lista, Kosta, intitulada Pessoas seguras para antagonizar. Meu nome não vai aparecer nela.
– Desculpe. Não foi de propósito. Nos últimos dias, Jerome e eu precisamos deixar de dormir ao nascer do sol e passar a acordar com ele. E o motivo para isso tem
a ver com os planos de Stragos.
Nesse momento, uma funcionária da Agulha apareceu no topo da escada, vinda do sétimo andar. Fez uma reverência profunda e pigarreou.
– Peço perdão, senhor e senhora. A senhora ordenou que as cadeiras do mestre Kosta fossem trazidas do pátio.
– Traga-as – mandou Requin. – Selendri falou sobre elas. O que é isso, afinal?
– Sei que vai parecer mais idiota do que é – disse Locke –, mas o senhor estaria me fazendo um favor, honestamente, se concordasse em tirá-las das minhas mãos.
– Tirá-las das suas... Ah, nossa!
Um robusto funcionário da Agulha surgiu carregando uma das cadeiras de Locke, com cuidado óbvio. Requin se levantou da mesa e ficou olhando.
– Barroco Talatri – falou ele. – Sem dúvida, é Barroco Talatri... Você aí, ponha isso no centro da sala. Isso, ótimo. Está dispensado.
Outros três empregados depositaram as demais cadeiras no meio da sala de Requin, fazendo reverências antes de sair. Requin não prestou atenção neles; saiu de trás
da mesa e logo estava examinando atentamente uma das cadeiras, passando um dedo enluvado na superfície laqueada.
– Reprodução... – disse lentamente. – Sem sombra de dúvida... mas muito linda. – Ele voltou a atenção a Locke. – Não sabia que você era familiarizado com os estilos
que eu coleciono.
– Não sou – assegurou Locke. – Nunca tinha ouvido falar do Barroco Não-Sei-das-Quantas. Há alguns meses, joguei cartas com um lashani bêbado. O crédito dele estava...
reduzido, por isso concordei em aceitar mercadorias. Recebi quatro cadeiras caras. Desde então, elas estavam num depósito porque, sinceramente, que diabo vou fazer
com elas? Eu vi as coisas que o senhor mantém aqui no seu escritório e pensei que talvez pudesse querê-las. Fico feliz porque elas lhe agradam. Como eu disse, o
senhor é que está me fazendo um favor ao aceitá-las.
– Espantoso. Sempre pensei em ter um conjunto de móveis nesse estilo. Adoro o Último Florescer. É um tremendo bem para se abrir mão.
– Comigo elas seriam desperdiçadas, Requin. Para mim, uma cadeira chique é uma cadeira chique. Só tenha cuidado com elas. Por algum motivo, elas são de crescente-cisalha.
Bastante seguras para sentar, mas não abuse delas.
– Isso é... tremendamente inesperado, mestre Kosta. Eu aceito. Obrigado. – Com óbvia relutância, Requin retornou à cadeira atrás de sua escrivaninha. – Isso não
o afasta da necessidade de cumprir com sua parte no nosso acordo. Ou de continuar sua explicação. – O sorriso no rosto dele diminuiu e os olhos não mais demonstravam
satisfação.
– Claro que não. Mas, quanto a isso... olhe, Stragos está com um vidro de óleo de fogo dentro do rabo. Vai mandar Jerome e eu para longe durante um tempo, a negócios.
– Para longe? – A cortesia contida de um momento atrás sumiu; as duas palavras foram ditas num sussurro perigoso, sem emoção.
Aí vai. Guardião Torto, jogue um osso para o seu cachorro.
– Para o mar – explicou Locke. – Para os Ventos Fantasmas. Porto Pródigo. Numa tarefa.
– Estranho. Não me lembro de ter transportado meu cofre para Porto Pródigo.
– Mas tem a ver com isso. – Como? – Nós vamos... atrás de uma coisa. – Merda. Não está bom, nem de longe. – Na verdade, de alguém. Já ouviu... é, já...
– Já o quê?
– Já ouviu falar de... um homem chamado... Calo... Callas?
– Não. Por quê?
– Ele é, ah... bom, a coisa é que... eu me sinto um idiota. Achei que o senhor tivesse ouvido falar dele. Não sei nem se ele existe. Pode não passar de uma história.
Tem certeza de que nunca ouviu o nome?
– Certeza. Selendri?
– Esse nome não significa nada para mim – respondeu ela.
– Quem ele é, então? – Requin cruzou as mãos enluvadas com força.
– Ele é... – O que poderia nos afastar deste lugar se estamos aqui para arrombar o cofre? Ah... Guardião Torto, é claro! – ... um arrombador. Os espiões de Stragos
têm um dossiê sobre ele. Parece que é o melhor, ou era, no tempo dele. Um às da gazua, uma espécie de prodígio da mecânica. Stragos espera que Jerome e eu possamos
tirá-lo da aposentadoria para ele se aplicar ao problema do seu cofre.
– O que um homem assim estaria fazendo em Porto Pródigo?
– Escondendo-se, imagino. – Locke sentiu um sorriso se formar e teve que conter um antigo júbilo familiar: assim que uma Grande Mentira era solta no mundo, parecia
crescer por conta própria e precisava de poucos cuidados ou preocupações para se adequar à situação. – Stragos diz que os artífices tentaram matá-lo várias vezes.
Se ele realmente existe, é o maldito antiartífice.
– Estranho eu nunca ter ouvido falar dele nem terem me pedido para encontrá-lo e eliminá-lo.
– Se você fosse um artífice, iria querer revelar as habilidades desse sujeito para alguém em posição de fazer o melhor uso possível delas?
– Hummm.
– Diabos. – Locke coçou o queixo e fingiu se distrair pensando. – Talvez alguém tenha lhe pedido para encontrá-lo e eliminá-lo. Só que não com esse nome e não com
essa descrição, sabe?
– Mas por que, dentre todos os agentes do Arconte, você e Jerome...
– Quem mais pode-se garantir que voltará depois ou morrerá tentando?
– O suposto veneno. Ah.
– Nós temos dois meses, talvez menos. – Locke suspirou. – Stragos alertou para não nos atrasarmos. Se não retornarmos até lá, vamos descobrir até que ponto o alquimista
pessoal dele é hábil.
– Servir ao Arconte parece ser uma vida complicada, Leocanto.
– Nem me fale, porra. Eu gostava muito mais quando ele era apenas nosso contratante desconhecido. – Locke rotacionou os ombros e sentiu alguns músculos doloridos
das costas protestarem. – Nós partimos em menos de um mês. Era disso que se tratava o treino de vela diurno. Vamos nos misturar à tripulação de um barco mercante
independente depois de treinar um pouco, para não parecermos demais homens de terra. Para nós, nada de jogos tarde da noite até voltarmos.
– Vocês esperam ter sucesso?
– Não, mas de um modo ou de outro eu vou voltar, sem dúvida. Talvez Jerome até possa ter um “acidente” na viagem. De qualquer forma, vamos guardar nossas roupas
na Villa Candessa. E vamos deixar cada centira que temos nos seus livros-caixas exatamente onde estão. O meu dinheiro e o de Jerome. Como garantia de meu retorno,
por assim dizer.
– E se você retornar – interveio Selendri –, deve trazer um homem que possa ajudar genuinamente no projeto do Arconte.
– Se ele estiver lá, primeiro vou trazê-lo direto para cá. Espero que vocês queiram ter uma discussão franca com ele sobre os benefícios à saúde de aceitar uma contraproposta.
– Sem dúvida – concordou Requin.
– Esse tal de Callas – Locke deixou a empolgação crescer em sua voz – pode ser nossa chave para ferrar com o Stragos. Ele pode ser um vira-casaca melhor até do que
eu.
– Ora, mestre Kosta, duvido que alguém possa ser um vira-casaca mais entusiasmado do que o senhor – comentou Selendri.
– Você sabe muito bem por que estou entusiasmado. Mas é isso. Até agora Stragos não nos contou nada além disso. Eu só queria me livrar dessas cadeiras malditas e
dizer que vamos ficar longe durante um tempo. Garanto que vou retornar. Se depender de mim, vou retornar.
– Que garantias! – exclamou Requin. – Que garantias reconfortantes!
– Se eu quisesse fugir, já teria feito isso – rebateu Locke. – Por que vir e lhe contar tudo isso antes?
– É óbvio – respondeu Requin, com um sorriso gentil. – Se isso for um ardil, poderia lhe garantir dois meses de dianteira, tempo em que eu não estaria pensando em
procurá-lo.
– Ah. Excelente argumento. Só que, até lá, minha expectativa é morrer terrivelmente, com dianteira ou não.
– É o que você diz.
– Olhe, eu estou enganando o Arconte de Tal Verrar a seu favor. Estou enganando o maldito Jerome de Ferra. Preciso de aliados se quero sair dessa merda; não me importa
se o senhor não confia em mim, eu preciso confiar no senhor. Estou mostrando minhas cartas. Sem blefe. Agora, de novo, diga como devo prosseguir.
Requin folheou casualmente a pilha de pergaminho sobre a mesa, depois encarou Locke.
– Espero saber imediatamente dos planos do Arconte para você. Sem atrasos. Faça com que eu me pergunte onde você está e mandarei pegá-lo. Definitivamente.
– Entendido. – Locke fingiu engolir em seco e torceu as mãos. – Tenho certeza de que vamos vê-lo de novo antes de partirmos. Estarei aqui na noite seguinte a qualquer
reunião, sem demora.
– Ótimo. – Requin apontou na direção do armário ascensor. – Vá. Encontre esse tal de Calo Callas, se é que ele existe, e traga-o para mim. Mas não quero que o querido
Jerome escorregue por cima de uma amurada enquanto vocês estão no mar. Entendido? Até que Stragos esteja na minha mão, eu tenho o direito de negar esse privilégio
a você.
– Eu...
– Nenhum “acidente” com o mestre de Ferra. Satisfaça esse ressentimento quando eu permitir. Essa é a barganha.
– Certo.
– Stragos tem o antídoto prometido. – Requin pegou uma pena e voltou a atenção aos pergaminhos. – Quero garantias de que você retornará entusiasmado à minha bela
cidade. Se você quer matar seu bezerro, primeiro cuide dele por alguns meses. Cuide muito bem dele.
– É c... claro.
– Selendri vai levá-lo para fora.
5
– Sinceramente, poderia ter sido muito pior – comentou Jean, remando ao lado de Locke na manhã seguinte.
Estavam no porto principal, atravessando as ondas suaves perto do Crescente dos Mercadores. O sol ainda não havia atingido o ápice, mas o dia já estava mais quente
do que na véspera. Os dois ladrões estavam encharcados de suor.
– A morte súbita e sofrida certamente seria muito pior – disse Locke, e conteve um gemido: naquele dia, o exercício estava incomodando não apenas as costas e o ombro,
mas também os antigos ferimentos que cobriam uma parte substancial do braço esquerdo. – Mas acho que foram os últimos resquícios da paciência de Requin. Se acontecer
mais alguma coisa estranha ou alguma complicação... bom, espero que os planos de Stragos não se tornem ainda mais esquisitos.
– Vocês não podem mover o barco mexendo a boca! – gritou Caldris.
– A não ser que você queira nos acorrentar a estes remos e bater um tambor, nós vamos conversar o quanto quisermos – retrucou Locke. – E, a não ser que você queira
que nós caiamos mortos, deveria pensar num almoço cedo.
– Nossa! Será que o jovem e esplêndido cavalheiro não acha agradável a vida de labuta? – Caldris estava sentado na proa com as pernas esticadas na direção do mastro.
Em sua barriga, a gatinha enrolara-se numa bola escura de contentamento sonolento. – A imediata aqui quer que eu lembre a vocês que, no lugar aonde vamos, o mar
não serve aos seus desejos. Vocês podem ficar acordados vinte horas seguidas. Podem ficar acordados quarenta horas. Podem ficar no convés. Podem trabalhar com uma
bomba para tirar água. Quando chegar a hora de fazer o que é necessário, vocês vão fazer, porra, e vão fazer até cair. Portanto, vamos remar todo dia, até que suas
expectativas não se excedam. E hoje vamos almoçar tarde, e não cedo. Tudo a bombordo!
6
– Excelente trabalho, mestre Kosta. Fascinante e tremendamente não ortodoxo. Segundo seus cálculos, estamos em algum lugar perto das latitudes do Reino dos Sete
Tutanos. Um pouquinho mais próximos de Vintila, não acha?
Locke tirou do ombro a balestilha, uma haste de 1,20 metro com um desajeitado arranjo de palhetas e calibres numa das extremidades.
– Não consegue ver a sombra do sol na sua palheta do horizonte?
– Consigo, mas...
– Admito que o instrumento não é tão preciso quanto o disparo de uma flecha, mas até um mamador de terra deveria ser capaz de fazer melhor do que isso. Repita, como
eu mostrei. Horizonte e sombra do sol. E agradeça porque não está usando um quadrante verrari; as cruzetas antigas faziam você olhar direto para o sol, e não contra
ele.
– Perdão – interveio Jean –, mas eu sempre ouvi chamarem de quadrante camorri...
– Besteira – replicou Caldris. – O nome é quadrante verrari. Os verraris o inventaram há vinte anos.
– Essa afirmação deve tirar um pouco do incômodo de ter levado uma surra das boas na Guerra dos Mil Dias, hein? – indagou Locke.
– Você gosta dos camorris, Kosta? – Caldris pôs uma das mãos na balestilha. Locke percebeu, com um susto, que a raiva dele era genuína. – Achei que você era talishani.
Você tem motivos para defender Camorr, porra?
– Não, eu só estava...
– Só estava o quê?
– Desculpe. – Locke percebeu o erro. – Não me dei conta de que, para você, isso não é só história.
– Todos os mil dias e mais um pouco. Eu estive lá do começo ao fim, porra.
– Peço desculpas. Imagino que você tenha perdido amigos.
– E está imaginando certo. – Caldris bufou. – Perdi um navio sob o meu comando. Por sorte não virei comida de polvo. Tempos ruins. – Ele afastou a mão da balestilha
de Locke e se recompôs. – Sei que você não falou por mal, Kosta. Eu... peço desculpas, também. Nós, que sangramos naquela luta, não achávamos exatamente que estávamos
perdendo quando o Priori cedeu. Em parte porque depositávamos muita esperança no primeiro Arconte.
– Leocanto e eu não temos motivo para amar Camorr – assegurou Jean.
– Ótimo. – Caldris deu um tapa nas costas de Locke e pareceu relaxar. – Ótimo. Continue assim, está bem? Agora, estamos perdidos no mar, mestre Kosta! Descubra nossa
latitude!
Era o quarto dia de treinamento com o mestre de navegação verrari; depois da costumeira manhã de tortura com os remos, Caldris os levara para o lado da Marina de
Prata voltado para o mar. Talvez a 500 metros da ilha de vidro, ainda dentro do mar calmo proporcionado pelos recifes que envolviam a cidade, havia uma plataforma
de pedra com o topo liso, sobre 12 ou 15 metros de água verde-azulada e translúcida. Caldris tinha chamado aquilo de Castelo dos Marinheiros de Primeira Viagem:
servia de treinamento para futuros marinheiros verraris, tanto de guerra quanto mercantes.
O esquife deles estava atracado na lateral da plataforma, que devia ter 10 metros de comprimento. Espalhados nas pedras aos pés deles, havia uma variedade de instrumentos
de navegação: balestilhas, quadrantes, ampulhetas, mapas e bússolas, uma Caixa Determinante e um conjunto de tábuas com furos e pinos que, segundo Caldris, eram
usados para acompanhar as mudanças de curso. A gatinha dormia num astrolábio, sobre os símbolos desenhados na superfície de latão.
– O amigo Jerome se saiu razoavelmente bem nisso – elogiou Caldris. – Mas ele não vai ser o capitão e, sim, você.
– Achei que você é que cuidaria de todas as tarefas importantes, sob pena de uma morte medonha, como já mencionou vezes sem conta.
– E vou. Você é louco se achar que isso mudou. Mas preciso que você entenda ao menos o suficiente para não enfiar o dedo no rabo quando eu disser para fazer isso
ou aquilo. Só saiba de que lado segurar e seja capaz de ler uma latitude que não nos coloque fora do caminho, a uma distância de metade da porra do mundo.
– Sombra do sol e horizonte – murmurou Locke.
– Isso. Mais tarde, esta noite, vamos usar o quadrante antigo para a única coisa que ele ainda serve: fazer as leituras com base nas estrelas.
– Mas mal passou do meio-dia!
– Certo. Hoje temos um longo trabalho. Há livros, mapas e contas a fazer, e mais trabalho com vela e remo, depois mais livros e mapas. Vocês vão tarde para a cama.
É melhor se acostumarem a estas coisas aqui, no Castelo dos Marinheiros de Primeira Viagem. – Caldris cuspiu nas pedras. – Agora meça a porra da latitude!
7
– O que quer dizer “virar em roda”? – perguntou Jean.
Era o fim da tarde do nono dia com Caldris e Jean estava enfiado numa enorme banheira de bronze. Apesar do calor dos aposentos fechados na Villa Candessa, ele tinha
exigido água quente, e fiapos de vapor subiam sinuosos mesmo depois de 45 minutos. Numa mesinha ao lado da banheira, repousavam uma garrafa aberta de conhaque de
Austershalin (o 554, o mais barato disponível) e as Irmãs Malvadas.
Locke fechara os postigos e as cortinas das janelas, trancara a porta e enfiara uma cadeira embaixo da maçaneta. Isso poderia fornecer alguns segundos de alerta
adicional caso alguém tentasse entrar à força. Locke estava deitado na cama, deixando duas taças de conhaque afrouxarem os nós dos músculos. As facas se encontravam
na mesinha de cabeceira, a menos de um metro de suas mãos.
– Ah, deuses. Eu sei o que é. É... uma coisa... ruim?
– Receber ondas fortes de través – respondeu Jean. – Pegá-las de lado, em vez de cortá-las com a proa.
– E isso é ruim.
– Bastante ruim. – Jean estava folheando um exemplar muito manuseado do Léxico prático do bom marinheiro, com numerosos exemplos esclarecedores da história honesta,
de Indrovo Lencallis. – Ora, você é o capitão do navio. Eu sou apenas seu leão de chácara.
– Eu sei. Mande outra.
O exemplar de Locke estava embaixo das facas e do copo de conhaque.
– Hummm. – Jean folheou o livro. – Caldris disse para colocar o barco de través. De que diabo ele está falando?
– Com o vento vindo perpendicular à quilha – murmurou Locke. – Batendo direto na lateral.
– E agora ele quer que a gente ponha na alheta.
– Certo. – Locke parou para bebericar o conhaque. – O vento não viria nem pelo nosso rabo nem direto de lado. Viria de um dos quartos traseiros, a 45 graus da quilha,
aproximadamente.
– Muito bom. – Jean folheou o livro de novo. – Bússola. Qual é o nono ponto?
– Tudo a leste. Deuses, isso é igual a jantar com o Correntes.
– Correto. Um ponto ao sul.
– Ah... leste por sul.
– Certo. Mais um ponto ao sul.
– Lés-sueste?
– E mais um ponto.
– Ah, deuses. – Locke engoliu o resto do conhaque de uma vez. – Sudeste-foda-se. Chega por hoje.
– Mas...
– Eu sou o capitão do maldito navio – replicou Locke, ficando de bruços. – Minhas ordens são para beber seu conhaque e ir para a cama.
Ele colocou um travesseiro sobre a cabeça e dormiu em instantes. Mesmo nos sonhos, estava dando nós, içando velas e encontrando latitudes.
8
– Eu não sabia que tinha entrado para a sua marinha – disse Locke na manhã seguinte. – Achei que a ideia era fugir dela.
– É um meio para chegar a um fim, mestre Kosta.
O Arconte estivera esperando-os na baía particular, dentro da Marina da Espada. Um dos seus barcos pessoais (Locke se lembrava dele, das cavernas de vidro sob o
Mon Magisteria) estava amarrado atrás do esquife. Merrane e meia dúzia de Olhos o auxiliavam. Agora Merrane ajudava Locke a experimentar um uniforme de oficial da
marinha verrari.
A túnica e o calção eram do mesmo azul-escuro dos gibões dos Olhos. Mas o casaco era de um vermelho amarronzado, com couro preto e rígido costurado ao longo dos
antebraços, imitando braçadeiras. O lenço de pescoço era azul-escuro e reluzentes divisas de latão com a forma de rosas sobre espadas cruzadas estavam pregados logo
abaixo dos ombros.
– Não tenho muitos oficiais de cabelos claros, mas o uniforme lhe serve bem. Mandarei fazer mais dois até o fim da semana. – O Arconte estendeu a mão e ajeitou alguns
detalhes: apertou o lenço de pescoço, mudou a posição da bainha vazia presa ao cinto. – Você vai usá-lo algumas horas por dia. Acostume-se com ele. Um dos meus Olhos
vai lhe dar instruções sobre postura, cortesias e saudações.
– Ainda não entendo por que...
– Eu sei. – Stragos se virou para Caldris, que, na presença do patrão, havia perdido a costumeira malícia vulgar. – Como eles estão se saindo no treinamento, mestre
de navegação?
– O Protetor já conhece muito bem minha opinião geral sobre esta missão – respondeu Caldris lentamente.
– Não foi isso que eu perguntei.
– Eles estão... menos inúteis do que antes, Protetor. Um pouquinho menos inúteis.
– Então vai dar certo. Você ainda tem quase três semanas para moldá-los. Devo dizer que eles já parecem mais afeitos ao trabalho duro sob o sol.
– Onde está nosso navio, Stragos? – perguntou Locke.
– Esperando.
– E onde está nossa tripulação?
– À disposição.
– E por que, diabos, estou usando este uniforme?
– Porque me agrada torná-lo capitão da minha marinha. Foi isso que eu quis indicar com as duas rosas sobre as espadas. Você vai ser capitão apenas por uma noite.
Aprenda a parecer confortável com o uniforme. Depois aprenda a ser paciente esperando as ordens.
Locke fez uma carranca, colocou a mão direita na bainha e cruzou o braço esquerdo sobre o peito, com o punho fechado. Fez uma reverência dobrando a cintura no ângulo
exato que vira os Olhos se inclinarem em várias ocasiões.
– Que os deuses defendam o Arconte de Tal Verrar.
– Muito bem – falou Stragos. – Mas você é oficial, não um soldado ou marinheiro comum. Você faz a reverência num ângulo menor.
Ele se virou e andou em direção ao seu barco. Os Olhos formaram fileiras e marcharam atrás e Merrane começou a tirar rapidamente o uniforme de Locke.
– Devolvo os cavalheiros aos cuidados de Caldris – disse o Arconte, subindo no barco. – Usem bem os seus dias.
– E exatamente quando, em nome dos deuses, vamos saber como tudo isso se encaixa?
– Tudo a seu tempo, Kosta.
9
Duas manhãs depois, quando o portão se escancarou para deixar que o barco de Merrane entrasse na baía particular da Marina da Espada, Locke e Jean se surpreenderam
ao ver que, junto ao esquife, havia surgido durante a noite um navio de verdade.
Caía uma chuva fraca e quente, não uma verdadeira rajada do Mar de Bronze e, sim, uma irritação vinda do continente. Caldris esperava na praça de pedra usando um
casaco impermeável leve, com fios de água escorrendo do cabelo e da barba desprotegidos. Ele sorriu no momento em que Locke e Jean desceram do barco vestidos com
roupas leves e sem botas.
– Olhem para vocês dois! – gritou Caldris. – Aqui está ele em pessoa. O navio em que com certeza vamos morrer! – Deu um tapa nas costas de Locke e gargalhou. – Foi
chamado de Mensageiro Vermelho.
– É mesmo? – A embarcação estava calma e silenciosa, as velas enroladas, as lanternas apagadas. Havia algo incomensuravelmente melancólico num navio nesse estado,
pensou Locke. – É um dos navios do Arconte, não é?
– Não. Parece que os deuses favoreceram o Protetor com uma chance de ser bastante econômico nesta missão. Sabe o que são vespas-estilete?
– Bem demais.
– Algum idiota tentou entrar no porto com uma colmeia no porão, não faz muito tempo. Só os deuses sabem o que ele estava planejando com isso. Acabou executado e
o navio foi confiscado pelo Arconato. O ninho de monstrinhos foi queimado.
– Ah – fez Locke, com um risinho. – Tenho certeza de que foi. Pelos meticulosos e incorruptíveis agentes da alfândega de Tal Verrar.
– O Arconte mandou que ele fosse recauchutado – continuou Caldris. – Precisava de velas novas, algum escoramento, novos cabos, um pouco de calafetagem. O interior
foi fumigado com enxofre e ele foi batizado com um novo nome. Ainda assim, saiu bem barato, já que o Protetor não precisou oferecer um dele.
– Qual é a idade do navio?
– Vinte anos, pelo que parece. Anos duros, provavelmente, porém vai aguentar mais alguns. Presumindo que possamos trazê-lo de volta. Agora mostre que você aprendeu:
o que você acha que ele é?
Locke examinou a embarcação, que tinha dois mastros, um convés de popa um pouco erguido e um único bote armazenado de cabeça para baixo na área central.
– É um caulotte?
– Não. É mais exatamente um vestrel, que você também chamaria de brigue, e muito pequeno. Sei por que você disse que era um caulotte. Mas deixe-me dizer por que
você errou nas particularidades...
Caldris se pôs a dar um sem-número de explicações técnicas, apontando para coisas como braçadeiras principais a sotavento e vergas secas, que Locke só entendeu pela
metade, como um visitante numa cidade estrangeira ouvindo orientações ansiosas dadas por um nativo de fala rápida.
– ... tem 88 pés de popa a proa, sem contar o gurupés, claro – concluiu Caldris.
– Eu ainda não tinha percebido realmente – disse Locke. – Pelos deuses, eu devo comandar mesmo esse navio.
– Rá! Não. Você vai fingir que comanda esse navio. Não seja picado pela mosca azul. Tudo que você precisa é dizer à tripulação quais são as minhas ordens. Agora
vamos a bordo, depressa.
Caldris levou-os por uma rampa até o convés do Mensageiro Vermelho. Enquanto Locke olhava ao redor, absorvendo cada detalhe visível, uma inquietação cresceu em seu
estômago. Acamado, ele havia desconsiderado todas as minúcias da vida a bordo de um navio em sua única viagem, mas agora cada nó e cada anilha, cada moitão e cada
talha, cada ovém, cabo, pino e mecanismo poderia ser a chave para salvar sua vida... ou estragar totalmente sua farsa.
– Maldição – murmurou para Jean. – Talvez há dez anos eu pudesse ser idiota a ponto de achar que isso seria fácil.
– E não vai se tornar mais fácil – disse Jean, apertando o ombro bom de Locke. – Mas ainda temos tempo de aprender.
Andaram por toda a extensão do navio sob a garoa quente; Caldris apontava coisas e exigia respostas para perguntas difíceis. Terminaram o passeio no centro do Mensageiro
Vermelho e Caldris se encostou no bote do navio para descansar.
– Bem, vocês aprendem rápido, para homens de terra. Isso eu devo admitir. Mesmo assim já caguei montes de bosta com mais conhecimento marítimo do que vocês dois
juntos.
– Venha para terra e deixe que a gente tente lhe ensinar nossa profissão numa hora dessas, cara de bode.
– Rá! Mestre de Ferra, o senhor vai se encaixar muito bem nesse disfarce. Talvez nunca saiba diferenciar um cagalhão de uma vela de estai, mas tem os modos de um
imediato fantástico. Agora subam pelas cordas. Vamos visitar a gávea esta manhã, enquanto esse belo tempo continua.
– A gávea? – Locke olhou o mastro principal, que subia até o cinza lá no alto, e estreitou os olhos porque a chuva caía diretamente em seu rosto. – Está chovendo,
cacete!
– Sabia que também chove no mar? Ninguém avisou?
Caldris foi até os ovéns principais de estibordo, que desciam até o lado oposto da amurada e estavam presos por bigotas no casco exterior. Grunhindo, o mestre de
navegação subiu no corrimão e chamou Locke e Jean.
– Os pobres coitados da sua tripulação vão subir aqui, independentemente do tempo. Não vou levar vocês para o mar como virgens de cordas, portanto arrastem esse
rabo para cá!
Eles acompanharam Caldris, pisando com cuidado nos enfrechates que atravessavam os ovéns e forneciam apoios para os pés. Locke precisou admitir que quase duas semanas
de exercícios constantes haviam lhe dado mais fôlego para uma tarefa dessas e começavam a amenizar a dor nos ferimentos antigos. Mesmo assim, a sensação estranha
e frouxa da escada de corda não era nem um pouco familiar e ele ficou feliz quando um lais de verga escuro surgiu na garoa logo acima. Alguns instantes depois, se
alçou com dificuldade até se juntar a Jean e Caldris numa plataforma circular que era abençoadamente firme.
– Estamos a dois terços da subida, talvez – informou Caldris. – Esta verga segura a vela mestra. Mais acima, ficam as velas de gávea e os joanetes. Mas, por enquanto,
isto está bom. Deuses, se vocês acharam que foi ruim hoje, podem se imaginar subindo aqui com o navio corcoveando de um lado para o outro como um touro fazendo bebês?
Rá!
– Não pode ser tão ruim quanto a porra de um idiota despencando em cima da gente – replicou Jean.
– Eu terei de vir aqui em cima com frequência? – perguntou Locke.
– Você tem olhos de águia?
– Acho que não.
– Então para o diabo. Ninguém vai esperar que você faça isso. O lugar do capitão é no convés. Se quiser ver as coisas à distância, use uma luneta. Você vai ter vigias
abraçando o mastro lá em cima para olhar por você.
Contemplaram a vista por mais alguns minutos, depois o trovão ribombou não muito longe e a chuva aumentou.
– Vamos descer, acho. – Caldris se levantou e se preparou para escorregar pela borda. – Não se pode tentar os deuses.
Locke e Jean chegaram de novo ao convés sem problemas, mas Caldris pulou dos ovéns respirando com dificuldade.
– Maldição, estou velho demais para ir lá em cima. Graças aos deuses o lugar do mestre também é no convés. – O trovão pontuou suas frases. – Venham, então. Vamos
usar a cabine principal. Nada de velejar hoje, só livros e mapas. Sei como vocês amam isso.
10
No fim da terceira semana com Caldris, Locke e Jean haviam começado a nutrir contidas esperanças de que o encontro com os dois assassinos no cais não se repetiria.
Merrane continuava a escoltá-los todas as manhãs, mas à noite eles tinham alguma liberdade, desde que saíssem armados e não se aventurassem mais longe do que a beira-mar
interna do bairro do Arsenale. Ali, as tavernas eram cheias de soldados e marinheiros do Arconte: seria um lugar difícil para alguém fazer uma emboscada sem ser
notado.
Às dez da noite do Dia do Duque – que os verraris chamavam de Dia do Conselho, é claro –, Jean encontrou Locke olhando para uma garrafa de vinho fortificado numa
mesa dos fundos na estalagem Marco dos Mil Dias. O lugar era espaçoso e bem iluminado e estava barulhento com a agitação dos bons negócios. Era um bar naval: todas
as melhores mesas, sob reproduções de antigas flâmulas de batalha verraris, estavam ocupadas por oficiais cujo status social era evidente, quer usassem seus uniformes
ou não. Os marinheiros comuns bebiam e jogavam na penumbra ao redor e os poucos não marinheiros se congregavam nas mesas pequenas ao redor de Locke.
– Achei que iria encontrá-lo aqui – disse Jean, sentando-se diante dele. – O que você acha que está fazendo?
– Trabalhando. Não é óbvio? – Locke segurou a garrafa de vinho pelo gargalo e fez um gesto para Jean. – Este é o meu martelo. – Bateu com os nós dos dedos no tampo
da mesa. – E esta é a minha bigorna. Estou moldando meu cérebro até deixá-lo com uma forma mais agradável.
– Qual é a ocasião especial?
– Eu só queria, durante metade de uma noite, não ser o capitão da porra de uma expedição naval fantasma. – Locke falava num sussurro controlado e, para Jean, ficou
claro que ele ainda não estava bêbado e, sim, possuído de um desejo sério de ficar. – Minha cabeça está cheia de pequenos navios, todos rodando e rodando alegres,
inventando nomes novos para as coisas que estão nos conveses! – Ele parou para tomar um gole, depois ofereceu a garrafa a Jean, que a recusou. – Imagino que você
estava estudando diligentemente o seu Léxico.
– Em parte. – Jean virou a cadeira um pouquinho na direção da parede, para olhar sem obstruções a maior parte da taverna. – Também redigi algumas mentirinhas educadas
para Durenna e Corvaleur. Elas andaram mandando bilhetes para a Villa Candessa, perguntando quando vamos voltar às mesas de jogo para que possam ter outra chance
de nos estripar.
– Odeio demais desapontar as damas, mas esta noite estou de licença de tudo. Nada de Agulha, do Arconte, de Durenna, do Léxico, de tabelas náuticas. Só aritmética
simples. Bebida mais bebedor é igual a bêbado. Junte-se a mim. Só durante uma ou duas horas. Você sabe que iria gostar.
– Sei. Mas Caldris está ficando mais exigente a cada dia; acho que vamos precisar de cabeças desanuviadas amanhã mais do que precisamos de cabeças turvas esta noite.
– As lições de Caldris não estão clareando nossa cabeça. Pelo contrário. Estamos recebendo cinco anos de ensinamentos em um mês. Está tudo uma confusão só. Sabe,
antes de vir para cá esta noite, eu comprei meio melão apimentado. A mulher da barraca perguntou qual melão eu queria que ela cortasse, o da esquerda ou da direita,
eu respondi: “O de bombordo!” Minha própria língua se virou contra mim, numa traição náutica.
– É uma espécie de linguagem dos loucos, não é? – Jean tirou os ópticos do bolso do casaco e pôs na ponta do nariz para examinar a gravura pouco nítida na garrafa
de vinho de Locke: era uma safra anscalani insignificante. – Com convoluções intricadas demais. Digamos que você tenha uma corda caída no convés. No Dia da Penitência,
é só uma corda caída no convés. Depois da terceira hora do Dia do Ocioso, é uma forca-balbucio de meia braçada. À meia-noite do Dia do Trono, vira uma corda de novo,
a não ser que esteja chovendo.
– A não ser que esteja chovendo, é, e nesse caso você tira a roupa e dança nu em volta do mastro de mezena. Pelo amor dos deuses, é. Juro, Je... Jerome, a próxima
pessoa que me disser algo do tipo “Levante a verga do patarrás e enterre o mastaréu na bujarrona” vai ser degolado. Mesmo se for o Caldris. Chega de termos náuticos
esta noite.
– Você parece estar com todos os panos enfunados.
– Ah, esta é a sua sentença de morte assinada, seu quatro-olhos. – Locke espiou as profundezas da garrafa, como um falcão observando um camundongo num campo lá embaixo.
– Ainda não tem uma quantidade suficiente dessa coisa dentro de mim. Pegue um copo e me acompanhe. Quero virar uma vergonha pública o mais cedo possível.
Houve uma agitação junto à porta, seguida por uma interrupção geral da conversa e um burburinho que Jean reconheceu, pela longa experiência, como sendo muito, muito
perigoso. Levantou os olhos, cauteloso, e viu que meia dúzia de homens havia acabado de pôr os pés na taverna. Dois deles usavam uniformes parciais de guardas, sob
capas, sem as proteções e armas usuais. Seus companheiros estavam à paisana, mas os corpos e a postura diziam a Jean que eram todos exemplos daquela criatura conhecida
comumente como guardas citadinos.
Um deles, fosse por destemor ou por possuir a sensibilidade de uma pedra, foi até o balcão e pediu para ser atendido. Seus companheiros, mais sensatos e, portanto,
mais nervosos, começaram a sussurrar entre si. Cada olhar na taverna estava fixo neles.
Houve um som raspado quando uma mulher de aparência durona, numa das mesas dos oficiais, empurrou a cadeira para trás e se levantou devagar. Em segundos, todos os
seus companheiros se ergueram. O movimento se espalhou pelo bar numa onda, primeiro os outros oficiais, depois os marinheiros comuns, assim que viram que a vantagem
seria de oito a um a seu favor. Logo, quatro dúzias de homens e mulheres estavam de pé, em silêncio, apenas olhando os seis homens junto à porta. O pequeno grupo
em volta de Locke e Jean ficou plantado nos assentos; no mínimo, caso permanecessem onde estavam, ficariam longe da linha principal de encrenca.
– Os senhores vieram de longe, não foi? – perguntou o dono da taverna enquanto seus dois auxiliares enfiavam a mão disfarçadamente atrás do balcão para pegar o que
sem dúvida eram armas.
– Como assim? – Se o policial ao balcão não estava fingindo perplexidade, pensou Jean, ele era mais burro que uma porta. – Viemos dos Degraus de Ouro. Acabamos de
sair do serviço. Temos sede e um bom bocado de moedas para acabar com ela.
– Talvez outra taverna fosse mais do agrado dos senhores esta noite.
– O quê?
Enfim, o homem pareceu perceber que era o foco da atenção de uma turba. Como sempre, pensou Jean, havia dois tipos de gente na guarda de uma cidade: os que tinham
olhos para encrenca na nuca e os que usavam o crânio para guardar serragem.
– Eu disse... – começou o dono, obviamente perdendo a paciência.
– Espere – pediu o policial, levantando as mãos na direção dos clientes da taverna. – Agora entendi. Já tomei umas esta noite. Vocês precisam me desculpar, não estou
querendo ofender. Afinal de contas, não somos todos verraris aqui dentro? Só queremos uma bebida.
– Há um monte de lugares para beber – replicou o dono. – Um monte de lugares mais adequados.
– Não queremos arranjar problema para ninguém.
– Não seria problema para nós – retrucou um homem corpulento usando túnica e calção navais. Seus companheiros de mesa compartilharam um risinho maligno. – Encontre
a porra da porta.
– Cachorros do Conselho – murmurou outro oficial. – Farejadores de ouro desonrosos.
– Esperem aí – disse o policial, soltando-se de um amigo que tentava puxá-lo para a porta. – Esperem aí, eu disse que a gente não queria problema. Droga, eu falei
sério! Acalmem-se. Vamos embora. Tomem uma rodada por minha conta, todo mundo. Todo mundo! – Ele sacudiu a bolsa com as mãos trêmulas. Cobre e prata retiniram no
balcão de madeira. – Uma rodada de boa cerveja escura verrari para quem quiser, e fique com o troco.
O dono da taverna olhou do policial infeliz para o homem troncudo que havia falado antes. Jean supôs que o sujeito fosse um dos oficiais de maior patente no lugar
e o gerente esperava seu julgamento.
– Você fica bem rastejando – disse o homem com um sorriso torto. – Não vamos beber com você, mas ficaremos felizes em gastar seu dinheiro assim que você sair de
vez por essa porta.
– Claro. Paz, amigos, não queríamos ofender.
O sujeito parecia a ponto de falar mais, porém dois de seus colegas o agarraram pelos braços e o arrastaram de volta pela porta. Houve uma gargalhada geral e aplausos
quando o último policial sumiu na noite.
– E é assim que a marinha acrescenta dinheiro ao orçamento! – gritou o oficial. Seus companheiros de mesa gargalharam e ele ergueu o copo para o resto da taverna.
– Ao Arconte! Confusão aos seus inimigos em casa e no estrangeiro!
– Ao Arconte! – berraram em coro os outros oficiais e marinheiros.
Logo todos estavam acomodados e outra vez de bom humor e o dono da taverna contava o dinheiro do guarda enquanto seus ajudantes enfileiravam copos de madeira ao
lado de um barril de cerveja escura. Jean franziu a testa, calculando de cabeça. Para quase cinquenta pessoas, até mesmo uma cerveja escura comum custaria ao policial
pelo menos um quarto de seu salário mensal. Ele conhecera muitos homens que prefeririam se arriscar a uma perseguição e uma surra antes de abrir mão de tanto dinheiro
ganhado com suor.
– Pobre idiota bêbado. – Ele suspirou, olhando para Locke. – Ainda quer se tornar um embaraço público? Parece que houve um aqui.
– Acho que depois dessa garrafa eu só vou retornar ao meu porto seguro.
– Retornar ao porto é uma expressão náu...
– Eu sei. Eu me mato depois.
Os dois garçons mais novos circularam com bandejas grandes, entregando copos de madeira com cerveja escura, primeiro para os oficiais, que na maior parte se mostraram
indiferentes, e então para os marinheiros comuns, que receberam a bebida com entusiasmo. Como se lembrassem de última hora, um deles acabou chegando ao canto onde
Locke, Jean e os outros civis estavam sentados.
– Um gole da escura, senhores? – Ele pousou dois copos diante de Locke e Jean e, com a destreza digna de um malabarista, jogou sal de um pequeno recipiente de vidro.
– Cortesia do homem com mais ouro do que miolos. – Jean pôs uma moeda de cobre na bandeja, para ser sociável, e o homem assentiu em agradecimento antes de ir para
a mesa seguinte. – Um gole da escura, senhora?
– Sem dúvida, precisamos vir aqui com mais frequência – falou Locke, apesar de nem ele nem Jean tocar a cerveja grátis.
Parecia que Locke estava contente em tomar seu vinho e Jean, consumido por pensamentos sobre os desafios de Caldris no dia seguinte, não sentia vontade de beber.
Eles passaram alguns minutos conversando em voz baixa, até que por fim Locke olhou para seu copo de cerveja e suspirou.
– Cerveja escura salgada não é a coisa certa para tomar depois de um vinho forte – pensou em voz alta.
A mulher sentada atrás dele se virou e lhe deu um tapinha no ombro.
– Ouvi direito, senhor? – Ela parecia alguns anos mais nova do que Locke e Jean, vagamente bonita, com tatuagens de um vermelho vivo no antebraço e um bronzeado
intenso que lhe dava a aparência de uma trabalhadora do cais. – A escura salgada não é do seu gosto? Não quero ser intrometida, mas acabei de ficar seca aqui...
– Ah. Ah! – Locke se voltou, sorrindo, e entregou seu copo de cerveja para ela, por cima do ombro. – Claro, sirva-se. Com os meus cumprimentos.
– A minha também – completou Jean, passando a dele. – Ela merece ser apreciada.
– E será. Muito obrigada, senhores.
Os Nobres Vigaristas voltaram à sua conversa sussurrada.
– Uma semana – disse Locke. – Talvez duas, e então Stragos quer que a gente vá. Chega de loucuras teóricas. Vamos viver a coisa lá fora, no oceano maldito.
– Mais motivo ainda para eu estar satisfeito por você não se enrolar demais nessa garrafa hoje.
– Um pouco de autopiedade funciona bem ultimamente. E traz lembranças de um tempo que eu preferiria esquecer.
– Não precisa ficar se desculpando por... aquilo. Não a você mesmo e com certeza não a mim.
– Sério? – Locke passou um dos dedos para cima e para baixo pela garrafa meio vazia. – Parece que vejo uma história diferente nos seus olhos sempre que me engraço
com um ou dois copos. Fora de uma mesa do Carrossel da Sorte, claro.
– Ei, espera aí...
– Não foi uma afronta – acrescentou Locke rapidamente. – É apenas a verdade, só isso. E não posso dizer que você estava errado em sentir aquilo. Você... O que foi?
Jean havia erguido os olhos, distraído por um chiado que soava atrás de Locke. A mulher que pedira a cerveja estava meio levantada da cadeira, apertando a garganta,
lutando para respirar. Jean ficou de pé no mesmo instante, contornou Locke e segurou-a pelos ombros.
– Calma, senhora, calma. Tinha sal demais na cerveja?
Ele girou-a e lhe deu vários tapas fortes nas costas, com a base da mão direita. Para seu alarme, a mulher continuou engasgando. Na verdade, agora estava inspirando
absolutamente nada a cada tentativa inútil de respirar. Virou-se e o agarrou em desespero; seus olhos estavam arregalados de terror e a vermelhidão do rosto não
tinha nada a ver com o bronzeado.
Jean olhou os três copos de cerveja vazios na mesa diante dela e uma percepção súbita se acomodou em sua barriga como um peso frio. Ele agarrou Locke com a mão esquerda
e praticamente o arrancou da cadeira.
– De costas para a parede – sussurrou. – Proteja-se! – Em seguida, gritou para o resto da taverna: – Socorro! Esta mulher precisa de socorro!
Houve um tumulto geral; oficiais e marinheiros se levantaram, esforçando-se para ver o que acontecia. Abrindo caminho com os cotovelos pela massa de fregueses e
cadeiras subitamente vazias, veio uma mulher de casaco preto, o cabelo cor de nuvem de tempestade puxado num rabo comprido e apertado, com anéis de prata.
– Saiam da frente! Sou sanguessuga de navio!
Ela tirou a mulher dos braços de Jean e lhe deu três socos fortes nas costas, usando a parte de baixo do punho fechado.
– Já tentei isso! – exclamou Jean.
A mulher engasgada se sacudia contra ele e a sanguessuga, empurrando-os como se fossem a causa de seus problemas. Suas bochechas estavam cor de vinho escuro. A sanguessuga
conseguiu envolver o pescoço da mulher e apertar sua traqueia.
– Santos deuses, a garganta inchou e está dura feito pedra. Segure-a em cima da mesa com toda a força!
Jean empurrou a mulher sobre a mesa, espalhando os copos de cerveja vazios. Uma multidão se formava ao redor; Locke olhava aquilo inquieto, com as costas contra
a parede, como Jean havia insistido. Olhando freneticamente ao redor, Jean pôde ver o dono da taverna e um dos seus ajudantes... mas o outro tinha sumido. Onde,
diabos, estava o que servira aqueles copos de cerveja?
– Uma faca! – gritou a sanguessuga para a multidão. – Uma faca afiada! Agora!
Locke tirou um punhal da manga esquerda e o entregou. A sanguessuga olhou-o e assentiu; um gume estava visivelmente cego, mas o outro, como Jean sabia, parecia um
bisturi. A sanguessuga segurou-o como se fosse um esgrimista e usou a outra mão para forçar a cabeça da mulher para trás.
– Aperte-a para baixo com toda a força – pediu a Jean.
Mesmo com toda a vantagem da posição e do peso, Jean precisou se esforçar para manter os braços da jovem imóveis. A sanguessuga se apoiou firmemente numa perna dela
e um marinheiro de raciocínio rápido veio por trás, para segurar a outra.
– Se ela se sacudir, vai morrer – avisou ela.
Enquanto Jean olhava num fascínio horrorizado, a sanguessuga apertou o punhal contra o pescoço da mulher. Os músculos se destacavam como os de uma estátua de pedra
e a traqueia parecia proeminente feito um tronco de árvore. Com uma suavidade que inspirou espanto em Jean, dada a situação, a sanguessuga fez um corte delicado
atravessando a traqueia, logo acima do ponto onde ela desaparecia sob as clavículas da mulher. O sangue vermelho-vivo borbulhou da abertura, depois correu farto
pelas laterais do pescoço. Os olhos dela se reviravam e sua luta havia se tornado assustadoramente fraca.
– Pergaminho! – berrou a sanguessuga. – Me arranjem um pergaminho!
Diante da consternação do gerente, vários marinheiros puseram o bar de pernas para o ar, procurando qualquer coisa que lembrasse um pergaminho. Outra oficial abriu
caminho pela multidão, pegando uma carta dentro do casaco. A sanguessuga examinou-a, enrolou-a num tubo apertado e fino e o enfiou no corte. Jean mal percebeu que
estava de queixo caído.
A sanguessuga havia começado a bater no peito da mulher, murmurando uma série de palavrões capazes de escaldar os ouvidos. Mas a mulher estava frouxa; seu rosto
tinha um tom medonho de ameixa e o único movimento visível era o do sangue escorrendo em volta do tubo de pergaminho. A sanguessuga interrompeu o procedimento depois
de instantes e recostou-se na borda da mesa de Locke e Jean, ofegando. Limpou as mãos ensanguentadas na frente do casaco.
– Inútil – disse à multidão absolutamente silenciosa. – Os humores quentes dela foram totalmente sufocados. Não posso fazer mais nada.
– Ora, você a matou! – gritou o dono da taverna. – Cortou a porra da garganta dela bem na nossa frente!
– O maxilar e a garganta estavam retesados feito ferro – retrucou a sanguessuga, a raiva se intensificando. – Fiz a única coisa possível para ajudá-la!
– Mas você a cortou...
O corpulento oficial de alta patente que Jean vira antes foi até o balcão, seguido por um grupo de colegas. Mesmo do outro lado da sala, Jean pôde identificar uma
rosa sobre espadas em cada casaco ou túnica.
– Jevaun, você está questionando a competência da Erudita Almaldi?
– Não, mas o senhor viu...
– Está questionando as intenções dela?
– Ah, senhor, por favor...
– Está chamando uma galena que serve ao Arconte – continuou o oficial em voz implacável –, nossa irmã oficial, de assassina? Diante de testemunhas?
A cor sumiu do rosto do gerente tão depressa que Jean teve vontade de olhar atrás do balcão, para ver se ela havia se empoçado ali.
– Não, senhor – respondeu o homem às pressas. – Não quis dizer isso. Peço desculpas.
– Não a mim.
O gerente se virou para Almaldi e pigarreou.
– Peço seu perdão total, Erudita. – Olhou para os pés. – Eu... não vi muito sangue na vida. Falei por ignorância absoluta. Desculpe-me.
– Claro – falou a sanguessuga com frieza enquanto tirava o casaco, talvez só então percebendo como ele estava ensanguentado. – Que diabo essa mulher andou bebendo?
– Só a cerveja escura – respondeu Jean. – A escura verrari salgada.
Que era para nós, pensou. Seu estômago se revirou.
Suas palavras provocaram uma nova erupção de raiva na multidão, a maior parte da qual, claro, estivera bebendo recentemente a mesmíssima cerveja. Jevaun levantou
os braços e acenou pedindo silêncio.
– Era cerveja boa, limpa, direto do barril! Foi provada antes de ser tirada e servida! Eu a serviria aos meus netos! – Ele pegou um copo de madeira vazio, estendeu-o
para a multidão e tirou uma dose de cerveja do barril. – Isso eu declaro diante de testemunhas! Esta é uma casa honesta! Se há alguma tramoia acontecendo, não foi
obra minha!
Ele engoliu a cerveja em vários goles e estendeu o copo para as pessoas. O murmúrio continuou, mas o avanço furioso contra o balcão foi contido.
– É possível que ela tenha tido uma reação – comentou Almaldi. – Algum tipo de alergia. Nesse caso, seria a primeira vez que eu vejo algo assim. – Ela acrescentou,
levantando a voz: – Alguém mais se sente mal? Pescoço dolorido? Dificuldade para respirar?
Marinheiros e oficiais se entreolharam, balançando a cabeça. Jean fez uma oração silenciosa de agradecimento porque ninguém parecia ter visto a mulher pegar os copos
de cerveja fatal com ele e Locke.
– Onde, diabos, está seu outro garçom? – gritou Jean a Jevaun. – Eu contei dois antes que a cerveja fosse servida. Agora você só tem um!
O dono da taverna girou a cabeça de um lado para o outro, examinando a multidão. Em seguida, se virou, com um olhar horrorizado, para o ajudante que permanecia ali.
– Freyald só está morrendo de medo por causa da agitação, certo? Encontre-o. Encontre-o!
As palavras de Jean tinham provocado o efeito que ele desejava: marinheiros e oficiais se espalharam raivosos, procurando o garçom desaparecido. Jean podia ouvir
os trinados abafados dos apitos dos guardas em algum lugar lá fora. Logo os policiais estariam ali em peso. Cutucou Locke e sinalizou para a porta dos fundos da
taverna, através da qual vários outros fregueses, obviamente esperando mais complicações, já haviam escapulido.
– Senhores – disse a Erudita Almaldi enquanto Locke e Jean passavam.
Ela limpou o punhal de Locke na manga do casaco já arruinado e o devolveu. Ele assentiu ao pegá-lo.
– Erudita, a senhora foi soberba.
– E, no entanto, inútil. – Ela passou descuidadamente pelos cabelos os dedos sujos de sangue. – Farei com que alguém seja morto por causa disso.
Nós, se ficarmos aqui mais tempo, pensou Jean. Tinha uma suspeita maligna de que a guarda da cidade não ofereceria segurança caso ele e Locke fossem levados por
ela.
Outras discussões irrompiam na sala quando Jean conseguiu usar o corpo para abrir caminho para ele e Locke até a porta dos fundos, que dava num beco escuro. Nuvens
haviam se assentado no céu preto, bloqueando as luas, e num reflexo Jean deixou uma machadinha escorregar para a mão direita antes de dar três passos na noite. Seus
ouvidos treinados lhe diziam que os apitos dos guardas estavam a cerca de um quarteirão a oeste, e movendo-se depressa.
– Freyald – disse Locke, caminhando na escuridão. – Aquele garçom desgraçado. Nós éramos o alvo da cerveja, como se um quatrelo de balestra estivesse apontado para
nós.
– Essa foi a minha conclusão também – concordou Jean.
Ele guiou Locke, atravessando uma rua estreita, passando por um muro de pedras baixo e entrando num pátio silencioso que parecia cercar armazéns. Jean se agachou
atrás de um caixote parcialmente despedaçado e seus olhos, se ajustando ao escuro, viram Locke se achatar contra um barril ali perto.
– As coisas estão piorando – comentou Locke. – A situação é pior do que pensávamos. Quais as chances de meia dúzia de guardas da cidade não saberem quais bares são
seguros para irem quando estão de folga? Quais as chances de eles virem à porra do bairro errado?
– Ou pagar tantas bebidas para um bar cheio do pessoal do Arconte? Eles eram apenas um disfarce. Provavelmente nem sabiam o que estavam encobrindo.
– Isso ainda significa que quem está atrás de nós pode mexer os pauzinhos na guarda citadina.
– Isso significa o Priori – completou Jean.
– Eles ou alguém próximo deles. Mas por quê?
Houve um som súbito de couro batendo em pedra atrás deles; Locke e Jean ficaram em silêncio. Jean se virou a tempo de ver um vulto grande pular o muro atrás deles
e o ruído de solas nas pedras foi um aviso de que se tratava de um homem de certo peso.
Num movimento suave, Jean tirou o casaco, girou-o num arco para o alto e o jogou sobre a pessoa, que começou a lutar com a roupa. Jean saltou, acertou o cocuruto
do oponente com a parte rombuda da machadinha e o socou no plexo solar, fazendo-o se dobrar. Depois disso, foi brincadeira de criança atirá-lo de cara no chão com
um empurrão nas costas.
Locke sacudiu uma lâmpada alquímica minúscula, pouco mais do que um frasco do tamanho do polegar, acendendo-a. Bloqueou a luz fraca com o corpo para que ela focasse
apenas o homem caído. Jean pegou o casaco de volta, revelando um sujeito alto, musculoso, com cabeça raspada. Ele se vestia de modo comum, como um cocheiro ou serviçal,
e pôs uma das mãos no rosto, gemendo. Jean encostou a lâmina da machadinha embaixo do queixo dele.
– M... Mestre de Ferra, não, por favor – sussurrou o homem. – Doces deuses, eu sou do grupo de Merrane. Fui mandado para... procurar os senhores.
Locke segurou a mão esquerda do sujeito e tirou a luva de couro. Jean viu uma tatuagem nas costas da mão do estranho, um olho aberto no centro de uma rosa. Locke
suspirou e murmurou:
– Ele é um Olho.
– Ele é um maldito imbecil – reclamou Jean, olhando ao redor antes de pousar a machadinha em silêncio e rolar o sujeito de costas. – Calma, amigo. Eu bati de leve
na sua cabeça, mas no estômago, não. Fique aí deitado e respire alguns minutos.
– Já fui acertado antes. – O estranho bufou e Jean pôde ver que lágrimas de dor brilhavam no rosto dele. – Pelos deuses, me admira os senhores precisarem de proteção.
– Sem dúvida precisamos – replicou Locke. – Você estava no Mil Dias, certo?
– Estava. E eu vi os senhores darem os copos de cerveja àquela pobre mulher. Ah, porra, parece que meu estômago vai explodir.
– Isso vai passar – garantiu Jean. – Você viu para onde foi o garçom que sumiu?
– Eu o vi entrar na cozinha e não prestei atenção se ele voltou. Na hora, não tinha por que reparar.
– Merda. – Locke fez uma carranca. – Imagino que Merrane tenha soldados por perto, para casos de necessidade.
– Quatro num velho armazém, apenas um quarteirão ao sul. – O Olho ofegou várias vezes antes de continuar. – Eu devo levar os senhores para lá se houver uma encrenca.
– E houve – disse Locke. – Quando você puder se mover, leve-nos até eles. Precisamos chegar inteiros à Marina da Espada. Depois, preciso que você leve uma mensagem
para ela. Você pode encontrá-la esta noite?
– Em menos de uma hora – respondeu o homem, esfregando a barriga e olhando para o céu sem estrelas.
– Diga a ela que queremos aceitar sua oferta anterior, de... quarto e refeições.
Jean coçou a barba, pensativo, e assentiu.
– Vou mandar um bilhete para o Requin avisando que vamos partir em um ou dois dias – informou Locke. – Não estaremos por aqui por muito mais tempo do que isso, na
verdade. Não confio mais que possamos andar pelas ruas. Podemos pedir uma escolta para pegar nossas coisas na Villa Candessa amanhã, dar saída na nossa suíte, colocar
a maior parte das roupas num depósito. Depois vamos nos esconder na Marina da Espada.
– Nós temos ordens de proteger os senhores – disse o Olho.
– Eu sei – falou Locke. – É mais ou menos a única coisa de que temos certeza agora: o seu patrão pretende nos usar, não nos matar. Portanto, vamos contar com a hospitalidade
dele. – Locke devolveu a luva do soldado. – Por enquanto.
11
Duas carruagens com Olhos vestidos à paisana acompanharam Locke e Jean até a Villa Candessa na manhã seguinte.
– Lamento tremendamente vê-los partir – afirmou o administrador principal quando Locke rabiscou a assinatura de Leocanto Kosta nos últimos pedaços de pergaminho.
– Os senhores foram hóspedes soberbos; esperamos que nos considerem de novo na próxima vez em que visitarem Tal Verrar.
Locke não tinha dúvida de que a estalagem estava satisfeita com os negócios: pagando cinco moedas de prata por dia durante um ano e meio, além do preço dos serviços
adicionais, ele e Jean haviam deixado uma pilha de solaris suficiente para comprar uma casa decente e contratar funcionários capazes.
– Assuntos prementes exigem nossa presença em outro lugar – murmurou Locke, com frieza, mas logo censurou-se: não era culpa do administrador eles estarem sendo expulsos
do conforto por Stragos, pelos Magos-Servidores e por uns malditos assassinos misteriosos. – Aqui – acrescentou, pescando 3 solaris no casaco e colocando-os na mesa.
– Faça com que isto seja dividido e distribuído a todos os funcionários. – Ele virou a palma da mão para cima e, como um prestidigitador, conjurou outra moeda de
ouro. – E esta é para você, para expressar nossa gratidão por sua hospitalidade.
– Voltem quando quiserem – afirmou o administrador, fazendo uma profunda reverência.
– Voltaremos – assegurou Locke. – Antes de irmos, eu gostaria de deixar tudo arranjado para que nossas roupas sejam guardadas por tempo indefinido. O senhor pode
ter certeza de que retornaremos para pegá-las.
Enquanto o administrador rabiscava feliz as ordens necessárias num pergaminho, Locke pegou um quadrado do documento azul timbrado da Villa Candessa e escreveu: Parto
de imediato pelos meios discutidos anteriormente. Espere minha volta. Permaneço profundamente agradecido pela confiança depositada em mim.
Locke observou o administrador lacrar o bilhete com a cera preta da casa.
– Que seja entregue sem demora ao Senhor da Agulha do Pecado. Se não puder ser pessoalmente, então que seja entregue apenas à governanta, Selendri. Eles vão querer
receber isso agora mesmo.
Locke suprimiu um sorriso diante do leve arregalar de olhos do administrador. A sugestão de que Requin tinha um interesse pessoal oculto no conteúdo do bilhete faria
com que ele fosse levado rapidamente e em segurança. Mesmo assim, Locke ainda planejava mandar outra cópia mais tarde, através de um agente de Stragos. Não havia
sentido em se arriscar.
– Lá se vão as belas camas – falou Jean, carregando até as carruagens os dois baús com as posses que restavam. Além de algumas centenas de solaris e túnicas e calções
para usar no mar, tinham mantido apenas as ferramentas para roubos: gazuas, armas, tinturas alquímicas, itens de disfarce. – Lá se vai o dinheiro de Jerome de Ferra.
– Lá se vão Durenna e Corvaleur – completou Locke com um sorriso tenso. – Lá se vai a necessidade de ficarmos olhando por cima dos ombros onde quer que estejamos.
Porque, na verdade, estamos entrando numa jaula. Mas só por alguns dias.
– Não – observou Jean, pensativo, enquanto passava por uma porta de carruagem segura por um guarda-costas. – Não, a jaula vai muito mais longe. Ela vai aonde quer
que a gente vá.
12
O treino com Caldris, que foi retomado naquela tarde, se tornou ainda mais árduo. O mestre de navegação os fez andar de uma extremidade à outra do navio, exercitando-os
na operação de tudo, desde os cabrestantes até a cozinha. Com a ajuda de um par de Olhos, eles desamarraram o bote do navio e içaram-no por cima da amurada. Levantaram
as grades das escotilhas de carga e treinaram mover barris para cima e para baixo com vários arranjos de talhas e moitões. Em todo lugar, Caldris os fazia dar nós
e dizer o nome de instrumentos obscuros.
Locke e Jean receberam a cabine de popa do Mensageiro Vermelho para morar. No mar, o compartimento de Jean seria separado do de Locke por uma fina parede de lona
esticada – a “cabine” minúscula de Caldris ficaria do outro lado do corredor –, mas por hora o espaço foi transformado em acomodações razoavelmente confortáveis
para solteiros. A necessidade de ficarem naquele lugar fechado pareceu deixar claro aos dois a seriedade de sua situação e eles redobraram os esforços, aprendendo
coisas novas e confusas com uma velocidade que não fora necessária desde que haviam estado sob a tutela do Padre Correntes. Toda noite Locke se pegava caindo no
sono com seu exemplar do Léxico como travesseiro.
De manhã, velejavam com seu esquife a oeste da cidade, dentro dos recifes de vidro mas com uma confiança cada vez maior, que só eclipsava um pouco sua capacidade
real. Nas tardes, Caldris citava itens e locais no convés do navio e queria que eles corressem a cada coisa nomeada.
– Bitácula! – gritou o mestre de navegação.
Locke e Jean correram juntos para a pequena caixa de madeira ao lado do timão do navio, que abrigava uma bússola e vários outros instrumentos de navegação. Nem bem
haviam tocado nela, Caldris continuou:
– Amurada de popa. – Essa era bem fácil. – Cabo de bosta!
Os Nobres Vigaristas passaram correndo pela gata perplexa, que lambia as patas deitada no ensolarado tombadilho. Os dois faziam careta ao correr, porque era nos
cabos de bosta que eles se firmavam enquanto se arrastavam até o gurupés para se aliviar no mar. Os métodos mais cômodos de cagar eram destinados aos passageiros
ricos nas embarcações maiores.
– Mastro de mezena! – berrou Caldris, e Locke e Jean pararam, ofegando.
– Esta porcaria de navio não tem – replicou Locke. – Só o mastro de proa e o principal.
– Ah, que esperto! Você decifrou meu ardil sutil, mestre Kosta. Pegue a droga do seu uniforme e vamos deixar que banque o pavão durante algumas horas.
Os três trabalhavam juntos durante os dias para definir um sistema de sinais com gestos e palavras; Locke e Jean faziam adaptações sensatas com base em sua linguagem
particular já existente.
– A privacidade num navio no mar é mais ou menos tão real quanto uma porra de mijo de fada – resmungou Caldris uma tarde. – Talvez eu não possa lhes dar instruções
claras com só os deuses sabem quem olhando e ouvindo. Vamos trabalhar com muitas cutucadas e sussurros. Se vocês souberem que alguma coisa complicada está se aproximando,
o melhor a dizer é só...
– Vejamos se você conhece o seu trabalho, Caldris! – Locke havia descoberto que o uniforme da marinha verrari ajudava bastante quando se tratava de fazer uma voz
autoritária.
– Certo. Isso ou algo assim. E se um dos marinheiros der uma de sabichão e quiser sua opinião sobre algo que você não sabe...
– Ora, marinheiro imaginário, certamente não preciso soletrar isso como se você fosse uma criança, não é?
– Certo, bom. Outra resposta.
– Maldição, eu conheço os cabos deste navio como a palma da minha mão! – Locke olhou para Caldris de cima para baixo, o que só era possível porque as botas de couro
acrescentavam 4 centímetros à sua altura. – E sei do que ele é capaz. Confie no meu julgamento ou sinta-se livre para começar a nadar.
– Isso. Ótimo serviço, mestre Kosta! – O mestre de navegação estreitou os olhos para Locke e coçou a barba. – Para onde vai mestre Kosta quando você faz isso? O
que exatamente você faz para viver, Leocanto?
– Eu só faço isso, acho. Sou um fingidor profissional. Eu... atuo.
– No palco?
– Já foi época. Jerome e eu. Agora acho que transformamos este navio em nosso palco.
– Isso é verdade.
Escapando de um breve ataque da gatinha contra seus pés descalços, Caldris foi até o timão, que na verdade era um par de timões unidos por um mecanismo embaixo do
convés para permitir que mais de um marinheiro fizesse força em mau tempo.
– Aos lugares!
Locke e Jean correram para o tombadilho para ficar perto dele, ostensivamente distanciados e concentrados em suas próprias tarefas ao mesmo tempo que permaneciam
perto o suficiente para captar algum sussurro ou um gesto de instigação.
– Imagine-nos indo a barlavento com a brisa vindo de través a bombordo da proa – falou Caldris. Era necessário imaginar, porque na pequena baía cercada não soprava
a menor brisa. – Chegou a hora de atacarmos. Vá ditando os passos. Preciso saber se você decorou tudo.
Locke visualizou o procedimento na cabeça. Nenhum navio de vela quadrada podia navegar direto contra o vento. Ir numa direção desejada contra a brisa exigia singrar
num ângulo de mais ou menos 45 graus e mudar de direção a intervalos para apresentar lados diferentes da proa ao vento. Na verdade, era uma série de zigue-zagues,
arrastando-se arduamente no rumo desejado. Cada mudança, de bombordo para estibordo ou vice-versa, era uma operação delicada, com grandes chances de ocorrer um desastre.
– Mestre Caldris, vamos virar de bordo! – gritou Locke. – O timão é seu.
– Muito bem, senhor.
– Mestre de Ferra!
Jean deu três toques no apito que usava pendurado no pescoço, como Locke.
– Todos os tripulantes! Todos os tripulantes a postos para virar de bordo!
– Mestre Caldris, a precisão é importante. Firme o timão.
Locke esperou alguns segundos para provocar um efeito dramático, depois berrou:
– Timão a sotavento!
Caldris fez a mímica de virar o timão na direção do lado do navio a sotavento, neste caso estibordo, o que inclinaria o leme na direção oposta. Locke conjurou uma
imagem mental nítida da súbita pressão da água contra o leme, forçando o navio a virar para bombordo. Eles entrariam no olho da ventania, sentindo toda a sua força;
um erro nesse ponto poderia “trancá-los em ferros”, interrompendo todo o progresso, roubando a força do leme e das velas. Ficariam impotentes durante minutos ou
coisa pior: um erro assim em tempo ruim poderia emborcá-los, e os navios não eram acrobatas.
– Marinheiros imaginários! Amuras e panos! – Jean balançou os braços e gritou as instruções para os tripulantes invisíveis. – Atenção agora, seus cães preguiçosos!
– Mestre de Ferra – chamou Locke –, aquele marinheiro imaginário não está cumprindo com o dever!
– Vou matar você mais tarde, porra, seu estuprador de porco com cérebro de repolho! Segure sua corda e espere minha ordem!
– Mestre Caldris! – Locke girou para o mestre de navegação, que bebia tranquilamente aguarrosa de um odre. – Vire tudo!
– Positivo, senhor. – Ele arrotou e pousou o odre no convés. – Por sua ordem, virar tudo.
– Içar a mestra! – gritou Locke.
– Soltar bolinas! Soltar estais! – Jean soprou o apito outra vez. – Virar vergas para a bordada a estibordo!
Na mente de Locke, agora a proa do navio estava se inclinando para além do olho da ventania; o bombordo da proa iria se tornar seu sotavento e o vento sopraria vindo
de estibordo. As vergas seriam logo firmadas de novo para que as velas aproveitassem o novo aspecto do vento e Caldris reverteria freneticamente o giro do timão.
O Mensageiro Vermelho precisaria estabilizar o novo rumo. Se fosse pressionado demais a bombordo, eles poderiam ir na direção oposta à pretendida, com as velas fixadas
de modo inadequado. Teriam sorte se ficassem apenas embaraçados com o fiasco.
– Virar tudo! – gritou de novo.
– Sim, senhor! – exclamou Caldris. – Ouvi direito o capitão na primeira vez.
– Prender cabos! Prender estais! – Jean soprou o apito. – Ao largo, seus vermes da porra!
– Agora estamos na bordada de estibordo, capitão – informou Caldris. – Surpreendentemente, não perdemos o navio nos estais e viveremos por mais uma hora.
– É, mas nem um pouco graças a este maldito marinheiro imaginário! – Locke fingiu agarrar um homem e forçá-lo contra o convés. – Qual é a droga do problema, seu
vermezinho de porão vagabundo?
– O imediato De Ferra bate em mim com muita crueldade! – berrou Jean com voz esganiçada. – Ele é um sujeito monstruoso e mau, que me faz ter vontade de virar sacerdote
e nunca mais pôr um pé a bordo!
– Claro que bate! É para isso que eu pago a ele. – Locke fingiu erguer uma faca. – Pelos seus crimes, juro que você vai morrer neste convés, a não ser que possa
responder a duas malditas perguntas! Primeiro: onde, diabos, está minha tripulação não imaginária? E segundo, por que, em nome de todos os deuses, eu deveria me
exercitar usando a porcaria desse uniforme?
Sobressaltado, ele parou de atuar devido ao som de aplausos. Deu meia-volta e viu Merrane parada ao lado do portão na amurada do navio; ela havia subido a rampa
em silêncio absoluto.
– Ah, maravilhoso! – Ela sorriu para os três homens no convés, curvou-se e pegou a gatinha, que se movera imediatamente para atacar suas elegantes botas de couro.
– Muito convincente. Mas seu pobre marinheiro invisível não tem as respostas que você busca.
– Você veio aqui para dizer o nome de alguém que tem?
– O Arconte ordena que amanhã você controle as velas de um dos barcos particulares dele. Quer ver uma demonstração de sua habilidade antes que você receba as ordens
finais para o mar. Ele e eu seremos passageiros. Se você puder manter nossa cabeça acima d’água, ele vai mostrar onde está a tripulação. E dizer por que mandamos
você treinar com esse uniforme.
CAPÍTULO SETE
Zarpando
1
Um guarda andava de um lado para outro no cais na base da ilha solitária. Sua lanterna emitia uma luz amarela e suave que ondulava na água preta quando Locke lhe
jogou uma corda de dentro da pequena lancha. Em vez de amarrá-la, o guarda baixou a lanterna em direção a Locke, Jean e Caldris.
– Esta doca é estritamente de... Ah, pelos deuses. Peço desculpas, senhor.
Locke sorriu, sentindo a autoridade do uniforme de capitão verrari envolvendo-o como um cobertor quente. Segurou uma estaca e alçou-se para o cais. O guarda o saudou
desajeitadamente com a lanterna atravessada diante do peito.
– Que os deuses defendam o Arconte de Tal Verrar – entoou Locke. – Vá em frente. É seu serviço interpelar os barcos estranhos à noite, soldado.
Enquanto o soldado amarrava a lancha a uma estaca, Locke estendeu a mão para baixo e ajudou Jean a subir. Movendo-se com graça, já acostumado à fantasia, Locke passou
por trás do guarda, desenrolou um capuz de traficante de dentro do paletó, enfiou-o na cabeça do soldado e puxou a corda com força.
– Os deuses sabem que você jamais verá alguém mais estranho do que nós.
Jean segurou o soldado pelos ombros, pois as drogas dentro do capuz já faziam seu serviço. Ele não tinha a constituição do último homem que Locke havia tentado nocautear
com um capuz daqueles e relaxou depois de apenas alguns segundos de luta sufocada. Quando Locke e Jean o amarraram firmemente à estaca da outra extremidade do cais
e enfiaram um trapo em sua boca, ele estava dormindo em paz.
Caldris saiu do barco, pegou a lanterna do guarda e começou a andar com ela.
Locke olhou para a torre de pedra que era seu destino: sete andares, as ameias iluminadas em laranja por faróis de navegação alquímicos que alertavam os navios.
Normalmente, haveria guardas na parte de cima também, vigiando as águas e o cais, mas Stragos havia providenciado para que isso não acontecesse.
– Venha, então – sussurrou Locke a Jean. – Vamos entrar e fazer um pouco de recrutamento.
2
– Chama-se Rocha de Barlavento – informou Stragos.
Ele apontou a torre de pedra que se projetava da pequena ilha, talvez à distância de uma flechada da linha de espumas brancas e sibilantes que marcavam a barreira
externa de recifes de Tal Verrar. Estavam flutuando ancorados a 20 pés, a cerca de 1,5 quilômetro da Marina de Prata. O sol quente da manhã começava a subir acima
da cidade atrás deles, criando degraus de luz suave a partir das camadas de névoa enfumaçada.
Fiel à palavra de Merrane, Stragos havia chegado ao alvorecer numa lancha de 30 pés feita de madeira preta polida, com assentos confortáveis de couro na popa e arabescos
de folha de ouro em cada superfície. Locke e Jean receberam o comando das velas com supervisão mínima de Caldris enquanto Merrane ficava sentada na proa. Locke se
perguntara se ela ficava confortável em algum outro lugar.
Tinham velejado para o norte, depois rodearam a Marina de Prata e viraram para o oeste, perseguindo a última sombra azul do céu noturno no horizonte distante.
Seguiram por alguns minutos até que Merrane assobiou, chamando a atenção de todos, e apontou à esquerda, por cima da proa de estibordo. Uma estrutura alta e escura
podia ser vista erguendo-se acima das águas ao longe. Luzes laranja brilhavam no topo.
Baixaram âncora para observar a torre solitária. Stragos não elogiou o modo como Locke e Jean controlavam a embarcação, mas também não criticou.
– Rocha de Barlavento – repetiu Jean. – Ouvi falar nela. É uma espécie de fortaleza.
– É uma prisão, mestre de Ferra.
– Vamos visitá-la esta manhã?
– Não. Vocês vão voltar e desembarcar em breve. Por enquanto, só queria que vocês a vissem... e queria lhes contar uma pequena história. Tenho em meu serviço um
capitão particularmente indigno de confiança que até agora fez um trabalho esplêndido escondendo suas falhas.
– As palavras não podem expressar o quanto lamento saber disso – falou Locke.
– Ele vai me trair – continuou Stragos. – Seus planos, durante meses, têm como objetivo uma traição grandiosa. Ele vai me roubar algo de grande valor e virá-lo contra
mim, para que todos vejam.
– Você deveria tê-lo vigiado com mais atenção – murmurou Locke.
– E vigiei. E estou vigiando agora mesmo. O capitão de quem falo é você.
3
A Rocha de Barlavento tinha apenas uma porta dupla, reforçada com ferro, de mais de 3 metros de altura, trancada e guardada pelo lado de dentro. Um pequeno painel
se abriu deslizando ao lado deles quando Locke e Jean apareceram e uma cabeça iluminada por uma lanterna surgiu. A voz da guarda era desprovida de arrogância.
– Quem é?
– Um oficial do Arconte e do Conselho – respondeu Locke com formalidade ritual. – Este homem é meu contramestre. Aqui estão minhas ordens e meus papéis.
Ele entregou à mulher um conjunto de documentos enrolados num tubo. Ela fechou o painel e Locke e Jean esperaram em silêncio durante vários minutos, ouvindo a passagem
murmurante das espumas sobre os recifes próximos. Duas luas começavam a nascer, dourando o horizonte sul com prata, e as estrelas salpicavam o céu sem nuvens como
açúcar de confeiteiro lançado numa tela preta.
Por fim, houve um estalo metálico e a porta pesada girou para fora nas dobradiças rangentes. A guarda saiu, saudando-os, mas não devolveu os papéis de Locke.
– Peço desculpas pela demora, capitão Ravelle. Bem-vindo à Rocha de Barlavento.
Locke e Jean a acompanharam pelo corredor de entrada da torre, que era dividido em dois por uma grade de ferro preta. Do lado oposto, um homem barbeado e bonito
atrás de uma escrivaninha de madeira tinha o controle do mecanismo que fechava a porta.
Assim como a mulher, o homem usava o azul do Arconte sob uma armadura de couro preto cheia de rebites: braçadeiras, colete e proteção de pescoço. Atrás das barras,
recebeu os documentos de Locke das mãos da guarda.
– Capitão Orrin Ravelle – informou ela. – E seu contramestre. Vieram por ordem do Arconte.
O homem examinou longamente os papéis antes de assentir e devolvê-los.
– Claro. Boa noite, capitão Ravelle. Este homem é o seu contramestre, Jerome Valora?
– Sim, tenente.
– Os senhores vieram ver os prisioneiros da segunda câmara? Alguém em particular?
– Só um exame geral, tenente.
– Como quiser. – O homem pegou uma chave pendurada no pescoço, abriu o único portão que havia na grade e foi na direção deles, sorrindo. – Ficamos felizes em dar
qualquer ajuda que o Protetor peça, senhor.
– Duvido muito – replicou Locke, deixando um punhal escorregar para a mão esquerda.
Estendeu a mão e deu um corte atrás da orelha direita da guarda, atravessando a pele desprotegida entre a guarda do pescoço e o cabelo bem preso. Ela gritou, girou
e, num instante, já estava com o sabre de aço enegrecido desembainhado.
Jean derrubou o homem antes mesmo que a lâmina da mulher surgisse; o sujeito soltou um ruído surpreso e engasgado quando Jean jogou-o contra as barras e lhe deu
um golpe forte no pescoço com a lateral da mão direita. A armadura de couro evitou a morte, mas não diminuiu o choque do impacto. Ofegando, o guarda teve facilmente
os braços imobilizados.
Locke saltou para trás, afastando-se das investidas da espada. O primeiro ataque foi rápido e quase preciso. O segundo foi um pouco mais lento e Locke não teve problema
em se esquivar. Ela se preparou para um terceiro, pisou em falso e tropeçou nos próprios pés. Sua boca se abriu, demonstrando confusão.
– Seu... escroto... – murmurou ela. – Ve... vene... no.
Locke se encolheu quando ela caiu de rosto no chão; ele pretendera ampará-la, mas a substância na lâmina agira mais rápido do que ele havia esperado.
– Seu desgraçado. – O tenente tossiu, debatendo-se inutilmente. – Você a matou!
– Claro que não matei, seu imbecil. Sinceramente, vocês... é só pegar uma faca por aqui e todo mundo logo acha que a gente matou alguém. – Locke se levantou diante
do guarda e mostrou o punhal. – O negócio que está no gume se chama Geladestreza. Você tem uma boa noite de sono, acorda por volta do meio-dia. E aí se sente péssimo.
Peço desculpas. Então, quer no pescoço ou na palma da mão?
– Seu... seu traidor desgraçado!
– No pescoço.
Locke fez um corte raso logo atrás da orelha esquerda do sujeito e mal contou até oito antes que ele estivesse pendendo nos braços de Jean, mais frouxo do que seda
molhada. Jean pousou o tenente com gentileza e tirou um pequeno molho de chaves do cinto dele.
– Certo – disse Locke. – Vamos visitar a segunda câmara.
4
– Ravelle não existia até um mês atrás – explicou Stragos. – Até que eu tivesse você, para construir a mentira. Uma dúzia dos meus homens e mulheres de maior confiança
vão jurar que ele era real, que compartilharam tarefas e refeições com ele, que falavam sobre trabalho e amenidades na companhia dele. Meus esmiuçadores forjaram
ordens, listas de serviço, pagamentos e outros documentos e os espalharam nos meus arquivos. Homens usando o nome de Ravelle alugaram quartos, compraram mercadorias,
encomendaram uniformes sob medida que foram entregues na Marina da Espada. Quando eu estiver enfrentando as consequências de sua traição, ele vai parecer real tanto
em fatos quanto em memória.
– Consequências? – perguntou Locke.
– Ravelle vai me trair, assim como a capitã Bonaire me traiu ao tirar o meu Basilisco do porto há sete anos e içar uma bandeira vermelha. Isso vai acontecer de novo...
Duas vezes com o mesmo Arconte. Serei ridicularizado em alguns lugares durante um tempo. Uma perda temporária em troca de um ganho de longo prazo. – Ele se encolheu.
– Não pensou na reação pública ao que estou tramando, mestre Kosta? Eu pensei.
– Pelos deuses, Maxilan – disse Locke, brincando distraidamente com um nó num dos cabos que prendiam a vela mestra da embarcação. – Preso no mar, fingindo dominar
uma profissão para a qual não sou competente, lutando pela vida com a porra do seu veneno nas veias, irei mantê-lo nas minhas orações por causa das suas dificuldades.
– Ravelle também é um asno – retrucou o Arconte. – Tratei de escrever isso especificamente na história dele. Agora, algo que você deve saber sobre Tal Verrar: os
guardas do Priori guardam a Cadeia da Cidadela Alta na Castellana. A maior parte dos prisioneiros da cidade vai para lá. Ainda que a Rocha de Barlavento seja muito
menor, ela é minha. Vigiada e provisionada apenas por meu pessoal.
O Arconte sorriu.
– É onde a traição de Ravelle alcançará o ponto sem volta. É lá, mestre Kosta, que você obterá sua tripulação.
5
Como Stragos avisara, havia um guarda adicional a ser desarmado no primeiro nível de celas atrás do corredor de entrada, ao pé de uma ampla escada espiral feita
de ferro preto. A parte da torre acima da terra era destinada a guardas e luzes alquímicas; o verdadeiro propósito da Rocha de Barlavento encontrava-se nas três
câmaras antigas de pedra que ficavam muito abaixo do nível do mar, nas raízes da ilha.
O homem os viu chegando e logo se alarmou, pois, sem dúvida, o fato de Locke e Jean descerem sozinhos era uma violação dos procedimentos. Jean o aliviou da espada
quando ele o atacou escada acima, depois o chutou no rosto e o reteve no chão. O mês de exercícios de Jean sob os caprichos de Caldris pareciam ter deixado sua força
mais taurina do que nunca e Locke quase sentiu pena do pobre coitado que se debatia. Locke lhe deu um pouco de Geladestreza e assobiou alegremente.
E o turno da noite contava apenas com isso, uma força mínima sem cozinheiros ou outros auxiliares: um guarda no cais, dois no corredor de entrada, um no primeiro
nível de celas. Os dois que estavam no telhado, por ordem direta de Stragos, teriam tomado chá com droga e caído no sono. Seriam encontrados pelos substitutos de
manhã com uma desculpa plausível para a incapacidade e outra linda camada de confusão seria lançada sobre a situação.
Não eram mantidos barcos na Rocha de Barlavento, por isso, mesmo que os prisioneiros pudessem escapar das celas com barras de ferro engastadas nas paredes úmidas
das antigas câmaras e passar livres pelo corredor de entrada e pela única porta reforçada, enfrentariam o problema de nadar por pelo menos 1,5 quilômetro de mar
aberto, observados com interesse por muitas coisas nas profundezas, ansiosas por uma refeição.
Locke e Jean ignoraram a porta de ferro que dava nas celas do primeiro nível, continuando a descida pela escada em espiral. O ar era úmido, fedendo a sal e corpos
imundos. Depois da porta de ferro do segundo nível, viram-se numa câmara dividida em quatro celas enormes, longas e de teto baixo, duas de cada lado, tendo no centro
um corredor de 4,5 metros.
Apenas uma das celas era ocupada; dezenas de homens dormiam à luz verde-clara de globos alquímicos postos no alto das paredes. O ar ali dentro era muito fétido,
denso com os odores de roupas de cama sujas, urina e comida rançosa. Leves fiapos de névoa se enroscavam em volta dos prisioneiros. Alguns olhares cautelosos acompanharam
Locke e Jean em sua chegada à cela.
Locke assentiu para Jean e o grandalhão começou a bater os punhos contra as barras da porta. O clamor era agudo, ecoando insuportavelmente nas paredes da câmara
que pingavam água. Prisioneiros incomodados se levantaram dos estrados sujos, xingando e gritando.
– Estão confortáveis aí dentro? – gritou Locke para ser ouvido acima da balbúrdia. Jean parou de bater.
– Estaríamos muito mais confortáveis com um belo capitão verrari aqui pra gente foder – reagiu um prisioneiro perto da porta.
– Não estou com paciência – disse Locke, apontando para a porta por onde Jean e ele haviam chegado. – Se eu sair por aquela porta, não vou retornar.
– Dê o fora, então, e deixe a gente dormir – retrucou um sujeito que parecia um espantalho num canto distante da cela.
– E se eu não retornar, nenhum de vocês, pobres coitados, jamais vai descobrir por que as câmaras um e três têm prisioneiros em todas as celas... enquanto esta câmara
só tem vocês.
Isso atraiu a atenção deles. Locke sorriu.
– Assim está melhor. Meu nome é Orrin Ravelle. Até alguns minutos atrás, eu era capitão da marinha de Tal Verrar. E o motivo de vocês estarem aqui é porque eu os
escolhi. Cada um de vocês. Eu os escolhi e depois forjei as ordens que os colocaram numa câmara de celas vazia.
6
– Eu escolhi 44 prisioneiros, originalmente – explicou Stragos.
Eles olharam para a Rocha de Barlavento à luz do sol da manhã. Um barco com soldados em uniformes azuis se aproximava dela, ao longe, em tese para substituir o turno
atual de guarda.
– Fiz com que só ficassem eles na segunda câmara. Todas as ordens assinadas com “Ravelle” são plausíveis, mas num exame mais detalhado os sinais de falsificação
ficarão evidentes. Posso usar isso mais tarde como uma desculpa adequada para prender vários burocratas cujas lealdades não são... suficientemente adequadas para
meu gosto.
– Bem eficiente – comentou Locke.
– É. Todos os prisioneiros são marinheiros de primeira, tirados de navios confiscados por vários motivos. Uns estão presos há alguns anos. Muitos são na verdade
ex-tripulantes do seu Mensageiro Vermelho, que tiveram sorte de não ser executados com os oficiais. Alguns podem até ter experiência em pirataria.
– Por que manter os prisioneiros na Rocha? – perguntou Jean. – Quero dizer, em geral.
– Provisão para os remos – respondeu Caldris. – É uma coisa boa de se ter à mão. Se acontecer uma guerra, eles serão totalmente perdoados se concordarem em trabalhar
como remadores de galeras o tempo todo. A Rocha costuma ter o suficiente para duas galeras na maior parte do tempo.
– Caldris tem razão – falou Stragos. – Bom, como eu disse, alguns desses homens estão lá há vários anos, mas nenhum jamais teve de suportar condições parecidas com
as do último mês. Eu fiz com que fossem privados de tudo, desde roupas de cama limpas até refeições regulares. Os guardas foram cruéis, incomodando o sono deles
com ruídos altos e baldes de água fria. Assim, não há um homem entre eles que não odeie a Rocha de Barlavento e Tal Verrar. Que não me odeie. Pessoalmente.
Locke assentiu devagar.
– E é por isso que você espera que eles recebam Ravelle como salvador.
7
– Você foi o responsável por nos enfiar neste inferno, sua porra de lambedor de cu verrari?
Um dos prisioneiros agarrou as barras; as dificuldades passadas na cela ainda não haviam arruinado um corpo apavorantemente parecido com o das estátuas heroicas
da antiguidade. Locke supôs que ele tivesse chegado havia pouco tempo: seus músculos pareciam esculpidos em madeira-bruxa, a pele e o cabelo eram pretos o bastante
para rechaçar a luz verde-clara, como se a desdenhassem.
– Eu sou o responsável por transferir vocês para esta câmara – respondeu Locke. – Não fui eu que os prendi. Não arranjei o tratamento que estão recebendo.
– Tratamento é uma palavra muito chique.
– Qual é o seu nome?
– Jabril.
– Você está no comando?
– De quê? – Parte da raiva do sujeito pareceu se esvair, transformando-se em resignação cansada. – Ninguém está no comando de porra nenhuma atrás de barras de ferro,
capitão Ravelle. A gente mija onde dorme. Não temos listas de chamada nem turnos de serviço.
– Todos vocês são marinheiros.
– A gente era marinheiro – respondeu Jabril.
– Eu sei o que vocês são. Caso contrário, não estariam aqui. Pensem nisso: os ladrões são soltos. Vão para a Cidadela Oeste, fazem serviços forçados, viram escravos
até se arruinarem ou serem perdoados. Mas até eles veem o céu. Até as celas deles têm janelas. Os devedores ficam livres quando suas dívidas são pagas. Os prisioneiros
de guerra vão para casa quando a guerra acaba. Mas vocês, pobres coitados... ficam presos aqui sem necessidade. Vocês são gado. Se houver uma guerra, vocês serão
acorrentados a remos e, se não houver guerra... bem...
– Sempre há guerra – replicou Jabril.
– Faz sete anos desde a última. – Locke foi até as barras diante de Jabril e olhou-o nos olhos. – Talvez demore mais sete anos. Talvez não chegue nunca. Você quer
mesmo envelhecer nessa cela, Jabril?
– Qual é a alternativa... capitão?
– Alguns de vocês vieram de um navio que foi confiscado recentemente. Seu capitão tentou contrabandear um ninho de vespas-estilete.
– O Risco Afortunado – confirmou Jabril. – Prometeram um monte de ouro pra gente por aquele serviço.
– Aquelas porras mataram oito homens durante a viagem – completou outro prisioneiro. – A gente pensou que ia ficar com a parte deles.
– Por acaso eles tiveram sorte – continuou Jabril. – Não precisaram receber a parte deles deste lugar amaldiçoado pelos deuses.
– O Risco Afortunado está ancorado na Marina da Espada – explicou Locke. – Foi rebatizado como Mensageiro Vermelho. Reformado, com suprimentos, calafetado e fumigado.
Foi embelezado. O Arconte pretende tomá-lo para serviço pessoal.
– Bom para o maldito Arconte.
– Eu vou comandá-lo. Ele está à minha disposição. Eu tenho as chaves, por assim dizer.
– Que porra você quer?
– Agora é meia-noite e meia – respondeu Locke, baixando a voz até um sussurro teatral que ecoou dramaticamente no fundo da cela. – A rendição da manhã só vai chegar
daqui a seis horas. E cada guarda na Rocha de Barlavento está... no momento... inconsciente.
Os olhos se arregalaram na cela. Homens se levantaram dos estrados e se comprimiram perto das barras, formando um grupo desorganizado mas atento.
– Vou partir de Tal Verrar esta noite. É a última vez que uso este uniforme. Vou abandonar o Arconte e tudo o que ele representa. Pretendo tomar o Mensageiro Vermelho
e, para isso, preciso de uma tripulação.
A massa de prisioneiros explodiu num tumulto de empurra-empurra e falas atabalhoadas. Locke recuou diante das mãos estendidas através das barras.
– Eu sou gajeiro! – gritou um dos presos. – Excelente gajeiro! Me leve!
– Passei nove anos no mar! – berrou outro. – Faço qualquer coisa!
Jean se aproximou e bateu de novo na porta da cela.
– SILÊÊÊÊÊÊNCIO!
Locke levantou o molho de chaves que Jean havia tomado do tenente no corredor de entrada.
– Vou navegar para o sul pelo Mar de Bronze. Vou para Porto Pródigo. Este não é um assunto para ser votado ou negociado. Se forem comigo, vocês vão navegar sob a
bandeira vermelha. Se quiserem sair ao chegarmos às Ilhas dos Ventos Fantasmas, tudo bem. Até lá, estão de serviço para dinheiro e saques. Não há espaço para preguiçosos.
A divisão vai ser igual.
Isso lhes daria algo para ponderar, pensou Locke. Um capitão flibusteiro costumava pegar de duas a quatro partes em cada dez de qualquer saque no mar. A simples
ideia de cotas iguais para todos aplacaria muitos desejos de motim.
– A divisão vai ser igual – repetiu, sobrepondo-se a outra explosão de falas. – Mas decidam aqui e agora. Jurem a mim como seu capitão e eu os liberto imediatamente.
Tenho meios de tirá-los desta rocha e levá-los ao Mensageiro Vermelho. Teremos horas de escuridão para sair do porto e nos distanciarmos bem. Se não quiserem vir,
tudo bem. Mas nesse caso não haverá cortesias. Vocês ficarão aqui. Talvez a guarda de manhã fique impressionada com a honestidade de vocês... mas duvido. Quem vai
desistir?
Nenhum prisioneiro se manifestou.
– Quem ficará livre e entrará para a minha tripulação?
Locke se encolheu com a explosão de gritos animados, depois se permitiu um sorriso largo, genuíno.
– Todos os deuses são suas testemunhas! Dos seus lábios e seus corações.
– O juramento está feito – garantiu Jabril, e os que estavam ao redor assentiram.
– Então cumpram-no ou rezem para morrer, condenados e considerados devedores na balança da Dama do Longo Silêncio.
– Vamos cumprir! – assegurou um coro de gritos.
Locke entregou o molho de chaves a Jean. Os prisioneiros ficaram olhando em êxtase ou incredulidade enquanto ele encontrava a chave certa, enfiava-a na fechadura
e a girava com força para a direita.
8
– Há um problema – afirmou Stragos.
– Só um? – Locke revirou os olhos.
– Só restam quarenta dos quarenta e quatro que eu escolhi.
– Como isso vai atender às necessidades do navio?
– Temos comida e água para cem dias com sessenta tripulantes – interveio Caldris. – E o navio pode ser bem manobrado com metade desse número. Assim que tivermos
distribuído todos, vamos estar bem em termos de marinheiros nos cabos.
– Vão, sim – confirmou Stragos. – As quatro que faltam são mulheres. Eu as havia colocado numa cela separada. Uma delas teve febre de cadeia e logo todas contraíram.
Não tive opção a não ser levá-las para a terra; estão fracas demais para levantar os braços, quanto mais para participar desta expedição.
– Teremos de ir para o mar sem nenhuma mulher a bordo – disse Caldris. – Merrane não vem conosco, então?
– Infelizmente, meu talentos serão exigidos em outro lugar – respondeu ela com voz doce.
– Isso é loucura! – exclamou Caldris. – Nós vamos provocar o Pai das Tormentas!
– Vocês podem encontrar mulheres para a tripulação em Porto Pródigo, talvez até boas oficiais. – Stragos espalmou as mãos. – Certamente vocês vão ficar bem durante
uma única viagem até lá.
– Eu gostaria de dizer o mesmo – falou Caldris, com olhar assombrado. – Mestre Kosta, esse é um modo ruim de começar. Precisamos ter gatos. Um cesto de gatos para
o Mensageiro Vermelho. Precisamos de toda a sorte que pudermos roubar. Todos os deuses são testemunhas, o senhor não pode deixar de ter gatos a bordo daquele navio
antes de zarparmos.
– E não deixarei mesmo – garantiu Locke.
– Então está resolvido – continuou Stragos. – Veja bem, Kosta. Com relação à... profundidade de sua farsa. Para o caso de você ter alguma dúvida. Nenhum dos homens
que você vai recrutar na Rocha de Barlavento serviu na minha marinha, por isso eles têm pouca ideia do que esperar de um dos meus oficiais. E em pouco tempo você
será Ravelle, o pirata, e não Ravelle, o capitão, por isso pode fazer a representação do modo que achar mais adequado e não se preocupar muito com detalhes pequenos.
– Isso é bom – disse Locke. – Já tenho detalhes suficientes atulhando a cabeça.
– Tenho uma última condição – prosseguiu Stragos. – Os homens e mulheres que servem na Rocha de Barlavento, até os que não fazem parte desta trama, estão entre os
meus melhores e mais leais servidores. Vou fornecer meios para vocês os deixarem fora de combate sem dano permanente. De jeito nenhum eles devem ser feridos de outro
modo, nem por vocês nem por sua tripulação, e que os deuses os ajudem se vocês matarem algum.
– Sentimentos curiosos para um homem que diz não ser estranho aos riscos.
– Eu os mandaria para a batalha a qualquer momento, Kosta, e eu os perderia de boa vontade. Mas ninguém que use meus uniformes honestamente vai morrer como parte
desta coisa; pelo menos isso minha honra me impele a conceder. Vocês devem ser profissionais. Considerem isso um teste de seu profissionalismo.
– Não somos malditos assassinos – rebateu Locke. – Matamos só se é necessário, isso quando matamos.
– Tanto melhor. Isso é tudo o que tenho a dizer, então. Hoje, sintam-se livres para fazerem o que quiserem. Amanhã, logo antes da meia-noite, vocês vão desembarcar
na Rocha de Barlavento e dar início ao negócio.
– Precisamos do nosso antídoto – lembrou Locke, e Jean e Caldris assentiram.
– Claro. Vocês três receberão os últimos frascos logo antes de partirem. Depois... devo esperar seu primeiro retorno dentro de dois meses. E um relatório do progresso.
9
Os Nobres Vigaristas conseguiram organizar precariamente sua nova tripulação no corredor de entrada. Jean precisou demonstrar sua força física a vários homens que
tentaram liberar as frustrações contra os guardas adormecidos.
– Eu disse que, se tocassem neles, vocês iriam ver – rosnou Locke pela terceira vez. – Deixem eles pra lá! Se deixarmos alguém morto para trás, vamos perder qualquer
simpatia. Deixem eles viverem e Verrari vai rir disso por meses seguidos. Agora, saiam em silêncio para o cais. Vão com calma, estiquem as pernas, deem uma boa olhada
no mar e no céu. Tenho um barco para pegar antes de irmos. Pelo bem de todos nós, mantenham a boca fechada.
Eles obedeceram em parte a essa ordem, dividindo-se em pequenos grupos que sussurravam ao saírem da torre. Locke notou que alguns homens ficaram para trás, perto
da porta, com as mãos apoiadas nas pedras, como se tivessem medo de sair para o ar livre. Era compreensível, após meses ou anos na câmara.
– Isso é lindo – comentou Jabril, andando ao lado de Locke até o cais onde Caldris continuava indo de um lado para outro com sua lanterna. – Lindo pra caralho. Quase
tão lindo quanto não ter de sentir o cheiro de todos nós ao mesmo tempo.
– Vocês vão estar apinhados em pouco tempo – recordou Locke.
– É. É a mesma coisa, mas diferente.
– Jabril – Locke levantou a voz –, com o tempo, à medida que passarmos a conhecer nossos pontos fortes, podemos fazer eleições de verdade para alguns dos oficiais
de que vamos precisar. Por enquanto, nomeio você ajudante interino.
– Ajudante de quê?
– De qualquer coisa. – Locke sorriu e deu-lhe um tapa nas costas. – Não estou mais na marinha, lembra? Você vai prestar contas ao Jerome. Mantenha os homens em ordem.
Tire as armas daquele soldado amarrado no cais, para o caso de precisarmos sacar algum aço esta noite. Não espero uma luta, mas devemos estar preparados.
– Boa noite, capitão Ravelle – cumprimentou Caldris. – Vejo que conseguiu pegá-los, como planejou.
– É. Jabril, este é Caldris, meu mestre de navegação. Caldris, Jabril será ajudante interino, sob as ordens de Jerome. Ouçam! – Locke levantou a voz sem gritar,
para que não ecoasse sobre as águas até ouvidos ocultos. – Vim com um bote para seis. Tenho aqui perto um barco para quarenta. Preciso de dois homens para me ajudar
a remar. Vamos demorar menos de meia hora e depois partiremos.
Dois prisioneiros mais jovens se adiantaram, parecendo ansiosos por qualquer coisa que os aliviasse do tédio que haviam passado.
– Certo – disse Locke, descendo até o bote atrás de Caldris e dos dois marinheiros. – Jerome, Jabril, mantenham a ordem e o silêncio. Tentem separar os que podem
trabalhar imediatamente dos que vão precisar de alguns dias para recuperar as forças.
Ancorada a 800 metros da Rocha de Barlavento, estava uma lancha comprida, invisível ao luar, até que a lanterna de Caldris a encontrou a uns 50 metros de distância.
Locke e Caldris trabalharam às pressas para ajustar a pequena vela do barco; devagar mas com firmeza, voltaram em direção à Rocha com os dois ex-prisioneiros remando
na pequena embarcação ao lado deles. Locke olhou ao redor, nervoso, vendo uma ou duas velas reluzindo pálidas nos horizontes distantes, porém nada mais perto.
– Ouçam bem – falou quando a lancha estava atracada abaixo do cais e cercada por sua futura tripulação.
Estava agradavelmente surpreso com a rapidez com que eles haviam se encaixado nas tarefas imediatas. Claro, fazia sentido: eram tripulantes de navios confiscados,
e não bandidos presos por crimes individuais. Isso não os tornava santos, mas era bom ter algo imprevisto funcionando a favor, para variar.
– Os que estão em condições, peguem os remos. Não fiquem sem graça por não terem capacidade por enquanto; sei que alguns de vocês ficaram lá embaixo por muito tempo.
Sentem-se no meio da lancha e vão com calma. Vocês podem se recuperar na viagem de ida. Temos comida suficiente.
Isso os alegrou. Assim que estivessem no mar, Locke sabia, a condição das rações poderia se aproximar da gororoba da prisão que eles estavam deixando para trás,
mas durante alguns dias teriam um suprimento de carne fresca e legumes.
Os ex-prisioneiros embarcaram ordeiramente na lancha; logo as amuradas estavam ocupadas pelos que diziam ter condições e os remos iam sendo enfiados nos toletes.
Jabril assumiu a proa, acenando para Locke e Caldris quando tudo estava pronto.
– Certo – disse Locke. – O Mensageiro está ancorado ao sul da Marina da Espada, no lado voltado para o mar, e só falta a tripulação. Um guarda está de vigia durante
a noite e eu vou cuidar dele. Basta nos seguirem e subirem a bordo assim que eu fizer isso; as redes estão baixadas pelo costado e as defesas estão guardadas.
Locke ocupou a proa do barquinho e assumiu uma postura que esperava ser adequadamente régia. Jean e Caldris pegaram os remos e os últimos dois prisioneiros sentaram-se
na popa, um deles segurando a lanterna de Caldris.
– Digam adeus à Rocha de Barlavento, rapazes – falou Locke. – E digam um foda-se ao Arconte de Tal Verrar. Vamos para o oceano.
10
Uma sombra dentro de sombras observava a partida dos dois barcos.
Merrane saiu de sua posição ao lado da torre e deu um aceno enquanto as formas longas e cinzentas diminuíam ao sul. Soltou o lenço de pescoço de seda preta que cobria
a parte de baixo do rosto e empurrou para trás o capuz da jaqueta preta; se deitara nas sombras durante quase duas horas, esperando pacientemente que mestres Kosta
e De Ferra terminassem seus negócios. Seu próprio barco estava escondido atrás de um afloramento rochoso no lado leste da ilha, pouco mais do que uma casca de couro
tratado sobre uma estrutura de madeira. Mesmo ao luar, era quase invisível na água.
Entrou em silêncio no corredor da prisão, encontrando os dois guardas onde já se esperava, esparramados descuidadamente nos braços do sono do Geladestreza. Fiéis
aos desejos do Arconte, Kosta e De Ferra haviam impedido que eles fossem maltratados.
– Desculpe por isto – sussurrou ela, ajoelhando-se junto ao tenente e passando um dedo enluvado pelas bochechas dele. – Você é bonito.
Suspirou, tirou uma faca da bainha dentro da jaqueta e cortou a garganta do sujeito com um golpe rápido. Movendo-se rapidamente para evitar a poça crescente de sangue,
limpou a lâmina no calção do guarda e contemplou a mulher caída, atravessada no corredor.
Os dois no topo da torre poderiam viver; não seria plausível alguém ter subido a escada e ido atrás deles. Mas ela poderia matar o que estava no cais, os dois dali
e o que devia estar lá embaixo.
Isso bastaria, pensou. Não que desejasse que Kosta e De Ferra fracassassem. Mas se eles voltassem com sucesso da missão, o que impediria Stragos de lhes dar outra
tarefa? O veneno os transformava em ferramentas indefinidamente. E, se eles pudessem retornar vitoriosos, bom... era melhor que homens assim estivessem mortos se
não pudessem ser usados a favor dos interesses aos quais ela servia.
Decidida, partiu para terminar o serviço. O pensamento de que, pela primeira vez, seria totalmente indolor, foi um consolo no trabalho.
11
– Capitão Ravelle!
O soldado era um dos escolhidos a dedo pelo Arconte para participar da farsa. Ele fingiu surpresa quando Locke apareceu no convés do Mensageiro Vermelho seguido
por Jean, Caldris e os dois ex-prisioneiros. A lancha apinhada de homens batia a estibordo do navio.
– Eu não o esperava de volta esta noite, senhor... Senhor, o que está acontecendo?
– Tomei uma decisão – respondeu Locke, aproximando-se do soldado. – Este navio é bom demais para o Arconte. Por isso, vou tirá-lo dos cuidados dele e levá-lo para
o mar.
– Ei, espere aí... espere, senhor, isso não é engraçado.
– Depende de em que pé estão as coisas – disse Locke, e deu um soco fingido na barriga do soldado. – Depende de se você está em pé.
Seguindo o combinado, o homem fez uma imitação bastante digna de crédito de ter recebido um soco devastador e caiu de costas no convés, retorcendo-se. Locke riu.
Que isso impressionasse sua nova tripulação.
Os marinheiros tinham começado a subir pelas redes de abordagem a estibordo. Locke tirou a espada, o pequeno escudo e as facas do soldado, depois se juntou a Jean
e Caldris aperto da amurada, para ajudar os homens a subir.
– O que vai ser feito com a lancha, capitão? – perguntou Jabril, passando sobre a amurada.
– É grande demais para carregarmos nesta coisinha – disse Locke, e apontou um polegar, por cima do ombro, na direção do guarda “dominado”. – Vamos deixá-lo à deriva
na lancha. Jerome!
– Sim, senhor.
– Veja se todo mundo subiu e junte todos no convés. Mestre Caldris! O senhor é quem mais conhece a embarcação por enquanto. Traga luz pra gente.
Caldris pegou lanternas alquímicas num armário perto do timão e, com a ajuda de Locke, pendurou-as no convés até haver luz dourada e suave mais do que suficiente
para trabalhar. Jean pegou seu pequeno apito e deu três toques curtos. Em instantes, estava com a tripulação toda na parte central do navio, diante do mastro principal.
Locke se postou diante deles, despiu seu casaco de oficial verrari e jogou-o no mar. Eles aplaudiram.
– Agora precisamos nos apressar sem sermos descuidados. Os que não se acham em condições de trabalhar, ergam as mãos! Não precisam ter vergonha, rapazes.
Locke contou nove mãos. A maioria dos homens que as levantou eram visivelmente idosos ou estavam magros demais para ter boa saúde, e Locke assentiu.
– Não nos ressentimos de sua honestidade. Vocês vão assumir sua parte do trabalho quando estiverem em forma de novo. Por agora, achem um lugar no convés principal
aí embaixo ou sob o castelo de proa. Há esteiras e lonas no porão. Podem dormir ou assistir à festa como quiserem. Alguém aí sabe cozinhar alguma coisa?
Um dos homens atrás de Jabril ergueu a mão.
– Ótimo. Depois que a âncora for levantada, desça e dê uma olhada nas provisões. Temos um fogão de tijolos no castelo de proa, além de uma pedra alquímica e um caldeirão.
Queremos fazer uma refeição infernal após passarmos pelos recifes de vidro, portanto mostre alguma iniciativa. E abra um barril de cerveja.
Os homens começaram a comemorar e Jean soprou seu apito para silenciá-los.
– Andem, agora! – Locke apontou a escuridão da ilha de Vidrantigo que se erguia atrás deles. – A Marina da Espada está do outro lado desta ilha e ainda não estamos
livres. Jerome! Às barras do cabrestante, e prepare-se para levantar âncora. Jabril! Pegue corda com Caldris e me ajude com este sujeito.
Juntos, Locke e Jabril puseram o soldado “incapacitado” de pé. Locke deu um nó frouxo mas muito convincente em volta das mãos dele com um pedaço de corda fornecido
por Caldris; assim que tivessem ido embora, o homem poderia se livrar em alguns minutos.
– Não me mate, capitão, por favor – murmurou o soldado.
– Eu nunca iria matá-lo. Preciso que você leve uma mensagem minha ao Arconte. Diga que ele pode lamber o cu de Orrin Ravelle, que renunciei ao meu posto e que a
única bandeira que tremulará no belo navio dele será vermelha.
Locke e Jabril passaram o sujeito por cima da amurada e jogaram-no na lancha, 3 metros abaixo. Ele gritou de dor – sem dúvida genuína – e rolou, mas fora isso, pareceu
estar bem.
– Use essas palavras exatas! – gritou Locke, e Jabril gargalhou. – Agora! Mestre Caldris, vamos para o mar!
– Muito bem, capitão Ravelle.
Caldris levou os quatro homens que estavam mais perto para baixo. Sob sua orientação, eles manteriam o cabo da âncora movendo-se suavemente em direção às suas aduchas
na coberta inferior.
– Jerome – chamou Locke –, homens ao cabrestante para içar a âncora!
Locke e Jabril reuniram o resto dos tripulantes que estavam em condições junto ao cabrestante, onde as últimas pesadas barras de madeira estavam sendo enfiadas nas
aberturas. Jean soprou seu apito e os homens se aglomeraram, ombro a ombro, segurando as barras.
– Levantar âncora! Firmem e empurrem! Firmem e empurrem! Empurrem com força, ela vai chegar logo! – entoou Jean a plenos pulmões, dando-lhes um ritmo para bater
os pés e empurrar.
Os homens faziam força no cabrestante, muitos deles mais fracos do que gostariam ou admitiriam, mas o mecanismo começou a girar e o cheiro de corda molhada encheu
o ar.
– For-ça! For-ça! Se largarem a âncora, estamos fodidos!
Logo eles conseguiram tirar a âncora da água e Jean mandou um grupo a estibordo da proa, para firmá-la. A maioria dos homens se afastou do cabrestante gemendo e
se alongando, e Locke sorriu. Até seus antigos ferimentos pareciam curados depois do exercício.
– Agora! – gritou ele. – Quem navegou neste navio quando ele era o Risco Afortunado?
Catorze homens, inclusive Jabril, separaram-se dos outros.
– E quais eram bons gajeiros?
Isso lhe rendeu sete mãos levantadas; estava bom, por enquanto.
– Alguém não é familiarizado com este navio, mas ainda assim fica confortável lá em cima?
Mais quatro se apresentaram e Locke assentiu.
– Bons rapazes. Sabem onde vão estar, então. – Ele pegou um dos que não eram gajeiros pelo ombro e guiou-o em direção à proa. – Vigia de proa. Avise se alguma coisa
aparecer na nossa frente. – Apontou o mastro principal para outro homem. – Pegue uma luneta com Caldris; você vai ser o vigia do calcês. Não me olhe assim, você
não vai mexer com o cordame. Só fique sentado e acordado.
– Mestre Caldris! – berrou, notando que o mestre de navegação estava de volta ao convés – Sudeste por leste pela passagem nos recifes chamada de Vidrembaixo!
– Sim, senhor. Vidrembaixo. Conheço. – Caldris, é claro, havia planejado antes o rumo através dos recifes de vidro e instruído Locke cuidadosamente com relação às
ordens que daria, até estarem fora das vistas de Tal Verrar. – Sudeste por leste.
Jean sinalizou para os onze homens que tinham se apresentado para o serviço nas alturas dos lais de verga, onde as velas enroladas esperavam, pendendo ao luar como
finos casulos de insetos enormes.
– Subam para soltar as velas de gávea e joanetes! Esperem a ordem, vejam bem!
– Mestre Caldris! – gritou Locke, incapaz de disfarçar a alegria. – Agora veremos se o senhor conhece o seu serviço!
O Mensageiro Vermelho moveu-se para o sul sob o empuxo das velas de gávea e dos joanetes, fazendo bom uso da brisa forte que soprava do continente para o oeste.
A proa cortava com facilidade as águas escuras e calmas, e o convés adernava apenas um pouquinho a estibordo. Era um bom começo, pensou Locke – um bom começo de
uma aventura louca. Quando havia acomodado a maior parte da tripulação em posições temporárias, tirou alguns minutos junto à amurada de popa, observando os reflexos
de duas luas na ondulação suave do rastro de espuma.
– O senhor está se divertindo bastante, capitão Ravelle.
Jean se aproximou da amurada ao lado dele. Os dois ladrões se apertaram as mãos e riram um para o outro.
– Acho que estou – sussurrou Locke. – Acho que esta é a coisa mais lunática que já fizemos, por isso temos o direito de nos divertir.
– Por enquanto, a tripulação parece estar engolindo a lorota.
– Bom, eles acabaram de sair da cadeia. Estão cansados, famintos, agitados. Veremos como estarão afiados quando tiverem alguns dias de comida e exercícios. Pelos
deuses, pelo menos não chamei nada pelo nome errado.
– É difícil acreditar que estamos fazendo isso.
– Eu sei. Ainda nem parece real. Capitão Ravelle. Imediato Valora. Diabos, para você foi mais fácil. Ainda não me acostumei às pessoas me chamando de “Orrin”. Você
pôde ficar com o “Jerome”.
– Não vi muito sentido em dificultar as coisas para mim. Já tenho você para fazer isso.
– Cuidado agora. Posso ordenar que você seja chicoteado junto à amurada.
– Rá! Um capitão da marinha poderia, talvez. Um imediato pirata não precisa aceitar isso. – Jean suspirou. – Acha que vamos ver terra de novo?
– Sem dúvida eu pretendo. Temos de provocar piratas, arrumar um retorno feliz, humilhar Stragos, encontrar antídotos e roubar Requin. Depois de dois meses no mar,
talvez eu comece a ter uma levíssima ideia de como fazer isso.
Durante um tempo, observaram Tal Verrar ficando para trás, a aura dos Degraus de Ouro e o brilho de tocha da Agulha do Pecado sumindo atrás da massa mais escura
do crescente sudoeste da cidade. Depois, passaram pelo canal de navegação nos recifes de vidro, indo para o Mar de Bronze, para o perigo e a pirataria. Para incitar
a guerra e trazê-la para a conveniência do Arconte.
12
– Vela à vista! Vela a dois pontos a bombordo!
O grito veio de cima, na terceira manhã da viagem para o sul. Locke estava sentado em sua cabine, olhando seu reflexo turvo no espelhinho rachado que havia trazido
no baú. Antes da partida, usara um pouco de alquimia de seu kit de disfarces para restaurar a cor natural do cabelo e agora uma fina penugem do mesmo tom aparecia
nas bochechas. Ainda não tinha certeza se ia raspá-la, mas com o grito vindo de cima, sua preocupação com a barba sumiu. Num instante, estava fora da cabine, subindo
os degraus irregulares da escada escura até sair à luz clara da manhã no tombadilho.
Uma fina camada de nuvens brancas e altas velava o céu azul, como fiapos de tabaco. O vento soprava a bombordo da popa desde que haviam chegado ao mar aberto e o
Mensageiro Vermelho estava um pouco adernado a estibordo. O oscilar constante e a inclinação do convés eram absolutamente estranhos a Locke, que em sua última –
e única – viagem marítima anterior ficara confinado a uma cabine devido à enfermidade. Ele se gabava pelo fato de que a agilidade treinada de ladrão lhe servia um
bocado, porém evitava andar muito pelo navio, só para garantir. Pelo menos daquela vez parecia imune ao enjoo, algo pelo qual agradecia fervorosamente ao Guardião
Torto. Muitos a bordo não tinham sido tão sortudos.
– O que se passa, mestre Caldris?
– Meus cumprimentos pela bela manhã, capitão. O vigia do calcês diz que temos vela branca a dois pontos a bombordo.
Caldris estava no timão e soltava leves baforadas de um feixe de tabaco barato que fedia a enxofre. Locke franziu o nariz.
Suspirando por dentro e com o maior cuidado possível, Locke pegou sua luneta e foi andando com pressa, passando pelo castelo de proa e chegando à amurada a estibordo
da proa. E lá estava: com o casco oculto, um minúsculo ponto branco, praticamente invisível acima do azul-escuro do horizonte distante. Quando voltou ao tombadilho,
deparou com Jabril e vários outros marinheiros, esperando seu veredicto.
– Vamos dar uma olhada, capitão? – Jabril soava apenas na expectativa, mas os homens atrás dele pareciam bem ansiosos.
– Querem um gostinho antecipado daquela divisão igualitária, é?
Locke fingiu se concentrar, virando-se para Caldris por tempo suficiente para captar o sinal particular do mestre, que indicou um enfático “não”, como Locke esperava;
ele concordava plenamente.
– Não podemos, rapazes. E vocês sabem disso. Ainda nem começamos a arrumar nosso navio; não faz sentido lutar contra outro. Um quarto dos nossos homens ainda está
sem condições de trabalhar, quanto mais de lutar. Temos comida fresca, um navio limpo e todo o tempo do mundo. Melhores chances virão. Mantenha o curso, mestre Caldris.
– Manter o curso, certo.
Jabril aceitou bem; Locke estava descobrindo que o sujeito tinha uma sólida sensatez e um bom conhecimento de quase todos os aspectos da vida num navio, o que o
tornava superior a Locke nesse sentido. Era um bom companheiro, outra sorte pela qual agradecer. Já os homens que estavam atrás de Jabril... Locke sabia instintivamente
que eles precisavam de alguma ocupação para ajudar a amenizar o desapontamento.
– Streva – disse ao mais novo –, solte a barquilha. Mal, cuide da ampulheta. Reportem-se ao mestre Caldris. Jabril, você sabe usar um arco recurvo?
– Sim, capitão. Curto, recurvo, longo. Tenho mira decente com qualquer um.
– Tenho dez deles num armário no porão de popa. Deve ser fácil achar. E umas duzentas flechas. Monte uns alvos com lona e palha. Ponha na proa, assim ninguém vai
levar uma surpresa desagradável na bunda. Comece a treinar os rapazes em grupos, todo dia, quando o tempo permitir. Vai chegar a hora de visitar outro navio, quero
ter bons arqueiros nos topos.
– Ótima ideia, capitão.
Isso, pelo menos, pareceu restaurar a empolgação dos marinheiros que continuavam no tombadilho. O interesse deles deu outra ideia a Locke.
– Mestre Valora!
Jean estava com Mirlon, o cozinheiro, examinando algo no pequeno fogão de tijolos no castelo de proa. Ele acenou respondendo ao grito de Locke.
– Ao pôr do sol, quero ter certeza de que cada homem a bordo sabe onde ficam todos os armários de armas. Garanta isso pessoalmente.
Jean assentiu e voltou ao que estava fazendo. Para Locke, a ideia de que o capitão Ravelle queria que cada homem estivesse acostumado com as armas do navio – afora
os arcos, havia machadinhas, sabres, porretes e algumas alabardas – seria muito melhor para o moral do que a ideia de que ele preferiria mantê-las trancadas ou escondidas.
– Muito bem – comentou Caldris baixinho.
O marinheiro Mal observou os últimos grãos na ampulheta presa ao mastro principal escorrerem, virou-se para a popa e gritou:
– Segure a linha!
– Sete nós e meio! – berrou Streva um instante depois.
– Sete e meio – repetiu Caldris. – Muito bem. Estamos fazendo mais ou menos isso desde que saímos de Tal Verrar. Uma boa corrida.
Locke lançou um olhar para os pinos enfiados nos buracos da tábua de navegação de Caldris e para a bússola na bitácula, que mostrava que estavam indo a um fio de
cabelo a sul por oeste.
– É um belo ritmo, se continuar assim – murmurou Caldris. – Isso nos coloca nos Ventos Fantasmas daqui a duas semanas, talvez. Não sei quanto ao capitão, mas ganhar
uns dias na programação me deixa muito confortável.
– E vai continuar assim? – Locke falava o mais baixo que podia, sem sussurrar no ouvido do mestre de navegação.
– Boa pergunta. O fim do verão é um tempo estranho no Mar de Bronze; temos tempestades por aí, em algum lugar. Posso sentir nos ossos. Elas estão longe, mas esperando.
– Ah, esplêndido.
– Vamos conseguir, capitão. – Caldris removeu brevemente o charuto da boca, cuspiu uma coisa marrom no convés e o recolocou entre os dentes. – O fato é que estamos
indo muito bem, graças ao Senhor das Águas Revoltas.
13
– Mata ele, Jabril! Acerta bem na porra do coração!
Jabril estava na meia-nau, voltado para um casaco do baú de Locke pregado numa tábua larga encostada no mastro principal, a uns 10 metros de distância. Seus pés
tocavam uma linha riscada grosseiramente a giz nas tábuas do convés. Na mão direita, segurava uma faca de atirar e, na esquerda, uma garrafa de vinho cheia, segundo
as regras do jogo.
O marinheiro que o estivera encorajando arrotou alto e começou a bater com os pés no convés. O círculo de homens ao redor de Jabril entrou no ritmo e começou a bater
as mãos e entoar, a princípio lentamente, depois cada vez mais rápido:
– Não derrame uma gota! Não derrame uma gota! Não derrame uma gota! Não derrame uma gota! Não derrame uma gota!
Jabril se curvou, girou para a direita, fez um movimento para trás com o braço e lançou a faca. Ela acertou bem o centro do casaco, uma balbúrdia de gritos soou
e se transformou rapidamente em uivos. Jabril havia derramado um pouco do vinho da garrafa.
– Maldição! – gritou ele.
– Desperdiçador de vinho! – gritou um dos homens ao redor, com o fervor de um sacerdote execrando a pior blasfêmia. – Pague a penalidade e devolva-a a seu lugar
de direito!
– Ei, pelo menos eu acertei o casaco – replicou Jabril com um sorriso. – Você quase matou alguém no tombadilho.
– Pague o preço! Pague o preço! Pague o preço! – entoaram todos os outros.
Jabril levou a garrafa aos lábios, virou-a completamente e começou a tomar a bebida de um só gole. O cântico aumentou de volume e ritmo à medida que a quantidade
de vinho na garrafa diminuía. O pescoço e os músculos do maxilar de Jabril faziam um esforço enorme e ele levantou a mão livre bem alto enquanto sugava o resto da
bebida escura.
Todos aplaudiram. Jabril afastou a garrafa dos lábios, baixou a cabeça e cuspiu um bocado de vinho no homem mais próximo.
– Ah, não! Eu derramei uma gota! Ah rá rá rá rá!
– É a minha vez – anunciou o marinheiro encharcado. – Vou perder de propósito e derramar uma gota de volta, meu camarada.
Locke e Caldris observavam da amurada de estibordo do tombadilho. Caldris estava tirando uma rara folga do timão; Jean ocupava seu lugar. Navegavam num crepúsculo
calmo, quente e úmido, agradável o suficiente para Caldris se separar do precioso timão do navio e ficar a meia dúzia de passos de distância.
– Foi uma boa ideia – elogiou Locke.
– Os pobres coitados ficaram presos muito tempo, merecem uma boa farra. – Caldris fumava um cachimbo de cerâmica azul-claro, a coisa mais elegante e delicada que
Locke já vira nas mãos dele, e seu rosto estava iluminado pelo brilho fraco das brasas.
Por sugestão de Caldris, Locke tinha ordenado que uma grande quantidade de vinho e cerveja (o Mensageiro Vermelho levava uma grande provisão das duas bebidas, para
uma tripulação com o dobro do tamanho da atual) fosse trazida ao convés e oferecera uma escolha a cada homem a bordo. Uma ração dupla de porco recém-assado – cortesia
do porco pequeno mas bem gordo que tinham trazido – para os que ficassem sóbrios e trabalhando, e uma festa de bebedeira para os que quisessem relaxar. Caldris,
Jean e Locke estavam sóbrios, claro, assim como outros quatro marinheiros.
– São coisas assim que fazem um navio parecer um lar – continuou Caldris. – Ajuda a gente a esquecer como a vida aqui pode ser um monte da velha merda tediosa.
– Não é tão ruim – comentou Locke, pensativo.
– Ah, sim, diz o capitão da porra do navio numa noite mandada pelos deuses. – Ele tragou a fumaça e soprou-a por cima da amurada. – Bom, se tivermos mais algumas
noites assim, vai ser fantástico. Os momentos de calma valem mais do que chicotes e algemas para se ter disciplina, ouça o que eu digo.
Locke contemplou as ondas no escuro e se espantou ao ver uma forma pálida e branco-esverdeada, reluzindo como uma lanterna alquímica, saltar e cair espirrando água
alguns segundos depois, deixando uma imagem residual iridescente ao piscar.
– Pelos deuses, que diabo é aquilo?
Agora havia um aglomerado daquelas coisas, a uns 100 metros do navio. Voavam em silêncio uma depois da outra, aparecendo e desaparecendo acima das ondas, lançando
sua luz fantasmagórica sobre a água negra, que a refletia como um espelho.
– O senhor é realmente novo nestas águas – disse Caldris. – São espectros-voadores. Ao sul de Tal Verrar, eles são vistos em toda parte. Às vezes em grandes cardumes
ou em arcos saltando da água. Por cima dos navios. Já houve ocasiões em que seguiram navios. Mas só depois de escurecer, veja bem.
– São algum tipo de peixe?
– Ninguém sabe direito. Os espectros-voadores não podem ser apanhados. Não podem ser tocados, pelo que ouvi dizer. Eles atravessam as redes como se fossem fantasmas.
Talvez sejam.
– Sinistro.
– Após alguns anos, a gente se acostuma. – Caldris tragou e o brilho laranja ficou momentaneamente mais forte. – O Mar de Bronze é um lugar bastante estranho, Kosta.
Dizem que é assombrado pelos Ancestres. A maioria diz que ele é simplesmente assombrado. Já vi coisas. Fogo de Santa Corella, ardendo azul e vermelho nos lais de
verga, quase matando de medo o vigia do topo. Naveguei por mares parecendo vidro e vi... uma cidade, uma vez. Lá embaixo, sem brincadeira. Muralhas e torres, pedra
branca. Claro como o dia, embaixo do casco. Em águas que nossos mapas dizem ter mil braças de profundidade. Era real feito o meu nariz, depois sumiu.
– He, he – fez Locke, sorrindo. – Você é muito bom nisso. Não precisa brincar comigo, Caldris.
– Não estou brincando nem um pouco, Kosta. – Caldris franziu a testa e seu rosto assumiu um tom sinistro à luz do cachimbo. – Estou dizendo o que você deve esperar.
Espectros-voadores são só o começo. Diabos, os espectros-voadores são quase amigáveis. Existem coisas aí em que até eu tenho dificuldade de acreditar. E existem
lugares aonde nenhum comandante de navio sensato jamais irá. Lugares que são... errados de algum modo. Lugares que esperam a gente.
– Ah. – Locke lembrou seus primeiros anos desesperados nos lugares antigos e podres de Camorr e mil prédios erguendo-se, construções partidas que pareciam esperar
no escuro para engolir criancinhas. – Bom, nesse sentido, entendo o que você quer dizer.
– As Ilhas dos Ventos Fantasmas. Bom, elas são o pior de tudo. Na verdade, só há oito ou nove ilhas em que os seres humanos podem ter posto os pés e voltado para
contar. Mas só os deuses sabem quantas outras existem escondidas por lá, sob as névoas, ou sei lá que porra está sobre elas. – Ele fez uma pausa. – Já ouviu falar
nos três povoados dos Ventos Fantasmas?
– Acho que não.
– Bem... – Caldris deu outra longa baforada no cachimbo. – Originalmente, eram três. Colonos vindos de Tal Verrar desembarcaram lá há cerca de cem anos. Fundaram
Porto Pródigo, Montierre e Esperança-de-Prata. Porto Pródigo continua lá, claro. É a única que resta. Montierre estava indo bem até a guerra contra a Armada Livre.
Pródigo ficava numa boa posição defensiva; Montierre, não. Depois de acabarmos com a frota deles, fizemos uma visita. Queimamos os barcos de pesca, envenenamos os
poços, afundamos as docas. Queimamos tudo que estava de pé e, então, queimamos as cinzas. Poderíamos ter apagado o nome “Montierre” do mapa. O lugar não vale a pena
ser reocupado.
– E Esperança-de-Prata?
– Esperança-de-Prata... – repetiu Caldris, baixando a voz até um sussurro. – Há cinquenta anos, era maior do que Porto Pródigo. Ficava numa ilha diferente, mais
a oeste. Prosperando. A prata não era só uma esperança. Trezentas famílias viviam lá, mais ou menos. O que quer que tenha acontecido, foi em uma noite apenas. As
famílias simplesmente... sumiram.
– Sumiram?
– Sumiram. Desapareceram. Não foi encontrado nenhum corpo. Nenhum osso para os pássaros bicarem. Alguma coisa desceu daqueles morros, daquela névoa acima da selva,
e só os deuses sabem o que era, mas pegou todos eles.
– Infernos misericordiosos.
– Se ao menos fossem! – exclamou Caldris. – Um ou dois navios deram as caras depois que a coisa aconteceu. Encontraram um navio vindo de Esperança-de-Prata, à deriva
em mar aberto, como se tivesse zarpado com pressa, e lá estavam os únicos corpos que restaram da coisa toda. Alguns marinheiros. Mastro acima, no topo. – Caldris
suspirou. – Eles se amarraram ali para escapar do que tinham visto... e todos foram encontrados mortos por suas próprias armas. Ali mesmo onde estavam, eles se suicidaram
para não enfrentar o que vinha pegá-los.
Caldris fez um gesto em direção ao círculo de marinheiros relaxados e barulhentos, bebendo e atirando facas à luz de globos alquímicos.
– Portanto, preste atenção, mestre Kosta. Se o senhor navega por um mar onde merdas assim acontecem, pode entender o valor de tornar seu navio um lar feliz.
14
– Preciso dar uma palavrinha, capitão Ravelle.
Um dia havia se passado. O ar ainda estava quente e o sol golpeava com força palpável quando não se escondia atrás das nuvens, mas as ondas estavam mais altas e
o vento, mais forte. O Mensageiro Vermelho não tinha massa para cortar fundo as ondas turbulentas sem estremecer, por isso o convés sob os pés de Locke se tornou
menos amistoso.
Locke se segurava com força na amurada de bombordo no fim da tarde, tentando parecer casual. Recuperado do contato íntimo com uma garrafa de vinho, Jabril se aproximou
com um par de marinheiros mais velhos. Locke reconheceu os outros dois como homens que tinham se declarado sem condições no início da viagem; dias de descanso e
grandes porções de comida lhes haviam feito bem. Por causa da tripulação reduzida, Locke autorizara recentemente ração extra em cada refeição, agradando a todos.
– Do que você precisa, Jabril?
– Dos gatos, capitão.
O estômago de Locke despencou. Com esforço heroico, conseguiu parecer apenas confuso.
– Nós estávamos embaixo, no convés principal – completou um dos marinheiros mais velhos. – Na maior parte do tempo, dormindo. E ainda não vimos nenhum gato neste
navio. Em geral, os danadinhos ficam andando de um lado para outro, brincando, querendo se enrolar na gente.
– Eu andei perguntando – acrescentou Jabril. – Ninguém viu nenhum. Nem no convés principal, nem aqui em cima, nem na coberta inferior. Nem nos porões. Eles ficam
na sua cabine?
– Não – respondeu Locke, visualizando com clareza perfeita os oito gatos, inclusive a gatinha de Caldris, deitados contentes num depósito de armas vazio acima da
baía particular na Marina da Espada. Oito gatos brigando e miando junto a tigelas de leite e pratos de frango frio.
Oito gatos que sem dúvida ainda estavam naquele depósito, bem onde ele os esquecera, na noite do fatídico ataque à Rocha de Barlavento. Cinco dias e 1.100 quilômetros
atrás.
– São filhotes – continuou ele rapidamente. – Uma ninhada de gatos para esta viagem, Jabril. Achei que seria bom um navio com nome novo ter gatos novos. E posso
dizer que são um bocado tímidos: eu mesmo não vi nenhum desde que os deixei na coberta inferior. Acho que só estão se acostumando com a gente. Vamos vê-los logo.
– Sim, senhor. – Locke ficou surpreso com o alívio visível no rosto dos três marinheiros. – É bom saber. Já é bem ruim não termos mulheres a bordo até chegarmos
aos Ventos Fantasmas; não ter nenhum gato seria medonho.
– Não daria para tolerar uma transgressão dessas – sussurrou um dos marinheiros.
– Vamos colocar um pouco de carne toda noite – informou Jabril. – Vamos ficar procurando nos conveses. Aviso ao senhor assim que encontrarmos um.
– Sem dúvida – disse Locke.
O balanço do mar não tinha nada a ver com sua ânsia de vomitar pela amurada assim que eles se afastaram.
15
Na noite do quinto dia a partida saírem de Tal Verrar, Caldris sentou-se para uma conversa particular na cabine de Locke com a porta trancada.
– Estamos indo bem – comentou o mestre de navegação, mas Locke podia ver círculos escuros como hematomas embaixo dos olhos dele.
O velho mal havia dormido quatro horas por dia desde que tinham alcançado o mar, incapaz de confiar o timão aos cuidados de Locke ou Jean sem serem supervisionados.
Por fim, conseguira um ajudante de piloto razoavelmente responsável, um homem chamado Careca Mazucca, mas até mesmo ele carecia de conhecimentos e só podia ser treinado um pouquinho a cada dia, com a atenção de Caldris tão dividida.
Continuavam sendo abençoados pelo comportamento da tripulação. Os homens ainda estavam cheios de ânimo para qualquer tipo de trabalho. Descobriram entre eles um carpinteiro que dava para o gasto e um fabricador de velas decente, e houve uma votação para intendente que escolheu um amigo de Jabril, encarregado de contar e dividir o saque quando chegasse a hora. Os enfermos estavam recuperando a saúde depressa e vários já haviam se juntado aos turnos de serviço. Os homens não se reuniam
mais para olhar nervosos para a esteira do navio, procurando qualquer sugestão de perseguição. Pareciam achar que tinham escapado da vingança de Stragos... e, claro,
jamais poderiam ser informados de que não haveria vingança alguma.
– O mérito é seu – comentou Locke, dando um tapinha no ombro de Caldris.
Censurou-se por não ter pensado antes no esforço que seria a viagem para o velho. Mazucca teria de ser treinado mais rapidamente e ele e Jean precisariam compensar
qualquer falha possível, ao seu modo inepto.
– Mesmo com um mar liso como espelho e uma ótima brisa, de jeito nenhum teríamos chegado tão longe sem você.
– Mas o tempo ruim está chegando – avisou Caldris. – Tempo que vai nos testar. É o fim do verão, como eu disse, e sopra uma merda capaz de sacudir a gente por metade
do mundo. Podemos passar dias corcoveando com os mastros vazios, vomitando até que não haja um local limpo no navio. – O mestre de navegação suspirou e lançou um
olhar curioso para Locke. – Ouvi as coisas mais incríveis nos últimos dois dias.
– É? – Locke tentou parecer casual.
– Ninguém viu nenhum gato em nenhum dos conveses. Nenhum apareceu, nem para comer nem tomar nada, cerveja, leite, ovos ou carne. – Uma súbita suspeita nublou sua
testa. – Existem gatos lá embaixo... certo?
– Ah – fez Locke.
Sua simpatia por Caldris um momento antes permanecia como um peso no coração; pela primeira vez, pegou-se completamente sem vontade de mentir. Massageou os olhos
com os dedos enquanto falava:
– Ah. Não, os gatos estão todos em segurança no galpão na Marina da Espada, onde eu os deixei. Sinto muito.
– Seu palhaço escroto – xingou Caldris em voz chapada e morta. – Anda. Não minta para mim sobre isso.
– Não estou mentindo. – Locke espalmou as mãos, dando de ombros. – Eu sei que você disse que era importante. Eu só... tinha uma centena de coisas para fazer naquela
noite. Eu queria pegá-los, é sério.
– Importante? Eu disse que era importante? Eu disse que era fundamental, porra! – Caldris manteve a voz num sussurro, mas era como o som de água fervendo sobre carvões
quentes. Locke se encolheu. – O senhor colocou nossas almas em perigo, mestre Kosta, nossas próprias almas. Lembro ao senhor que não temos mulheres, gatos nem um
capitão de verdade e o tempo ruim está a caminho.
– Sinto muito, sinceramente.
– Fui idiota em mandar um lambedor de terra pegar os gatos. Deveria ter mandado gatos para pegar um lambedor de terra! Eles não teriam me desapontado.
– Bom, certamente, quando chegarmos a Porto Pródigo...
– Quando é uma suposição audaciosa, Leocanto, porque muito antes disso a tripulação vai perceber que nossos gatos não são tímidos e, sim, imaginários. Se eles acharem
que os gatos morreram, vão presumir que estamos amaldiçoados e vão abandonar o navio no momento em que tocarmos a terra. Mas se a ausência de corpinhos fedorentos
levá-los a deduzir que a porra do capitão na verdade não trouxe nenhum, vão enforcá-lo numa verga.
– Ai.
– Acha que estou brincando? Eles vão se amotinar. Se virmos outra vela naquele horizonte, em qualquer direção, devemos persegui-la. Devemos provocar uma luta. Sabe
por quê? Para ver se conseguimos pegar alguns malditos gatos. Antes que seja tarde demais.
Caldris suspirou e, de repente, pareceu dez anos mais velho.
– Se uma tempestade de final de verão vier até nós, estará se movendo para noroeste mais rápido do que podemos velejar para leste, logo teremos de passar por ela.
Não adianta se esforçar para escapar, pois só iria nos deixar mais cansados. Eu vou fazer o máximo que puder, mas é melhor o senhor rezar esta noite na sua cabine
por uma coisa.
– Para quê?
– Para que caiam gatos da porcaria do céu.
16
É claro que nenhuma chuva conveniente de felinos guinchando viria naquela noite. Quando Locke apareceu no tombadilho na manhã seguinte, havia uma feia névoa cinza-fantasma
no horizonte sul, como a sombra de um deus raivoso. O brilhante medalhão do sol nascendo no céu que, afora isso, estava claro, só fazia aquilo parecer mais sinistro.
O convés adernava ainda mais para estibordo e andar para qualquer lugar no lado de bombordo era quase como subir uma pequena colina. As ondas batiam no casco e eram
pulverizadas em borrifos, enchendo o ar com o cheiro e o gosto de sal.
Jean estava treinando um pequeno grupo de marinheiros com espadas e alabardas na área central do navio e Locke assentiu, como se captasse cada nuance do treino e
aprovasse. Percorreu o convés do Mensageiro Vermelho cumprimentando marinheiros pelo nome e tentou ignorar Caldris fuzilando-o com o olhar às suas costas.
– Ótima manhã para o senhor, capitão – murmurou o mestre de navegação quando Locke se aproximou do timão.
Caldris tinha uma aparência medonha ao sol forte: o cabelo e a barba estavam mais brancos, os olhos enfiados numa sombra mais funda, cada ruga do rosto redesenhada
pela mão de um deus qualquer.
– Dormiu esta noite, mestre Caldris?
– Me vi estranhamente incapaz disso, capitão.
– O senhor deveria descansar.
– É, e em termos gerais o navio deveria ficar acima da água ou pelo menos foi o que ouvi sendo sugerido.
Locke suspirou, virou-se para a proa e estudou o céu que escurecia ao sul.
– Imagino que seja uma tempestade de fim de verão. Já passei por um bocado delas no meu tempo – falou alto e em tom casual.
– Logo o senhor estará dentro de mais uma, capitão.
Locke passou a tarde contando os suprimentos no porão principal, com Mal como escriba, marcando pequenas linhas numa tabuleta de cera. Eles se abaixavam e serpenteavam
através de uma floresta de carne-seca em sacos de pano impermeabilizado, pendurados nas traves do porão e balançando com o movimento cada vez maior do navio. O porão
já estava mais fedorento devido à ocupação constante por parte dos homens; os que haviam se mostrado inclinados a dormir no espaço mais livre sob o castelo de proa
tinham-no abandonado por causa da promessa de tempo ruim. Locke teve certeza de que sentira cheiro de mijo; alguém era preguiçoso demais ou estava apavorado demais
para sair e usar os cabos de bosta. A tendência era piorar.
Às quatro da tarde, todo o céu era uma catarata de cinza-névoa. Caldris, esparramado contra o mastro durante uma breve folga enquanto Mazucca e outro marinheiro
seguravam o timão, ordenou que as velas fossem caçadas e as lanternas, distribuídas. Jean e Jabril comandaram grupos no porão, para garantir que a carga e o equipamento
estivessem bem presos. Um armário de armas se abrindo bruscamente ou um barril rolando num navio que se balançava mandaria marinheiros desafortunados ao encontro
dos deuses.
Após o jantar, por insistência sussurrada de Caldris, Locke ordenou que os marinheiros que cuidavam do estoque de tabaco do navio fumassem o último cigarro até segunda
ordem. Chamas desprotegidas não seriam mais toleradas em lugar nenhum; as lanternas alquímicas forneceriam toda a luz e eles usariam a pedra alquímica ou, mais provavelmente,
comeriam refeições frias. Locke prometeu uma metade extra de ração de vinho a cada noite se fosse necessário.
Uma escuridão prematura havia tomado o céu no momento em que Locke e Jean puderam sentar-se para uma bebida em silêncio na cabine de popa. Locke fechou os postigos
das janelas e o compartimento pareceu menor do que nunca. Locke observou os confortos dúbios desse símbolo da autoridade de Ravelle: uma rede acolchoada junto à
antepara de bombordo, um par de banquetas, sua espada e as facas penduradas na parede com presilhas contra a tempestade. A “mesa” era uma tábua de madeira em cima
do baú de Locke. Por mais triste que fosse, era algo principesco comparado aos armários usados por Jean e Caldris ou com a carga e os panos de vela emprestados do
convés principal pela tripulação.
– Lamento muito pelos gatos – disse Locke.
– Eu poderia ter me lembrado disso também.
Porém, era óbvio que ele havia confiado em Locke, achando que não teria de se preocupar com a questão. Jean se esforçava ao máximo para ser educado, mas a culpa
se retorcia no estômago de Locke mais ainda por causa disso.
– Não precisa compartilhar essa culpa – replicou Locke, tomando sua cerveja quente. – Sou o capitão da porcaria do navio.
– Não seja pomposo. – Jean coçou a barriga, que fora reduzida pela atividade recente a uma curva muito menos dramática do que já possuíra. – Vamos pensar em alguma
coisa. Diabos, se passarmos alguns dias abrindo caminho através de uma tempestade, os homens não terão tempo de se preocupar com nada, a não ser com quando e como
mijar nos calções.
– Hummm. Tempestade. Bela oportunidade para um de nós pisar em falso e dar uma de idiota na frente dos homens. É mais provável que seja eu, e não você.
– Pare de ficar se preocupando. – Jean sorriu. – Caldris sabe o que está fazendo. Ele vai nos ajudar a passar por isso.
Houve um impacto súbito e pesado na porta da cabine. Os dois saltaram dos bancos ao mesmo tempo e Locke correu até as armas. Jean gritou:
– O que é?
– Kosta – chamou uma voz fraca, seguida por um chacoalhar débil, como se alguém estivesse tentando virar a maçaneta e não conseguisse.
Jean abriu a porta no instante em que Locke terminava de afivelar o cinto da espada. Caldris estava na base da escada do tombadilho, segurando o umbral para se apoiar,
oscilando. O brilho âmbar do lampião da cabine revelava os detalhes medonhos: os olhos de Caldris estavam injetados e se revirando para cima, a boca aberta e a pele
pálida brilhando de suor.
– Me ajude, Kosta – sussurrou ele, chiando com um som que era doloroso só de ouvir.
Jean agarrou-o e segurou-o de pé.
– Cacete – murmurou. – Ele não está só cansado, Leo... capitão. Ele precisa de um maldito galeno!
– Me ajude... Kosta – grunhiu o mestre de navegação, e apertou a parte de cima do braço esquerdo com a mão direita, depois a região esquerda do peito. Fechou os
olhos com força e se encolheu.
– Te ajudar? – Locke pôs a mão embaixo do queixo de Caldris; a pulsação do sujeito estava louca, errática. – Em quê?
Caldris fez uma careta de concentração, sugando o ar asperamente a cada palavra.
– Me. Ajude. Kosta!
– Vamos deitá-lo na mesa – disse Jean, e fez isso com o auxílio de Locke.
– Doces deuses – disse Locke. – É o veneno? Não estou me sentindo diferente.
– Nem eu – afirmou Jean. – Acho... acho que ele está tendo um ataque cardíaco. Já vi isso antes. Merda. Se pudermos acalmá-lo, talvez fazer com que ele beba alguma
coisa...
Mas Caldris gemeu de novo, apertou debilmente o lado esquerdo do peito e estremeceu. Suas mãos ficaram frouxas. Uma exalação longa, estrangulada, escapou de sua
garganta e, num horror crescente, Locke tateou num frenesi a base do pescoço dele, com as duas mãos.
– A pulsação sumiu – sussurrou ele.
Um batuque suave no teto da cabine, a princípio fraco, mas acelerando rapidamente, avisou-lhes que as primeiras gotas de chuva começavam a cair. Os olhos de Caldris,
fixos no teto, estavam vidrados.
– Ah, merda – praguejou Jean.
LIVRO II
CARTAS NA MANGA
Os jogadores jogam exatamente como os amantes
amam e os bêbados bebem: às cegas e por necessidade,
sob o domínio de uma força irresistível.
JACQUES ANATOLE THIBAULT
CAPÍTULO OITO
O fim do verão
1
Água escura diante da proa, água nas laterais, água no ar, caindo com o peso de bolotas de chumbo contra a capa impermeável de Locke. A chuva parecia vir primeiro
de um lado, depois do outro, nunca satisfeita em cair direto para baixo, enquanto o Mensageiro Vermelho balançava para trás e para a frente nas mãos cinza da tempestade.
– Mestre Valora! – Locke se agarrou com força os cabos de segurança amarrados em volta do mastro principal, assim como por todo o convés, e berrou pela escotilha:
– Quanta água no espaço da bomba?
A resposta de Jean veio após alguns instantes:
– Sessenta centímetros!
– Muito bem, mestre Valora.
Locke captou um vislumbre de Mazucca encarando-o e conteve um sentimento de inquietação. Sabia que a morte súbita de Caldris no dia anterior fora recebida pelos
tripulantes como um presságio do pior tipo: eles murmuravam abertamente sobre mulheres e gatos e o foco de toda a atenção pouco gentil era um tal de Orrin Ravelle,
cujo status como capitão e salvador vinha se esgarçando cada vez mais. Locke se virou para o timoneiro e o encontrou de novo olhando à frente, com os olhos estreitados,
sob a chuva que pinicava, aparentemente absorvido na tarefa.
Dois marinheiros com capas estavam no segundo timão atrás de Mazucca, pois, diante de ondas tão fortes, o controle do leme poderia escapar das mãos de um único homem
com facilidade. Seus rostos eram sombras escuras dentro dos capuzes; também não tinham nada amigável para dizer a Locke.
O vento uivava através dos cabos e das vergas no alto, onde a maior parte das velas tinha sido enrolada. Continuavam seguindo vagamente para sudoeste sob o impulso
de nada mais do que as velas de gávea bem rizadas. Estavam tão adernados para estibordo que Mazucca e seus ajudantes não se encontravam apenas parados junto dos
timões: o mar violento exigia sua atenção constante e fatigante para manter o navio estável e as ondas continuavam crescendo.
Um jorro de água verde-acinzentada passou por cima dos pés descalços de Locke e ele ofegou; tinha abandonado as botas em troca da firmeza maior dos pés desprotegidos.
Observou a água rolar pelo convés, uma convidada indesejada porém constante, antes de escorrer pelos embornais e vazar pelas bordas da lona de tempestade colocada
sob as grades das escotilhas. Na verdade, a água estava quente, mas ali, no coração sem sol da tempestade, com o vento cortante, sua imaginação fazia com que ela
parecesse fria.
– Capitão Ravelle!
Jabril vinha se aproximando pela amurada de bombordo, com uma lanterna de tempestade numa das mãos.
– Há algumas horas poderia ter sido aconselhável baixar a porra dos mastaréus dos joanetes!
Desde que Locke havia se levantado naquela manhã, Jabril tinha feito pelo menos meia dúzia de censuras e lembretes sem ser instigado. Locke olhou para cima, para
as pontas dos mastros principal e de popa, quase perdidas na névoa que redemoinhava lá no alto.
– Já pensei um pouco nisso, Jabril, mas não pareceu necessário.
Segundo o que Locke lera, mesmo sem velas ondulando nas vergas, os mastaréus dos joanetes poderiam causar um desequilíbrio indesejado sob ventos mortais ou mesmo
se perder no mar enquanto o navio corcoveava e adernava. Ele estivera ocupado demais para pensar em tirá-los.
– Vai parecer necessário pra cacete se eles caírem e arrastarem mais cordames.
– Talvez eu mande baixá-los daqui a pouco, Jabril, se achar adequado.
– Se achar adequado? – Jabril olhou-o, boquiaberto. – Perdeu a droga do tino, Ravelle? A hora de baixar os sacanas já passou há muito tempo. Agora os marinheiros
que temos são tremendamente necessários em outros lugares e o tempo está piorando! Talvez só seja bom tentar fazer isso se o navio estiver correndo perigo... mas,
maldição, isso pode acontecer logo! Nunca esteve tão longe no Mar de Bronze, capitão?
– Claro que estive. – Locke suava dentro da capa impermeável. Se soubesse da verdadeira extensão do conhecimento naval de Jabril, poderia tê-lo encarregado desses
detalhes, mas agora era tarde demais e parte de sua incompetência ficava desnuda. – Desculpe, Jabril. Caldris era um bom amigo. A perda dele me deixou meio abalado!
– Sem dúvida! Assim como a perda da porra do navio pode deixar todos nós mais do que um pouquinho abalados, senhor. – Jabril se virou e começou a andar ao longo
da amurada de bombordo, mas após alguns segundos girou de volta para Locke. – Você e eu sabemos que não existe nenhum maldito gato a bordo, Ravelle!
Locke baixou a cabeça e se agarrou ao mastro principal. Era demais esperar que Mazucca e os marinheiros que estavam atrás dele não tivessem escutado isso. Mas, claro,
sob seu olhar eles não disseram nada nem revelaram nada, olhando fixamente para a tempestade, como se tentassem imaginar que ele não estava ali.
2
Abaixo do convés era um pesadelo. Pelo menos no convés havia mastros e as ondas estourando para oferecer alguma perspectiva de localização. Ali embaixo, no abafamento
de suor, urina e vômito, as próprias paredes trêmulas pareciam se inclinar e se sacudir em caprichos maliciosos. Jorros de água escorriam pelas escotilhas e grades,
apesar das precauções tomadas pela tripulação. O convés principal ecoava com o uivo abafado do vento.
Da coberta inferior, vinha o som chacoalhado das bombas. Elas eram excelentes instrumentos verraris, capazes de puxar água e jogá-la por cima da amurada a alguma
velocidade, mas exigiam turnos de oito homens num mar como aquele e o trabalho era exaustivo. Até mesmo uma tripulação em boa saúde poderia achar o serviço oneroso,
quanto mais aquela, composta por homens que tinham saído da prisão muito abaixo da força máxima.
– A água está ganhando espaço, capitão – informou um marinheiro que Locke não pôde reconhecer na penumbra. Ele havia enfiado a cabeça pela escotilha da coberta inferior.
– Noventa centímetros de água no casco. Aspel disse que estouramos uma emenda em algum lugar e que precisa de homens para uma equipe de reparo.
Aspel era o que tinham de mais parecido com um carpinteiro de navio.
– Ele vai tê-los – garantiu Locke.
Porém, não sabia onde conseguir. Dez homens faziam trabalho importante no convés, oito nas bombas... e estavam quase na hora de ser substituídos. Seis ou sete ainda
fracos demais para ter alguma utilidade além de servir como lastro. Um esquadrão na coberta inferior com Jean, prendendo os barris de comida e água depois que três
haviam se soltado e se partido. Oito dormindo no convés principal ali perto, pois tinham ficado acordados a noite inteira. Dois com ossos quebrados, tentando aplacar
a dor com uma ração não autorizada de vinho. O esquema rudimentar de turnos de serviço se desfazia diante das exigências da tempestade e Locke lutava para conter
uma aguda pontada de pânico.
– Chame o mestre Valora, na coberta inferior – acrescentou, por fim. – Diga que ele e seus homens podem cuidar dos mantimentos de novo depois de darem uma mão ao
Aspel.
– Sim, senhor.
– Capitão Ravelle!
Outro grito veio de baixo enquanto o primeiro marinheiro desaparecia, e Locke parou acima da escotilha para responder:
– O que é?
– Nosso tempo na porcaria das bombas, senhor! Não podemos manter este ritmo desgraçado para sempre. Precisamos ser rendidos. E precisamos de comida!
– Vocês terão as duas coisas em apenas dez minutos – assegurou Locke.
Se bem que, de onde, de novo, ele não sabia; todas as suas opções estavam doentes, feridas, exaustas ou trabalhando em outra coisa. Ele se virou para subir de novo
ao convés. Poderia trocar a equipe do convés pelos homens das bombas. Isso não traria alegria a nenhum dos dois grupos, mas talvez servisse para manter o navio à
frente do desastre completo por mais algumas horas preciosas.
3
– Como assim, você não virou a ampulheta?
– Capitão Ravelle, senhor, pedindo duplamente a porra do seu perdão, nós não tivemos tempo de virar a ampulheta nem de cuidar do livro desde... diabos, não sei.
Já faz um tempo.
Mazucca e seu colega mais pareciam agarrados ao timão para salvar a vida do que para guiar o navio. Duas duplas estavam nos timões; o ar era um frenesi de vento
uivando e chuva pinicando. As ondas, com cristas a 6 metros ou mais, passavam acima da proa repetidamente, lavando o convés em branco e borbulhando acima dos tornozelos
de Locke. Tinham sido forçados a abandonar o rumo para o sul e agora estavam bem a oeste, à frente do vento, empurrados por um solitário traquete de tempestade.
Navegavam sob ventos fortes contra ondas da altura de casas.
Locke vislumbrou um risco amarelo passando rápido, uma lanterna de tempestade soltando-se e sumindo pela amurada, que logo seria uma curiosidade para os peixes lá
embaixo.
Ele foi com dificuldade até a bitácula e folheou as páginas molhadas do livro de bordo. A última anotação dizia:
3a h tarde 7 Festal 78 Morgante s/so 8 nós
por favor Iono poupe estas almas
Locke não conseguia lembrar quando parecera pela última vez que era a terceira hora da tarde. A tempestade deixava o meio-dia tão escuro quanto a goela de um tubarão
e o espocar dos raios dava uma iluminação estranha ao que poderia ser o fim da tarde. Tinham tanta certeza do tempo quanto da localização.
– Pelo menos sabemos que estamos em algum lugar do Mar de Bronze! – gritou acima do barulho. – Logo vamos sair dessa confusão e, então, vamos calcular a latitude.
Se ao menos fazer fosse tão fácil quanto falar! O medo e a exaustão haviam deixado os sentidos de Locke vacilantes. O mundo estava cinza e girava em todas as direções
e ele tinha vomitado a última refeição fria por cima da amurada de popa... só os deuses sabiam quando. Horas antes, provavelmente. Se um Mago-Servidor de Kartane
tivesse aparecido no convés naquele momento e se oferecido para usar magia e levar o navio à segurança, Locke poderia beijar as botas dele.
Houve um som terrível e súbito acima: um estalo explosivo seguido pelo sibilar ondulante de um cabo partido cortando o ar. Segundos depois, veio um estalo mais alto
e um snap-snap-snap como o som de um chicote batendo em carne.
– Cuidado lá em cima! – berrou Jabril em algum lugar à proa.
Locke e o navio se sacudiram ao mesmo tempo, golpeados pelo martelo de uma onda. Foi essa perda de equilíbrio que salvou sua vida. Uma sombra passou voando junto
ao seu ombro esquerdo enquanto ele deslizava no convés molhado, cuspindo água. Houve um estalo de estourar os tímpanos, gritos e um negrume súbito quando algo escorregadio
e mole o encobriu.
Lona de vela! Locke a empurrou, esforçando-se para libertar-se. Mãos fortes agarraram seus antebraços e puxaram-no de pé. Era Jean, que se firmava contra a amurada
do tombadilho a estibordo. Com a queda, Locke havia escorregado alguns metros para a direita. Murmurando agradecimentos, ele se virou e viu o que temia.
O mastaréu do joanete principal havia se partido. Seus estais deviam ter se arrebentado devido a algum truque do vento ou às sacudidas do navio. Ele mergulhara para
a frente, desenrolando e arrastando a vela de sua verga, antes que uma confusão de cordame embolado o puxasse para trás como um pêndulo logo acima do convés. O mastaréu
cobriu os timões, e os quatro homens que os estavam manobrando haviam sumido. Locke e Jean se moveram ao mesmo tempo, lutando para atravessar a lona molhada e as
cordas partidas, enquanto fragmentos continuavam a chover ao redor. Locke já conseguia sentir o navio se movendo de um modo pouco saudável embaixo dele. Era necessário
que alguém segurasse os timões e o leme precisava ser firmado instantaneamente.
– Todos os tripulantes! – gritou Locke com o máximo de convicção possível. – Todos os tripulantes no convés! Todos os tripulantes para salvar o navio!
Jean fez força contra a verga do mastaréu caído, firmando-se contra o mastro principal, e soltou um uivo devido ao esforço. Madeira e lona se mexeram, depois caíram
com um estrondo no convés. Apesar de a parte onde se segurava estar reduzida a lascas, os timões propriamente ditos estavam, no geral, intactos. Agora Locke podia
ver Mazucca se levantando devagar atrás deles; outro homem estava caído no convés com a cabeça nitidamente esmagada.
– Segurem o timão! – gritou Locke, procurando mais ajuda ao redor. – Segurem a droga do timão! – Ele se pegou embolado com Jabril.
– Capitão! – berrou Jabril direto no seu rosto. – A gente pode virar o navio em roda!
Ah, ótimo, pensou Locke, pelo menos eu sei o que isso significa. Empurrou Jabril em direção aos timões e agarrou-se a um deles, ao lado de Jean.
– Timão a bombordo.
Locke tossiu, pelo menos confiando naquela ordem. Gemendo de esforço, ele e Jean lutaram para girar o timão na direção certa. O Mensageiro Vermelho estava deslizando
para sotavento em ângulo, penetrando na reentrância entre as ondas; em instantes, o navio estaria de costado para elas e praticamente perdido. Uma onda escura e
enorme ergueu-se acima da amurada de estibordo e encharcou todos, um simples gostinho do fracasso por vir.
Mas a resistência do timão diminuiu enquanto Jabril encontrava seu lugar atrás deles e fazia força. Em segundos, Mazucca se juntou a ele e, centímetro a centímetro,
dolorosamente, Locke sentiu a popa se virar de novo para bombordo, até que a proa estava de novo cortando as ondas. Eles haviam ganhado tempo para contemplar o desastre
que a queda do mastro causara ao cordame.
Marinheiros brotaram das escotilhas do convés, formas inumanas à luz dançante das lanternas de tempestade. Raios cortavam a escuridão acima deles. Ordens eram dadas
por Locke, Jean e Jabril, sem que ninguém ligasse para quem era a autoridade maior. Os minutos viraram horas e as horas pareciam dias. Eles lutavam juntos numa eternidade
de caos cinza, frios, exaustos e aterrorizados contra os ventos que uivavam e as ondas que martelavam abaixo.
4
– Noventa centímetros de água estabilizados, capitão.
Aspel deu o informe com uma bandagem improvisada em volta da cabeça, nada menos do que uma manga arrancada da jaqueta de alguém.
– Muito bem – disse Locke, segurando-se ao mastro principal como Caldris fizera, dias antes.
Cada junta e cada músculo de seu corpo anunciava o desconforto; ele se sentia como um boneco de trapos cheio de vidro moído e, ainda por cima, estava encharcado.
Mas não era nada diferente do que passavam os outros sobreviventes. Como Correntes falara uma vez, sentir o desejo desesperado de morrer era uma bela prova de que
isso ainda não havia acontecido.
A tempestade do fim do verão era uma linha de escuridão que recuava no horizonte noroeste; ela os cuspira fora algumas horas atrás. Ali, as ondas tinham entre 1,5
metro e 2 metros e o céu continuava cinza, mas, em comparação com a tempestade, era um paraíso. Uma luz fúnebre era filtrada, indicando ser dia.
Locke examinou a confusão no convés: cabos de segurança e restos de cordame estavam embolados em toda parte. Pedaços de lona balançavam ao vento e marinheiros tropeçavam
em moitões e talhas caídos, praguejando. Era uma tripulação de fantasmas, maltrapilhos e desajeitados de tanta fadiga. Jean trabalhava no castelo de proa para preparar
a primeira refeição quente em tempos.
– Maldição – murmurou Locke.
A fuga da tempestade havia custado caro: três homens lançados ao mar, quatro seriamente feridos, dois mortos, incluindo Caldris. Mirlon, o cozinheiro, era o que
estivera no timão quando o mastaréu do joanete principal caíra sobre ele como uma lança divina e despedaçara seu crânio.
– Não, capitão – falou Jabril atrás dele. – Não se pudermos agir da forma certa por eles.
– O quê? – Locke girou, confuso... e se lembrou de repente. – Ah, sim, claro.
– Os mortos, capitão – explicou Jabril, como se falasse com uma criança. – Os mortos assombram o convés e não podem descansar até que os mandemos embora do modo
certo.
– É – concordou Locke. – Vamos fazer isso.
Os corpos de Caldris e Mirlon tinham sido deitados perto da portinhola na amurada de bombordo, enrolados em lona. Pacotes claros amarrados com corda alcatroada,
esperando o envio final. Locke e Jabril se ajoelharam ao lado deles.
– Diga as palavras, Ravelle – murmurou Jabril. – Isso você pode fazer por eles. Mandar as almas para o Pai das Tormentas e lhes dar o descanso.
Locke fitou os dois cadáveres enrolados e sentiu uma dor no coração. Quase dominado pela fadiga e pela vergonha, pôs a cabeça nas mãos e pensou rapidamente.
Por tradição, os capitães dos navios podiam ser proclamados sacerdotes laicos de Iono com um mínimo de estudo em qualquer templo adequado para o Senhor das Águas
Revoltas. No mar eles podiam conduzir orações, realizar casamentos e até dar bênçãos de morte. Apesar de conhecer alguns rituais internos do Templo de Iono, Locke
não era consagrado ao serviço dele. Era um sacerdote do Guardião Torto e ali, no mar, a milhares de quilômetros dentro dos domínios de Iono, a bordo de um navio
que já estava condenado por não cumprir os mandamentos do deus... nem nos céus nem nos infernos Locke poderia presumir-se capaz de dar o descanso àqueles homens.
Pelo bem de suas almas, teria de invocar o único poder com o qual tinha algum contato.
– Guardião Torto, Treze Sem Nome, seu serviçal o invoca. Ponha seus olhos na passagem deste homem, Caldris bal Comar, serviçal de Iono, jurado a roubar bens sob
a bandeira vermelha, portanto compartilhando um canto do seu reino...
– O que você está fazendo? – sibilou Jabril, segurando Locke pelo braço. Locke o empurrou para trás.
– A única coisa que posso fazer. A única bênção honesta que posso dar a estes homens, entende? Não interfira de novo, porra. – Baixou a mão outra vez para tocar
o corpo enrolado de Caldris. – Nós entregamos este homem, de corpo e espírito, ao reino de seu irmão Iono, poderoso senhor do mar. – Locke achou que um pouco de
lisonja não seria ruim naquela situação. – Ajude-o. Carregue sua alma Àquela que pesa todos nós na balança. Rezamos por isso com o coração esperançoso.
Locke fez um gesto, pedindo a ajuda de Jabril. O sujeito musculoso permaneceu num silêncio mortal enquanto eles levantavam juntos o corpo de Caldris e o empurravam
pela portinhola. Mesmo antes de ouvir a água espirrando, Locke estendeu a mão para a outra trouxa de lona.
– Guardião Torto, Vigia-Ladrões, seu serviçal o invoca. Ponha seus olhos na passagem deste homem, Mirlon, serviçal de Iono, jurado a roubar bens sob a bandeira vermelha,
portanto compartilhando um canto do seu reino...
5
O motim aconteceu na manhã seguinte enquanto Locke dormia em sua rede, ainda com as roupas molhadas que tinha usado durante toda a tempestade.
Foi acordado por alguém batendo à sua porta e empurrando o trinco. Remelento e ofegando de confusão, quase caiu da rede e precisou usar seu baú para se levantar,
instável.
– Arme-se – ordenou Jean, recuando da porta com as machadinhas na mão. – Temos um problema.
Isso o fez despertar completamente num instante. Afivelou depressa o cinto da espada, notando com satisfação que os postigos pesados sobre as janelas de popa ainda
estavam fechados. A luz se esgueirava pelas bordas. Já era dia? Pelos deuses, a noite passara num piscar de olhos sem sonhos.
– Alguns deles não estão felizes comigo, não é?
– Nenhum deles está feliz com a gente.
– Na certa estão com mais raiva de mim do que de você. Acho que você ainda pode fingir que é um deles; é o meu sangue que eles querem e você pode dizer que foi enganado
por mim. Leve-me até eles. Você ainda pode conduzir essa tramoia e conseguir o antídoto com Stragos.
– Está maluco?
Jean encarou Locke, irritado, mas não se afastou da porta.
– Você é um sujeito estranho, irmão. – Locke contemplou, inquieto, seu sabre de oficial da marinha verrari; em suas mãos, aquilo não seria menos um adereço do que
agora, dentro da bainha. – Primeiro, quer se castigar por algo que não foi sua culpa, e agora não deixa que eu o libere por um erro que é totalmente meu.
– Quem, diabos, é você para me fazer sermões, Locke? Primeiro, insiste que eu fique apesar do perigo real que eu represento para você e agora implora que eu o traia
para obter um ganho? Foda-se. Você é um copo transbordante de loucura.
– Isso descreve a nós dois, Jean. – Locke sorriu mesmo contra a vontade; havia algo revigorante em ser levado de volta ao perigo que ele próprio gerara após a maldade
indiferente da tempestade. – Se bem que você é mais uma garrafa do que um copo. Eu sabia que você não iria engolir.
– Certíssimo, pelos deuses.
– Eu gostaria de ver a cara do Stragos quando a gente fizesse o que ia fazer com ele. E gostaria de saber o que era, quando chegasse o momento apropriado.
– Bom, se for para falar em desejo, eu gostaria de 1 milhão de solaris e um papagaio que falasse trono terim. Mas isso não vai acontecer, entendeu?
– Talvez o fato de isso estragar o precioso planozinho do Stragos seja uma sacanagem suficiente para ele.
– Bom, Locke. – Jean suspirou e acrescentou com a voz mais suave: – Talvez eles queiram conversar primeiro. E se eles quiserem conversar com você, devido a sua esperteza,
ainda podemos ter uma chance.
– Sem dúvida você é o único homem a bordo que ainda expressa confiança em alguma coisa que eu faço.
Locke suspirou.
– RAVELLE! – O grito veio da escada do tombadilho.
– Você ainda não matou nenhum deles, não é, Jean?
– Ainda não.
– RAVELLE! SEI QUE VOCÊ ESTÁ AÍ E SEI QUE VOCÊ PODE ME OUVIR!
Locke foi até a porta da cabine e gritou:
– Que inteligência maravilhosa, Jabril! Você me descobriu infalivelmente dentro da cabine onde eu estava dormindo a sono solto e imóvel durante toda a noite. Quem
lhe deu a dica?
– Nós estamos com toda a proa, Ravelle!
– Bom, maldição. Então vocês devem ter atacado os armários das armas. Eu esperava que a gente pudesse ter um daqueles agradáveis motins dançantes ou talvez um motim
de canto e jogos de cartas, sabe?
– Ainda há 32 de nós capazes de se mexer, Ravelle! Vocês são apenas dois, sem comida, sem água... O navio é nosso. Quanto tempo você pensa em ficar aí?
– O lugar é bom! – gritou Locke. – Temos uma rede, uma mesa, uma bela vista pela janela de popa... uma porta grande entre nós e vocês...
– Que podemos arrombar quando quisermos, e você sabe disso. – Um rangido na escada de tombadilho informou a Locke que Jabril havia parado do outro lado da porta.
Ele emendou em voz mais baixa: – Você sabe falar, Ravelle, mas saber falar não adianta contra dez arcos e vinte espadas.
– Não sou o único homem aqui, Jabril.
– É, nenhum de nós gostaria de enfrentar mestre Valora; nem com uma vantagem de quatro contra um. Mas a vantagem é maior do que essa. Se quiser que a gente pegue
pesado, vamos fazer o que for necessário.
Locke mordeu a parte interna da bochecha, pensando.
– Você fez um juramento a mim, Jabril. Um juramento a mim como seu capitão! Depois que eu devolvi a vida a vocês.
– Todos fizemos, e foi a sério, mas você não é o que disse que era. Você não é oficial-marinheiro. Caldris era, que os deuses o tenham, mas não sei que porra você
é. Você enganou a gente, por isso o juramento não vale mais.
– Entendo. – Locke ponderou, estalou os dedos e continuou: – Então vocês teriam mantido o juramento se eu... ah... fosse o que eu disse que era?
– É, Ravelle. Teríamos mesmo, porra.
– Acredito em você. Acredito que você não viola juramentos, Jabril. Por isso, tenho uma proposta. Jerome e eu estamos dispostos a sair em paz da cabine. Vamos subir
ao convés e vamos conversar. Ficaremos felizes em ouvir as reclamações de vocês, da primeira à última. E vamos de mãos vazias, desde que você faça o juramento. Salvo-conduto
até o convés e uma conversa aberta. Para todo mundo.
– Não vai haver nada de “ouvir reclamações”, Ravelle. Vai ser apenas nós dizendo como vai ser.
– Tudo bem. Pode chamar isso como quiser. Me dê seu juramento de salvaguarda e nós saímos. Saímos agora.
Durante um tempo, Locke se esforçou para ouvir qualquer coisa na escada de tombadilho.
Por fim, Jabril falou:
– Venham com as mãos vazias e não façam nenhum movimento brusco, especialmente Valora. Façam isso e eu juro diante de todos os deuses que chegarão em segurança ao
convés. Então vamos conversar.
– Bom – sussurrou Jean –, pelo menos isso conseguimos.
– É. Talvez apenas uma chance de morrer sob a luz do sol, não nas sombras. – Ele pensou se trocava de roupa antes de subir ao convés, mas desistiu, balançando a
cabeça. – Para o inferno com isso. Jabril!
– Que foi?
– Estamos abrindo a porta.
6
O mundo acima do convés era de céu azul intenso e sol forte; um mundo que Locke quase havia esquecido nos dias anteriores. Maravilhou-se com ele, apesar de Jabril
levá-los até o meio do navio sob os olhos de trinta homens com espadas desembainhadas e flechas nos arcos. Linhas brancas espumavam no horizonte, mas em volta do
Mensageiro Vermelho as ondas rolavam suaves e a brisa era um bem-vindo beijo de calor na pele.
– Incrível – sussurrou ele. – Nós navegamos de volta para o verão.
– Faz sentido termos sido soprados para o sul mesmo durante a tempestade – disse Jean. – Devemos ter ultrapassado o Primeiro Divisor. Latitude zero.
O navio ainda era uma confusão só; Locke viu reparos improvisados e incompletos em toda parte. Mazucca estava parado calmamente junto ao timão, o único homem desarmado
no convés. O navio era guiado usando apenas a vela de gávea principal. O cordame do mastro principal exigia um trabalho infernal de desembaraçar antes que pudesse
carregar qualquer vela útil; o mastaréu caído não estava à vista.
Locke e Jean pararam diante do mastro principal, esperando. No castelo de proa, homens olhavam para os dois por trás dos arcos. Felizmente, nenhum havia retesado
a corda. Pareciam nervosos e Locke não confiava no bom senso nem no tônus muscular deles. Jabril se encostou no bote do navio e apontou para Locke.
– Você mentiu pra gente, Ravelle.
A tripulação gritou e zombou, sacudindo as armas, proferindo insultos. Locke levantou a mão para falar, mas Jabril não permitiu.
– Você mesmo disse isso lá embaixo. Preciso que você admita, porra, portanto diga de novo, para todo mundo ouvir. Você não é oficial-marinheiro.
– É verdade – confirmou Locke. – Não sou oficial-marinheiro. Isso já deve ser óbvio para todo mundo.
– Que diabo você é, então? – Jabril e os homens pareciam genuinamente confusos. – Você tinha um uniforme verrari. Você entrou e saiu da Rocha de Barlavento. O Arconte
tomou esse navio e você o tomou de volta. Que porcaria de jogo é este?
Locke percebeu que uma resposta insatisfatória teria duras consequências; se formara um mistério considerável para ser deixado de lado. Ele coçou o queixo e espalmou
as mãos.
– Certo. Olhem, apenas uma parte do que eu disse era mentira. Eu, ah, fui de fato um oficial a serviço do Arconte, só não era oficial da marinha. Era um dos capitães
do serviço de informações dele.
– Informações? – gritou Aspel, que segurava um arco em cima do castelo de proa. – Como assim, está falando de espiões e coisas do tipo?
– Exatamente – respondeu Locke. – Espiões. E coisas do tipo. Odeio o Arconte. Estava enjoado de servir a ele. Achei... achei que com uma tripulação e um navio teria
um modo seguro de dar o fora e ao mesmo tempo puni-lo. Caldris veio para fazer o serviço de verdade enquanto eu aprendia.
– É – disse Jabril. – Mas não foi isso que aconteceu. E você não se contentou em apenas mentir para nós sobre quem você era. – Ele virou as costas para Locke e Jean,
falando para a tripulação. – Ele nos trouxe ao mar sem uma mulher a bordo do navio!
Caretas, vaias, gestos grosseiros e um bom número de sinais de mão para afastar o mal.
– Esperem aí! – gritou Locke. – Eu pretendia trazer mulheres; tinha quatro na lista. Vocês não as viram na Rocha de Barlavento? Prisioneiras? Todas pegaram febre.
Tiveram de ser levadas para terra, não veem?
– Se isso é verdade, talvez você tenha pensado um dia, mas o que fez quando todas ficaram doentes?
– O Arconte tirou a porcaria das prisioneiras, não eu. Eu precisei trabalhar com o que me restou. O que me restou foram vocês!
– Certo, então você trouxe a gente para cá, porra, sem um único gato!
– Caldris ordenou que eu arranjasse alguns. Desculpem, eu simplesmente... já falei que não sou marinheiro. Fiquei ocupado escapando de Tal Verrar e deixei os gatos
para trás. Eu não sabia!
– É verdade, você não tinha nada que vir para cá se não sabia da porcaria das regras! Por sua causa, este navio está amaldiçoado! Nós temos sorte de estar vivos,
os que ainda estamos. Cinco homens pagaram pelo pecado que era seu! Sua ignorância pelo que é devido a Iono, o Pai das Tormentas, pelos que navegam em suas águas.
– Que o Senhor das Águas Revoltas nos proteja! – exclamou outro marinheiro.
– Nosso infortúnio é culpa sua – continuou Jabril. – Você admite suas mentiras e sua ignorância. Eu digo que este navio não está limpo enquanto não tirarmos você
de dentro dele! Qual é a palavra de todos?
Houve um coro alto, imediato e unânime de concordância; os marinheiros sacudiram suas armas para Locke e Jean, gritando.
– É isso – disse Jabril. – Larguem suas armas.
– Espere – replicou Locke. – Você disse que íamos falar e eu não terminei!
– Eu trouxe vocês em segurança ao convés e nós conversamos. A conversa acabou, o juramento está pago. – Jabril cruzou os braços. – Larguem as armas!
– Agora...
– Arqueiros! – berrou Jabril. Os homens em cima do castelo de proa miraram.
– Qual é a opção? – gritou Locke com raiva. – Nos desarmarmos para poder o quê?
– Fiquem com as armas e morram sangrando neste convés. Ou se desarmem e nadem até onde puderem. Que Iono seja o juiz de vocês.
– Morte rápida e dolorosa ou lenta e dolorosa. Certo. – Locke desamarrou o cinto da espada e deixou-a cair no convés. – Mestre Valora não teve nada a ver com minhas
tramoias. Eu o arrastei para isso como fiz com vocês!
– Ei, espera um minuto, porra... – falou Jean ao colocar as Irmãs Malvadas respeitosamente aos seus pés.
– O que você diz, Valora? – Jabril olhou ao redor procurando objeções da tripulação e não encontrou nenhuma. – O mentiroso é Ravelle, que admite que o crime é dele;
vamos nos livrar dele e a maldição será extinguida. Você é bem-vindo para ficar.
– Se ele nadar, eu nado – rosnou Jean.
– Ele vale tanto assim para você?
– Não preciso me explicar, porra.
– Não! – berrou Locke quando vários marinheiros avançaram com espadas erguidas. – Não! Primeiro tenho uma coisa a dizer.
– Você já disse o que queria. O Pai das Tormentas vai julgar o que mais houver.
– Quando encontrei vocês, vocês estavam numa masmorra. Sob a porra de uma rocha. Trancados sob ferro e pedra! Prontos para morrer ou remar para o prazer do Arconte.
Estavam mortos e apodrecendo, seus miseráveis!
– Já ouvi isso antes – rebateu Jabril.
– Talvez eu não seja um oficial naval. Talvez eu mereça isto, talvez vocês estejam certos em castigar o homem que trouxe vocês a este infortúnio. Mas também sou
o homem que libertou vocês. Sou o homem que lhes deu qualquer vida possível. Vocês cospem nesse presente diante dos deuses se fizerem isso comigo!
– Quer as flechas, então? – perguntou Aspel, e os homens em torno gargalharam.
– Não – interveio Jabril, erguendo as mãos. – Não. Há algum sentido nisso. Este não é um navio feliz aos olhos dos deuses, com toda certeza. Nossa sorte já estará
bem escassa, mesmo depois de nos livrarmos dele. Ravelle precisa morrer pelos crimes que cometeu; pelas mentiras, pela ignorância e pelos homens que não verão terra
outra vez. Mas ele nos libertou. – Jabril olhou ao redor e mordeu os lábios antes de continuar. – Nós realmente devemos isso a ele. Por mim, devemos dar o bote a
eles.
– Nós precisamos do bote! – berrou Mazucca.
– Não faltam botes em Porto Pródigo – retrucou Streva. – Talvez a gente possa saquear um no caminho até lá.
– É, isso e gatos! – gritou outro marinheiro.
– Barco aberto – disse Jabril. – Sem comida, sem água, é no que eu voto. Eles vão como estão agora. Que Iono leve os dois como e quando quiser. Qual é a palavra
de todos?
Houve outra explosão de aprovação entusiasmada. Até Mazucca cedeu e assentiu.
– Só uma natação mais longa, no fim das contas – falou Locke.
– Bom – sussurrou Jean –, você os convenceu pelo menos disso.
7
O bote do navio foi desamarrado, içado e baixado pelo lado de estibordo até as águas azul-escuras do Mar de Bronze.
– Eles ganham remos, Jabril? – Um marinheiro ficara com a tarefa de tirar o barril de água e as rações do bote e havia pegado os remos também.
– Acho que não – respondeu Jabril. – Iono vai movê-los se quiser que sejam movidos. Vamos deixar os dois flutuando; essa foi a opinião geral.
Grupos de marinheiros armados se enfileiraram à frente e atrás para cutucar Locke e Jean em direção à portinhola de estibordo. Jabril foi logo atrás. Quando chegaram
à beira, Locke viu que o bote estava amarrado com uma corda cheia de nós, pela qual os dois desceriam.
– Ravelle – chamou Jabril baixinho. – Você é mesmo do Treze? É mesmo um dos sacerdotes dele?
– Sou – garantiu Locke. – Era a única bênção honesta que eu poderia dar a eles.
– Acho que faz sentido: espiões, coisas do tipo...
Jabril enfiou algo frio na túnica de Locke, às costas, deslizando-a de qualquer jeito até a parte de cima do calção. Locke reconheceu o peso de um dos seus punhais
junto ao cinto.
– Talvez o Pai das Tormentas leve os dois depressa – sussurrou Jabril – ou talvez deixe vocês flutuando a porra de um tempo enorme. Até que vocês decidam que simplesmente
já estão fartos... sabe?
– Jabril... Obrigado. Eu, ah, gostaria de ter sido um capitão melhor.
– Eu gostaria que você tivesse sido qualquer tipo de capitão. Agora desça pela porra do costado e suma.
Em instantes, Locke e Jean olhavam do bote que oscilava suavemente enquanto o Mensageiro Vermelho seguia com dificuldade, para sudoeste por oeste, com as velas rasgadas,
deixando-os no meio de lugar nenhum sob um sol do meio da tarde pelo qual Locke teria dado 10 mil solaris apenas um ou dois dias antes.
Passaram 100 metros, 200, 300... o antigo navio se afastava lentamente pelo mar ondulante, a princípio com o que deveria ser metade dos tripulantes observando da
popa. Mas logo perderam interesse nos homens mortos que estavam em sua esteira e voltaram à tarefa de impedir que seu pequeno mundo de madeira sucumbisse aos ferimentos.
Locke se perguntou quem herdaria a cabine de popa, as machadinhas de Jean, suas ferramentas incomuns e os 500 solaris guardados no fundo de seu baú pessoal – suas
últimas verbas somadas ao financiamento de Stragos.
Que os ladrões prosperem, pensou.
– Bem, esplêndido – disse, esticando as pernas do melhor modo possível. Ele e Jean se encararam, sentados em bancos opostos da embarcação de seis lugares. – Mais
uma vez engendramos uma fuga brilhante e roubamos algo de valor. Este bote deve valer 2 solaris.
– Só espero que quem ficar com as Irmãs Malvadas morra engasgado – falou Jean.
– O quê, com as machadinhas?
– Não, com qualquer coisa. O que for conveniente. Eu preferiria jogá-las pela janela da cabine a deixar que outra pessoa ficasse com elas. Pelos deuses.
– Jabril me passou um punhal enquanto eu saía.
Jean ponderou por um momento, depois deu de ombros.
– Quando um barco menor aparecer, pelo menos teremos uma arma para abordá-lo e tomá-lo.
– Você está... é... confortável aí na cabine de popa?
– Estou. – Jean se levantou do banco, andou de lado e se espremeu na popa com as costas na amurada de estibordo. – É meio apertada, mas os acabamentos são luxuosos.
– Isso é bom – disse Locke, apontando para o meio do bote. – Espero que não fique mais apertado quando eu instalar o jardim suspenso e a biblioteca bem ali.
– Já levei isso em conta. – Jean inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos. – O jardim suspenso pode ficar em cima da minha casa de banhos.
– Que também pode servir como templo.
– Você acha necessário?
– Acho. Imagino que nós dois vamos rezar um bocado.
Flutuaram em silêncio por muitos minutos. Locke também fechou os olhos, respirou fundo o ar penetrante e ouviu o sussurro fraco das ondas. O sol era uma pressão
quente e bem-vinda no topo da cabeça, e isso, acima de tudo, conspirou para acalentá-lo num estado semissonolento. Procurou em seu interior alguma sugestão de angústia
e encontrou apenas um entorpecimento oco; parecia ter relaxado diante do colapso final de todos os planos. Sem ninguém mais para enganar, sem mais segredos para
guardar, sem tarefas exigidas dele ou de Jean enquanto ficavam à deriva, esperando que os deuses revelassem seu próximo capricho.
A voz de Jean chamou-o de volta ao presente após um intervalo incomensurável e ele piscou ao abrir os olhos para a claridade forte do sol na água.
– Locke, vela à vista, três pontos a estibordo!
– Rá, rá, Jean. Deve ser o Mensageiro Vermelho se afastando de nós para sempre. Sem dúvida você se lembra dele.
– Não – replicou Jean, com mais insistência. – Nova vela à vista, três pontos a estibordo!
Locke olhou por cima do ombro, apertando os olhos. O Mensageiro Vermelho continuava claramente visível, agora a uns 800 metros de distância. À esquerda dele, a princípio
difícil de enxergar contra a brilhante fusão de mar e céu... um quadrado branco poeirento apenas roçando o horizonte.
– Não é possível – comentou Locke. – Parece que nossos rapazes terão a primeira chance de saquear.
– Se ao menos ele tivesse feito a cortesia de aparecer ontem!
– Aposto que eu teria estragado as coisas mesmo assim. Mas... não consigo imaginar aqueles pobres coitados prendendo a presa com arpéus, saltando por cima das amuradas,
espadas na mão, gritando “Seus gatos! Entreguem todos os seus gatos malditos!”.
Jean gargalhou.
– Que maldita confusão a gente começou. Pelo menos vamos ter alguma diversão. Vai ser um negócio tremendamente esquisito, com o Mensageiro nesse estado. Talvez eles
voltem e implorem que a gente dê uma mãozinha.
– Vão implorar a você, talvez.
Enquanto Locke olhava, o traquete do Mensageiro surgiu com um tremor, um quadrado de branco se desdobrando. Forçando a vista, podia vislumbrar figuras minúsculas
correndo de um lado para o outro no convés e no cordame. Seu antigo navio pôs a proa um pouquinho a bombordo, trazendo o vento para o quarto de bombordo.
– Esse navio está oscilando tanto que parece um cavalo com o tornozelo partido, mancando – comentou Jean. – Olhe, eles não confiam no mastro principal para colocar
nenhuma vela. Não os culpo. – Jean examinou a cena por mais alguns minutos. – O novo amigo está vindo em rumo nor-noroeste, acho. Se nossos rapazes se esgueirarem
para oeste e parecerem bastante inofensivos, talvez... caso contrário, aquele navio tem espaço suficiente para correr a oeste ou a sul. Se ele estiver em condições
razoáveis, o Mensageiro nunca vai alcançá-lo.
– Jean... – chamou Locke, muito devagar, um tanto hesitante para confiar em sua própria avaliação naval. – Não... não acho que ele esteja pensando em escapar. Olha,
ele está indo direto para o Mensageiro.
– E bem rápido – concordou Jean, claramente fascinado. – Olhe só! Aposto meu fígado que o Mensageiro não está fazendo nem 4 nós. O outro está fazendo o dobro ou
mais.
– Talvez eles não liguem para o Mensageiro. Talvez possam ver que ele está ferido e passem direto.
– Um “beijem o meu rabo e adeus”. Que pena.
O recém-chegado cresceu cada vez mais; as formas turvas se tornaram um casco esguio e escuro, velas enfunadas, as linhas finas dos mastros.
– Dois mastros – constatou Jean. – Um brigue, com uma porrada de velas.
Locke sentiu uma inesperada urgência; tentou conter a empolgação enquanto o Mensageiro se arrastava debilmente para o sudoeste e o recém-chegado se aproximava dele
cada vez mais. Agora a embarcação estranha mostrava o lado de estibordo para eles. Como Jean dissera, o navio tinha dois mastros, além de um perfil baixo e rápido
e um casco preto a ponto de reluzir.
Um ponto escuro apareceu no ar acima da popa. Moveu-se para o alto, expandiu-se e se abriu numa enorme bandeira de carmesim vívido como sangue recém-derramado.
– Ah, pelo amor dos deuses! – gritou Locke. – Só pode ser brincadeira, porra!
O recém-chegado acelerou, a água espumante se levantando na proa, diminuindo a cada segundo a distância com relação ao Mensageiro Vermelho. Formas brancas e baixas
apareceram atrás, barcos apinhados com os pontos escuros que eram marinheiros. O novo navio girou para sotavento do Mensageiro como uma fera faminta impedindo a
fuga da presa e seus botes cortaram a água reluzente para atacar a barlavento. O que quer que Jabril e sua tripulação fizessem para escapar da armadilha não bastou;
um coro após o outro de gritos beligerantes ecoava debilmente sobre a água e pequenos pontos pretos logo estavam subindo em enxames pelos costados do Mensageiro.
– Não! – Locke só percebeu que havia saltado de pé quando Jean puxou-o de volta num instante. – Ah, desgraçados! Seus desgraçados podres, miseráveis, covardes! Vocês
não podem tomar a porra do meu navio...
– Que já tinha sido tomado – interrompeu Jean.
– Eu viajei mais de mil quilômetros para apertar a porcaria da mão de vocês! E vocês aparecem duas horas depois de eles nos colocarem para fora!
– Nem metade disso – observou Jean.
– Seus piratas preguiçosos, burros, broxas!
– Que os ladrões prosperem – disse Jean, mordendo os nós dos dedos e rindo a ponto de fazer um ruído parecido com o de um porco.
A batalha, se é que poderia ser chamada assim, não durou cinco minutos. Alguém no tombadilho girou o Mensageiro direto contra o vento, matando a pouca velocidade
que ele desenvolvia. Todas as velas foram rizadas e logo ele ficou à deriva, com um dos botes dos piratas amarrado na lateral. Outra das pequenas embarcações voltou
às pressas ao navio que o lançara. Prosseguindo bem mais devagar do que na caçada ao Mensageiro, o navio virou numa bordada de estibordo e começou a ir na direção
de Locke e Jean – um monstro agourento brincando com a próxima refeição minúscula.
– Acho que essa pode ser uma daquelas situações do tipo “boa notícia e má notícia” – comentou Jean, estalando os nós dos dedos. – Talvez precisemos nos preparar
para repelir a abordagem.
– Com o quê? Um punhal e insinuações maldosas sobre as mães deles? – Locke fechou as mãos com força; sua raiva havia se transformado em empolgação. – Jean, se subirmos
a bordo daquele navio e conseguirmos entrar para a tripulação usando papo furado, estamos de volta no jogo, pelos deuses!
– Eles podem querer matar a gente e pegar o bote.
– Veremos. Veremos. Primeiro vamos trocar cortesias. Fazer um pouco de interação diplomática.
A embarcação pirata veio lentamente à medida que o sol baixava e a cor do céu e da água escurecia aos poucos. O casco era de madeira-bruxa e bem maior do que o Mensageiro
Vermelho. Marinheiros se apinhavam nas vergas e junto às amuradas; Locke sentiu uma pontada de inveja ao ver uma tripulação tão grande e ativa. O navio cortou a
água majestosamente, depois virou na direção do vento enquanto eram gritadas ordens no tombadilho. Velas foram rizadas com movimentos precisos e rápidos. Ele foi
parando, bloqueou a visão que os dois tinham do Mensageiro Vermelho e apresentou o costado de bombordo a uma distância de cerca de 20 metros.
– Olá, ó barco! – gritou uma mulher junto à amurada.
Ela era relativamente baixa, pelo que Locke podia ver; de cabelos escuros, com armadura parcial, apoiada por pelo menos uma dúzia de marinheiros armados e bastante
interessados. Locke sentiu a pele se arrepiar sob o exame deles e fingiu animação.
– Olá, ó brigue! Belo tempo, não?
– O que vocês dois têm a dizer a seu favor?
Locke considerou num instante as vantagens potenciais das abordagens: suplicante, cautelosa ou presunçosa? Decidiu que a presunçosa era a melhor chance que tinham
de causar impressão memorável.
– Parados! – berrou, levantando-se e erguendo o punhal acima da cabeça. – Vocês devem perceber que nós temos o barlavento e vocês estão orçados, sem esperança de
escapar! Seu navio é nosso e todos vocês são nossos prisioneiros! Estamos preparados para ser generosos, mas não nos testem.
Houve uma explosão de gargalhadas no convés do navio e Locke sentiu as esperanças crescerem. Gargalhadas eram uma coisa boa, pois raramente precediam uma chacina
sangrenta, pelo menos na sua experiência.
– Você é o capitão Ravelle, não é?
– Ah, vejo que minha reputação me precede!
– A antiga tripulação de seu antigo navio mencionou seu nome.
– Merda – murmurou Locke.
– Vocês dois gostariam de ser resgatados?
– Sim, na verdade. Seria muita elegância da parte de vocês.
– Certo, então. Mande seu amigo se levantar. Vocês dois tirem toda a roupa.
– O quê?
Uma flecha sibilou no ar, passando bem acima da cabeça dos dois, e Locke se encolheu.
– Tirem a roupa! Se querem caridade, primeiro nos divirtam! Mande seu amigo grandão se levantar e fiquem pelados!
– Não acredito nisso – disse Jean, ficando de pé.
– Olhe, podemos só jogar a roupa no fundo do bote? – gritou Locke, começando a tirar a túnica. – Você não quer que a gente jogue tudo no mar, certo?
– Não. Vamos ficar com elas, além do bote, mesmo que não fiquemos com vocês. Os calções, senhores! É assim que se faz!
Instantes depois, Locke e Jean estavam de pé, equilibrados precariamente no bote oscilante, nus frente à brisa da tarde sentida no traseiro.
– Cavalheiros, o que é isso? Eu esperava ver alguns sabres, mas em vez disso vocês mostram punhais!
A tripulação atrás dela explodiu em gargalhadas. Guardião Torto! Locke percebeu que outros tinham surgido ao longo da amurada de bombordo. Havia mais marinheiros
parados ali, apontando e uivando para ele e Jean, do que em toda a antiga tripulação do Mensageiro Vermelho.
– Qual é o problema, rapazes? Pensar em ser resgatado não é algo atraente o bastante? O que é necessário para fazer alguma coisa subir aí embaixo?
Locke respondeu com um gesto das mãos que havia aprendido na infância e que garantia provocar brigas em qualquer cidade-estado no mundo terim. A multidão de piratas
devolveu-o com muitas variações criativas.
– Certo, então! – berrou a mulher. – Fiquem numa perna só. Os dois! Numa perna só!
– O quê? – Locke pôs as mãos nos quadris. – Qual?
– Escolha uma das duas, como seu amigo está fazendo.
Locke levantou o pé esquerdo logo acima do banco do bote, estendendo os braços para se equilibrar, o que estava ficando cada vez mais difícil. Jean fez a mesma coisa
ao lado e Locke teve certeza absoluta de que, à distância, eles pareciam um par de perfeitos idiotas.
– Mais alto – ordenou a mulher. – Que tristeza! Vocês podem fazer melhor do que isso.
Locke levantou o joelho mais uns 15 centímetros, olhando para ela com expressão de desafio. Podia sentir as vibrações da fadiga e do barco instável na perna direita;
ele e Jean estavam a segundos de despencar e aumentar ainda mais o embaraço.
– Belo trabalho! – gritou a mulher. – Faça-os dançar!
Locke viu os borrões escuros das flechas atravessando sua visão antes de ouvir os estalos das cordas liberando-as. Mergulhou para a direita justo quando elas acertaram
o meio do bote, percebendo meio segundo tarde demais que elas não haviam sido miradas contra carne e sangue. O mar o engoliu num instante. Ele caiu na água despreparado,
de cabeça para baixo, e ao voltar à superfície, ofegou e cuspiu com a sensação desagradável de água salgada entrando no nariz.
Locke ouviu Jean cuspir um monte de água, emergindo do outro lado do bote. Agora os piratas gargalhavam, curvados, caindo uns sobre os outros. A mulher baixa chutou
uma corda cheia de nós por uma portinhola na amurada no navio.
– Nadem para cá, puxem o bote!
Agarrando-se à amurada e batendo os braços desajeitadamente, Locke e Jean conseguiram empurrar o bote até o navio. O fim da corda flutuava ali e Jean deu um firme
empurrão em Locke na direção dela, como se tivesse medo de que os piratas pudessem puxá-la a qualquer segundo.
Locke se firmou contra a madeira preta e uniforme do casco, molhado, nu e furioso. Mãos ásperas o agarraram na amurada e puxaram-no a bordo. Ele se pegou olhando
para um par de botas velhas e sentou-se.
– Espero que tenha sido divertido, porque eu vou...
Uma dessas botas o acertou no peito, empurrando-o de volta para o convés. Encolhendo-se, ele desistiu de se levantar e examinou a dona da bota. A mulher não era
meramente baixa, era miúda, mesmo da perspectiva de alguém sob seu calcanhar. Usava uma túnica azul-celeste esgarçada sobre um colete de couro preto e frouxo com
cortes que tinham mais a ver com violência do que com alta moda. O cabelo escuro, que se empilhava em cachos sobre cachos, era preso com firmeza à nuca e o cinto
carregava um pequeno arsenal de facas e sabres. Havia músculos óbvios nos ombros e nos braços, uma impressão de força que fez Locke conter rapidamente a raiva.
– Vai o quê?
– Ficar deitado aqui no convés e desfrutar do belo sol da tarde.
A mulher riu; um segundo depois, Jean foi puxado por cima da amurada e jogado junto de Locke. Seu cabelo preto estava grudado na cabeça e a água escorria da barba
crescida.
– Ora, um grandão e um pequeno. O grandão parece capaz de se virar um pouco. Deve ser mestre Valora.
– Se a madame diz, acho que devo ser.
– Madame? Madame é uma palavra de terra. Aqui, gente como você me chama de tenente.
– Então a senhora não é a capitã deste navio?
A mulher tirou a bota do peito de Locke e permitiu que ele se sentasse.
– Nem de longe.
– Ezri é minha imediata – disse alguém atrás de Locke.
Ele se virou, lenta e cuidadosamente, para olhar quem falava.
A mulher era mais alta do que a outra e tinha ombros mais largos. Era escura, com a pele só um pouquinho mais clara do que o casco do navio, e de uma beleza impressionante,
mas não jovem. Havia rugas por seu rosto, indicando que teria cerca de 40 anos. Os olhos e a boca tinham uma expressão dura; obviamente, ela não compartilhava o
senso de malícia de Ezri com relação aos dois prisioneiros despidos que pingavam água em seu convés.
Suas tranças cor da noite, entremeadas com fitas vermelhas e prateadas, pendiam numa juba sob um chapéu de quatro bicos e, apesar do calor, ela usava um casaco marrom
manchado pelo tempo, forrado com brilhante seda dourada. Porém, o mais espantoso era seu colete de mosaico de Vidrantigo, que pendia desafivelado sob o casaco. Esse
tipo de armadura raramente era visto fora de mãos da realeza: cada plaquinha de Vidrantigo precisava ser unida por uma trama de metal, já que os humanos não sabiam
como unir o vidro com o vidro. O colete reluzia com a luz do sol refletida, mais intricado do que um vitral – mil lascas do tamanho de unhas de glória reluzente
delineadas em prata.
– Orrin Ravelle... Nunca ouvi falar de você.
– Nem deveria – replicou Locke. – Podemos ter o prazer de conhecê-la?
– Del – chamou ela, dando as costas para Locke e Jean e olhando para Ezri –, ponha aquele bote para dentro. Faça um exame nas roupas deles, pegue qualquer coisa
interessante e faça com que se vistam de novo.
– Como quiser, capitã.
Ezri se virou e começou a dar instruções aos marinheiros ao redor. A capitã voltou a olhar para os dois ladrões encharcados.
– Meu nome é Zamira Drakasha. Meu navio é o Orquídea Venenosa. Assim que estiverem vestidos, alguém vai levá-los para baixo e jogá-los no porão.
CAPÍTULO NOVE
O Orquídea Venenosa
1
A prisão ficava no fundo do Orquídea Venenosa, no que era, ironicamente, a parte com pé-direito mais alto no navio, uns 3 metros do piso ao teto. Mas a pilha de
barris e sacos impermeáveis atulhava o compartimento, não deixando nada além de um espaço escuro e apertado como um caixão acima de sua superfície irregular. Locke
e Jean sentaram-se nessa desconfortável carga com a cabeça encostada no teto. O ambiente sem luz fedia a cordas encharcadas, lona mofada, comida rançosa e conservantes
alquímicos sem eficácia.
Esse era tecnicamente o depósito de carga de proa; o porão era lacrado por uma antepara de mais ou menos 3 metros à esquerda deles. A menos de 6 metros na direção
oposta, a curva preta da embarcação encontrava vento e água. As ondas fracas que eles podiam ouvir batiam nas laterais do navio a pouco mais de um metro acima da
cabeça deles.
– Nada menos do que as pessoas mais amistosas e as melhores acomodações do Mar de Bronze – afirmou Locke.
– Pelo menos não me sinto muito prejudicado pela escuridão – observou Jean. – Perdi a porcaria dos ópticos quando levei aquele tombo na água.
– Até este momento, hoje, perdemos um navio, uma pequena fortuna, suas machadinhas e agora seus ópticos.
– Pelo menos nossas perdas estão ficando progressivamente menores. – Jean estalou os nós dos dedos e o som ecoou de modo estranho no escuro. – Há quanto tempo você
acha que estamos aqui embaixo?
– Uma hora, talvez? – Locke suspirou, afastou-se da antepara de estibordo e começou o laborioso processo de encontrar um nicho vagamente confortável onde se enfiar,
em meio a tampos de barris e sacos com objetos duros e encalombados. – Mas eu ficaria surpreso se eles pretendessem manter a gente aqui de vez. Acho que só estão...
marinando a gente. Para o que vem em seguida.
– Você está procurando ficar confortável?
– Estou combatendo o bom combate. – Locke empurrou um saco para fora do caminho e enfim se viu com espaço suficiente para descansar. – Assim é melhor.
Alguns segundos depois, veio o rangido de muitos pés logo acima, seguidos por um som raspado. A grade que dava no convés acima – que fora enrolada em tecido oleado
para deixá-los na escuridão – estava sendo levantada. Uma luz fraca se intrometeu no breu e Locke estreitou os olhos.
– Não disse? – murmurou ele.
– Inspeção de carga – falou uma voz familiar. – Estamos procurando alguma coisa fora do lugar. Vocês dois, por exemplo.
Jean se arrastou para o pálido quadrado de luz e olhou para cima.
– Tenente Ezri?
– Delmastro – corrigiu ela. – Ezri Delmastro, portanto tenente Delmastro.
– Peço desculpas, tenente Delmastro.
– Esse é o espírito. O que acharam da sua cabine?
– O cheiro poderia ser pior – respondeu Locke –, mas acho que eu teria de passar alguns dias mijando em tudo para conseguir isso.
– Fiquem vivos até nossos suprimentos começarem a diminuir e vocês vão beber coisas que vão tornar esse fedor uma lembrança feliz. Bom, normalmente eu baixaria uma
escada, mas é só um metro até aqui. Acho que vocês conseguem. Subam devagar. A capitã Drakasha está com uma ansiedade súbita de trocar uma palavra com vocês.
– Essa oferta inclui um jantar?
– Vocês têm sorte por ela incluir roupas, Ravelle. Subam. O menor primeiro.
Locke passou se arrastando por Jean e atravessou a escotilha até o ar moderadamente menos sufocante da coberta inferior. A tenente Delmastro esperava com oito tripulantes,
todos armados e com armaduras. Locke foi agarrado por trás por uma mulher corpulenta ao se levantar no corredor. Após um instante, Jean foi ajudado a subir e segurado
por três marinheiros.
– Certo.
Delmastro segurou os pulsos de Jean e colocou um par de algemas de aço enegrecido nelas. Em seguida, foi a vez de Locke, que fez uma rápida avaliação profissional:
estavam lubrificadas e sem ferrugem e apertadas demais para escapar delas, mesmo se tivesse tempo de fazer alguns ajustes dolorosos nos polegares.
– Enfim a capitã teve uma chance de conversar demoradamente com alguns dos seus antigos tripulantes – informou Delmastro. – Eu diria que ela está bastante curiosa.
– Ah, que maravilha – comentou Locke. – Outra bela chance de me explicar a alguém. Como eu adoro me explicar.
A escolta os guiou com cautela e logo estavam no convés, sob a última luz do crepúsculo. O sol ia passando por trás do horizonte oeste, um olho vermelho-sangue se
fechando preguiçoso sob pálpebras de nuvens levemente vermelhas. Locke absorveu agradecido o ar fresco e de novo ficou impressionado com a população do Orquídea
Venenosa. O navio era apinhado de tripulantes, homens e mulheres, movimentando-se embaixo ou trabalhando no convés à luz de um número cada vez maior de lanternas
alquímicas.
Tinham chegado à meia-nau. Alguma coisa cacarejava e batia asas numa caixa escura logo à frente do mastro principal. Era um galinheiro – pelo menos uma ave estava
bicando a tela da gaiola, agitada.
– Eu simpatizo com você – sussurrou Locke.
Os tripulantes do Orquídea levaram-no para a popa, alguns passos à frente de Jean. No tombadilho, logo acima da escada que descia às cabines de popa, um grupo de
marinheiros conteve Jean outra vez, a um sinal de Delmastro.
– Este convite é só para Ravelle. Mestre Valora pode esperar aqui em cima até vermos no que isso vai dar.
– Ah – fez Locke. – Você vai ficar confortável aqui em cima, Jerome?
– “Paredes frias não fazem uma prisão” – recitou Jean com um sorriso – “nem algemas de ferro fazem um escravo”.
A tenente Delmastro olhou-o de um modo estranho e, depois de alguns segundos, completou:
– “Palavras ousadas voarão das línguas dos recém-acorrentados; como fagulhas de pederneira, com o mesmo calor real e a mesma longevidade.”
– Você conhece a Tragédia dos dez vira-casacas honestos – disse Jean.
– Como você. Muito interessante. E... completamente irrelevante. – Ela deu um empurrão suave em Locke, na direção da escada de tombadilho. – Fique aqui, Valora.
Levante um dedo de modo não amistoso e morrerá aí mesmo.
– Meus dedos vão se comportar muitíssimo bem.
Locke desceu atabalhoadamente a escada, entrando num espaço escuro quase igual ao do Mensageiro Vermelho, porém maior. Se sua rápida estimativa estivesse certa,
o Orquídea Venenosa tinha uma vez e meia o tamanho de seu antigo navio. Havia pequenas cabines com portas de lona, duas de cada lado, e uma sólida porta de madeira-bruxa
na cabine de popa, no momento trancada, onde Ezri bateu três vezes após empurrar Locke de lado com firmeza.
– É Ezri, com o senhor misterioso! – gritou ela.
Um instante depois, a porta foi destrancada por dentro e Delmastro sinalizou para Locke entrar à sua frente.
A cabine de Drakasha, em contraste com a de Ravelle, mostrava todas as evidências de uma habitação duradoura e confortável. Ricamente iluminado por lâmpadas-joias
alquímicas multifacetadas em molduras de ouro, o espaço tinha camadas de tapeçarias e almofadas de seda. Vários baús sustentavam um tampo de mesa laqueado tomado
por pratos vazios, mapas dobrados e instrumentos de navegação de qualidade. Locke sentiu uma pontada ao ver seu próprio baú, aberto no chão ao lado da cadeira da
capitã.
Os postigos tinham sido tirados das janelas de popa. Drakasha estava sentada diante delas, sem o casaco e a armadura, segurando uma menina de 3 ou 4 anos sobre os
joelhos. Através das janelas, Locke podia ver o Mensageiro Vermelho, sombreado pela escuridão crescente, arrastando-se com as luzes bamboleantes do que deviam ser
equipes de reparos.
Locke olhou à esquerda para ver quem havia aberto a porta, então virou a cabeça para baixo e deparou com um garoto de cabelos encaracolados pouco mais velho do que
a menina no colo de Zamira. As duas crianças tinham o cabelo preto-carvão dela e algo de suas feições, mas a pele era um pouco mais clara, como areia do deserto
à sombra. Ezri desgrenhou afetuosamente o cabelo do garoto enquanto cutucava Locke para dentro da cabine, e o menino saiu do caminho, tímido.
Ignorando os recém-chegados, Zamira apontou pelas janelas de popa.
– Está vendo aquilo, Cosetta? Sabe o que é?
– Navio.
– Isso mesmo. – Zamira abriu um sorriso... na verdade, um sorrisinho pretensioso. – É o navio novo da mamãe. Do qual mamãe tirou uma linda pilhazinha de ouro.
– Ouro – repetiu a menininha, batendo palmas.
– Isso mesmo. Mas olhe o navio, querida. Olhe o navio. Você pode dizer à mamãe o que são aquelas coisas altas? Aquelas coisas altas que se estendem para o céu?
– Elas... é... Ah! Não.
– Quer dizer que você não sabe ou que está fazendo um motim?
– Motinho!
– Não no navio da mamãe, Cosetta. Olhe de novo. Mamãe já disse o que aquilo é, não disse? Ele se estende para o céu e carrega as velas, e é o...
– Masto – respondeu a menina.
– Mastro. Mas chegou perto. E quantos eles são? Quantos mastros tem o naviozinho novo da mamãe? Conte para a mamãe.
– Dois.
– Como você é esperta! O navio novo da mamãe tem dois mastros, isso mesmo. – Zamira se inclinou para perto do rosto da filha, tocando o nariz no dela, e Cosetta
riu. – Agora ache duas coisas que são iguais entre si.
– Ah...
– Aqui na cabine, Cosetta. Duas coisas que são iguais entre si.
A garota olhou em volta, enfiando a maior parte da mão esquerda na boca antes de se fixar no par de sabres que estavam encostados, dentro das bainhas, na parede
logo abaixo da janela de popa.
– Espada – disse Cosetta.
– Isso mesmo! – Zamira deu-lhe um beijo na bochecha. – Mamãe tem duas espadas. Pelo menos aqui, querida. Agora você vai ser uma menina boazinha e ir para cima com
Ezri? Mamãe precisa falar com esse moço só um pouquinho. Paolo também vai.
Ezri atravessou a cabine para pegar Cosetta no colo e a menininha se agarrou a ela com prazer óbvio. Paolo acompanhou Ezri como uma sombra, mantendo a tenente entre
ele e Locke, ousando espiar por trás das pernas dela de vez em quando.
– Tem certeza de que quer ficar sozinha, capitã?
– Vou estar bem, Del. Eu me preocuparia é com o Valora.
– Ele está algemado, com oito tripulantes perto.
– Isso basta, acho. E os homens do Mensageiro Vermelho?
– Todos embaixo do castelo de proa. Treganne está vigiando.
– Ótimo. Vou subir daqui a pouco. Leve Paolo e Cosetta para Gwillem e deixe que eles fiquem sentados no tombadilho. Longe da amurada, veja bem.
– Entendido.
– E diga a Gwillem que, se ele tentar dar cerveja sem água a eles de novo, eu arranco o coração dele e mijo no buraco.
– Vou dizer isso palavra por palavra, capitã.
– Podem sair agora. Se derem trabalho a Ezri e Gwillem, queridos, mamãe não vai ficar satisfeita.
A tenente Delmastro saiu da cabine levando as duas crianças e fechou a porta. Locke se perguntou qual deveria ser sua abordagem naquela reunião. Não sabia quase
nada sobre Drakasha; não conhecia nenhum ponto fraco para explorar, nenhum preconceito para distorcer. Retirar as várias camadas de mentiras com as quais estivera
trabalhando seria provavelmente um erro. Era melhor agir como Ravelle por enquanto.
A capitã Drakasha pegou seus sabres embainhados e encarou Locke pela primeira vez. Ele decidiu falar primeiro, de modo amigável:
– Seus filhos?
– Impressionante como pouco escapa à percepção penetrante do veterano oficial de inteligência! – Ela tirou um dos sabres da bainha com um suave sibilo metálico e
fez um gesto para Locke com a arma. – Sente-se.
A única outra cadeira na cabine ficava perto da mesa. Locke obedeceu e cruzou as mãos algemadas no colo. Zamira se acomodou, virada para ele, e pôs o sabre desembainhado
sobre os joelhos.
– No lugar de onde eu vim, temos um costume relativo a perguntas feitas por cima de uma lâmina nua. – Ela tinha um sotaque nítido, harmonioso, que Locke não conseguiu
situar. – Você é familiarizado com ele?
– Não, mas acho que o significado é claro.
– Ótimo. Há alguma coisa errada com sua história.
– Quase tudo está errado na minha história, capitã Drakasha. Eu tinha um navio, uma tripulação e um monte de dinheiro. Agora me pego agarrado a um saco de batatas
num porão que fede como o fundo de uma caneca de cerveja suja.
– Não espere um relacionamento duradouro com as batatas. Eu só queria você fora do caminho enquanto falava com alguns tripulantes do Mensageiro.
– Ah. E como está minha tripulação?
– Nós dois sabemos que ela não é a sua tripulação, Ravelle.
– Como está a tripulação, então?
– Razoavelmente bem, ainda que não graças a você. Eles perderam a coragem de lutar assim que viram nossos números. A maioria parecia ansiosa para se render, por
isso pegamos o Mensageiro sem nada mais do que alguns arranhões e alguns sentimentos feridos.
– Obrigado.
– Nós não fomos gentis por sua causa, Ravelle. De fato você tem uma tremenda sorte por estarmos perto. Eu gosto de andar na esteira das tempestades do fim do verão.
Elas tendem a cuspir guloseimas suculentas sem condições de recusar nossa hospitalidade.
Drakasha enfiou a mão no baú de Locke, remexeu o conteúdo e pegou um pequeno maço de papéis.
– Agora quero saber quem são Leocanto Kosta e Jerome de Ferra.
– Identidades falsas que usávamos para nosso trabalho em Tal Verrar.
– A serviço do Arconte?
– Sim.
– Quase tudo aqui está assinado com “Kosta”. Pequenas cartas de crédito e de referência... a encomenda de algumas cadeiras... recibo de armazenamento de roupas.
O único documento com o nome de Ravelle é esta comissão como oficial da marinha verrari. Eu devo chamá-lo de Orrin ou de Leocanto? Qual é o rosto falso?
– Pode me chamar de Ravelle. Estive na lista de oficias usando esse nome durante anos. É como recebo meu pagamento.
– Você é verrari de nascimento?
– Do continente. Um povoado chamado Vo Sarmara.
– O que fazia antes de servir ao Arconte?
– Eu era o que a senhora chamaria de um homem enlutado.
– Agora isso é profissão?
– Quero dizer um mestre de balanças, para um sindicato mercantil. Eu era o homem enlutado porque adorava pesar, entende?
– Muito engraçado. Um sindicato em Tal Verrar?
– É.
– Então você certamente trabalhou para o Priori.
– Isso foi parte do, ahn, do incentivo original para o pessoal do Stragos me atrair. Depois que minha utilidade como agente disfarçado no sindicato chegou a um beco
sem saída, eu recebi novas tarefas.
– Humm. Eu conversei longamente com Jabril. O bastante para acreditar que seu posto na marinha é falso. Você tem alguma experiência militar?
– Nenhum treino militar formal, se é o que a senhora quer dizer.
– É curioso você poder requisitar um navio de guerra, mesmo sendo pequeno.
– Quando nos movemos suficientemente devagar para não incomodar ninguém, os capitães do serviço de informações têm enormes poderes de requisição. Ou pelo menos tínhamos.
Acho que meus colegas sofrerão um pouco de supervisão indesejada por causa do que fiz.
– Trágico. Mesmo assim... é curioso, mais uma vez, que você tenha precisado perguntar meu nome quando estava aos meus pés. Imaginava que minha identidade seria óbvia
para alguém a serviço de Stragos. Há quanto tempo você estava com ele?
– Cinco anos.
– Então entrou depois que a Armada Livre perdeu. Mesmo assim, como um verrari...
– Eu tinha uma vaga descrição sua. Pouco mais do que o seu nome e o do seu navio. Posso garantir que, se o Arconte tivesse pensado em mandar pintar seu retrato para
nós, nenhum homem no serviço dele ignoraria sua aparência.
– Excelente tentativa. Mas sou imune a elogios.
– Que pena. Eu sou bom demais em elogios.
– Uma terceira coisa curiosa me ocorre: você pareceu genuinamente surpreso ao ver meus filhos a bordo.
– É, ah, que achei estranho você estar com eles. Aqui, no mar. Diante de todos esses riscos.
– Em que outro lugar eu poderia ficar de olho neles? – Zamira passou a mão no cabo do sabre. – Paolo tem 4 anos. Cosetta tem 3. Seu serviço de informações é mesmo
tão desatualizado que você não sabia deles?
– Olhe, meu trabalho consistia em operações na cidade contra o Priori e outros dissidentes. Eu não prestava muita atenção às questões navais que não tivessem a ver
com meu salário.
– Há um prêmio de 5 mil solaris pela minha cabeça. E a de todos os capitães que sobreviveram à Guerra pelo Reconhecimento. Sei que ano passado circularam em Tal
Verrar descrições acuradas de mim e da minha família; pus as mãos em alguns panfletos. Você quer que eu acredite que alguém na sua posição poderia ser tão ignorante?
– Odeio ferir seus sentimentos, capitã Drakasha, mas eu já disse: eu era um homem de terra...
– É.
– ... sou e era, e meus olhos estavam na cidade. Tive pouco tempo para estudar o básico da sobrevivência quando comecei a me preparar para roubar o Mensageiro.
– Mas por que isso? Por que roubar um navio e ir para o mar? Uma coisa completamente fora da sua experiência confessa? Se você tinha os olhos na terra e na cidade,
por que não fez algo que tivesse a ver com elas?
Locke umedeceu os lábios, que haviam ficado desconfortavelmente secos. Tinha enfiado na cabeça um dossiê de informações sobre o passado de Orrin Ravelle, mas o personagem
nunca fora projetado para um interrogatório daqueles.
– Pode parecer esquisito, mas foi o melhor que consegui fazer. Por acaso, meu falso cargo de oficial da marinha me dava mais condições de prejudicar o Arconte. Roubar
um navio era um gesto mais grandioso do que roubar, digamos, uma carruagem.
– E o que Stragos fez para merecer esse gesto grandioso?
– Eu jurei nunca falar sobre isso.
– Que conveniente.
– Pelo contrário, eu gostaria de tranquilizá-la.
– Tranquilizar? Como alguma coisa que você me disse poderia me tranquilizar? Você mente, acrescenta floreios às mentiras antigas e se recusa a discutir as motivações
para embarcar numa aventura insana. Se não me der respostas, irei presumir que você é um perigo para esta embarcação e que me arrisco a ofender Maxilan Stragos mantendo-o
aqui. Não posso me dar ao luxo de arcar com as consequências. Acho que é hora de mandá-lo de volta para o lugar onde o encontrei.
– No porão?
– No mar.
– Ah. – Locke franziu a testa, depois mordeu o interior da bochecha direita para conter o riso. – Ah, capitã Drakasha, essa tentativa foi muito boa. Amadorística,
mas criativa. Alguém sem meu histórico poderia ter caído.
– Maldição. – Drakasha deu um sorriso tenso. – Eu deveria ter fechado as cortinas das janelas de popa.
– É. Posso ver o seu pessoal no Mensageiro enquanto conversamos. Imagino que sua tripulação encarregada dele esteja desenrolando a porra do cordame para que ele
possa andar mais rápido do que um bebê, certo? Se você ligasse a mínima para o fato de ofender o Arconte, afundaria aquele navio, e não o reformaria para vender.
– Verdade.
– O que significa...
– O que significa que ainda estou fazendo perguntas, Ravelle. Fale sobre o seu cúmplice, mestre Valora. É um amigo íntimo?
– Um colega de trabalho. Me ajudava em Tal Verrar com... trabalhos questionáveis.
– Só um colega de trabalho?
– Eu lhe pago bem e confio a ele meus negócios.
– Curiosamente instruído. – Zamira apontou para o teto da cabine; uma claraboia estreita tinha aberturas para deixar que o ar do tombadilho entrasse. – Ouvi quando
ele e Ezri citaram Locarno há alguns minutos.
– A tragédia dos dez vira-casacas honestos. Jerome... gosta dela.
– Ele sabe ler. Segundo Jabril, ele não é marinheiro, mas consegue fazer somas complexas. Fala vadrã. Usa termos de mercador e tem conhecimentos sobre carga. Por
isso, aposto que ele vem de uma próspera família mercantil.
Locke ficou em silêncio.
– Ele o acompanhava antes de você trabalhar para o Arconte, não é?
– Ele era empregado do Priori, sim. – Aparentemente, inserir Jean nas suposições de Drakasha não seria tão difícil quanto Locke havia temido. – Eu o trouxe quando
entrei para a causa do Arconte.
– Mas não como amigo.
– Só como um bom agente.
– Meu espião adequadamente amoral... – Drakasha se levantou, foi até abaixo da claraboia e gritou: – Aí no convés!
– Sim, capitã? – respondeu Ezri.
– Del, traga o Valora aqui.
Alguns instantes depois, a porta da cabine se abriu e Jean entrou, seguido pela tenente Delmastro. Drakasha sacou subitamente seu segundo sabre. As bainhas vazias
caíram com barulho no convés e ela apontou uma das lâminas para Locke.
– Se levantar da cadeira, você morre no mesmo instante.
– Que por...
– Quieto. Ezri. Quero que você cuide do Valora.
– Como quiser, capitã.
Antes que Jean pudesse fazer qualquer coisa, Ezri o chutou com força na parte de trás do joelho direito; o golpe foi tão veloz e hábil que Locke se encolheu. Em
seguida, ela lhe deu um empurrão forte e Jean caiu de quatro.
– Você ainda pode ter utilidade para mim, Ravelle. Mas não posso deixar que você mantenha seu agente.
Drakasha deu um passo na direção de Jean, erguendo o sabre da mão direita.
Locke estava fora da cadeira antes que pudesse se conter, jogando-se contra ela, tentando embolar os braços dela na corrente da algema.
– NÃO! – gritou ele.
A cabine girou loucamente ao seu redor, e então ele estava no chão, com uma dor surda no maxilar. Sua mente, trabalhando um ou dois segundos atrás do ritmo dos acontecimentos,
demorou a entender que Drakasha lhe acertara o queixo com o cabo de um dos sabres. Agora ele estava caído de costas, com a lâmina pairando logo acima do pescoço.
A capitã parecia ter 3 metros de altura.
– Por favor – gaguejou Locke. – O Jerome, não. Não é necessário.
– Eu sei – disse Drakasha. – Ezri?
– Parece que eu lhe devo 10 solaris, capitã.
– Você deveria ter adivinhado – Drakasha sorriu. – Ouviu o que Jabril disse sobre esses dois.
– Eu ouvi, eu ouvi. – Ezri se ajoelhou acima de Jean com uma genuína expressão preocupada. – Só não achei que Ravelle teria coragem.
– Esse tipo de coisa raramente não é recíproca.
– Eu deveria saber disso também.
Locke levantou as mãos, empurrou a espada de Drakasha para o lado e ela cedeu. Ele rolou para o lado, ajoelhou-se cambaleando e segurou Jean pelo braço, ignorando
o maxilar que latejava. Sabia que não estava quebrado, pelo menos.
– Você está bem, Jerome?
– Ótimo. Arranhei as mãos um pouco.
– Desculpe – falou Ezri.
– Não precisa se preocupar. Foi um bom golpe. Não havia muita coisa que você poderia fazer para derrubar alguém do meu tamanho. – Ele se levantou com a ajuda de
Locke e Ezri. – Um soco no rim, talvez.
Ezri mostrou a soqueira de ferro nos dedos da mão direita.
– Esse era o plano de contingência.
– Cacete, fico feliz por você não ter feito isso. Mas você poderia... eu poderia ter caído para trás se você não empurrasse com rapidez suficiente. Se enganchasse
um pé no meu tornozelo...
– Pensei nisso. Ou um bom soco no ponto sensível na sua axila...
– E uma torção no braço. Isso seria...
– Mas eu não confio em fazer isso com alguém tão grande: a alavancagem poderia dar errado, a não ser...
Drakasha pigarreou alto e Jean e Ezri ficaram em silêncio, quase constrangidos.
– Você mentiu para mim sobre o Jerome, Ravelle. – Ela pegou de volta o cinturão e enfiou os sabres nas bainhas com dois estalos agudos. – Ele não é um agente contratado.
É um amigo. Do tipo que se recusa a deixar que você seja jogado de um navio sozinho. Do tipo que você tentaria proteger, mesmo eu tendo dito que isso significaria
a sua morte.
– Muito esperta – disse Locke, sentindo um leve calor subir às bochechas. – Então era disso que se tratava.
– Mais ou menos. Eu precisava saber que tipo de homem você era antes de decidir o que faria com você.
– E o que decidiu?
– Você é imprudente, vaidoso e inteligente demais. Sofre da ilusão de que suas transgressões são charmosas. E é tão disposto quanto Jerome a morrer idiotamente por
causa de um amigo.
– É. Bom... talvez eu tenha passado a gostar desse monstrengo no correr dos anos. Isso significa que vamos voltar para o porão ou para o mar?
– Nem uma coisa nem outra. Vocês vão para o castelo de proa, onde vão comer e dormir com os outros tripulantes do Mensageiro Vermelho. Vou descascar suas outras
mentiras no devido tempo. Por enquanto, estou satisfeita porque, se você precisa cuidar do Jerome, vai ser sensato.
– Então nós somos o quê? Escravos?
– Ninguém neste navio é escravo – respondeu Drakasha com um tom perigoso. – Mas nós executamos um bom número de espertinhos.
– Achei que eu era um transgressor charmoso.
– Entenda o seguinte: o seu mundo inteiro consiste nos poucos centímetros de convés que eu lhe permito ocupar e você tem uma tremenda sorte em tê-los. Ezri e eu
vamos explicar a situação a todos vocês no castelo de proa.
– E nossas coisas? Quero dizer, os papéis? Os documentos pessoais? Fique com o ouro, mas...
– “Fique com o ouro”? Você falou sério? Que homem doce, Ezri! – Drakasha usou a bota direita para fechar a tampa do baú de Locke. – Vamos considerar seus papéis
como reféns de seu bom comportamento. Eu tenho uma escassez de pergaminhos em branco e dois filhos que descobriram há pouco tempo a alegria de usar a tinta.
– Entendi perfeitamente.
– Ezri, leve-os para o convés e tire as algemas. Vamos voltar a agir como se tivéssemos de ir a algum lugar importante.
2
No tombadilho, foram recebidos por uma mulher de meia-idade, baixa e larga, de aparência desgastada, com um halo de cabelos brancos e um rosto enrugado que obviamente
contribuíra com muitos anos de carrancas para o mundo. Seus olhos grandes e predatórios ficavam em movimento constante, como uma coruja incapaz de decidir se estava
entediada ou faminta.
– Você poderia ter apanhado um pessoal menos destroçado se tivesse procurado em qualquer lugar – comentou ela, sem preâmbulo.
– E você deve ter notado que ultimamente o mercado de presas não anda muito farto. – Zamira aceitava os modos da mulher com a tranquilidade que devia implicar uma
familiaridade bem antiga.
– Bom, se você quer usar cânhamo esgarçado para trançar uma corda, não culpe o trançador quando ela se partir.
– Sei que não devo culpar você por nada, Erudita. Isso traria a semanas de chateação para todo mundo. Quantos?
– São 28 no castelo de proa. Oito precisaram ser deixados a bordo da presa. Todos com ossos quebrados. Não é seguro movê-los.
– Eles vão resistir até Porto Pródigo?
– Presumindo que o navio sobreviva. Presumindo que façam o que eu mandei, o que é exigir mui...
– É o melhor que podemos fazer por eles, tenho certeza. Quais as condições dos 28?
– Tenho certeza de que você me ouviu dizer “destroçados”, o que decorre de um destroçamento, que por sua vez fez deles destroços. Eu poderia utilizar inúmeros outros
termos bastante técnicos, só que alguns seriam completamente imaginários...
– Treganne, assim como sua beleza, minha paciência foi embora há muito tempo.
– A maioria deles ainda está sofrendo devido ao longo encarceramento. Má alimentação, pouco exercício e doenças nervosas. Estiveram comendo melhor desde que saíram
de Tal Verrar, mas estão exaustos e abalados. Um punhado está com o que eu chamaria de saúde decente. Um número igual não tem qualquer condição de trabalhar até
que eu diga o contrário. Eu não cederia nesse aspecto... capitã.
– Não vou pedir que faça isso. Doenças?
– Ausentes, por incrível que pareça, se está falando de febres e contágios. Além disso, poucas de consequências sexuais. Eles ficaram meses trancados sem mulheres
e a maioria é terim oriental. Com muito pouca inclinação para se deitar uns com os outros, sabe.
– Pior para eles. Se eu precisar de você de novo...
– Estarei na minha cabine, obviamente. E vigie seus filhos. Parece que eles estão pilotando o navio.
Locke observou a mulher se afastar pisando forte. Um dos seus pés tinha o som oco e pesado de madeira e ela andava com a ajuda de uma bengala estranha feita de cilindros
brancos empilhados. Marfim? Não, era a coluna de alguma criatura infeliz, presa com brilhantes emendas de metal.
Drakasha e Delmastro se viraram para o timão do navio, que era duplo como o do Mensageiro, no momento manobrado por um rapaz de altura incomum, anguloso e desengonçado.
Dos dois lados dele, estavam Paolo e Cosetta, sem tocar no timão, mas imitando seus movimentos e dando risadinhas.
– Caladão – chamou Drakasha, aproximando-se e empurrando Cosetta para longe do timão. – Onde está Gwillem?
– Nos cabos de bosta.
– Eu disse que ele estava de serviço com as duas manjubinhas.
– Vou arrancar a porra dos olhos dele.
Caladão permaneceu sereno.
– O cara precisa mijar, capitã.
– Precisa mijar – murmurou Cosetta.
– Quieta. – Zamira rodeou Caladão e tirou Paolo de perto do timão. – Caladão, você sabe muito bem que eles não podem encostar no timão nem nas amuradas.
– Eles não estavam encostando no timão, capitã.
– Nem devem dançar do seu lado, se agarrar nas suas pernas nem ajudá-lo de modo nenhum a pilotar a embarcação. Está claro?
– Positivo.
– Paolo, leve sua irmã de volta para a cabine e me espere lá.
– Sim – falou o menino, a voz fraca como o som de dois pedaços de papel deslizando juntos.
Ele segurou a mão de Cosetta e começou a levá-la para a popa.
Drakasha se apressou de novo na direção da proa, passando por pequenos grupos de tripulantes que trabalhavam ou comiam, e todos a cumprimentaram com movimentos respeitosos
de cabeça e acenos. Ezri empurrou Locke e Jean atrás dela.
Perto do galinheiro, Drakasha cruzou com um vadrã rotundo mas ágil, alguns anos mais velho do que ela. O sujeito usava um casaco preto elegante com fivelas de latão
azinhavrado e seu cabelo louro grisalho estava puxado num rabo de cavalo enorme que ia até os fundilhos do calção. Drakasha o agarrou pela frente da túnica com a
mão esquerda.
– Gwillem, que parte de “vigie as crianças alguns minutos” Ezri não deixou clara?
– Eu deixei os dois com o Caladão, capitã...
– Eles eram problema seu, não dele.
– Bom, se a senhora confia nele para pilotar o navio, por que não confia nele para...
– Eu confio meus amores a ele, Gwillem. Só tenho um apreço especial por ver minhas ordens serem obedecidas.
– Capitã – disse Gwillem em voz baixa –, eu precisei soltar um barro no azul, está bem? Poderia ter levado os dois até os cabos de bosta, mas duvido que a senhora
aprovaria a educação que eles iriam receber...
– Segure-se, pelo amor de Iono. Só demorei uns minutos. Agora vá e pegue suas coisas.
– Minhas coisas?
– Pegue o último barco para o Mensageiro e se junte à tripulação da presa.
– Tripulação da presa? Capitã, a senhora sabe que eu não sou muito bom...
– Quero aquele navio examinado e inventariado, do gurupés à amurada de popa. Faça uma contabilidade de tudo. Quando eu regatear com o Desmancha-Navios, quero saber
exatamente até que ponto o sujeito está a fim de me enganar.
– Mas...
– Espero seu registro por escrito ao chegarmos a Porto Pródigo. Nós dois sabemos que quase não houve nenhum saque para carregar e contar hoje. Vá até lá e faça por
onde merecer sua cota.
– Como quiser, capitã.
– Meu intendente – explicou Zamira quando Gwillem havia se afastado, xingando. – Não é ruim, na verdade. Só prefere deixar que o trabalho escape dele sempre que
possível.
Na proa do navio ficava o convés do castelo de proa, a cerca de 1,40 metro acima do convés corrido, com escadas largas dos dois lados. No meio delas, uma abertura
ampla e descoberta levava a uma área inferior estreita com 7 ou 8 metros de comprimento, pela estimativa de Locke.
O convés de cima e as escadas estavam apinhados com a maior parte dos integrantes do Mensageiro Vermelho, sob a guarda relaxada de meia dúzia dos tripulantes armados
de Zamira. Jabril, sentado ao lado de Aspel na frente do grupo, pareceu bastante satisfeito ao ver Locke e Jean de novo. Os homens atrás dele começaram a murmurar.
– Calem a boca – ordenou Ezri, postando-se entre Zamira e os recém-chegados.
Locke, sem saber exatamente o que fazer, ficou meio afastado com Jean e esperou instruções. Drakasha pigarreou.
– Alguns não me conhecem ainda. Sou Zamira Drakasha, capitã do Orquídea Venenosa. Ouçam bem. Jabril me disse que vocês pegaram o navio em Tal Verrar pensando em
ser piratas. Alguém está arrependido?
A maioria dos homens do Mensageiro balançou a cabeça ou negou em murmúrios baixos.
– Ótimo. Eu sou o que o seu amigo Ravelle fingia ser – disse Drakasha, passando um braço em volta dos ombros de Locke. Deu um sorriso teatral e vários dos homens
menos arruinados do Mensageiro deram risinhos. – Não tenho senhores nem patrões. Iço a bandeira vermelha quando estou com fome e uma bandeira falsa quando não estou.
Tenho um porto de parada, Porto Pródigo, nos Ventos Fantasmas. Nenhum outro lugar me aceita. Nenhum outro lugar é seguro. Se vocês viverem neste convés, vão compartilhar
esse perigo. Sei que alguns de vocês não entendem. Pensem no mundo. Pensem em todos os lugares do mundo que não são este navio, a não ser um pontinho de sofrimento
no cu mais negro de lugar nenhum. É a isso que vocês estão renunciando. A tudo. A todo mundo. Todo lugar.
Ela soltou Locke, notando com aprovação a expressão sombria dos tripulantes do Mensageiro, e apontou para Ezri.
– Minha imediata, Ezri Delmastro. Nós a chamamos de “tenente” e vocês também vão chamar. O que ela disser, eu apoio. Nunca imaginem o contrário.
– Vocês conheceram a galena do nosso navio. A Erudita Treganne me disse que vocês poderiam estar piores e que poderiam estar melhores. Haverá descanso para os que
precisarem. Não posso usá-los se não estiverem em condições de trabalhar.
– Estamos sendo convidados para entrar para a sua tripulação, capitã Drakasha? – perguntou Jabril.
– Vocês estão recebendo uma oportunidade – replicou Ezri. – Só isso. Não são prisioneiros, tampouco homens livres. São o que chamamos de equipe do esfregão. Dormem
aqui, no que chamamos de porão do castelo. É o pior lugar do navio, mais ou menos. Se houver um trabalho imundo, de merda, para ser feito, vocês vão fazer. Se tivermos
poucos cobertores ou roupas, vocês ficam sem. São os últimos a comer e beber.
– Todos os membros da minha tripulação podem dar ordens a vocês – completou Drakasha. Locke imaginou que elas haviam incrementado aquela apresentação com o tempo.
– E vocês devem obedecer a cada um deles. Não temos penalidades formais: banquem os espertinhos ou fiquem de preguiça e alguém vai espancar vocês. Criem uma confusão
notável e jogo vocês na água. Acham que estou brincando? Perguntem a quem já está aqui há um tempo.
– E quanto tempo temos de ficar na equipe do esfregão? – indagou um dos homens mais novos, na parte de trás do grupo.
– Até que provem seu valor – respondeu Drakasha. – Vamos levantar âncora em alguns minutos e navegar para Porto Pródigo. Quem quiser sair quando chegarmos, vá em
frente. Vocês não serão vendidos; este não é um navio de tráfico de escravos. Mas não vão receber dinheiro, apenas bebida e comida. Vão embora de bolsos vazios e
em Pródigo a escravidão pode ser mais gentil. Pelo menos alguém vai ligar se vocês viverem ou morrerem. Se cruzarmos com outra vela no caminho, vou pensar se quero
pegá-la. E se içarmos a bandeira vermelha, vai ser a chance de vocês. Vocês vão primeiro; vão abordar a presa antes de qualquer um de nós. Se houver fogo, arcos,
redes-navalha ou só os deuses sabem o quê, vocês vão sentir o gosto primeiro e vão sangrar primeiro. Se sobreviverem, ótimo. Vocês serão tripulantes. Se recusarem,
vamos largá-los em Porto Pródigo. Eu só mantenho a equipe do esfregão enquanto for preciso. – Ela assentiu para Ezri.
– Por enquanto – prosseguiu Delmastro – vocês podem ter o castelo de proa e o convés corrido até o mastro principal. Não desçam sob o convés nem ponham a mão em
uma ferramenta sem instruções. Se tocarem numa arma ou se tentarem tirar uma de algum tripulante, eu garanto que morrerão instantaneamente. Nós somos sensíveis com
relação a isso. Se quiserem se aconchegar com algum tripulante ou se eles oferecerem aconchego a vocês, façam isso quando não estiverem em serviço e fiquem fora
da porcaria do convés corrido. Aqui, o que é dado é dado. Se tentarem pegar alguma coisa à força, é melhor rezar para morrer na tentativa, porque somos sensíveis
com relação a isso também.
Zamira assumiu outra vez e apontou para Locke e Jean.
– Ravelle e Valora vão se juntar a vocês de novo. – Alguns homens resmungaram e Zamira pousou as mãos nos punhos dos sabres. – Tenham modos, porra. Vocês os jogaram
do navio e juraram deixar que Iono fosse o juiz deles. Eu apareci cerca de uma hora depois; isso resolve tudo. Qualquer um que acha saber mais do que o Senhor das
Águas Revoltas pode pular por cima da amurada e resolver a coisa com Ele pessoalmente.
– Eles são da equipe do esfregão, como o resto de vocês – completou Ezri.
Ainda assim os homens não pareciam muito entusiasmados e Zamira pigarreou.
– Este é um navio de cotas iguais.
Isso atraiu a atenção deles.
– O intendente do navio se chama Gwillem. Ele contabiliza o saque. Trinta por cento vai para o navio, para não acabarmos com lonas e cordame podres. O resto é dividido
igualmente, uma cota para cada coração que bate.
– Vocês não vão tocar num centira do que já tiramos do seu antigo navio. Não peço desculpas por isso. Mas, se tiverem uma oportunidade a caminho de Porto Pródigo
e virarem tripulantes no momento em que vendermos o Mensageiro ao Desmancha-Navios, vão receber uma parte da transação, que vai servir muito bem a vocês. Se forem
tripulantes.
Locke teve de admirá-la; era uma política sensata e ela havia abordado o assunto num momento calculado para afastar a dissensão e a preocupação. Agora o Mensageiro
Vermelho não seria apenas uma lembrança infeliz sumindo no horizonte nas mãos de uma tripulação saqueadora: poderia ser uma pilha de prata.
Zamira se virou e foi em direção à popa, deixando Delmastro terminar a apresentação. Quando os murmúrios começaram a se intensificar, a pequenina tenente gritou:
– Calem a boca! Então é isso. Vai haver comida daqui a pouco e meia ração de cerveja para acalmar vocês um pouco. Amanhã vou começar a separar os que têm habilidades
especiais e apresentar um pouco de trabalho. Há uma última coisa que a capitã não mencionou. – Ezri fez uma pausa para garantir que todo mundo ouvia com atenção.
– Os pequenos Drakashas. A capitã tem um menino e uma menina. Na maior parte do tempo, eles ficam na cabine, mas às vezes podem andar pelo navio. Para vocês eles
são sagrados. Esta é a coisa mais séria que já falei esta noite. Digam ao menos uma palavra pouco gentil a eles e eu prego seu pau no mastro de proa e deixo vocês
ali para morrer de sede. A tripulação pensa neles como parte da família. Se vocês precisarem quebrar o pescoço para mantê-los em segurança, é do seu interesse quebrar
a porcaria do pescoço.
Delmastro pareceu receber o silêncio de todos como sinal de que estavam devidamente impressionados e assentiu. Um instante depois, a voz de Drakasha soou no tombadilho,
ampliada por uma corneta alto-falante:
– Levantar âncora!
Delmastro pegou um apito pendurado no pescoço com uma tira de couro e soprou três vezes.
– Pessoal do centro – gritou ela numa voz impossivelmente alta –, prender barras do cabrestante! A postos para içar âncora! Equipe do esfregão, vá para o centro,
os que estiverem em condições!
A maior parte da ex-tripulação do Mensageiro se levantou e começou a arrastar os pés para a parte central do Orquídea. Um grande grupo de trabalho já estava se reunindo
ali, entre o mastro de proa e o galinheiro, colocando compridas barras de cabrestantes nos lugares, à luz de lanternas. Uma mulher espalhava areia no convés com
um balde. Locke e Jean ficaram perto de Jabril, que deu um sorriso torto.
– Boa noite, Ravelle. Você parece meio... rebaixado.
– Estou bem feliz – falou Locke. – Mas, honestamente, Jabril, eu deixei o Mensageiro nas suas mãos durante o quê, uma hora? E veja o que aconteceu.
– É uma tremenda melhora – observou alguém atrás de Locke.
– Ah, concordo – admitiu Locke, decidindo que os dias seguintes poderiam ser infinitamente mais agradáveis para todo mundo se Ravelle engolisse algo parecido com
o orgulho de sua breve carreira como capitão. – Concordo de coração.
Ezri abriu caminho entre o pessoal reunido e saltou sobre o eixo do cabrestante para sentar de pernas cruzadas; ele era suficientemente largo para que ela pudesse
fazer isso. Soprou o apito mais duas vezes e gritou:
– Tudo pronto aí embaixo?
– Pronto! – respondeu um grito através de uma escotilha.
– Aos seus lugares – comandou Ezri.
Locke se espremeu ao lado de Jean e se encostou numa das longas barras de madeira; esse cabrestante era mais largo do que o do Mensageiro e cerca de vinte marinheiros
a mais poderiam facilmente se apinhar para trabalhar nele. Cada lugar foi ocupado em segundos.
– Certo – disse Ezri. – Força! Devagar para começar! Força! Devagar para começar! Pés e ombros! Mais depressa, agora, façam essa vadia girar e girar! Vocês sabem
que querem!
Locke fez força contra sua barra, sentindo a areia ser esmagada e deslizar, cutucando desconfortavelmente os pontos sensíveis entre os dedos e a sola dos pés descalços.
Porém ninguém reclamava, por isso ele mordeu o lábio e aguentou. Ezri estava mesmo girando e girando; estalo após estalo, o cabo da âncora começou a subir. Um grupo
se formou na proa a bombordo para prendê-lo. Depois de se esforçar por vários minutos, Ezri fez o grupo do cabrestante parar com um sopro curto no apito.
– Parar! Prender âncora de bombordo!
– Iniciar bordada de bombordo! – soou a voz amplificada de Drakasha. – Velas de gávea principal e de proa!
Mais corridas, mais apitos, mais agitação. Ezri saltou de pé sobre o cabrestante e berrou uma rápida sucessão de ordens:
– Subindo para soltar velas de gávea de proa e popa! Girar vergas do mastro principal para a bordada de bombordo! Vergas de proa presas para trás! – Houve mais gritos,
porém Locke parou de ouvir enquanto tentava entender o que acontecia. O Orquídea Venenosa estivera preso a uma única âncora em mar calmo, com uma brisa suave vindo
de nordeste, e havia se desviado a ponto de o vento estar totalmente de frente. O pouco que ele entendia das ordens de Ezri dizia que o navio iria deslizar um pouco
para trás, depois virar para o leste trazendo o vento pelo lado de bombordo da proa.
– Equipes de popa e proa, à amurada! Vigias de topo, acordados, agora! – Ezri saltou no convés. Formas escuras subiam pelos enfrechates usando mãos e pés; moitões
e talhas estalavam na escuridão crescente e mais tripulantes ainda subiam pelas escotilhas para se juntar ao tumulto. – Equipe do esfregão! Equipe do esfregão, vá
para o porão do castelo e fique fora da droga do caminho! Não vocês dois. – Ezri agarrou Locke e Jean, que se moviam com os homens do Mensageiro, e virou-os para
a popa. – Armário de ferramentas, embaixo da escada de bombordo atrás do mastro principal. Peguem vassouras e varram toda essa areia de volta para o balde. Depois
tirem as barras do cabrestante.
Eles obedeceram; era um trabalho tedioso à luz alquímica oscilante, frequentemente interrompidos por tripulantes ocupados ou descorteses. Locke trabalhava mal-humorado,
até que Ezri surgiu entre ele e Jean e sussurrou:
– Não se incomodem. Isso vai melhorar muito o relacionamento de vocês com sua antiga tripulação.
Pior que ela estava certa, pensou Locke: um pouquinho de humilhação extra para Ravelle e Valora poderia ser o necessário para conter o ressentimento da antiga tripulação.
– Meus parabéns – sussurrou ele.
– Eu conheço meu serviço – replicou ela bruscamente. – Ponham tudo de volta onde acharam, depois vão para o porão do castelo e fiquem lá.
Então ela sumiu, misturando-se às equipes de trabalho e supervisionando uma dezena de operações delicadas. Locke recolocou as vassouras no armário de ferramentas
e foi para a proa com Jean logo atrás. Lá no alto, velas se agitavam e estalavam, cordas rangiam à medida que a tensão era aumentada ou ajustada e homens e mulheres
chamavam uns aos outros em voz baixa, suspensos a dezenas de metros.
O Orquídea Venenosa deslizou lentamente na bordada de bombordo. Deixou para trás o último e fraco halo do sol perdido, como se navegasse para fora de algum portal
dourado e fantasmagórico, e abriu caminho sob as primeiras estrelas da noite, que iam ficando cada vez mais brilhantes no céu negro do leste.
Locke ficou agradavelmente surpreso ao descobrir que Jabril havia guardado um lugar para ele e Jean; não era um dos mais desejáveis, perto da entrada do porão do
castelo, mas o suficiente para se espremer contra a antepara de bombordo, numa escuridão relativa. Outros, com posições mais favoráveis, pareceram não se ressentir
ao abrir espaço por um momento enquanto eles passavam se arrastando e tropeçando. Um ou dois murmuraram cumprimentos e uns poucos, como Mazucca e Aspel, mantiveram
um silêncio não amistoso.
– Parece que vocês de fato se juntaram aos escravos de galera – disse Jabril.
– Escravos de galera é o que a gente seria se Ravelle não tivesse tirado a gente da Rocha de Barlavento – interveio alguém que Locke não reconheceu. – Ele pode ser
um escroto idiota, mas a gente deveria demonstrar companheirismo.
Obrigado por ter falado a nosso favor quando estávamos sendo chutados do navio, pensou Locke.
– É, concordo sobre a parte do escroto idiota – falou Mazucca.
– E vamos todos pensar na parte do companheirismo – lembrou Jean, a voz lenta e cuidadosa que reservava para pessoas ao se conter para não bater em alguém. – Orrin
não está sozinho, não é?
– Aqui está escuro – disse Mazucca. – Um monte de gente espremida junto. Você acha que pode se mover suficientemente rápido, Valora? Acha que pode ficar acordado
por tempo suficiente, por sinal? Vinte e oito contra dois...
– Se houvesse convés livre entre nós – reagiu Jean –, você mijaria nas calças no momento em que eu estalasse os nós dos dedos.
– Jerome – falou Locke. – Calma. Nós podemos...
Houve um som arrastado no escuro, em seguida uma pancada. Mazucca soltou um guincho estrangulado.
– Carequinha, seu idiota – sibilou uma voz desconhecida. – Se você levantar a mão contra eles, Drakasha vai matar você, não sabe disso?
– Você vai piorar a coisa para todos nós – concordou Jabril. – Não escutou Zamira Drakasha? Se ela ficar irritada, podemos perder a chance de ser tripulantes. Se
fizer isso, Mazucca, vai descobrir o que são 28 contra um. É a porra de uma promessa.
Houve murmúrios de concordância no escuro e um som ofegante e brusco quando a pessoa que estivera segurando Mazucca soltou-o.
– Paz. – Ele ofegou. – Eu não... não vou estragar nada. Eu, não.
A noite estava quente e o calor de trinta homens num confinamento compacto ficou logo sufocante apesar da pequena grade de ventilação no meio do convés do castelo
de proa. Após os olhos de Locke se acostumarem à escuridão, ele pôde divisar com mais clareza os homens ao redor. Estavam deitados ou sentados lado a lado, como
gado. O navio reverberava em torno. Pés batiam acima, tripulantes se moviam, gargalhavam e gritavam no convés abaixo. Havia o sibilar e as batidas fracas das ondas
diante da proa e o som constante de trabalho e de ordens gritadas na popa.
Serviram-lhes uma refeição rápida composta de carne de porco seca e morna e meio odre de lavagem com cheiro de gambá que lembrava um pouco cerveja. A comida e a
bebida foram passadas desajeitadamente pelo grupo: joelhos e cotovelos batiam em barrigas e testas, até que todo mundo conseguiu sua parte. Depois veio a tarefa
complicada de devolver odres e tigelas de estanho e os homens se arrastaram uns por cima dos outros para usar os cabos de bosta. Enfim, Locke se acomodou de vez
em sua lasca de espaço contra as costas de Jean e teve um pensamento súbito.
– Jabril, alguém descobriu que dia é hoje?
– Doze de Festal. Eu perguntei à tenente Delmastro quando fui trazido a bordo.
– Doze dias – murmurou Jean. – Aquela porcaria de tempestade durou um bocado.
– É.
Locke suspirou. Doze dias haviam se passado. Não fazia duas semanas que tinham partido, cada homem tratando os dois como heróis. Doze dias em que o antídoto fora
perdendo a força. Pelos deuses, o Arconte... como, diabos, ele iria explicar o que acontecera com o navio? Usando alguma expressão técnica de navegação?
– Levantei a verga do patarrás e enterrei o mastaréu na bujarrona de estibordo – sussurrou consigo mesmo – quando deveria ter enterrado na bujarrona de bombordo.
– O quê? – indagaram Jean e Jabril ao mesmo tempo.
– Nada.
Em pouco tempo, os velhos instintos de um órfão do Pegafogo se instalaram. Locke usou o braço esquerdo dobrado como travesseiro e fechou os olhos. Em instantes,
o barulho, o calor e a agitação dos homens ao redor e os milhares de ruídos do navio não passavam de um pano de fundo vago para seu sono leve porém firme.
CAPÍTULO DEZ
Todas as almas em perigo
1
No dia dezessete de Festal, Jean passara a abominar a visão e o cheiro do vinagre do navio tanto quanto passara a apreciar os vislumbres da tenente.
Sua tarefa matinal, na maior parte dos dias, era encher um balde com aquela coisa vermelha e fétida e outro com água do mar e começar a esfregar o convés e as anteparas
por toda a extensão do convés principal. Na proa e na popa, havia longos compartimentos, que eram os alojamentos da tripulação, e um deles estaria sendo usado a
qualquer momento, apinhado com quarenta ou cinquenta pessoas, os roncos se misturando como os rosnados de feras enjauladas. Esse local Jean evitaria com cuidado
e iria esfregar os depósitos do navio – chamados de “sala das delicadezas” por causa das prateleiras com garrafas de vidro sob redes –, o porão do convés principal,
a armaria e o alojamento vazio, mesmo sem marinheiros, continha uma confusão de barris, caixotes e redes que precisavam ser laboriosamente movidos.
Assim que o fedor do vinagre com água se misturava ao fedor usual de comida velha, bebida ruim e coisas sujas, em geral Jean passava pelos dois conveses mais baixos,
a coberta inferior e o porão, balançando uma grande lâmpada alquímica amarela para ajudar a dissipar os miasmas que causavam doenças. Drakasha fazia questão de manter
saudável a tripulação; a maioria dos marinheiros cortava as orelhas com cobre para evitar catarata e bebia cerveja com areia branca para reforçar a barriga contra
rupturas. Os conveses inferiores eram iluminados pelo menos duas vezes por dia, para diversão dos gatos do navio. Infelizmente, isso implicava passar por cima, arrastar-se,
tropeçar e empurrar todo tipo de obstáculos, inclusive tripulantes ocupados. Jean se preocupava em ser educado e mostrar obediência, assentindo ao passar.
A tripulação estava em constante movimento; o navio estava sempre vivo. Quanto mais Jean via e aprendia no Orquídea Venenosa, mais se convencia de que o programa
de manutenção que ele estabelecera como imediato do Mensageiro Vermelho havia sido tremendamente simplório. Sem dúvida Caldris acabaria percebendo, caso vivesse
o suficiente para isso.
Segundo a capitã Drakasha, parecia não existir um estado de reparo adequado para um navio no mar. O que era verificado ou inspecionado num turno era verificado de
novo no próximo, e no próximo, dia após dia. O que era firmado era firmado de novo, o que podia ser remendado era remendado. A bomba e os mecanismos do cabrestante
eram lubrificados diariamente com gordura raspada das panelas; os mastros eram “engraxados” do topo à base com a mesma gosma marrom, para proteção contra o tempo.
Marinheiros andavam em grupos constantes, atentos, inspecionando emendas nas tábuas ou enrolando lonas no cordame, em pontos onde os cabos raspavam uns contra os
outros.
Os tripulantes eram divididos em dois grupos, Vermelho e Azul. Trabalhavam em turnos de seis horas, um cuidando do navio enquanto o outro descansava. O Turno Vermelho,
por exemplo, tinha serviço do meio-dia até a sexta hora da tarde e da meia-noite até as seis da manhã. Os de folga podiam fazer o que quisessem, a não ser que um
chamado a toda a tripulação os convocasse ao convés para alguma tarefa extenuante ou perigosa.
A equipe do esfregão não se encaixava nesse esquema; os ex-membros do Mensageiro Vermelho tinham de trabalhar do alvorecer ao anoitecer e recebiam as refeições depois
de serem dispensados, e não por volta do meio-dia como o restante.
Apesar de todas as reclamações, Jean não achava que o pessoal do Orquídea se ressentisse dos novos companheiros. Na verdade, suspeitava que os ex-tripulantes do
Mensageiro estavam assumindo a maioria das tarefas mais ingratas, deixando os outros com muito mais tempo para dormir, cuidar das coisas pessoais, jogar ou trepar
sem qualquer vergonha em suas redes ou embaixo dos cobertores. A falta de privacidade a bordo ainda causava uma enorme perplexidade em Jean; ele não era pudico nem
virgem, mas sua ideia do lugar certo sempre envolvera paredes de pedra e uma porta bem trancada.
Uma fechadura significaria pouca coisa num navio assim, onde praticamente qualquer ruído era compartilhado. Havia dois homens do Turno Azul que podiam ser ouvidos
da amurada de popa se estivessem fazendo a coisa no alojamento de proa e uma mulher do Turno Vermelho que gritava as coisas mais espantosas em vadrã, em geral justo
quando Jean estava caindo no sono no convés acima. Ele e Locke haviam discutido sua gramática e concluído que, na verdade, ela não falava vadrã. Às vezes seus desempenhos
eram seguidos de aplausos.
Fora isso, a tripulação parecia se orgulhar da disciplina. Jean não testemunhava brigas, havia poucas discussões sérias e raras bebedeiras inadequadas. A cerveja
ou o vinho era tomado de modo respeitável em cada refeição e, devido a algum esquema complicado que Jean ainda não havia compreendido, cada tripulante tinha permissão,
em média uma vez por semana, de participar do Turno Alegre, uma espécie de turno dentro do turno. Ele acontecia no convés principal e dava à pessoa um pouco de liberdade
no poço, a parte central do navio, especialmente para vomitar. Os participantes podiam beber mais ou menos o que quisessem e ficavam livres até mesmo dos chamados
a toda a tripulação até se recuperarem.
– Não é... exatamente o que eu esperava – comentou Jean certa manhã enquanto Ezri estava junto à amurada de bombordo, fingindo que não o observava retocar a tinta
cinza no fundo do menor bote do navio.
Ela fazia isso às vezes. Será que ele estava imaginando coisas? Seria por ele ter citado Lucarno? Jean tinha evitado citar qualquer outra coisa para ela, mesmo quando
houvera oportunidade. Era melhor ser misterioso do que se tornar um refrão barato de algo que atraíra a atenção dela.
Pelos treze deuses, pensou com um sobressalto, será que estou me preparando para passar uma cantada nela? Será que ela...
– O quê? – perguntou Ezri.
Jean sorriu. De alguma forma, tinha suposto que ela não se incomodaria por ele falar sem ser instigado.
– O seu navio. Não é exatamente o que eu esperava. Pelo que eu li.
– Pelo que você leu? – Ela riu, cruzou os braços e olhou-o de modo quase maroto. – O que você leu?
– Deixe-me pensar. – Ele mergulhou o pincel na tinta alquímica cinza e tentou parecer ocupado. – Sete anos entre o temporal e o chicote.
– Benedictus Montcalm. Eu li. Na maior parte, é bobagem. Acho que ele trocava bebidas por histórias com marinheiros de verdade até conseguir o que queria.
– E que tal A história verídica e acurada da cruel bandeira vermelha?
– Suzette vela Ducasi! Eu a conheço!
– Conhece?
– Sei sobre ela. A vaca velha e maluca foi parar em Porto Pródigo. Escreve em troca de cobres, bebe cada moeda que ganha. Hoje em dia mal fala um terim decente.
Só assombra as sarjetas e xinga os antigos editores.
– Esses são os livros de que me lembro. Não tenho muito gosto por não ficção, infelizmente. Então, como você conseguiu ler tudo que leu?
– Ahhh – fez ela, sacudindo o cabelo para trás com um movimento rápido do pescoço. Não era magricela, pensou Jean, não havia ângulos em Ezri, apenas curvas e músculos
saudáveis. Era preciso ter preparo físico para derrubá-lo como fizera, mesmo de surpresa. – Aqui, o passado é uma moeda, Jerome. Às vezes é a única que nós temos.
– Misteriosa.
– Sensata.
– Você já sabe um pouco sobre mim.
– Justíssimo, não é? O negócio é que eu sou uma oficial-marinheira e você é um desconhecido perigoso.
– Isso parece promissor.
– Foi o que pensei também. – Ela sorriu. – Pior ainda, eu sou oficial-marinheira e você é da equipe do esfregão. Você ainda nem é real. – Ela o emoldurou com as
mãos e estreitou os olhos. – Você não passa de uma espécie de algo nebuloso no horizonte.
– Bom – disse ele, sabendo que parecia um idiota enquanto se repetia. – Ah, bom.
– Mas você estava curioso.
– Estava?
– Com relação ao navio.
– Ah. É, estava. Eu só pensei... agora que vi um bocado dele...
– Onde estão as cantorias, as danças nas vergas, onde estão os barris de cerveja na proa e na popa, onde estão as bebedeiras e os vômitos do nascer ao pôr do sol?
– Mais ou menos. Não é bem uma marinha, sabe.
– Drakasha já foi da marinha. De Syrune. Ela não fala muito sobre isso, mas não tenta mais esconder o sotaque. Antigamente escondia.
Syrune, pensou Jean, um império insular mais a leste ainda do que Jerem e Jeresh; um povo orgulhoso de pele escura que levava seus navios a sério. Se Drakasha era
um deles, tinha vindo de uma tradição de oficiais navais que, segundo alguns, era tão antiga quanto o Trono Terim.
– Syrune – repetiu ele. – Isso explica algumas coisas. Eu tinha pensado que o passado era uma moeda.
– Ela deixaria você saber essa parte de graça. Confie em mim, se o passado é uma moeda, Drakasha está sentada numa tremenda fortuna.
– Então ela, ahn, ajusta o navio aos seus antigos hábitos?
– É mais certo dizer que nós nos deixamos ser ajustados. – Ezri sinalizou para Jean continuar pintando e ele voltou ao trabalho. – Os capitães no Mar de Bronze são
especiais. Têm status, na água e fora dela. Há um conselho deles em Porto Pródigo. Mas cada navio... os irmãos fazem seus próprios caminhos. Alguns capitães são
eleitos. Outros só comandam quando é hora de pegar em armas. Já Drakasha... ela comanda porque sabemos que é a nossa melhor chance. De qualquer coisa. Em Syrune
não se faz merda.
– Então vocês têm turnos de serviço navais, bebem como maridos explosivos e têm bons modos?
– Você não aprova?
– Pelo sangue dos deuses, claro que aprovo. Só é mais organizado do que eu imaginava, apenas isso.
– Você não chamaria nada do que fazemos de naval se tivesse servido num verdadeiro navio de guerra. A maior parte da nossa tripulação já serviu e, em comparação,
isto aqui é um paraíso de preguiça. Nós mantemos os hábitos porque a maioria também já esteve em outros navios piratas. Já vimos os vazamentos que aumentam dia a
dia. Vimos os mecanismos apodrecer. Vimos o cordame se esgarçar. De que adianta ficar ocioso o tempo todo se o navio se desfaz enquanto você dorme?
– Vocês são prudentes.
– É. Olha, o mar nos torna prudentes ou nos mata. Os oficiais de Drakasha juram que este navio só afunda em batalha ou pela vontade dos deuses. Não por falta de
trabalho, lona ou corda. Esse é um juramento sagrado. – Ela se espreguiçou. – E não por falta de pintura também. Mais uma demão de tinta aí e muita atenção.
Esses oficiais... Jean rememorou os oficiais do Orquídea enquanto trabalhava, para afastar a mente de Ezri. Havia Drakasha, é claro. Ela não tinha um turno de serviço,
mas aparecia se achava necessário. Ficava no convés durante pelo menos metade do dia e se materializava num passe de mágica quando acontecia alguma coisa interessante.
Abaixo dela, Ezri... droga, nada de pensar em Ezri. Pelo menos naquele instante.
Caladão, o mestre de navegação, e sua pequena equipe de timoneiros de confiança. Drakasha permitia que tripulantes comuns pegassem o timão em tempo firme, mas para
qualquer operação que exigisse habilidade, o responsável era Caladão e seu grupo. Quase no mesmo nível de Caladão estavam o intendente – no momento, destacado para
o Mensageiro Vermelho – e a galena, Treganne, que provavelmente nunca admitiria ser do mesmo nível de alguém que não tivesse um templo com seu nome. Drakasha ocupava
a grande cabine, naturalmente, e os quatro oficiais mais importantes tinham pequenos cômodos no corredor sob a escada de tombadilho, recintos com paredes de lona
como a antiga cabine dele.
E havia um carpinteiro, um fabricador e reparador de velas, um cozinheiro e um contramestre. O único privilégio de ser um oficial inferior era ter o direito de mandar
às vezes em outros tripulantes. Também havia dois... subtenentes, supôs Jean. Eles substituíam Ezri quando ela não estava por perto: Utgar comandava o Turno Azul
e uma mulher chamada Nasreen liderava o Vermelho, mas Jean ainda não a conhecera, porque ela fora encarregada da tripulação que cuidava do Mensageiro.
Parecia que todo aquele trabalho braçal, esfregando o navio de ponta a ponta, estava dando a Jean – e ao resto da equipe do esfregão – a chance de aprender a hierarquia
do navio, assim como sua organização. Ele achou que era intencional.
O tempo estivera bom desde a captura deles. Brisas leves e constantes do nordeste, nuvens que iam e vinham como uma dançarina de taverna, intermináveis ondas baixas
que faziam o mar brilhar como uma safira com milhões de facetas. O sol os atacava de dia e o ambiente fechado os sufocava de noite, mas Jean já estava condicionado
a esse trabalho. Estava moreno como Paolo e Cosetta. Locke também parecia se sair bem – bronzeado e barbudo, ganhando músculo, não mais apenas esguio. Seu tamanho
e uma fanfarronice impensada sobre sua agilidade tinham-no levado ao serviço de engraxar os mastros, o de proa e o principal, todas as manhãs.
A comida ainda chegava tarde, no fim de cada longo dia, e apesar de sem encanto, era mais do que farta. Agora tinham também uma ração inteira de bebida. Por mais
que Jean odiasse admitir, mesmo para ele próprio, não se importava muito com essa reviravolta nos acontecimentos. Podia trabalhar e dormir confiando que as pessoas
que comandavam o navio conheciam o serviço; ele e Locke não precisavam fazer tudo com base em improvisação e preces. Se não fosse a porcaria da contagem do tempo,
o registro implacável da passagem de um dia depois do outro, do antídoto se esvaindo, seria um período bom. Um intervalo bom e atemporal, com a tenente Delmastro
para ser decifrada.
Mas nem ele nem Locke conseguiam parar de contar os dias.
2
No décimo oitavo dia de Festal, Careca Mazucca estourou.
Não deu nenhum indício de que iria fazer isso; apesar de ficar carrancudo no porão do castelo todas as noites, era apenas um entre muitos homens cansados e irritados,
e não ameaçara mais ninguém.
Era o crepúsculo, duas ou três horas depois do início do Turno Azul, e lanternas se acendiam por todo o navio. Jean estava sentado ao lado de Locke, perto do galinheiro,
desfiando uma corda velha, formando uma pilha de fibras marrons e ásperas. Misturado com alcatrão, esse material viraria estopa e seria usado para tudo, desde calafetação
de emendas até enchimento de travesseiros. Era um serviço miseravelmente tedioso, mas o sol tinha quase ido embora e o fim do trabalho do dia estava chegando.
Houve um estardalhaço em algum lugar perto do porão do castelo, seguido por xingamentos e gargalhadas. Careca Mazucca surgiu pisando firme, carregando um esfregão
e um balde, com um tripulante que Jean não reconheceu vindo logo atrás. O tripulante disse outra coisa que Jean não captou, Mazucca girou e mandou o balde pesado
contra ele, acertando-o bem no rosto. O tripulante caiu de bunda, atordoado.
– Desgraçado! – gritou Mazucca. – Acha que eu sou a porra de uma criança?
O tripulante tentou pegar uma arma no cinto – Jean viu que era um porrete curto. Mas Mazucca estava com a cabeça quente e o tripulante ainda se recuperava do golpe.
Num instante, Mazucca o chutou no peito e arrancou a arma. Levantou-a acima da cabeça, mas três ou quatro tripulantes o acertaram ao mesmo tempo, derrubando-o no
convés e arrancando-a da sua mão.
Passos pesados logo soaram do tombadilho para o poço. A capitã Drakasha tinha chegado sem ser chamada.
Tendo esquecido o trabalho com as cordas, Jean sentiu o estômago se revirar ao vê-la passar em disparada. Ela estava com aquilo. Usava a coisa como uma capa. A mesma
aura que ele já vira em Capa Barsavi, algo que dormia por dentro até ser puxado para fora pela raiva ou pela necessidade, súbito e terrível. A própria morte pisava
ali nas tábuas do navio.
Os tripulantes haviam levantado Mazucca, segurando-o pelos braços. O homem que fora acertado com o balde tinha recuperado o porrete e esfregava a cabeça. Zamira
estacou e apontou para ele.
– Explique-se, Tomas.
– Eu estava... eu estava... Desculpe, capitã. Só estava me divertindo um pouco.
– Ele ficou me perseguido a porra da tarde toda – interveio Mazucca, contido mas nem um pouco calmo. – Não fez trabalho nenhum. Só ficou me seguindo, chutando meu
balde, pegando minhas ferramentas, atrapalhando meu serviço e me mandando consertar.
– É verdade, Tomas?
– Eu só... foi só de brincadeira, capitã. Estava provocando a equipe do esfregão. Não foi por mal. Vou parar.
Drakasha se moveu tão depressa que Tomas nem teve tempo de se encolher; em instantes, estava de costas no convés, com o nariz quebrado. Jean havia notado o elegante
movimento do braço dela e o uso preciso da palma da mão. Já recebera esse tipo de golpe duas vezes e, por mais que fosse um imbecil, Tomas teve sua simpatia.
– Aaagh – fez Tomas, espirrando sangue.
– Os membros da equipe do esfregão são como ferramentas – falou Drakasha. – Eu espero que eles sejam mantidos em condições de uso. Você vai perder metade da sua
cota do saque do Mensageiro Vermelho e sua cota da venda. – Ela fez um gesto para as mulheres que estavam atrás dele. – Vocês duas, levem-no para a popa e encontrem
a Erudita Treganne.
Enquanto Tomas era arrastado para o tombadilho para uma visita-surpresa à galena, Drakasha se virou para Mazucca.
– Você ouviu minhas regras na noite em que chegou ao meu navio.
– Eu sei. Desculpe, capitã Drakasha, ele só...
– Você ouviu. Você ouviu o que eu disse e entendeu.
– Entendi, eu fiquei com raiva, eu...
– Tocar uma arma significa a morte. Eu deixei isso claro como um céu sem nuvens e, mesmo assim, você fez isso.
– Olha...
– Você não é útil para mim.
A mão direita de Drakasha se fechou ao redor do pescoço de Mazucca. Os tripulantes soltaram-no e ele envolveu o antebraço de Drakasha com as mãos, em vão. Ela começou
a arrastá-lo para a amurada de estibordo.
– Aqui, se você perder a cabeça, se cometer a droga de um erro idiota, pode afundar o navio inteiro. Se não for capaz de manter a cabeça no lugar quando foi avisado
do que estava em risco, você não passa de lastro.
Chutando e engasgando, Mazucca tentou lutar, mas Drakasha puxou-o inexoravelmente para a lateral do convés corrido. A cerca de 2 metros da amurada, ela trincou os
dentes, puxou o braço direito para trás e lançou Mazucca adiante, usando todo o potencial do quadril e do ombro. Ele bateu com força, sacudindo os braços para se
equilibrar, e tombou para trás. Um segundo depois, houve o som da água espirrando.
– Este navio já tem lastro suficiente.
Membros da tripulação e da equipe do esfregão correram para a amurada de estibordo. Após um olhar rápido para Locke, Jean foi se juntar a eles. Drakasha permaneceu
onde estava, os braços ao lado do corpo, a raiva súbita evaporada. Nisso também ela lembrava Barsavi. Jean se perguntou se ela passaria o resto da noite carrancuda
e pensativa ou mesmo bebendo.
O navio viera fazendo 4 ou 5 nós de forma constante e Mazucca não parecia muito bom nadador. Já estava 5 ou 6 metros ao lado do navio e 15 ou 20 metros atrás, com
relação ao tombadilho. Seus braços e a cabeça balançavam contra a escuridão ondulante das ondas e ele berrava por socorro.
Crepúsculo. Jean estremeceu. Um horário de fome no mar aberto. A luz intensa do dia expulsava muitas coisas para o fundo, tornava a água quase segura por horas seguidas.
Tudo isso mudava ao crepúsculo.
– Vamos pescá-lo, capitã? – Um tripulante havia parado junto dela, falando em voz tão baixa que só os que estavam próximos ouviram.
– Não. – Ela se virou e começou a andar lentamente para a popa. – Continuem navegando. Alguma coisa irá atrás dele daqui a pouco.
3
No dia dezenove, ao meio-dia e meia, Drakasha berrou para Locke ir à sua cabine. Ele correu para a popa o mais rápido que pôde, as visões de Tomas e Mazucca vívidas
na mente.
– Ravelle, que diabos é isto?
Locke parou para absorver a cena. Ela havia montado a mesa no centro da cabine. Paolo e Cosetta estavam sentados um diante do outro, encarando Locke, e um baralho
se espalhava num padrão indecifrável à frente deles. Uma taça de prata estava tombada no meio da mesa... uma taça grande demais para mãos pequenas. Locke sentiu
um frio na barriga, mas ainda assim olhou mais de perto.
Como tinha suspeitado... um bocado de bebida castanho-clara havia se derramado da taça no tampo da mesa e caído sobre uma carta, que se dissolvera numa poça de material
cinza e sem nenhum desenho.
– A senhora tirou as cartas do meu baú. As que estavam no pacote impermeável com camada dupla.
– É.
– E esteve tomando uma bebida bastante forte. Um dos seus filhos a derramou.
– Conhaque caramelo e eu mesma derramei. – Ela pegou uma adaga e cutucou o material cinza. Apesar de ter um brilho líquido, era duro e sólido e a ponta da arma escorregou
como se aquilo fosse granito. – Que diabo é isso? É como... cimento alquímico.
– É cimento alquímico. A senhora não notou que as cartas tinham um cheiro esquisito?
– Por que raios eu cheiraria cartas de baralho? – Ela franziu a testa. – Crianças, não toquem mais nisso. Vão se sentar na cama até que mamãe lave as mãos de vocês.
– Não é perigoso – informou Locke.
– Não me importa. Paolo, Cosetta, ponham as mãos no colo e esperem a mamãe.
– Não são cartas de verdade, mas placas de resina alquímica. Finas como papel e flexíveis. Os desenhos das cartas são pintados em cima. A senhora não acreditaria
em como são caras.
– Nem me importaria. Para que, diabos, elas servem?
– Não é óbvio? Mergulhe uma numa bebida forte e ela se dissolve em alguns segundos. De repente você tem um pouquinho de cimento alquímico. Misture quantas cartas
forem necessárias. A coisa seca em cerca de um minuto, fica dura como aço.
– Dura como aço? – Ela olhou a matéria cinza em seu fino tampo de mesa laqueado. – Como isso sai?
– Ah... não sai. Não existe solvente. Pelo menos fora do laboratório de um alquimista.
– O quê? Maldição, Ravelle...
– Capitã, a senhora está sendo injusta: eu não pedi que a senhora pegasse essas cartas e brincasse com elas. Nem derramei bebida nelas.
– Está certo – admitiu Drakasha com um suspiro. Dava a impressão de estar cansada, pensou Locke. As leves rugas de preocupação em volta da boca pareciam ter sido
marcadas bastante recentemente. – Pegue essas coisas e jogue no mar.
– Capitã, por favor. Por favor. – Locke estendeu as mãos para ela. – Elas não são apenas caras, são... tremendamente difíceis de duplicar. Demoraria meses. Deixe-me
embrulhá-las no tecido impermeável e colocá-las no baú. Por favor, pense nelas como parte dos meus documentos.
– Para que você as usa?
– São apenas um de meus truquezinhos. Na verdade, são tudo que me resta deles. Juro, elas não significam nenhuma ameaça à senhora ou ao seu navio... É preciso derramar
bebida nelas e, mesmo assim, são apenas um incômodo. Olha, se a senhora guardá-las para mim e me arranjar algumas facas com gumes de bisturi, vou dedicar todo o
meu tempo a tirar essa merda da sua mesa. Arrancando pelos lados. Mesmo que leve a semana inteira. Por favor.
Ele demorou dez horas, raspando com cuidado infinito, como se estivesse fazendo uma cirurgia. Trabalhou sem descanso, primeiro sob o sol e depois sob o brilho de
várias lanternas, até que aquela coisa diabolicamente dura sumisse, deixando nada além de uma sombra sobre a laca, para mostrar onde estivera.
Quando enfim reivindicou seu minúsculo espaço para dormir, soube que suas mãos e os antebraços doeriam durante todo o dia seguinte.
Valera a pena cada minuto de esforço para preservar a existência daquele baralho.
4
No dia vinte, Drakasha abandonou o rumo para o leste e colocou-os a noroeste com o vento no vau de estibordo. O tempo se manteve: eles torravam de dia e suavam à
noite e o navio velejava sob fluxos de espectros-voadores que pairavam sobre a água como arcos de luz verde e fantasmagórica.
No dia 21, enquanto a promessa do alvorecer acinzentava o mar a leste, eles tiveram a chance de provar seu valor.
Locke foi arrancado de um sono breve demais por uma cotovelada nas costelas. Acordou confuso; os homens da equipe do esfregão estavam se remexendo, cambaleando e
murmurando ao redor.
– Vela à vista – explicou Jean.
– Ouvi gritarem do calcês há um minuto – completou alguém perto da porta. – A dois pontos do quarto de estibordo. Isso é bem a leste e um pouco a norte de nós, casco
invisível.
– Isso é bom – observou Jabril, bocejando. – O vislumbre do alvorecer.
– Alvorecer? – Ainda parecia escuro, e Locke esfregou os olhos sonolentos. – Alvorecer, já? Como não preciso mais fingir que sei que diabo estou fazendo, o que é
um vislumbre do alvorecer?
– O sol está vindo por cima do horizonte, está vendo? – Jabril parecia adorar a chance de ensinar a Locke. – No leste. Aqui ainda estamos na sombra, a oeste deles.
É difícil ver a gente, mas dá para enxergá-los com aquela luz fraca atrás dos mastros, entendeu?
– Certo. Parece uma coisa boa.
– Vamos atrás dele – disse Aspel. – Vamos pegá-lo. Esse navio está atulhado de tripulantes e Drakasha é uma vaca sangrenta.
– É uma luta para nós – falou Streva. – Nós vamos primeiro.
– É, e vamos provar nosso valor – concordou Aspel. – E acabar com esta merda de equipe do esfregão.
– Não comece a amarrar fitas prateadas no seu pau tão cedo – retrucou Jabril. – Não sabemos qual é o rumo do navio, nem a que velocidade ele está ou qual é o melhor
ponto de navegação dele. Pode ser um navio de guerra. Pode até fazer parte de um esquadrão.
– Vá se foder, Jabril – reagiu alguém sem malícia. – Não quer sair da equipe do esfregão?
– Ei, quando chegar a hora da abordagem, eu remo o bote nu e ataco os sacanas só com a porra da minha beleza. Esperem para ver se ele é uma presa, só estou dizendo
isso.
Houve ruídos e agitação no convés; ordens foram gritadas. Os homens na entrada se esforçavam para ouvir e ver tudo.
– Delmastro está mandando gente subir no cordame – disse um deles. – Parece que vamos virar uns pontos a norte. Eles estão fazendo isso bem depressa.
– Nada é mais suspeito do que uma mudança súbita de velas se eles nos virem – explicou Jabril. – Ela quer que a gente esteja mais perto do rumo deles antes de sermos
vistos, assim parecerá natural.
Passaram-se minutos. Locke piscou e se acomodou de volta em sua antepara costumeira. Se a ação não era iminente, sempre havia tempo para mais alguns minutos de sono.
Pelos gemidos e remexidas ao redor, outros compartilhavam essa opinião.
Acordou alguns minutos depois – o céu visível através da escotilha de ventilação era de um cinza mais claro – com a voz da tenente Delmastro vindo da entrada do
porão do castelo.
– ... onde vocês estão, por enquanto. Fiquem quietos e fora de vista. Faltam uns cinco minutos para a mudança do Vermelho para o Azul, mas estamos suspendendo os
turnos comuns por causa da ação. Vamos mandar o Vermelho para baixo aos poucos e metade do Azul vai subir para substituí-lo. Queremos parecer um brigue mercante,
não um saqueador com tripulação pesada.
Locke esticou o pescoço para olhar por cima das formas sombreadas ao redor. Logo atrás de Delmastro, na penumbra antes do alvorecer, podia ver tripulantes no poço,
esforçando-se para levar vários barris grandes para a amurada de bombordo do navio.
– Barris de fumaça no convés – berrou uma mulher.
– Nada de chamas visíveis no convés! – gritou Ezri. – Nada de fumar! Só luzes alquímicas! Passem adiante.
Minutos se passaram e a luz do alvorecer se intensificou cada vez mais. Mesmo assim, as pálpebras de Locke começaram a pesar de novo. Ele suspirou, relaxou e...
– Aí no convés – soou um berro do topo do mastro de proa –, avisem à capitã que ele tem três mastros e está indo a noroeste por oeste! Velas de gávea!
– Certo, três mastros, noroeste por oeste, velas de gávea! – gritou Ezri. – Como ele está indo?
– Bordada a estibordo, um ponto à popa, talvez.
– Fique atento. O casco ainda está escondido?
– Está.
– No momento em que as saias subirem acima do horizonte, espie e diga o que há embaixo delas. – Ezri voltou ao porão do castelo e bateu com força na antepara ao
lado da entrada. – Equipe do esfregão, de pé. Estiquem as pernas e usem os cabos de bosta, depois voltem aqui para baixo. Depressa. Vamos lutar ou fugir daqui a
pouco. É melhor estar com as tripas em ordem.
Foi menos como mover-se com uma multidão do que ser espremido para fora de um tubo. Locke foi empurrado para o convés, em seguida se esticou todo. Jean fez o mesmo
e se aproximou de Delmastro. Locke ergueu uma sobrancelha; a pequena tenente parecia tolerar a conversa de Jean no mesmo nível em que desdenhava a dele. O importante
era que um dos dois recebesse informações dela, supôs.
– Você acha mesmo que vamos fugir? – perguntou Jean.
– Eu preferiria que não.
Delmastro forçou a vista por cima da amurada, mas mesmo da perspectiva de Locke, o novo navio ainda não podia ser visto do convés.
– Sabe, é de esperar que você não veja nada aí de baixo. Você deveria deixar que eu a colocasse nos ombros.
– Uma piada sobre a altura. Que coisa mais original. Nunca ouvi nada assim em toda a vida. Quero que você saiba que eu sou a mais alta de todas as minhas irmãs.
– Irmãs. Interessante. Um pouquinho do seu passado de graça?
– Merda – reagiu ela com uma careta. – Me deixe em paz, Valora. Vai ser uma manhã movimentada.
Homens voltavam dos cabos de bosta. Agora que a pressão havia se aliviado, Locke subiu a escada e foi para a proa fazer suas necessidades. Àquela altura, tinha suficiente
experiência desagradável para abrir caminho a cotoveladas até o lado de barlavento da pequena travessa de madeira que cruzava o gurupés a apenas um ou dois metros
da ponta: coisas tremendamente desafortunadas podiam acontecer aos que estavam a sotavento em qualquer tipo de clima. Ali havia enfrechates pendendo abaixo como
um lais de verga em miniatura e Locke firmou os pés contra eles enquanto abria o calção. Ondas batiam contra a proa e espirravam na parte de trás das pernas.
– Pelo amor dos deuses. Quando eu iria pensar que mijar poderia ser uma aventura dessas?
– Aí no convés! – soou o grito no mastro de proa um instante depois. – É uma flute. Bojuda e larga. Mantendo o curso e as velas.
– Que bandeiras?
– Não dá para ver, tenente.
Uma flute. Locke reconheceu o termo: um navio mercante de popa redonda com uma proa agradavelmente curva. Boa para carga, mas um brigue como o Orquídea podia dançar
em volta dela à vontade. Nenhuma expedição pirata ou militar usaria uma embarcação assim. Assim que pudessem atraí-la, provavelmente haveria luta.
– Rá – murmurou ele. – E cá estou eu, apanhado com as calças abaixadas.
5
O sol se ergueu atrás do alvo, derramando sua luz e emoldurando a forma baixa e preta num semicírculo carmesim. Locke estava de joelhos junto à amurada de estibordo
do castelo de proa, tentando não atrapalhar. Forçou a vista e pôs a mão sobre os olhos para diminuir a claridade. O céu a leste era uma aura de fogueira em rosa
e vermelho; o mar parecia rubi líquido se espalhando a partir do sol nascente.
Uma fumaça preta e suja, com alguns metros de largura, subia a barlavento do poço do Orquídea Venenosa, uma intromissão agourenta no ar limpo do alvorecer. Delmastro
estava cuidando pessoalmente dos barris de fumaça. O navio navegava sob as velas de gávea com os panos dos mastros principal e de proa enrolados; convenientemente,
esse era ao mesmo tempo um plano lógico para navegar com aquela brisa e a primeira precaução que tomariam se o navio estivesse mesmo pegando fogo.
– Venham, seus imbecis miseráveis – disse Jean, sentado ao lado dele. – Olhem para a esquerda, em nome de Perelandro.
– Talvez estejam nos vendo – retrucou Locke. – Talvez só não liguem a mínima.
– Eles não mudaram nenhuma vela, caso contrário teríamos ouvido os vigias avisando. Devem ser os sacanas menos curiosos, mais míopes e imbecis que já puseram panos
num mastro.
– Aí no convés! – O vigia do mastro de proa parecia empolgado. – Avise à capitã que ele está virando para bombordo!
– A que distância? – Delmastro se afastou dos barris de fumaça. – Está vindo direto na nossa direção?
– Não, ele virou uns três pontos.
– Querem olhar mais de perto – explicou Jean. – Mas ainda não querem pular na cama com a gente.
Houve um grito no tombadilho e, um instante depois, Delmastro soprou seu apito três vezes.
– Equipe do esfregão! Equipe do esfregão, ao tombadilho!
Eles correram para a popa, passando por tripulantes que tiravam arcos bem oleados das capas de lona e os encordoavam. Como Delmastro havia prometido, cerca de metade
do grupo usual se encontrava no convés; os envolvidos no preparo das armas estavam agachados ou escondidos atrás dos mastros e do galinheiro. Drakasha esperava-os
na amurada do tombadilho e começou a falar no instante em que chegaram:
– Eles ainda têm tempo e espaço suficiente para escapar. É uma flute e duvido que possam fugir de nós para sempre em qualquer tempo, mas podem nos dar trabalho.
Acho que demoraria seis ou sete horas, mas quem quer se entediar por tanto tempo? Vamos fingir que somos um brigue de aluguel que está pegando fogo e ver se conseguimos
atraí-los para socializar. Eu lhes ofereci uma oportunidade de provarem seu valor, de modo que vocês são os dentes da armadilha. Vão lutar primeiro. Será bom para
vocês se voltarem. Se não quiserem lutar, entrem embaixo do castelo de proa e permaneçam como a equipe do esfregão até ficarmos quites com vocês. Quanto a mim, acordei
com fome hoje. Pretendo ganhar aquela presa gordinha. Quem de vocês quer lutar por um lugar na minha tripulação?
Os Nobres Vigaristas levantaram os braços junto com todos os que estavam perto. Locke olhou rapidamente ao redor e viu que ninguém recusava a chance.
– Ótimo – disse Drakasha. – Temos três botes com espaço para uns trinta. Vocês vão usá-los. Sua tarefa é parecerem inocentes a princípio; fiquem perto do Orquídea.
Ao sinal, vocês vão partir depressa e atacar pelo sul.
– Capitã – perguntou Jabril –, e se a gente não puder tomá-lo sozinhos?
– Se os números ou as circunstâncias estiverem contra vocês, agarrem-se a qualquer pedaço de convés que puderem. Eu vou levar o Orquídea de costado e prendê-lo com
arpéus. Nada que aquele navio carregue vai aguentar cem pessoas abordando-o.
Um belo consolo para os que já estiverem mortos ou agonizando, pensou Locke. A realidade do que iam fazer só estava sendo percebida agora e ele sentiu uma agitação
ansiosa no estômago.
– Capitã! – gritou um dos vigias do topo do mastro principal. – O navio içou uma bandeira de Talishane!
– Pode estar mentindo – murmurou Jabril. – Blefe decente. Se você for usar uma bandeira falsa, Talisham tem uma boa marinha. E ninguém está em guerra com eles agora.
– Mas não é muito esperto – disse Jean. – Se o objetivo é se proteger, por que não usariam a bandeira o tempo todo? Só alguém com motivo para se preocupar esconde
a própria bandeira.
– É. E piratas também. – Jabril sorriu.
– Del! – chamou Drakasha. – Mande um dos seus barris de fumaça para a amurada de estibordo. Logo à frente da escada do tombadilho.
– Quer fumaça na amurada de barlavento, capitã?
– Uma bela fumaça atravessando o tombadilho. Se eles quiserem bater um papo com bandeiras de sinalização, precisamos de uma desculpa para ficar calados.
O magro mestre de navegação, segurando o timão pouco atrás de Drakasha, pigarreou alto. Ela sorriu e pareceu ter uma ideia. Virando-se para um marinheiro à sua esquerda,
ordenou:
– Pegue três flâmulas de sinalização no baú das bandeiras e ice na popa. Amarelo sobre amarelo sobre amarelo.
– Todas as almas em perigo – entendeu Jean. – É uma mensagem para vir olhar mais de perto, sem joguinhos.
– Achei que era só um pedido de socorro – observou Locke.
– Você deveria ter lido o livro com mais atenção. Três flâmulas amarelas significam que estamos com tanta dificuldade que legalmente vamos lhes conceder direitos
sobre qualquer coisa que não estivermos carregando no próprio corpo. Eles salvam e ficam sendo os donos.
Delmastro e sua tripulação haviam movido um barril de fumaça para junto da amurada de estibordo e o acendido com um pedaço de fósforo de enrolar. Fiapos de fumaça
cinza começaram a subir e se espalhar sobre o tombadilho, perseguindo a nuvem mais escura que subia do lado de sotavento. Na amurada de popa, um par de marinheiros
estava içando três flâmulas amarelas.
– Vigias extras no topo e nos corrimões para ajudar o Caladão! – gritou Drakasha. – Arqueiros, subam um de cada vez. Mantenham a arma abaixada lá em cima; fiquem
fora de vista se puderem e pareçam meigos até que eu dê o sinal.
– Capitã! – berraram de novo os vigias do mastro principal para baixo. – Ela virou para cortar nosso caminho e está acrescentando panos!
– É engraçado como eles ficam generosos quando veem esse sinal – comentou Drakasha. – Utgar!
Um vadrã relativamente jovem, com a cabeça raspada avermelhada de sol e uma barba preta e trançada, apareceu ao lado da tenente Delmastro.
– Esconda Paolo e Cosetta na coberta inferior – mandou a capitã. – Vamos provocar uma discussão daqui a pouco.
– Certo – respondeu ele, e subiu correndo a escada do tombadilho.
– Quanto a vocês – continuou Drakasha, voltando a atenção para a equipe do esfregão –, há machadinhas e sabres junto ao mastro principal. Escolham as armas e esperem
para ajudar a baixar os botes.
– Capitã Drakasha!
– O que é, Ravelle?
Locke pigarreou e fez uma oração silenciosa ao Treze Sem Nome para saber o que iria fazer. A hora da atitude era agora; se não restaurasse um pouco do prestígio
de Ravelle, acabaria como apenas mais um membro da tripulação, excluído devido ao fracasso anterior. Precisava ser respeitado se quisesse realizar qualquer parte
de sua missão. Isso significava um grandioso ato de idiotice.
– É minha culpa esses homens quase terem morrido a bordo do Mensageiro. Eles eram meus tripulantes e eu deveria ter cuidado melhor deles. Gostaria de ter a chance
de fazer isso agora. Quero... o primeiro lugar no barco da frente.
– Você espera que eu deixe você comandar o ataque?
– Comandar, não, apenas subir primeiro pelo costado. O que quer que esteja lá para nos sangrar, que me sangre primeiro. Talvez eu possa poupar quem vier em seguida.
– O mesmo para mim – disse Jean, pondo a mão no ombro de Locke, num gesto um tanto protetor. – Eu vou aonde ele for.
Que os deuses o abençoem, Jean, pensou Locke.
– Se é sua ambição ficar no caminho de uma seta de besta, não vou recusar – replicou Drakasha, ainda que parecendo meio perplexa.
Ela fez um minúsculo gesto de assentimento para Locke enquanto o grupo começava a se dividir e ir para a proa, em busca das armas.
– Capitã! – Delmastro se aproximou, as mãos e os antebraços cobertos de fuligem dos barris de fumaça. Olhando para Locke e Jean, ela acrescentou: – Quem vai comandar
os botes de abordagem, afinal?
– É cada um por si, Del. Vou mandar um tripulante do Orquídea por bote, para segurá-los; o que a equipe do esfregão fizer depois de subir pelos costados é problema
dela.
– Eu quero os botes.
Drakasha encarou-a por vários segundos em silêncio. Estava envolta em fumaça cinza da cintura para baixo.
– Eu não fiz nada quando tomamos o Mensageiro, capitã – completou Delmastro rapidamente. – Na verdade, não me divirto com uma presa há semanas.
Drakasha olhou de relance para Jean e franziu a testa.
– Você está querendo uma indulgência.
– É. Mas uma indulgência útil.
Drakasha suspirou.
– Você fica no comando dos botes, Del. Veja bem, Ravelle terá o que pediu.
Tradução: se ele levar uma flecha destinada a alguém, certifique-se de que seja a destinada a você, pensou Locke.
– A senhora não vai se arrepender, capitã. Equipe do esfregão! Armem-se e me encontrem no poço! – Delmastro subiu correndo a escada do tombadilho, passou por Utgar,
que levava os filhos de Drakasha, cada um seguro firmemente por uma das mãos.
– Você é um sujeito ousado e idiota, Ravelle – disse Jabril. – Acho que quase gosto de você de novo.
– ... pelo menos ele sabe lutar, disso nós sabemos – Locke ouviu um dos outros homens dizer. – Você deveria ter visto quando ele cuidou do guarda na noite em que
nós pegamos o Mensageiro. Pou! Um soquinho e o sujeito ficou dobrado. Hoje ele vai mostrar uma ou duas coisas à gente. Esperem só.
De repente, Locke ficou muito feliz porque já havia mijado tudo que tinha para mijar.
No centro do convés, uma tripulante mais velha estava de guarda junto de pequenos barris cheios com as prometidas machadinhas e os sabres. Jean pegou um par de machadinhas,
sopesou-as e franziu a testa enquanto Locke hesitava diante dos barris.
– Você tem alguma ideia do que está fazendo? – perguntou ele.
– Absolutamente nenhuma – respondeu Locke.
– Pegue um sabre e tente parecer à vontade.
Locke obedeceu e olhou a arma como se estivesse imensamente satisfeito.
– Qualquer um que tenha um cinto, pegue uma segunda arma e enfie no cinto! – gritou Jean. – Nunca se sabe quando alguém vai precisar.
Meia dúzia de homens seguiu seu conselho e ele se aproximou de Locke.
– Fique perto de mim – sussurrou. – Só... me acompanhe e banque o emproado. Talvez eles não tenham arcos.
Delmastro voltou para o meio deles, usando o colete de couro preto e as braçadeiras, além do cinto de armas cheio de facas. Locke notou que as guardas curvas dos
sabres dela eram cravejadas com o que pareciam lascas de Vidrantigo.
– Aqui, Valora. – Ela jogou um colarinho de couro para Jean e levantou o rabo de cavalo para deixar o pescoço totalmente exposto. – Ajude uma moça.
Jean o colocou em volta do pescoço dela e prendeu-o na nuca. Ela puxou-o uma vez, assentiu e levantou os braços.
– Ouçam! Até fazermos qualquer gesto inamistoso, vocês são passageiros ricos e esnobes de terra, que foram mandados nos botes para salvar suas peles preciosas.
Dois tripulantes estavam passando pela equipe do esfregão, distribuindo chapéus finos, jaquetas de brocado e outros atavios. Delmastro pegou um guarda-sol de seda
e enfiou-o nas mãos de Locke.
– Aí está, Ravelle. Isso deve desviar qualquer coisa ruim.
Locke sacudiu o guarda-sol fechado acima da cabeça com beligerância exagerada e recebeu alguns risos nervosos em troca.
– Como disse a capitã, vai haver um do Orquídea em cada bote, para garantir que eles voltem, mesmo que vocês não – explicou Delmastro. – Eu vou levar Ravelle e Valora
no botezinho do Mensageiro que vocês doaram. E você e você. – Ela apontou para Streva e Jabril. – Independentemente de qualquer coisa, nós somos os primeiros a chegar
ao costado e subir.
Oscarl, o contramestre, apareceu com um pequeno grupo de ajudantes carregando cordas e moitões para começar a preparar um equipamento de içar.
– Mais uma coisa – prosseguiu Delmastro. – Se eles pedirem clemência, deem. Se largarem as armas, respeitem isso. Se continuarem lutando, matem na hora. E se vocês
começarem a sentir pena deles, apenas se lembrem do sinal que tivemos de içar para que eles ajudassem um navio que pegava fogo.
6
Vista da água, a ilusão do incêndio parecia perfeita aos olhos de Locke. Agora todos os barris de fumaça estavam acesos; o navio soltava uma fumaça preta e cinza
que quase envolvia todo o tombadilho. A figura de Zamira aparecia esporadicamente, com a luneta captando por pouco tempo o sol antes de desaparecer de novo no escuro.
Um grupo de tripulantes havia arrumado pequenas bombas e mangueiras de lona na meia-nau – junto à amurada, onde pudessem ser vistas – e lançavam jatos d’água, na
verdade apenas lavando o convés.
Locke sentia-se vagamente ridículo com o guarda-sol na mão e uma jaqueta de brocado de prata jogada sobre os ombros como uma capa. Jean e Jabril compartilhavam o
banco de remador da proa, Streva e Delmastro estavam atrás deles e um tripulante muito pequeno chamado Vitorre – pouco mais do que um menino – se agachava na popa
para assumir o bote quando eles abordassem a flute.
O navio tinha as curvas do casco curiosamente redondas e estava em ângulo virado para longe deles, em direção ao norte. Locke avaliou que ele cruzaria o caminho
do Orquídea Venenosa em cerca de dez minutos.
– Vamos começar a remar para lá – anunciou Delmastro. – Eles já devem estar esperando isso.
O bote deles e os dois maiores haviam mantido posição a cerca de 100 metros a sudeste do Orquídea. Enquanto os quatro remadores no bote da frente começavam a levá-lo
para o norte, Locke viu os outros seguirem a deixa, indo atrás.
Foram bamboleando pelas ondas de 30 centímetros, sob o o calor crescente; eram sete e meia da manhã quando haviam saído do navio. Os remos rangiam ritmicamente nos
toletes e agora estavam emparelhados com o Orquídea, o recém-chegado a mais ou menos 800 metros a noroeste. Se a flute percebesse a armadilha e tentasse fugir para
o norte, o navio pirata soltaria panos para voar atrás. Mas, se tentasse escapar para o sul, os botes é que teriam de ficar no caminho.
– Ravelle – chamou Delmastro –, aos seus pés, a torquês. Está vendo?
Enfiado embaixo de seu banco estava um instrumento feio, articulado, com cabos de madeira, que acionavam uma mandíbula de metal.
– Acho que sim.
– Arcos não são o nosso maior problema. A maior encrenca que eles podem causar é se puserem redes-navalhas para impedir a abordagem. Vamos nos retalhar tentando
subir no convés. Você precisará usar essa torquês para abrir uma passagem para nós.
– Ou morrer tentando – completou ele. – Acho que entendi.
– Mas a boa notícia é que é um pé no saco armar redes-navalhas. E eles não vão fazer isso se estiverem esperando mandar botes e receber passageiros. Se pudermos
chegar suficientemente perto antes de revelar nossa intenção, eles não terão tempo de usá-las.
– Qual é o sinal para revelar a intenção?
– Você não vai deixar de ver. Confie em mim.
7
Zamira Drakasha estava junto à amurada de estibordo do tombadilho, tirando uma folga da fumaça. Estudava a aproximação da flute pela luneta; havia uma ornamentação
elaborada no rombudo pique de vante e uma pintura em dourado e preto, um tanto espalhafatosa, ao longo dos costados altos. Isso era bom: se o navio recebia manutenção
de qualidade, provavelmente levava uma carga respeitável e um bocado de dinheiro.
Havia dois oficiais de pé perto da proa, examinando o Orquídea com suas próprias lunetas. Ela acenou de um modo que esperava ser encorajador, mas não obteve resposta.
– Bom, ótimo – murmurou. – Vocês farão suas cortesias daqui a pouco.
As formas pequenas e escuras de tripulantes corriam de um lado para o outro na flute, agora a apenas 400 metros de distância. Suas velas estremeciam, o casco se
alongando na visão de Zamira – será que estavam fugindo? Não, apenas cortando o ímpeto, virando um ou dois pontos a estibordo, querendo chegar perto, mas não perto
demais. Ela podia ver uma equipe de bomba e mangueira trabalhando na meia-nau, lançando um jato d’água para molhar as velas mais baixas da outra embarcação. Muito
sensato, quando se chegava perto de um incêndio no mar.
– Equipe de sinal – chamou ela –, a postos.
– Sim, capitã – respondeu um coro de vozes na parte do tombadilho tomada pela fumaça.
Seus botes cortavam as ondas entre os dois navios. Lá estava Ravelle na frente, com o guarda-sol, parecendo um esguio cogumelo prateado com um gorro branco e mole.
E ali estava Valora, e ali estava Ezri... Maldição. O pedido de Ezri não lhe dera muita escolha além de ceder ou parecer idiota na frente da equipe do esfregão.
Teria de trocar uma palavra com aquela mulherzinha... se os deuses abençoassem Zamira o suficiente para lhe mandar sua tenente de volta com vida.
Examinou os oficiais da flute, que haviam passado da proa para a amurada a bombordo. Sujeitos largos, parecia, um tanto vestidos demais para o calor. Seus olhos
não eram mais os mesmos de 25 anos antes... Será que eles estavam se cutucando mutuamente, olhando mais atentos através das lunetas?
– Capitã? – chamou um membro da equipe de sinal.
– Esperem. Esperem...
A cada segundo, diminuía a distância entre o Orquídea e sua vítima. Eles haviam reduzido a velocidade e virado, mas o sotavento iria trazê-los mais perto ainda...
mais perto ainda. Um dos oficiais da flute apontou, depois segurou o outro pelo ombro e apontou de novo. As lunetas subiram ao mesmo tempo.
– Rá! – gritou Zamira.
Agora não haveria chance de escaparem. Ela sentiu um novo fervor dando força a cada passo e movimento que fazia; sentia metade de seus anos caírem dos ombros. Pelos
deuses, o momento em que eles percebiam como estavam fodidos era sempre maravilhoso. Fechou a luneta, pegou a corneta alto-falante no convés e berrou para toda a
extensão do navio:
– Arqueiros preparados no topo! Todos os tripulantes no convés e ocupando a amurada de estibordo! Tampem os barris de fumaça!
O Orquídea Venenosa estremeceu; setenta marinheiros subiam as escadas saindo das escotilhas, armados e com armaduras, berrando. Arqueiros saíram de trás dos mastros,
ajoelharam-se em suas plataformas de disparo e puseram as flechas nos arcos brilhantes.
Zamira não precisava da luneta para ver os oficiais e tripulantes correndo freneticamente no convés da flute.
– Vamos lhes dar uma coisa que os faça mijar nos calções! – gritou ela, não se incomodando em usar a corneta. – ICEM A BANDEIRA VERMELHA!
As três flâmulas amarelas acima do tombadilho balançaram, depois desceram para a névoa cinza. Do meio do que sobrou da fumaça preta e agitada subiu uma grande bandeira
vermelha, vívida como o sol da manhã pairando sobre uma tormenta.
8
– Com vontade! – gritou a tenente Delmastro. – Com vontade!
Enquanto a bandeira vermelho-sangue erguia-se ao máximo acima da popa do Orquídea e os primeiros membros da horda de tripulantes que gritavam feito maníacos começavam
a apinhar a amurada de estibordo, os três botes aceleraram nas ondas.
Locke jogou o guarda-sol e a jaqueta no mar, só depois lembrando que valiam um bocado de dinheiro. Respirava empolgado, olhando por cima do ombro para o costado
da flute que se aproximava rapidamente, uma superfície íngreme de madeira que se erguia como um castelo flutuante. Santos deuses, estava indo para a batalha. Que
porra estava acontecendo com ele?
Mordeu a parte interna da bochecha em busca de concentração e se agarrou à amurada com força. Maldição, esse não era um gesto magnânimo. Ele não podia se dar a esse
luxo. Respirou fundo para se controlar.
Locke Lamora era pequeno, mas o Espinho de Camorr era maior do que tudo aquilo. O Espinho não podia ser tocado por lâmina, magia ou desprezo. Pensou no Falcoeiro
sangrando aos seus pés. Pensou no Rei Cinza, morto sob sua faca. Pensou nas fortunas que haviam passado por seus dedos e sorriu.
Com firmeza e cautela, desembainhou o sabre e começou a balançá-lo no ar. Agora os três botes estavam quase lado a lado, cortando triângulos brancos de espuma no
mar, a um minuto do alvo. Locke pretendia atacá-lo trajando a maior mentira da sua vida. Poderia morrer em alguns instantes, mas até lá, pelos deuses, ele era o
Espinho de Camorr. Era o Capitão Orrin Ravelle, porra.
– Orquídeas! Orquídeas! – Ele se pôs de pé na proa do bote, impelindo o sabre como se pretendesse abalroar a flute sozinho e abrir um buraco no costado. – Remem
pela presa! Remem por vocês! Sigam-me, Orquídeas! Mais ricos e mais espertos do que todos os outros!
O Orquídea Venenosa saiu do meio da fumaça, deixando um rastro cinzento a partir do tombadilho, como se escapasse de alguma mão fantasmagórica e divina. Os tripulantes
apinhados na amurada gritaram de novo e depois ficaram em silêncio. As velas do navio começaram a tremular. Drakasha estava bordejando com pressa para fazer a embarcação
girar bruscamente a estibordo. Se tivesse êxito, iria se aconchegar a bombordo ao lado da flute, a uma distância de luta de faca.
O silêncio súbito dos tripulantes do Orquídea permitiram que Locke ouvisse pela primeira vez os ruídos que vinham da flute: ordens, pânico, discussões, consternação.
E então, acima de todo o resto, uma voz minúscula e desesperada gritando através de uma corneta alto-falante:
– Salvem-nos! Pelo amor dos deuses, por favor... por favor, venham cá e nos salvem!
– Merda. Isso é meio diferente do que costumamos ouvir – disse Delmastro.
Locke não teve tempo de pensar; estavam chegando ao casco da flute, batendo com força na parede de pranchas molhadas no lado de sotavento. O navio estava um pouco
adernado, criando a ilusão de que iria tombar e esmagá-los. Milagrosamente, havia ovéns e uma rede de abordagem ao alcance. Locke saltou para ela, com o braço da
espada erguido.
– Orquídeas! – berrou, escalando o cânhamo áspero e molhado, numa exultação de medo: – Orquídeas! Sigam-me!
Sua mão esquerda encontrou o convés no topo da rede de abordagem. Trincando os dentes, impeliu ferozmente o sabre para cima, de maneira desajeitada, para o caso
de haver alguém esperando na borda do convés. Então puxou-se, rolou por baixo da amurada – errando a portinhola de entrada por alguns metros – e se levantou cambaleante
e gritando feito louco.
O convés era um caos total, mas não havia ameaça à vista. Não havia redes-navalhas, nem arqueiros, nem paredes de alabardas ou espadas esperando para receber os
invasores. Tripulantes corriam de um lado para outro em pânico. Uma mangueira de incêndio estava abandonada no convés aos pés de Locke como uma cobra marrom, gorgolejando
água do mar.
Um tripulante escorregou nessa poça e se chocou nele, se debatendo. Locke levantou o sabre e o homem se encolheu, erguendo as mãos para mostrar que estavam vazias.
– Nós tentamos nos render – garantiu o tripulante, ofegando. – Nós tentamos! Eles não deixaram! Pelos deuses, nos ajudem!
– Quem? Quem não deixou vocês se renderem?
O homem apontou para o tombadilho elevado do navio e Locke girou para ver o que havia ali.
– Ah, inferno – sussurrou.
Devia haver pelo menos vinte homens idênticos ali. Bronzeados, atarracados, musculosos. As barbas eram bem aparadas, o cabelo que descia até os ombros tinha fios
de contas que chacoalhavam. As cabeças estavam enroladas em tecidos de um verde vivo e Locke sabia, por experiência passada, que o que pareciam mangas escuras cobrindo
os braços eram, na verdade, versículos sagrados, tatuados tão densamente em tinta preta e verde que qualquer traço da pele por baixo se perdera.
Redentores Jeremitas. Maníacos religiosos que acreditavam ser a única salvação possível para os pecados de sua ilha maligna. Eles se ofertavam em sacrifício aos
deuses jeremitas, percorrendo o mundo em grupos de exilados, levando vidas recatadas como monges até que alguém, qualquer um, os ameaçasse.
Seu voto sagrado era matar ou serem mortos quando surgia um conflito; morrer honradamente por Jerem ou exterminar implacavelmente qualquer um que levantasse a mão
contra eles. Todos olhavam com bastante atenção para Locke.
– Os pagãos ofertam uma purificação rubra! – Um Redentor à frente do grupo apontou para Locke e levantou seu porrete cravejado de espetos de latão. – Lavemos as
almas no sangue dos pagãos! MATEM PELA SAGRADA JEREM!
Com as armas erguidas, desceram correndo a escada do tombadilho e partiram para eles, fitando Locke, berrando de maneira insana. Um tripulante tentou sair do seu
caminho e foi jogado para baixo, o crânio se espatifando como um melão sob o porrete do líder, sendo pisoteado pelos outros.
Locke não pôde se conter. O espetáculo daquela morte que se avizinhava ia tão além de tudo que já experimentara que ele soltou uma gargalhada perplexa. Estava apavorado
até o tutano e isso lhe deu uma liberdade súbita, absoluta. Ergueu seu sabre inútil e se lançou num contra-ataque, sentindo-se leve como poeira na brisa, berrando
enquanto corria:
– Venham! Encarem Ravelle! Os deuses mandaram sua perdição, FILHOS DA PUTA!
Ele deveria ter morrido alguns segundos depois. Como sempre, Jean tinha outros planos.
O líder jeremita disparou para Locke, o dobro de seu peso em fanatismo assassino, sangue e luz do sol brilhando nas pontas do porrete. Então, uma machadinha se enterrou
em seu rosto, o cabo se projetando do buraco despedaçado de um olho. O impacto do corpo jogou Locke no convés e tirou o ar dos seus pulmões. O sangue quente espirrou
em seu rosto e no pescoço e ele lutou furiosamente para sair de baixo do Redentor que estrebuchava. O convés ao redor foi tomado de súbito por vultos chutando, pisoteando,
gritando e caindo.
O mundo se dissolveu em imagens e sensações desconexas. Locke mal tinha tempo de catalogá-las à medida que passavam em alta velocidade...
Machados e lanças destinadas a ele se cravando no corpo do líder jeremita. Uma estocada em desespero com seu sabre e o choque do impacto quando ela afundou na parte
desprotegida da coxa de um Redentor. Jean colocando-o de pé. Jabril e Streva puxando outros tripulantes do Orquídea para o convés. Delmastro lutando ao lado de Jean,
transformando o rosto de um Redentor numa pasta vermelha com a guarda cravejada de vidro de um dos seus sabres. Sombras, movimentos, gritos desconexos.
Era impossível permanecer perto de Jean; a pressão de Redentores era muito intensa e o número de golpes que chegavam era grande demais. Locke foi derrubado de novo
por um corpo em queda e rolou para a esquerda, golpeando às cegas, freneticamente. O convés e o céu giravam, até que de repente ele sentiu o chão sumir abaixo.
A grade da principal escotilha de carga não estava no lugar.
Encolheu-se em desespero, arrastando-se para o lado direito para não cair. Um vislumbre do porão do convés principal havia revelado um trio de Redentores. Levantou-se
e foi atacado imediatamente por outro jeremita; aparando um golpe depois do outro, saltou de lado e tentou se afastar da borda da escotilha. Não adiantou: um segundo
antagonista apareceu, a lança encharcada de sangue preparada para ser usada.
Locke sabia que jamais poderia lutar nem se desviar dos dois tendo uma grade aberta atrás de si. Pensou depressa. Quando o ataque acontecera, a tripulação da flute
estava tirando do porão um barril pesado, com diâmetro entre 1,2 metro e 1,5 metro, que agora pairava numa rede acima da escotilha.
Locke golpeou loucamente os dois oponentes, querendo apenas forçá-los a recuar. Então, girou e saltou com toda a vontade. Bateu no barril pendurado com uma pancada
que chacoalhou seu cérebro e se agarrou à rede, as pernas batendo como se estivesse nadando. O barril balançou como um pêndulo enquanto Locke ia até o topo dele.
Dali, conseguiu ter brevemente uma visão razoável da ação. Mais tripulantes do Orquídea afluíam para a luta no canto de bombordo do navio e Delmastro e Jean estavam
pressionando o grupo principal de Redentores para cima da escada do tombadilho. O lado do convés onde Locke se achava era um redemoinho de oponentes embolados: roupas
verdes e cabeças carecas acima de todo tipo de armas.
De repente, o jeremita com a lança tentou acertá-lo e a ponta de aço enegrecido bateu na madeira a centímetros de sua perna. Locke sacudiu o sabre, percebendo que
sua posição não era tão segura quanto ele esperava. Gritos soaram de baixo: os Redentores no porão o tinham visto e pretendiam atacá-lo.
Cabia a Locke fazer alguma coisa louca primeiro.
Pulou, agarrando-se a uma das cordas que suspendia o barril numa talha e se desviou de outro golpe de lança. Não adiantava tentar cortar todas as linhas que vinham
da talha: isso poderia demorar minutos. Tentou se lembrar dos padrões de cordas e moitões que Caldris havia lhe ensinado. Seu olhar percorreu a única corda retesada
que ia da talha até um moitão num canto da escotilha. Ela atravessava o convés, desaparecendo embaixo do amontoado de combatentes, provavelmente até o cabrestante,
e se fosse cortada...
Trincando os dentes, deu um golpe forte na corda, usando a parte da lâmina mais próxima ao punho, sentindo o sabre desfiar o cânhamo. Uma machadinha passou zunindo
perto do seu ombro, a uma distância equivalente à grossura de um dedo mindinho. Atingiu a corda de novo, e de novo, com o máximo de força. No quarto golpe, ela se
rompeu com um estalo e o peso do barril partiu-a ao meio. Montado nele, Locke caiu no porão, com os olhos fechados. Alguém gritou, poupando-lhe o encargo de fazer
isso.
O barril se espatifou com um estrondo enorme. O ímpeto de Locke o fez bater com o queixo na madeira e ele foi jogado de lado, caindo como um amontoado indigno. Um
líquido quente e fedorento jorrou sobre ele: cerveja do barril.
Levantou-se de novo, gemendo. Um Redentor não se movera rápido o bastante e estava esparramado embaixo do barril, claramente morto. Os outros dois tinham sido derrubados
pelo impacto e tateavam grogues à procura das armas.
Locke cambaleou até eles e cortou seus pescoços antes de saberem que ele ao menos estava de pé outra vez. Não era luta, mas apenas trabalho de ladrão, e ele o fez
mecanicamente. Depois, piscou e olhou ao redor, procurando algo com que limpar a lâmina; um hábito antigo e natural que quase o levou à morte.
Um vulto robusto pulou na poça de cerveja ao lado dele, espirrando-a. Era um dos jeremitas que o haviam atacado com a lança e saltara cerca de 2 metros para dentro
do porão. Mas a bebida que jorrava era traiçoeira: o Redentor escorregou e caiu de costas. Friamente resignado, Locke cravou o sabre no peito do homem e arrancou
a lança de suas mãos agonizantes.
– Morto pela bebida – sussurrou.
A luta continuava lá em cima. Por enquanto, ele estava sozinho no porão, com sua vitoriazinha fajuta.
Quatro mortos e ele havia enganado todos, usando a sorte, a surpresa e pura velhacaria para fazer o que seria impossível numa luta comum. O fato de saber que eles
jamais receberiam ou aceitariam misericórdia deveria ter tornado aquilo mais fácil, mas o louco abandono de alguns minutos antes tinha se esvaído totalmente. Orrin
Ravelle era uma fraude, afinal de contas; ele era de novo o velho e simples Locke Lamora.
Vomitou ao lado de uma pilha de lonas e redes, usando a lança para se sustentar de pé, até que a ânsia passou.
– Deuses do céu!
Locke limpou a boca enquanto Jabril e dois tripulantes do Orquídea deslizavam pela escotilha, segurando-se à borda do convés, em vez de saltar. Não pareciam tê-lo
visto vomitando.
– Foram quatro – continuou Jabril. Sua túnica fora parcialmente rasgada acima de um corte raso no peito. – Porra, Ravelle. Achei que o Valora é que matava de medo.
Locke respirou fundo para se controlar.
– Jerome... Ele está bem?
– Estava há um minuto. Eu o vi com a tenente Delmastro lutando no tombadilho.
Locke assentiu, depois fez um gesto para a popa com a lança.
– Cabine de popa. Sigam-me. Vamos acabar com isto.
Levou-os correndo por toda a extensão do convés principal da flute, empurrando tripulantes desarmados e encolhidos para fora do caminho. A porta blindada da cabine
estava trancada e, atrás dela, Locke podia ouvir o som de atividade frenética. Bateu com força.
– Sabemos que você está aí! – gritou, e se virou para Jabril com um sorriso cansado. – Isso parece tremendamente familiar, não é?
– Vocês não vão passar por essa porta! – soou uma voz abafada lá dentro.
– Vamos arrombar investindo com os ombros – falou Jabril.
– Primeiro deixe-me tentar ser terrivelmente esperto – reagiu Locke, e acrescentou, erguendo a voz: – Primeiro ponto: esta porta pode ser blindada, mas suas janelas
de popa são de vidro. Segundo ponto: abra a porra da porta antes de eu contar até dez ou vou mandar matar cada tripulante no tombadilho. Você poderá ouvir aí de
dentro.
Houve uma pausa e Locke abriu a boca para começar a contar. De repente, com os estalos de um mecanismo pesado, a porta se abriu rangendo e surgiu um homem baixo,
de meia-idade, com casaco preto comprido.
– Por favor, não. Eu me rendo. Eu teria feito isso antes, mas os Redentores não deixaram. Eu me tranquei depois que eles me perseguiram até aqui embaixo. Matem-me
se quiserem, mas poupem minha tripulação.
– Não seja idiota – rebateu Locke. – Não vamos matar ninguém que não nos ataque. Mas acho bom saber que você não é um escroto completo. É o comandante do navio,
presumo?
– Antoro Nera, ao seu dispor.
Locke o agarrou pelas lapelas e começou a arrastá-lo para a escada do tombadilho.
– Vamos para o convés, mestre Nera. Acho que cuidamos dos seus Redentores. Que diabo eles estavam fazendo a bordo, aliás? Eram passageiros?
– Seguranças – murmurou Nera.
Locke estacou subitamente.
– Você é a porra de um imbecil tão grande que não sabia que esses sujeitos ficariam loucos na primeira vez em que alguém sugerisse uma luta?
– Eu não os queria! Os proprietários insistiram. Os Redentores trabalham em troca de nada, só comida e passagem. Os donos pensaram... que talvez eles espantassem
qualquer um que buscasse encrenca.
– Bela teoria. Mas só funciona se você anunciar a presença deles. Nós não sabíamos que eles estavam a bordo até que atacaram na porra de uma falange.
Locke subiu a escada arrastando Nera, seguido por Jabril e pelos outros. Emergiram à luz forte da manhã no tombadilho. Um dos homens estava baixando a bandeira da
flute, enfiado em cadáveres até os joelhos.
Eram pelo menos uma dúzia, na maioria Redentores, com os panos de cabeça verdes tremulando e as expressões estranhamente satisfeitas. Mas aqui e ali havia tripulantes
desafortunados e, no topo da escada, um rosto familiar: Aspel, com o peito sangrento destroçado.
Locke olhou ao redor num frenesi e suspirou ao ver Jean aparentemente incólume, agachado perto da amurada de estibordo. A tenente Delmastro estava aos pés dele,
o cabelo solto, sangue escorrendo pelo braço direito. Enquanto Locke olhava, Jean rasgou um pedaço de pano da barra de sua túnica e começou a fazer uma atadura num
dos ferimentos dela.
Locke sentiu uma pontada que era metade alívio e metade melancolia; em geral, era ele que Jean recolhia em pedaços sangrentos depois de uma luta. Afastar-se de Jean
tinha sido uma necessidade surgida numa fração de segundo, no calor da luta. Percebeu que se sentia estranhamente inquieto porque Jean não o havia seguido, implacável
junto aos seus calcanhares, para cuidar dele como sempre.
Não seja um idiota, pensou. Jean teve seus próprios problemas.
– Jerome – chamou ele.
A cabeça de Jean se virou bruscamente e seus lábios quase formaram um “L” antes de ele reassumir o controle:
– Orrin! Você está horrível! Pelo amor dos deuses, você está bem?
Horrível? Locke olhou para baixo e descobriu que quase cada centímetro de suas roupas estava coberto de sangue. Passou a mão pelo rosto; o que achava ser suor ou
cerveja sujou sua mão de vermelho.
– Esse sangue não é meu. Acho.
– Eu já ia procurar você. Ezri... a tenente Delmastro...
– Vou ficar bem – gemeu ela. – Um sacana tentou me acertar com um mastro de mezena. Me deixou sem ar.
Locke viu um dos enormes porretes com pontas de latão caído no convés perto dela e, um pouco além, um Redentor morto com um dos característicos sabres de Delmastro
cravado no pescoço.
– Tenente Delmastro, eu trouxe o comandante do navio – informou Locke. – Permita-me apresentar Antoro Nera.
Delmastro afastou as mãos de Jean e passou se arrastando por ele, para enxergar melhor. Filetes de sangue escorriam de cortes no lábio e na testa.
– Mestre Nera. É um prazer. Eu represento o lado que ainda está de pé. Por mais que pareça o contrário. – Ela sorriu e limpou o sangue acima dos olhos. – Serei responsável
pela apropriação indébita assim que tivermos assumido o controle do seu navio, portanto não me irrite. Por falar nisso, que navio é este?
– Martim-Pescador – respondeu Nera.
– Carga e destino?
– Tal Verrar, com especiarias, vinho, terebintina e madeiras finas.
– Isso e uma porrada de Redentores Jeremitas. Não, cale a boca. Você pode explicar mais tarde. Pelos deuses, Ravelle, você andou mesmo ocupado.
– É a pura verdade, porra – interveio Jabril, dando-lhe um tapa nas costas. – Ele matou quatro deles sozinho no porão. Jogou um barril para cima de um deles e deve
ter lutado com os outros três em seguida. – Jabril estalou os dedos. – Assim.
Locke suspirou e sentiu as bochechas ardendo. Ergueu a mão e passou um pouco de sangue no rosto para disfarçar.
– Bom, não vou dizer que não fiquei surpresa, mas estou satisfeita – comentou Delmastro. – Você não tem condições de cuidar nem mesmo de um barco de pesca, Ravelle,
mas pode comandar equipes de abordagem sempre que quiser. Acho que redimimos mais ou menos metade de Jerem.
– Você é muito gentil – falou Locke.
– Você pode dar um jeito neste navio para mim? Levar os tripulantes dele que estão no convés para o castelo de proa?
– Posso. Ela vai ficar bem, Jerome?
– Ela levou uma pancada e sofreu uns cortes, mas...
– Já passei por coisa pior – retrucou Ezri. – Já passei por coisa pior e sem dúvida dei o troco. Você pode ir com Ravelle se quiser.
– Eu...
– Não me faça bater em você. Vou ficar bem.
Jean se levantou e foi até Locke, que empurrou Nera gentilmente na direção de Jabril.
– Jabril, pode escoltar nosso novo amigo para o castelo de proa enquanto Jerome e eu buscamos o resto da tripulação?
– Sim, vai ser um prazer.
Locke levou Jean para baixo da escada do tombadilho, entrando no emaranhado de corpos na meia-nau. Mais Redentores, mais tripulantes... e cinco ou seis homens que
ele havia tirado da Rocha de Barlavento três semanas antes. Tinha a consciência desconfortável de que todos os sobreviventes pareciam estar olhando-o. Captou pedaços
de conversa: “ele estava gargalhando”; “Vi quando passei pela amurada. Atacou todos sozinho”; “Ele gritou: ‘Os deuses mandaram sua perdição, filhos da puta!’ Eu
ouvi”.
– Nunca vi nada assim – admitiu Streva, cujo braço esquerdo parecia quebrado. – Não parava de rir. Sem medo nenhum, porra.
– Eles estão certos, sabe? – sussurrou Jean. – Já vi você fazer umas merdas corajosas e malucas, mas isso foi... isso foi...
– Foi só maluquice e nenhuma coragem. Eu estava fora de mim, porra, entendeu? Estava me cagando tanto de medo que não sabia o que fazer.
– Mas lá embaixo no porão...
– Eu joguei um barril em cima de um. Outros dois tiveram o pescoço cortado enquanto ainda estavam tontos. O último teve a gentileza de escorregar na cerveja e facilitar
minha vida. Como sempre, Jean. Não sou nenhuma porcaria de guerreiro.
– Mas agora eles acham que é. Você se deu bem.
Encontraram Mal apoiado no mastro principal, imóvel. As mãos envolviam a espada enterrada na barriga, como se tentasse mantê-la em segurança. Locke suspirou.
– Neste momento, tenho o que você poderia chamar de sentimentos dúbios.
Jean se ajoelhou e fechou as pálpebras de Mal.
– Sei o que você quer dizer. – Ele fez uma pausa, parecendo pesar as palavras antes de ir em frente. – Temos um problema sério.
– Verdade? Nós temos problemas? Como assim?
– Essa é a nossa gente. Eles são ladrões. Sem dúvida você também percebe isso. Não podemos entregá-los ao Stragos.
– Então vamos morrer.
– Nós dois sabemos que Stragos pretende nos matar de qualquer jeito...
– Quanto mais tempo nós o enrolarmos, quanto mais perto chegarmos de realizar parte da missão, mais perto estaremos de um antídoto verdadeiro. Quanto mais tempo
ganharmos, maior a chance de ele cometer um deslize... e nós podermos fazer alguma coisa.
– Nós podemos fazer alguma coisa ficando do lado dos nossos. Olhe ao redor, pelo amor dos deuses. Tudo o que esse pessoal faz na vida é roubar. Eles são como nós.
Os mandamentos pelos quais vivemos...
– Não venha me fazer a porra de um sermão sobre o que é certo!
– Por que não? Parece que você precisa...
– Eu cumpri o meu dever com os homens que trouxemos de Tal Verrar, Jean, mas eles e todas essas pessoas... eles são estranhos. Pretendo fazer Stragos chorar e, se
eu puder poupá-los para alcançar isso, pelos deuses, vou poupá-los. Mas, se precisar afundar este navio e uma dúzia de outros para derrubá-lo, vou fazer isso, sem
dúvida.
– Pelos deuses. – Jean suspirou. – Preste atenção no que você está dizendo. Eu achava que eu era um camorri. Você é a pura essência de Camorr. Há um instante, você
estava triste por causa dessas pessoas. Agora seria capaz de afogar todas elas em nome da sua vingança!
– Nossa vingança. Nossa vida.
– Tem que haver outro modo.
– O que você propõe, então? Ficar aqui? Passar algumas semanas alegres nos Ventos Fantasmas e depois educadamente morrer?
– Se for necessário.
O Orquídea Venenosa, sob velas reduzidas, chegou perto da popa do Martim-Pescador, colocando-se entre a flute e o vento. Os homens e mulheres enfileirados na amurada
do Orquídea soltaram três gritos roucos de comemoração, cada um mais alto do que o anterior.
– Ouviu isso? Eles não estão congratulando a equipe do esfregão – falou Jean. – Estão congratulando os companheiros. É isso que somos agora: parte de tudo isso.
– Eles são estra...
– Eles não são estranhos.
– Bom... – Locke olhou para a popa, para a tenente Delmastro, que havia se levantado e assumido o timão do Martim-Pescador. – Talvez alguns deles sejam menos estranhos
para você do que para mim.
– Ei, espere um mo...
– Faça o que tiver de fazer para passar o tempo aqui – interrompeu Locke, com uma carranca –, mas não se esqueça de onde você veio. Stragos é o nosso negócio. Derrotá-lo
é o nosso negócio.
– Passar o tempo? Passar a porcaria do tempo? – Jean inspirou com raiva, fechou os punhos com força e, por um segundo, pareceu a ponto de agarrar Locke e sacudi-lo.
– Pelo amor dos deuses, estou vendo o que está se retorcendo embaixo da sua pele. Olha, você pode se resignar pelo fato de que a única mulher em que você pensa sumiu
há anos. Mas você ficou tão travado nisso, durante tanto tempo, que parece achar que o resto do mundo tem hábitos iguais aos seus.
Locke sentiu como se tivesse levado uma facada.
– Jean, nem tente...
– Por que não? Por que não? Nós carregamos seu precioso sofrimento como a porra de uma relíquia sagrada. Não fale sobre Sabeta Belacoros. Não fale sobre as peças.
Não fale sobre Jasmer, Espara ou uma das tramas que colocamos em prática. Eu vivi com ela durante nove anos, assim como você, e fingi que ela não existe, porra,
para evitar perturbar você. Bom, eu não sou você. Não estou contente por viver como um monge que fez um juramento. Eu tenho uma vida fora da sua maldita sombra.
Locke deu um passo atrás.
– Jean, eu não... eu não quis...
– E pare de me chamar de Jean, pelo amor da porra.
– Claro – disse Locke friamente. – Claro. Se a gente continuar assim, vai acabar estragando o disfarce de uma vez por todas. Eu posso ir lá para baixo sozinho. Volte
para Delmastro. Ela está se agarrando àquele timão para conseguir ficar de pé.
– Mas...
– Vá.
– Ótimo. – Jean se virou para ir, depois parou uma última vez. – Mas entenda: eu não posso fazer isso. Sou capaz de acompanhar você a qualquer destino, e você sabe
disso, mas não posso foder essas pessoas, nem pelo nosso bem. E mesmo que você ache que é pelo nosso bem... também não posso deixar que você faça isso.
– Que diabo isso quer dizer?
– Quer dizer que você tem muito em que pensar.
Jean saiu pisando firme.
Pequenos grupos de marinheiros tinham começado a vir do Orquídea. Utgar correu até Locke com o rosto vermelho de empolgação, conduzindo alguns tripulantes que carregavam
cabos e defensas para ajudar a manter os navios lado a lado.
– Pelos doces Tutanos, Ravelle, acabamos de saber sobre os Redentores! – exclamou Utgar. – A tenente contou o que você fez. Incrível, porra! Um trabalho muito bem-feito!
Locke olhou para o corpo de Mal e observou Jean se aproximando de Delmastro com as mãos estendidas para ajudá-la. Sem se importar com quem via, jogou o sabre nas
tábuas do convés, onde ele se cravou, balançando-se de um lado para o outro.
– Ah, é verdade. Parece que eu venci de novo. Hurra para os vencedores.

 

 

 


CONTINUA