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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MARÉS NEGRAS / Filipe Faria
MARÉS NEGRAS / Filipe Faria

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

No anterior volume das Crónicas foi relatada, entre outras, a baixa que os companheiros sofreram. Babaki, o último dos shakarex, sacrificou-se deforma a permitir que Quenestil e Slayra escapassem dejazurrieh, a cidade eabanoir para a qual a eabanna negra fora levada e que por pouco não os clamou aos três. Desalentados, ambos os eahan empreenderam uma travessia na esperança de encontrarem vivos os seus amigos, enquanto Aewyre e os restantes companheiros lutavam pela sobrevivência nas inóspitas Estepes de Karatai, procurando Kror e enfrentando uma tribo ocarr na sua própria terra. Prevalecendo perante todas as adversidades, incluindo encontros com a progénie do Flagelo, os companheiros acabaram por fazer tréguas com os cavaleiros das estepes, e Aewyre e Kror selaram um pacto de não-agressão mútua até ambos terem cumprido os objectivos de encontrar Aezrel e matar Hazabel, a traiçoeira harahan, respectivamente. Após uma longa viagem para fora de Karatai, o grupo encontrou Quenestil e Slayra em Tanarch, a nação mais próxima de Asmodeon, o seu destino último, e aí algo que estava dormente acordou.

A Sombra agita-se, atiçada pela proximidade de Ancalach, e a sua prole tetra sente o chamamento. Sem o saberem, os companheiros encontram-se cercados em terra de inimigos que aguardam nas trevas e se escondem atrás de fachadas dissimuladas, esperando pacientemente pelo momento certo. Muitos e variados desígnios e atenções se centram neste singular grupo, alheio a tudo menos ao seu propósito de alcançar Asmodeon, e uma grande convergência é iminente naquele que é um dos mais delicados e voláteis pontos de Allaryia.

         Pearnon, o Escriba Crónicas de Allaryia

 

 

 

 

As robustas botas de um homem afundavam-se na neve macia do entardecer, deixando para trás um rasto de pegadas molhadas por entre os pinheiros de ramos vergados pela brancura. O sol era espicaçado pelos cumes alvacentos das montanhas a oeste, raiando a encosta do vale com parcimonioso calor. A Primavera começava por fim a dar de si no Norte, embora não parecesse muito motivada em se fazer sentir nos vales gélidos que o caminhante diariamente calcorreava. Daevin, um Batedor da Fronteira, tinha uma postura rígida como a de um tronco enregelado e o porte de um homem que era o seu próprio pior crítico e mais impiedoso juiz, os preceitos sirulianos que nem após anos no ermo esquecera ou renegara. Alto e espadaúdo, embora adelgaçado pelos rigores e provações da vida que escolhera, com cabelos negros listrados de branco pelo ombro, vestindo uma camisa de cabedal forrada a pêlo de lebre e uma capa verde revestida de variadas peles quentes, Daevin portava uma lança às costas, um arco curto ao ombro e o fruto do seu uso numa mão: uma perdiz branca cujas asas pendiam frouxamente. Os animais principiavam a despertar, sentindo o silente chamamento da Natureza a afoitá-los para a prolificação da espécie, o que era bom, pois o Inverno fora longo e o batedor tivera dificuldades em arranjar comida durante o seu frígido predomínio. Os tempos mais difíceis já haviam passado, mas não seria isso a fazer com que Daevin relaxasse de alguma forma ou se permitisse gozar da vindoura relativa abundância. O seu dever, a sua vida, era a de um infiltrado em terreno hostil, constantemente em perigo, jamais em segurança. Somente aos melhores e mais devotos dos sirulianos lhes era permitido escolher o caminho dos Batedores, o mais arriscado dos mesteres, o mais importante serviço prestado aos seus e a Allaryia. Era também a única forma directa de um Ajuramentado se opor às adormecidas, embora sempre latentes, forças da Sombra, a oportunidade pela qual todos ansiavam de embeber as suas lâminas na carne dos filhos do Flagelo.

 

Apesar de viver no ermo, a cara de Daevin estava impecavelmente barbeada e as lâminas do seu facalhão e machada eram diariamente afiadas com quartzo, que, apesar de deixar sulcos brilhantes no aço, era forçado a usar por ser o único material de que dispunha para amolar as armas. A disciplina siruliana nunca o abandonara, mesmo após ter passado a primavera da sua vida longe da civilização, ou talvez por isso mesmo, pois precisava dela para sobreviver no perigoso território que adoptara como seu. As suas feições eram nobres e altivas, os seus olhos cinzentos e penetrantes, vivos apesar da cor pardacenta, dois orbes de granito polido ladeados por pés-de-corvo e outras linhas cinzeladas pela idade, pelo frio e pelas provações. Era neles visível um cansaço impossível de esconder, mas também uma vontade indómita, um brilho determinado que ofuscava quaisquer sinais de fadiga do corpo ou do espírito. Daevin fora escolhido, e o seu dever era claro. Apenas a morte o impediria de o cumprir.

 

Chegou por fim ao seu acampamento: um buraco cavado na neve a servir de fogão subterrâneo e uma cova em redor de um pequeno pinheiro com um alpendre de ramos cobertos de neve. Daevin ajoelhou-se perante o buraco e, com a sua mão livre e enluvada de pele de toupeira, começou a desentupir os pequenos buracos que serviam como tubos de ventilação, cuja função era fornecer tiragem ao fogo que iria fazer debaixo da neve. Era trabalhoso preparar a comida daquela forma, mas pelo menos o fumo era reduzido, e os rastos que deixaria para trás seriam mínimos, o que era essencial para quem queria passar despercebido em terreno hostil. Sacudindo a mão e pousando a perdiz, o batedor ergueu-se e foi buscar ao seu abrigo gravetos secos que colocou dentro do ”fogão”, polvilhando-os com aparas de casca de árvore. Procedeu a depenar, descabeçar e eviscerar a ave, arrancando-lhe uma perna e um quadril, que meteu dentro de um recipiente de casca de bétula com água, e enfiando o resto na neve. Pendurou o tosco receptáculo sobre os gravetos e pronunciou uma curta frase em Eridiaith, originando uma faísca que cedo ateou pequenas chamas pelas aparas de madeira, pegando fogo aos gravetos. O Eridiaith era uma língua mágica, um dialecto abastardado da Palavra, falado pelos sirulianos e pelos Eahan, e era um dos seus segredos mais bem guardados, capaz de se servir do poder da própria Essência, embora a um grau muito inferior ao daqueles que faziam uso da verdadeira Palavra. Com a tarefa provisoriamente cumprida, Daevin tapou o recipiente com um pedaço de casca e recolheu as penas para isolar o seu leito, pois iria passar mais uma noite naquele local que ainda não chegara a explorar minuciosamente: podia haver sinais, mensagens ou mesmo avisos deixados por outros Batedores, potenciais esconderijos, rastos de drahregs, vestígios de migrações... um sem-número de coisas de importância oscilante, mas todas elas de uma forma ou de outra relevantes para um Batedor. Enquanto o quadril da perdiz cozia, Daevin manteve-se ocupado substituindo com a penugem branca da ave as penas molhadas que protegiam a manta sobre a qual dormia. Finda mais uma tarefa pois assim eram os seus dias definidos, pelo cumprimento de tarefas o homem saiu do seu abrigo e permitiu-se um dos seus poucos e breves momentos diários de relaxamento, contemplando o horizonte ruborizado pelo sol poente e inalando profundamente o ar fresco do vale. Os gravetos crepitavam atrás de si enquanto Daevin pousava as mãos nas ancas e principiava a entoar em voz baixa uma canção em Eridiaith, uma cantiga de paz e sossego que aprendera enquanto recruta e que lhe afagou os sentidos, acalentando-lhe os membros como um balsâmico elixir espiritual. Qualquer fadiga ou cansaço que pudesse ter sentido foram expelidos pela boca numa longa condensação, e o batedor fechou os olhos, deixando-se mergulhar no silêncio crepitante da encosta. Daevin não era servo da Mãe sirulianos serviam apenas Sirulia e não se deixavam reger por nada mais além dos seus votos sagrados mas ao longo dos anos no ermo aprendera sozinho a entrar em sintonia com o que o rodeava, acompanhar o pulsar da terra, a sua respiração, o seu fluxo vital. Assim fez naquele local, um ser isolado no meio de uma entidiante massa de vida que se aprontava para repousar, entrando lentamente numa sonolenta modorra que se prolongaria pela noite fora. O merecido descanso da terra aproximava-se, esperando apenas que o sol se recolhesse...

 

Daevin franziu o cenho. Uma batida desregulada? Não... um tremor... um vibrar constante no solo... passadas? Os olhos do batedor abriram-se, focando o vale, mas nada parecia destoar da serenidade bucólica do local, da vertente calma e queda, do moroso fluir do riacho que cindia as montanhas sobre as quais o sol assentava... porém, pareceu-lhe ver a penumbra da encosta sombria em frente mexer-se, um movimento subtil, quase imperceptível no local do sopé onde o riacho curvava, desaparecendo da vista. Aí, as sombras formigavam, agitadas, indistintas. O siruliano estendeu a mão enluvada em pala sobre os olhos semicerrados de modo a resguardá-los da claridade poente e ver melhor, e o que viu inflamou-lhe o peito.

 

Aves levantaram voo dezenas de passos à sua esquerda, açoitando o ar com asas a soltarem neve, e Daevin virou a cabeça instintiva e bruscamente, sem nada ver. Inclinando o ombro para baixo, fez com que o arco lhe deslizasse pelo braço e torceu o pulso para o agarrar, preparando uma flecha num movimento instintivo. A sua respiração repentinamente acelerada e rítmica saiu-lhe condensada pela boca, e os seus penetrantes olhos dardejaram em redor. Sabia agora que alguém se aproximava; e esse alguém não estava sozinho. A neve arfava com os passos que a pisavam, e Daevin apercebeu-se de que se dirigiam ao fumo e ruídos estalantes originados pela sua fogueira. Ciente da futilidade do gesto, o siruliano correu mesmo assim a chutar neve para dentro do buraco, suscitando um sibilante e vão protesto do fogo, que se apagou. O fumo fora escasso, mas certamente teria destoado no vale deserto, e os passos aproximavam-se, afoitos, cercando-o. Daevin sabia quem dele se acercava, reconhecia muito bem as passadas sonantes de ânsia e antecipação, a marcha de predadores para os quais a caça era um fim em si, os descuidados movimentos de quem sabia ter encurralado a presa para além de qualquer fuga. O Batedor era o veado, não tinha onde se esconder e os lobos não estavam longe.

 

Mas este veado tinha hastes afiadas e, curvando-se furtivamente, correu por entre os pinheiros na direcção de uma das frontes que se aproximavam, mantendo a seta apontada para baixo. O coração retumbava-lhe no peito, todos os seus sentidos estavam agudamente despertos e movia-o um imprudente desejo figadal de enterrar as suas hastes bem fundo na carne daqueles que se aproximavam. Uma pinha estalou seca e sonoramente ao ser pisada a escassa distância do pinheiro coberto de neve atrás do qual Daevin aproveitou para se esconder. Através dos ramos e agulhas, distinguiu um vulto que corria a curta distância, acompanhado de outros que apenas podia ouvir. Não iria esperar que lhe caíssem em cima.

 

O fio do arco vibrou e uma seta singrou, sibilante, perfurando o ombro esquerdo do drahreg, que caiu de lado ao chão devido à força do impacto. Quatro mais estavam à vista e outros tantos moviam-se indistintamente na sua visão periférica, humanóides de tez negra e longos cabelos entrançados, envergando peles e armaduras de couro fervido e malha de ferro. O instante de surpresa permitiu-lhe disparar outra seta, que se alojou na barriga de mais um inimigo, mas a última encalhou em cota de malha, e por essa altura os drahregs já estavam perto de mais para um quarto disparo. Daevin atirou o arco curto ao chão, puxou a lança detrás das suas costas e enristou-a para receber a investida. Dois drahregs atacaram o Batedor de lados opostos, urrando em Olgur e brandindo as espadas de lâmina larga, e os seus companheiros estavam perto. Esporeando o ar com a lança, Daevin deixou a sua guarda direita aberta para que um drahreg o atacasse enquanto mantinha o outro à distância. O idiota assim fez, e o Batedor girou em si, virando a extremidade grossa da lança para o drahreg que ameaçara e orientando a ponta para a barriga do que o atacara, furando couro fervido, carne e entranhas. O companheiro do moribundo não se deixou intimidar e tornou a atacar, mas Daevin passou por baixo da lança, agarrando-a pela ponta, e a espada do drahreg partiu a haste, originando um urro de agonia do seu congénere e deixando o batedor com pouco mais que um pau na mão.

 

Daevin não precisou de mais nada para partir os dedos do drahreg ao interceptar-lhe um golpe subsequente e tombando-o com uma sonora cacetada na nuca. Enquanto um inimigo baqueava de cara na neve e outro se contorcia enrolado no chão, agarrando a haste da lança cuja ponta lhe incendiava as vísceras, outros dois se aproximavam com mais uns quantos atrás de si, rejubilando com o derramar de sangue. Daevin desembainhou o seu facalhão e machada e enfrentou, temerário, a desigual investida. O primeiro tencionava fender-lhe a cabeça, porém o batedor desviou o golpe com a cunha e cabo firme da sua machada e retribuiu com um varar o seu facalhão no estômago do drahreg, finalizando com uma machadada nas costas que lhe despedaçou a coluna. Rodopiando em frente, Daevin deixou o morrente para trás e desviou com o facalhão o corte que o visava, trazendo então a machada num arco descendente de encontro à fronte do drahreg, escachando-lha. Com um pontapé e um violento puxão, o humano arrancou a cunha do crânio do adversário, que caiu vertendo sangue e fluidos cranianos da fenda na testa. Cruzando ambas as armas, Daevin virou-se e aparou uma espadeirada de um outro drahreg vindo do seu flanco, empurrando a arma para baixo com lâmina e cunha e passando-lhe de seguida o gume do facalhão pela garganta negra. Sangue quente respingou-lhe a face afogueada e urros de drahregs vindos de trás encheram-lhe os ouvidos. Uma lâmina evitada com uma passada lateral rasgou o braço do drahreg que gorgolejava, agarrado à garganta, e quem a empunhava viu o seu controlo contestado pela cunha da machada que nela se enganchou. Daevin torceu o pulso e forçou o adversário a compensar, desequilibrando-se na tentativa de libertar a arma e criando uma aberta que o humano foi rápido a aproveitar, empurrando-lhe a ponta do facalhão debaixo do queixo pela boca até ao cerebelo. Uma dor lancinante ardeu atrás da perna do batedor, dobrando-lhe o joelho, e Daevin soube que fora atingido. O breve vislumbre que se permitiu ao seu ferimento revelou um farpão que fora arremessado pelo drahreg que agora corria na sua direcção, prestes a arrojar outro dardo. Com um possante arremesso, a machada do humano guinou até à cara do adversário, arrancando-lhe os pés do chão com o violento impacto e deitando-o por terra na qual ficou, vasquejando de costas arqueadas com a cunha embebida na cabeça.

 

Desarmado, Daevin viu mais drahregs correrem por entre os pinheiros na sua direcção, revoltos e sedentos de sangue. O local era demasiado exposto, nunca os conseguiria enfrentar a todos. Arrancando o doloroso farpão da coxa tensa, que soluçou um quente jorro vermelho, o siruliano virou as costas aos atacantes e principiou a ”correr tropegamente pela encosta abaixo, com os uivos dos seus perseguidores a morderem-lhe os calcanhares. Uma trompa soou, um lamento ominoso e sonoro a ditar a sua sentença de morte. Pequenos vultos negros subiam a vertente na sua direcção e outros corriam por ela abaixo a alguma distância a seu lado, apertando o cerco. O chofre de um objecto arremessado fez-se sentir ao seu ouvido, mas o siruliano ignorou-o e aos que se lhe seguiram em rápida sucessão, acompanhados de praguejos, urros e berros. A adrenalina que lhe corria nas veias tolhia-lhe a dor na parte posterior da coxa, cujos músculos haviam sido perfurados, mas não impediu a perna de ceder com o esforço, o que fez com que o batedor caísse contra um pinheiro, cujos ramos lhe arranharam a cara enquanto passava através dele, vergando o tronco e rebolando descontroladamente pela encosta abaixo de encontro a uma árvore mais sólida que o reteve bruscamente. Atordoado, Daevin ergueu-se, escorregando e deslizando às cambalhotas para baixo apesar de se tentar apoiar no farpão, e ao conseguir, por fim, parar, viu que vários drahregs se aproximavam, afoitados pelo soar da trompa, subindo a largas passadas o sopé, enquanto os seus companheiros praticamente patinavam pela encosta abaixo. Avaliando as suas probabilidades, o siruliano soube que apenas na zona mais arborizada da base da montanha poderia sequer considerar a hipótese de sobreviver, o que o levou a seguir em frente, descendo na diagonal em direcção aos pinheiros. Os algozes que subiam já estavam próximos o suficiente para que o batedor lhes conseguisse ver os olhos vermelhos, e apercebeu-se de que o iriam interceptar a meio do caminho se continuasse a seguir a sua trajectória, pelo que optou por uma abordagem diferente. Apelando a toda a força da sua perna boa, saltou como um bode da montanha, aterrando com todo o seu peso em cima de um drahreg mais ousado e impulsionando-se para longe dele com as pernas, empurrando-o para trás e contra alguns dos seus companheiros. Completamente desequilibrado, o siruliano caiu ele também e tornou a rebolar pela neve, lesionando as costelas ao tentar manter um aperto firme no cabo do farpão, a sua única arma. Quando conseguiu, por fim, controlar a sua descida, Daevin ergueu-se desajeitadamente, esbofeteando a neve para fora do cabelo e da cara de modo a poder ver os seus agressores. Não pôde deixar de reparar no rasto de sangue que deixara pela encosta e que os drahregs espezinhavam, e mesmo com a dor tolhida pela adrenalina, o Batedor sentia o calor húmido que lhe escorria pela perna abaixo, calor esse que o ia abandonando gradualmente. Rilhando os dentes, Daevin bradou uma exclamação belígera em Eridiaith e, apesar de não pararem, os drahregs que estavam prestes a cair-lhe em cima vacilaram por um instante que o Batedor não desperdiçou. Varreu as pernas de um inimigo do chão, derrubando-o, e cravou a ponta do farpão na barriga de outro, calcando a cabeça do que tombara enquanto o fazia. Um terceiro ainda oscilou desajeitadamente a sua espada curva, mas Daevin evitou o golpe, baixando-se e, acompanhando o movimento, deixou que o ímpeto da descida fizesse com que o drahreg esbarrasse e passasse por cima de si. O siruliano baixou-se e crispou os dedos no punho da espada embainhada do drahreg cuja cabeça pisoteara, pulando para trás de modo a evitar uma espadada e desembainhando a arma ao mesmo tempo. Brandindo a cruel lâmina com as duas mãos, o Batedor bateu-se brevemente contra dois adversários, atingindo um com uma finta alta seguida de um corte baixo no joelho, bloqueando o golpe do outro com uma parada dura na qual aproveitou a proximidade para agarrar o pulso do adversário, torcendo-lho bruscamente. O drahreg uivou e arqueou as costas, deixando-se vergar pela dor e convidando a ponta da espada do siruliano para o seu pescoço exposto. Antes que pudesse libertar a arma da garganta do moribundo, um corpo abateu-se pesadamente sobre Daevin, levando-o consigo a rebolar pela encosta abaixo uma vez mais. O fedor azedo do drahreg encheu-lhe as narinas, e a sua boca ficou tapada por cabelos ensebados enquanto o mundo andava às voltas e uma voz rouca e vil, grunhia pela sua morte. Algo frio e afiado enterrou-se no flanco do Batedor. Agindo puramente por instinto, o siruliano conseguiu agarrar a cabeça do adversário com as duas fortes mãos e, aquando de uma cambalhota de costas, partiu-lhe o pescoço. O curto trajecto terminou em dor quando Daevin baqueou sobre o punhal cravado no flanco, sentindo o gume roçar-lhe uma costela. Tirando o drahreg desajeitadamente de cima de si, o Batedor crispou os dedos no punho do punhal, puxando-o com um brusco grunhido, pois o gume da lâmina tinha falhas que agiram como farpas na sua carne e pele. Agarrando a pequena arma pelo pomo, Daevin arremessou-a contra o inimigo mais próximo, atingindo-o em cheio na traqueia e virou as costas aos que vinham atrás dele, continuando a sua cambaleante descida, empurrando ramos de pinheiros para fora do seu caminho. Já ouvia a água a correr; estava perto do riacho, mas o soar da trompa e os urros perseguiam-no e naquele momento o siruliano soube que não conseguiria escapar. As passadas e os arquejos de um drahreg atrás de si deixavam bem claro que estava a abrandar fatalmente e que a sua hora se aproximava.

 

O Batedor chegou por fim ao riacho, mas não teve sequer tempo de se virar ou olhar em redor antes que o seu perseguidor lhe saltasse para as costas, caindo com ele dentro da água rasa, cujo frio lhe queimou a cara, alastrando-se através da gola pelo peito abaixo. Unhas fincaram-se-lhe no couro cabeludo e duas mãos grosseiras empurraram-lhe a cara contra os seixos do rio, mantendo-lhe a cabeça dentro de água. Instintivamente, a mão direita de Daevin ergueu-se e procurou algo, encontrando uma nuca e cerrando os dedos em cabelo entrançado. A esquerda foi de imediato ao seu encontro e ambas envolveram a nuca do drahreg num possante amplexo, começando a puxar-lhe a cabeça. O seu adversário resistiu, empurrando a cara do Batedor para baixo, e os membros de humano e drahreg tremeram por breves instantes, mas a força do siruliano acabou por provar ser superior e o seu oponente cedeu, indo com a cara de encontro às próprias mãos, esborrachando o nariz contra elas. Daevin estrebuchou, batendo na água com braços e pernas antes de se conseguir erguer, vacilante, e o drahreg fez o mesmo, cambaleando para trás com uma mão no nariz e a outra freneticamente à procura do punho da espada. O Batedor baixou-se e pegou num pesado calhau enquanto o seu adversário se distanciava, cego de lágrimas e dor. Quando investiu, o drahreg golpeou-o

desastradamente e a lâmina vibrou agudamente contra a pedra molhada. Daevin pontapeou o inimigo no estômago, o que fez com que este se curvasse, e trouxe o calhau com ímpeto para baixo, partindo-lhe o crânio e caindo com ele. A força do Batedor estava a esvair-se-lhe pela perna, mas o contacto com a água gelada manteve os seus sentidos despertos e apressou-se a apoderar-se da espada do adversário morto, erguendo-se. Podia ouvir os restantes drahregs a aproximarem-se, incitados pelo mugir da trompa. O siruliano olhou em redor, avaliando as suas opções, e soube que estas haviam diminuído drasticamente quando viu o que descia pelo vale, lastrando como um edema na brancura do sopé.

 

Um exército marchava a passo acelerado na sua direcção, as suas fileiras entusiasmadas com a trompa que parecia descer pela encosta abaixo. Fileiras. Desde a Guerra da Hecatombe que Daevin não via tantos: drahregs negros e terríveis, armados de farpas e aço cruel; catervas de pequenos e pardos ulkekhlens numa correria desenfreada, tentando evitar serem pisoteados, arrastando carretas de mantimentos e equipamento; enormes e massivos ogroblins, derribando todos para fora do seu caminho.

Daevin soube então que não podia correr mais. Não correria mais.

Morreria ali.

 

Tomada esta decisão, o siruliano pegou com a mão livre a um saquete que tinha preso ao pescoço por uma tira de couro e puxou, partindo-a. Com os dentes, tirou o que sobrou da tira e abriu o invólucro, despejando as folhas de teixo secas e pulverizadas que continha para dentro da boca. Iria morrer lutando, mas mesmo morto causaria baixas nas forças do Flagelo, pois sabia bem o que drahregs faziam com os corpos dos seus inimigos... Mastigando, o Batedor foi incapaz de evitar uma careta devido ao sabor amargo do suco venenoso, que teve dificuldade em engolir devido à secura da sua garganta. Drahregs irromperam dos pinheiros, urrando pelo seu sangue. Calmamente, o Batedor colheu um pouco de água com a mão e levou-a à boca, engolindo. As botas dos drahregs chapejaram no riacho. Brandindo a espada serenamente, o siruliano recitou a elegia dos caídos na batalha, sentindo o veneno a acalentar-lhe o estômago.

 

Eis chegada a minha hora; aparou o golpe do primeiro adversário e girou em si, talhando-lhe as costas Irmãos, de vós me despeço; sem sequer olhar, impeliu a ponta da lâmina para trás, enterrando-a no ventre de outro Todas as minhas faltas; a ponta de uma lâmina puncionou-lhe a ilharga Todos os erros que cometi; oscilando a espada com as duas mãos, decapitou o drahreg que o ferira Atenuo agora com a minha vida; desviou uma estoqueadura, que mesmo assim lhe lacerou o braço a elevado preço vendida à Sombra; estocou em frente, penetrando a defesa e o peito do seu algoz Por Sirulia, por Allaryia; uma possante varredela sua retiniu nas espadas de quatro oponentes, afastando-os, e Daevin caiu de joelhos Pela memória de Sirul...

 

Um urro, e uma lâmina cruel ceifou-lhe a face.

O seu corpo iria ser profanado e devorado.

O veneno mataria muitos mais.

Cumprira o seu dever.

 

Os punhos de Aewyre bateram ruidosamente na mesa sobre a qual seguidamente se inclinou, apoiando-se neles. Sentado à sua frente estava um homem baixo e grisalho, com um afilado bigode branco debaixo de um nariz largo e que sobre uma beca vermelha envergava um manto azul, no qual estava bordado o símbolo de Bellex, um punho cerrado unido a uma mão aberta. O legista estivera a anotar as respostas ao interrogatório com uma pena e o acesso de fúria do jovem causara uma rasura no pergaminho, o que fez com que a mão do homem congelasse em pleno ar e os seus olhos papudos encarassem friamente os de Aewyre.

 

O que é que você ainda quer saber? Eu já lhe disse tudo. A voz do jovem estava regular, mas notava-se nela um certo tremor que fez com que os dois guardas vestidos de cota de malha postados à porta dessem dois passos em frente e levassem as mãos aos bordões.

 

O legista ergueu a mão que empunhava a pena, assegurando os homens de que não seria necessário interferirem. Ainda. A sala de interrogação na qual se encontravam era pequena, mobilada apenas com a mesa na qual se sentava e iluminada pela luz entrecortada da janela gradeada atrás das suas costas. Os dois guardas seriam rápidos a acudi-lo caso fosse necessário.

 

Senhor Tuorin Aewyre insistira em que os companheiros usassem nomes falsos para si, para a Lhiannah e para o Allumno, peço-lhe que se porte com civilidade perante a presença de um legista de Bellex. Existem certas discrepâncias nos depoimentos que os seus companheiros prestaram e que eu devo esclarecer...

 

Aonde é que você quer chegar? Eu já lhe disse que estávamos na estalagem e fomos atacados! Não, nunca estivemos em Val-Oryth! Não, não conhecíamos os agressores! Não, não falámos com ninguém na cidade a não ser com os guardas do portão sul, uma vendedora de tecidos, um barbeiro e o estalajadeiro...!

 

Segundo o senhor Mãosdelã, também estabeleceram contacto com um apotecário no Distrito do Mercante... lembrou o legista, folheando calmamente os relatórios à procura do interrogatório do burrik. Falava Glottik fluentemente, o que pelo menos facilitava a comunicação entre ambos.

 

Porra para isto! explodiu Aewyre, varrendo os objectos da mesa e agarrando o oficial pelos colarinhos com as duas mãos. Nós fomos atacados, a minha amiga quase morreu e ainda não sei se vai sobreviver ou não! E você vem-me com estas...?!

 

Quatro mãos agarraram o guerreiro pelos braços e puxaram-no, afastando-o do legista e cingindo-o num amplexo refreador. Aewyre resistiu instintivamente, mas não forçou ao ponto de os guardas se virem forçados a subjugá-lo.

 

Senhor Tuorin disse o legista com uma calma glacial, ajustando o colarinho com dedos curtos e grossos, o que acabou de fazer é motivo para encarceramento imediato nas masmorras. Encontra-se no Cenóbio da Equidade, numa santa casa de nosso senhor Bellex, não num estabelecimento de ócio.

 

Aewyre permaneceu tenso, estremecendo ao libertar a energia que ficara por soltar, mas bastou-lhe imaginar os insultos que Lhiannah lhe dirigira caso tivesse presenciado o seu acesso de raiva para se acalmar.

 

Posso pedir-lhes que o soltem, ou devo mandá-lo prender, senhor Tuorin? O guerreiro exalou, relaxou e acenou afirmativamente com a cabeça. O legista olhou para os guardas, fez o mesmo com a sua e os homens largaram o jovem cuidadosamente. Sente-se.

 

Aewyre assim fez, recostando-se e enclavinhando os dedos, suspirando.

 

Eu compreendo a sua situação, senhor Tuorin, e é só por isso que ainda se encontra nesta sala de interrogatório e não numa masmorra. É óbvio que foram atacados e que, pelo menos no evento que discutimos, o senhor e os seus amigos foram vítimas. O que não nos impede de tentarmos aprofundar o assunto e descobrir a sua causa... O legista folheou os relatórios, encontrou o que procurava e, após murmurar as formalidades, leu-o em voz alta: Em Vitanan, ao terceiro dia de Aticus do ano de 4029, os quinze indivíduos pertencentes ao grupo de rua apelidado de ”o bando do Ruinen”, com o qual o proprietário do estabelecimento se encontrava endividado, atacaram os interrogados. Avistam cinco estrangeiros armados na estalagem e, abrindo hostilidades sem qualquer razão aparente, segundo os testemunhos dos interrogados e o do proprietário do estabelecimento, atacam. A meio da pugna, surgem pelas janelas seis indivíduos armados que procedem a atacar indiscriminadamente os combatentes com intenções assassinas. Entretanto, no andar superior, um agressor não identificado ataca Aeren Tuorin, que é acudido por Lhianah Syndar, que por motivos de incapacidade física não pôde prestar depoimento. O agressor, após ferir gravemente Lianah Syndar, é atacado por Aeren Tuorin e foge pela janela, após o qual o lesado corre a acudir os seus companheiros. Não se registaram sobreviventes de nenhum dos grupos que atacaram o estabelecimento, e dos seis alegados intervenientes nada mais sobrou que ossadas decompostas no piso... O legista ergueu as sobrancelhas e pousou o relatório, descansando as mãos sobre a barriga e recostando-se à cadeira. Como vê, senhor Tuorin, a situação não é assim tão simples como gostaria de a fazer parecer, razão pela qual a guarda de Val-Oryth deixou este caso a nosso encargo.

 

Aewyre nada disse, embora tivesse vontade de atirar à cara uio legista o prosaico facto de que o caso fora entregue ao templo não pelas suas complicações legais, mas porque não havia queixosos que pudessem levar à cobrança de uma coima de qualquer espécie da qual a guarda pudesse colher dividendos... o que mais o apoquentou foi o facto de já se encontrarem em Aticus. Mais três meses e faria um ano desde a sua partida de Ul-Thoryn; já passara assim tanto tempo?

 

Temos quinze mortos, seis esqueletos putrefactos, um agressor... não identificado havia suspeição na voz do homem e sete estrangeiros... peculiares, se me permite dizê-lo. Compreende a minha posição?

 

Perfeitamente... despertou o jovem.

 

Os depoimentos coincidem, embora o senhor Anthalos se tenha referido à sua companheira enferma como ”Lhiannah” Syndar...

 

O senhor legista deve ter ouvido mal apressou-se o guerreiro a alvitrar.

 

Perfeitamente possível... aceitou o homem sem grandes reservas, esfregando o queixo enquanto estudava Aewyre. Bom, não tenho nenhuma razão forte para o manter e aos seus companheiros retidos. Deduzo que permanecerão nas Alas da Convalescença? perguntou ainda, referindo-se ao templo de Acquon.

 

Sim respondeu o jovem, erguendo-se.

 

Durante quanto tempo?

 

Até a minha amiga Lhianah recuperar.

 

Muito bem. Requisitaremos a sua presença quando tal se justificar. Depois tratarei de enviar um delegado ao templo para que o senhor Taramon e a senhora Slayra prestem depoimento. As melhoras para a sua companheira desejou o legista, dispensando Aewyre com um gesto da mão e tornando a focar a sua atenção nos relatórios.

 

O guerreiro retirou-se com uma curta vénia e um dos guardas abriu-lhe a porta com um olhar pouco amigável, acompanhando-o com o seu colega até à sala na qual os restantes companheiros se encontravam.

 

Tiveste sestro, siruliano opinou a meio do corredor em Leochlan sem sequer olhar para o jovem. Agressão a um legista é uma coisa gravosa. Eu seria mais cuidoso.

 

Aewyre olhou de lado para o homem. Sobre a sua túnica de cota de malha, vestia com óbvia dedicação um brial azul com o símbolo de Bellex nela bordado. Estava apenas a ser zeloso, embora também não parecesse nutrir grandes amores por sirulianos, tal como grande parte dos tanarchianos que até agora encontrara. Resignado, o guerreiro limitou-se a acenar com a cabeça. O corredor que percorriam era sobriamente iluminado por tocheiras de ferro em forma de uma mão aberta, que sustia um cabaz dentro do qual ardiam brasas, unida a um punho que crispava os dedos numa barra horizontal afixada à parede, decorada com gravuras em relevo de cenas obviamente jurídicas e alegorias a uma vida ordenada e bem regulamentada. Um devoto murmúrio oratório ouvia-se como ruído de fundo, mesclando-se aos passos e às vozes isoladas que pareciam pregar às pedras do Cenóbio da Equidade.

 

Aewyre nada tinha contra o deus da justiça; sempre estivera de acordo com o preceito de que regras e leis eram necessárias para a vida civilizada em comunidade, mas por vezes os clérigos de Bellex que se auto-intitulavam cenobitas exageravam e mais pareciam pretendentes a tiranos, com a obsessão de controlar e regimentar tudo o que os rodeava e por vezes para além disso. Os seus serviços como juizes eram incontestavelmente úteis, pois poucos se dedicavam com tal convicção ao caminho da verdadeira equidade imparcial, isolando-se do mundo como autênticos ascetas, estudando as leis sobre as suas mais variadas formas e a evolução das mesmas, despindo-se de todos os preconceitos e devotando-se de corpo e alma à justiça como um fim em si. Contudo, o préstimo mais vantajoso que providenciavam a reis e regentes era aquele que os laicos prestavam na forma da vigilância das comunidades. Com a excepção do ocasional pedido de apoio monetário, os laicos de Bellex poupavam uma considerável quantia em ouro a monarcas, pois subsistiam dos donativos dos próprios cidadãos e, tendo sido criteriosamente seleccionados entre os voluntários do cenóbio, cumpriam o seu dever com brio e rigor. Naturalmente, haveria sempre uma guarda da cidade mantida pelo soberano, mas o serviço prestado pelos laicos de Bellex era mesmo assim muito vantajoso para a segurança da comunidade e para os cofres de quem sobre ela presidia.

 

O corredor abriu-se numa antessala fria e austera, predominantemente cinzenta nos seus tons, decorada com um singelo escudo pendurado com o símbolo de Bellex nele embutido, tocheiras idênticas às do corredor, um mosaico que representava uma balança e assentos de pedra na parede para quem aguardava, neste caso os companheiros de Aewyre, que se ergueram assim que o jovem entrou na câmara. Apenas Allumno, Quenestil e Taislin o haviam acompanhado ao cenóbio para prestarem os seus depoimentos; Worick havia-se recusado a sair de perto da Lhiannah e Slayra dera veementes mostras de vontade de ficar com o thuragar e a princesa, pelo que teriam de prestar as suas declarações mais tarde. O mago tinha a testa cingida por um lenço à laia de ligadura de modo a tapar a gema e parecia aliviado por Aewyre não ter armado nenhum escândalo, o eahan mostrava um certo desconforto por se encontrar confinado na sala e o cabisbaixo burrik continuava taciturno.

 

Vamos? perguntou, e todos acenaram afirmativamente com as cabeças, obviamente sem vontade de discutirem as suas experiências com os laicos de Bellex.

 

Todos foram seguidamente conduzidos à entrada do complexo, que constituía uma dependência do Cenóbio no qual se realizavam as menos consagradas tarefas como interrogar e reter suspeitos. Um laico encontrava-se detrás de um balcão de pedra à entrada e, ao ver os companheiros, começou de imediato a remexer nos objectos que se encontravam aos seus pés, apresentando o facalhão de Quenestil, o bastão de Allumno, quatro punhais de Taislin (três ainda se encontravam em posse do burrik, escondidos entre as suas roupas) e a esguia espada com ponta em forma de diamante de Lhiannah. Ao entregar esta a Aewyre, o laico franziu a testa e ergueu um intrigado sobrolho como se perguntasse: ”Que faz um matulão destes com uma espadinha assim?” O guerreiro ignorou a expressão jocosa na cara do homem e embainhou a elegante lâmina com o pomo em forma de rosa. Achara por bem deixar Ancalach no templo de Acquon, pois previra que seriam obrigados a deixar as armas à porta do Cenóbio e naquela cidade não confiaria a espada do seu pai ao cuidado de ninguém que não os seus amigos.

 

Temei o punho e sede dignos da palma despediram-se os laicos que os haviam acompanhado, exibindo os respectivos punhos defronte das suas faces e virando as palmas de seguida na direcção dos companheiros.

 

Um bom dia para os senhores também. Empenhar-nos-emos na tentativa de um comportamento recto e íntegro retribuiu Allumno diplomaticamente, indicando aos companheiros que saíssem, sendo obsequiado sem qualquer hesitação pela parte destes.

 

Quando a porta se fechou, ambos os laicos trocaram olhares duvidosos, alheios aos comentários chistosos que o seu confrade proferia acerca do tamanho do guerreiro e da espada que este usava.

 

Os companheiros calcorrearam rapidamente o pátio pavimentado com tábuas do Cenóbio e enveredaram pelas ruas lamosas de Val-Oryth, ansiosos por se afastarem do edifício e dos seus inquiridores ocupantes. Não abrandaram o passo até as casas os ocultarem das vigilantes janelas do Cenóbio, que pareciam observá-los, perseguindo-os como se sondassem uma culpa oculta. A cidade estava no pico da sua actividade diária, com o sol primaveril directamente acima das cabeças dos azafamados transeuntes, iluminando os largos arruamentos e acalentando a húmida lama espezinhada. Pairava na rua um odor a terra molhada, mesclado aos aromas de comida cozinhada, dejectos urbanos e suor humano tão comuns às vias mais agitadas das grandes cidades. Os companheiros ainda não haviam arranjado tamancos e as suas botas estavam completamente enlameadas, e as calças salpicadas de imundície a condizer com a aparência geral de cada um: Aewyre tinha quatro arranhões emplastrados no meio do restolho de barba por fazer, Allumno não fazia a sua havia semanas, Quenestil tinha a pele vermelha e o cabelo pesado de sebo, e a cara de Taislin estava enodoada de sujidade. Tinham todos um aspecto miserável e sem dúvida afiguravam-se como indivíduos a evitar aos olhos de qualquer cidadão ordeiro, o que lhes permitiu atravessarem as apinhadas ruas com relativa facilidade. Aewyre ignorava os olhares hostis que lhe eram dirigidos e os comentários decerto pouco lisonjeiros que eram proferidos em Leochlan nas suas costas, mas mesmo sem o seu aspecto lastimoso não teria como evitar que as atenções dos pedestres recaíssem sobre si, pois era bem mais alto que boa parte da multidão, e tanarchianos não eram particularmente baixos. Assim que avistou uma viela, puxou Allumno pelo braço, indicando-lhe o escuso beco com um aceno da cabeça e dirigindo-se para lá. O mago chamou a atenção de Quenestil e Taislin, e os três seguiram o jovem guerreiro que haviam eleito como líder pela escura ruela adentro. Um esgalgado gato cinzento assanhou-se, bufando e cavalgando para longe dos intrusos com a cauda ultrajadamente entufada, sobressaltando-os. Aewyre suspirou e encostou-se à parede, cruzando os braços e fitando os seus companheiros com o lado arranhado da face.

 

Como é que foi? perguntou.

 

Allumno encolheu os ombros, apoiando-se no bastão.

 

Tão bom quanto seria de esperar; um inquérito conciso e fluido...

 

Usaste os nomes falsos?

 

Naturalmente... respondeu o mago secamente, ajustando o lenço na sua testa.

 

Os olhos do jovem dirigiram-se a Taislin, cujas felinas orbes piscaram.

 

Disse tudo o que tu pediste.

 

Acenando com a cabeça, Aewyre fitou Quenestil, que estava a estranhar o interrogatório.

 

Disse-lhe o que nós tínhamos combinado no templo de Acquon, e os nomes?

 

Os... nomes?

 

Sim... os nomes insistiu o guerreiro com voz tremulamente calma.

 

Os nomes... O eahan parecia incerto. Usei os que tu pediste...

 

Disseste o nome da Lhiannah, porra! vociferou Aewyre, descruzando repentinamente os braços e avançando sobre o shura com tal ímpeto que este julgou que ia ser agredido e deu um involuntário passo atrás. Quantas vezes vos disse eu para não dizerem a porra dos nossos nomes verdadeiros?!

 

Allumno interpôs-se entre ambos, estendendo uma mão de modo a refrear o seu exaltado protegido.

 

Aewyre, acalma-te! Então?

 

Vocês não viram como aquele velho picuinhas reparava em tudo? Ele deve ter escrito quantas vezes nós piscámos os olhos durante o interrogatório! O jovem virou as costas aos seus companheiros e deu um pontapé num monte de detritos, espalhando-os pela ruela, e volveu para o eahan uma vez mais, apontando acusadoramente com o indicador. E tu foste dar-lhe o nome da Lhiannah! Também lhe disseste o que viemos cá fazer, já agora?

 

Aewyre... apelou o mago à calma com um perplexo Quenestil atrás de si. Taislin limitava-se a observar a cena com olhos tristes.

 

O guerreiro rosnou de frustração e esmurrou a parede de madeira, encostando nela a testa de seguida como para se acalmar. Parecia que a sua cabeça ia explodir, tal era a força com que as suas têmporas latejavam...

 

Aewyre... A hesitante mão do eahan pousou no seu ombro tenso algum tempo depois. Enthulidas, finn amenid. Entbulidas...

 

Dito em Eahan, de alguma forma o pedido de desculpas parecia mais sincero, ou talvez mais convincente. Fosse como fosse, o jovem suspirou e acabou por se virar, agarrando as espáduas de Quenestil com força e fitando os olhos cinzentos do shura, cujas feições pareciam mais graves do que era habitual no soturno ambiente da ruela.

 

Não, meu amigo. Eu é que peço desculpa... o eahan acedeu com um nuto da cabeça e apertou o ombro de Aewyre. Eu só não sei o que fazer... a Lhiannah está ferida, não conhecemos ninguém nesta cidade, temos um legista de Bellex em cima de nós e nem sei onde começar a procurar os desgraçados que nos atacaram, nem a harahan... nem sequer sei ao certo quem eles são, bandidos, Fadados, Filhos do Flagelo...

 

Eu sei, Aewyre, mas tens-nos a nós. Não estás sozinho nisto. ”E de certa forma, é isso o que mais me preocupa...”, pensou o guerreiro sem no entanto o dizer, receando um grave mal-entendido. Obrigado agradeceu.

 

Allumno relaxou e tornou a agarrar o bastão com as duas mãos, abanando a cabeça em incredulidade perante o temperamento mercuriano do seu protegido.

 

Vamos para o templo? sugeriu.

 

Aewyre e Quenestil concordaram, e os três prepararam-se para sair da ruela, mas Taislin chamou-lhes a atenção, tossicando. O burrik olhava para o chão e tinha as mãos atrás das costas, numa, para ele, invulgar posição que aparentava denotar algo parecido com recato, que nele destoava visivelmente.

 

O que foi, Taislin? quis Aewyre saber, ajoelhando-se perante o seu pequeno companheiro.

 

Na obscuridade da ruela, os olhos do burrik estavam grandes e pretos, inocentes e desprovidos do brilho matreiro que normalmente os caracterizava e que de uma forma ou de outra conquistara o afecto de todo o grupo.

 

O que é que tens aí atrás?

 

O pequeno larápio murmurou qualquer coisa ininteligível, encolheu os ombros e olhou para o lado, parecendo ter mudado de ideias.

 

Taislin, o que é que se passa? insistiu o guerreiro, pegando-lhe nos diminutos ombros com as grandes mãos de unhas sujas.

 

Não... vais ficar chateado... esquivou-se o burrik.

 

Não fico nada! Taislin, diz-me o que tens atrás das costas. Agora. Senão é que eu fico mesmo chateado.

 

Sem olhar para o seu amigo nem parar de murmurar, o burrik exibiu uma folha de pergaminho dobrada entre dois dedos. Aewyre ergueu o sobrolho e pegou na folha, desdobrando-a com cuidado e cerrando os olhos em esforço de modo a lê-la na escuridão do local.

 

O que é isso? inquiriu Allumno, acometido de um súbito mau pressentimento fundamentado pelos hábitos desregrados do burrik.

 

Os lábios de Aewyre mexiam-se em silêncio enquanto o jovem lia, e conforme o ia fazendo, os seus olhos iam-se arregalando em aparente espanto.

 

O que é que diz? perguntou Quenestil a Taislin, sem obter resposta. Aewyre riu. O que foi?

 

Parecendo não ter ouvido a pergunta, o jovem envolveu o burrik num esmagador abraço, arrancando-lhe os pés do chão ao erguer-se e agitando-o pelo ar como um saco de nabos.

 

Seu destravado! Eu não acredito! ria Aewyre, incrédulo.

 

O que foi? O que é isso? persistiu o eahan.

 

Ele foi roubar logo isto debaixo das barbas do legista!

 

O quê? proferiram Quenestil e Allumno em agravado uníssono, dirigindo os olhares para Taislin, que permanecia invulgarmente envergonhado.

 

São as notas pessoais dele! O homem tem aqui toda a investigação planeada! explicou o animado guerreiro, batendo na folha com a mão aberta.

 

Que a palma de Bellex nos vede do seu punho... imprecou o mago, levando a mão à consternada cabeça.

 

Não sei muito acerca das leis das vossas cidades... admitiu o eahan. Mas isso não parece bom.

 

E daí? Com isto já sabemos pelo menos onde começar! Diz aqui os nomes dos suspeitos, onde os encontrar...

 

Aewyre, isso é um documento oficial escrito pela mão de um legista! lembrou-lhe Allumno, mas o ânimo do jovem era impossível de esmorecer.

 

E ele vai pensar que nós o roubámos? Com todas as folhas que tinha na mesa, se calhar nem vai reparar...

 

... embora deva ter escrito quantas vezes piscámos os olhos durante o interrogatório...?

 

Aewyre descartou a ideia com um despreocupado gesticular da mão e tornou a ajoelhar-se perante Taislin, pegando nele pelas espáduas.

 

Que faríamos nós sem ti, meu diabrete? O burrik limitou-se a encolher os ombros modestamente em mais um gesto pouco característico. Então? O que é que se passa, campeão?

 

Nada...

 

Passa-se alguma coisa, Taislin. O que foi; é o Babaki? Quenestil puxou a manga de Allumno e disse-lhe algo em surdina, mas o guerreiro não estava a prestar atenção, pois o burrik não respondia e continuava a evitar os seus olhos. Aewyre suspirou em triste compreensão, acenando com a cabeça e olhando para baixo.

 

Taislin, o Babaki era nosso amigo... e sentimos muito a sua falta, todos nós. Doeu-nos saber que ele morreu e que nunca mais o vamos ver, ainda dói, e muito, mas nós ainda cá estamos, e temos de continuar. Mas isso vai ser muito mais difícil se não te tivermos a ti para nos animar, campeão... Aewyre afagou amigavelmente a cabeça embarretada do burrik. Tu rias em Moorenglade, dizias piadas estúpidas em Alyun, gozavas com o Worick em Karatai... precisamos de um Taislin sorridente e descarado. Senão ainda nos matamos uns aos outros...

 

Não! gritou o burrik, sobressaltando Aewyre e abraçando o tronco deste com uma força surpreendente para a sua pequena estatura. Ninguém vai morrer, nenhum de vocês vai morrer! Nunca mais! Eu não deixo! A voz abafada do burrik soava chorosa quando este gritava contra o peito do guerreiro. Não deixo! Ouviram bem? Não deixo!

 

Boquiaberto, Aewyre acabou por lentamente retribuir o abraço, tentando sem grande sucesso apaziguar os estremeções soluçantes nas costas de Taislin. Virando a cara, o jovem fitou Allumno e Quenestil, as suas taciturnas expressões ainda mais ensombradas pela escuridão da ruela. Porém, nenhuma palavra foi proferida, e o triste choro do burrik fez com que todos esquecessem por momentos a zoeira citadina e se preocupassem com os seus próprios tumultos interiores causados pela morte de Babaki.

 

O silêncio imperava no quarto em que Worick e Slayra se encontravam: o thuragar sentado numa cadeira ao lado da cama na qual Lhiannah jazia, inconsciente, e a eahanoir sentada de braços cruzados e de costas para a parede. Ambos haviam escolhido permanecer nas Alas da Convalescença, mas apenas a escolha de Worick não fora inesperada, pois apesar de a eahanna negra já não ser mal vista pelo grupo (ou pelo menos assim o esperava), todos menos Quenestil estranharam a sua vontade de ficar. Apenas o shura sabia a verdade, que Slayra estava simplesmente indisposta, tendo já começado a sentir umas semanas atrás os primeiros efeitos do enraizamento gestacional da semente que portava dentro de si. O seu ventre e seios haviam aumentado subtilmente, pouco visíveis ainda, mas suficientemente protuberantes para lhe apertarem à cintura e ao peito as roupas que comprara na cidade de Ul-Syth no dia da chegada à costa de Tanarch. Por algumas das contas de âmbar que o druida lhe dera, a eahanoir comprara mantimentos, uma camisa e largas calças azul-escuras de homem presas por uma faixa vermelha à cintura, um casaco preto de abas curtas e um par de botas escarlates de couro macio. Fora uma indumentária confortável para a viagem que os eahan haviam empreendido até Val-Oryth, mas naquela manhã parecia-lhe apertada ao ponto de Slayra desejar ter também comprado algo mais folgado, mas sabia que isso chamaria muito a atenção. Nenhum dos dois falara acerca do inevitável assunto de revelarem aos companheiros o que sucedera, pois apesar de se tratar de algo que, mais cedo ou mais tarde, diria respeito ao grupo inteiro, era também um tema delicado que teria de ser discutido na altura certa. Com a notícia da morte do Babaki, o ataque à estalagem e os ferimentos da Lhiannah, ambos os eahan duvidavam de que essa altura chegasse tão cedo... e talvez fosse melhor assim; pelo menos teriam mais tempo para pensar e reflectir.

 

Acariciando distraidamente o seu ventre, Slayra desviou a mente das suas dúvidas e observou Worick, cujas costas estavam viradas para si. A luz do vitral azul e branco da janela incidia-lhe lateralmente sobre a armadura, resplandecendo no aço das placas sujas e baças ao mesmo tempo que esbatia a sua cabeleira cinzenta. O seu elmo encontrava-se a seus pés, com a cicatriz de um possante golpe de lâmina que o thuragar tratara com marteladas, cujas marcas permaneciam na forma de mossas que cercavam a fenda semicerrada, e o martelo estivera encostado à cabeceira da cama a noite inteira, qual sentinela inanimada a velar pela princesa. A eahanoir notou também que o escudo que Worick sempre tivera acoplado à manopla desaparecera, provavelmente de forma violenta, julgando pelos sinais de maus tratos na luva e pelos fragmentos pendentes no lugar do escudo. As mãos sujas e sapudas do thuragar aninhavam com desabitual delicadeza a da sua protegida, que ainda não abrira os escurecidos olhos inchados. As equimoses na cara de Lhiannah tinham uma cor acastanhada, os cortes na pele pálida e nos lábios empapuçados começavam a formar crosta e o seu maxilar solto e inchado era mantido no lugar por uma faixa em torno do queixo e da cabeça. O sangramento do seu ouvido esquerdo parara antes de ter chegado ao templo, e o sangue seco no canal auditivo já fora limpo por uma laica de Acquon, mas haviam mantido a compressa no lugar por precaução. A eahanoir vira a expressão aflita de Allumno quando o mago notara o corrimento sanguinolento que o ouvido de Lhiannah vertia na estalagem e temera o pior, mas felizmente as suas piores suposições não se haviam confirmado. Pelo menos ainda não...

 

Slayra afastou tais pensamentos funestos de imediato. Por estranho que lhe parecesse, desde a noite anterior que a eahanoir dera consigo a pensar que gostava da aguerrida humana, a despeito de todas as suas diferenças, animosidades e rancores passados. Ambas haviam chorado juntas a morte de Babaki, partilhado da perda mútua que lhes abrira uma ferida nos seus corações que jamais sararia por completo, e essa partilha revelara muito acerca das duas mulheres, muito que porventura não teriam sequer pensado em confessar noutras circunstâncias, mas naquela altura, enquanto procuravam conforto nos braços uma da outra, as palavras haviam fluido como as lágrimas. E agora o único pensamento que lhe ocorria era que em breve podia estar a chorar a morte da princesa nos braços do Quenestil... mas tornou a descartar a teimosa e insistente cisma e levantou-se como se a cadeira fosse a responsável pelas suas mórbidas apreensões. Afagou os braços e decidiu aproximar-se de Worick, passando por cima dos camastralhos estendidos no chão. Todas as suas anteriores tentativas de conversa haviam sido grosseiramente repudiadas pelo thuragar, cuja disposição estava compreensivelmente mais azeda do que o habitual e cuja atitude de qualquer forma não a surpreendia. Mesmo tendo convivido com humanos durante boa parte da sua vida, Worick era o que era, e nada do que tivesse porventura aprendido através do prolongado contacto com uma raça e uma cultura tão diferentes das suas poderia alguma vez mudar isso de uma forma significativa. O thuragar nem era tão egoísta ou mesquinho como os seus congéneres, e a evidente preocupação por Lhiannah e (por vezes) pelos restantes companheiros era a prova disso, mas um thuragar seria sempre um thuragar, com a disposição de um texugo acirrado, o tacto de uma pedra-pomes e toda a compaixão que um açougueiro demonstra perante um cordeiro. Slayra limitou-se a postar-se atrás de Worick, sombreando-o silenciosamente ao bloquear parcialmente com as suas costas o facho de luz colorida da janela.

 

Não vais tentar consolar-me outra vez, pois não? catarreou o thuragar.

 

Já sei que não vale a pena. Queria só...

 

Consolar-me?

 

Não assegurou Slayra com todo o cuidado para não o hostilizar. Mas eu...

 

Mau...

 

Já disse que não vou tentar consolar-te...

 

Óptimo. Então também não preciso que me digas que ela vai ficar boa, ou que aqueles sacerdotes rabilas disseram que não há nada de grave, que ela vai acordar ainda hoje de certeza ou que vamos dar cabo de quem lhe fez isto e que vai tudo ficar bem no fim. Arre, mulher! Deixa-me sossegado!

 

A eahanoir suspirou e cruzou os braços resignadamente.

 

Podes não acreditar, Worick, mas eu também me preocupo com a Lhiannah e também tenho medo que algo de mal lhe aconteça... Não houve resposta, o que incomodou a eahanoir, apesar de esta estar ciente das ínfimas probabilidades de ter direito a uma. Ou ainda pensas que eu estou só a fingir, que é uma questão de tempo até eu vos espetar uma faca nas costas?

 

- É assim que me vês?

 

Silêncio, desprovido de qualquer iminência de resposta. Slayra descruzou os braços e agarrou as amplas mangas da camisa com força, sentindo um germinar exasperado no peito.

 

- É isso, não é? Depois de tudo o que se passou, ainda me julgas capaz de vos trair, que a qualquer altura vos posso apunhalar pela calada... Contra tudo o que o seu bom senso lhe ditava, a eahanoir pegou no thuragar pelas espaldeiras e abanou-o na tentativa de extrair alguma reacção dele.

 

Worick ergueu-se repentinamente, virou-se e agarrou o pulso de Slayra com dedos de aço, olhando-a altivamente de baixo.

 

Só vou dizer isto uma vez, minha menina, por isso vê lá se arrebitas essas orelhas pontudas e se fica bem assente nessa tua cabecinha. Se eu em qualquer altura, em qualquer lugar, tivesse sequer pensado que tu nos poderias mesmo trair, ter-te-ia partido a cabeça à martelada como a um ovo. Por isso guarda as tuas acusações e lamúrias para quem as mereça ou queira ouvir, porque eu de certeza não quero.

 

Dito isto, o thuragar largou-lhe o pulso bruscamente e tornou a sentar-se, resmoneando qualquer coisa certamente pouco amável. Slayra sentiu um nó na faringe, como se as palavras da sua impensada resposta tivessem ficado presas a meio caminho da boca. O seu estômago contraiu-se, e a eahanoir foi acometida de uma súbita náusea que lhe espiralou da barriga, pela garganta acima e até à boca. Curvando-se e agarrando o seu abdómen, Slayra virou as costas a Worick e vomitou sem cerimónias o frugal pequeno-almoço de pão e cerveja, que chapejaram azedamente no chão. Tão depressa como se sentara, o thuragar tornou a levantar-se, proferindo um alvoroçado impropério.

 

Então? O que é que tens? perguntou, ajoelhando-se ao lado da eahanna negra e agarrando-a por trás pelas ilhargas.

 

Não me toques! gritou Slayra, torcendo o corpo para se afastar de Worick e caindo de joelhos e mãos ao fazê-lo.

 

O thuragar ergueu as suas, perplexo, e deixou-se estar de joelho assente no chão de modo a não assustar a eahanoir, que permaneceu de gatas, ofegando e expelindo cuspe acre.

 

Mas o que é que se passa contigo, ó minha gravisca? Fiz-te alguma coisa?

 

A eahanna negra limpou a boca com os dedos e fitou Worick com a face meio oculta por cabelos desgrenhados.

 

Desculpa... não foi nada... a culpa não foi tua... explicou enquanto se erguia, cambaleante, tentando apoiar-se no armário do quarto. O thuragar tentou ajudá-la, mas Slayra afastou-se, erguendo a mão suja de vómito. Eu estou bem...

 

Oh sim, só estarias melhor se eu te tivesse cravado uma martelada na cabeça... Olha para ti, estás mais branca que cal em barreia!

 

Eu sou pálida; foi a cerveja do pequeno-almoço... aquela mistela tanarchiana tem um sabor esquisito. Eu estou bem... assegurou Slayra, virando as costas a Worick e dirigindo-se à taça com água em cima da mesa-de-cabeceira de Lhiannah.

 

Nota-se... aliás, só não vomitei ainda porque me estou a sentir mal esta manhã. Deixaste que os rabilas te vissem?

 

Não, eu não fui ferida no ataque. A Lhiannah é que precisava de ajuda...

 

Não estamos a falar da Lhiannah agora. O que é que tu tens que os sacerdotes não viram?

 

A eahanoir ignorou a pergunta e bebeu da taça, bochechando e cuspindo, e despejou a água para um bueiro na base da parede, passando por ela os seus dedos sujos de vómito e secando-os na faixa vermelha que lhe cingia a cintura. Ouviu os pesados passos metálicos do thuragar aproximarem-se de si e suspirou, ciente de que não iria conseguir tornear o assunto. Um roçagar de placas de aço delatou o cruzar de braços de Worick, dando a entender que dali não sairia enquanto Slayra não lhe explicasse o que se estava a passar.

 

Sabes, gostava mais de ti quando tu não querias saber de mim...

 

comentou, pegando num jarro e despejando o seu conteúdo dentro da taça que esvaziara.

 

E eu gostava mais de ti quando tu não vomitavas.

 

Acredita que és menos chato quando não te importas com os outros... Se espicaçasse o thuragar, podia ser que este se chateasse e se fartasse.

 

Tu és chata de uma maneira ou de outra. Óptimo, já estava a responder às provocações. Slayra afastou-se da mesa-de-cabeceira e dirigiu-se à cadeira com o intuito de se sentar.

 

Então fica a olhar para a Lhiannah. Ela não te vai chatear...

 

Achas que sou parvo? Os pés da eahanoir congelaram.

 

Pitosga sim, mas parvo é que não sou. Essas tuas roupas largas estão-te apertadas, o teu andar já não se parece com o de um gato, e o pequeno-almoço não estava mau ao ponto de o vomitares...

 

Incrível. De todos os companheiros, o mal-encarado thuragar de visão fraca fora aquele que Slayra menos esperara vir a descobrir a sua condição. Slayra virou-se para Worick com os olhos grandes e surpresos.

 

Como... como é que tu...

 

Eu fui general, minha menina, e um bom general observa sempre aquilo e aqueles que o rodeiam. Eu andava distraído, mas o teu estômago traiu-te. Com que então tu e aquele bodefe do eahan, ha? a pele de Slayra continuava algo avermelhada devido à longa exposição ao sol, mas enrubesceu ainda mais. Em que é que estavam a pensar, seus láparos primaveris? A altura pareceu-vos boa para fazer eahanzitos, foi?

 

Worick, tens de me prometer que não vais dizer nada aos outros...

 

Ai tenho? Explica-me lá porquê...

 

A altura é má... a Lhiannah está ferida... eles não iam perceber...

 

O que é que há para perceber? O eahan saltou-te para a espinha e emprenhou-te!

 

Worick, por favor! A eahanna correu a agarrar o thuragar pelos ombros. Promete-me que não lhes dizes! Por favor!

 

As farfalhudas sobrancelhas do thuragar eriçaram-se, dúbias.

 

Os outros não precisam de ter mais este problema a preocupá-los, percebes isso, não percebes?

 

Então e que vais tu fazer? Continuar a fingir que nada se passa até levares um murro ou uma facada na barriga?

 

Sensibilizada pelo que lhe pareceu ser preocupação da parte do thuragar, a eahanoir não respondeu de imediato e reflectiu sobre a questão.

 

Eu... fico com a Lhiannah. Se... quando ela recuperar, vai ter de ficar algum tempo de cama. Eu fico com ela, e trato dela. Era isso que eu ia fazer de qualquer forma...

 

Worick nada disse, e Slayra manteve os olhos do thuragar fixos nos seus.

 

Por favor?

 

Hum, daqui não vai sair bom minério...

 

Prometes que não dizes?

 

Ah, pedras me partam... está bem, não digo nada.

 

Obrigada. Sabendo como o seu companheiro reagiria, a eahanoir refreou-se de mostrar o seu agradecimento com um abraço ou carícia de qualquer espécie e deixou-o em paz, dirigindo-se para a porta.

 

Vou buscar qualquer coisa para limpar isso... disse, indicando a poça de vomitado no chão.

 

Resmungando e abanando a cabeça, Worick voltou por sua vez para perto de Lhiannah, novamente absorto nas suas contemplações.

 

Mas afinal o que pensas fazer com esse documento, Aewyre? quis Allumno saber, caminhando exasperado ao lado do seu protegido e calcando profundos buracos na lama e neve meio derretida com o bastão.

 

Usá-lo, claro admitiu o descontraído jovem, olhando em frente com ar ausente.

 

Mas tu não percebes que...? Peço desculpa... pediu o mago ao embater num transeunte, que não pareceu notar.

 

Percebo, mas não interessa. Se o papel não nos ajudar a apanhar quem nos atacou, devolvo-o, mas só se não nos servir para nada.

 

Allumno dirigiu um breve olhar ao céu nublado, visível entre os altos telhados da cidade, como se esperasse que chovesse bom senso em cima do néscio rapaz.

 

Entrarmos em conflito com os fiéis de Bellex nesta cidade seria tudo menos conveniente...

 

Não vai haver conflito nenhum assegurou Aewyre distraidamente, dando a nítida impressão de que estava a pensar noutra coisa. O mago encolheu os ombros conformado e limitou-se a andar, questionando-se acerca do que ia na cabeça do seu protegido capaz de desviar os seus pensamentos de tão importante assunto...

 

”A tua filha, Aewyre Thoryn! A tua filha!”, gritara a harahan na noite anterior antes de fugir. A mulher era para Aewyre um mistério, mas após três encontros parecia saber muito sobre o jovem e os seus amigos. Passara uma noite com ela em Nolwyn, combatera-a em Karatai e quase morrera às suas mãos na noite anterior. Já não podiam restar dúvidas de que a harahan os perseguia, mas o guerreiro desconhecia as suas razões e o seu propósito. ”A tua filha?” Seria possível...?

 

O guerreiro deteve-se abruptamente, ficando especado a olhar para nenhures, revendo a noite que passara com a mulher em Llen, a escuridão do aposento, o estranho odor a gato molhado e hipericão-bravo, a luz macilenta das velas pretas, as manchas nos lençóis, o voraz ardor da harahan...

 

Aewyre? ouviu Allumno questionar.

 

Passa-se alguma coisa? Quenestil olhou na direcção do indeterminado ponto que o seu amigo fitava.

 

Não... não é nada. Tinha de pensar, reflectir, e bastante, mas num lugar sossegado. Vamos.

 

Forçados a acompanhar as largas passadas do cismático guerreiro, os companheiros percorriam as congestionadas ruas de Val-Oryth com rapidez, escusando-se por empurrarem transeuntes, ignorando as discrepantes ladainhas de vendedores ambulantes e fixos, desviando-se das ocasionais bestas de carga puxadas ou acicatadas por condutores mais ou menos pacientes e tentando não ficar no caminho das desenfreadas correrias das crianças, que decerto teriam muita energia por libertar após aquele que evidentemente fora um longo e frio Inverno. Quenestil sorriu ao ver um grupo de petizes zumbir através das pernas dos pedestres, tão pequenos, alegres e despreocupados, com os barretes felpudos que as mães lhes haviam enfiado nas cabeças, e os seus pensamentos foram inevitavelmente para Slayra e o segredo que partilhavam. A viagem de três semanas entre Ul-Syth e Val-Oryth dera-lhe bastante tempo para pensar e reflectir, mas ainda assim o shura era por vezes atormentado por dúvidas causadas não pelos preceitos da sua raça, pois segundo esses a sua conduta fora apropriada, mas pelos seus próprios princípios. Agira correctamente? Engravidar Slayra quando tanto ainda podia e certamente iria acontecer? O facto de sentir que a altura não era apropriada para contar aos outros também não ajudava nada, e a sua consciência começava a pesar-lhe. Questionava a rectidão das suas acções e não estava a ser honesto para com os seus amigos... As crianças fizeram-no pensar também em Taislin, e Quenestil olhou para o chão em redor, procurando o seu pequeno companheiro. O burrik caminhava à sua frente, cabisbaixo, e não parecia minimamente interessado nas posses (ou ”fardos”, como lhes costumava chamar) das distraídas pessoas que por ele passavam. Era custoso vê-lo assim, pois Taislin sempre fora para Quenestil o eterno pateta alegre, sempre com um sorriso, uma risadinha irritante ou uma piada de mau gosto a postos. De certa forma até era bom que tivesse por fim percebido que aquilo que estavam a fazer não era nenhuma brincadeira, mas ainda assim a tristeza e a perda de candura do burrik não deixavam de ser desanimadoras para o shura e, sabia-o bem, para o resto do grupo. Quenestil soltou um suspiro alquebrado. Ao virar de uma esquina os companheiros entraram num arruamento de curiosas moradias que, contrárias à índole das casas das cidades que o grupo até então vira, eram espaçadas entre si, e esses espaços encontravam-se preenchidos com pequenos jardins cercados. Como toda a paisagem tanarchiana, os infecundos hortos ansiavam visivelmente por uma folga dos rigores invernais. A estrada que os companheiros caminhavam estava a ser pavimentada com toros fendidos por atarefados obreiros, que se ajoelhavam no chão lamacento enquanto trabalhavam.

 

Não passámos por aqui observou Allumno, parando.

 

E daí? Pelo menos esta rua está pavimentada. Vá, venham daí, não deve ser difícil dar com o templo... respondeu Aewyre sem cessar a marcha.

 

Perante a aproximação do guerreiro, os trabalhadores interromperam o seu labor por breves instantes; alguns ergueram-se, empunhando os toscos martelos de madeira que usavam para cravar as estacas no chão, mas logo de seguida dirigiram-se à carreta com tábuas puxada por um pachorrento boi, como se tivesse sido essa a sua intenção inicial. As suas roupas estavam salpicadas e manchadas de lama, e as largas joelheiras de couro destinadas a facilitar o trabalho sujo pouco mais eram que um amontoado de camadas de lama seca sobre as suas pernas. Havia um certo ar de indignação nas suas expressões, que traduzia um sentimento de revolta pelo facto de se estarem a revolver em lama para que um siruliano não tivesse de sujar as botas. Tal era o sentimento por detrás das suas posturas e olhares que Aewyre não teve necessidade de palavras para o perceber e, separando-se dos seus companheiros, manteve-se diplomaticamente num dos lados não pavimentados da via mesmo após passar pelos obreiros.

 

Continuem o bom trabalho, rapazes... não se absteve de dizer, contudo, suscitando olhares e comentários hostis atrás das suas costas. Por que achas que só o fazem aqui? perguntou a Allumno, mais para fazer conversa e ignorar o sucedido que por genuína curiosidade.

 

O Inverno parece ter sido longo.

 

- É provável que as tábuas antigas tenham apodrecido e sido removidas...

 

Hm-hm. O que achas de Val-Oryth, Quenestil? O eahan não esperara ser abordado e piscou os olhos como se tivesse acordado de um sonho desperto. Com esta lama toda não pode ser assim tão diferente de um barranco na Primavera, pois não? E também tens jardins...

 

E... confinada na mesma. Sinto-me preso. Acho que nunca me sentirei bem numa cidade respondeu o shura, estacando perante o avanço de um casal e acabando por passar desajeitadamente pelo meio deles.

 

Aewyre reconheceu a falta de à-vontade do seu amigo com um meio sorriso, mas a sua atenção centrou-se por momentos no casal que por pouco não esbarrara contra ele, e nos muitos outros que já vira só naquela manhã. O jovem podia contar pelos dedos das mãos as vezes que vira um homem e uma mulher andarem juntos de braço dado nas ruas de Ul-Thoryn; pelos dedos de uma mão apenas, se excluísse as meretrizes que o faziam por razões óbvias. Ao que parecia, as mulheres eram realmente vistas e tratadas de forma diferente em Tanarch, o que seguramente se devia ao papel que as exiladas esposas dos sirulianos haviam desempenhado no forjar da nação e sem o qual as expatriadas hostes da Sirulia, crianças e homens fracos e enfermos, certamente teriam perecido. Notava-se de facto uma certa deferência para com as mulheres que passavam na rua, jovens e velhas, ricas e pobres, feias e bonitas, bem e mal vestidas; via-se em pequenos gestos, como subtis acenos de cabeça à laia de cumprimentos ou passos para fora do pavimento de tábuas de modo a dar passagem; tudo sem falsas cortesias ou segundas intenções, meras demonstrações de genuíno respeito da parte de homens, cujas expressões se mantinham sérias e sinceras ao fazê-lo. As mulheres aceitavam tudo com naturalidade, retribuíam com modestos nutos das cabeças toucadas, como se tomassem as atenções por um dado adquirido que mesmo assim devia ser agradecido. Aewyre estava prestes a comentar o assunto com Allumno quando um coro de vozes alvoroçadas chamou a sua atenção e a de todos os transeuntes. Não se via nada, pois os sons provinham detrás de uma esquina da rua na qual se encontravam, o que levou muitas pessoas a apressarem o passo para ver o que se passava.

 

O que será? perguntou o guerreiro a ninguém em especial, avançando mais depressa e sendo seguido pelos seus companheiros.

 

O tom era claramente de protesto, sobretudo de homens mas com algumas mulheres à mistura, e mesmo no cerrado Leochlan no qual eram proferidas as ameaças e os insultos eram perceptíveis. Aewyre entrou na rua perpendicular, ainda desprovida de pavimento de qualquer espécie e de imediato deparou com a situação que chamara a sua atenção e a de todas as pessoas que seguira até ali, bem como outras mais que se lhe estavam prestes a juntar. E, tal como todos os recém-chegados, incluindo os restantes companheiros, ficou inicialmente impressionado com o que viu.

 

Cercados pela exaltada multidão, três homens sobressaíam pela sua estatura e porte, calmos e serenos perante os ânimos que causavam e pelos quais eram visados. Lembravam estátuas de aço com capas azuis num mar de braços e mãos agitados, pois as armaduras de placas corrugadas que envergavam cingiam-lhes o corpo todo num abraço acerado exceptuando as cabeças, que estavam a descoberto e cujos elmos eram sobraçados. Os seus arneses tinham um acabamento por polir, e o do mais velho estava coberto por brial azul com uma insígnia bordada ao peito na forma do busto de uma mulher com uma coroa dourada. As suas expressões pareciam-lhes tão embutidas nas faces quanto as corrugações nos seus arneses, expressões de confiança e destemor que transmitiam ao mesmo tempo um misto de segurança e medo, tal era a intensidade dos olhares átonos que dispensavam à multidão, altos e terríveis no poder que não desejavam revelar, autênticos reis sem trono os três, herdeiros de uma glória passada com o sangue de um nobre povo a correr-lhes vigoroso nas veias.

 

Sirulianos... constatou Allumno.

 

Vocês já viram o tamanho deles? perante a majestosa presença do trio de homens armados, Taislin recuperou a voz que aparentara ter perdido no beco. São maiores que o Aewyre...

 

Ninguém respondeu, pois a envergadura dos três não se afigurava prodigiosa apenas ao diminuto burrik. O mais alto, um homem de cabelos grisalhos colados à cabeça pelo uso do elmo, olhos pardos e um nobre semblante escanhoado, estaria provavelmente ao nível do nariz de Babaki, o que não era dizer pouco. Os outros dois, mais jovens mas com uma gravidade de expressão que contraditava as suas idades, tinham olhos azuis, cabelos pretos e castanhos penteados para a frente e com as nucas rapadas, e eram uns bons três dedos mais altos do que Aewyre. O trio mantinha as mãos enluvadas de aço sobre os pomos das suas esplêndidas espadas bastardas embainhadas à cintura, mas nada nas suas posturas indicava a intenção de fazer uso delas. Do lado oposto da cinta tinham adagas dentro de bainhas decoradas, comparáveis em tamanho ao facalhão de Quenestil.

 

Contudo, todos menos os companheiros pareciam dispostos a enfrentar os sirulianos. Havia muitos punhos cerrados na multidão, muitas mãos erguidas em protesto, muitas vozes indignadas, e a razão da querela aparentava ser uma mulher postada à porta da moradia em redor de cuja entrada a pequena multidão se concentrava. Era uma senhora alta, mais alta do que muitos dos homens presentes, e cujo porte digno e beleza serena transmitiam um ar de desafio perante os três indivíduos armados. Trajava um simples vestido alaranjado que pendia pregueado pela sua figura elegante, e o seu longo cabelo castanho e ondulado caía-lhe numa cascata solta pelas espáduas abaixo. Seguramente não pretendera sair vestida assim, pois envergava ainda um manto de lã bordada aos ombros e braços para a resguardar do frio e a sua longa saia arrastar-se-ia pela lama, mas aparentemente os sirulianos haviam-lhe dado um bom pretexto para sair, o que não parecia ter agradado à multidão. De costas para a mulher estava um homem de bigode eriçado a brandir um ameaçador dedo ao trio, embora nem com os tamancos que calçava e o barrete de topo chato que tinha à cabeça conseguisse ficar ao nível dos imperturbáveis olhos dos sirulianos, cujas atenções pareciam recair apenas e unicamente sobre a mulher atrás dele. O siruliano mais velho falava calmamente, mas a sua voz profunda pouco mais era do que um tom grave abafado pelos protestos da multidão, e os companheiros não conseguiam ouvir.

 

O que é que se estará a passar? questionou-se Aewyre.

 

Nada de bom... julgou Quenestil, guiando Taislin pelo ombro com uma mão e abrindo caminho por entre a multidão com a outra.

 

Quatro homens juntaram-se ao que estava entre os sirulianos e a mulher, formando uma barreira humana defronte desta, e outros não tardaram em dar a sua contribuição. Os três permaneciam imóveis, impassíveis perante a turba que se começava a formar à sua volta como se de algo de pouca monta se tratasse.

 

Vamos ver mais perto, daqui não se ouve nada... sugeriu o guerreiro, aproximando-se.

 

Eu acho que não devíamos... Aewyre! Oh, que Kispryn lhe estenda a mão decepada... protestou Allumno, seguindo o seu protegido a contragosto. Quenestil acompanhou-o, mantendo a protectora mão sobre o ombro de Taislin.

 

... nada para vocês! Alem para as vossas belonas! foi o que Aewyre conseguiu decifrar do cerradíssimo Leochlan do homem que continuava a empunhar o dedo como uma espada. Um coro de vozes masculinas e femininas deu-lhe razão, todas igualmente carregadas, mas suficientemente parecidas com um Glottik arcaico para que o guerreiro percebesse o essencial.

 

Não é vossa!

 

Deixam-nas solitas, coitadas, e depois vêm buscá-las para...

 

Deviam ter desdouro, vocês são ostes aqui! ... e as pobres crianças!

 

Alem para a vossa plaga e prenhem as drahregs!

 

Se as queriam tanto, não as deixavam cá!

 

... e a mulher do meu primo outrossim! De noite apareceram e...!

 

Quem crêem que são?

 

Embrenhado no meio da massa de gente, Aewyre pôde sentir a tensão crescente que ameaçava explodir a qualquer instante, mas um estranho elo de afinidade instigava-o a avançar, a ver os sirulianos mais de perto e a fingir que não ouvia a voz de Allumno atrás de si, certamente a pedir-lhe que parasse. Um indivíduo careca fitou-o de alto a baixo e berrou-lhe qualquer coisa de boca escancarada, exibindo os seus dentes em falta, mas o jovem ignorou-o e continuou a avançar, vadeando lentamente a massa de corpos.

 

Adelia Ynyth ouviu o siruliano mais velho enunciar num dialecto límpido e perfeitamente inteligível. O sangue que corre nas tuas veias é puro. O teu dever é claro...

 

Qual dever! Cerdos! Ela não quer nada com vocês! protestou o homem do dedo.

 

... e o papel que desempenharás destina-se a assegurar a continuidade da existência dos herdeiros de Sirul, que juraram proteger-vos a todos... continuou, ignorando os protestos e insultos.

 

Proteger-nos de quê?

 

Temos de nos proteger de vocês!

 

... e cujas vidas compraram a terra na qual habitam em paz.

 

Em paz? Com rabazes como vocês a virem cá todos os anos?

 

A plaga é nossa, e a vida das nossas mulheres é delas!

 

Requisito então, por respeito, a entrada na tua residência... Perante o desprezo e a soberba do siruliano, o homem do dedo exaltou-se e avançou, olhando-o de baixo e protestando com gestos frenéticos para lhe chamar a atenção. Os outros seis deram uns passos em frente também, batendo no peito e erguendo os queixos em desafio. Apesar de ser a causa de toda a discórdia, a senhora alta permanecia impassível, sem nada dizer. Um dos indivíduos tentou empurrar o velho siruliano, mas este nem se mexeu e dignou-se pela primeira vez a olhar para a barreira humana que se interpunha entre si e a mulher, e foi então que a tensão explodiu em acção. O homem do dedo desferiu um pontapé com toda a força no joelho do siruliano, tamanco de madeira contra joelheira de aço, o que causou mais ruído que efeito, mas foi o suficiente para incitar o resto da multidão a tentar a sua sorte. Uma bola de lama, estrume e palha singrou pelo ar, esparralhando-se contra a cara de um dos jovens sirulianos, acompanhada pelo vitorioso vitupério de quem a arremessara. Houve gritos de apoio vindos da multidão e várias pessoas mostraram-se de imediato dispostas a seguir o exemplo, repentinamente armadas de paus, facas de bolso e qualquer outro objecto ao qual conseguissem deitar a mão. Aewyre viu-se arrastado pela turba, ouviu a voz de Allumno a gritar algo no meio do bulício e apercebeu-se de que estava no meio de um potencial linchamento público. Os seis homens à entrada da casa saltaram para cima do siruliano mais velho para ajudarem o homem do dedo, que continuava a desferir pontapés com os tamancos, e os dois jovens viram-se do lado errado de uma chuva dos mais variados projécteis. Quando Aewyre viu um indivíduo carregar contra ambos, empunhando um varapau, galgou instintivamente a distância que os separava aos empurrões e agarrou-o pelo pulso, cortando-lhe o ímpeto bruscamente.

 

Calma aí! gritou.

 

Quê? Larga-me! Mas larga-me! berrou o homem, assentando-lhe um tabefe no lado ferido da cara.

 

O guerreiro grunhiu de dor e puxou o braço do homem com força, derrubando-o com uma rasteira enquanto vários outros passavam por ele para atacar os sirulianos. Aewyre levou uma perna atrás e estendeu rigidamente os grandes braços para os seus lados, contra os quais duas pessoas colidiram, caindo. Algo lhe bateu de raspão na cabeça, mas um homem gordo que corria com abandono na sua direcção era meretório de maior atenção. Pegando-lhe os braços, o jovem desviou-se e deixou-o seguir a sua trajectória, ajudando com um forte impulso que fez com que o seu atacante se estatelasse de cara na lama. Alguém lhe desferiu então um pontapé na perna e vários pares de mãos agarraram-no, puxando-o e empurrando-o para o chão lamoso. Aewyre cobriu a cabeça instintivamente e retesou o tronco para proteger as costelas dos pontapés e pisadelas que sabia que se iriam seguir...

 

Mas uma possante voz sobrepôs-se aos ruídos da turba, atulhando os ouvidos de todos os presentes e ecoando nas cabeças destes. A exclamação fora curta e enfática, mas as palavras empregues insinuaram-se de alguma forma nos pensamentos da multidão e dos companheiros, vocábulos desconhecidos cujo significado estivera latente nas almas de cada um e que fora descortinado ao ouvi-los, apelando para a calma e a moderação no âmago de cada homem e mulher naquela rua. Todos ficaram parados, ninguém se mexeu, olhando para os lados, incertos, hesitantes. O próprio Aewyre sentia-se calmo e, sabendo de alguma forma que já não corria perigo, descobriu a cabeça e, apoiando as mãos na lama, observou o que o rodeava. Os dois jovens sirulianos estavam de costas um para o outro, com os acerados punhos cerrados e vários homens inertes e gemebundos a seus pés. Nem sequer haviam desembainhado as espadas. O mais velho continuava no mesmo sítio como se os seus seis atacantes, que agora guardavam uma respeitosa distância, se tivessem abatido sobre ele como uma onda contra um penhasco. O indivíduo do dedo estava abraçado à mulher, que pelas aparências devia ser sua esposa, numa derradeira tentativa de a proteger, determinado, porém bastante menos agressivo.

 

Aewyre! ouviu Quenestil dizer, e as mãos do eahan não tardaram em pegar nele por debaixo das axilas para o ajudar a levantar. Estás bem?

 

Sim... respondeu o guerreiro, sem tirar os olhos dos sirulianos. Só me sujei um pouco...

 

O mais velho dos três mantinha o olhar fixo no casal, como se lhes estivesse a sondar as almas com os duros olhos pardos.

 

Adelia Ynyth, com a tua relutância, desobedeces não apenas aos sagrados votos proferidos aquando da Cisão, mas também às leis vigentes de Tanarch e o seu pacto com Sirulia.

 

O único som que se fez ouvir foi um leve murmúrio pela parte dos intimidados cidadãos, que pareciam continuar incertos quanto ao que fazer. Foi então que a mulher falou pela primeira vez.

 

- É uma lei cruel que não devia existir, muito menos feita cumprir por vocês acusou numa voz triste, mas que soava clara aos ouvidos de Aewyre.

 

O velho siruliano ficou longos instantes a perscrutar o casal, sem que a sua expressão se alterasse por uma vez sequer. A mulher agarrou a mão do seu esposo e apertou-a com força.

 

Como queiras, Adelia Ynyth acedeu o velho guerreiro por fim, virando as costas ao par. Os seus dois jovens seguidores juntaram os calcanhares e baixaram as mãos, aguardando ordens. Um deles continuava com restos de estrume e lama na cara, mas agia como se tal não o incomodasse. Peguem nos elmos. E limpe a cara, Ajuramentado. Em marcha.

 

Como um só, os dois curvaram-se para pegarem nos seus capacetes caídos durante a refrega, limparam-nos antes de os pousarem nas cabeças, afastaram-se da casa e pareceram querer ir-se embora, mas o mais velho dos três ainda se reteve a poucos passos de Aewyre, fitando-o com o que podia ser interesse enquanto manuseava o elmo nas mãos. O guerreiro nada disse, nem tão-pouco Quenestil. Ambos sentiram o peso total daqueles inflexíveis olhos pardos e tanto humano como eahan deram consigo a encolherem-se reflexa e quase imperceptivelmente.

 

Tu, jovem, como te chamas?

 

Ayw... por pouco não revelara o seu nome verdadeiro. Aeren Tuorin... senhor.

 

Os orbes do siruliano afiguraram-se-lhe como dois pratos de uma balança que o pesavam, avaliando o seu valor ou falta dele. Os seus lábios sumidos apartaram-se para dizer algo que deu a impressão de reconsiderar, pois tornou a fechá-los para logo os abrir em seguida.

 

Sou Aelgar, Mandatário, e estes são os Ajuramentados Taeran e Deadan. Tentaste ajudar-nos e por isso te agradecemos... Aeren Tuorin, mas por essa mesma razão não será seguro permaneceres aqui. Podemos escoltar-te até ao teu destino, se assim o desejares.

 

Aewyre olhou para as pessoas à sua volta. Ainda estavam algo atarantadas com as possantes palavras proferidas pelo comandante naquela estranha língua, mas assim que os três se retirassem, era provável que não reagissem da melhor maneira ao vê-lo. Allumno e Taislin haviam-se achegado ao jovem sem que este tivesse reparado, também eles algo aturdidos pelo poder da voz do siruliano, e o mago não aparentava ter qualquer tipo de objecção a ser escoltado pelos três guerreiros.

 

Sim... agradecíamos...

 

Estás acompanhado? questionou, olhando de relance para os curiosos seres que se acercavam do jovem.

 

Sim, eles estão comigo respondeu Aewyre, solícito. Aqueles olhos... como haviam os tanarchianos aguentado?

 

Seja, acompanhar-vos-emos. Venham. Guarnecer flancos, Ajuramentados ordenou Aelgar, assestando o elmo graciosamente afunilado na cabeça, atando as correias debaixo do queixo e baixando a babeira côncava como a relha de um arado. Não pareceu minimamente interessado em saber os nomes dos restantes companheiros.

 

Dito e feito, os jovens sirulianos postaram-se nos flancos do pequeno grupo enquanto o seu líder tomava a dianteira e foi nessa estranha formação que avançaram pela rua fora, deixando a turba pacificada para trás mas merecendo mesmo assim os olhares de todos pelos quais passavam. As pessoas saíam-lhes do caminho, cedendo o pavimento de toros em silêncio, porém incapazes de esconder o seu ressentimento, e nas costas do grupo ouviram-se mais do que insultos fugazes.

 

Qual é o vosso destino? perguntou o velho guerreiro assim que julgou estar longe de ouvidos perigosos, indiferente aos demais transeuntes e sem sequer olhar para os seus interlocutores.

 

As Alas da Convalescença respondeu Aewyre, algo desagradado com a atenção da qual ele e os seus amigos estavam a ser alvo. Já era mau que todos olhassem por causa da sua altura, mas na companhia de três sirulianos arnesados provavelmente seriam o tema de conversa dos dias vindouros. Olhando para os seus companheiros, constatou que estes também não se sentiam confortáveis naquela situação. Menos Allumno, naturalmente, que já recuperara a sua compostura, o que levou o seu protegido a dirigir-lhe palavra em voz baixa. O que é que ele fez àquela gente?

 

Eridiaith replicou o mago.

 

O quê?

 

Uma língua mágica dos sirulianos e dos Eahan, derivada da Palavra. Tem cuidado quando falares com ele.

 

Saber isso em nada contribuiu para o amainar do desassossego do jovem. Por sua vez, Taislin parecia mais curioso do que intranquilo, com o seu pequeno pescoço completamente inclinado para trás enquanto contemplava os dois enormes sirulianos mais novos, que se alheavam daquilo que os rodeava, olhando em frente com um qualquer objectivo indefinido, porém bem assente nas suas cabeças. O passo do grupo foi rápido, visto que os pedestres se dispersavam perante o avanço dos sirulianos como ratos diante de uma desinteressada serpente, como se a rua fosse propriedade legítima dos três guerreiros, o que para Aewyre era mais desconfortável ainda do que ser alvo dos olhares indiscretos aos quais cedo se habituara. Por alguma razão, o que presenciava incitava uma irrupção de desagradáveis memórias de Alyun e da Guarda Marcial...

 

Qual era o problema com aquela senhora? indagou numa tentativa de descreditar os seus próprios pensamentos.

 

Aelgar agraciou Aewyre com um breve olhar de viés por cima da espaldeira, mas não respondeu e continuou a andar, agindo como se tivesse ouvido um mero ruído.

 

Ela fez alguma coisa? insistiu o jovem. Um longo momento de espera.

 

Por que desejas sabê-lo, Aeren Tuorin?

 

Por... curiosidade.

 

Com um desagradado fungar, o siruliano deu a entender que a resposta não fora satisfatória, mas dignou-se a esclarecê-lo mesmo assim.

 

Três foram os crimes que Adelia Ynyth cometeu: trocou votos de matrimónio com um homem que não pertence aos seus, recusou-se a cumprir com a jura sagrada proferida aquando da Cisão e demonstrou contempto para com as leis da nação que tomou como sua.

 

Ah... A Cisão devia ser o que os sirulianos chamavam ao exílio forçado das suas mulheres. Aelgar falava de costas para Aewyre, mas tão clara e forte era a sua voz que o jovem não teve quaisquer dificuldades em perceber; era como se as suas palavras fossem carregadas pelo vento para os seus ouvidos, cada som impecavelmente pronunciado e cada sílaba perfeitamente encadeada. Parecia que estava a conversar em Glottik. Entendo... E nada mais perguntou, atitude que o siruliano aprovou em silêncio.

 

Aewyre olhou para Allumno, sabendo bem que o mago tinha ouvido a breve conversa, e este ergueu as sobrancelhas num acto de conformação de alguém que estava consciente daquilo que se passava e sabia nada poder fazer contra. Teria de falar com ele acerca dos sirulianos e do que faziam em Tanarch, pois havia algo que decididamente não lhe agradava naquela situação...

 

Aewyre sussurrou Quenestil, chamando-lhe a atenção com um toque leve nas costas da mão.

 

O que é?

 

Estamos a ser seguidos...

 

O guerreiro olhou de imediato para trás sem qualquer discrição e não demorou muito a destacar de entre os transeuntes quatro homens que olhavam atentamente para a estranha procissão e que não faziam o mínimo esforço para o esconder.

 

Profundezas de Asmodeon! praguejou, parando abruptamente.

 

Os sirulianos interromperam a marcha e viraram-se eles também de imediato, sem sobressaltos, como se tivessem mantido um estado de prontidão para qualquer eventualidade. Algumas pessoas tropeçaram e fugiram aquando deste gesto, provavelmente por julgarem que os insultos instantes atrás por si proferidos haviam sido levados demasiado a sério, mas os três nem se mexeram enquanto os seus olhos percorriam a multidão, avaliando e procurando uma ameaça.

 

Não invoques esse nome com leviandade, Aeren Tuorin admoestou Aelgar com rispidez, como faria a uma criança. O que te alarmou?

 

Aewyre quis indicar os quatro indivíduos, mas estes não haviam perdido tempo a misturarem-se com a multidão assim que o jovem se virara e tinham-no feito habilidosamente, mesmo enquanto esta se dispersava perante a atenção dos sirulianos.

 

Estavam uns homens a seguir-nos... esconderam-se.

 

Bom, isso dificilmente poderá ser evitado. Continuemos então praticamente ordenou, fazendo tenções de retomar a marcha.

 

Mas...

 

Não os poderíamos impedir de nos seguirem, mesmo que soubéssemos quem são. Escoltar-vos-emos até ao vosso destino e chamaremos a guarda de Val-Oryth se temem pela vossa segurança...

 

Não! Não precisavam de dar mais razões de suspeita às forças da lei da cidade. Os arbitrários olhos do comandante tornaram a incidir nos de Aewyre. Obrigado... não será necessário. Podemos continuar.

 

Seja apesar da aparente concordância, havia algo que claramente não agradava ao siruliano, embora fosse difícil dizer se a causa seria a pessoa de Aewyre ou a situação. Em todo o caso, virou as encapadas costas ao guerreiro e, ao seu sinal, o grupo recomeçou a andar.

 

Com os maxilares tensos de frustração, o guerreiro ainda olhou uma última vez para trás, notando que Quenestil também o fazia, mas não tornou a avistar os quatro homens, embora também não tivesse a certeza de que os reconheceria se os visse outra vez. Seriam Filhos do Flagelo ou simples homens da multidão irada? Podiam ser ambas as coisas. O eahan acabou por desistir e retomou o passo, cruzando um breve olhar preocupado com o seu amigo. Também pensava o mesmo.

 

O Inverno recusava-se a libertar Karatai do seu álgido abraço e descobrir a castigada terra do manto níveo que já há tanto tempo a cobria. Demasiado tempo. Os seus céus continuavam opacos, os ventos ainda fustigavam com uma fúria que há muito os devia ter abandonado, o ar estalava, frígido, e os filhos das estepes e os seus irmãos morriam de frio e fome. Montado num hemíono de esfaimadas costelas bem visíveis, a disposição de Kror igualava o ambiente que o rodeava: fria e agreste, com os seus bravios cabelos entrançados soltos debaixo do seu gorro de pele a contorcerem-se ao sabor do vento. As nuvens do vasto horizonte reflectiam-se no negrume que rodeava os seus orbes vermelhos, que o contemplavam como se pudessem ver para além dele, para além das coroas brancas da cadeia montanhosa que separava as estepes das terras onde o chão era acidentado. O drahreg seguia em busca de Hazabel, em busca de vingança por tudo o que a harahan fizera à sua tribo, à sua família. Fora enganado e usado pela mulher, e os seus haviam sofrido por isso. Tantos irmãos mortos no ataque ao cromeleque e a Venerável mutilada... dois actos imperdoáveis perpetrados por alguém que fora acolhido pelos Cho Tirr e que com eles partilhara tecto e comida. Não havia crime mais vil, e Kror comprometera-se a responder pelos actos de Hazabel aquando do acolhimento desta pela tribo. Nos dedos de uma mão enluvada segurava as rédeas folgadas da sua montaria, nos outros um fetiche feito pela Venerável uma delicada armação de pequenos ossos tintos com o sangue e atados com o cabelo da própria anciã e com penas de falcão nas junções que o deveria ajudar a encontrar aquela que tanto mal trouxera à tribo. Kror era o portador da vingança da xamã, vinculado a ela por alma e palavra, e o fetiche era o seu guia, ardendo com o sangue da lesada Venerável, procurando a sua algoz com os olhos do falcão nos céus e conduzindo o drahreg na sua direcção para dispensar a punição que lhe era devida.

 

Um instrumento de vindicação... idealizou a demoníaca voz de Kerhex dentro da sua cabeça. Poucos papéis ser-te-iam mais adequados, devo dizer...

 

Não discordou Sassiras’s. Não se trata de vingança.

 

- É justiça que vais dispensar a uma criatura que já provou estar para além da redenção, nada mais.

 

Chama-lhe o que bem entenderes... gozou Kerhex. A cabra usou-o. Ele vai eviscerá-la e...

 

Eu sei o que devo e vou fazer. Calem-se os dois! reagiu Kror. Não eram muitas as vezes que a divaroth e o azigoth discutiam um com o outro, pelo menos não que o ouvisse, mas quando começavam, nunca terminavam antes de o drahreg ficar com uma grande dor de cabeça.

 

Deves evitar direccionar a tua raiva seja a quem for, Kror, mas especialmente em nós sabes bem que ela é desperdiçada leccionou Sassiras’s.

 

Não a ouças. Deixa-a arder, deixa que os fogos da fúria te acicatem os membros e a alma para que os teus inimigos ardam nas suas chamas... contrapôs Kerhex.

 

Que fatalmente acabarão por te consumir a ti também...

 

Logo veremos qual de vocês tem razão. Mas até lá, deixem-me em paz! - chicoteou o drahreg.

 

Será saturação que sinto no teu tom, Kror? inquiriu Kerhex.

 

Não é por malícia que o faço, Kror, sabe-lo bem. Mas aceitaste as condições do nosso pacto e...

 

Eu sei muito bem quais são as condições do nosso pacto, e nenhuma delas diz que tenho de vos aturar enquanto não tomo decisões!

 

Ah, mas esqueces-te de que não nos propomos só a tolher-te o discernimento quando mais dele precisas... lembrou o azigoth, mordaz.

 

Receio bem que tenhas de contar com o nosso incondicional apoio sempre que as dúvidas te atormentarem...

 

Bem sabes que as palavras dele estão sempre revestidas de logros e falsidades, Kror, mas desta vez há verdade naquilo que ele diz. O que nós acordámos foi...

 

Pronto, não preciso que me lembrem. Mas um pouco de descanso das vossas implicações seria pedir muito?

 

Como queiras... acedeu Kerhex, e a sua insidiosa voz quedou-se.

 

Age como melhor achares. Tenho a certeza de que tomarás a atitude correcta... retirou-se Sassirass.

 

Incapaz de conter um suspiro de alívio, o drahreg achou que era altura de parar um pouco para o descanso da montaria. Os hemíonos eram animais robustos e vigorosos, mas este estava debilitado pela falta de comida e o ritmo normal de marcha dos ocarr certamente matá-lo-ia. Nem sequer ousava beber o sangue do hemíono, como era costume dos guerreiros das estepes para pouparem comida durante viagens prolongadas, o que o forçava a racionar minuciosamente os parcos mantimentos que os Cho Tirr lhe puderam dispensar. Puxando as rédeas ao de leve e pedindo delicadamente à montaria que parasse, Kror desmontou num gesto rápido e deixou que o hemíono lambesse a dura crosta de neve para matar a sede, acariciando-lhe o pescoço e murmurando-lhe palavras de encorajamento e agradecimento pelo seu esforço. Quando o animal pareceu saciado, o drahreg começou a andar, puxando a montaria pelas rédeas, e assim que as suas pernas rígidas se habituaram às regulares passadas, a mente do drahreg tornou a perder-se em pensamentos. O pacto com Sassiras’s e Kerhex raras vezes lhe ocupara os pensamentos nos últimos tempos, embora fosse algo que de uma forma ou de outra sempre estivesse presente, uma sombra na sua alma, uma luz quando fechava os olhos. Era um segredo do qual poucos estavam cientes, nem sequer os seus irmãos sabiam, embora desde sempre tivessem suspeitado de que algo de invulgar estava por detrás das suas acções. Por várias vezes a Venerável inquirira a esse respeito, mas respeitara sempre o seu silêncio e nunca fora demasiado intrusiva ou insistente com as suas perguntas. Todos o haviam aceite tal como era, ou pensavam que era, pois não podiam saber que o Kror que conheciam não era necessariamente o verdadeiro, não podiam sequer principiar a conceber a sua luta interior, o conflito que se desenrolava no âmago do drahreg a cada exalação, a cada batida do seu intrinsecamente negro coração. O pacto obrigava-o a viver pondo a sua própria natureza em causa, a questionar tudo o que sabia ou julgava saber, a interrogar-se acerca daquilo que o movia ou detinha, a alterar as suas percepções a cada dia, quase a cada instante que vivia. O pacto era tormento, e Kror selara-o de livre e boa vontade.

 

Era nestas alturas que os alfanges lhe pesavam nas costas, no espírito. As silenciosas admoestações benévolas de Sassiras’s e as silentes censuras maliciosas de Kerhex, ambas pareciam querer entranhar-se na mente do drahreg sempre que este pensava estar temporariamente livre dos seus sempre julgadores comentários. E era nestas alturas que Kror se procurava expandir, fazendo de tudo por aproveitar o silêncio na sua cabeça, usufruir da vasta quietude das estepes para viajar para além da sua atormentada prisão de carne e osso. Aprendera a fazê-lo aquando da sua chegada a Karatai, antes de sequer ter conhecido os Cho Tirr. O sentimento de solidão na imensidão plana podia ser avassalador, o que ensinara Kror a tornar-se parte das estepes, a partilhar da companhia do céu e da terra, jornadeando neles enquanto o seu corpo se encaminhava para um destino incerto... Só que agora o seu destino estava bem definido, e a clareza do seu propósito acordou o drahreg bruscamente do seu incipiente devaneio, despertando-o também para outro propósito, outra sensação.

 

Ele ainda vivia.

 

Aewyre continuava vivo, a sua espada ainda o desafiava, e aquilo que era seu por direito permanecia dividido entre os dois. A dormente tensão fatal que os atraía avivou-se por breves instantes, sendo contudo abafada de seguida pelo peso do novo propósito de Kror e das tréguas que acordara com o humano. Mas sabia bem que era apenas uma questão de tempo. A tensão continuaria sempre lá, até que um ou outro morresse, e Kror não estava disposto a arcar com mais, um peso na sua alma.

 

”Um dia, Aewyre Thoryn, um de nós terá de morrer...”

 

Uma rajada súbita e as estepes pareceram ulular como uma salivante alcateia em sangrenta antecipação. O drahreg continuou o seu caminho, puxando o cansado hemíono de resolutos olhos vermelhos postos no horizonte.

 

Slayra e Worick observavam com protegedora atenção cada gesto da sacerdotisa de Acquon que ministrava os ferimentos de Lhiannah, sentada à cabeceira da cama da princesa. Era uma mulher de porte bonacheirão, formas arredondadas e trejeitos bamboleantes, mas cuja mão sapuda de dedos curtos aplicava habilmente e com todo o cuidado as decocções e cataplasmas na paciente enquanto a outra segurava as duas pequenas tigelas que continham as mezinhas. Durante o processo entoava o que soava como uma gutural canção de embalar, carinhosamente maternal quando ocasionalmente vozeava as palavras da letra. A sua indumentária de fiel do deus da medicina consistia de uma toga azul-escura com estrias brancas e mangas amplas, um capelo azul-esverdeado com a Ânfora de Acquon vertendo água nele bordada, por cima do qual pendia um colar com esse mesmo símbolo em prata, e um toucado branco que lhe cobria os cabelos, ombros e ambos os queixos.

 

O que é isso? indagou Slayra, estranhando a tintura que a mulher esfregava nos inchaços acastanhados da princesa.

 

Hum? despertou a mulher, piscando os miúdos olhos vivazes e agraciando a eahanoir com um sorriso da pequena boca carecida de lábios, apertada entre duas rotundas bochechas.

 

Essa coisa esclareceu Slayra, apontando para a tigela com a tintura, o que é?

 

Oh... espirradeira. Muito almo. Faz muito bem esclareceu a sacerdotisa, indicando os inchaços de Lhiannah. Leochlan era suficientemente parecido com Glottik para que Slayra e Worick pudessem perceber, mas nenhum dos dois sabia o que era uma ”espirradeira”.

 

A eahanna negra reconhecia o conteúdo da outra tigelinha como infusão de cavalinha, que sabia ser destinada à cicatrização das feridas abertas, e a sacerdotisa aparentemente sabia o que fazia, pelo que acenou com a cabeça e deixou-a continuar com o seu trabalho. Worick não proferira uma única palavra desde a sua não tão solene promessa, e não parecia minimanente interessado em trocar impressões de qualquer espécie com a recém-chegada, que, fosse como fosse, agia como se os dois não estivessem presentes.

 

Tão leina... que menina tão leina... lamentou a sacerdotisa, abanando a cabeça em repreensão dirigida a quem havia agredido a sua paciente enquanto dava uns toques leves numa porção exagerada de tintura de modo a espalhá-la pelo malar ferido de Lhiannah.

 

Findo o serviço, colocou as suas duas tigelinhas dentro de uma caixa de madeira marchetada que tinha sobre as pernas, fechou-a com um ténue estalido de fechadura, pousou-a no chão e procedeu a tirar a compressa do ouvido de Lhiannah. A mulher inalou através dos dentes enquanto o fazia, o que enervou Slayra momentaneamente, mas depois limitou-se a emitir sons guturais enquanto observava de perto o orifício.

 

Como é que ela está?

 

Hum?

 

Como é que ela está? repetiu a eahanoir. Vai ficar boa? A sacerdotisa encolheu os roliços ombros, limpando uns restos de sangue seco no ouvido de Lhiannah com uma pequena haste metálica com um bocado de pano na ponta.

 

A menina está muito doente. Pode demorar tempo...

 

Quanto?

 

Pode demorar tempo...

 

Slayra soltou um exasperado suspiro e desistiu de tentar obter uma resposta satisfatória da sacerdotisa, que começou a destapar o torso de Lhiannah e a puxar-lhe a camisa para cima de modo a inspeccionar o afrouxamento das ligaduras que lhe cingiam as costelas partidas.

 

”Deuses...”, pensou Slayra, apercebendo-se uma vez mais da extensão dos ferimentos da sua companheira ”Como ela está...”, e virou a cara. Já vira coisas bem piores, era certo, mas a visão da orgulhosa princesa naquele estado a ser casualmente tratada como um cavalo manco era mais do que a eahanoir naquele momento podia suportar. Além do mais, reparou, afagando o ventre, já se apercebera de que ultimamente, por qualquer razão, tinha andado com a sensibilidade à flor da pele...

 

Worick permanecia calado, observando atentamente cada gesto da sacerdotisa com um olhar severo de encouraçados braços cruzados. Encontrava-se dividido entre o sentido do dever de velar por Lhiannah e a quase esmagadora vontade de pegar no seu martelo, sair templo fora, calcorrear a cidade e virá-la do avesso se necessário fosse para defrontar quem fizera aquilo à sua protegida. Isso e malhar-lhe o corpo à martelada até que nada mais restasse além de um saco de pele sangrenta envolvendo carne amassada e ossos esmigalhados. Até então, o dever falara mais alto, pois caso contrário teria ido com o Aewyre e os outros, talvez mesmo sozinho, e não teria passado apenas pelo Cenóbio. De qualquer forma, era preferível para o thuragar alimentar tais pensamentos a deixar que o sentimento de culpa se apoderasse dele, culpa por ter permitido que Lhiannah participasse naquele disparate; pior, ter ele próprio participado nele e desperdiçado todas as oportunidades de a demover, forçosamente ou não. A arinnir já fora ferida antes, e quase chegara a tomá-la por morta quando ela e o Aewyre haviam caído na caverna dos Corações Quebrados, mas Worick nunca se havia até então repreendido tanto por não ter impedido Lhiannah de se juntar naquele fatídico dia ao raio do rapazola armado em herói acompanhado pelo raio dum mago com uma gema cravada na testa... Sem disso se aperceber, começou a resmonear em Garogar, dando a impressão de que trincava pedras, mas apenas Slayra reparou, pois a sacerdotisa continuava alheia a tudo menos à sua paciente, cujas costelas estava a acabar de reenfaixar após ter avaliado o seu estado.

 

Bom, a menina fica assim. Crás volto disse, esfregando as mãos sempre sorridente, como se fosse algo que devesse alegrar a eahanoir e o thuragar.

 

Obrigada, sacerdotisa... agradeceu Slayra.

 

A sacerdotisa tornou a sorrir, arrumou as suas coisas e deu uma palmadinha consoladora na espaldeira de Worick, que a ignorou. Alheia à insensibilidade do thuragar, a mulher deteve-se perante Slayra e, para surpresa desta, afagou-lhe a cara carinhosamente.

 

Não fique flébil. A menina fica boa foi o que a eahanna percebeu, e apenas conseguiu acenar com a cabeça em resposta.

 

A mulher prendou-a com mais um sorriso de dentes pequenos e dirigiu-se à porta, que se abriu repentinamente e sem qualquer aviso prévio, por pouco não atingindo a sapuda mão que a sacerdotisa estendera para a abrir. Uma acólita entrou de rompante no quarto, por pouco não esbarrando com a sua superiora, e de imediato se desfez em deferentes pedidos de desculpa. Worick virou-se para a entrada, agarrando instintivamente o cabo do seu martelo e empunhando a arma, pronto para tudo, e embora não reconhecesse a acólita como ameaça, também não o baixou logo. A sacerdotisa levara a mão ao farto peito em susto, e ambas começaram a falar ao mesmo tempo num emaranhado tal de Leochlan que tanto eahanoir como thuragar tiveram dificuldade em compreender o que diziam.

 

O que é que se passa? exigiu Worick saber, mas foi ignorado pela sacerdotisa e pela acólita que esta tentava acalmar. O que é que aquelas galinhas estão a cacarejar? perguntou a Slayra.

 

Qual é o problema? tentou a eahanoir.

 

A mulher mais velha disse algo à recém-chegada, e esta anuiu com a cabeça, retirando-se a correr, e virou-se para os dois companheiros antes de se retirar ela também.

 

Amigos, os vossos amigos chegaram! Na entrada, sirulianos!

 

O quê? Worick mal percebera, mas a sacerdotisa alçou as saias e correu para fora do quarto sem mais demora. Mas o que é que se passa?

 

Eles chegaram, e... o melhor é irmos ver! concluiu a eahanoir, saindo porta fora.

 

Mas... O thuragar olhou para Lhiannah e para a porta aberta, ainda a empunhar o seu martelo. Oh, pedras me partam... e foi atrás de Slayra.

 

E aqui vos deixamos, Aeren Tuorin. Devemos prosseguir com a nossa incumbência anunciou o velho siruliano perante as escadas da entrada do templo, o único edifício de pedra em vários quarteirões, à frente do qual se começavam a ajuntar mais transeuntes do que seria desejável para quem como Aewyre gostaria de passar despercebido.

 

A pequena escadaria era ladeada por duas grandes esculturas representando ânforas a verter água, dando a impressão de que eram elas as responsáveis pelo estado alagadiço das ruas, e subia para um portal formado pela água fluente de duas ânforas cruzadas por cima da grande porta de dois batentes. Pelo menos três sacerdotes e uma dúzia de acólitos já haviam transposto a entrada, atraídos por curiosidade e pelos rogos quase alarmados dos laicos perante a aparente vinda de sirulianos às Alas da Convalescença. Todas as atenções recaíam sobre as três altas figuras arnesadas e os quatro companheiros que escoltavam, mas apenas estes últimos pareciam incomodados com o facto, olhando em redor como animais encurralados.

 

Obrigado... Mandatário agradeceu Aewyre.

 

O siruliano aprovou a escolha de título do guerreiro com um aceno da cabeça e reconheceu a presença dos restantes companheiros com outro, mais curto, que também serviu como gesto de despedida.

 

Sejam prudentes quando abandonarem a protecção do templo. Pode haver quem vos deseje mal por terem sido vistos na nossa presença.

 

”Não serão os únicos, de certeza...”, pensou o guerreiro. Sê-lo-emos, Mandatário. Desejo-vos sorte na vossa... incumbência.

 

Os olhos do siruliano pesaram mais alguns momentos sobre Aewyre através das frestas da babeira do seu elmo, parecendo estranhamente... dúbios.

 

Tanarch não é um lugar seguro, Aeren Tuorin, não nos próximos tempos e não pelas razões que julgas. Aconselho-te a teres muito cuidado.

 

E com isto libertou-o por fim dos seus acerados orbes, virando-lhe bruscamente as costas e voluteando a capa azul. Como um só, os dois jovens Ajuramentados emularam o movimento do seu superior e seguiram-no, afastando-se do templo sem mais nada dizer, permitindo um involuntário suspiro de alívio aos companheiros. Porém, os três estacaram subitamente ao mesmo tempo, como se tivessem sentido algo, e três rostos resguardados de babeiras voltaram-se para as portas do templo, das quais saíram uma rotunda sacerdotisa acompanhada de uma nervosa jovem, uma mulher de cabelos negros como a noite e um thuragar arnesado armado com um temível martelo de guerra.

 

Quenestil! chamou Slayra, descendo as escadas apressadamente.

 

Qual é o problema? perguntou o thuragar com manifesta avidez de encontrar algum.

 

Os dois eahan abraçaram-se, tirando conforto da presença um do outro, mas os restantes companheiros, principalmente Aewyre, não deixaram de reparar na estranha reacção dos sirulianos, que não tiravam os olhos de Slayra e Worick, ignorando todos os restantes.

 

Passa-se alguma coisa? insistiu este ao chegar perto do grupo, mantendo uma empunhadura firme no cabo da arma.

 

Não... assegurou Aewyre com exígua convicção. Não há problema nenhum. Venham, vamos entrar. Dando dois lentos passos atrás, o guerreiro esperou ainda que os sirulianos tornassem a virar-lhes as costas e seguissem o seu caminho antes de fazer o mesmo. O peso dos seus olhares, no entanto, permanecia como uma marca nas almas dos companheiros mesmo enquanto os três desapareciam na multidão, fazendo com que sentissem que haviam feito qualquer coisa de errado, embora não soubessem bem o quê.

 

Querem dizer-me o que se passou ou não? Quem eram aquelas bisarmas ?

 

Já te conto, Worick. Mas vamos entrar antes, anda.

 

Allumno agarrou paternalmente o ombro de Taislin e levou-o consigo, seguindo o seu protegido. Worick ainda lançou um olhar de desafio à multidão que se aglomerara em frente do templo, cheio de vontade de esborrachar uma cara, qualquer cara, mas ficou-se por um resmoneio e pousou a cabeça do martelo no ombro, indo resignadamente atrás dos seus companheiros. O braço de Quenestil cingia a cintura de Slayra enquanto a sua mão escorregava pelo ventre da eahanoir, e os olhos de ambos trocavam silenciosas palavras de afecto que Aewyre não precisou de ouvir para perceber e que lhe trouxeram um comedido sorriso à cara, retirando uma certa medida de alegria daquela demonstração de afeição mútua.

 

Está tudo bem, Slayra? indagou, e o sorriso da eahanna foi afirmativo quando olhou para o guerreiro. Como está a Lhiannah?

 

A sacerdotisa já tratou dela indicou a mulher no topo da escadaria com um gesto da cabeça, e o jovem constatou que ainda eram o centro das atenções.

 

Falamos lá dentro. Vamos apressou-os Aewyre, pegando no casal pelos ombros de modo a que começassem a andar enquanto olhava para trás para a multidão que, embora longe de parecer hostil, tão-pouco se lhe afigurava amigável, e os sirulianos já não se viam.

 

O ajuntamento de acólitos e laicos fitava os companheiros com um misto de curiosidade e desconfiança enquanto estes subiam a escadaria. Entre eles, os três sacerdotes receberam-nos com expressões dúbias nos rostos e nada disseram, manuseando pensativamente as amplas mangas das suas togas azul-claras. Somente a sacerdotisa rechonchuda se dignou a dirigir-lhes palavra, ainda ofegante da sua corrida até àquele local, mas sem nunca deixar de exibir os pequenos dentes do seu sorriso.

 

Há óbice para vós? perguntou amavelmente.

 

Não, sacerdotisa, não há problema nenhum. Podemos entrar? A mulher fez-lhes um despreocupado gesto com a mão sapuda para que assim o fizessem. Obrigado.

 

Era bom que não deixassem... resmungou Worick. Ficavam a cuspir os dentes durante uma semana. Mas afinal o que é que se passou?

 

Aewyre pigarreou e, enquanto percorriam o corredor perpendicular à nave do templo, relatou ao thuragar o seu encontro com os três sirulianos e como estes o haviam salvo de ser pisoteado pela multidão após os ter tentado ajudar. As Alas da Convalescença eram indubitavelmente mais acolhedoras do que o Cenóbio da Equidade, com os seus harmoniosos motivos aquáticos a deslizarem sinuosamente pelas cornijas, colunas e capitéis, os seus vitrais de cores vivas e revitalizantes em tons de azul, verde e branco e as tapeçarias que abafavam o frio das pedras que constituíam o edifício. O corredor abria-se na enfermaria que dava o nome ao templo, um longo espaço aberto transversal à abside iluminado pelos fachos de luz que manavam das altas e estreitas janelas, por vezes interrompidos pela silhueta de um laico que deambulava atentamente pelo andaime de madeira por cima das camas encostadas à parede que percorria. A encimar as cabeceiras dos catres havia também nichos nas paredes para os jarros e bacias de água necessários ao tratamento dos seus enfermos ocupantes, que gemiam e se revolviam, e cujos tossidos ecoavam pelo tecto alto de sólidos madeiramentos das Alas. O Inverno fora longo, e o seu pernicioso toque frio ainda perdurava nitidamente na saúde de muitos tanarchianos.

 

Pedras me partam e a ti, até depois de sair de um templo de Bellex consegues meter-te em sarilhos... barafustou o thuragar. Não há maneira de ficares quieto? Tens sempre de arranjar um problema qualquer aonde quer que vás?

 

Então, Worick? Nem pareces tu... reparou Aewyre com jocosidade algo forçada.

 

Aquela que está na cama também não parece a Lhiannah.

 

Por momentos, o único som foi o do débil eco dos passos e tossidos nas Alas, as sussurradas palavras reconfortantes dos acólitos aos doentes e as rumorejantes orações dos laicos ajoelhados aos pés das camas.

 

O que é que queres dizer com isso? quis o jovem saber. Allumno olhou de soslaio para o seu protegido, e Quenestil franziu o cenho, apreensivo.

 

Que neste momento não precisamos de mais problemas esclareceu o thuragar sem sequer olhar para o jovem. Que a minha cachopa não precisa de mais problemas. E que se tentares arranjar mais, eu tos dou de bom grado.

 

Worick... advertiu o shura, sentindo a disposição agressiva do thuragar.

 

Quenestil. Aewyre olhou para o eahan por cima do elmo de Worick e abanou a cabeça. Deixa estar, quis dizer, mas ficou-se pelo gesto e o grupo continuou o seu caminho pelas Alas em silêncio.

 

Quando chegaram por fim ao quarto onde Lhiannah estava instalada, Worick estugou o passo e entrou antes dos outros, resmungando qualquer coisa que os companheiros não perceberam nem tiveram vontade de perceber.

 

Tens de entender que o estado da Lhiannah... tentou Allumno explicar enquanto deixava Slayra e Quenestil passarem.

 

Eu sei, Allumno, eu sei. Não o posso censurar.

 

O mago acenou com a cabeça e entrou com Taislin, deixando que Aewyre fechasse a porta atrás de si. A primeira coisa na qual todos repararam com pesar foi que a princesa ainda não despertara; mesmo Worick e Slayra, que haviam estado com ela apenas há momentos e que mesmo assim se haviam atrevido a nutrir esperanças. A segunda foi o ofensivo odor azedo mal dissimulado com lavanda que lhes tomou os narizes de assalto.

 

Que cheiro é este? perguntou Taislin, torcendo o arrebitado nariz.

 

Ah... hesitou Slayra, lançando um olhar cúmplice a Quenestil. A Lhiannah teve umas convulsões de manhã e vomitou, mas não lhe aconteceu nada de pior, nós estávamos aqui para a ajudar pôs os apreensivos olhos em Worick, mas o thuragar limitou-se a encostar o seu martelo à cabeceira de Lhiannah e sentar-se na cadeira que aparentemente tomara como sua.

 

Os outros também nada disseram, e Slayra permitiu-se um discreto suspiro de alívio, apertando a mão de Quenestil com força. Aewyre dirigiu-se à cama enquanto desafivelava o talim da espada de Lhiannah e contemplou a princesa, cuja cara ferida estava manchada com tinturas e unguentos. Ajoelhou-se perante o leito e enquanto pousava a esguia arma embainhada a seu lado, procurou com a sua mão livre algo debaixo da cama, crispando os dedos assim que sentiu o familiar toque do couro da sua bainha. Tirou Ancalach do seu esconderijo e permaneceu de joelhos, apoiando o cotovelo no colchão sobre o qual a arinnir convalescia.

 

A sacerdotisa não soube dizer quando é que ela vai recuperar. Diz que pode levar tempo... informou Slayra.

 

O guerreiro limitou-se a nutar silenciosamente com a cabeça e deu com a sua mão suja a deslizar lentamente pelos lençóis brancos até à cabeça de Lhiannah, passando os dedos pela sua deslustrada cabeleira loura e afagando-lha. Os pequenos olhos de Worick observavam cada movimento do jovem como os de uma galinha desconfiada, mas nada disse, nem sequer quando Aewyre se soergueu para beijar gentilmente a testa da princesa, afastando-se de seguida e afivelando Ancalach ao cinto.

 

Bom, vou ver se há algum sítio aqui no templo onde me possa limpar um pouco... anunciou, coçando a espinhosa barba e esfregando uma oleosa madeixa de cabelo para trás. Depois vamos comer qualquer coisa e depois então começamos a... investigar.

 

Investigar? perguntou Worick.

 

Sim, nós... O jovem não queria fazer parecer que poderia arranjar mais problemas. Disseram-nos umas coisas no templo de Bellex que nos podem ajudar a encontrar quem fez... isto... à Lhiannah.

 

Ai é? A notícia avivou o thuragar, que não parecia muito hesitante em se envolver em tal tipo de ”problemas”. E que coisas são essas?

 

Sabemos onde encontrar alguns dos suspeitos. Já é um começo.

 

Lá isso é... concordou, levantando-se da cadeira. Então e como é que fazemos? Quem fica, quem vai? Onde é isso?

 

Bom... se calhar a Slayra devia vir connosco desta vez. Tu é que sabes lidar com estas situações... urbanas sorriu Aewyre, mas a eahanoir não correspondeu.

 

Eu... O branco dos olhos de Slayra quase tragou o azul das suas íris. Eu preferia ficar ao pé da Lhiannah. Ela pode precisar de mim... pode vomitar outra vez, e não há sempre um acólito à mão.

 

Allumno, banhado pela multicolorida luz do vitral que estivera a contemplar de braços cruzados, olhou para a eahanoir de sobrolho erguido, e os orbes felinos de Taislin estavam atentos e admirados.

 

Slayra, eu acho que a Lhiannah não poderia estar em melhores mãos do que as do Worick. Nós somos capazes de precisar de ti e de certeza ele...

 

Eu... preferia não ir, Aewyre. A sério.

 

Slayra, tu já não tens de provar nada assegurou-lhe o guerreiro com toda a sinceridade. Fico contente por ver que te preocupas com a Lhiannah, mas ela está num templo de Acquon e com o Worick a tomar conta dela. Não vejo o que...

 

Oh, que o martelo de Tharobar estilhace a Bigorna Dourada e as vossas cabeças ocas com ela! barafustou Worick, levantando-se. A cachopa não pode ir! O eahan escavou-a e descobriu-lhe o filão!

 

Todos os olhos se viraram para o thuragar.

 

O quê? exclamou Aewyre.

 

Ela está grávida, porra!

 

Slayra emudecera. Naquele momento só lhe apetecia tapar a cara, ser engolida pelo chão e não ter de ver as expressões atónitas nas caras dos seus companheiros. Queria também esmurrar Worick, queimar-lhe a língua suja com um ferro em brasa, arrancar-lhe as barbas, mas as suas pernas estavam demasiado moles para se mexer. Começou a suar da palma da mão que agarrava a de Quenestil mas não afrouxou o aperto, muito pelo contrário, parecia querer espremer os dedos do eahan, ele próprio também sem palavras, apanhado de surpresa como fora. O único que mantinha uma medida de compostura era Allumno, cujo singular sinal de surpresa eram as sobrancelhas erguidas, que lhe enrugavam a pele da testa devido à gema nela incrustada. Taislin foi o primeiro a aproximar-se, apoiando as mãos nas ancas, inclinando a cabeça para o lado e examinando atentamente a barriga de Slayra.

 

Olha, pois é... Ela está mesmo mais inchadita.

 

A eahanoir cobriu o ventre num gesto instintivo da sua mão, e Quenestil achegou-se dela, fitando Aewyre e esperando uma reacção do seu amigo. Os olhos do guerreiro permaneciam arregalados, os seus braços pendiam frouxamente aos seus lados e a sua boca abriu-se ligeiramente várias vezes, mas nenhuma palavra dela saiu, tal era o choque.

 

Nós íamos dizer-vos... escusou-se o shura.

 

Mas a altura não era apropriada acrescentou Slayra rápida e atabalhoadamente.

 

E lá vem ela outra vez com a mesma conversa... comentou Worick, sentando-se como se o assunto já não lhe dissesse respeito.

 

A eahanoir lançou um furioso olhar ao thuragar, mas nada disse, nada soube dizer, nada pôde dizer.

 

Há quanto tempo...? perguntou Allumno calmamente, mantendo os pensabundos braços cruzados.

 

Quase três meses...

 

Hm-hm... comentou o mago por falta de algo melhor para dizer.

 

Mas... grávida...? Tu e o Quenestil...? debateu-se Aewyre com os seus pensamentos.

 

Não, é só ela que está grávida mesmo esclareceu Worick.

 

O eahan permaneceu calado, com mais uma razão para a embaraçada vermelhidão da sua pele, e pôs um braço por cima do ombro de Slayra.

 

Mas... quando... como...

 

Quando não sei, mas se quiseres posso descrever-te como se faz.

 

Worick, cala-te! estalou a eahanoir. Tu prometeste-me, seu nanico mentiroso!

 

Nanico? Deves estar a pensar ali no eahan quando ele baixou as calças para...

 

Slayra rosnou e deu um passo em frente, mas Quenestil reteve-a, embora os seus olhos cinzentos também faiscassem por breves momentos.

 

Não abuses, Worick...

 

Vê lá tu...

 

Eu acho que nos estamos a exaltar, não vos parece? interveio Allumno, erguendo a voz e descruzando os braços ao avançar de modo a ficar entre o thuragar e o casal. Vamos todos acalmar-nos um pouco, sim?

 

Ambos os eahan permaneceram abraçados, sentindo a vergonha dar uma vez mais lugar à raiva, sem saberem o que mais dizer. Worick ainda resmoneou algo entre dentes, mas nada acrescentou. O mago suspirou e olhou para o seu protegido, que ainda estava visivelmente atarantado com a revelação, incapaz de organizar os seus pensamentos.

 

Aewyre, temos um problema? perguntou Allumno em tom de constatação.

 

Eu... O guerreiro olhou alternadamente para Quenestil e Slayra, que mais pareciam duas crianças prontas a receber o castigo por uma travessura. Heh...

 

A exclamação do jovem não fora a que os companheiros haviam esperado, o que lhe mereceu o olhar de todos.

 

Heh, heh... Os lábios de Aewyre contorceram-se num debatidiço sorriso, mais semelhante a um esgar. Hah... Ha, ha, ha, ha, ha!

 

Nenhum dos perplexos presentes percebeu o súbito ataque de riso do guerreiro. Taislin tirou o barrete com os dedos de uma mão e coçou a cabeça com os restantes, as sobrancelhas de Allumno estavam congeladas em arcos por cima dos seus olhos e as bocas do casal eahan entreabertas de surpresa. Mesmo Worick franzia o cenho, perguntando-se a si mesmo se não ouvira a piada ou se simplesmente não a percebera. A risota de Aewyre subiu num crescendo até uma gargalhada que fez com que batesse com as mãos nos joelhos para neles se apoiar.

 

Aewyre...? tentou Quenestil restabelecer o contacto.

 

Tal foi a rapidez com a qual o jovem ergueu o tronco e com a qual avançou na direcção dos eahan que o shura puxou Slayra para trás de si num gesto protegedor, ocasionado pela memória da explosão de Aewyre no beco, mas os braços do seu amigo abriram-se e envolveram-no num forte abraço.

 

Grávida! riu enquanto esbofeteava as costas do eahan com uma mão, agarrando-lhe os cabelos pela nuca com a outra. Minha raposa matreira, grande selvagem! Logo tu! Logo tu! Eu não acredito nisto!

 

Aparentemente, nem os restantes companheiros, pois as expressões nas suas caras eram da mais pura estupefacção. Quenestil só se recompôs momentos depois, apenas então conseguindo retribuir as violentas carícias e esforçar um riso que se equiparasse à gargalhada de Aewyre.

 

Logo tu, o pudico, sempre a chatear-me a cabeça por esta ou aquela, sempre em cima de mim por causa das mulheres e do casamento e do porco que eu era! O guerreiro pegou na cara do shura com as duas mãos, estudando-a como se de um novo semblante se tratasse. Ah, eu não acredito! Grande animal! E tornou a abraçá-lo.

 

Perante tal demonstração de pueril virilidade, as palavras ficaram em falta no seio do grupo, que se limitou a ver aqueles dois homens adultos rindo enquanto se abraçavam e desferiam sonoras pancadas nas omoplatas um do outro como dois rapazes. Quando se soltaram, Slayra parecia pronta a dizer algo, mas Aewyre deu-lhe nesse momento toda a sua atenção na forma de um forte beijo na bochecha e um abraço cuidadosamente menos forte do que aquele com que presenteara Quenestil. Os lábios do jovem soltaram-se ruidosamente da pele da eahanoir que, estonteada com tanta efusividade, ficou sustida pelas duas mãos que lhe seguravam os braços.

 

Como é que ele não havia de ir atrás de ti? elogiou Aewyre, sorrindo e baixando os olhos para a barriga de Slayra, abanando a cabeça em incredulidade e alegria. Isto... isto é incrível... confessou, largando a eahanoir, virando-lhe as costas e levando as mãos à cabeça enquanto se afastava a passos largos, acabando por ficar a olhar para a parede de mãos nas ancas. Incrível...

 

O silêncio tornou a reinar no cubículo enquanto os companheiros se entreolhavam, lançando olhares dúbios às costas do seu líder, que abanava a pensativa cabeça num silencioso debate com a parede.

 

Eu ainda não percebi se estás zangado ou contente... admitiu a aguda voz de Taislin.

 

A cabeça de Aewyre descaiu quando este lançou uma divertida fungadela, virando-se de seguida para encarar os seus amigos de viés, desta vez com ar mais calmo.

 

Eu vou limpar-me. A barba está a picar-me os arranhões, e as minhas mãos estão tão peganhentas que acho que se fechar os punhos já não as consigo abrir. Não demoro. Allumno, organiza as coisas até eu voltar, sim?

 

E com isto retirou-se, antes que qualquer um dos companheiros pensasse em algo para dizer.

 

Antes de o seu protegido transpor a porta de Ancalach à cintura, o mago ainda considerou recordar-lhe que manifestara o desejo de ser visto o menos possível com a Espada dos Reis, mas tomou essa precaução como desnecessária dentro do templo e absteve-se de lho lembrar. Assim que Aewyre fechou a porta, virou-se para os outros e através dos seus olhares notou que nele recaíam as esperanças de ouvirem palavras sábias e esclarecedoras, palavras que não estava certo de lhes conseguir proporcionar.

 

Bom, isto certamente alterará o que o Aewyre tinha planeado... concluiu.

 

Achas que ele ficou muito chateado? inquiriu Quenestil. O mago esboçou um meio sorriso.

 

Já sabes como é a índole do Aewyre; ele mais parece uma tempestade de Verão às vezes. Tão depressa está afundado em melancolia como a faiscar de alegria, ora calmo e sereno ora a chispar da boca. Sempre foi assim desde pequeno, desde que o conheço...

 

O sorriso do eahan foi mais franco e aberto.

 

Não o teria dito com tanto floreio, mas sim, esse é o Aewyre. E nós ficamos a adivinhar...

 

É um facto. Mas voltando à situação, vamos ter de repensar algumas coisas. Vocês escusavam de ter guardado segredo; não teria havido qualquer inconveniente em no-lo terem dito de início...

 

Quando? questionou-se Slayra. Antes ou depois de vos dizermos que o Babaki tinha morrido? Ou logo a seguir a trazermos a Lhiannah quase moribunda para o templo?

 

Pronto, paciência aplacou o mago, erguendo as mãos. O que está feito está feito, mas também não foi nada assim tão grave.

 

Nunca nada é grave para ti, pois não Allumno? perguntou a eahanna, ao qual o mago encolheu os ombros.

 

Procuro manter o discernimento e relativizar as situações...

 

Ai é? interveio Worick. Então discerne isto: a eahanoir está relativamente grávida e nós estamos relativamente presos numa cidade com gente que nos quer relativamente mal. Que me dizes disto, mago?

 

Toda a aspereza e o sarcasmo do thuragar pareceram passar ao lado de Allumno.

 

Esqueceste-te de mencionar os ferimentos da Lhiannah e o facto de sermos estranhos nesta cidade Worick grunhiu, irritado com a indiferença do mago.

 

- É evidente que já estivemos em melhores condições, mas não é motivo para atirarmos os braços ao ar ou as culpas para cima uns dos outros. Por uma vez, podemos todos tentar refrear-nos de dizer a primeira coisa que nos vier à cabeça?

 

Dispenso os teus sermões, mago.

 

Está no teu pleno direito, Worick, até porque não me refiro apenas a ti, o mago abordou o casal eahan com os olhos de modo a ilustrar a afirmação, mas seria benéfico para todos se não dispensasses seja o que for que nós tenhamos para te dizer.

 

Está bem, diz lá então o que tens a dizer. Eu sou todo ouvidos.

 

Folgo em sabê-lo. Slayra, é óbvio que acompanhares-nos estará fora de questão durante os próximos... esqueci-me; há quanto tempo estás... nessa condição?

 

Há umas dez semanas.

 

Pois, decididamente não podes andar connosco. E a tua subtileza ser-nos-ia de sobremodo útil para aquilo que o Aewyre está certamente a pensar fazer...

 

Quer dizer, eu também não estou...

 

Nem penses recusou de imediato Quenestil.

 

Terás de tratar de ti, Slayra. E ter cuidado com o que fazes. A eahanoir riu, incrédula.

 

Eu não preciso de amas de leite!

 

Pois não, precisas é de uns cascudos nessa cabeça leviana...

 

Worick, eu juro que te corto a... Slayra teve de ser agarrada por Quenestil, cuja verdadeira vontade parecia contudo ser a de ajudar a eahanoir a fazer valer a sua ameaça.

 

Allumno suspirou e olhou para Taislin, cuja estabilidade emocional naquele momento lhe pareceu exemplar. O burrik limitava-se a olhar com infelizes olhos felinos para os seus altercantes companheiros, abanando tristemente a pequena cabeça.

 

Parece que teremos de ser nós a decidir o que fazer, Taislin...

 

O quê? ouviu Worick. Tu e o mafarrico a tomarem decisões por nós? Essa é que não!

 

Allumno piscou o olho ao burrik, que se limitou a erguer um canto da boca em reconhecimento do esforço do mago.

 

Estava eu a dizer... Slayra, vais ter de ficar no templo, pois seria irresponsável da tua parte e desconsiderado da nossa envolver-te em qualquer situação de risco que te pudesse emperigar e ao teu... bebé.

 

O mago ainda tinha manifesta dificuldade em conceber a nova situação da eahanoir. Assim sendo, ficas a tomar conta da Lhiannah, como ainda há pouco sugerias, e...

 

Mas afinal o que é que o Aewyre quer fazer? exigiu Worick saber.

 

Não te posso dar certezas, Worick, mas sabendo ele os nomes dos indivíduos suspeitos de terem alegadamente organizado o ataque à estalagem e onde os encontrar, parece-me que irá tomar medidas assaz directas...

 

Ou seja, outra Alyun...

 

Não terá forçosamente de ser tão agoirento, mas é de facto imperioso que delineemos um curso de acção prudente desta vez...

 

Irra, homem! Fala como gente! Não estamos em Allahn Anroth. Allumno suspirou ao de leve e revirou os olhos, um dos mais claros indícios de que a sua paciência estava a ser testada pela refractividade do thuragar.

 

Então está bem, eu fico com a Lhiannah interrompeu Slayra.

 

E vocês?

 

Bem... seja o que for que o Aewyre tiver em mente, vai precisar da nossa ajuda, mas a questão é quantos serão úteis e a partir de quantos é que serão empecilhos. Se te excluirmos a ti e à Lhiannah, sobram apenas quatro de nós, mais o Aewyre. Ainda não sei ao certo com o que iremos lidar, mas como não poderemos contar com os teus conhecimentos e aptidões urbanos, o melhor é não excluirmos de todo a possibilidade de nos vermos envolvidos numa situação menos pacífica. Para esse tipo de eventualidades, o Aewyre, o Worick e o Quenestil estão bem preparados; eu e o Taislin nem por isso. Contudo, será necessário alguém com um mínimo de aptidões diplomáticas, pois existe a possibilidade de depararmos com alguém que não pense unicamente com a espada, ou mesmo homens da guarda de Val-Oryth...

 

Ou seja, tu... concluiu o thuragar.

 

Estarias tu disposto a desempenhar esse papel, Worick?

 

Os porcos sabem fazer magia?

 

Tanto quanto sei, não admitiu o mago, coçando distraidamente a barba do queixo como se de facto tivesse reflectido acerca do assunto.

 

Aí tens.

 

Certo. Nesse caso iremos eu, tu, o Aewyre e o Quenestil. Sobras tu, Taislin...

 

Eu vou convosco afirmou o burrik com uma convicção quase paternal, e tanto o mago como o eahan não puderam deixar de se sentirem sensibilizados pela determinação do seu pequeno amigo de os proteger e de impedir que algo de mal lhes acontecesse. Porém, Allumno duvidava de que os talentos do burrik pudessem ser úteis para aquilo que julgava que Aewyre tinha em mente. Aproximou-se dele e assentou um joelho no chão, incapaz de esconder uma careta de dor devido ao ferimento na rótula direita que para sempre guardaria como uma recordação de Moorenglade.

 

Taislin... disse, pousando as mãos nos ombros do burrik. Nenhum de nós duvida da tua coragem, e já nos salvaste a todos mais do que uma vez. Mas nós ter-nos-emos uns aos outros; a Slayra fica sozinha no templo com a Lhiannah, e por muito seguras que as Alas pareçam ser, a verdade é que não conhecemos esta cidade e devemos estar prontos para tudo. Lembras-te do que a Slayra nos disse, que ela e os eahanoir que a acompanhavam se sentiram atraídos por algo? Se foi a Ancalach, isso explicaria muita coisa, o que significa que estar perto da espada pode ser perigoso. Compreendes?

 

Os orbes felinos de Taislin estudaram o mago, as suas pupilas pouco mais do que duas frestas negras e invulgarmente perspicazes no bem iluminado cubículo, fitando Quenestil e Slayra de seguida e por fim a inconsciente Lhiannah com Worick a seu lado. Algo lhe dizia que estava a ser posto de parte, mas Allumno tinha razão; não podiam deixar a Slayra sozinha, não após terem sido atacados por inimigos que ainda desconheciam.

 

Acenou afirmativamente com a cabeça.

 

Allumno presenteou o burrik com algo que esteve perto de ser um sorriso aberto, mas que devido à barba mais pareceu um torcer involuntário dos cantos dos lábios, e apertou-lhe os ombros como para lhe dar força. Força essa de que necessitou para se erguer, pois teve de transferir o peso do corpo quase todo para o joelho ferido, entremostrando outra careta ao fazê-lo.

 

Bom, assim sendo, parece-me que estamos... Um educado bater à porta interrompeu o mago, e todos os olhares se viraram bruscamente para a entrada. Sim...?

 

A rotunda sacerdotisa que vira os companheiros no pórtico do templo entrou, sempre sorridente, trazendo nas mãos uma bacia de cobre com água fumegante e toalhas brancas nos roliços braços. Atrás dela vinham duas tímidas laicas envergando singelas togas brancas, ambas pálidas e de cabelos alourados, uma com toalhas adicionais e um cavalete e a outra com um jarro de água quente e uma vasilha com o que devia ser sabão.

 

Ludros, não estão? Limpem-se com água quente... sugeriu a mulher, esperando que a laica pousasse o cavalete no chão para nele colocar a larga bacia.

 

Obrigado, sacerdotisa agradeceu Allumno, olhando para as suas mãos, abanando a cabeça ao tomar conta da imundície que as revestia e arregaçando as mangas para as lavar.

 

O menino diz que já vem cá acrescentou a mulher, dispondo por cima da tábua do cavalete as toalhas que trouxera e as que a laica lhe entregara. O mago deduziu que se referia a Aewyre e limitou-se a murmurar o seu entendimento, indicando a Slayra que se lavasse primeiro. As axes do menino estão boas... aditou ainda, traçando quatro linhas na sua bochecha com um rechonchudo indicador.

 

”Infelizmente, não são essas as suas lesões mais preocupantes...”, lamentou-se Allumno, anuindo com a cabeça sem nada dizer enquanto esperava que Slayra terminasse as suas abluções.

 

Aewyre tinha a sensação de que alguém lhe aferroava a pele de dentro para fora de cada vez que arrancava um pêlo que crescera na orla de um dos arranhões na sua cara. Munido de uma pequena pinça e de um baço espelho de mão que contemplava de lado, o guerreiro semicerrava o olho sempre que extraía um pêlo, que deixava para trás um ardor residual e um sangramento ligeiro na borda da tenra ferida. Executava este laborioso processo nas alas do templo, sentado numa das cadeiras destinadas aos acólitos para examinarem os doentes, e com uma bacia de água quente aos seus pés, na qual já abluíra a cara e as mãos, bem como uma pequena parte do seu desassossego. Desde os banhos de vapor em Karatai que não tinha qualquer contacto com um líquido quente, e a pequena lavagem fizera com que o guerreiro se sentisse francamente melhor; tal como se uma fracção das suas preocupações estivesse naquele momento a flutuar na água da bacia turvada pela sua própria sujidade.

 

Tornou a semicerrar um olho ao arrancar um pêlo encravado no lábio de um dos arranhões, mas aceitava aquela dor aguda como um custoso bálsamo, pois pelo menos mantinha o guerreiro distraído dos seus convolutos pensamentos por breves instantes.

 

A Lhiannah, o bebé da Slayra, a harahan, a sua filha, o Babaki, Kror, o ”tendão”, a Essência da Lâmina, o seu pai, a Ancalach... mesmo a Nabella. Era cada vez mais difícil pensar, concentrar-se numa coisa apenas, isolá-la das restantes de modo a poder ponderar a resolução individual de cada uma. Dúvidas do passado regressavam para atormentar o jovem e dificultar-lhe as escolhas do presente, comprometendo dessa forma o seu futuro, já de si incerto devido às novas dubiedades que pareciam despontar a cada instante.

 

Outra picada aguda de dentro para fora. A raiz do pêlo trazia consigo uma esférula de pus, o que explicava o incómodo ardor que Aewyre andara a sentir na zona da qual o arrancara.

 

Prioridades. Tinha de estabelecer prioridades. O que era mais importante naquele momento? O bem-estar dos seus amigos; disso pelo menos estava convicto. Tinham de proteger a Lhiannah e descobrir quem os atacara de forma a impedir que tal tornasse a acontecer. Sim, essa era a primeira prioridade... mas também tinha de ter a gravidez da Slayra em conta. Já não podia contar com ela, muito menos pô-la em risco, e a harahan era um risco, pois fugira e já por duas vezes os atacara nas mais inesperadas alturas. Mas a maldita mulher era outra prioridade, não a podia misturar com... e a sua filha? O seu couro cabeludo formigou com o afluxo de sangue à cabeça, causado pela crescente apreensão dentro do guerreiro. Seria possível? Ser pai de uma criança daquele monstro? Pai... o seu pai, pelo qual percorrera toda a distância que o separava de Ul-Thoryn, pelo qual correra tantos riscos, pusera tanta gente em perigo, tanta gente que morrera... como a Nabella... como o Babaki... e recalcado no cerne da sua consciência, no fundo da sua mente, a já familiar tensão letárgica, adormecida pelo pacto que fizera com Kror, umas tréguas transitórias que fatalmente findariam e que apenas adiavam o inevitável... o fatal e obscuro futuro, com todas as suas incertezas e ambíguas promessas... mas já estava a misturar as coisas outra vez, a confundir tudo!

 

Com um rosnido de raiva, o guerreiro ergueu-se e desferiu um pontapé na bacia a seus pés, que clangorou ruidosamente e cujo conteúdo chapeou pelo chão, atraindo a atenção de todos os presentes e silenciando naquele instante os tossidos e gemidos. Armado de pinça e espelho, Aewyre fitou os que o rodeavam com ar de quem estava disposto a enfrentar o primeiro que se pronunciasse, lembrando-se somente dos olhares mal-encarados que o haviam constantemente visado nas ruas da cidade.

 

O que é que foi? Estão a olhar para onde? Sim, tenho sangue siruliano, mas não sou eu quem anda a comer as vossas mulheres! Ou será que nunca viram ninguém irritado? Ha?

 

O silêncio manteve-se nas Alas, bem como os olhares surpresos de caras pálidas e ruborizadas, suadas e desidratadas, inchadas e macilentas. O enfermo que se encontrava mais perto do guerreiro, um homem magro com uma húmida touca de pano na cabeça, tapou a cara com os lençóis, gemendo qualquer coisa amedrontada em Leochlan e fazendo com que Aewyre caísse em si. A sua face permaneceu enrubescida, mas os músculos relaxaram e os olhos coléricos do guerreiro perderam a flamância quase maníaca que neles brilhara por um breve momento. Sentiu-se envergonhado, como habitualmente acontecia após as suas cada vez mais frequentes explosões, e desculpou-se com palavras e gestos desajeitados, nada mais desejando do que simplesmente parassem de olhar para ele.

 

Há óbice? perguntou-lhe uma acólita que entretanto se aproximara, provavelmente preocupada com o efeito que o comportamento do jovem poderia ter nos restantes enfermos. Era uma rapariga mais velha do que Aewyre, com uma ameninada rubidez nas bochechas da cara ligeiramente quadrada e grandes e compreensivos olhos azuis. O seu cabelo estava tapado com uma touca, como o da maior parte das tanarchianas, e envergava as vestes brancas das acólitas do deus da medicina.

 

Não, deixe estar... está tudo...

 

Antes que o guerreiro acabasse de falar, a rapariga tocou-lhe o lado ferido do rosto com os dedos de uma mão que nos seus parcos anos de vida já tratara de muitas enfermidades, fechou os olhos suavemente e murmurou uma breve prece a Acquon. A ardência dos arranhões amainou, e a afluência de sangue à cabeça de Aewyre foi atenuada pelo singelo gesto e pela prece.

 

Sente-se. Vou tratar de axes disse, indicando-lhe a cadeira.

 

Axes...? Mas a acólita não o esclareceu, dirigindo-se a um dos laicos que puxavam uma carreta pelas Alas com aparato medicinal e unguentos. Allumno já lhe explicara que, apesar das semelhanças, certas palavras do Leochlan já não eram usadas em Glottik ou haviam há muito evoluído para outras formas. Talvez esta fosse uma delas... em todo o caso, o guerreiro sentou-se, sentindo-se sem dúvida mais calmo, e esperou que a rapariga voltasse com um frasco de unguento, agulha, linha e uma lâmina de barbear.

 

Não havia qualquer sorriso na sua face, nenhum dos risinhos marotos aos quais Aewyre se habituara quando na presença de raparigas, nenhum fugidio olhar de olhos pestanejantes, nenhum nervoso trincar de lábio; apenas um evidente e sincero desejo desinteressado de ajudar, mas por qualquer razão esse facto não o incomodou. O jovem limitou-se a descontrair de costas para a cadeira e deixar que os delicados dedos da acólita lhe lavassem a cara e lhe esfregassem o unguento nos ferimentos.

 

Vai deixar cesura advertiu a rapariga prosaicamente.

 

Vai, é? redarguiu Aewyre, presumindo que a rapariga se referisse a eventuais cicatrizes, o que não era de todo improvável, tendo em conta a profundidade dos arranhões lacerados pelas terríveis unhas da harahan. Também isso não pareceu incomodá-lo muito. De entre todas as suas preocupações, essa seria certamente das menores, senão mesmo a menor.

 

Era em alturas de indecisão como esta que o guerreiro se apercebia do quão pouco se enquadrava na figura que um líder devia representar. Esperava-se temperança de um líder, esperava-se que um líder reflectisse sobre as coisas antes de agir, mas a reflexão por vezes deixava-o num tal estado de ansiedade que só podia ser aliviado com actos, agindo de forma a levar qualquer coisa a cabo, fosse ela qual fosse, o que frequentemente o incitava ao invés a cometer actos pouco sensatos, como atacar o tirano de Alyun, deixar metade do grupo em Vau do Caar enquanto perseguia Kror ou enfrentar o drahreg enquanto estavam sob a alçada dos Cho Tirr. Talvez se tivesse acompanhado Quenestil e Babaki o seu amigo ainda pudesse estar vivo... Kror teria ido ter ao seu encontro de qualquer forma, mais cedo ou mais tarde, sabia-o agora e provavelmente tê-lo-ia sabido então também. Não tivera quaisquer razões para se apressar, deixara-se dominar pelo arrebatador ímpeto do ”tendão”, seguindo atrás do drahreg como um mastim no rasto de sangue, nada mais querendo além de fazer Kror provar o sabor do seu aço. Permitira que o grupo se separasse, e um dos seus amigos morrera por isso. Essa era a dura e crua verdade. E agora a Lhiannah, quase morta a tentar salvá-lo, a Slayra grávida, a harahan e a sua... filha...

 

Não fosse pelo suave toque dos dedos da acólita, Aewyre podia bem ter gritado naquele preciso instante.

 

Era escusado, tinha de fazer alguma coisa...

 

Então é este o lugar? perguntou Worick, estudando atentamente o local em questão e as suas imediações.

 

Os quatro companheiros, Aewyre, Allumno, Worick e Quenestil, encontravam-se uma vez mais nas lamarosas ruas de Val-Oryth, tendo sido praticamente arrastados pelo jovem para fora das Alas da Convalescença e forçados a deixar Slayra e Taislin com Lhiannah antes de lhe poderem sequer comunicar o consenso ao qual haviam chegado. Nem tão-pouco lhes dera tempo para mordiscarem a parcimoniosa refeição trazida momentos antes por umas laicas, insistindo que comeriam depois e repetindo a mesma asserção por cada vendedor ambulante pelo qual haviam passado, até chegarem por fim ao seu destino: um edifício de madeira com dois andares e tecto de ripas localizado bem no meio da intersecção de duas ruas. Uma insígnia por cima da porta retratava uma galinha de patas para o ar e de asas estendidas, obviamente morta.

 

”A Capoeira”? Que raio de sítio é este? exigiu o thuragar saber.

 

Uma estalagem. Disseram-nos no Cenóbio que os fulanos costumam comer aqui explicou Aewyre, virando-se para Quenestil e Allumno. Vamos?

 

Mago e shura não objectaram, e os quatro companheiros foram em frente, caminhando ao lado do pavimento de madeira de modo a evitar a multidão que aparentava desconhecer hora de almoço. Um par de degraus encrostados de lama seca subia para a entrada, de cuja porta entreaberta emanava um animado rumorejo e um chamativo odor a frango assado que fez com que Aewyre e os outros começassem a salivar e que incitou os estômagos de todos a um sonoro e unânime protesto. Aewyre foi em frente, esfregou as solas das botas nos enlameados cantos dos degraus e empurrou discretamente a porta para entrar.

 

No interior da apinhada estalagem reinava a algazarra, o ressoar de canecas de peltre, o tinir de talheres, as roucas vozes dos convivas, o constante ressoar de passos no piso de madeira e o excitado cacarejo abafado de galinhas. Ao lado da entrada havia uma prateleira rente ao chão cheia de tamancos cobertos com lama seca, mas os companheiros não dispunham de nenhuns e continuaram em frente. A sala era toda ela mesas ocupadas, com estreitos corredores entre as costas das cadeiras de forma a permitir a passagem dos atarefados criados, rapazes novos de mãos cheias que apenas a custo davam conta de todos os pedidos e exigências da ruidosa clientela. Mesmo os primeiros degraus das escadas que davam para os quartos no andar superior estavam ocupados por comensais bêbedos por cima dos quais os hóspedes eram forçados a passar, e no meio da sala havia um aglomerado particularmente denso de homens agitados, que rodeavam algo que parecia ser a causa de grande parte dos desmesurados urros que se faziam ouvir na estalagem. Pairava no ar pesado com o calor de corpos demasiado juntos um laivo de penas molhadas e esterco de galinha misturado ao aroma da comida cozinhada, mas nenhum dos presentes parecia dar grande importância ao cheiro. Não era um local a frequentar para quem procurava uma refeição sossegada, isso era certo, mas pelas aparências A Capoeira era um estabelecimento bastante popular na cidade.

 

Faz jus ao nome, sem dúvida... comentou Allumno, mas as suas palavras perderam-se na vozearia.

 

Um dos criados reparou nos companheiros e encaminhou-se na sua direcção, equilibrando uma bandeja com pratos cobertos de ossos e peles. Era um jovem tanarchiano com roupas enodoadas e uma comprida penugem por cima do lábio superior que passava pelo bigode que aparentemente já se julgava no direito de ter.

 

Quantos? berrou, agarrando por pouco um prato que estivera prestes a cair.

 

Aewyre limitou-se a mostrar-lhe a mão com quatro dedos erguidos.

 

Ali, e... oh, vão cagar o chão todo de arro - refilou, indicando as imundas botas dos companheiros, revirando os olhos de seguida como se na verdade não se importasse e fazendo-lhes sinal que o seguissem.

 

Os quatro assim o fizeram, passando pelos apertados espaços entre as costas das cadeiras, fazendo os possíveis por evitar mãos que empunhavam canecas, pernas que se esticavam repentinamente pelo caminho e braços estendidos a reclamarem a atenção de mais criados do que aqueles que estavam disponíveis. Quenestil sentia-se obviamente pouco à vontade, olhando em redor como um carcaju encurralado e respirando de boca aberta como se já lhe faltasse o ar, mas os restantes companheiros procuravam passar despercebidos, aproveitando o facto de os presentes estarem demasiado ocupados a beber, comer, e falar para repararem neles. O jovem tanarchiano indicou-lhes uma miraculosamente vazia mesa redonda, gritando-lhes de costas algo que não perceberam antes de marchar a passo apressado para a cozinha. Os companheiros sentaram-se, e Worick esfregou com a própria mão uns ossos e restos de comida para fora da mesa, assentando nela os cotovelos de seguida. Ia dizer alguma coisa assim que os companheiros se sentaram, mas um ensurdecedor urro fez-se ouvir na sala, seguido de gritos de desalento e apupos contrastando com alegres aplausos e triunfantes louvores. O thuragar e Allumno puseram os cotovelos por cima das costas das respectivas cadeiras de modo a seguirem os olhares de Aewyre e Quenestil, que tinham os olhos postos no cadáver estropiado de um galo a ser vitoriosamente ostentado por um homem de barbas, que prontamente o entregou a um criado que se dirigiu à, cozinha com o animal morto enquanto moedas trocavam de mãos e novas apostas eram feitas. O vencedor, um galo com um olho debicado que batia com as asas no ar enquanto era alardeado pelas mãos de quem devia ser o dono, foi o centro das atenções do estabelecimento durante breves instantes até tornar a ser engolido pela massa de homens, o seu destino incerto.

 

Heh, apetece-vos galo? perguntou Worick.

 

Não viemos aqui para comer disse Aewyre.

 

Então estamos aqui sentados para quê? Por que é que não vamos já à procura desses marmanjos?

 

Duvido de que o rapaz falasse connosco se não estivéssemos sentados... explicou o guerreiro. Já viste como isto está?

 

Parecem drahregs... comentou Quenestil, horrorizado com o que acabara de ver.

 

O pior dos humanos vem, aliás, é trazido à tona em determinadas circunstâncias, Quenestil. Trata-se de um espectáculo bárbaro, de facto... concordou Allumno com um abanar da cabeça que denotava clara desaprovação.

 

Meninas... censurou o thuragar, mas o seu comentário foi engolido pelos urros que indicavam o início de um novo combate.

 

O criado que lhes indicara a mesa voltou, sempre atarefado, esfregando o suor da testa com o antebraço.

 

Caldo de galinha não há. Cerveja ou kashkinl berrou de modo a fazer-se ouvir.

 

-Na verdade, nós queríamos...

 

Quatro frangos e essa coisa esquisita que disseste sobrepôs-se a voz de Worick.

 

O criado voltou para a cozinha sem nada mais acrescentar, e Aewyre fitou o thuragar com ar indignado.

 

O que foi isso...?

 

Achas que ele está aqui para responder às nossas perguntas? Já que nos sentámos, faz-lhe a vontade e depois então pergunta-lhe o que quiseres. Além disso, estou com fome, e se vamos partir cabeças, que seja de barriga cheia.

 

O guerreiro quis dizer algo mais, de preferência após ter atirado a mesa para cima de Worick, mas não desejava chamar a atenção e até havia uma certa verdade nas palavras do thuragar, pelo que se limitou a cruzar os braços e empurrar as nádegas para a ponta da cadeira de forma a não parecer tão alto. O combate de galos prosseguia, furioso, enquanto os companheiros aguardavam com nervosa expectativa o regresso do criado. Aewyre batia com os dedos na mesa, Allumno abstraía-se de tudo, conseguindo ainda assim dar a impressão de que permanecia concentrado naquilo que o rodeava, Worick coçava as narinas e Quenestil não abandonava a sua irrequieta postura defensiva de um animal enjaulado, olhos atentos e corpo tenso, atormentado por más memórias reavivadas pelos gritos e vaias dos homens. Não estavam a ser alvo de nenhuma atenção especial, mas o eahan sentia-se mesmo assim observado, confrangedoramente rodeado de olhos inquiridores, o que não passou despercebido ao mago.

 

Quenestil, sentes-te bem?

 

Quem... eu? Sim, sim, não te preocupes. Está só um pouco abafado aqui dentro, mais nada...

 

De certeza?

 

Absoluta.

 

Allumno teve de se contentar com a pouco convincente garantia e recostou-se à cadeira, tapando a gema na testa com umas madeixas do seu cabelo, que entretanto crescera bastante, enclavinhando os dedos e limitando-se a manter a sua discreta postura observadora. O jovem criado chegou pouco depois, munido de uma bandeja com quatro canecos e pratos e outra com dois fumegantes frangos de pele alourada e tostada. Mesmo Aewyre, de todos o que menos apetite tinha, teve de engolir o excesso de saliva que subitamente lhe alagou a boca enquanto o jovem pousava os canecos, entornando uma ligeira porção do seu conteúdo, e arrojava os pratos de peltre na mesa. Worick não se fez de rogado e arrepanhou de imediato uma perna luzente, fincando os dentes na pele estaladiça e carne tenra sem comedimento.

 

Nove duilas recitou o criado maquinalmente enquanto Quenestil e Allumno se serviam.

 

Aewyre remexeu na bolsa que tinha atada à cintura e estendeu-lhe um rei uma das maiores moedas de Nolwyn de mão aberta. O jovem recebeu o pagamento e olhou para ele de relance, fazendo tenção de o enfiar na sua bolsa enquanto já virava as costas mas parando a meio caminho. Observou a moeda mais atentamente, e os seus olhos arregalaram-se, descrendo o seu real valor. Fitou Aewyre com uma certa reserva, mas o jovem apresentou-lhe outra idêntica, alumiando-lhe os orbes castanhos. Os dedos do criado tactearam o ar na direcção da dourada peça redonda, hesitantes, mas o guerreiro fechou a mão antes que este estivesse perto de lhe tocar.

 

São tuas se me responderes a uma ou duas perguntas.

 

Toda a pressa e afogo do tanarchiano esvaneceram-se de um momento para o outro, e o jovem ficou parado no mesmo sítio praticamente sem se mexer, algo que, julgando pelo nervoso desconforto do qual dava mostras, não lhe devia acontecer com muita frequência.

 

Diga, toste pediu, olhando em redor, provavelmente com medo de que o proprietário aparecesse.

 

Aewyre franziu a testa, sem perceber.

 

Sê rápido... clarificou Allumno, bebendo do seu caneco. Qualquer mago que se prezasse era versado em línguas de uma forma geral, de modo a compreender as diversas ramificações da Palavra e dessa forma assimilar de uma forma abrangente o cerne da mesma. E Leochlan na sua essência não mais era que um Glottik arcaico.

 

Que tal sabe isso? perguntou Worick, totalmente alheio à conversa de Aewyre e referindo-se à bebida.

 

Provavelmente demasiado branda para ti. Julgo que terá sido fermentado de centeio este... kashkin deduziu Allumno, lambendo discretamente os lábios.

 

Bah, mistelas... bebem ainda pior aqui em Tanarch do que em Nolwyn...

 

Aewyre também deixara de ouvir os seus companheiros após o esclarecimento do seu tutor.

 

Ruinen. Onde está o Ruinen? Ou algum dos seus homens? O criado ergueu uma dúbia sobrancelha.

 

Ruinen. Rui-nen. Onde é que ele está?

 

Sim, sim... o tanarchiano deu a entender que percebera, apoiou a mão na mesa para se curvar diante de Aewyre de modo a não ter de gritar e estendeu o braço, indicando um grupo de homens a um canto do estabelecimento. Alende. Mas cuidado...

 

Obrigado agradeceu o guerreiro, entregando a moeda ao jovem, que se retirou expeditamente.

 

E então? indagou Worick, tirando bocados de frango da gordurosa mecha de barba debaixo do seu lábio.

 

Estão ali... limitou-se Aewyre a dizer enquanto se levantava, mas as suas palavras falharam em se sobreporem ao ruído.

 

O quê?

 

Aewyre, aonde é que vais? perguntou Quenestil, pousando o osso da asa que estivera a mastigar.

 

O guerreiro não se repetiu e continuou a avançar na direcção do grupo de homens para os quais o criado apontara, atravessando um dos labirínticos corredores entre as cadeiras, que apenas os criados pareciam saber navegar com um mínimo de orientação. O caminho que seguiu obrigou-o a contornar o aglomerado de homens que assistiam aos combates de galos, circundar uma mesa ocupada que fora pregada a um poste de modo a aproveitar o já escasso espaço e quase foi parar à entrada antes de dar meia volta, avistando os seus companheiros a tentarem eles também encontrar a rota certa para os levar para perto do seu companheiro. Contudo, nunca perdeu o grupo de homens de vista, e assim que regressou pelo mesmo caminho, tornou a deparar com a bifurcação na qual errara na escolha, optando desta vez por transpor o obstáculo que se lhe deparava na forma de um conviva que se encontrava sentado de cotovelo apoiado na mesa e pernas estendidas para fora, efectivamente bloqueando a passagem. Aewyre ergueu um pé e com ele passou por cima das pernas do homem, atraindo os olhares dos seus companheiros de mesa, que lhe chamaram a atenção para o que o guerreiro estava a fazer.

 

Com licença... murmurou sem sequer olhar para o comensal, passando-lhe a outra perna por cima como se estivesse a galgar uma sebe.

 

Ouviu uma cadeira arrastar-se atrás de si, provavelmente a do próprio, mas não lhe prestou atenção e continuou a andar, ignorando também a voz que pareceu chamá-lo, acrescentando um ”siruliano” num tom pouco amigável. Já estava perto do grupo...

 

Trincando uma perna de frango, Worick seguia Quenestil e Allumno, que tentavam a custo ir ao encontro de Aewyre. Nenhum deles gostara do olhar do guerreiro quando este se levantara da mesa, nem tão-pouco da determinada expressão na sua cara. O mago pressentia que algo de grave poderia acontecer se não alcançasse o seu protegido a tempo de o refrear, enquanto o eahan era movido pelo facto de já ter visto aquela cara antes e das drásticas consequências que em todas as vezes dela haviam resultado. Era difícil avançar no acelerado passo dos companheiros, pois havia que evitar pernas de cadeiras e de comensais, bem como um sortido dos mais diversificados objectos e obstáculos, como mobília ou céleres criados a exigirem passagem. Com a sua pressa de movimentos, os companheiros acabaram por chamar a atenção de alguns dos presentes, fosse por terem sido vítimas de um encontrão, fosse por se terem apercebido das aparatosas andanças do estranho grupo, e alguns manifestaram o seu desagrado com incomodados grunhidos. Allumno pedia licenças e desculpas, mas Quenestil era bem menos delicado, abrindo caminho sem grande consideração por quem empurrava, enquanto Worick ficava para trás para lidar de forma ainda menos educada com os desacomodados comensais, limitando-se a empurrar aqueles que se erguiam ou faziam questão de se erguerem de forma a dar largas ao seu descontentamento.

 

Sentem-se, suas donzelas. Estamos só de passagem...

 

Apesar de tudo, ninguém se pôs no caminho dos companheiros, tomando-os por meros clientes apressados e grosseiros, até que um homem se levantou, dando uma atabalhoada volta à mesa na qual estivera sentado e apontando para o grupo.

 

Amigos de verdugos! gritou, espetando o ar com um acusador dedo.

 

Alguém gritou na sala, mas Aewyre não lhe prestou atenção e percorreu a distância que o separava da mesa do grupo em passos largos. Os homens que o criado indicara, um bando de indivíduos barbados com os lados das caras escanhoados, despretensiosamente vestidos e com as faces enrubescidas pelo ardor do álcool, bebiam copiosamente dos seus canecos e lançavam roucas gargalhadas, batendo com as mãos na mesa e fazendo os restos de frango saltar. O guerreiro parou diante deles, sombreando um dos homens e chamando a atenção dos que estavam do outro lado da mesa, interrompendo os risos com a sua presença. Todo o movimento cessou também, excepto o de um dos indivíduos que chupava os dedos gordurosos de molho de frango, estudando o recém-chegado com atenção. Ninguém disse nada.

 

Procuro o Ruinen anunciou Aewyre, tentando fazer-se ouvir no meio da algaraviada ambiente.

 

Não houve resposta, e as expressões dos homens mantiveram-se inalteradas, cautelosas, e desconfiadas.

 

Algum de vocês é o Ruinen? Percebem o que eu digo?

 

O homem que chupara os dedos ocupava-se agora a escarafunchar algo entre os dentes de trás com o dedo mínimo, retirando um pedaço de frango que prontamente tornou a enfiar na boca. Nada o distinguia dos outros, era tão barbudo e estava tão despretensiosamente vestido como os restantes, embora fosse um pouco mais moreno e o seu olhar traísse uma manha impossível de esconder.

 

Quem és, gaiato? perguntou, mastigando o pequeno bocado com desnecessária ostentação.

 

Aewyre fitou o homem que falara, excluindo todos os outros da sua atenção.

 

- És tu o Ruinen?

 

Perguntei-te, gaiato...

 

Se és o Ruinen, vais responder a umas perguntas.

 

O homem arqueou as sobrancelhas, continuando a mastigar, e virou ligeiramente a cara como para dar a entender que não ouvira bem. Dois dos seus companheiros de mesa ergueram-se, hirtos e de lábios apertados. Aewyre dispensou um vislumbre a cada um e tornou a olhar para aquele que tomara pelo homem que viera procurar.

 

Foram os teus homens que atacaram a estalagem ontem à noite? perguntou directamente.

 

De alguma forma, o presumível Ruinen continuava com que mastigar dentro da sua boca e nada disse. Um dos homens que se erguera circundou o guerreiro, desafiando-o a olhá-lo nos olhos, e pôs-se atrás de Aewyre enquanto o outro pousava as mãos nas ancas e erguia um reptante nariz, parecendo perguntar se iria ou não haver problemas. Aewyre ignorou ambos, desdobrou a folha de pergaminho com as duas mãos e bateu com ela contra a mesa, indicando com o dedo o nome que mencionara na lista de suspeitos. O alegado Ruinen baixou os olhos para olhar para a folha, franzindo a testa ao ler o seu nome. Aewyre arrancara o selo de Bellex, deixando um rasgo no topo da folha, mas ainda conservava o distinto aspecto de um documento oficial.

 

A minha amiga quase morreu. Se foram vocês, juro que acabo com a vossa raça, seus filhos de uma cadela sarnenta.

 

Talvez não tivessem percebido todas as palavras, mas o seu tom e o da voz do jovem não deixavam qualquer margem de dúvidas, e o homem que mastigava deixou abruptamente de o fazer, tornando a fitá-lo.

 

Vai-te toste daqui, gaiato. Agora ordenou, esperando obviamente ser obedecido.

 

Aewyre relaxou os dedos antes de fechar lentamente os punhos a seus lados, e todos na mesa se colocavam em posições que lhes permitissem levantarem-se depressa.

 

Vou perguntar outra vez... avisou calmamente. Foram os teus homens que atacaram a estalagem ontem à noite?

 

Uma mão agarrou-lhe o ombro por detrás.

 

Não ouviste, gai...

 

Aewyre impeliu as costas do punho cerrado para trás, despedaçando o nariz do homem com um triturante ruído molhado.

 

Quenestil não percebera o que o indivíduo quisera dizer e preparava-se para o empurrar para fora do seu caminho como fizera com os restantes, quando viu que os companheiros de mesa deste também se levantavam, postando-se a seu lado. A prudente mão de Allumno agarrou-lhe o ombro, e o mago pôs-se defronte do eahan, empunhando o seu bastão da forma menos ameaçadora que conseguiu.

 

Os cavalheiros desculpem, dêem-nos licença por favor...

 

Amigos de verdugos! reiterou o homem enfaticamente, e mais pessoas ouviram a denúncia.

 

O que é que esse animalejo está para aí a dizer?

 

Worick, agora não... Allumno sentia a tensão a escalar. Se nos permitem...

 

Lacaios da Sirulia!

 

Creio que haja um mal-entendido...

 

Mas afinal o que é que ele quer? insistiu o thuragar, tentando passar por ambos para confrontar o ruidoso homem.

 

Allumno... advertiu Quenestil, reparando no número de convivas que lentamente se iam erguendo. Apenas os que se encontravam do outro lado do círculo das lutas de galos não haviam ouvido os gritos do tanarchiano.

 

Cavalheiros, aviso-vos de que tudo isto é desnecessário. Desejamos apenas passar...

 

Ouviram-se vozes mais exaltadas ainda, e o mago avistou o seu protegido envolvido numa contenda com um grupo de homens.

 

Aewyre! gritou, tentando avançar mas sendo violentamente empurrado para trás pelo homem que lhe apontara o dedo.

 

O urro de Worick acabou com qualquer possibilidade de diálogo.

 

Aewyre agarrou um homem que nem sequer viu pelos colarinhos e impeliu-o de encontro a uma cadeira que descia na sua direcção e que se partiu nas costas do indivíduo, que de seguida largou. Um punho apareceu do nada e conectou com a sua cara, alastrando-lhe um roaz fogo pelo lado arranhado da face. Cerrando os dentes e grunhindo de dor, o guerreiro arrojou cegamente com o seu braço esquerdo e derrubou os dois corpos que apanhou pelo caminho, esmurrando logo após a cara de um outro homem que lhe tentou agarrar o membro. Outro ainda desferiu um desajeitado pontapé em frente enquanto levava o punho atrás, tentando manter a distância de Aewyre de forma a golpeá-lo de seguida, mas o jovem recebeu o golpe no coxote que lhe protegia a perna e caiu em cima do desequilibrado adversário, deitando-o por terra com um soco no queixo. Alguém lhe agrediu a nuca com um caneco de peltre, raspando-lhe o couro cabeludo, e o guerreiro oscilou com o corpo para trás, esmurraçando o seu agressor e despedindo um pontapé na barriga de outro que vira aproximar-se pelo canto do olho. Um grunhido nas suas costas foi o único aviso que Aewyre teve antes que um adversário se pendurasse nos seus ombros, cingindo-lhe o pescoço com um braço e rosnando ao seu ouvido, molhando-lhe o lado da cara com perdigotos de saliva. O jovem ergueu os braços para agarrar o homem pela nuca, sendo agredido de diversas direcções no torso protegido pela couraça ao fazê-lo, e arremessou-o por cima da sua cabeça, derrubando um outro indivíduo atrás de si com os pés do homem e estatelando-o contra uma sólida mesa redonda, lançando canecos, louça e comida ao ar. Outros dois se abateram sobre as suas costas, empurrando-o contra a mesa em cima da qual o atordoado conviva jazia, imóvel, e sobre o qual Aewyre caiu, esmagando-o com o seu peso. Enquanto o pobre diabo se debatia debaixo de si, estrebuchando com pernas e braços, os outros dois que lhe haviam caído em cima davam-lhe murros na cabeça e de lado na
cara. O guerreiro rosnou e arrojou a nuca para trás, que estalou de dor ao colidir com dentes, e um golpe de cotovelo tirou o segundo homem de cima de si, permitindo-lhe sair de cima da mesa e do estrebuchante comensal. Contudo, assim que se virou, um murro no queixo fez com que se desequilibrasse, levando um joelho ao chão e vendo-se forçado a apoiar-se na borda da mesa de forma a não cair. Dois pares de mãos agarraram-no pelos braços e puxaram-no para trás.

 

Worick espera...! O thuragar não ouviu e afundou a cabeça na barriga do homem que empurrara o mago, derrubando-o.

 

Allumno ainda tentou impedir que a situação se agravasse, mas o grupo de homens que agora os cercava parecia já disposto a agravá-la sem ajuda adicional dos companheiros. Dedos fincaram-se no seu capuz e puxaram-no bruscamente para trás, mas Quenestil agarrou o antebraço do homem que o fizera e assentou-lhe um certeiro soco no queixo, libertando o mago, que então empunhou o bastão com as duas mãos, apercebendo-se de que palavras em Glottik já de nada lhe serviriam. Worick arremeteu de ombro contra outro adversário, tentando afastar o maior número possível de homens de forma a poder usar o martelo que ainda tinha ao cinto, mas da segunda vez várias mãos o agarraram, tentando imobilizá-lo. O thuragar reagiu com um soco cego que atingiu a virilha de um indivíduo, que se dobrou para a frente e gritou. Punhos e pés choveram sobre o seu corpo encouraçado, mas Worick apenas sentiu as pancadas que lhe visaram a cabeça, algumas chegando mesmo a ofuscar-lhe a visão por breves instantes. O thuragar cravou os dentes numa manápula que lhe agarrara, a barba, abanando a cabeça como um cão e rasgando dolorosamente a pele da mão. Allumno levantou a ponta do bastão e atingiu um homem que contra ele investia entre as pernas, derrubando-o com uma bordoada lateral e principiando a recitar algo com a Palavra, mas um caneco voador interrompeu-o ao embater na sua cabeça e cancelou o feitiço. Quenestil lutava como um carcaju engalfinhado, rosnando, esmurrando, pontapeando e contorcendo-se em todas as direcções, sentindo que tinha voltado atrás no tempo, encurralado num local abafado, cercado por inimigos, no meio de uma multidão sedenta de sangue a assistir a um combate... esmurrou o nariz de um indivíduo que lhe agarrara o pulso e escoiceou o estômago de outro que se preparara para atacar por trás, baixando-se de seguida para evitar um soco oscilante, que atingiu outro alvo. A ponta de um pé atingiu-o de lado na coxa, mas a adrenalina corria livre nas suas veias e apagou a dor antes que esta lhe incapacitasse a perna, convertendo-a em ímpeto adicional para o soco de resposta do eahan, que atingiu o seu atacante em cheio na boca. Uma mão puxou a cabeça de Worick de encontro a um joelho contra o qual embateu com o elmo. Berrando de raiva e com sangue seu e de outros na boca, o thuragar calcou o pé de um dos homens que lhe agarravam os braços, partindo-lhe os ossículos, e enterrou a cotoveleira nas quebradiças costelas de outro. Lançou a mão em frente e para cima, crispando os dedos numa gola que puxou para baixo e o seu punho acerado encontrou então o seu caminho até à cara do dono do joelho, rebentando-lhe os lábios.

 

Aewyre foi derrubado, sangrando do canto da boca e caindo de traseiro ao chão e de costas contra uma cadeira. A sua reacção ao ver um homem investir contra ele de cadeira em riste foi instintiva: levou os braços atrás, agarrando o assento atrás de si, e curvou-se o máximo que pôde, levando a cabeça ao chão e a cadeira por cima das costas. Os móveis estilhaçaram-se um contra o outro, e o guerreiro ainda sentiu vários pedaços contra a cabeça e contra a couraça, mas evitara o bruto do impacto. Ainda com as sobras da cadeira nas mãos, Aewyre levou o ombro ao chão, rebolou para debaixo de uma mesa e ergueu-se de súbito, atirando-a para cima do grupo de homens que o haviam agredido. Olhando brevemente para as suas mãos, viu que empunhava as costas da cadeira que o salvara e, separando os dois paus que seguravam o encosto com um brusco sacão, empunhou-os como duas armas improvisadas e virou-se para confrontar os restantes agressores. Um deles atacou pelo flanco e tentou esmurrar o guerreiro, julgando que este não o vira, mas Aewyre bateu-lhe o braço para fora do caminho com um pau e concutiu-lhe a cabeça com o outro, girando em si e desferindo com ambos uma violenta cacetada na cara de mais um atacante, que rodopiou nos seus pés antes de cair com a força do golpe. Vendo a hesitação momentânea dos seus adversários motivada pelo facto de estar armado, Aewyre atacou, decidido a aproveitar a momentânea vantagem. A primeira linha de homens à sua frente recuou perante a oscilação de um dos paus, mas houve um indivíduo mais arrojado que saltou para cima de uma mesa e dela para cima do guerreiro, que lhe interceptou o salto com uma possante paulada que o enviou directamente para o chão. Outro audaz denunciou as suas intenções com um insulto que bradou atrás do guerreiro, permitindo-lhe calcular a sua posição e abrir-lhe o escalpo com uma bordoada para trás. Os restantes tornaram a hesitar e Aewyre caiu-lhes em cima, possesso.

 

Quenestil tinha um homem a agarrar-lhe o pescoço e outro a pegar-lhe pela perna direita enquanto os demais se procuravam aproximar do estrebuchante eahan para o agredir. O shura impeliu um pé em frente, atingindo um desses atacantes no epigastro com um sufocante pontapé, mas o indivíduo que lhe agarrava a perna reagiu com um murro entre as suas pernas. Quenestil expeliu um engasgado grunhido de dor, mas depressa a converteu em alento para, com a mesma perna com a qual acabara de golpear o outro homem, desferir uma joelhada na cara do que o agredira, libertando a direita. O oponente que o agarrava pelo pescoço grunhiu e alçou o eahan, tirando-lhe os pés do chão e transferindo todo o peso do shura para a laringe deste, principiando a asfixiá-lo. Quenestil sacudiu violentamente as pernas de forma a manter afastados aqueles que pretendiam agarrar-lhas e levou a mão atrás, agredindo a face de quem o agarrava com a palma e cravando-lhe os dedos nos olhos. O homem gritou em dor cega e largou o eahan, levando as mãos à cara e permitindo ao shura defender-se dos que o atacavam. Desviando-se de um murro, Quenestil ripostou com outro nas costelas de um adversário, mas um segundo foi mais rápido e atingiu o eahan em cheio na cara, fazendo com que cambaleasse para os braços dos indivíduos que se encontravam atrás de si e que o agarraram. O homem que o agredira avançou, preparando-se para continuar o que começara, mas dedos acerados crisparam-se-lhe na virilha antes que desse outro passo, lançando-lhe latejos de dor pelas pernas e forçando-o a curvar-se de olhos arregalados e com um grito mudo por sair da boca aberta. Outros dedos agarraram-lhe a camisa por trás e ambas as mãos o ergueram do chão, arremessando-o contra um grupo de homens. Worick berrou triunfante ao vê-los serem derrubados como peças de um tabuleiro e investiu contra os que agarravam o eahan. Aproveitando a deixa, Quenestil puxou um braço para baixo com força, levando a cara de um dos homens de encontro ao seu joelho, e Worick encarregou-se de o libertar do outro, derribando-o com uma carga de ombro. Allumno vergastou a cabeça de mais um atacante com o bastão, levando a ponta atrás de seguida e enterrando-a na barriga de outro, mas assim que principiou a recitar a Palavra, um adversário que não vira agarrou-lhe o cajado e desferiu-lhe um pontapé no joelho. O grito do mago foi de uma dor cruciante, silenciado de imediato por um soco que recebeu e que lançou contra uma mesa. Tanto Quenestil como Worick gritaram o seu nome, mas o acervo de homens que se interpunha entre eles e Allumno tornava-lhes custoso o violento avanço. Até que cabeças começaram a estalar e um furioso Aewyre abriu caminho por entre os homens, lançando corpos inertes a rodopiar para fora do seu caminho, trilhando linhas de sangue no ar com desesperadas pauladas, sulcando um trilho através da massa de homens como um arado puxado por um touro ensandecido faria com terra macia. Tal foi o impacto da brutal investida do jovem que Quenestil e Worick viram a sua tarefa facilitada, esmurrando e empurrando os que permaneciam entre ambos e o mago, que agarrava o joelho com as duas mãos, a sua cara um esgar de agonia. Aewyre malhou em redor com ambos os braços, derrubando mais uns quantos atacantes, e berrou ameaçadoramente com as veias do pescoço avermelhado a palpitarem e os dois ensanguentados paus em riste. Tal demonstração de violência foi o suficiente para que os homens se amedrontassem ao ponto de manterem a sua distância por breves instantes, deixando um espaço coberto por corpos caídos e gemebundos entre si e o guerreiro. Sabendo que iria precisar de cada segundo, Aewyre largou um dos paus, pegou em Allumno com a mão livre, alçando-o por cima do seu ombro, e correu a desbravar caminho na direcção da entrada com a arma que lhe restava.

 

Quenestil! Worick! Venham! gritou, percutindo um comensal indeciso entre afastar-se ou saltar para cima do guerreiro.

 

O eahan e o thuragar hesitaram, tomados de surpresa, mas cedo os seus instintos os forçaram a reagir e ambos foram atrás do seu companheiro, precisamente quando a multidão recuperava a sua coragem. Vendo que o caminho se lhes poderia fechar, Worick pegou no bastão de Allumno pelo caminho e brandiu-o como uma arma, urrando um grito de guerra em Garogar que quebrou a já vacilante determinação dos que se lhes haviam interposto no caminho, lançando-os numa desconjuntada debandada. O thuragar ainda vergastou três pelas costas, deitando-os por terra, e gritou a Quenestil que avançasse enquanto andava para trás, descrevendo um arco largo com o bastão para desencorajar eventuais perseguidores. O eahan assim fez, vendo Aewyre sair pela porta com Allumno ao ombro e empurrando vários homens para o lado, tentando não perder o seu amigo de vista. Worick vinha atrás, ainda a brandir o bastão com as duas mãos e urrando insultos e vitupérios.

 

Cambada de merdilheiros! Arredem pé ou desfaço-vos as focinhas!

 

As ameaças foram levadas a sério, pois ninguém se lhes meteu no caminho. Os dois transpuseram a porta, saltando os degraus e aterrando com os pés na lama, por pouco não escorregando como acontecera com Aewyre, que se debatia para se levantar ainda com Allumno ao ombro. Quenestil foi ajudá-lo a erguer-se e Worick virou-se para trás, desafiando quem quer que fosse a sair pela porta pela qual acabara de saltar. Vários transeuntes no pavimento de tábuas haviam parado para observar a caricata cena, uns riam, outros abanavam a cabeça em sinal de desprezo e outros limitavam-se a olhar com curiosidade.

 

Não parem, corram! Corram! gritou Aewyre, cambaleando para os seus pés com a ajuda do eahan e retomando a corrida com um padecente Allumno ao ombro.

 

Worick grunhiu e foi atrás deles, esforçando-se por acompanhar as longas passadas dos seus companheiros.

 

Da última vez que Slayra estivera sozinha com Taislin, os dois haviam salvo os companheiros das masmorras de Coilen, ainda era a eahanoir o mais dúbio membro do grupo. Fora esse o definitivo acto que a vinculara aos companheiros, mesmo que na altura estes fossem para ela apenas os acompanhantes de Quenestil, a verdadeira razão da sua permanência e a única âncora que a impedira de fugir nas inúmeras oportunidades que tivera para o fazer. Slayra arriscara a vida, fazendo uso dos seus ardis e dos actos furtivos de Taislin para entrar na bem guarnecida fortaleza, não morrendo por pouco nos calabouços e tendo de ser arrastada às costas do burrik no rescaldo da batalha. Após esse evento, a eahanoir apercebera-se de que começava a gostar do grupo, mais de certos membros que de outros, mas o que era certo era que aprendera muito com todos, muito que a levara a questionar bastante daquilo que julgara saber e em que até então acreditara, à semelhança do que acontecera com Quenestil conforme os dois eahan se foram conhecendo. Slayra gostava especialmente do seu pequeno companheiro, da sua irreverência e despreocupação, da sua conduta desregrada, da sua candura quase infantil. Eram qualidades que qualquer eahanoir podia apreciar ou no mínimo ter em conta, embora tivesse a certeza de que qualquer um dos seus congéneres não hesitaria em cravar a língua do burrik à parede com um estilete após ter experimentado todas essas particularidades durante um espaço de tempo tão prolongado quanto o de Slayra. Apesar de tudo, fora da alegria de Taislin que a eahanoir mais falta sentira enquanto ela e Quenestil se aventuravam pela Latvonia a caminho da costa, nos dias negros após a morte de Babaki, durante os quais os pesarosos corações de ambos os eahan lhes haviam pesado como chumbo no peito.

 

Por essa e outras razões, era-lhe algo penoso ver a expressão desconsolada na cara do burrik enquanto este andava em círculos pelo quarto, os pequenos ombros abatidos, os felinos olhos fixos no chão e os cantos da boca a descair, contrastando violentamente com o quase recto sorriso e a prazenteira postura aos quais Slayra se habituara. Era óbvio que Taislin estava desassossegado; não gostara de ter sido deixado para trás e, a despeito das palavras de Allumno, sentia-se um empecilho, um triste empecilho. A eahanoir queria dizer algo, mas consolos não eram a sua especialidade e o burrik também não parecia disposto a ouvir, pelo que se refreou de o fazer e permaneceu sentada à cabeceira da cama de Lhiannah. A princesa continuava na mesma, ainda não se mexera nem dera quaisquer indícios de estar prestes a acordar, imóvel e com uma serena máscara imperturbável no rosto ferido. Taislin preocupava-se com a arinnir também, claro, mas saber que os seus amigos poderiam estar a correr perigo e que ele não estava perto deles para os ajudar angustiava-o muito mais naquele momento. A notícia da morte de Babaki marcara-o profundamente, como a todos os outros, embora de uma forma diferente. Slayra deu consigo a sorrir, pois tais sensibilidades nunca a haviam afectado antes, nunca em Jazurrieh, que não permitia tais coisas e cujos habitantes não se podiam sequer dar ao luxo de nelas matutar. Não teria sobrevivido com pena, ou remorsos, ou pesar; qualquer outro eahanoir menos escrupuloso tê-la-ia apunhalado impiedosamente pelas costas enquanto se ocupava a questionar-se acerca de factos intuitivos e incontestavelmente assumidos pelos seus restantes congéneres. Apenas fora das sombras de Jazurrieh e no seio de tão díspar grupo pudera a eahanna aprender e ponderar sobre muitas questões da sua vida e da dos que a rodeavam. Por vezes questionava-se acerca de como a sua vida teria continuado caso ela e os dois assassinos que a acompanhavam não tivessem dado com os companheiros, caso um deles tivesse morto o Quenestil, caso ela própria tivesse morto o shura...

 

Mas que teima, esta de enveredar sempre por pensamentos tão funestos!

 

Passa-se alguma coisa, Slayra? perguntou Taislin.

 

A eahanoir apercebeu-se de que devia ter feito alguma careta estranha ou pensado em voz alta para o burrik reparar. Piscou os olhos e abanou a cabeça.

 

Ah... nada, Taislin, não é nada. E tu, como é que te sentes? - mudou de assunto.

 

Como é que eu me sinto...?

 

Sim... sabes, deixaram-te para trás, querias protegê-los, mas acham que não és capaz e... A eahanoir nem precisou de ver os olhos de Taislin descaírem para se aperceber de que acabara de escolher o pior tópico que poderia ter mencionado. Quer dizer... não... eu...

 

O burrik retomou a sua melancólica ronda circular pelo quarto.

 

”Oh, que raio... por que é que não ficas calada, mulher? Não tens mesmo jeito nenhum para estas coisas”, repreendeu-se Slayra, suspirando.

 

As cabeças de ambos viraram-se de sobressalto para a porta quando passos apressados ressoaram no corredor do outro lado desta. Slayra levantou-se da cadeira, olhando incerta para o seu pequeno companheiro enquanto centenas de possíveis perigos lhe tomavam a mente de assalto. Os Fadados voltavam para atacar. A guarda de Val-Oryth vinha interrogá-los. A multidão da qual Aewyre falara acabara de forçar a sua entrada no templo...

 

Mas foi o próprio quem abriu a porta repentinamente e irrompeu pelo quarto adentro, carregando o que pareciam ser o traseiro e as pernas de Allumno ao ombro. Quenestil entrou de seguida, a sua já avermelhada pele afogueada pelo esforço de quem correra com afinco, e Worick chegou por último, empunhando o bastão do mago e fechando a porta com força atrás de si. Slayra e Taislin estavam demasiado surpresos para reagir enquanto Aewyre pousava Allumno numa cadeira, Quenestil se apoiava na parede e Worick arfava.

 

O que...?

 

Por que é que empurraste a sacerdotisa? Ela podia Mas que raio de ideia foi essa, Aewyre? O que Aaah! O meu tratar da perna do mago é que te deu, homem? joelho! disseram os três ao mesmo tempo.

 

Apenas Aewyre ficou calado, permanecendo quieto de pé, ofegando e esperando que os estouros no seu peito parassem. Fechou os olhos por momentos de forma a desturvar a visão, e uma súbita tontura forçou-o a apoiar-se nos joelhos. Tomara apenas um fraco pequeno-almoço naquela manhã, e havia dias que não comia uma refeição decente, pelo que se considerou afortunado por apenas ter sido acometido de fraqueza naquele momento e não antes.

 

Uma bofetada na cabeça tornou a despertá-lo para a realidade, e assim que o guerreiro olhou para o seu agressor, viu um colérico Allumno apoiado num dos braços da cadeira e com uma mão pendente. Não tinha memória de ver a cara do mago assim, ruborizada a ponto de quase se mesclar com a gema na testa e com o branco dos olhos bem visível.

 

Estás completamente doido? gritou o mago, espantando todos no quarto. Aewyre endireitou-se, atarantado, e o mago continuou a repreensão sentado. Em que é que estavas a pensar? Será que não te sobra uma pinga do bom senso que eu te tentei incutir ao longo de todos estes vinte anos?! Continuas a pensar como uma criança irresponsável! Tens alguma noção do que fazes ou achas que isto é tudo uma brincadeira, ou uma das histórias que as tuas amas te contavam no berço?

 

Mesmo a boca de Worick estava aberta perante a explosão do mago, que todos até então haviam julgado impossível de acontecer. Nem nunca teriam imaginado que Allumno conseguisse gesticular de forma tão frenética nem falar tão alto sem ser para tecer alguma espécie de feitiço destrutivo.

 

Eu não posso... eu... mas tu queres matar-te e a nós todos, Aewyre? perguntou, cobrindo o quarto todo com um amplo gesto do braço. Um de nós já morreu, outra está ferida e outra tem uma criança! Vais continuar a agir como se ainda estivéssemos em Alyun, como se fôssemos invencíveis? Afinal queres descobrir o que aconteceu ao teu pai ou morrer como um estúpido herói?!

 

Aewyre fitava o seu tutor em silêncio, a surpresa na sua cara rapidamente substituída por uma expressão séria, que cedo deu lugar a um frio semblante inexpressivo antes de o guerreiro virar as costas ao mago e se dirigir à mesa-de-cabeceira de Lhiannah. Allumno ainda tremeu conforme os seus derradeiros impulsos irados lhe sacudiam o corpo, mas cedo as dores no joelho fizeram com que lhe desse atenção, agarrando-o com as duas mãos e uma careta de dor, esquecendo o seu assomo. Os outros ficaram paralisados por mais uns instantes até que, descongelando subitamente, retomaram os seus movimentos e respiração. Taislin olhava alternadamente para cada um dos companheiros, Worick viu que continuava com o bastão do mago na sua mão e decidiu ir entregar-lho, enquanto Slayra deixava Aewyre passar e ia ter com Quenestil, que se tornou a apoiar na parede, baixando a cabeça de olhos fechados e levando a mão entre as pernas como se a virilha lhe doesse. O silêncio envolveu a sala. Ambos os eahan falaram em voz baixa e Allumno limitou-se a agradecer a devolução do seu bastão com um reconhecido aceno de cabeça, retribuído por um grunhido do thuragar. Taislin permanecia calado enquanto Aewyre bebia um trago directamente do jarro, bochechando e cuspindo para o bueiro, enfiando de seguida os dedos na boca, mexendo nos dentes para ver se mais nenhum se partira ou estava a abanar. Pareciam todos intactos, mas os seus dedos sujos tinham um sabor salgado que, misturado ao saibo férreo que o sangue lhe deixava na boca, o forçou a bochechar e cuspir outra vez. Levou então as mãos às ancas e ficou defronte da parede de cabeça baixa como uma criança castigada. Alguém bateu à porta, abrindo-a ligeiramente de seguida e espreitando pelo estreito espaço. Era uma sacerdotisa de cabeça toucada que os companheiros ainda não haviam visto e mal chegaram a ver, pois Aewyre pediu-lhe imediatamente que se retirasse sem sequer tirar os olhos da parede para ver quem entrara, negando com veemência a necessidade de qualquer tipo de ajuda. A sacerdotisa hesitou inicialmente, mas acabou por se aperceber do desejo de privacidade do jovem e retirou-se, fechando a porta delicadamente atrás de si.

 

Presumo que não tenha corrido muito bem...? atreveu-se Slayra a perguntar a ninguém em especial, afagando o braço de Quenestil sem tirar os olhos deste.

 

O que é que pode ter corrido mal? Nem sequer sabíamos o que lá íamos fazer... comentou Allumno, ainda agarrado ao joelho. O seu vocabulário descuidado era o mais claro indício da sua irritação. A eahanoir olhou para o mago sentado e viu que estava com dores, pelo que segredou umas palavras a Quenestil e dirigiu-se ao humano.

 

O que é que te aconteceu?

 

Levei um pontapé no joelho...

 

Slayra ajoelhou-se diante do mago e desviou-lhe uma comprida madeixa de cabelo da cara, revelando um corte intumescente na têmpora que lhe sangrara para cima da sobrancelha.

 

Estás ferido.

 

Acho que estamos todos um pouco. Mas o joelho...

 

Fica aqui disse-lhe, levantando-se para ir buscar a bacia de água e uma toalha à mesa-de-cabeceira. Olhou de soslaio para Aewyre enquanto o fazia, mas o guerreiro estava completamente absorto nos seus pensamentos e a eahanoir achou melhor nada dizer, voltando antes para perto de Allumno para lhe limpar a ferida e ver o joelho.

 

Após alguma hesitação, Taislin decidiu ir ter com Worick e Quenestil, que se ia endireitando lentamente, respirando fundo. O thuragar estava a seu lado, com sangue na barba debaixo da boca, e observava o shura.

 

Então? Acertaram-te nos túbaros?

 

Também...

 

Pois... o que te vale é que já fizeram o seu serviço...

 

Vai comer a barba, Worick...

 

O que é que vos aconteceu? perguntou Taislin, interrompendo a breve troca de galhardetes.

 

O que é que te parece? Levámos uma carga de porrada, foi o que foi...

 

E nem sequer sabemos porquê... acrescentou Quenestil. Ambos falaram suficientemente alto para que Aewyre os ouvisse, mas na verdade tanto um como o outro não se achavam detentores do direito moral de criticarem o guerreiro pela forma como agira. Worick acompanhara o grupo com o consciente intuito de descarregar a sua raiva e frustração em alguém, independentemente de quem fosse ou onde estivesse e apercebia-se disso, agora que se sentia mais calmo e sossegado. Por sua vez, Quenestil descontrolara-se no momento em que o conviva empurrara Allumno, tomado de assalto pelas vivas e negras memórias que guardava da arena de Jazurrieh e que o haviam impelido a lutar como um selvagem, bloqueando quaisquer pensamentos racionais. Ambos eram da opinião de que Aewyre agira de forma estúpida e irresponsável, nisso concordavam plenamente com Allumno, mas nenhum conseguia censurar o guerreiro de consciência tranquila, razão pela qual permaneceram calados. O próprio mago também já parecia ter acalmado, lançando longos suspiros e agarrando a base do nariz com o polegar e o indicador enquanto Slayra lhe desapertava as faixas que lhe prendiam a salpicada calça, à enlameada bota e a levantava de forma a descobrir a perna direita. Começava a formar-se um inchaço no joelho do mago, que sibilou através dos dentes assim que a eahanoir lhe tenteou a zona atingida. Slayra estalou negativamente com a língua.

 

Quem quer que te tenha dado o pontapé, teve uma pontaria desgraçada. Acertou-te em cheio na mazela.

 

Tive ocasião de o constatar... retorquiu o mago.

 

Aewyre estivera a ouvir tudo entrementes, e as palavras dos seus companheiros misturadas aos seus já infaustos pensamentos em nada ajudaram a melhorar a disposição do guerreiro.

 

”Está tudo a correr mal... por mais que tente, só consigo piorar ainda mais as coisas. O Babaki morreu, a Lhiannah ia morrendo, o Allumno foi ferido por minha culpa...”

 

Não parece ter sido nada de maior, mas o melhor é ficares quieto durante algum tempo recomendou a eahanoir, cobrindo o joelho do mago com uma fria toalha molhada para aliviar a tumefacção.

 

Olha, boa... comentou Worick, quebrando o seu próprio silêncio. Outro que vai ter de ficar no templo...

 

”Três... e a Slayra, grávida. O que é que eu vou fazer? O que é que eu...” Lembrando-se subitamente de algo, o guerreiro levou as mãos ao cinto, olhando e tacteando como se nele procurasse algum objecto escondido. ”Oh não... o papel!”

 

Sentiu um aperto na garganta, o coração recomeçou a retumbar-lhe no peito, enviando jorros quentes pelo seu corpo fora. Lembrava-se agora, deixara o papel em cima da mesa dos homens que abordara e não pudera recuperá-lo durante a luta, nem sequer pudera pensar em fazê-lo enquanto combatia.

 

”Não, agora chega, isto é de mais. Acabou-se, não posso continuar como líder deles, não posso mesmo.” Aewyre virou-se para os seus companheiros, tentando cobrir todos com o seu olhar. Eu... tenho algo a dizer...

 

Todos interromperam o que estavam a fazer e ouviram atentamente com as mais variadas expressões nas suas caras. O guerreiro avançou em passos curtos e cuidados, inspirando fundo e postando-se ao lado da cama de Lhiannah.

 

Eu... como já viram... Todos notaram a dificuldade na escolha de palavras, e a expectativa apenas aumentou. Eu acho que não...

 

E de repente, todos menos Allumno correram na sua direcção, sobressaltando Aewyre. Quando Worick o empurrou, o jovem chegou mesmo a julgar que iria ser espancado pelos seus próprios companheiros, mas todos passaram por ele e por pouco não caíram em cima da cama.

 

Lhiannah! gritaram Taislin, Quenestil, Slayra e Worick em simultâneo, e Aewyre precisou de alguns momentos para se aperceber do que acontecera, que a princesa se mexera e acordara. A surpresa foi tal que ficou paralisado por breves instantes enquanto se adaptava à situação, sentindo-se desfasado durante o curto momento que se seguiu à explosão de actividade no quarto, como se estivesse a viver a reminiscência de um sonho.

 

Lhiannah! tornaram os outros a proferir, desta vez num destoante coro alternado que acordou o guerreiro de vez, incitando-o a mexer-se.

 

Os seus pés deslocaram-se pelo chão sem que disso se apercebesse, e Aewyre deu consigo a olhar para Lhiannah por cima de um agitadíssimo Worick. Os olhos orlados de castanho da princesa estavam abertos, embora pouco mais fossem do que duas frestas avermelhadas com desfocadas orbes azuis que olhavam em redor, avaliando o desconhecido ambiente que a rodeava. Lambeu os lábios gretados com a língua seca, mas assim que os apartou, reabriu uma ferida no inferior que recomeçou a sangrar ligeiramente. Tudo lhe soava algo emudecido, e o seu ouvido esquerdo crepitou quando a princesa tentou abrir a boca para falar e ouvir a sua própria voz, para se certificar de que vivia, para perguntar o que se passava e onde estava. Porém, a ligadura que tinha em volta do queixo e da cabeça não lho permitiu, e assim que a princesa fez força, os seus olhos cerraram-se de dor e um gemido escapou-lhe das profundezas da ressequida garganta. Os dedos da mão que se mexera e que chamara a atenção dos companheiros fincaram-se nos lençóis, agarrando-os com involuntária força alimentada pelas agulhadas no torso causadas pela respiração mais vigorosa dos pulmões, que forçavam as costelas partidas a expandirem-se. O tensionar dos seus músculos estendeu-se ao resto do corpo, incluindo o maxilar, que lhe ardeu em roaz agonia e que fez com que mesmo de olhos fechados o seu mundo andasse à volta com a lancinante dor. Sentiu o contacto de mãos, mãos que lhe agarravam os braços e mãos que lhe afagavam a cabeça, mas cada toque era-lhe como um ferro em brasa e Lhiannah pensou que os seus ossos iam estalar, que a sua cabeça iria rachar, que a escuridão e o apagamento dos sentidos eram melhores que tão atroz sofrimento... os ferros incandescentes soltaram-se-lhe da pele, mas a dor persistiu e a princesa sentiu mais do que ouviu um grito proferido por alguém.

 

Larguem-na! Dêem-lhe espaço! vociferava Slayra, tentando a custo acalmar o ânimo dos seus companheiros, principalmente o de Worick, que teve praticamente de puxar. Assim estão a magoá-la!

 

Allumno coxeou para perto do grupo, ajudando a eahanoir a refrear os ânimos, mas o máximo que ambos conseguiram foi impedir que tocassem demasiado na princesa.

 

Lhiannah, estás bem? perguntou Aewyre.

 

Como te sentes? quis Taislin saber.

 

Não te mexas muito... recomendou Quenestil

 

Não lhe mexam é vocês disse Worick, embora estivesse a fazer isso mesmo.

 

Worick, dói-lhe tudo. Não lhe agarres a mão com tanta força desaconselhou Slayra.

 

E se nos afastássemos todos um pouco...? sugeriu Allumno, apenas conseguindo fazer-se ouvir à segunda tentativa e acatar à terceira.

 

Passada a agitação inicial, os companheiros acalmaram-se a custo e cercaram a cama com o cuidado de não abafar a princesa, uns ajoelhando-se e outros apoiando as mãos no colchão. Os olhos de Lhiannah tornaram a abrir-se assim que a arinnir soltou um longo suspiro pelo nariz, olhando fracamente em redor sem mexer a cabeça.

 

Não tentes falar disse-lhe Slayra, atraindo os orbes azuis da princesa, que no entanto não denotavam compreensão. Falar. Não tentes falar.

 

A expressão apática de Lhiannah dava a entender que não ouvia ou não compreendia o que a eahanoir lhe estava a dizer. A sua garganta mexeu-se ao engolir em seco e a sua cabeça virou-se morosamente para o lado da mesa-de-cabeceira.

 

O que queres, cachopa?

 

Água concluiu Taislin, surripiando a bacia de cima da mesa. Ela quer água.

 

A arinnir tentou levar a cabeça para a frente, mas as vértebras no seu pescoço entalaram algo sensível entre ambas que lhe lançou um espasmo de dor pelo corpo fora.

 

Deixa-te estar, cachopa... disse Worick, agarrando-lhe a nuca por baixo da almofada para a levantar enquanto o burrik lhe levava bacia à boca. Não te esforces.

 

Taislin pousou a orla da bacia no beiço de Lhiannah e inclinou-a suavemente até o vacilante dedo de água lhe tocar nos lábios feridos, deixando-a beber ao seu próprio ritmo. Aewyre ajudou juntando a sua mão à de Worick debaixo da almofada enquanto a princesa sorvia calmamente de olhos fechados, aplacando a ressequida garganta, mas depressa os sorvos se tornaram em goles à medida que a arinnir se ia apercebendo do quão sequiosa estava, e Taislin teve de inclinar mais a bacia. De repente, Lhiannah engasgou e tossiu, batendo com os dentes contra a orla e entornando água pelo queixo e pescoço abaixo. Gerou-se um pequeno alvoroço em redor da cama, com praguejos, gestos bruscos e pedidos de calma enquanto a princesa tossia, contorcendo-se com as dores que isso lhe causava no maxilar e levando as mãos à maxila pela primeira vez. Quenestil agarrou-lhas de forma a impedir que a princesa se magoasse mais e Slayra afagou-lhe o topo da cabeça, uma das poucas zonas que não estavam feridas.

 

Assim que as dores passaram, Lhiannah tornou a abrir os olhos débeis embora mais despertos. A sensação correenta na sua garganta quase desaparecera e já percebia melhor as vozes, embora do lado esquerdo continuasse a sentir um crepitar no tímpano, distinguindo apenas sons emudecidos. A maxila doía-lhe demasiado para falar, mas tinha de pedir uma coisa.

 

O que foi? perguntou Worick quando um gemido saiu da boca da sua protegida. O que queres?

 

A princesa começava a aperceber-se da sua incapacidade de articular palavras devido à maxila deslocada, que parecia estar presa.

 

Mais água? tentou Taislin, recebendo um curto e enfático abanar negativo de cabeça.

 

Comida? pensou Aewyre. Outro abano.

 

Queres que vamos chamar um sacerdote? sugeriu Quenestil, apenas conseguindo que a princesa se magoasse ao exagerar na sua negação.

 

Calma, cachopa! O que é que queres?

 

Um espelho concluiu Slayra, silenciando o interrogatório. Os companheiros fítaram-na com expressões admiradas nas caras. Um espelho... repetiu em voz baixa e concludente quando a arinnir acenou com o queixo, apontando para a eahanoir com um fraco dedo.

 

Fez-se silêncio quando todos se entreolharam, incertos. O cenho de Lhiannah franziu-se perante a hesitação dos companheiros e uma gemebunda interrogação veio-lhe do fundo da garganta.

 

Lhiannah... tartamudeou Aewyre, acariciando-lhe os cabelos com a mão. Tu não...

 

Outro gemido, desta vez mais insistente. Aewyre suspirou e lançou um olhar rogativo aos outros, pedindo ajuda.

 

Os dedos da princesa fincaram-se-lhe no braço, pontuando um decidido e impaciente gemido que deixava o guerreiro com poucas opções.

 

Cachopa...

 

Lhiannah tornou a abanar a cabeça e a gemer negativamente, apertando o braço do jovem com força proveniente de um crescente temor causado pela hesitação dos seus companheiros. O que é que se estava a passar? Por que é que se recusavam a dar-lhe um espelho? O que lhe acontecera?

 

Aewyre! sibilou Slayra enfaticamente. Vais tentar esconder-lhe isso? Achas que ela iria gostar?

 

Achas que ela vai gostar? retorquiu Worick.

 

Não admitiu a eahanna. Mas também não vale a pena esconder-lho.

 

E será que vale a pena...

 

Antes que Worick acabasse de falar, Taislin surgiu por entre o thuragar e a eahanoir com um pequeno espelho quadrado emoldurado a peltre que fora buscar ao armário enquanto os seus amigos discutiam. Os dedos de Lhiannah fincaram-se no espelho antes que qualquer um dos companheiros tivesse a presença de espírito para a impedir, e a princesa pôde então contemplar o seu reflexo.

 

Instalou-se um desconfortável silêncio no quarto quando as palavras se perderam algures a caminho da boca de todos os que falavam. Uma longa racha percorria a superfície do espelho de uma ponta à outra, seccionando a cara da arinnir, mas os seus ferimentos estavam todos bem visíveis: os lábios túmidos, as equimoses castanhas, o corte na sobrancelha direita, a ligadura que lhe mantinha o queixo no lugar. Lhiannah não esboçou qualquer tipo de reacção, olhando simplesmente para aquele rosto ferido que aparentemente era o seu com uma expressão quase apática, e ninguém soube o que dizer ou fazer além de suspirar em sinal de resignação e compadecimento. A princesa permaneceu longos momentos na mesma posição sem mexer um músculo, coisa que os companheiros não conseguiram fazer, em virtude da montante tensão que se ia criando enquanto esperavam por uma reacção da arinnir, a reacção que previam. Quando todos já começavam a pensar que Lhiannah entrara em choque, o espelho começou a vacilar na sua mão. Depois repararam que o estremecimento provinha dos seus ombros, que se agitavam em bruscos movimentos soluçantes, e que os lábios da princesa se apertavam, trémulos, acompanhando o semicerrar de cintilantes olhos.

 

Lhiannah, isso passa... vais sarar... Aewyre tocou-lhe o ombro numa tentativa de a confortar, mas a princesa deixou o espelho cair no colchão, levou a vacilante mão ao rosto, tacteando os seus ferimentos, e fechou os olhos, vertendo duas lágrimas que lhe correram pela cara abaixo.

 

Cachopa, tem calma... tentou Worick, mas a sua protegida foi acometida de um soluçante choro silencioso e cobriu a cara com a outra mão, como se tivesse vergonha de a mostrar ao mundo. Cachopa...

 

Worick, Aewyre disse Slayra. Não me levem a mal, mas neste momento a vossa presença não a está a ajudar. Nem a vossa acrescentou ainda, indicando Allumno, Taislin e Quenestil com um único gesto da cabeça. Deixem-me com ela.

 

A seu lado, o thuragar fitou a eahanoir com os pequenos olhos pretos como se tivesse ouvido uma serpente a sibilar, mas Aewyre levantou-se e suspirou.

 

Ela é capaz de ter razão... concordou, vendo o pranto mudo de Lhiannah. Venham, vamos lá para fora.

 

Quenestil e Allumno não tiveram quaisquer objecções, limitando-se a apertar o colchão como para dar força à arinnir e dirigindo-se à porta. Worick ainda precisou de um leve puxão de Aewyre para se começar a mexer, lançando um olhar de aviso de uma ferocidade quase paternal a Slayra, que fez por o ignorar, curvando-se perante Taislin e pegando-lhe pela cara.

 

Fizeste bem. Mas agora ela tem de ficar sozinha.

 

O burrik acenou com a cabeça e lançou um último olhar a Lhiannah, hesitando ainda em tocar-lhe ou não, mas acabou por se retirar e fechar a porta delicadamente atrás de si, abafando o som das vozes ciciantes dos companheiros que se ouviam no corredor. A eahanoir viu-o sair e virou-se então para Lhiannah, acocorando-se à cabeceira e pegando gentilmente no pulso da princesa, sussurrando-lhe palavras aquietadoras. A outra mão continuava a tapar a cara, mas Slayra contentou-se com uma e entrelaçou os seus dedos nos da arinnir, pousando ainda a sua outra mão sobre ambas. Lhiannah acabou por espreitar em redor, vendo o mundo turvado pelas lágrimas, e constatou que apenas a eahanna permanecia no quarto, agarrando a sua mão a seu lado com uma cara serena mas comovida, os amendoados olhos azuis-claros oferecendo-lhe toda a compreensão do mundo. Contra a sua vontade, um soluço saiu-lhe da boca e então o choro intensificou-se, forçando-a a gemer devido ao maxilar ligado. A testa de Slayra enrugou-se e a eahanoir passou o braço por baixo da almofada da princesa, inclinando-se por cima dela e puxando-a com cuidado para si, sentindo-lhe os soluços no seu ombro sarado. A outra mão de Lhiannah acabou por pousar no seu pescoço e assim ficaram as duas, dispensando palavras.

 

Dois orbes azul e cinzento fitavam a envolvente expansão cerúlea, hipnótica na sua constante e sinuosa movimentação, deslumbrante nos jogos de luz que se efectuavam na sua ondulosa superfície com os reflexos do sol, esmagadora pela sensação de pequenez individual que transmitia, juntando-se ao céu límpido no fundo do horizonte.

 

Há muito tempo que Tannath não viajava de barco, e nunca sem terra à vista. A última viagem que empreendera sem fazer uso dos seus pés ou de um cavalo fora por ocasião de um assassínio em Taimyria, uma cidade latvoniana relativamente próspera e bem guardada por guardas montados e acompanhados por cães capazes de se lançarem numa implacável perseguição. Fora forçado a escapar por barco, empreendendo uma travessia fluvial de vários dias num saveiro, um pequeno barco de fundo chato que teve de partilhar com um hircoso barqueiro subornado que passou boa parte da viagem de olhos postos em si, receando uma facada nas costas que só não veio porque Tannath fazia questão de manter uma reputação de fiabilidade e confiança com todos os que não fossem o seu alvo designado.

 

Agora pouco importava, pois fora desapossado, proscrito, e o seu nome para sempre maculado. O único propósito que o movia era o de encontrar Slayra e Quenestil e matar ambos. Para esse fim comprara passagem no primeiro barco que zarpara de Tomska na madrugada do dia após a sua chegada, pois tivera uma certa urgência em partir antes que a rapariga que poupara na estalagem recuperasse o suficiente para o delatar. Era uma embarcação que se destinava a recolher armas de fabrico tanarchiano para alimentar a sempre activa e fragmentada máquina de guerra latvoniana. A sua tripulação era constituída por homens rudes e bruscos, antigos mercenários deduziu o eahanoir, julgando pelas cicatrizes incapacitantes que muitos exibiam que provavelmente faziam questão de continuar com armas nas suas vidas, mesmo que já não estivessem em condições de fazer bom uso delas. Vários seriam provavelmente também foragidos ou homens com a cabeça a prémio, talvez mesmo desertores, ou renegados, ou mesmo indivíduos cujo senhor morrera numa das constantes escaramuças que constituíam o brutal jogo de poder da Latvonia. Podia ouvi-los atrás de si, as roucas conversas em Urial recheadas de impropérios e os passos descalços no convés misturados ao ranger das cordas. Ninguém o incomodara durante os sete dias que já haviam passado, e Tannath também não fizera por chamar mais atenção que aquela que a sua aparência por si só fazia, isolando-se da tripulação e comendo a horas diferentes. Durante a noite dormia de costas para a parede, encolhido a um canto côncavo com uma manta a servir de cama, de estilete e quebra-espadas nas mãos, embora ainda ninguém se lhe tivesse dirigido de forma menos casual ou denotando intenções menos pacíficas. Mas eram latvonianos, o único povo em Allaryia a lidar com eahanoir de igual para (quase) igual, e todo o cuidado era pouco. Nem o ouro com o qual presenteara o capitão era garantia de que passaria a viagem sem ser molestado, quando muito poderia talvez servir de aliciante para algum marujo mais ganancioso, embora Tannath se tivesse esforçado por dar a entender que iria servir de intermediário para um negócio potencialmente muito lucrativo em Ul-Syth e que tanto o capitão como a sua tripulação teriam muito a ganhar caso chegasse são e salvo. Armas sirulianas, dissera, um carregamento inteiro delas, e os olhos do capitão haviam brilhado. Sirulia não vendia os produtos do seu aço a ninguém, pelo que a única forma de ter acesso às autênticas obras de arte bélicas provenientes do outro lado do Istmo Negro era através de meios ilícitos, que envolviam sempre emboscadas a sirulianos ou o roubo das suas posses. Qualquer uma das empresas era extremamente perigosa, o que tornava as armas um produto muito difícil de se obter e assaz dispendioso para quaisquer compradores, que também não poderiam ser particularmente escrupulosos para se envolverem em tal negócio. O capitão do barco parecia ser uma dessas pessoas, e parecia que a mentira de Tannath fora suficientemente convincente para o interessar, o que lhe salvaguardava um mínimo de segurança a bordo. Mas eram latvonianos, e todo o cuidado era pouco.

Contudo, durante o dia o eahanoir permitia-se relaxar no convés, passando horas a fio na dianteira como se fosse ele a carranca de proa do navio, uma imóvel e silenciosa figura negra apoiando o pé na abita da amarra da âncora e os braços sobre o joelho com os cabelos e a capa a esvoaçarem ao vento, desbravando o caminho para a embarcação. Cedo descobrira que os seus tortuosos pensamentos se perdiam facilmente na imensidão do mar e por vezes não os tornava a encontrar, o que para o atormentado eahanoir era um alívio e um bem-vindo bálsamo. Acabavam sempre por ser eles a encontrá-lo durante a noite, supliciando-lhe o sono com as dúvidas e conflituosas emoções que o perseguiam desde Jazurrieh. Os assuntos que tinha a tratar com Quenestil e Slayra apenas a si lhe diziam respeito, mas sabia que estava ao mesmo tempo a servir de joguete para Illoth, o etharr que arquitectara a sua queda e subsequente degredo, ele e Vinxenia, a traidora. Tannath não podia deixar de se sentir algo ingénuo devido à amarga indignação que lhe grassava pelo espírito. Afinal, poucos conheciam as regras de Jazurrieh tão bem como ele, e sabia bem que se devia considerar afortunado pelo simples facto de estar vivo para lamentar ter sido apanhado numa das inúmeras teias tecidas pelos habitantes da insidiosa cidade. Ficara emaranhado como uma mosca na teia de Illoth, a proverbial aranha que preferira soltá-lo de modo a usar os seus talentos para castigar aqueles que também o haviam ofendido. Talvez fosse a justaposição de interesses no seu incumbimento que azedasse o fígado do eahanoir: a reputação de Illoth fora comprometida pela escapada de Quenestil e Slayra; a vida de Tannath fora destruída pela mesma. Tanto um como o outro queriam que os dois eahan pagassem pelo que haviam feito, mas era Tannath quem estava a ser usado como um não tão involuntário vector dessa vontade mútua. Fora liberto da teia, o que só por si já era uma ignomínia e uma mácula para o seu orgulho, mas o pior era que a aranha o deixara com alguns fios ligados, fios esses que não podia nem queria arrancar, porque o vinculavam a uma incumbência à qual o próprio se propusera...

 

Felizmente, os seus desordenados pensamentos tornaram a perder-se na vasta planura ondeante do mar, e Tannath deu consigo a inspirar a maresia, enchendo os pulmões com a intensa fragrância marítima e soltando um longo suspiro de olhos fechados. Iria fazer o que tinha a fazer. Depois disso poderia preocupar-se com o futuro, se é que ainda tinha algum após cumprir o seu objectivo. As suas orelhas curvas espertaram enquanto coçava distraidamente as cicatrizes nas costas, captando o ruído de passos que se aproximavam. O eahanoir olhou de viés para trás para avaliar se a situação justificava virar-se e chegou à conclusão de que sim.

 

Dois homens, nenhum com ar de quem estava a trabalhar, e ambos com sorrisos bastante mal dissimulados nas caras. Vestiam camisas e calças curtas de cárbaso, o mesmo material usado nas velas, e cada um tinha uma faca de marinheiro ao cinto de cordame. Um deles, o maior e o que tomava a dianteira, olhava Tannath de cima com um olho enquanto o outro contemplava o céu. Tinha um queixo largo de barba mal feita, e o descaído cabelo castanho e seboso emoldurava-lhe a cara. Os seus braços musculosos ostentavam várias toscas tatuagens feitas com a ponta carbonizada de um espeto, e as veias nos seus sangradouros eram azuis e salientes. O outro, de um porte pouco mais corpulento do que o do delgado eahanoir e bem mais baixo do que o seu companheiro, tinha um encrespado cabelo preto esbranquiçado por camadas de sal, um pescoço descaído para a frente, dois cobiçantes olhos azuis permanentemente franzidos e uma boca que parecia estar sempre entreaberta. Nenhum tinha dentes particularmente sãos.

 

Olá, eahanoir cumprimentou o mais alto, com um tom paternalista na profunda voz.

 

Eahanoir disse o outro com uma voz nasalada, nutando com a cabeça.

 

Boas tardes, marinheiros retribuiu Tannath, mantendo as mãos a seus lados.

 

Por que passas os dias inteiros aqui sozinho? quis o marujo vesgo saber.

 

Sozinho gralhou o homem mais pequeno, tornando a nutar com a cabeça.

 

O eahanoir não respondeu, fitando apenas o indivíduo mais alto.

 

A viagem vai ser muito longa. Não gostavas de um pouco de companhia?

 

Companhia.

 

Nem por isso... respondeu Tannath secamente, estranhando as insinuações com a sobrancelha do olho tatuado erguida.

 

Mas devias. Um eahanoir não devia andar sozinho aqui pelo barco...

 

Barco. O estranho comportamento do homem e o tom nasalizado da sua voz começavam a incomodar Tannath.

 

Além disso, é sempre bom ter amigos...

 

Amigos.

 

Vocês já parecem estar bem um para o outro.

 

O matulão abafou uma gargalhada cavernosa, rindo com os ombros. O outro limitou-se a soltar uma curta exclamação divertida.

 

Nós os dois gostamos de ter muitos amigos. É bom ter muitos amigos quando não há mulheres a bordo durante tanto tempo.

 

Tempo concordou o outro, acenando com a cabeça uma vez mais.

 

Tannath continuou sem dar resposta, nem sequer quando o homem esticou o braço para lhe mexer nos sedosos cabelos negros com dedos calejados.

 

Tens um cabelo bonito, eahanoir, como o de uma mulher.

 

Mulher pairou o outro enquanto o matulão enrolava uma madeixa de cabelo de Tannath com o indicador.

 

E a tua pele é branca e macia, como a de uma mulher. O homem exibiu os dentes acastanhados com um grotesco sorriso, olhando para Tannath com um olho e para o céu com o outro. Nós os dois vamos gostar de ser teus amigos. Não vamos?

 

Vamos. Era difícil dizer se o indivíduo respondera ou se limitara a repetir a palavra.

 

Desta posição, tenho quatro distintas maneiras de vos matar aos dois afirmou o eahanoir categoricamente. Querem escolher uma ou preferem ir-se embora?

 

O olhar que Tannath lançou a ambos já fizera muitos dos seus congéneres engolirem em seco e era conhecido em Jazurrieh como uma promessa de morte, mas os dois marinheiros não pareceram minimamente afectados. Eram homens do mar, indivíduos pragmáticos e provavelmente antigos mercenários, alheios a palavras e a promessas desprovidas de acções que lhes dessem força e credibilidade. O mais alto sorriu, e o outro esboçou uma expressão semelhante com a boca entreaberta.

 

És como as mulheres difíceis?

 

Difíceis.

 

Não gostamos de amigos difíceis. Mas sabemos o que eles querem quando estão muito tempo no mar.

 

Mar gralhou o mais baixo enquanto o seu companheiro remexia no bolso costurado das suas calças, tirando dele uma maçã amarela.

 

Queres, eahanoir? Está verde, mas boa.

 

Boa.

 

Tannath dispensou apenas um olhar de relance ao fruto e deu-se por satisfeito por nenhum dos dois poder ver o aumento da salivação dentro da sua boca. O homem tornou a rir e ferrou os dentes acastanhados na maçã com um rijo ruído crocante e mastigando com exagerado deleite.

 

Hmm, boa. Também queres, eahanoir? perguntou, abanando o fruto de forma provocadora defronte da cara de Tannath. Só damos maçãs aos nossos amigos, não é?

 

É.

 

Uma vez mais, era impossível dizer se fora uma resposta ou uma repetição.

 

Vendo que a expressão de Tannath se mantinha inalterada, o homem exclamou em jocosa admiração perante a persistência do seu ”amigo” e tornou a levar a maçã à boca.

 

O eahanoir foi fulminante. Algo molhou os olhos do homem alto, cegando-o momentaneamente e obrigando-o a levar as mãos à cara para os esfregar enquanto cambaleava para trás, inclinando-se para a frente. Quando a surpresa passou, o matulão rosnou e destapou a cara, pronto a ser algo mais persuasivo, mas os seus olhos arregalaram-se e os seus dentes cerrados separaram-se quando a sua boca se abriu de espanto.

 

O braço de Tannath estava esticado, apontando para cima na diagonal. Sumo de maçã pingava da ponta do seu indicador, que trespassara o fruto de um lado ao outro.

 

O homem mais alto endireitou-se, já não tão disposto a ensinar uma lição ao eahanoir. O outro continuava com a mesma expressão de olhos franzidos e boca entreaberta e olhava para o seu companheiro, aguardando a próxima palavra.

 

Podes... podes ficar com a maçã, eahanoir.

 

Eahanoir.

 

Obrigado agradeceu Tannath, puxando o fruto para fora do dedo e chupando-o sem tirar os olhos dos dois, convidando-os a retirarem-se o mais depressa possível.

 

Adeus despediu-se o mais alto, virando as costas e estugando o passo na direcção da escotilha.

 

Adeus finalizou o outro, seguindo-o sem sequer lançar um último olhar ao eahanoir.

 

Tannath virou-se outra vez para o mar e desembainhou o seu estilete, cortando a porção trincada pelo marujo e atirando-a borda fora, procedendo a comer o resto da maçã. Soube-lhe deliciosamente e o eahanoir devorou-a até ao caroço, retomando de seguida a sua silenciosa vigília sobre o oceano, esperando que os seus pensamentos nele continuassem perdidos pelo menos até ao anoitecer.

 

Hazabel sentia frio.

 

Na verdade, não sentia, mas sentia que devia sentir.

 

Estava confusa.

 

Rodeada por uma desmesurada vastidão branca, branca em todas as direcções menos no céu cinzento, silenciosa excepto pelo vento que ululava pelo opaco firmamento, lançando ondulantes uivos por toda a extensão do estranho lugar, abanando-lhe os longos cabelos negros.

 

Agora sim, o vento causava-lhe frio. Fustigava-lhe a cara com violentas baforadas, batia-lhe a roupa contra o corpo, picava-lhe os olhos com a poeira branca que arrastava. Seria neve? Onde estava?

 

Sentiu-se compelida a andar, embora não soubesse para onde se dirigia. Todas as direcções pareciam ir dar ao mesmo lugar; a nenhures. Não havia nada à vista, nenhuma marca de terreno, nenhuma elevação, nenhuma característica topográfica que diferenciasse a zona na qual se encontrava daquela na qual estivera centenas, milhares de passos atrás. Já andara assim tanto? Era difícil dizer, tudo lhe parecia igual, até mesmo o tempo. Tanto podia ter passado toda a sua vida a andar sem rumo como apenas algumas batidas de coração. Não havia sol, mas o céu cinzento tinha uma luz própria que de alguma forma iluminava a monótona vastidão. O que fazia aqui?

 

Perdida, Hazabel? perguntou uma voz de homem por cima do seu ombro, fazendo-se ouvir de alguma forma no meio da ventania.

 

O entorpecido corpo da harahan despertou, e a mulher virou-se bruscamente, levantando poeira branca com os pés. Ninguém.

 

Pareces incerta quanto ao teu propósito comentou a voz, dando ideia de vir detrás da harahan outra vez, mas quando Hazabel se virou, não havia ninguém à vista.

 

Quem está aí? perguntou, vendo-se forçada a repetir devido ao barulho do vento. Quem está aí?

 

Eu não estou aqui. Nunca estive. Mas estive sempre aqui. Algo tocou o seio esquerdo de Hazabel, e a harahan rasgou o ar com as garras, sem perceber como o vulto que se desviou lhe aparecera à frente sem que ela reparasse. Para onde estivera a olhar? O seu mundo estava vertiginoso, o chão pareceu inclinar-se debaixo dos seus pés e a mulher cambaleou com o ímpeto do golpe.

 

Sempre aí estive, porque sempre estive presente nos teus pensamentos de ódio e rancor, as duas únicas emoções que te têm guiado, querida Hazabel disse a voz atrás de si enquanto a harahan tentava estabilizar o seu mundo para se virar e confrontar o seu interlocutor. As duas emoções das quais te alimentas e, ao que parece, te alimentam.

 

A linha do horizonte pareceu estabilizar e Hazabel virou-se, reconhecendo o tom escarnecedor da voz. Um vulto obscurecido, a única imagem que a harahan guardava do maldito, a única recordação que tinha do odiado homem, o único vislumbre que este lhe permitira, sempre encoberto pelas sombras que eram o seu domínio, não o dele.

 

Mas nem elas te valem. Estás uma lástima, querida Hazabel, uma mera sombra da harahan que vinculei ao meu serviço, do qual te tens tornado menos digna a cada dia. A voz do desgraçado estava calma e serena, mas o próprio vento parecia carregá-la consigo, espalhando-a por toda a imensidão.

 

A harahan rosnou e tornou a investir, mas a vastidão que a rodeava pareceu girar, ou talvez fosse só o vento, mas de qualquer forma o vulto já lá não estava quando as garras de Hazabel o deviam ter rasgado.

 

A tua incumbência era relativamente simples, não achas? continuou o maldito, sem estar em lado algum desta vez. A harahan olhava freneticamente em redor, mas nem sinal dele. Deixares o rapaz plantar em ti a sua real semente e roubares a Espada dos Reis. Onde é que falhaste, querida Hazabel?

 

Mostra-te, desgraçado! Eu mato-te!

 

Achas que isso resolveria alguma coisa? indagou o maldito atrás do seu ombro. Hazabel rosnou e oscilou o braço para trás, mas apenas atingiu o ar, pois o vulto estava mais alguns passos atrás. Tornou-se esse o objectivo último da tua mísera vida, que antes de mim nem significado tinha?

 

Gritando de raiva, a harahan investiu, os seus dedos pouco mais do que garras, a sua voz pouco mais do que um berro animalesco. Poeira foi espalhada em seu redor pelo revoluteante vento, obscurecendo toda a visão, e Hazabel tropeçou, caindo no chão macio e polvorento. Tentou levantar-se, mas a poeira do solo não lhe sustentava os movimentos e o máximo que a mulher conseguiu fazer foi virar-se de costas, procurando sinais do maldito em redor.

 

Derrotada e eludida por um díspar grupo de desregrados aventureiros vez após vez, escorraçada para lamber as feridas como uma cadela estropiada... continuou a voz a escarnecer, parecendo desta vez vir de uma determinada direcção, para a qual Hazabel se virou sem demora, debatendo-se com o movediço chão.

 

Um vulto aproximava-se, obscurecido pela poeira branca. Hazabel debateu-se para se conseguir pôr de gatas.

 

Sua bruxa! gritou uma voz feminina.

 

A harahan ergueu a cara a tempo de receber um pontapé que lhe fracturou o nariz com um enjoante estalo e fez com que a sua cabeça chicoteasse para trás, por pouco não lhe partindo o pescoço. As suas costas enterraram-se no chão pulverulento e as suas mãos taparam-lhe a cara instintivamente, molhando-se no quente sangue escuro. A voz feminina lançou-se então numa zombeteira e sonora gargalhada, parecendo gabar-se da humilhação da harahan. Hazabel abriu os olhos a custo e viu através dos dedos que lhe tapavam a cara a amiga de Aewyre Thoryn. Cega de dor e raiva, a mulher conseguiu de alguma forma levantar-se e, apesar de o mundo girar à sua volta, chegando quase a tirar-lhe o chão debaixo dos pés, Hazabel conseguiu abater-se sobre a princesa, que continuou a rir mesmo enquanto a harahan lhe caía em cima e lhe escarpelava a carne com as garras, troçando e zombando dela mesmo quando a sua garganta era arrancada, tingindo a poeira branca de vermelho em seu redor. Numa desesperada tentativa de a calar, a harahan cravou-lhe as garras na cara e arrancou-lha com um vitorioso uivo.

 

Que foi silenciado quando a face irada de Aewyre Thoryn lhe deu ”- lugar, dentes cerrados de raiva e olhos nada mais transmitindo além de ódio e repulsa. Hazabel nem viu o punho que lhe explodiu na cara, tirando-a de cima do guerreiro e lançando-a rodopiante de cara contra o poeirento solo. O mundo girava agora, nem o facto de estar de gatas lhe dava uma mínima sensação de estabilidade. Hazabel tentou a custo levantar-se, mas um pontapé na barriga elevou-a do chão, projectando-a pelo ar e lançando-a a rebolar pela poeirenta neve. O seu nariz sangrava copiosamente, tingindo-lhe a boca e o queixo de negro, fazendo os seus dentes sobressaírem quando a harahan ergueu a aterrada cara para ver o jovem Thoryn avançar na sua direcção com Ancalach desembainhada.

 

- É isto que queres, mulher? Vem buscá-la... desafiou o guerreiro, avançando de espada em riste.

 

Hazabel empurrou-se para trás, pontapeando o chão e arrastando-se de costas com as mãos. Queria fugir, mesclar-se às sombras, fugir dali, mas não havia sombras naquele lugar desolado, não havia por onde escapar. Bateu com os ombros contra um par de pernas.

 

O que se passa querida Hazabel? zabel? A harahan virou-se bruscamente, revelando o obscurecido vulto do maldito. A sua voz perdera toda a falsa suavidade e agora ecoava, reverberando subtilmente, ressoando na sua cabeça. Não é aquele o teu grande objectivo, a chave para a tua liberdade? Hazabel olhou para o lado. Aewyre Thoryn já não estava lá. Perto, chegas sempre tão perto, perto. Mas inevitavelmente falhas, falhas. Estás destinada a falhar, sua estúpida bruxa... bruxa... bruxa...

 

O medo deu lugar à raiva desesperada, e a mulher saltou da sua prostrada posição, agarrando as pernas do vulto e derrubando-o, rebolando no chão com ele. Uivando de triunfo, Hazabel preparou-se para o esventrar quando deparou com a cara de Brunken, o lenhador. Surpresa e assustada ao mesmo tempo, a harahan soltou um grito ao ver os olhos revirados e a barba empapada com o sangue que lhe escorria dos cantos da boca aberta.

 

O que é você, seu monstro? O que fez ao meu marido? berrou uma voz em desespero.

 

Hazabel virou-se a tempo de ver Alanii, a corpulenta esposa do lenhador, arremessar uma machadinha na sua direcção. A arma guinou furiosamente pelo ar contra a sua cara, produzindo um agudo efeito de chofre.

 

Não havia sombras.

 

Não tinha por onde fugir.

 

A harahan tornou a gritar, fechando os olhos e escudando o rosto com o braço direito, quando o mundo explodiu em dor...

 

... E Hazabel acordou com um rouco e prolongado arfar, olhando em redor como um animal assustado. O breve momento de confusão e adaptação à estabilidade e aparente segurança do mundo desperto passou depressa, após o qual o seu braço direito estalou em dor pelo cotovelo. A harahan grunhiu de dentes cerrados e agarrou o membro, batendo em algo sólido com a nuca ao impeli-la bruscamente para trás.

 

Em cruciante agonia, Hazabel esfregou o chão com os pés, arrastando-os por poeira que ao menos cobria um pavimento firme e consistente. Lágrimas brotaram dos seus olhos e a mulher grunhiu em aflição quando os seus dedos se crisparam instintivamente no cotovelo.

 

Trevas cobriram o mundo, pela graça do Flagelo.

 

Quando tornou a acordar, o seu braço ainda latejava e doía, mas a dor tornara-se suportável. Hazabel estava alagada em suor frio que lhe cobria o corpo inteiro e com uma desagradável sensação quente e molhada entre as pernas e nas nádegas. A harahan apercebeu-se de que estava sentada sobre uma poça da sua própria urina. Enojada mas sem forças para estrebuchar para longe, Hazabel tacteou em redor por um apoio para a mão do braço são. Estava escuro, onde quer que estivesse, embora um pálido facho de luar manasse de um grande buraco na parede.

 

A mulher forçou a embotada mente a pensar. Não se lembrava de ter entrado naquele lugar, a última coisa de que se recordava... o seu grito, o chão a aproximar-se depressa de mais... depois o abraço das sombras, um voo desenfreado, nada mais desejando além de ser para sempre engolida pela penumbra. E nada mais. Não se lembrava mesmo de como ali fora parar. Falhando em encontrar um amparo no que devia ser a parede de madeira, se o seu tacto não a enganava, Hazabel apoiou-se no chão, molhando a mão na poça cálida. Grunhindo, enojada, a harahan rastejou a custo para longe da sua própria urina, arrastando o braço partido atrás de si. Algo pingou da sua cara para o chão, no qual se espalhou com um quase imperceptível ruído molhado, e a mulher reparou no sangue quente que lhe gotejava do lábio superior. Deixando-se cair de ombro no chão, tacteou o nariz e apercebeu-se de que estivera a respirar apenas pela boca, pois as suas narinas estavam estofadas com pedaços de tecido.

 

Fora partido outra vez, lembrava-se agora. A desgraçada amiga de Aewyre Thoryn, que também a atingira na ilharga com uma flecha. Fizera a rapariga pagar bem caro pela afronta; contava mesmo tê-la morto, mas o jovem Thoryn interferira antes que se pudesse certificar. O seu cotovelo partido pareceu também lembrar-se e manifestou-se com uma nova picada de dor que lhe circulou pelo braço inteiro. Veio-lhe à memória a sua aparatosa entrada no pequeno pardieiro desabitado no qual se encontrava, fora ela quem fizera o buraco do casebre, tendo praticamente atravessado a parede de frágeis tábuas milagrosamente afixadas, e a forma como improvisara uma tala com umas quantas, amarrando-as com corda meio gasta após ter reposicionado o agonizante osso. O seu braço partido estava desnudo rasgara a manga para fazer algo, talvez uma ligadura e pôde ver como toda a zona do seu cotovelo estava roxa e inchada.

 

Que visão patética que deveria proporcionar naquele momento... rastejando, com um braço partido, um nariz estofado a pingar sangue e deixando um rasto da sua própria urina para trás. Onde é que falhara? Quando, como, por que é que tudo lhe começara a correr tão mal? Lágrimas amargas como a bile que lhe era vital picaram-lhe os olhos, e a harahan virou-se de costas para o chão com o braço partido estendido ao seu lado, soluçando involuntariamente e enfurecendo-se como consequência disso. Como chegara a este ponto? Ainda há pouco mais de meio ano era uma harahan livre, livre de vaguear pelas sombras de Allaryia e alimentar-se a seu bel-prazer, nada devendo a ninguém e obedecendo unicamente aos seus impulsos até que, naquele fatídico dia, veio o ritual de chamamento, semelhante embora em nada parecido com o que fizera para convocar os udagai nas estepes. O círculo profano desenhado no chão fora inscrito a runas em Olgur que Hazabel desconhecia, as palavras pelo maldito proferidas não lhe haviam proposto um pacto, foram compulsivas, coercivas, vinculando-a ao seu serviço por um período de tempo que aparentava ser indeterminado e cujo poder não podia ser quebrado, não pela harahan, por muito que ela tentasse, e tentara com todas as suas forças e mais. Quem era o desgraçado, e como podia ele ser tão poderoso? Como?

 

Como? gritou a mulher roucamente, esmurrando o chão de terra pisada com o braço são, erguendo uma pequena nuvem de pó.

 

A sua única esperança era mesmo recuperar Ancalach e entregar-lha. Só então poderia testar os limites do poder do seu odiado mestre, que deveria perder toda a sua influência sobre a harahan assim que o propósito do qual a incumbira tivesse sido cumprido. Deveria. Não podia ter a certeza. Mas iria sem sombra de dúvida tentar, nem que fosse a última coisa que fizesse.

 

Um ruído vindo do buraco que criara chamou-lhe a atenção. Recortado contra o pálido luar do exterior, um vulto passara a perna para” o lado de dentro do casebre, praguejando asperamente ao raspar nos pedaços de madeira afiados da entrecortada orla. Hazabel apoiou-se sobre o cotovelo bom e arrastou-se contra a parede, tentando vislumbrar melhor o estranho. O homem notou o movimento e hesitou, mas ao ver que a mulher continuava no chão redobrou os esforços e entrou cambaleante dentro do tugúrio, equilibrando-se desajeitadamente sobre uma perna enquanto passava a outra pelo buraco. Hazabel encostou ombros e pescoço à parede e deixou-se estar, sem tirar os olhos do recém-chegado.

 

Noitecer longueiro, longueiro. Pútega deixa moinar, ha? O indivíduo cambaleou, sonolento, ou talvez bêbedo. O tom da sua voz denotava uma certa irritação. Moinar solita, solita faz argel. Muito argel! Ha?

 

O homem começava a falar alto e continuava a aproximar-se, até que tropeçou e teve de se apoiar na parede com as mãos e boa parte do corpo. O luar permitia-lhe apenas ver os trapos remendados que envergava, bem como as mãos e os pés ligados. Hazabel permaneceu quieta, sem mexer um músculo, fixando os olhos negros na cara obscurecida do indivíduo, tentando discernir-lhe as feições através do desgrenhado cabelo e barba.

 

Não moina solita, não, não. Eu moino aqui, ha? O homem deteve-se por momentos, coçando os olhos e cruzando-os pela primeira vez com os da harahan, passando-os depois pelo resto, não se esquecendo de incluir as pernas descobertas. Leinas... leinas garulas. Eu moino aqui, leina. Queta leina, ha...?

 

O Leochlan do homem era impossível, mas o tom falava por si, dispensando qualquer tradução. Ainda com uma mão apoiada na parede, o indivíduo avançou, começando a rir sozinho e a acenar de contentamento com a cabeça enquanto repetia as duas últimas palavras.

 

Abusada pelo seu mestre.

 

Estropiada por Aewyre Thoryn.

 

Agora isto.

 

Os dedos do seu braço bom retesaram-se, contorcendo-se em garras. O sangue acerbo correu-lhe nas veias, o seu estômago fermentou, trazendo-lhe um sabor acre à boca, que a fez salivar. O homem fedia a álcool e amargura, um indivíduo que se perdera na vida e a culpava por isso, nutrindo profundos ressentimentos. Hazabel puxou as pernas para si e pegou no seu braço entalado, assumindo uma postura defensiva.

 

O homem discordou com a cabeça, tartamudeando como se algo o tivesse ofendido e executando gestos bruscos com a mão como se quisesse que a mulher ficasse quieta. Hazabel já não ouvia as suas palavras. O seu coração retumbava-lhe nos ouvidos, abafando a voz do homem; os cantos da sua boca humedeceram-se e o seu estômago entrou em ebulição, exigindo, reclamando, reivindicando.

 

Tinha fome.

 

Algo desagradou ao homem e ele avançou, desequilibrado e de mãos estendidas.

 

Cães uivaram e crianças começaram a chorar quando o Distrito das Choças foi acordado por gritos de agonia, que tão cedo não pararam.

 

Quenestil não estava satisfeito. O quarto no qual se encontrava juntamente com Aewyre era escuro e abafado, pois as janelas estavam fechadas e a única iluminação provinha dos estreitos fachos de luz amarela do corredor que delineavam contra a parede a porta trancada que ambos ladeavam. Eahan e humano estavam sentados no chão, apoiando os braços sobre os joelhos e as nucas contra a parede, esperando com decrescente paciência pelos tão aguardados ruídos do outro lado da porta. O shura não estava nada contente, pois Slayra conseguira convencer o resto do grupo a seguir um curso de acção ao qual se opusera com toda a veemência, e agora aguardava aqui o seu desfecho, sem nada mais poder fazer além de esperar.

 

A eahanoir ficara muito tempo sozinha com a princesa no quarto desta no dia anterior enquanto os companheiros esperavam e algo de estranho obviamente se passara, pois Slayra saíra de lá com uma expressão à qual Quenestil já não estava habituado. A eahanna propusera-se a fazer algo, e a subsequente discussão fora violenta.

 

Nem pensar! lembrava-se o shura de ter gritado. Estás maluca?

 

Quenestil... tentara Aewyre acalmá-lo. Ela é capaz de ter razão. Pode ser a única...

 

Não quero saber, está totalmente fora de questão! Em que é que estavas a pensar?!

 

A eahanoir, contudo, mantivera-se firme, e agora aqui estava ele, sentado, à espera, morrendo de apreensão. O plano não era de todo descabido ou mal pensado, mas só os riscos haviam sido suficientes para que o eahan o tivesse recusado de imediato sem sequer ouvir Slayra até ao fim.

 

Vocês chamaram mais atenção que uma parada de Primavera. Agora eles cairão em cima ao primeiro siruliano, eahan ou thuragar que virem à frente, e os proprietários e criados da estalagem também não gostarão muito de vos ver outra vez; são até bem capazes de chamar a guarda se vos puserem os olhos em cima.

 

Até aí tudo bem, recordou-se Quenestil, mexendo os lábios e os ombros sem emitir sons, como se estivesse a viver a conversa outra vez. Mas depois Slayra ficara maluca, só podia.

 

Vou eu até à estalagem. Esperem, não digam já que não... o Taislin pode vir comigo porque eles ainda não o viram, mas vocês só iam chamar a atenção e... Quenestil, espera! Deixa-me acabar! Não fosse por Aewyre, o eahan não teria deixado. Vou eu até à estalagem; e não se preocupem que eu arranjo maneira de saber quem é o Ruinen sem dar nas vistas; e... faço-lhe uma proposta que só recusará se vocês lhe bateram onde não deviam Quenestil não achara graça, mas o guerreiro tornara a acalmá-lo a custo. Levo-o para um quarto alugado e depois vocês fazem o que bem entenderem com ele. Como já disse, o Taislin vem comigo e vai seguir-me como só ele sabe fazer. Se houver problemas, ele ajuda-me, e eu também sei tomar conta de mim.

 

Apesar de saber ser verdade, o shura descartara o plano na sua totalidade. Estúpido e arriscado, nem pensar, nunca, só por cima do seu cadáver. Houve gritos de discórdia entre o casal e ambos tiveram de ser separados até arrefecerem. O pior era que, a despeito da diatribe de Quenestil, tanto Aewyre como os outros haviam aprovado o plano de Slayra. Reatou-se a discussão assim que os dois eahan se tornaram a aproximar um do outro e só a advertência de Allumno concernente à hipótese de os clérigos de Bellex começarem a relacionar o desaparecimento do relatório com a rixa na Capoeira os forçara a tomar uma decisão que a ver de Quenestil foi apressada. O plano de Slayra fora aprovado e o grupo seguira as instruções da eahanoir, para grande contrariedade do shura, cuja arrelia pareceu dar um estranho prazer à eahanna como há muito não o fazia. Worick ficara com Lhiannah, já que seria difícil manter o thuragar longe da sua protegida agora que esta acordara, e Allumno ficara com ele, pois o seu joelho doía-lhe e todos acharam melhor que o mago permanecesse nas Alas para receber assistência de um sacerdote. Taislin seguiria Slayra sorrateiramente, sendo ele a contingência para o caso de alguma coisa correr mal, o que pareceu ter um efeito bastante positivo no ânimo do até então cabisbaixo burrik. Aewyre e Quenestil permaneceriam no quarto que iriam alugar num qualquer prostíbulo (acabaram por escolher a Arlota Alegre, que pareceu apropriada à eahanoir), e lá aguardariam a chegada de Slayra com Ruinen, cabendo-lhes então a eles aniquilar o bandido, o que apaziguou em parte a fervorosa impugnação do shura. Mas só em parte, pois a cada momento que permanecia sentado no quarto escuro da Arlota Alegre à espera de que Slayra aparecesse acompanhada de um líder de bandidos, ocorria-lhe uma nova forma de tudo correr mal. Slayra não os encontrava sequer. Ruinen recusava os avanços da eahanoir (por muito improvável que fosse, reconhecia com uma dose de ciúme). Ruinen decidia levá-la para as traseiras da Capoeira em vez de ir para outra estalagem. O grupo inteiro decidia levá-la para as traseiras da Capoeira. Taislin metia-se em problemas com os fregueses. Slayra esquecia-se do caminho para a Arlota... pior do que tudo, queria ser ele a acompanhar a eahanoir, para a poder proteger. Por muita confiança que tivesse nas capacidades de Taislin, e tinha bastante, tinha também a certeza de que o burrik pouco podia fazer caso os bandidos decidissem fazer outras coisas com Slayra além das que ela sugeriria ao seu líder. Mas já o tinham visto, e o shura dava-se mal com o bulício da cidade; provavelmente perder-se-ia se tivesse de seguir a eahanoir nas ruas de Val-Oryth.

 

Não, decididamente não estava nada satisfeito, mas agora nada mais podia fazer além de esperar e orar à Mãe para que tudo corresse conforme Slayra planeara...

 

Quenestil? perguntou a voz de Aewyre no escuro.

 

Hum? O eahan não se incomodou a virar a cara. O seu amigo hesitou antes de continuar.

 

Estás chateado?

 

”É claro que estou, seu idiota! Ela está grávida, e tu deixaste-a ir pousar a garganta na boca do lobo”, pensou o eahan, mas refreou-se e inspirou fundo para clarear as ideias. Não.

 

Devia estar, e bastante, mas a decisão foi dela. Vocês só a apoiaram.

 

Mais um momento de silêncio.

 

Desculpa. Eu sei que é arriscado para ela, mas o seu plano pode bem ser a melhor e última oportunidade que temos de saber o que aqueles pulhas tiveram a ver com o ataque à estalagem e...

 

Eu sei, Aewyre, eu sei. Também gosto da Lhiannah, não penses que não, e quero tanto como tu fazer com que os responsáveis paguem pelo que lhe aconteceu, mas meter a Slayra nisto... já quando fomos atacados na estalagem pelos Fadados, ela foi atingida. Na altura mal reparei, não estava habituado a vê-la assim durante os combates, mas mais tarde apercebi-me de que... de como é fácil alguém lhe bater na barriga, talvez só um encontrão, um raspão de faca, uma queda mal amparada...

 

Aewyre nada disse, e Quenestil achou por bem não finalizar. Foi preciso mais algum tempo para que o guerreiro tentasse a sua sorte

 

outra vez.

 

Ouve...

 

Sim?

 

Tens a certeza de que não estás chateado?

 

Apetece-me dar-te um murro no nariz admitiu o eahan por fim.

 

E... aos outros?

 

Também.

 

Outro breve momento silente.

 

Não te posso censurar.

 

Pois não.

 

O shura ouviu Aewyre coçar a cabeça.

 

Tu e a Slayra... quer dizer, não é preciso perguntar o que aconteceu na viagem, mas... vocês... digamos que ninguém no grupo esperava. Bom, talvez o Worick...

 

Por muito aborrecido que estivesse, a verdade era que Quenestil não falava há muito tempo com o seu amigo, e o súbito acesso de culpa da parte do guerreiro podia ser uma rara oportunidade de o fazer nos tempos vindouros. Suspirando, acabou por aceder.

 

Acho que nenhum de nós o esperava. Ou talvez já o esperássemos há muito e o negássemos, sobretudo eu. Mas, olha, as coisas foram acontecendo, e Jazurrieh foi a prova...

 

Jazu-quê?

 

Era verdade, a meio de tudo o que acontecera desde o reencontro, nem sequer houvera tempo para contar o que se passara na Latvonia.

 

É uma cidade eahanoir. Aconteceu muita coisa e... as memórias ainda são demasiado dolorosas. Aewyre assentiu silenciosamente com a cabeça sem que o eahan visse. A Slayra tinha-se deixado levar para nos salvar; uma patrulha eahanoir tinha dado connosco depois da torre do Iwansk. Eu e... o Babaki fomos atrás deles e acabámos por ser capturados na cidade, e a Slayra tentou tirar-nos de lá. Depois... aconteceu o que vos contámos, e nós os dois fugimos pela Latvonia até chegarmos a uma vila costeira. Apanhámos um barco aí e... espera.

 

Ouviram-se passos no exterior e ambos se levantaram instintivamente de costas para a parede com as batidas dos corações aceleradas. O soalho rangeu à medida que alguém avançava pelo corredor, murmurando qualquer coisa ininteligível. A luz que delineava a porta contra a parede foi obstruída por um breve instante, escurecendo por completo o quarto, mas reapareceu de seguida quando os passos continuaram pelo corredor abaixo.

 

Falso alarme.

 

Aewyre suspirou, Quenestil lançou uma frustrada exalação pelo nariz e ambos tornaram a sentar-se. O relato fora interrompido e o eahan não parecia ter muita vontade de prosseguir com ele, pelo que o guerreiro optou por uma abordagem diferente.

 

É ela?

 

É ela o quê?

 

Tu sabes... andavas sempre a chatear-me por causa dessas lérias, sempre a dizer que não o farias com qualquer uma, que quando fosse seria a certa, o ciclo natural da procriação...

 

Sim...? O eahan falhava em ver aonde o seu amigo queria chegar.

 

Bem, ao que parece vocês já... procriaram. E agora? O que vem a seguir?

 

- É com ela que vais... sei lá, ficar?

 

Quenestil não respondeu de imediato e Aewyre ouviu-o a coçar o que devia ser o queixo.

 

Sim. Nós já falámos disso, eu e ela, durante a viagem. É com a Slayra que quero passar o resto dos meus dias.

 

Aewyre riu, embora fosse um riso tanto alegre como triste devido às memórias de Nabella que as decididas palavras do shura evocavam.

 

O que foi?

 

Nada, nada. Aahhh... exclamou, batendo com a nuca contra a parede. É tão... teu. Sempre me admirei como é que não te tinhas decidido mais cedo, com tanta eahanna bonita na tua aldeia. A Enadia, se bem me lembro...

 

Confundes qualquer olhar com lascívia. A Enadia era boa rapariga e uma boa amiga da família, nada mais. Além disso, eu passava demasiado tempo fora de Edranil, e ela sempre foi muito apegada aos seus e à sua casa. Nunca a poderia fazer feliz.

 

Como queiras... As agradáveis recordações da aldeia eahan dissiparam as funestas memórias de Alyun. Edranil era o seu nome e situava-se num ensombrado vale a Leste do Portão do Norte. Era um bucólico agrupamento de cabanas de madeira com tectos de colmo não muito diferente de uma povoação humana, mas Aewyre sempre se considerara um privilegiado por lá ser bem-vindo. Todos os verões ia acompanhado de uma escolta para as montanhas passar uma temporada com o seu amigo eahan. Ambos corriam pelas vertentes, rebolando pela viçosa relva dos prados, escalavam as escarpas, vendo quem chegava primeiro ao topo, e nadavam nas ribeiras geladas, arpoando trutas que depois comiam enquanto o sol alcançava o seu zénite, banhando o vale com luz dourada e embaçada pela perpétua névoa originada pelas inúmeras nascentes e quedas de água.

 

O seu saudoso suspiro fora provavelmente audível, pois chamou a atenção de Quenestil.

 

O que foi?

 

Ha? Nada, nada. Estava só a lembrar-me de umas coisas... Apoiando-se nos seus punhos, Aewyre ajeitou as nádegas no chão.

 

Não foi necessária resposta.

 

Tu ainda te lembras daquela nossa brincadeira, quando pensávamos no que íamos fazer quando crescêssemos, como é que lhe chamávamos, o... Mata o Drahreg?

 

Mesmo no escuro, Quenestil deu consigo a olhar para o guerreiro com um quase infantil canto da boca erguido.

 

Como podia esquecer? Se não fossem bons eahan, os meus pais ter-nos-iam dado uma bela sova por causa disso. Andar a correr por Edranil a açoitar as outras crianças...

 

Ambos riram leve e algo forçadamente, até Aewyre continuar.

 

Deixa estar que tu também nunca foste o que eu chamaria de um ”bom eahan”. Mas o que eu queria dizer era... isto acabou por não ser a brincadeira que esperávamos. Quer dizer, nunca foi, mas... percebes?

 

Não... teve o shura de admitir.

 

No início, quando eu e o Allumno vos fomos encontrando, era tudo tão... tão... não sei, levar a Ancalach do palácio, a demanda heróica para Asmodeon, os oito bravos companheiros, era... parecia quase uma brincadeira.

 

E achas que é?

 

Não, não! Eu quero ir, eu vou para Asmodeon, vou descobrir o que aconteceu ao meu pai nem que... A audaz afirmação pareceu perder-se. Eu vou descobrir o que lhe aconteceu. Só que pelo meio, tudo o que aconteceu, todas as voltas que demos, tudo o que fizemos, parecíamos... pelo menos eu parecia pensar que podia mudar o mundo e fazer história...

 

Pareceu a Quenestil estar a ouvir as palavras de Allumno, e não podia deixar de concordar com a introspectiva análise que o guerreiro fizera a si próprio. O silêncio do eahan incitou Aewyre a continuar.

 

Mas pelo menos fizemos muitas coisas boas, não...?

 

Sim, claro... Haviam ajudado muita gente, era certo. Mas não deixa de ser verdade o que disseste, e é bom que te tenhas apercebido disso.

 

Era das poucas alturas nas quais o guerreiro não se sentia bem por ter razão, o que levou ao seu silêncio. Quenestil não tinha verdadeira vontade de continuar, mas sentiu necessidade de dizer algo mais. Além disso, falar sempre era preferível a cismar acerca do que podia correr mal no plano de Slayra.

 

Só quero que saibas...

 

Não o digas interrompeu Aewyre, surpreendendo o eahan pelo facto de parecer ter antecipado o que ia dizer. Tu agora tens a Slayra, e ela está grávida. Eu nunca te pediria...

 

Nem nunca precisarias. Já sabes que podes contar comigo, Aewyre, para o que der e vier. Vou estar ao teu lado sempre que precisares.

 

Aewyre ainda se debateu com as palavras que estivera para dizer, mas as do seu amigo haviam-nas invalidado. Como poderia contrapor?

 

A sua mão arrastou-se pelo chão até meio da porta e a de Quenestil encontrou-a, e ambos as apertaram com fraternal força.

 

Raposa matreira.

 

Lobo recluso.

 

E então ouviram as vozes.

 

Tão rápidos como da primeira vez, os dois amigos levantaram-se, colando-se de costas à parede e sustendo a respiração para melhor ouvir o que se passava no exterior. Passos ruidosos, três ou mais pessoas. Uma das vozes era a de Slayra, disso não havia dúvida, mas não trazia apenas Ruinen consigo. Estava demasiado escuro para que Aewyre e Quenestil trocassem olhares, mas não precisavam da confirmação um do outro para perceberem que o plano não estava a correr como previsto. Slayra devia ter vindo sozinha com Ruinen, quem eram os outros? Os passos estavam cada vez mais próximos da porta, e ambos hesitavam, músculos tensos, punhos cerrados, corações acelerados.

 

Os passos detiveram-se diante da porta. As vozes falaram, mas tanto Quenestil como Aewyre tiveram dificuldade em ouvir o Leochlan dos homens devido aos corações que lhes retumbavam nos ouvidos. Slayra falava, como se os tentasse dissuadir de algo. A vontade do shura era abrir a porta e tirá-la dali; a sua mão chegou mesmo a esticar-se cega e indecisamente à procura da aldrava, mas então alguém embateu de costas contra a porta do lado de fora.

 

Manni-fe, Quenestil! hei umen gen benneain!

 

Ruinen pegou Slayra pelo braço e puxou-a para si para que os seus dois homens abrissem a porta.

 

A clave disse, apertando-lhe o braço com avidez.

 

O quê?

 

Clave repetiu o homem, unindo os dedos e fazendo com eles um gesto rotativo no ar.

 

Ah, a chave... Slayra tentava não olhar para a porta enquanto fingia procurar a chave no bolso, temendo dar motivos de suspeita aos três indivíduos.

 

Toste, leina apressou-a Ruinen, tornando a apertar-lhe o braço.

 

Estás com pressa, garanhão? provocou a eahanoir, sorrindo-lhe. Olha que eu tão cedo não te deixo sair...

 

O homem devolveu o sorriso, exibindo uma dentadura invejável para um evidentemente sôfrego consumidor de bebida, mas olhava para o bolso de Slayra em sinal de pressa. Quando a eahanna lha apresentou, o homem tentou agarrá-la, mas Slayra escondeu-a atrás das costas, erguendo o queixo e rindo de um modo divertido e quase infantil.

 

Brincar é lá dentro, leina firmou Ruinen, agarrando-lhe o pulso atrás das costas e puxando-lho com força. Slayra soltou uma exclamação de falsa admiração, embora a sua vontade fosse escolher uma das várias formas que naquela posição tinha de o aniquilar. Só que eram três homens, e a preocupação de Quenestil não era de todo infundada, por muito que lhe desagradasse. Agora, após a discussão com o eahan, sentia uma ligeira impressão na barriga só de pensar na hipótese de ser agredida no seu estado. Sem nunca deixar de sorrir, a eahanoir deixou-o tirar-lhe a chave da mão e entregá-la a um dos outros dois homens, que prontamente abriram a porta e entraram.

 

”Não é nenhum idiota, este Ruinen”, admitiu Slayra enquanto olhava para o chefe do bando.

 

Não fora difícil dar com eles; encontrara-os na mesma mesa que Aewyre lhe indicara, comendo e bebendo como se nada se tivesse passado no dia anterior. Alguns ostentavam marcas e feridas da luta, mas pela forma como riam e bebiam, ninguém diria que estavam apreensivos ou aborrecidos com esse facto; pareciam bastante seguros de si. Também não fora difícil chamar a atenção de Ruinen, nem tão-pouco convencê-lo a ir para um lugar mais privado, embora o homem se tivesse feito acompanhar por dois dos seus rufias. Despreocupado talvez, mas não descuidado...

 

Que disseste, leina? quis o homem saber, cingindo-lhe a cintura com as mãos calejadas, olhos brilhantes de desejo que não fazia por esconder.

 

O quê, quando? fingiu Slayra atabalhoar-se.

 

Na porta, leina. Que disseste?

 

Ah... A eahanoir desceu o indicador pelo esterno de Ruinen, olhando-o de baixo. Só uma coisa que dizemos na minha terra.

 

Donde vens, leina? As mãos do homem deslizaram-lhe até às nádegas e nelas se fincaram. A sua cara estava suficientemente perto para inebriar os sentidos de Slayra com o hálito a cerveja. A eahanna riu entre dentes.

 

Do outro lado da montanha... Se o homem a percebera, não o deu entender, pois pareceu repentinamente mais interessado no seu pescoço.

 

Slayra fingiu prazer e olhou para as escadas por cima do ombro de Ruinen, avistando a pequena cabeça de Taislin. O burrik estava quieto e aguardava o sinal que a eahanoir lhe deu, fazendo-lhe um gesto afastador com uma mão enquanto a outra roçava as costas de Ruinen. Taislin acenou com a cabeça e desapareceu ao mesmo tempo que os dois homens de Ruinen saíam do quarto, satisfeitos com a infrutífera busca.

 

Anda, leina sussurrou-lhe Ruinen ao ouvido, puxando-a pelo braço para dentro do quarto e ladrando uma última ordem aos seus homens sem sequer olhar para eles. Quedem-se aqui. Vou demorar. E fechou a porta.

 

Os comparsas de Ruinen haviam aberto a janela, permitindo a entrada a um facho de luz que iluminava parcamente o cubículo mobilado com uma modesta cama e um lavatório com um jarro de cerâmica rachado e uma bacia. O homem arrastou Slayra apressadamente até à cama, atirando-a para cima do rangente leito e começando a desapertar as calças. A eahanoir levou a mão instintivamente ao ventre, mas escondeu o seu desagrado pela brusquidão do tratamento, puxando as pernas candidamente para si.

 

Que disseste na porta, leina? insistiu o homem em saber enquanto puxava as calças para baixo.

 

Slayra hesitou antes de responder.

 

Queres mesmo saber?

 

Diz-me, leina. A eahanoir fez-lhe um convidativo gesto com o indicador, e Ruinen não se fez de rogado, por pouco não lhe saltando em cima. Que disseste? repetiu de cócoras sobre a eahanna.

 

Esconde-te, Quenestil. Dois humanos vão entrar.

 

O cenho de Ruinen enrugou-se, dúbio, e a sua boca ficou hesitantemente entreaberta. Sem tirar os olhos azuis-claros dos do homem, a eahanoir sorriu.

 

Ruinen soltou um ruído estrangulado quando um forte braço lhe cingiu o pescoço e o puxou para trás, arrancando-o estrebuchante da cama. Um rosnido vibrou-lhe ao ouvido e um punho firme enterrou-se-lhe duas vezes nos rins. O homem agarrou o braço que o estava a estrangular, expondo a sua barriga ao indivíduo alto que lhe apareceu à frente e lha esmurrou, forçando-o a expelir o pouco ar que lhe sobrava numa única e violenta arfada. Slayra lembrou-se dos dois homens que estavam postados do outro lado da porta, e a primeira coisa que lhe veio à cabeça foi fingir que sentia prazer da mais barulhenta forma possível.

 

Aewyre e Quenestil sobressaltaram-se com o ruidoso gemido que a eahanoir soltou, parando momentaneamente e olhando para ela com expressões alarmadas. Ruinen deu um desesperado pontapé na perna do guerreiro e uma cotovelada no abdómen do eahan.

 

Do outro lado da porta, os dois homens de braços cruzados ouviram o sonoro gemido, seguido de um ruído de intensa actividade no interior. Olharam um para o outro e, assim que outro gemido se fez ouvir ao mesmo tempo que um corpo colidia contra uma parede, um deles abanou a mão, franzindo os lábios e acenando aprovadoramente com a cabeça. O outro riu e abanou a sua, fazendo tenções de perguntar ao seu chefe se o poderia dispensar naquela noite.

 

Encostado à parede, Quenestil grunhiu quando os dentes de Ruinen se ferraram no seu braço, mas antes que pudessem rasgar-lhe a pele, Aewyre tornou a esmurrar o estômago do homem, agarrando-lhe uma contorcente perna. Slayra gemeu audivelmente, olhando com apreensão para a porta. Rosnando de irritação, Quenestil crispou os dedos no punho do facalhão e desembainhou-o, sibilante, encostando a ponta debaixo da maxila de Ruinen. Aewyre já tinha o punho atrás para agredir o homem outra vez, mas o toque frio e pontudo do aço foi o suficiente para que parasse. Slayra tornou a gemer.

 

Fica quieto, ou corto-te as goelas ameaçou o shura e, tendo ou não percebido, Ruinen pareceu levar as suas palavras a sério.

 

Aewyre agarrou-o pelos cabelos e forçou-o a olhá-lo nos olhos, por pouco não roçando o nariz de Ruinen com o seu.

 

Ouve-me bem, escumalha. Foram os teus homens que atacaram a estalagem há duas noites, não foram? Perante a hesitação do homem, o guerreiro cerrou os punhos, puxando-lhe o cabelo e sacudindo-lhe a cabeça em movimentos curtos e bruscos. A estalagem. Foram os teus homens que a atacaram?

 

Slayra gemeu.

 

Sim, sim, gaiato! admitiu o homem, estrangulado e com a cara vermelha. Foram os meus homens, foram eles! Sim!

 

Quem é que vos enviou? Quem foi? Ou foram vocês que nos quiseram atacar?

 

O quê? Não...

 

Aewyre afundou o punho na barriga de Ruinen, fazendo-o dobrar-se e por pouco não levando Quenestil consigo para o chão. Slayra gemeu e sacudiu a cama de forma a que rangesse.

 

Quem vos mandou, desgraçado? reiterou Aewyre, levantando a cabeça de Ruinen pelos cabelos. Quem foi? Por que é que nos atacaram?

 

Não! arfou Ruinen. O tabernário devia-nos dinheiro... protecção para estalagem... Fomos receber dinheiro... só isso... gaiato!

 

O guerreiro apertou-lhe os cabelos.

 

Estás a mentir, escumalha?

 

Não, gaiato... A voz do homem soava estranha, afogada. Juro... eu... Tremeu com uma convulsão.

 

Cuidado! silvou Quenestil, largando o homem para que caísse de joelhos para vomitar.

 

Slayra lançou um alto e longo gemido. Aewyre rosnou de raiva e frustração e desferiu um pontapé na cara de Ruinen, silenciando-o. Slayra suspirou o mais alto que pôde, deixando o suspiro arrastar-se a bem do realismo. Os três ficaram então quietos, olhando para o corpo inerte do homem no chão sobre o seu próprio vomitado.

 

Porra! sibilou Aewyre, esmurrando a palma da sua própria mão.

 

E agora? perguntou Slayra, saindo de cima da cama e antecipando a pergunta de Quenestil, que olhou para o seu amigo, expectante.

 

Agora nada. Vamos sair daqui disse o jovem, e os três encaminharam-se para o alçapão no canto do cubículo no qual o humano e o eahan se haviam escondido. Ao que parecia, a Arlota Alegre prezava muito a privacidade dos clientes que a desejavam, razão pela qual alguns dos seus quartos eram providos de acessos subterrâneos que iam dar aos estábulos da estalagem do outro lado da rua, o que servia de álibi para todos os que quisessem manter as aparências.

 

O alçapão revelava uma íngreme escadaria de madeira apertada entre duas paredes de pedra, que descia para um estreito e húmido corredor. A candeia que haviam usado para vir dos estábulos ainda ardia num nicho coberto de teias de aranha, e Aewyre arrancou-a de lá, caminhando a furiosos passos pelo corredor abaixo. Quenestil ajudou Slayra a descer e abraçou a eahanoir quando esta assentou os pés no chão molhado por infiltrações, suspirando de alívio.

 

Não voltes a fazer isto sussurrou-lhe ao ouvido antes de começar a andar, puxando-a pela mão. Slayra não respondeu.

 

Aewyre não esperou pelo casal, obrigando-os a apressarem o passo para acompanharem as suas longas e frustradas passadas.

 

Aewyre tentou Quenestil sugerir, não achas que devíamos...

 

Ele não sabe nada interrompeu-o o jovem, falando para a frente. Não passavam de escumalha, ele e o seu grupo, só perdemos tempo com eles.

 

O shura não tentou discordar e Slayra também não viu motivos para o fazer, razão pela qual se mantiveram calados até chegarem à escadaria que levava ao exterior. Aewyre galgou os degraus com dois passos e tentou abrir o alçapão, mas algo pesado estava por cima dele, provavelmente o moço das cavalariças. Duas pancadas foram o suficiente para o confirmar, pois ouviu-se o ruído de madeira a raspar no alçapão e este foi prontamente aberto, banhando o húmido túnel com luz do exterior. Aewyre inclinou o tronco para a frente para sair e apagou a candeia com um forte sopro, entregando-a ao rapaz, um pequeno diabrete pálido com cabelos da cor e consistência de palha. Taislin estava a seu lado, olhando em expectativa para o guerreiro.

 

Foi jucundo, senhor? perguntou o rapaz despudoradamente, entregando-lhe a capa.

 

Foi respondeu Aewyre sem saber ao certo o que o moço das cavalariças queria dizer, mas presenteando-o com uma pequena moeda de prata na mesma. Anda, Taislin.

 

O rapaz agradeceu e enfiou a inesperada alvíssara no bolso, fazendo um olhar surpreso ao ver o companheiro do generoso cliente sair do alçapão abraçado a uma mulher. Imaginando razões certamente pouco ortodoxas para aquilo que via, o moço foi incapaz de esconder uma risada enquanto entregava ao eahan a sua capa. Quenestil e Slayra fecharam o alçapão e deixaram-no para trás a rir sozinho, mais preocupados com o seu amigo, que já enveredara pela rua desprovida de pavimento.

 

Aewyre, Taislin, esperem! disse-lhes Quenestil, atando a capa ao pescoço e puxando o capuz para a frente. O guerreiro deteve-se e olhou para trás, lembrando-se de cobrir também a cabeça enquanto esperava que o casal o apanhasse, pois mais do que um olhar se voltou na sua direcção. Tem calma, homem; até parece que vais bater em alguém...

 

Aewyre inspirou fundo, suspirou e deixou descair o queixo, olhando para o chão lamaroso como se nele pudesse encontrar as suas respostas. Os três ficaram parados no meio da rua, cercados pelos transeuntes distraídos que por eles passavam.

 

Vê as coisas desta forma: pelo menos agora já sabemos que não foram eles recomendou Slayra.

 

O que nos deixa com pouco mais além dos próprios Filhos do Flagelo concluiu o jovem, olhando para ambos os eahan.

 

Tens a certeza? Podemos voltar atrás e...

 

Não, Slayra, deixa estar. O teu plano foi bom, mas eles não sabem mesmo nada. Estou convencido de que só foram apanhados no meio. Mas os Filhos do Flagelo...

 

Quenestil pôs-lhe a mão no ombro.

 

Estás bem?

 

Aewyre fechou os olhos e acenou afirmativamente com a cabeça, pousando brevemente a mão sobre a do eahan.

 

Vamos voltar para o templo. O Allumno deve ter alguma ideia que ainda não partilhou connosco.

 

Pois concordou o shura, mais para animar o seu amigo do que por acreditar mesmo nessa possibilidade. Ele já deve ter pensado em alguma coisa entretanto.

 

Senão, pode ser ele a procurar acrescentou Slayra. Toda aquela meditação tem de servir para alguma coisa. Nem que ele tenha de esquadrinhar o Pilar...

 

O comentário mereceu um sorriso do guerreiro, que deu um brando murro no queixo da eahanoir, indicando aos três com um gesto de cabeça que continuassem o caminho, virando-lhes as costas para os conduzir. Os eahan e o burrik retomaram o passo, e Slayra levou as pontas dos dedos ao queixo de cenho franzido.

 

O que foi aquilo? perguntou, perplexa com o gesto.

 

Quer dizer que gosta de ti.

 

A eahanna virou a cara para fitar Quenestil.

 

Acho que tu também gostas, e fartaste-te de me bater. E assim que os humanos e os eahan da montanha mostram afecto?

 

O shura ergueu o sobrolho, continuando a andar, olhando em frente.

 

Achas?

 

Slayra riu jocosamente.

 

Era só para ver se prestavas atenção. Como o eahan não reagiu, Slayra abraçou-lhe o braço. Coitadinho. Estavas muito preocupado?

 

Imagina... com licença pediu Quenestil, evitando esbarrar contra um pedestre. Não, não estava nada preocupado.

 

E agora não vais olhar para mim por causa disso, é? O tom de Slayra era chistoso, e o shura continuou sem responder. Ou não gostaste que os outros me tivessem dado razão? Ficaste amuado com isso, foi?

 

O seu braço que envolvia o do eahan tocava-lhe o torso, e a eahanna sentiu-o vibrar com o que só podia ser um rosnido. Sentiu-se algo infantil por o fazer, mas há demasiado tempo que não via Quenestil assim.

 

Ou estavas só com ciúmes por eu me ir deitar com o Ruinen? Realmente, foste um bocado bruto com ele, e...

 

Rápido de mais para que Slayra pudesse reagir, o shura pegou-lhe pela nuca com a mão livre e tapou-lhe a boca com a sua. A eahanoir estacou como um coelho apanhado num cordel, inicialmente incerta quanto ao que acontecera, mas acabando por se deixar deleitar na prazenteira armadilha. Quenestil puxava-lhe a cabeça para baixo e, leve como se sentia, Slayra só não caiu ao chão porque o braço do eahan lhe cingiu a cintura. Quando os seus pés tornaram a assentar no chão, Slayra piscou os olhos e ajeitou o cabelo. Vários transeuntes sorriram ao passar por ambos, parecendo aprovar o que viam.

 

Assim não vale... queixou-se a eahanoir.

 

Anda disse o shura com um canto da boca erguido. Ainda perdemos o Aewyre.

 

A cabeça encapuzada do jovem ainda era visível acima da multidão, mas o casal teve de se apressar para não o perder de vista nas apinhadas ruas de Val-Oryth.

 

Allumno nunca tivera problemas em ficar sozinho com Worick. O thuragar era mal-encarado e tinha poucas palavras a dispensar, nada fazendo para encorajar uma conversa e tudo fazendo de forma a desencorajar uma que porventura tivesse começado, seguramente contra a sua vontade. Era capaz de ficar horas a fio sem emitir um único som, olhando para o vazio se necessário fosse, ruminando os seus pensamentos enquanto franzia os lábios para coçar as narinas com o bigode, ou ocupando-se com o seu eternamente tosco bloco de pedra, que a cada dia ficava mais pequeno sem nunca ter assumido uma forma consistente. Em suma, era o companheiro ideal para quem como o mago precisava de paz e sossego para meditar, mas desde que Lhiannah despertara, o thuragar parecia ter ganho uma nova língua, que crescera da noite para o dia e aparentava ter florescido em todo o seu duvidoso esplendor. Os outros haviam partido de manhã para armarem a cilada ao tal Ruinen, e Worick não se calara desde então, repetindo sobretudo as perguntas que já fizera aos sacerdotes e cujas respostas certamente apenas desejava corroborar. Quanto tempo até a Lhiannah recuperar? Quando é que ela conseguiria falar outra vez? Quando podia sair da cama? Não devia apanhar sol e ar fresco? O quarto não estava demasiado frio para ela? O que é que lhe podia dar de comer? Como? Porquê? Até quando? Que cuidados tinha de ter enquanto a ajudava nas suas necessidades? Por que é que era melhor ser uma laica a fazê-lo? E por que se queixava ela do ouvido esquerdo? Não era melhor limpá-lo outra vez?

 

Allumno era um homem paciente, mas mesmo ele agradeceu aos deuses quando uma laica bateu à porta para lhes trazer o almoço: um tabuleiro com pão de centeio, uma rodela de queijo, três taças com caldo de galinha e nabos, umas chapas esbranquiçadas com uma crosta castanha (que a mulher explicou tratar-se de ”leite cozido”) e três canecas de madeira com a bebida de centeio fermentado chamada kashkm, que os tanarchianos tanto pareciam apreciar. Com Worick ocupado a almoçar e a dar de comer a Lhiannah, Allumno pôde tomar a sua refeição em relativo descanso, tendo apenas de responder a duas ou três perguntas. Quando terminou, o thuragar ainda pegava na nuca de Lhiannah que, com as costas apoiadas num reforço de almofadas encostadas à cabeça da cama, engolia as colheradas de caldo sem grande apetite, parecendo ter mais vontade de dormir, mas palavra alguma proferida por Allumno ou por qualquer sacerdote iria demover o velho guerreiro de alimentar a sua protegida. A princesa ainda estava algo apática, provavelmente a lidar com tudo o que lhe acontecera, e que não fora de todo de pouca monta. A harahan podia tê-la morto, pela descrição de Aewyre, e todos podiam constatar com os próprios olhos as marcas da violência do ataque. O facto de a arinnir ter sobrevivido a tão brutal espancamento de uma harahan que quase estrangulara o Aewyre apenas convencia o mago da fibra e têmpera da rapariga. Sobrevivera e iria ultrapassar a situação, disso estava certo, mas também já o repetira vezes de mais a Worick, e Lhiannah não parecia prestar-lhe atenção quando lho dizia.

 

Limpando os cantos da boca com o polegar e esfregando-o com os restantes dedos, Allumno apercebeu-se de que aquela talvez fosse a sua melhor oportunidade do dia para meditar. Os outros voltariam em breve, e por alguma razão o mago não estava preocupado com eles, talvez por ter mais confiança na astúcia e nos ardis de Slayra do que nos impulsos irreflectidos de Aewyre. Em todo o caso, de nada lhe serviria ficar apreensivo. O corte na sua têmpora já começava a sarar e o seu joelho fora tratado pelos sacerdotes e já só lhe doía pouco mais do que o habitual, mas ainda assim havia-lhe sido recomendado que não o esforçasse demasiado. Pouco mais podia fazer além de aguardar a chegada dos seus restantes companheiros, pelo que o melhor seria ocupar esse tempo em algo mais produtivo do que responder às incessantes e repetitivas perguntas do thuragar.

 

Vou meditar, Worick avisou, erguendo-se da cadeira e puxando-a para a parede, longe da cama. Não te vou ouvir se falares comigo.

 

O thuragar olhou de relance para o mago e grunhiu qualquer coisa. Alimentar a Lhiannah parecia ao menos tê-lo acalmado e dissipado algumas das suas dúvidas, e só por isso o mago deu-se por satisfeito. Arrastou a cadeira até à parede, à qual a encostou, e sentou-se nela devido à sua indisponibilidade física para cruzar as pernas. Fechou os olhos e inspirou fundo, tentando abstrair-se da posição pouco usual na qual se encontrava para meditar e relaxar o seu corpo de forma a permitir a libertação do espírito. Acompanhou as batidas do seu coração com batidas rítmicas dos seus dentes como apoio sensório para entrar em sintonia com o seu pulsar vital. Entrelaçou os dedos e pousou as mãos ao colo, tocando no umbigo com os polegares erectos e unidos, inspirando cada vez mais longa e profundamente e sentindo as batidas do coração a abrandarem progressivamente. Os freios corporais que lhe restringiam o espírito fraquejavam, adormeciam, e a gema na sua testa começou a cintilar com uma vida própria, qual farol a alumiar o caminho para a alma pronta a navegar nos mares sidéreos do Pilar de Allaryia.

 

A imersão nas águas etéreas foi um verdadeiro bálsamo para o mago. Aqui, na imensidão transluzente, era livre, podia voar, o joelho não o incomodava minimamente, sentia-se revigorado pelo banho de Essência no qual o seu espírito mergulhara e que lhe preenchia cada fibra do âmago do seu ser com uma sublime sensação de inteireza. Era uma impressão à qual todos os magos acabavam por se habituar, mas há já algum tempo que Allumno não se aventurava pelo Pilar, e o ferimento no seu joelho tornou toda a experiência ainda mais deleitosa. Sentir-se-ia Zoryan sempre assim? Seria a existência do seu mestre no Pilar preferível à vida que levara em Allaryia? Nunca considerara essa possibilidade, mas de qualquer forma pareceu-lhe altamente improvável que assim fosse. Por muito vigorante que fosse a sensação de estar imerso na própria Essência, o sangue do Delta, a fonte de energia que movia Allaryia, passar uma existência inteira na descolorida e monótona vastidão do Pilar, pontilhada apenas pelas disformes almas e essências vitais dos seres vivos, seria mais do que qualquer mente sã poderia suportar. Se Zoryan não tivesse a capacidade de se deixar absorver temporariamente pelo Pilar, como era o destino de qualquer homem ou mulher que fizesse uso da Essência ao longo da vida, Allumno estava certo de que já teria enlouquecido. A gema que tinha incrustada na testa permitia ao seu mestre fazê-lo, libertar-se por breves períodos de tempo dos inquebráveis laços que o haviam lentamente vinculado à Essência enquanto dela fizera uso durante a sua vida, impedindo que a sua alma se fundisse permanentemente ao Pilar e permitindo-lhe manter a sua consciência. O mago não podia deixar de admirar o seu mestre, por ter prescindido do seu indubitavelmente merecido repouso após uma vida repleta de grandes feitos e eventos pelo simples facto de julgar que o seu trabalho não terminara. A gema anímica fora um plano de contingência, e através dela o arquimago assegurara um sucessor que poderia dar continuidade à sua tarefa. Zoryan nunca lho dissera, mas Allumno estava certo de que o seu mestre nunca daria o seu trabalho por terminado enquanto não soubesse o que realmente acontecera a Aezrel Thoryn, seu amigo e companheiro de armas. Durante os últimos vinte anos o arquimago esquadrinhara o Pilar à procura de vestígios do rei sem linhagem, chegando mesmo a questionar o próprio Guia. Allumno suspeitava de que fora essa uma das principais razões para o seu mestre não ter levantado qualquer tipo de objecção quando soubera dos intentos de Aewyre...

 

O mago captou um acentuado movimento rápido na sua visão periférica, que o despertou para a translúcida realidade do Pilar, e olhou na irrelevante direcção na qual lhe parecera ver algo mexer-se. À sua volta via as almas luzentes de Worick e Lhiannah, o quase cegante fulgor de Ancalach debaixo da princesa, e os espíritos luzidios dos habitantes de Val-Oryth, pois as inanimadas paredes não representavam qualquer tipo de barreira no Pilar. Olhou para cima, que também podia ser para baixo, e viu uma manifestação que também o fitava a ele.

 

Ambos ficaram parados a olhar um para o outro. A projecção que Allumno avistava era a de uma jovem mulher de cabelos curtos, mas pouco mais podia ver além disso, visto que as manifestações nunca eram particularmente nítidas a menos que o manifestador se esforçasse para esse efeito. Tinha a distinta impressão de já a ter visto algures, mas foi incapaz de a associar a um nome ou a uma cara conhecida. Não era habitual cruzar-se com outros magos no Pilar, e o recente ataque dos Filhos do Flagelo e o facto de Ancalach se encontrar naquele local fez com que o mago visse a situação do pior ângulo possível. Ainda assim, tentou estabelecer contacto.

 

Saudações... disse, cauteloso.

 

A resposta da mulher veio na forma de uma flamante saraivada, mas Allumno não foi apanhado desprevenido. Desenhou uma concha verde à sua frente, que absorveu o ataque e se desvaneceu. Sabia agora que as intenções da mulher não eram amistosas, e o seu primeiro instinto foi o de impedir que se dissipasse de forma a poder questioná-la. Um rápido escrutínio em redor ampliado através de Essência permitiu-lhe ver o rasto etéreo que a manifestação da mulher deixara no Pilar como todas faziam, parecida com a trilha que um seixo deixa à superfície da água, em constante tremulação, permitindo às projecções dos magos encontrarem o caminho de volta para os seus corpos, pois o acto de dissipar não mais era do que uma fusão temporária ao Pilar que lhes permitia voltar ao seu ponto de origem. Antes que a mulher tivesse tempo de o fazer, Allumno canalizou Essência e executou um gesto brusco com o braço, esborratando a trilha como um pincel molhado sobre tinta. Não era nada permanente, mas o mago esperava que lhe desse tempo suficiente para conseguir extrair algumas respostas da inesperada visitante. A muda manifestação da feiticeira ficou claramente consternada ao ver a sua única saída bloqueada e a sua reacção foi disparar em fuga. O mago seguiu atrás dela e ambos singraram pelo oceano etéreo como dois velozes peixes. A mulher virou-se para trás, continuando a voar, e gesticulou freneticamente com os braços, projectando crepitantes discos elipsoidais que explodiam em redor de Allumno conforme este se ia habilmente desviando deles.

 

Não tenho razões para a atacar tentou uma vez mais. Cesse as suas agressões.

 

De nada serviu, pois a feiticeira limitou-se a tocar com as pontas dos dedos umas nas outras, afastando-as num gesto amplo e com elas tecendo uma espécie de rede filamentosa que largou e que se expandiu, envolvendo o seu perseguidor. O voo de Allumno foi momentaneamente travado, mas o mago limitou-se a cruzar os braços de punhos cerrados, infundindo-se de Essência, e a rede dissolveu-se como uma teia de aranha perante fogo. Retomou o adejo com a gema a brilhar na testa e não tardou a ficar perigosamente próximo da mulher outra vez.

 

- É o meu último aviso. Cesse de imediato as suas agressões.

 

Se a feiticeira o ouvia não dava sinais disso, pois as rajadas que disparou contra o mago eram claramente agressivas e tiveram de ser bloqueadas. Allumno conjurou uma barreira energética à frente da mulher, que não a viu a tempo de a evitar e teve de se infundir ela também com Essência, atravessando-a e estilhaçando-a com a própria manifestação do seu corpo. O mago aproveitou o seu instante de atordoamento para a fustigar com uma descarga de sinuosos coriscos que nela rebentaram em rápida sucessão, nada excessivamente forte, apenas algo para a estontear o suficiente para conseguir falar com ela. A mulher girou pelas águas do Pilar como uma concha apanhada em correntes adversas, e Allumno achou que conseguira transmitir a sua mensagem, detendo-se e aguardando de braços cruzados que a sua renitente adversária se recompusesse.

 

Podemos falar agora ou devemos dar continuidade a esta querela sem sentido? perguntou, embora não estivesse certo de que a mulher o ouvia ou percebia. Preferia evitar forçar o contacto até tal se tornar necessário.

 

Apercebeu-se de que era necessário quando constatou que a mulher fingira fraqueza e oscilou bruscamente com o braço, criando uma espécie de chicote escarlate que o mago mal conseguiu evitar, erguendo um escudo no último instante. Contudo, o chicote serpenteou em redor do escudo e a feiticeira agarrou algo invisível com a mão, puxando-a. A cauda do chicote contornou a barreira e estalou com um violento crepitar contra o mago, atordoando-o e permitindo à mulher atingi-lo em cheio com uma rajada amarelada que o projectou para trás, onde quer que ”trás” fosse. Enquanto Allumno voava para uma direcção indeterminada, a mulher tornou a pôr-se em fuga, rápida como se a sua vida disso dependesse, canalizando tanta Essência quanta lhe era possível para se distanciar. O mago recuperou pouco depois e retomou a perseguição, decidido a ser menos brando desta vez. A feiticeira estava a agir como uma ratazana encurralada, fugindo sempre que podia e mordendo cegamente quando encostada à parede. Não havia lugar no Pilar para o qual pudesse fugir, e com o trilho etéreo que deixava para trás era-lhe impossível esconder-se ou fazer com que Allumno a perdesse de vista. Era só uma questão de tempo até a apanhar, e cedo começou a ganhar terreno. A mulher olhou para trás e, ao ver o singrante mago com um sobrenatural brilho escarlate na testa, girou em si, voando de costas, e dividiu-se em cinco manifestações idênticas que tomaram rumos diferentes com o intuito de o despistar.

 

Cinco, pensou Allumno. Fora do Pilar, só um mago de grande poder conseguiria manter a concentração para criar cinco réplicas suas que lhe emulassem os movimentos com exactidão, mas dentro da própria fonte de Essência de Allaryia era um feito menor. Ainda assim, ajudou o mago a calcular a experiência e as capacidades da mulher que, pelo que até então vira e julgando pelas meras cinco réplicas, não deviam ser de forma alguma superiores às suas. De qualquer forma, o seu mestre já o enganara vezes de mais com ilusões nos treinos para que Allumno caísse no truque. As réplicas da mulher não deixavam trilho nas essenciais águas do Pilar, pelo que o atento mago as ignorou e continuou a perseguir a original, recebendo uma desnecessária confirmação quando todas menos uma o bombardearam com inofensivas rajadas, raios e coriscos, desaparecendo à medida que a feiticeira era forçada a concentrar-se para que efectuassem movimentos mais complicados do que um simples voo e para criar efeitos semelhantes aos ataques que desejava simular. Aflita e dando mostras dos primeiros indícios do desespero, a mulher descartou as réplicas, que piscaram para fora da sua ilusória existência, e desencadeou uma multiforme e polícroma saraivada capaz de nivelar um edifício fora do Pilar. As defesas de Allumno aguentaram o assalto sem grandes dificuldades, e o mago navegou através de estouros, explosões e deflagrações, esperando o momento adequado para lançar o seu incapacitante ataque.

 

À distância podia ver um grande aglomerado de pontos brilhantes, provavelmente uma cidade na qual a mulher esperava conseguir despistá-lo no meio da profusão de almas. Allumno não fazia questão de lho permitir, mas a feiticeira tornou a surpreendê-lo com uma engenhosa aplicação da Essência, fazendo uso da que o rodeava para lhe turvar o caminho, manipulando-a de forma a ofuscar o mago, que perdeu momentaneamente o rumo. A mulher podia não ser muito experiente, mas havia certamente aprendido alguns truques. Allumno precisou de alguns momentos para clarear o globo de Essência fosca que o envolvia, momentos esses que a sua célere perseguida aproveitou para se embrenhar pela cidade adentro. Bastante mais perto de estar genuinamente irritado, pois o incidente na Capoeira deixara-o algo abespinhado, Allumno impulsionou-se na sua direcção com um estampido de Essência, vendo as luzentes almas passarem-lhe rapidamente ao lado como um enxame de pirilampos. A manifestação da mulher ziguezagueava por entre elas, obstruindo perspicazmente a linha de fogo do seu perseguidor. Nada do que Allumno fizesse no Pilar poderia de alguma forma afectar as almas ou os corpos das pessoas que via em seu redor, quando muito causar-lhes-ia uma ligeira dor de cabeça com os distúrbios essenciais de eventuais ataques, mas não valia a pena disparar em redor na esperança de acertar na mulher e optou por conter o seu ataque até ao momento certo, que pensou chegar assim que entraram numa zona menos populosa da cidade.

 

Contudo, a mulher confundiu-o ao lançar uma sequência de rajadas contra uma alma cercada por místicas barreiras roxas. Questionou-se brevemente acerca do propósito de tal acto e da identidade do visado, mas viu também que a altura era a ideal para imobilizar a mulher. Apontando contra a sua perseguida com o indicador, Allumno direccionou um fino feixe escarlate da gema na sua testa, que singrou e penetrou nas costas da mulher, tingindo-as com pulsante energia vermelha que a paralisou, deixando-a a flutuar momentaneamente sem rumo pelo Pilar. Desenhando dois semicírculos no ar com as mãos, o mago prendeu a projecção inerte dentro de um reluzente globo azul e puxou-a para si, determinado a obter respostas. A manifestação da mulher não tardou a mexer-se outra vez, e a sua primeira e instintiva reacção foi a de tentar quebrar o globo com golpes das mãos crepitantes de Essência. Ao ver que a sua jaula resistia, a mulher lançou um grito que Allumno pôde ouvir mesmo sem ter estabelecido contacto e disparou cegamente em redor numa pletora de multicoloridas e fulgurantes salvas essenciais. O mago desembraveceu-a com uma faiscante descarga no interior do globo, fazendo com que a manifestação se contorcesse espasmodicamente no interior.

 

Fique quieta antes que eu seja forçado a tomar medidas mais drásticas - ameaçou Allumno com um tom de voz que dava a entender que era bem capaz de levar adiante a ameaça. A feiticeira contorceu-se com uma descarga residual e quedou-se em silêncio, pois embora fosse muito difícil afectar alguém através da sua manifestação no Pilar, suficientes danos podiam deixá-la completamente à mercê do mago, podendo mesmo impossibilitar-lhe o regresso ao seu corpo.

 

O que fazia no templo?

 

Não houve resposta. Uma nova descarga no interior do globo fez com que a projecção da mulher se convulsionasse violentamente. Tortura era algo que desagradava profundamente ao mago, mas a sua transigência andava a um nível muito baixo.

 

Responda. O que fazia no templo?

 

Não... não falo Glottik...!

 

Allumno apercebeu-se do teor evasivo da resposta e aspou-a com outra descarga.

 

Também percebo Leochlan. Só vou perguntar mais uma vez: o que fazia no templo?

 

A manifestação olhou para o seu atormentador, parecendo quase suplicante e ciente de que não tinha escapatória, mas o mago sentiu um subtil distúrbio nas suas costas, uma espécie de estática na Essência, e apercebeu-se de que a mulher olhava para trás de si.

 

Quando se virou, a única coisa que viu foi um intenso clarão que nele explodiu, projectando-o pelo Pilar fora. Enquanto passava descontroladamente por inúmeras almas, Allumno teve a presença de espírito para reforçar as suas defesas antes de se tentar estabilizar, mas antes que o conseguisse fazer, foi fustigado por uma série de mísseis singrantes que o enviaram noutra irrelevante direcção. Quando conseguiu por fim controlar o seu ímpeto, o seu novo adversário já estava quase em cima de si, mãos radiantes de Essência. Não houve tempo para mais perguntas; mesmo sem o conseguir ver bem, o mago soube dizer que este era um adversário perigoso e com um poder no mínimo comparável ao seu.

 

Arrojou-lhe uma rajada de teste que o homem prontamente deflectiu, enviando-lhe uma sua e devolvendo a que acabara de desviar, seccionando-a em duas. Allumno mal conseguiu travar as três, que rebentaram contra o seu escudo, enviando-o para trás com a força do impacto. A Essência que o rodeava adquiriu repentinamente uma consistência semi-sólida, imobilizando-o, mas foi de seguida estilhaçada por uma onda de força que o escorraçou. Era sem dúvida um mago poderoso, talvez mais poderoso ainda que Allumno, que na sua crescente inquietação só conseguiu pensar em dissimular o seu rasto etéreo antes que o homem lhe bloqueasse a saída. O seu adversário não o fez, mas aproveitou a distracção momentânea do mago para o surrar com uma rápida sucessão de sibilantes projécteis que deixaram um rasto fulvo atrás de si antes de rebentarem. O implacável e fulminante assalto não dava tempo para que Allumno se concentrasse o suficiente para conseguir erguer uma defesa adequada, muito menos contra-atacar. Estava a ser massacrado, mas este não era um treino com o seu mestre, e o perigo era bem real. O seu algoz tornou a enxotá-lo com outra onda de força que contra ele embateu com a potência de um projéctil de trabuco, mas algo o travou bruscamente a meio da sua desenfreada trajectória. O mago viu que o seu adversário tinha as mãos estendidas antes de começar a sentir um aperto e um crepitar de energia nefasta à sua volta. O homem estava a cingi-lo num asfixiante aperto, e, se não arranjasse forma de escapar depressa, ficaria à sua mercê. Juntando o que lhe sobrava de força anímica e de vontade, Allumno apartou os braços a custo, pois o poder do seu adversário restringia-o, mas antes que pudesse fazer o que quer que fosse, uma descarga atordoante semelhante à que usara contra a mulher fez com que se contorcesse em convulsionantes espasmos.

 

Allumno estava a ser movido pelo medo, e o que se seguiu foi puramente instintivo. Infundindo-se de Essência, o mago irradiou-a com um grito para se libertar, despedaçando a sua prisão e, sem perder mais tempo, dissipou-se, fundindo-se ao Pilar para regressar ao seu corpo no preciso momento em que dúzias de feixes energéticos destinados a si atravessaram o lugar no qual a sua manifestação se encontrara.

 

A manifestação de Linsha flutuava nas águas etéreas do Pilar, aturdida e aterrada com a reacção do seu mestre quando este voltasse. Vira as explosões à distância e o encadeante fulgor do combate com o mago que a perseguira, mas este parecia ter acabado e Linsha não tinha dúvidas acerca do vencedor. Malagor sempre se lhe afigurara como inamovível, intocável, invencível, o mais poderoso dos Três e o mais impiedoso também, e era por isso que a jovem feiticeira temia o seu regresso, que não tardou. Distinguiu a manifestação de Malagor à distância; movia-se com meditabundo vagar, talvez estivesse a pensar num castigo adequado para a sua pupila, pois Linsha tinha a distinta sensação de que o falhara. Fora descoberta, quase capturada, revelara a sua ligação para com ele, forçara-o a intervir directamente. Malagor iria certamente matá-la, já esfolara serviçais por bem menos. O seu primeiro pensamento foi fugir, dissipar-se e fugir para bem longe de Val-Oryth, mas o seu rasto continuava difuso e sabia bem que Malagor a encontraria onde quer que fosse, não havia como escapar à alçada do Alto Vulto. O melhor que podia fazer era enfrentar o seu veredicto com dignidade, mas dessa sobrava-lhe muito pouca naquele preciso momento, após ter sido vista indefesa e à mercê de outro mago.

 

A manifestação de Malagor aproximava-se. A de Linsha endireitou-se e esforçou-se por manter uma pose deferente e de resignada anuência. O seu mestre tinha uma mão atrás das costas e com a outra cofiava a barba, não traindo qualquer tipo de emoção. Envergava o seu cafetão oficial e chapéu de abas erguidas na cabeça, o que levou Linsha a concluir que, além de tudo o mais, ainda interrompera o seu mestre enquanto desempenhava as suas funções no Triunvirato. A feiticeira aguardou o pior em silêncio.

 

Não me queres contar o que aconteceu, Linsha? perguntou Malagor com enervante naturalidade ao estabelecer contacto.

 

Mestre, eu...

 

Só o que aconteceu, Linsha, diz-me só o que aconteceu. Se quiser saber mais, pedir-te-ei.

 

A mulher engoliu em seco como se estivesse mesmo no seu corpo e forçou-se a falar.

 

Projectei-me e fui às Alas da Convalescença, tentei saber mais sobre Aewyre Thoryn e os seus companheiros. Conhecer o inimigo sempre fora uma das máximas de Malagor; decerto o seu mestre compreenderia. Linsha esperou por um sinal de aprovação, um aceno de cabeça ou um gesto semelhante, mas não recebeu nenhum e viu-se forçada a continuar: A harahan feriu bastante a princesa, e parecem ter decidido aguardar no templo a sua recuperação...

 

O que te pedi eu, Linsha? A voz de Malagor estava perigosamente calma.

 

Perdão, mestre. Eu fui às Alas e lá vi o Flagício, mas então o mago, o que o mestre combateu, manifestou-se no quarto dos companheiros de Aewyre Thoryn. Ele impediu-me de me dissipar e perseguiu-me até aqui...

 

Estás ciente do perigo que isso representou? interrompeu-a Malagor.

 

Perdão mestre, mas eu não sabia que mais fazer! Ele era mais poderoso do que eu e podia ter sabido coisas perigosas através de mim e...!

 

Aewyre Thoryn e os seus amigos devem ter tomado providências para o caso de uma incursão através do Pilar tornou Malagor a interromper, parecendo falar sozinho. Sabem que correm perigo e estão atentos.

 

Linsha nada disse, temendo ser pulverizada se proferisse uma palavra a mais além das que o seu mestre dela esperava.

 

E agora subsiste o risco de estabelecerem uma relação entre ti e o Triunvirato, porventura também com os Fadados. Pode vir a ser problemático. Perigoso, na verdade. O que te parece, Linsha?

 

Malagor estava a brincar com ela, tinha-a na mão e parecia divertir-se como um gato o faria com um rato moribundo.

 

Eu sei que errei, mestre, mas...

 

Não erraste, Linsha. Falhaste redondamente em todos os sentidos e mais; emperigaste os Filhos como um todo com as tuas acções descuidadas. O que fizeste não me deixa escolha...

 

Toda a dignidade esquecida, Linsha estava pronta a ajoelhar-se perante o seu mestre, a implorar-lhe o seu perdão, a oferecer-se-lhe de corpo e alma para que dela dispusesse como bem entendesse, mas as palavras que lhe saíram da boca foram inesperadas.

 

Tenho de convidar Aewyre Thoryn e os seus companheiros para uma celebração.

 

Pensando que a sua sentença de morte iria ser pronunciada, a feiticeira ficou estonteada e boquiaberta com o que ouviu.

 

Mestre... ?

 

Não me resta alternativa, além de os mandar matar. Se estabelecerem a ligação entre ti e mim, não aceitarão o convite e serei forçado a tomar medidas drásticas. Caso aceitem, ou a estabeleceram e são mais arrojados do que eu alguma vez ousaria supor, ou ter-te-ão tomado por uma espia de uma facção incógnita e o meu envolvimento com os Filhos permanecerá um segredo.

 

Convidar Aewyre Thoryn para uma festa? Mas em que estava o seu mestre a pensar?

 

Mestre, eu não entendo...

 

Não te envolverás mais, Linsha, ficas desde já expressamente proibida. Estava a proibi-la? Iria viver? Tiveste amplas oportunidades para provar o teu valor, mas vejo que ainda és demasiado inapta para te incumbir de tarefas tão importantes. Eu mesmo me apossarei do Flagício.

 

Linsha lembrou-se de que Malagor a avisara de que não iria ser tão complacente se tivesse de se envolver pessoalmente, e era precisamente isso que estava a acontecer. Ainda temente de um castigo severo, tentou desviar o assunto.

 

Mestre, como pretende apossar-se do... a palavra provocava-lhe desagrado. Flagício?

 

Malagor fitou-a em silêncio durante longos momentos, e Linsha sentiu que durante esses instantes a sua vida esteve em sério risco.

 

As vezes questiono-me acerca das razões que me levaram a acolher-te, Linsha confessou. Uma delas é indubitavelmente o facto de fazeres muitas perguntas.

 

- É bom indagar e questionar; pergunto-me como pudeste falhar de tal forma com esse teu hábito inquiridor. Talvez devesses fazer também perguntas a ti mesma, e não apenas aos que te rodeiam. A mulher anuiu humildemente, demasiado grata por ver a sua vida poupada para se indignar.

 

Em resposta à tua pergunta, terei uma conversa privada com o príncipe Aewyre. Não deve ser de sobremodo difícil persuadi-lo a ceder-me o Flagício, um cálice de kashkin devidamente preparado, um feitiço discreto. Caso falhe, será uma questão de lhe oferecer alojamento na residência do meirinho, na qual outras ocasiões certamente se propiciarão para o desapossar do Flagício. Há que salvaguardar sempre uma contingência, Linsha, e devemos assegurarmos de que os nossos planos têm várias maneiras de chegar à sua devida realização. Lembra-te disso.

 

Sim, mestre. Mas... e o mago?

 

Convidarei apenas o príncipe e a princesa, como o dita a cortesia. Caso ela esteja tão enferma como dizes, poderemos contar apenas com a presença de Aewyre Thoryn, o que de resto facilitará bastante a minha tarefa. Os seus restantes companheiros não têm lugar em tal celebração, quando muito poderão acompanhá-lo à entrada.

 

Malagor pôs ambas as mãos atrás das costas e perscrutou a sua pupila mais um pouco, mudando o assunto como se o que tivesse acabado de expor fosse irrelevante.

 

Não costumo perdoar erros, como bem o sabes. Sim, Linsha sabia-o muito bem. Contigo já é o segundo. Caso haja um terceiro, de futuro... Não foram necessárias mais palavras. Mas não agora. Como já disse, ficas proibida de te envolveres mais neste assunto. Quando voltares, parte a pulseira que te dei para me invocar, é impreterível que eu tome as devidas providências antes que uma outra secta decida agir, pois imagino que Val-Oryth deva estar em grande alvoroço com a presença do Flagício. Mas não o faças antes das três badaladas. Ainda tenho assuntos a tratar em Dul-Goryn.

 

Mestre, espere! rogou Linsha ao ver que Malagor se preparava para se dissipar. Não me deixe aqui! Ele pode voltar!

 

Não me parece duvidou Malagor. Mas, em todo o caso, parece-me um castigo apropriado. A tua trilha já não deve tardar a regularizar-se. Que te sirva de lição e tenta aprender algo com a tua derrota.

 

Linsha não se atreveu a protestar, e o seu mestre fundiu-se à Essência, regressando ao seu corpo. A feiticeira olhou receosa em redor para a vastidão do Pilar, que não mais lhe parecia tão segura e monótona como a ela se habituara.

 

O que é que se passou? perguntou Aewyre em voz baixa, pois Lhiannah dormia. O guerreiro estranhou as manchas de sangue no colarinho de Allumno e as suas narinas avermelhadas. O mago, Worick e Taislin estavam de pé, tendo ouvido a chegada dos seus companheiros do outro lado da porta.

 

Allumno cruzou os braços. Não parecia nada animado.

 

Alguém nos anda a espiar através do Pilar, talvez desde que cá chegámos. Slayra olhou para Quenestil, que lhe cingiu a cintura protectoramente. Uma mulher, uma feiticeira. Dei com ela quando fui meditar e fui atacado. Ela fugiu, não sei dizer para onde, mas consegui apanhá-la, só que antes que eu lhe pudesse fazer perguntas, apareceu outro mago. A maneira sintética com a qual Allumno relatava os acontecimentos era o mais claro indício do seu descontentamento. Por pouco não fui capturado por ele, era mais poderoso do que eu. Tive de fugir, e mesmo isso me foi difícil.

 

A cara de Aewyre não traía qualquer tipo de emoção, no entanto, com tudo o que já acontecera, não podia estar nada mais além de consternado com tais notícias.

 

Estamos a ser vigiados, Aewyre, e os nossos inimigos, sejam eles quem forem, são mais fortes do que pensávamos.

 

Óptimo disse o jovem, nutando com a cabeça e olhando para o chão. Perfeito. Levou as mãos ao ar e deixou-as cair, batendo com elas nas coxas.

 

Descobriram alguma coisa? inquiriu Worick, ansioso por pelo menos poder visualizar o inimigo.

 

Nós... tentou Slayra suavizar.

 

Nada de nada interrompeu Aewyre. Aqueles desgraçados não sabiam rigorosamente nada, foram apanhados no meio e nem sabiam porquê. Esfregou a nuca e suspirou a mal contida frustração. Eu juro que ainda cometo o Terceiro Pecado...

 

Aewyre, tem calma rogou-lhe Quenestil.

 

Sim, acalma-te concordou Allumno. Temos de tomar uma decisão. O que fazemos?

 

Todos os olhos se viraram para o jovem, olhares que não mais contara ver, olhares que aguardavam uma palavra sua, a palavra do líder que haviam escolhido. Aewyre só pôde rir amargamente.

 

O que fazemos? O que mais podemos fazer? Fugir da cidade? Então e a Lhiannah? Correr as ruas à procura de Filhos do Flagelo? Talvez, pode ser que mais um de nós morra ou seja preso. Não conhecemos a cidade, não conhecemos ninguém, nem sequer quem nos quer mal...

 

Os Corações Quebrados...? vieram à cabeça de Allumno.

 

Eles... o jovem hesitou, entrando num breve conflito interior devido às memórias que o tomaram de assalto. ”Deuses, está tudo a acontecer outra vez... mas que posso eu fazer? Precisamos de ajuda” Eu... não quero que eles...

 

Não estamos em Alyun, Aewyre lembrou-lhe o mago, sabendo muito bem em que o seu protegido pensava. Não pretendemos atacar as torres dos Três. Mas precisamos da ajuda de alguém de Tanarch, e os Corações podem ser aliados preciosos.

 

Eles ter-te-iam seguido como cães, se os tivesses deixado recordou Worick, parecendo já ter falado acerca do assunto com o mago.

 

Quem são esses ”Corações Quebrados”? indagou Quenestil, perdido.

 

Desculpa, Quenestil escusou-se Allumno. São aquele grupo de foras-da-lei de que te falámos que nos ajudaram quando saímos de Karatai. São boas pessoas e de confiança...

 

Aewyre deixou de ouvir a conversa. Ainda se lembrava dos nomes dos rebeldes: Devear, Cenric, Alruc, Eltan, e tantos outros... as memórias atormentavam o guerreiro, e o que mais temia era que a situação se repetisse, que outros morressem por sua causa. Mas era claro que o Allumno tinha razão; isto era algo que não podiam fazer sozinhos. Relutantemente, os seus olhos dirigiram-se a Quenestil, e Slayra apercebeu-se disso, agarrando-lhe o braço com mais força.

 

Eu faço-o, Aewyre assegurou-lhe o shura sem necessitar de palavras para perceber. Eu encontro-os...

 

Eu vou contigo disse Taislin de forma terminante. Cinco caras surpresas viraram-se para o burrik.

 

Mas... eu encontro-os mais depressa sozinho, Taislin.

 

Como? Nem sequer sabes quem eles são. E achas que confiariam em ti? Eles a mim já me conhecem. Ou há mais alguém que queira ir com ele? Sozinho é que o Quenestil não vai disse ao grupo, enfrentando de braços cruzados os olhares altos dos quais estava a ser alvo, sério como nunca o fora na sua vida. E não me venham com a conversa das pernas curtas. Se é para seguir rastos, não podemos andar a correr.

 

Bem... Tal como os outros, Aewyre estava admirado com o que acabara de ouvir. Não posso dizer que ele não tenha razão. O que acham?

 

Ninguém se pronunciou contra ou de qualquer outra forma além de ombros encolhidos e sobrancelhas erguidas, pelo que a sugestão de Taislin foi aceite.

 

Aewyre aproximou-se então do casal eahan e pôs as mãos por cima dos ombros de ambos.

 

Deixas-me roubar-to? perguntou a Slayra, que hesitou antes de responder.

 

Claro... quer dizer, se é para fazer o que ele faz melhor... aliás, nem há perigo nenhum. É a Ancalach que eles querem, não é?

 

É assentiu Quenestil, pedindo apoio a Aewyre com um olhar. Aliás, pensando melhor, estando longe de vocês se calhar até estou mais seguro.

 

Se calhar concordou o jovem.

 

Além disso, vai fazer-me bem sair um pouco da cidade acrescentou ainda o shura com forçado entusiasmo.

 

Então como é? quis Worick saber. O eahan agora vai à procura dos Corações e nós ficamos aqui à espera?

 

Sim disse Aewyre. Aqui no templo estamos tão seguros como em qualquer outro lugar, talvez mais, e não há sítio melhor para a Lhiannah recuperar. Enquanto o Quenestil e o Taislin não voltarem, não pomos os pés lá fora; se eles quiserem a Ancalach, que a venham cá buscar.

 

Está bem, eles que venham então. Ao menos que se mostrem para eu lhes partir os focinhos...

 

Mas vocês não se metam em nada que não vos diga respeito aconselhou o jovem aos seus amigos, ainda com a mão no ombro do eahan. Encontrem só os Corações e tragam-nos cá, ou pelo menos peçam-lhes ajuda.

 

Não te preocupes. Antes de te conhecer, eu até evitava problemas. A afirmação conseguiu trazer um meio sorriso à cara de Aewyre, que lhe apertou o ombro e o de Slayra antes de os largar. Agora, desculpem, dão-nos uns momentos? perguntou, inclinando a cabeça na direcção de Slayra.

 

Claro, claro. Venham disse Aewyre aos três restantes companheiros, indicando-lhes que o seguissem para fora do quarto para dar privacidade ao casal. Allumno e Taislin foram sem hesitar, mas Worick ainda olhou indeciso para Lhiannah antes de seguir. A última coisa que Aewyre viu antes de fechar a porta foi o shura a pegar nas mãos da eahanoir.

 

Tomaste a decisão certa, Aewyre confortou-o Allumno enquanto os quatro caminhavam distraidamente pelo corredor, no qual ecoavam os seus passos e a batida regular da ponta do cajado do mago. Fachos de luz iluminavam a galeria, provenientes de pequenas janelas triangulares ao longo da parede.

 

Espero bem que sim, Allumno...

 

Tal como o Quenestil disse, é a Ancalach que os Filhos querem. Longe de nós, podem bem ser eles quem menos perigo correm.

 

Eu sei, mas também sei o que aconteceu da última vez que nos separámos...

 

Não vai acontecer outra vez afirmou a pequena voz de Taislin convictamente, tornando a apanhar os outros de surpresa. O burrik não se estendeu mas, por estranho que parecesse, a sua convicção deu-lhes uma certa medida de confiança.

 

Allumno deu uma palmadinha nas costas do seu pequeno amigo.

 

Como nós gostávamos de partilhar da tua segurança, meu amigo. Felizmente temos-te a ti, que nunca nos deixas perder o ânimo.

 

Nem ganhar demasiado... comentou Worick.

 

Aewyre repreendeu-o com um olhar severo. De momento, Taislin não precisava de altercações ou de insultos; o burrik andava deprimido e o jovem apercebeu-se da pouca atenção que lhe dera nos últimos tempos. Contudo, Taislin pareceu ignorar a observação chistosa do thuragar.

 

Como está o teu nariz, Allumno? perguntou.

 

Melhor, obrigado. Não foi nada sério...

 

O que é que te aconteceu ao nariz? inquiriu Aewyre, lembrando-se das manchas de sangue no colarinho e das narinas vermelhas do mago.

 

O ataque no Pilar. Foi violento, e quando voltei, sangrei do nariz e tive a pior dor de cabeça desde há muitos meses até vir uma sacerdotisa.

 

Quem seriam eles, a mulher e o mago?

 

Não faço ideia. As imagens no Pilar são algo indistintas, mas julgo nunca os ter visto antes. É fácil apontar o dedo aos Filhos do Flagelo, mas não podemos ter certeza.

 

Então por que não entram eles pela porta em vez de andarem a espreitar por pilares? resmungou Worick.

 

Podem bem ser capazes de o fazer, agora que sabem um pouco mais sobre nós. Não sei que conclusões a mulher terá tirado, mas a Ancalach estava bem visível no quarto e é possível que ela vos tenha analisado as almas aos dois disse, olhando para o thuragar e o burrik.

 

O quê? Que conversa é essa de ”analisar”? desgostou Worick.

 

Nada de grave. Caso o tenha feito, pôde deduzir as vossas raças, porventura o vosso temperamento, pouco mais além disso. Mas de qualquer forma é mais informação para eles, enquanto nós continuamos no escuro.

 

Hum, então que venha cá. Mostro-lhe mais do que ela alguma vez gostaria de saber...

 

Duvido de que o faça opinou Allumno. Mas diz-me, Aewyre, afinal como correu o plano da Slayra?

 

Aewyre relatou os acontecimentos sem grande emoção enquanto caminhavam pelo corredor decorado com uma longa tapeçaria que retratava o auxílio de servos de Acquon aos doentes e sofredores. Duas laicas vestidas de branco passaram pelo grupo, cumprimentando-os com um aceno de cabeça e olhando para trás para Aewyre, sussurrando algo uma à outra enquanto se afastavam.

 

Pois, também não me parece que estivessem directamente envolvidos no que aconteceu concordou Allumno após ter ouvido os factos. Mas podemos ter feito novos inimigos...

 

Aewyre encolheu os despreocupados ombros.

 

Não passam de um grupo de rufias. Temos mais com que nos preocupar.

 

O mago não quis agravar a situação e nada mais disse acerca do assunto.

 

Como estão os arranhões? indagou.

 

O jovem tenteou o lado ferido da cara. A carne das feridas suturadas ainda estava tenra, mas graças ao tratamento das laicas, as feridas não haviam inflamado nem começado a marejar pus.

 

Melhores. E o joelho?

 

Melhor. Ainda assim, acho que nós os dois beneficiaríamos de uma ida à enfermaria. Acompanham-nos? perguntou a Worick e Taislin, que anuíram em silêncio.

 

Aewyre agarrou o pescoço do burrik por trás com uma encorajadora mão e apertou-lho duas vezes, conseguindo arrancar-lhe um sorriso que, embora longe do sorrir recto que lhe era característico, sempre lhe iluminou a acriançada face. Houve silêncio então, e os quatro dirigiram-se absortos até à enfermaria sem proferirem mais palavras.

 

Quando voltaram ao quarto, Slayra já estava a ajudar Quenestil a equipar-se. O shura envergava a uma capa com capuz e tinha uma pequena mochila às costas, um cantil a tiracolo e embainhava a faca acabada de afiar.

 

Taislin disse a eahanoir em voz baixa para não acordar Lhiannah, espero que não te importes que usemos a tua mochila. Ela chega para vocês levarem rações para dois, só para não terem de perder tempo a caçar e fazer fogueiras...

 

Claro, usem-na concordou o burrik sem problemas, o que não era muito comum numa raça que dava tanta importância às posses. Os bens de outrem pesavam-lhe e eram certamente um fardo, mas as pertenças de um burrik não se partilhavam com ninguém, pelo menos não de bom grado. Daí que a linha entre o conceito de ”emprestar” e o simples roubo fosse tão ténue para a raça de Taislin.

 

Obrigada. Allumno, achas que vale a pena eles levarem roupas quentes? perguntou ao mago, parecendo já ter discutido o assunto com o eahan.

 

O Quenestil pode responder a essa pergunta melhor do que eu, mas ainda é Primavera em Tanarch e o tempo ainda nos pode surpreender...

 

Vês? acusou a eahanna.

 

Slayra, achas que eu nunca viajei com chuva? O Taislin leva se quiser, mas para mim a capa chega; o tempo agora vai começar a aquecer...

 

A eahanoir pareceu contrariada, mas o tempo começava de facto a melhorar e de qualquer forma sabia que o shura estava habituado ao frio das montanhas.

 

Aewyre notou que o eahan estava armado apenas com o seu facalhão.

 

Não levas o arco? perguntou.

 

Perdi-o e à aljava na viagem para Tanarch recordou-lhe Quenestil. Vou ter de me safar sem ele...

 

O quê? exclamou Worick. Um eahan sem arco é a mesma coisa que um lavrador sem charrua. Espera aí... O shura ia jurar que havia sido insultado algures na afirmação do thuragar, mas nada disse enquanto este se dirigia à pilha de mochilas num dos cantos do quarto e nelas procurou por algo.

 

Aqui está ele disse por fim, colhendo um estojo do monte e atirando-o a Quenestil. Os ocarr deram-no à cachopa, mas ele agora de pouco lhe serve.

 

O shura abriu o estojo e tirou lá de dentro o arco recurvo ocarr que fora presenteado à princesa pelo ayan, examinando-o atentamente. Era semelhante ao seu, embora mais recurvo e sinuoso, com um cerne de madeira em cujo ventre estavam coladas finas tiras de chifre e com as costas cobertas por um feixe de tendões. Empunhou o arco e puxou até à orelha a corda feita de pele de hemíono, testando a sua força e vergando-o a uma impressionante curvatura.

 

É um bom arco afirmou, acenando aprovadoramente com a cabeça.

 

A madeira é um bem precioso em Karatai explicou Allumno. Não se podem dar ao luxo de fazer arcos medianos.

 

E toma isto também disse Worick, por pouco não atingindo Quenestil na cara com uma aljava de pele. O eahan desatou-a e puxou uma seta com ponta de osso com as arestas buriladas. Reza só para que não encontres ninguém com armadura. Se o raio do zarolho queria ter filhos dela, podia ao menos ter-lhe dado umas setas decentes, pedras me partam...

 

O quê? perguntaram os dois eahan, surpresos.

 

- É uma longa história disse Aewyre, achegando-se ao seu amigo enquanto este punha o arco ao ombro. Quenestil, já sabes: procura-os e pede-lhes ajuda; só isso.

 

E mantenham os olhos abertos recomendou Allumno. Embora os Filhos almejem a Ancalach, podem ter espiões noutros lugares.

 

O eahan abriu as mãos, encolhendo os ombros.

 

Mas que têm vocês? Até parece que eu e o Taislin vamos acampar pela primeira vez... não se preocupem, nós encontramo-los e trazemo-los cá, de uma maneira ou de outra.

 

Mas voltem inteiros, ouviram? advertiu-os Slayra.

 

Eu tomo conta dele garantiu Taislin.

 

A eahanoir sorriu-lhe e ajoelhou-se para lhe beijar a testa e afagar o barrete. Estava obviamente pouco satisfeita com a inesperada partida de Quenestil, mas parecia estar a lidar bem com a situação, pensou Aewyre.

 

”Só espero que não se venha a arrepender...”, foi a hipótese que lhe veio involuntariamente à cabeça, sendo de imediato rejeitada.

 

Bom, o melhor é irmos o quanto antes opinou o shura. Acham que os clérigos de Bellex...?

 

Não, eles já vos interrogaram aos dois elucidou Allumno. Posto esse problema de parte, Quenestil pareceu pronto a partir.

 

Taislin ainda foi buscar a sua corda e o cantil antes de se lhe juntar, e ambos ficaram a olhar para os restantes companheiros, procurando palavras.

 

Então? Estão à espera de quê? perguntou Worick, encaminhando-se para a porta e rodando o manípulo. Ponham-se a...

 

Calou-se ao ver um homem com o canto do olho ao abrir a porta. Afastou-se e levou a mão instintivamente ao cinto, no qual deveria estar o martelo que presentemente se encontrava encostado à parede. O indivíduo estava com o punho erguido como se tivesse querido bater à porta antes de esta ter sido aberta e precisou de mais alguns instantes até registar esse facto e baixar a mão. Era um homem de estatura mediana, barba primorosamente aparada e bastante bem vestido, com um cafetão vermelho com mangas debruadas a pele de marta, cingido à cintura por uma pregueada cinta verde com borlas amarelas nas pontas e com vários fios dourados estendidos através do peito cravados com botões de ouro. Usava ainda um

capelo de mais pele de marta sobre uma capa verde segura por um brilhante broche prateado, um par de imaculadas botas amarelas e um barrete verde parecido com o de Taislin, mas com a ponta mais curta e também ele debruado a pele de marta. Na sua capa estava bordado um brasão que representava uma mão vermelha a agarrar uma balança dourada num fundo verde. Assim que se recompôs, endireitou-se e disse num Glottik irrepreensível:

 

A vossa indulgência pela minha intrusão. Trago as saudações de meu senhor lorde Malagor da Torre Judicante disse, e o seu braço esquerdo emergiu de dentro da capa que lhe cobria o ombro, apresentando a Worick uma mão enluvada com um rolo lacrado.

 

O thuragar aceitou-o com a relutância de quem se vê confrontado com uma situação inesperada, e de todos os companheiros apenas Allumno esboçou uma reacção perante o nome de um dos Três.

 

Meu senhor Malagor encontra-se em Val-Oryth e deseja celebrar amanhã a presença do príncipe Aewyre Thoryn e da princesa Lhiannah Syndar com uma festa em sua honra clarificou o que devia ser um mensageiro.

 

Ao ver que, embora na posse do rolo, Worick não se iria mexer tão cedo, Allumno acotovelou Aewyre que, apesar de chocado por ter ouvido o seu verdadeiro nome pronunciado, conseguiu avançar para tirar a mensagem da mão do thuragar.

 

Príncipe Aewyre Thoryn, ouso presumir? conjecturou o recém-chegado, curvando-se numa expectante vénia.

 

Não... sim tartamudeou Aewyre com um porte muito pouco régio enquanto quebrava o selo com a unha do polegar.

 

O mensageiro cruzou as mãos atrás das costas e aguardou pacientemente enquanto Aewyre lia o convite, vislumbrando o quarto algo inadequado para alguém do estatuto do príncipe de Ul-Thoryn e a que devia ser a princesa deitada na cama, mas sem nada dizer a respeito. Os orbes escuros do guerreiro mexiam-se da esquerda para a direita, e a configuração das suas sobrancelhas denotava tudo menos satisfação pelo que lia. Os outros esperaram em silêncio, trocando olhares dúbios sempre que se julgavam livres do escrutínio do mensageiro.

 

Eu... disse Aewyre por fim, baixando o braço e parecendo lembrar-se do protocolo que lhe cabia. Agradeço. E aceito. Enviai os meus cumprimentos a lorde Malagor e dizei-lhe que estarei presente com todo o gosto.

 

Serão entregues, príncipe garantiu-lhe o homem com uma vénia. Meu senhor Malagor anseia vê-lo e à princesa acrescentou, puxando a capa por cima do ombro. O resto de uma boa tarde para vós.

 

Aewyre fechou a porta e nela se continuou a apoiar com a mão durante uns longos e silenciosos momentos até Quenestil falar:

 

Aewyre?

 

O jovem virou o lado ferido da cara para os seus companheiros, que notaram a vermelhidão dos arranhões suturados, provavelmente causada pelo afluxo de sangue agitado à cabeça.

 

Como é que ele soube o meu nome? Ninguém soube responder.

 

Como? Ninguém sabia, só os Corações... e tu disseste o nome da Lhiannah no interrogatório lembrou-se, olhando para o eahan.

 

Decerto te apercebeste de que estamos a falar de um dos Três... disse Allumno, também ele com a cabeça a trabalhar furiosamente.

 

Um dos Três... e ele sabe o meu nome... e o da Lhiannah...

 

Aewyre, acalma-te. Estamos muito longe de Ul-Thoryn. Serão precisos meses até alguém saber... o que temos de ver agora é de que forma isto afectará o que tínhamos planeado.

 

Como é que isto afecta? exclamou o guerreiro, afastando-se da porta de rompante. Afecta tudo! Ele viu onde nós estamos, viu a Lhiannah, e o seu mestre vai fazer perguntas de certeza! Não posso recusar o convite disse, exibindo-o e batendo-lhe com os dedos por trás, e ele estende-se só a mim e a ela! Raios, que os azigoth os levem a todos! Porquê agora?!

 

Aewyre...

 

Ah, mas vocês não sabem a melhor. Esta vai ser ainda mais engraçada de explicar... acrescentou, deixando todos na expectativa. Pede-me com a mais veemente delicadeza que leve a Ancalach!

 

O Verão parecia ter chegado mais cedo a Ul-Thoryn, e com ele os longos dias de sol radiante e calor abrasador nos quais os edifícios de pedra caiada da cidade quase resplandeciam, parecendo irradiar a soalheira que as telhas de barro avermelhado dos seus telhados suavemente inclinados absorviam. Os habitantes da grande cidade vestiam-se parcimoniosamente com tecidos claros e leves nesse tempo, e muitos andavam descalços, embora o chão de pedra calcetada disposta num padrão gradeado queimasse os pés dos mais incautos nos espaços abertos, forçando-os a caminharem pelas ”grades” de lajes de granito, evitando as quentes pedras calcetadas entre elas. Crianças nuas banhavam-se nas fontes, mantendo os encalorados guardas sempre alerta e lançando-os em curtas e guinchantes perseguições pelas ruas, abanando as roupas e deixando pequenas pegadas molhadas no chão que rapidamente se evaporavam. Os poços eram outra alternativa, mas poucos petizes tinham paciência para as longas filas que os aguardavam nesses locais, além de que as pessoas reagiam mal ao verem água ser arremessada levianamente enquanto esperavam pela sua vez com pesados baldes e alguidares à torreira do sol. Era uma altura na qual muitos desejavam ser pescadores, pois esses passavam o dia no Estuário do Suão e nos rios Alven e lalven, nos quais se iam refrescar todos os que dispunham de tempo para o fazer, sobretudo nas aldeias e quintas limítrofes. A maior parte dos habitantes tinha no entanto de trabalhar, ansiando pelo regresso às suas casas frescas ao fim do dia, bebendo água de menta e cerveja em copiosas quantidades nas tabernas, que por esta altura se viam sempre alegremente forçadas a robustecer as suas adegas.

 

E contudo, as ruas de Ul-Thoryn estavam apinhadas de gente, como o pajem mudo constatava do topo da muralha de Allahn Anroth. Fora dispensado por lorde Thoryn, que tomava o seu banho diário e que sempre mostrara desagrado perante a presença de homens em ocasiões nas quais se encontrava desnudo. Era segredado um boato no palácio de que o regente de Ul-Thoryn se entregava a desbragadas orgias na sua sala de banho particular, mas o pajem mudo não tinha como saber e de qualquer forma não se importaria. O seu senhor não desejava a sua presença, era tudo o que precisava de saber e nada mais faria além de aguardar que os seus serviços fossem uma vez mais requisitados. A camisa de fino linho amarelo, que vestia debaixo de uma folgada túnica vermelha de amplas mangas curtas, que lhe chegava até aos joelhos, e umas apertadas calças azuis não eram de sobremodo confortáveis com aquele ar quente e abafado, mas naquele dia não lhe apetecera esperar que o seu senhor acabasse o seu habitualmente longo banho num corredor do palácio. Não frisara os seus cabelos negros como era costume, pois poucas pessoas estavam dispostas a exporem-se ao calor necessário para aquecer os ferros de encaracolar, e, de qualquer forma, lorde Thoryn nunca parecera dar muita importância a esse pormenor. As farripas que lhe pendiam sobre a baia testa luzente de suor incomodavam-no devido à falta de hábito, quase tanto como o calor e as moscas que zumbiam em liberdade pela cidade devido à ausência de vento, mas o rapaz gostava de vir para as muralhas sempre que possível, observar do alto a cidade que fora a jóia de Nolwyn antes de a nação se fragmentar. Não a considerava como sua, pois ainda não haviam passado dois anos desde que o seu pai, o bailio de uma aldeia da região, o enviara para Ul-Thoryn, sabendo bem que a sua incapacidade de falar e ouvir seriam umas mais-valias na corte e não uns estorvos como o eram na aldeia. O rapaz aprendia depressa e não era de todo pouco inteligente, embora a sua timidez e os seus cândidos olhos castanhos levassem muitos a pensarem o contrário, razão pela qual não lhe davam muita importância nem o importunavam desde que fizesse o seu trabalho, do qual poucos tinham razão de queixa. Na verdade, era tão brioso que parecia ficar perdido quando não tinha alguma incumbência, razão pela qual viera para a muralha para observar a cidade e a invulgar actividade nas suas ruas.

 

Faltavam duas semanas para o casamento de lorde Thoryn e a princesa lollina, que serviria como uma espécie de interregno do exaustivo início da colheita, e os preparativos daquela que se afigurava como uma majestosa cerimónia como havia muito não era celebrada haviam deixado a cidade em polvorosa. O ritmo do trabalho era forçosamente acelerado, pois os nolwynos eram conhecidos pela sua indolência estival e lorde Thoryn já a experienciara vezes de mais para permitir que pudesse de alguma forma atrasar o seu casamento. O porto de Ul-Thoryn estava lotado de navios atracados que traziam consigo tonéis de vinho de Laone, ovas de esturjão de Sardin, peles de Thyr, mel e veiros latvonianos, pedras tintureiras de Sathmara e dúzias de outros bens provenientes dos seus reconhecidos locais de origem, cujo descarregamento parecia ocupar os estivadores dia e noite. O itinerário da procissão do casamento fora há muito planeado, e embora as ruas eleitas estivessem a ser minuciosamente preparadas para o grande dia, ninguém descurava as restantes. Esterqueiros e limpadores estavam mais ocupados do que nunca, pois lorde Thoryn exigira ruas tão limpas que ”as crianças pudessem lamber o chão”, o que os obrigava a expedientes adicionais de ancinho e vassoura na mão, arrastando os indesejáveis conteúdos dos seus rangedores carrinhos. Os alfaiates, tecelões e tintureiros da cidade trabalhavam furiosamente, preparando as bandeiras, grinaldas, festões e trajes para o casamento. Cinco guildas distintas haviam sido especialmente destacadas para fazerem um vestido para a princesa lollina, dos quais apenas um seria escolhido, e todas almejavam que fosse sua a criação a ser envergada pela futura esposa do seu regente.

 

O pajem não tinha memória de ver tal bulício nas ruas da cidade, nem mesmo nos dois aniversários de lorde Thoryn que presenciara. Tudo apontava para um evento digno de ser relatado nos anais da história, quatro dias e quatro noites de festa após aquele que teria de ser um fatigante início da colheita de forma a compensar o breve interregno da safra, cujas dádivas iriam directamente para a mesa do casamento. O templo de Gorfanna fora o primeiro e último a pronunciar-se contra tal decisão, considerando-a pouco sensata, mas Aereth cedo tratou de a proclamar como édito real e de ameaçar um corte substancial nos donativos régios para a igreja da deusa da agricultura, o que silenciou quaisquer outros eventuais detractores. Tudo isto fora contado ao pajem pela governanta de Allahn Anroth, uma velha matrona que adaptara às necessidades da vida palaciana a linguagem gestual que o rapaz trouxera da sua aldeia. Era uma mulher ocupada, mas como pajem do regente de Ul-Thoryn, o rapaz tinha direito a especial atenção da sua parte, atenção essa que constituía a única forma de se informar acerca do que se passava na cidade e que ele sempre aproveitava ao máximo.

 

Uma mosca zumbiu-lhe demasiado perto do ouvido, e o rapaz esbofeteou o ar por reflexo, virando a cara. Ao fazê-lo, deparou com uma das aias da princesa lollina ao seu lado e sobressaltou-se, por pouco não caindo da muralha abaixo. A aia levou a mão ao peito, assustando-se ela também com o espavento do pajem, e este encostou-se à muralha, agarrado ao cunhal de um merlão e olhando para a rapariga com os olhos de um coelho surpreso. Já a vira antes, fora uma das aias que haviam entrado na sala de convívio umas semanas atrás após a partida de Demanda pelo Trono entre o seu senhor e lorde Nehin. O pajem não se sentira bem e fora por elas levado à cozinha para se recompor, mas apenas esta permanecera com ele até ter a certeza de que nada de mal se passava. Ainda se lembrava dos olhares chistosos que a roliça serva da cozinha lhe mandara, mas nunca chegara a perceber qual o seu motivo, se a sua aparente fraqueza se o facto de a aia ter sido tão simpática com ele. Achara-a engraçada naquele dia, e assim que o seu coração parou de lhe repercutir no peito e o desagradável calor na cabeça lhe passou, deu consigo a pensar o mesmo. O pajem não era alto, e a rapariga tão-pouco o era, com uma compleição esbelta e uma cara oval que, embora não fosse de uma tez tão baia quanto a de um habitante da ensolarada costa de Nolwyn, era suficientemente morena para mal se enrubescer com o calor. Envergava um vestido fulvo plissado, com uma cinta larga que lhe cingia o torso debaixo do busto até às ancas e compridas mangas que quase roçavam o chão. O seu cabelo castanho-escuro estava preso numa longa trança que pendia livremente, realçando a sua testa alta que naquele momento estava enrugada de surpresa. Assim que se recompôs, os seus lábios mexeram-se, mas o rapaz indicou a sua orelha com um gesto vago e a rapariga lembrou-se. Contudo, no dia em que o vira pela primeira vez, ficara com a impressão de que o rapaz era apenas mudo, pelo que continuou:

 

É verdade, não consegues falar. Desculpa, assustei-te? O pajem pensou que lhe perguntava se estava bem, pelo que nutou afirmativamente com a cabeça. Desculpa. O que fazes aqui? indagou, gesticulando em redor.

 

O pajem encolheu os ombros e virou a cara para as atafulhadas ruas.

 

Ah, estás a olhar para a cidade. Ul-Thoryn é muito bonita, gosto muito da cidade. Lennhau é um bocado... tosca, sabes O rapaz não estivera a olhar para a sua interlocutora, pelo que não esboçou qualquer tipo de reacção quando tornou a virar a cara.

 

Uf, está calor aqui em cima. Não queres ir para um dos torreões? perguntou-lhe, indicando o lugar em questão. Deve estar mais fresco dentro deles.

 

O pajem encolheu os aparentemente desinteressados ombros, embora talvez não tivesse percebido, pensou ela.

 

Deixa estar, então. Se calhar estão lá guardas de qualquer maneira. Sabes, os guardas de Ul-Thoryn não são muito corteses. A forma como olham para nós... deve ser deste calor. A rapariga esfregou a testa com as costas da mão e o rapaz viu a mancha no vestido debaixo da sua axila. Estava realmente muito calor. Olhou para o interior das muralhas e deduziu o caminho que a aia provavelmente percorrera exposta ao sol no pátio antes de subir as escadas para o passadiço.

 

De certeza que não queres ir para um dos torreões? Esquece, já vi que gostas de olhar para as ruas. Eu também confessou, apoiando-se num merlão ao lado do pajem.

 

Os dois passaram assim alguns momentos ao calor, contemplando a cidade num desconfortável silêncio do qual apenas a aia se apercebeu. A rapariga soltou um longo suspiro, sinalando vontade de falar sobre algo, mas o rapaz obviamente não reparou. Olhou de lado e, atribuindo a falta de reacção do pajem à sua óbvia timidez, tomou a iniciativa:

 

Sabes segredou-lhe, inclinando-se para ele, ninguém estava à espera de que lorde Thoryn pedisse a princesa íollina em casamento. Ela, coitada, ainda é tão novita, ainda mal lhe cresceram os peitos e... ai, eu não devia dizer isto, mas... ela ainda não teve o seu choro lunar, percebes? O pajem nutou com a cabeça apenas por uma questão de educação, nervoso com a proximidade da rapariga. Não dizes isto a ninguém, ouviste? Oh, que estúpida, também não podes... Outro aceno da cabeça. Pois é claro que não podes... desculpa.

 

O rapaz concordou uma última vez e tornou a olhar para a cidade, gesto esse que a aia interpretou como um claro sinal de que estava ofendido. Quando lhe pousou os delicados dedos no ombro, o coração do pajem recomeçou a bater com força, a sua cabeça tornou a aquecer e o seu couro cabeludo formigou. Alheia a tais sintomas, a rapariga escusou-se:

 

Sou uma estouvada, desculpa. Já me dizem as outras que falo que nem uma gralha, não tenho consideração nenhuma pelas pessoas. Não te ofendi, pois não?

 

As finas sobrancelhas erguidas da aia e o facto de estar a abanar a cabeça em gesto de negação deram-lhe a entender a resposta que era desejada e o pajem negou com a sua também. Devido à sua surdez, tivera de aprender desde cedo a ler as expressões faciais e linguagem corporal dos seus interlocutores, o que sempre provara ser muito útil. A rapariga sorriu-lhe, exibindo pequenos dentes brancos, dos quais dois incisivos da frente estavam ligeiramente recuados, e retirou a mão do seu ombro, arrastando prepositadamente os dedos como para prolongar o contacto.

 

Sabes, és muito querido. O rapaz sorriu nervosamente para retribuir, mas não conseguiu aguentar muito tempo os olhos castanhos orlados de longas pestanas que fitavam os seus e rapidamente devolveu a sua atenção às ruas da cidade. A rapariga achou graça e nada disse, gozando momentaneamente o desconforto que o seu escrutínio lhe causava.

 

Faltam duas semanas para o grande casamento... mal posso esperar. Tenho a certeza de que vai ser uma festa inesquecível! A procissão vai percorrer as ruas, vai haver música, malabaristas, cavaleiros, bandeiras, flores... A aia suspirou, lançando um olhar perdido à cidade. Lorde Tylon arranjou um rico marido para a filha, e isto vai ser muito bom para as gentes de Lennhau. Sabes, a maior parte das cidades não gosta muito de nós, mas o que é que eles queriam que nós tivéssemos feito na guerra? O meu avô é cego, sabes, mas ele esteve na guerra e contou-me muitas vezes o que se passou. Os exércitos do Flagelo já tinham destruído Vaul-Syrith; Lennhau era a próxima e o que sobrava do exército de Nolwyn estava a reunir-se em Ul-Thoryn, estava demasiado longe. Lorde Tylon rendeu-se, era a única coisa que podia ter feito para poupar o seu povo e a sua cidade. Aliás, é o único homem que conheço que não pensa só em resolver os problemas com a espada. Tu também não, sabes? Não pareces ser um rapaz violento. Não és, pois não?

 

O pajem viu que a rapariga olhava para ele e deduziu pela sua expressão que o que ela desejava era outro abanar negativo da cabeça, pelo que a obsequiou com um.

 

Pois, foi o que pensei. Não és como o Cortun, que é um bruto; nem sei como é que lorde Tylon o nomeou seu paladino. Eu acho que ele gosta de magoar as pessoas, sabes, porque quando a senhora Lethia o manda castigar os servos, ele exalta-se sempre; uma vez até partiu o braço a um pobre serviçal que ainda nem sequer barba tinha, só porque estava distraído e deu uma cotovelada à senhora Lethia enquanto a servia à mesa. E não é só, ele também anda sempre de olho em nós. Uma vez apanhou uma das minhas companheiras sozinha, e a pobre rapariga voltou a correr para o quarto, a chorar e com o corpete e a saia rasgados. E claro que ninguém acreditou nela além de nós, e a coitada teve um filho e a senhora Lethia mandou expulsá-la, disse que não aceitava que uma das aias da sua filha se ”portasse como uma cadela”! O rapaz viu a expressão revoltada da rapariga e franziu as sobrancelhas. Ela é muito má, sabes? segredou uma vez mais. Há coisas que faz mesmo por maldade. Não sei como é que lorde Tylon casou com ela, ele que até é um homem justo. Se calhar não encontrou a mulher certa...

 

A aia olhou para o vazio, e o pajem viu pelos seus olhos que se perdera momentaneamente num devaneio, sonhando acordada com reis e rainhas, mas isso não tinha como saber. A rapariga pareceu sentir o seu olhar e despertou, piscando os olhos, mas nesse momento o rapaz pareceu encontrar algo de tão interessante na rua que de imediato se virou para a contemplar outra vez. A aia riu.

 

Sou a mais nova do grupo, sabes? As outras são todas dois anos mais velhas do que eu, e uma delas diz que já tem um prometido, mas não nos diz quem é. Houve uma altura em que pensávamos que era o príncipe Aewyre, pelo menos era isso que ela dizia, mas nunca acreditámos. Ele é lindo, não é? provocou, mas o pajem tirou-lhe o gozo ao nutar com a cabeça, apercebendo-se de que fizera algo de errado quando a rapariga ergueu a sobrancelha. Ficaram assim durante alguns instantes, até que a aia riu, batendo-lhe ao de leve no braço. Parvo, estás a gozar comigo! O sorriso e a palmada brincalhona conseguiram fazer com que o rapaz exibisse os dentes de cima com um meio sorriso, mas teve de virar a cara outra vez, esfregando o quente cunhal do merlão.

 

- És mesmo querido. Que idade tens?

 

O pajem percebeu que lhe fora dirigida uma pergunta, mas a única expressão que lia na cara da rapariga era uma de expectativa, não soube dizer se esperava um sim ou um não. Vendo o seu ar desorientado, a aia pensou que fizera algo de errado.

 

Desculpa, sou mesmo estouvada. As outras bem dizem que eu sou demasiado atrevida, que qualquer dia o Cortun ainda pensa que... esquece. Mas eu gostava mesmo de saber a tua idade, sabes? Eu vou fazer dezoito daqui a pouco mais de duas semanas, por pouco não era no dia do casamento. E tu, quantos tens? Mostra-me com os dedos pediu-lhe, indicando-lhe as mãos.

 

O rapaz continuava perplexo, pois não fazia ideia do que era dele esperado, e olhou para as suas mãos sem perceber, erguendo-as e voltando-as como se fossem dois objectos estranhos. A aia primeiro pensou que ele não lhe queria mesmo dizer a sua idade, mas depois ocorreu-lhe uma coisa e levou a mão à boca.

 

Oh, desculpa. Não sabes contar? Aliviado pela expressão consternada que conseguiu ler, o rapaz negou em concordância. Coitado. Não faz mal, a nossa governanta também só nos ensinou há pouco tempo. Olha, gostavas que eu te ensinasse? Outro aceno afirmativo. Que bom! alegrou-se a rapariga, batendo com as mãos e levando-as ao peito. Vais ver como aprendes num instante. É muito fácil...

 

Os lábios da rapariga pararam de se mexer de repente, e os seus olhos fixaram-se em algo atrás do pajem. O rapaz olhou nessa direcção e por pouco não caía outra vez da muralha.

 

Dilet, o bobo, exibia a dentadura em todo o seu alvo esplendor num grotesco sorriso rasgado, no qual os seus incisivos leporinos se destacavam. Vestia um dos seus inúmeros fatos de jogral, sempre berrantes e diferentes todos os dias, como se o homem se ocupasse durante a noite a cortar, e costurar, e misturar partes dos seus trajes. Naquele dia envergava uma garrida miscelânea de amarelo, laranja, roxo, azul e vermelho que devido ao sol quase feria a vista, completando a indumentária com um apertado gorro com dois guizos nas extremidades e sapatos com pontas exageradamente longas. Os seus curiosos olhos de carúnculas bem visíveis fitavam o jovem par com interesse, arcando ainda mais as já de si arqueadas sobrancelhas.

 

Lindo dia, o sol radia! Do topo da muralha, donzela e donzel contemplam a cidade, antevendo com grande antecipação a vindoura festividade! Os seus guizos tiniram quando o jogral pulou graciosamente para cima de um merlão, acocorando-se nele como uma pitoresca gárgula. Cansada do seu solitário adejar, a águia irá pousar no teixo, ao qual o senhor do corcel se indaga virou-se bruscamente para ambos, deitando-se de barriga e apoiando o queixo sobre os punhos, será que eu deixo?

 

Perante os olhares surpresos do par e com a graça de um gato, Dilet apoiou as mãos no merlão, estendeu as pernas para os lados e trouxe-as para a frente, abraçando-as e passando a apoiar o queixo nos joelhos, assumindo um semblante tão sério quanto as suas caricatas feições lho permitiam.

 

Doce e casta é a baga que a águia debicará, alheia ao veneno que tragará. O seu ninho nos ramos do teixo irá fazer, correndo o risco de o rei lenhador o abater dito isto, impulsionou-se para trás, mergulhando para uma queda mortal. A aia guinchou, levando as mãos à boca, mas o pajem permaneceu imóvel, estarrecido. A rapariga foi em frente, esperando ver o corpo do bobo estatelado no chão, mas grande foi a sua surpresa quando a cabeça encapuzada lhe saltou à vista, agarrando-se sorridente ao merlão, arrancando-lhe um guincho e fazendo-a recuar com o susto e abraçar o rígido braço do atemorizado rapaz.

 

Mas nada temam, não ouçam o agoirento! Aguardem a festa, gozem o momento! recomendou-lhes alegremente, saltitando de merlão em merlão nas pontas dos pés, sendo o alvo dos olhares de alguns guardas no pátio e na muralha, cuja atenção fora atraída pelo grito da aia e que agora riam com as acrobacias do bobo. Os dias são longos, o sol é quente; ouçam o que diz este bobo que não mente. Com um duplo mortal no ar, aterrou aos pés do casal, rojando pelo chão e agarrando-se à saia da rapariga, cuja curiosidade se começava a sobrepor ao susto, ao contrário do pajem, que nem conseguia obrigar as suas pernas a darem um passo atrás.

 

Cinco regiões estão inquietas, o corcel já relinchou; a águia voa, o teixo arreiga, a concórdia o vento levou. Oito raios tem o sol, oito terras a águia teve; estilhaçadas, desunidas, nada juntas as reteve. Nem paz, nem amizade, nem ouro, nada; a única forma de se unirem será através da espada. Por isso ouçam, crianças, façam como vos digo; aproveitem o tempo, gozem ou riam comigo!

 

E com isto rebolou pelo chão, impulsionando-se para os seus pés com uma chicotada das pernas e colocando-se numa pose caricata de braços estendidos. A aia riu, divertida com a exibição do bobo, mas o pajem quase tremia, suando e com os olhos vidrados no jogral, cujo derradeiro sorriso rasgado e piscar de olho lhe enviaram um arrepio pela espinha acima. Com uma vénia, Dilet retirou-se, saltitando e fazendo acrobáticas rodas pela escada abaixo enquanto cantarolava uma ladainha de crianças:

 

O paladim

É um grande espadachim Faz muito chinfrim Quando abana no selim Do alazão Galadim

Que gosta de alecrim Mas não do paladim Que é um grande espadachim E faz muito chinfrim...

 

Assim que o perdeu da vista, o pajem lembrou-se de como se respirava e soltou uma longa e aliviada exalação. O seu lábio superior estava suado e as suas axilas e omoplatas estavam húmidas. A aia inclinou-se sobre o merlão e olhou para baixo, soltando uma exclamação de entendimento ao ver a goteira que se encontrava uns poucos pés abaixo. Ainda assim, fora uma peripécia arrojada, pensou a rapariga.

 

Ele é engraçado. Não temos bobos em Lennhau, sabes? A senhora Lethia não gosta deles e mandou o Cortun matar o último, porque ele a ofendeu. Mas não é isso que os bobos fazem, gozar com as pessoas para as divertir? Eu acho que fazia falta um na corte de Lennhau...

 

O pajem, no entanto, não lhe estava a prestar atenção, pois olhava para a pequena figura colorida que saltaricava pelo pátio na direcção da entrada do palácio, circundando ocasionalmente uns guardas e passando-lhes por baixo das pernas para o divertimento destes, que por vezes consistia em simples pontapés que o bobo parecia receber com todo o prazer.

 

O que tens? perguntou, tocando-lhe a testa. O rapaz despertou e fitou-a com ar amedrontado. Estás todo alagado! Anda, vamos para o palácio. Lá dentro está mais fresco. A rapariga agarrou-lhe o braço ainda tenso, puxou-o e o rapaz deixou-se arrastar. Sentes-te bem? Já deves estar aqui ao sol há muito tempo, isso não faz bem. Ainda há dias uma das minhas companheiras desmaiou, porque queria ”ganhar um bocadinho de cor” num dos solários. Já viste o disparate? Anda, vamos dar-te um bocadinho de água e vais ver como já te sentes melhor. Depois, se quiseres, posso ensinar-te a contar... mas se calhar já tens que fazer, não? Lorde Aereth não precisa de ti para alguma coisa...?

 

O rapaz ia nutando com a cabeça enquanto a aia falava, mas mal olhava para ela ao fazê-lo. A única coisa que se lembrou de fazer foi levar os seus três dedos indicador, médio e anelar à testa, um gesto reminiscente da Terceira Era, na qual os humanos frequentemente invocavam o poder do Delta para os proteger dos Filhos do Caos. A rapariga não o compreendeu, pois tratava-se de um hábito que apenas fora conservado no seio do povo e descartado por todos os outros.

 

O que foi isso? indagou, puxando-lhe o braço levemente para lhe chamar a atenção.

 

Sabendo que não lho conseguiria explicar, o pajem repetiu o gesto de forma a pedir protecção para ela também e nada mais teria dito mesmo que pudesse.

 

A noite caía tarde em Val-Oryth enquanto o sol poente tingia o céu roxo e azul de dourado com os seus derradeiros raios. Já passava das nove badaladas e contudo ainda havia luz, pois a Primavera de Tanarch tinha dias particularmente longos de alvoradas prematuras e crepúsculos tardios. Os telhados tetragonais encimados por cúpulas dos maiores edifícios da cidade recortavam o horizonte num pitoresco quadro cénico, mas a maior parte dos habitantes já estava recolhida nos seus lares e não o podia apreciar. O silêncio descia gradualmente, cortado apenas pela ocasional mãe que chamava pelos filhos, o comerciante que se despedia, o latido de um rafeiro, ou as badaladas que anunciavam o toque de recolher, seguidas pelas díspares vozes da guarda da cidade que o enfatizavam, tocando sinetas. Além disso, o único ruído era o dos cascos de quatro cavalos que se afundavam na lama, incitados pelo chicote de um cocheiro com libré verde e vermelha. Quatro cavaleiros armados escoltavam a liteira marchetada, pois dentro dela estavam os dois ilustres convidados de lorde Malagor: o príncipe Aewyre e a princesa Lhiannah, que apesar dos seus ferimentos desejara comparecer. Fora anunciada no dia anterior uma festa em honra dos dois filhos de tão ilustres casas dos reinos do Sul, e contava-se com a comparência de alguns dos mais insignes membros da nata de Val-Oryth. Habituados às repentinas vindas e inesperadas idas de lorde Malagor, fora para os convidados uma agradável surpresa constatar que o mais rígido e inflexível dos Três iria fazer uma festa na residência do meirinho, pelo que poucos haviam declinado o convite.

 

Os passos dos cavalos tornaram-se cascosos quando entraram numa rua pavimentada com toros novos. As casas nessa zona eram parecidas com as de outras partes da cidade, feitas de madeira e com inclinados telhados de quatro águas, mas eram de uma construção mais elaborada e adornadas com gravuras e ornatos. A residência do meirinho destacava-se devido ao simples facto de ser feita de pedra, um edifício vermelho com contrafortes brancos, uma balaustrada branca no topo e encimado por um andar superior com um telhado de quatro águas com telhas amarelas e janelas com frontões azuis. A entrada era ladeada por duas colunas em forma de ampulheta, com uma escadaria que levava à porta dupla encimada por um frontão de mármore ornado. O cocheiro mandou os cavalos parar, e um dos guardas desceu pelas escadas para abrir a porta aos ocupantes da liteira. Aewyre saiu primeiro, reconhecendo a vénia que o guarda lhe prestou com um curto aceno da cabeça. Um dos lados da sua cara barbeada estava marcado por quatro arranhões suturados. Como as suas roupas estavam imundas, o guerreiro decidira polir e envergar a sua couraça, cobrindo-a com uma capa vermelha comprada por intermédio de um laico do templo. De resto, mandara apenas lavar as calças e engraxar as botas, cujas camadas de lama haviam provado ser quase impossíveis de remover. Trazia a espada de Lhiannah embainhada ao cinto, pois não confiava em ninguém em Val-Oryth, nem sequer um dos Três, ao ponto de levar a espada do seu pai para um lugar público sem estar acompanhado pelos seus companheiros. Aewyre estendeu a mão e ajudou a princesa a sair.

 

O guarda foi incapaz de esconder a sua surpresa ao vê-la, coberta com uma capa e capuz castanhos e muito pouco dignos de serem envergados numa festa que teria um dos membros do Triunvirato como anfitrião. A princesa aceitou a mão do seu companheiro e apoiou-se com uma bengala na liteira antes de assentar os pés no chão, a sua face oculta pelo capuz e pelo cabelo dourado que lhe pendia livremente, sem qualquer adorno que seria de esperar de alguém do seu estatuto em tão formal ocasião. Na verdade, tanto o príncipe como a princesa mais pareciam um casal de vagabundos que ali tinham vindo com o único objectivo de se postarem à porta e aguardarem esmolas de mãos estendidas. O príncipe Aewyre ao menos mantinha um porte nobre e caminhava de peito altivo, mas a princesa encolhia-se e baixava a cabeça, como se não desejasse ser vista. Mas isso não cabia ao guarda julgar; eram os convidados de lorde Malagor e devia tratá-los com o respeito que lhes era devido, apresentáveis ou não.

 

Sejam bem-vindos, meu senhor, minha senhora saudou com nova vénia numa frase de Glottik ensaiada.

 

Aewyre deu o braço a Lhiannah, que nele se apoiou e na bengala, e os dois subiram lentamente o lanço de degraus. Os dois guardas de longas barbas que ladeavam a porta inclinaram as deferentes cabeças, embora estivessem mais bem vestidos que o régio casal. Envergavam uma túnica lamelar e cota de malha sobre um belo brial azul bordado, uma capa amarelo-clara puxada sobre o ombro esquerdo com forro vermelho e o brasão de Malagor nela retratado, e um bizarro elmo cónico com aba e um avental de cota de malha para a nuca. Perante a aproximação do nobre par, descruzaram as lanças que mantinham cruzadas à entrada, sempre com as respeitosas cabeças baixas. Um deles, contudo, não pôde evitar um olhar de relance para a cara da princesa, cujos olhos encontraram os seus. No breve instante que levou a desviar o olhar e voltar à sua rígida pose, o homem registou o sombreado semblante e os fugazes e estranhos olhos cujo branco fora visível mesmo através dos desgrenhados fios de cabelo dourado. A princesa estugou o passo, aparentemente incomodada com a atenção, e o seu companheiro agiu de acordo com o seu desejo.

 

O interior da residência do meirinho era de um luxo estonteante, comparado com o que de resto haviam visto em Val-Oryth. Edifícios de pedra eram a excepção e não a regra em Tanarch, mas a única madeira na residência era a das traves no tecto e a da mobília. A entrada dava para um corredor que ia directamente para a sala de audiências iluminada por tochas e duas grandes lareiras, cujo chão era constituído por ladrilhos axadrezados e cujas paredes apresentavam um padrão de triângulos azuis e brancos, encimados por uma cornija amarela que as separava da pedra escabrosa do resto do edifício. O tecto não era particularmente alto, e as colunas aneladas que o sustentavam contrastavam com as traves de madeira, das quais pendiam pequenos estandartes com as cores de Ul-Thoryn e Vaul-Syrith, cujos respectivos brasões estavam estendidos sobre as duas adornadas lareiras. Duas compridas mesas com coloridas toalhas bordadas percorriam a sala desde a entrada até perto do estrado no qual se encontrava a desocupada cadeira do meirinho, ambas recheadas com fragrantes acepipes. Os convivas que deles se serviam afiguravam-se aos olhos de ambos os sulistas como uma ofuscante exuberância de cores; já nas ruas fora evidente a preferência dos tanarchianos por cores fortes e vivas, mas naquela sala pareciam ter levado essa predilecção a um quase cegante extremo. Os homens vestiam coloridos cafetãos de mangas largas que lhes chegavam quase até aos tornozelos, belamente cerzidos em padrões que desafiavam a vista, espiralados, sinuosos, floreados, ornados. Todos cujo cabelo não fora ainda ameaçado pela idade tinham-no cortado em forma de tigela e a maior parte usava uma comprida barba. As mulheres vestiam blusas bordadas e alegres saias, cobriam as cabeças com xailes, os ombros com mantas ou capelos, ostentavam anéis e brincos e bijuteria variada. Assim que um criado anunciou a chegada do príncipe Aewyre Thoryn e da princesa Lhiannah Syndar, o rumorejo e o rufiar das saias cessaram de repente e todos os olhos da sala recaíram sobre os filhos das duas mais poderosas casas da defunta nação de Nolwyn. Aewyre olhou em frente e saudou todos os presentes com uma inclinação da cabeça, mas a que devia, e contudo não parecia, ser a princesa Lhiannah limitou-se a puxar o capuz para a frente e achegar-se mais ao seu companheiro. Todos retribuíram o cumprimento respeitosamente, mas não foram poucos os murmúrios e sussurros pertinentes à apresentação dos dois, especialmente à da princesa. Muitos também comentaram o pomo da espada que Aewyre cobria com a mão, ciciando aos ouvidos uns dos outros quando julgavam que não estavam a ser vistos. Fez-se um silêncio desagradável, e a princesa puxou o braço do príncipe, que se curvou ligeiramente para ouvir o que ela tinha a dizer, findo o qual acenou com a cabeça e tornou a endireitar-se, clareando a voz antes de falar.

 

Minhas senhoras, meus senhores, distintos fidalgos e fidalgas, bons homens e mulheres da bela Val-Oryth, em nome de Ul-Thoryn e Vaul-Syrith vos saudamos. A saudação foi aprovada com acenos de cabeça. A princesa Lhiannah encontra-se ferida e enferma, mas insistiu em comparecer a tão ilustre e atenciosa celebração que lorde Malagor a nós amavelmente dedicou. Pedimos a vossa compreensão para qualquer eventual indisposição da princesa. Cabeças compreensivas mexeram-se, mas nada foi dito até um homem alto e gordo se pronunciar.

 

Príncipe, princesa! disse em Glottik. Vestia um colorido cafetão com gola debruada a pele e empunhava um ceptro prateado. O símbolo de Bellex que trazia ao colar identificava-o como o meirinho. Sejam muito bem-vindos!

 

O homem saudou ambos com uma mal-asada vénia e pegou na mão da princesa com as suas para a beijar.

 

Ireis perdoar a princesa, mas falar é-lhe penoso explicou Aewyre.

 

Certamente, certamente. O que sucedeu? perguntou o homem com fingida preocupação.

 

A princesa sofreu um acidente com uma carroça que escorregou numa das vossas lamarosas ruas... explicou Aewyre com o tom mais altivo que conseguiu.

 

Imperdoável. As melhoras, princesa. Lhiannah anuiu com a encapuzada cabeça. Vinde, por favor. Comei e diverti-vos. Lorde Malagor não tarda. O par seguiu-o por entre os convivas, algo incertos quanto ao lugar a tomar devido à ausência de cadeiras.

 

Aewyre olhava em redor e não estava a gostar dos olhares dos convidados, que tentavam parecer entretidos enquanto os fitavam como dois curiosos indesejáveis e dedicavam especial atenção à espada que trazia ao cinto. Tinha a distinta impressão de que os cercavam, e o tecto baixo afigurou-se-lhe como algo opressivo e enclausurante. Um servo dirigiu-se a ambos, apresentando-lhes uma bandeja com bolinhos fritos luzentes de mel, mas antes que se pudessem servir, um criado entrou por uma das ornadas portas laterais e chamou a atenção dos presentes, sobrepondo facilmente a sua voz às dos convivas e anunciando entre várias palavras indistintas o nome de Malagor. O silêncio tornou a imperar, mas desta vez os homens levaram um joelho ao chão, e as mulheres levantaram a orla das saias em grave ”mesura. Ouviram-se passos grosseiros e ordenados vindos do corredor, aludindo à vinda de um grupo de homens, provavelmente a escolta do senhor da Torre Judicante. O príncipe e a princesa do Sul entreolharam-se, mas ninguém parecia esperar deles reacção semelhante à dos restantes convivas, pelo que se limitaram a aguardar. Os primeiros a sair da porta foram dois guardas armados à semelhança dos da entrada, mas com espadas embainhadas em vez de lanças. Eram precedidos por lorde Malagor e por uma acompanhante, que curiosamente chamou a atenção de Aewyre antes do membro do Triunvirato. Vestia uma túnica branca de mangas enfunadas e um capelo roxo, por cima dos quais usava uma espécie de avental castanho de cujas alças pendiam dois folhos azuis-claros com flores douradas, e uma saia azul-escura brocada. Exibia duas ricas pulseiras e puxava o rebelde cabelo negro para trás com um grande e ornamentado diadema semicircular de prata de cujas intersecções saía um véu de gaze que lhe ocultava a face a partir do nariz. A sua tez era muito branca, e os seus olhos felinos prenderam os de Aewyre durante breves instantes até dirigir a sua atenção para Malagor.

 

O senhor da Torre Judicante era um homem desapontadoramente baixo; apenas com o grande chapéu de pele e topo chato que trazia à cabeça conseguia ser mais alto do que a sua acompanhante. Vestia um elegante cafetão azul com intrincados brocados de ouro e prata que lhe acentuava a bojuda barriga, e um apertado capelo negro aos ombros decorado com um flamante padrão dourado. Caminhava apoiado num bastão encimado por uma balança dourada em cujos pratos estavam incrustadas duas esmeraldas e a sua longa barba grisalha escorria-lhe pelo peito abaixo, mas apesar de tudo e das suas feições incaracterísticas, era portador de uma imponência inata ou adquirida que transmitia a cada passo, e os seus olhos possuíam um brilho feroz e moderado, como um cão selvagem refreado por uma corrente de temperança que a qualquer momento podia ser solta e...

 

Foge, Aewyre! gritou uma voz masculina, e então o tempo pareceu parar momentaneamente para todos.

 

Allumno empurrou o seu protegido para trás, dissipando a ilusão de Lhiannah que mantivera e arrancou a capa que o ajudara a fazê-lo. Os convivas ficaram momentaneamente paralisados pela visão com a qual depararam, a de um homem com longos cabelos louros que se esfumavam e cujo semblante difusamente feminino dava lugar a uma expressão de determinado pânico com uma reluzente gema vermelha na testa. O mago não perdeu tempo a erguer as suas defesas através da Essência e a lançar o seu ataque na forma de dardos místicos que singraram sinuosamente na direcção de Malagor, que reconhecera como o homem que o atacara no Pilar. Os guardas à frente de Malagor estavam demasiado surpresos para esboçarem qualquer reacção em defesa do seu senhor, mas este, embora igualmente espantado, conseguiu formar um escudo essencial à sua frente para bloquear os dardos.

 

Foge! tornou Allumno a gritar sem sequer olhar para Aewyre, recitando um cântico arcano que originou gritos pela parte dos convivas, que despertaram com o clarão causado pela rajada que irradiou das suas mãos.

 

Malagor ergueu a sua bengala, cujas esmeraldas reluziram e deixaram um rasto verde no ar quando nele descreveu um arco que fez com que a rajada de Allumno explodisse num ofuscante clarão amarelo. Praticamente toda a sala se atirou ao chão nesse instante, e os guardas desembainharam as espadas quando os seus espíritos voltaram a estar presentes. Aewyre escudara os olhos instintivamente com a mão, e foi também por instinto que desembainhou a espada de Lhiannah, estranhando de imediato o balanço, a circunferência do punho e a leveza da lâmina.

 

O caos explodiu em redor.

 

As vozes arcanas de ambos os magos fizeram-se ouvir no meio da gritaria enquanto preparavam os seus feitiços, e nesse momento os copos de vidro espalhados pela mesa e nas mãos dos convivas que não os haviam deixado cair explodiram, originando mais gritos de pessoas feridas pelos estilhaços. Aewyre olhou em redor e viu que três guardas da escolta contornavam a mesa a correr, outro preparava-se para saltar sobre ela e atacar Allumno, e outros ainda vinham da porta principal. Não perdeu tempo e foi em frente para pontapear a mesa, derrubando a tábua de cima dos cavaletes que a apoiavam, despejando todo o seu conteúdo e despojando de apoio o guarda que quisera rebolar sobre ela, fazendo-o estatelar-se no chão. Os pensamentos de Aewyre interferiram momentaneamente com os seus instintos que ditavam que devia varar o guarda caído, pois, apesar da luta entre os dois magos, ainda não sabia se devia ou não usar força letal.

 

Allumno! gritou, mal se conseguindo fazer ouvir no meio da berraria enquanto circundava o mago para receber o ataque dos outros dois guardas. Coriscos faiscavam em redor, e os pêlos dos braços do guerreiro eriçaram-se, como se o ar estivesse carregado de electricidade estática.

 

O mago não pôde responder, pois estava demasiado ocupado a conjurar uma espiral de energia que voou erraticamente contra Malagor, explodindo com grande estrépito contra o seu escudo. O homem respondeu erguendo o seu bastão, de cujas refulgentes esmeraldas brotou uma rajada esverdeada. Allumno gritou algo, baixando o braço bruscamente e a gema na sua testa brilhou, mas a rajada atingiu-o perto dos pés, rebentando ladrilhos e causando a sua queda.

 

Um dos guardas avançou de espada em riste na direcção do mago, mas Aewyre pôs-se no seu caminho. A lâmina do seu adversário era parecida com a de Lhiannah, delgada e triangular, mas tinha uma base mais grossa e no seu punho cabiam duas mãos, o que lhe permitia lutar num estilo ao qual Aewyre estava mais habituado. A espada de Lhiannah era esguia e leve, difícil de empunhar com ambas as mãos, feita sobretudo para estocar, pois não era possível pôr muita força nos golpes cortantes, o que lhe dificultaria o combate contra guardas protegidos por armaduras lamelares. O seu adversário não perdeu tempo com tais considerações e levou a espada atrás com as duas mãos, tentando fender a cabeça de Aewyre com um poderoso revés. O jovem estendeu a perna direita e o tronco em frente, baixando-se e encurtando a distância e, apoiando o pomo da espada com a mão livre, perfurou o ataque e a cota de malha debaixo da axila do guarda a meio do golpe. O homem grunhiu de dor, largando a arma, e Aewyre avançou com a perna esquerda, derrubando-o com uma clangorosa bordoada com o pomo da espada na cabeça.

 

Allumno rebolou pelo chão, passando por várias pernas aflitas que corriam em redor, e apoiou-se na bengala para se levantar. O que estava o Aewyre a fazer? Não lhe dissera para...? Mas não havia tempo para pensar, não havia tempo para mais nada além de se concentrar em Malagor e nos seus feitiços. Estava a enfrentar um dos Três, um homem que provavelmente já era poderoso por direito próprio nos tempos de aprendiz de Allumno. Vendo que o seu adversário estava a meio de outro feitiço, preparou um esconjuro enquanto aprontava um ataque, um feito difícil mas essencial num combate contra tal oponente. Malagor arrojou-lhe um faiscante relâmpago, cujo estampido originou mais gritos de pânico e aflição, e Allumno proferiu a palavra final para o esconjurar, lançando de seguida uma sucessão de setas flamejantes que Malagor deflectiu. Umas coruscaram contra a parede, outra atingiu um conviva, pegando-lhe fogo à roupa, e outra ainda inflamou a toalha manchada de kashkin da mesa caída. Os cânticos místicos de ambos uniram-se num coro arcano, e as tochas, fogueiras e afins labaredas na sala avivaram-se, rugindo e apanhando alguns convidados na sua fúria. Os convivas corriam como ovelhas aflitas com lobos entre elas,, apavorados pela demonstração de poder de ambos os magos, pelos estranhos fenómenos e pelo brilho do aço. As mulheres guinchavam e puxavam as saias para correr, tropeçando e gritando por ajuda, os homens berravam pela guarda, clamando assassínio e traição.

 

Aewyre virou-se para enfrentar os guardas que haviam contornado a mesa pelo outro lado e o guarda que caíra ao tentar rebolar por cima dela. Olhou de relance para Allumno, que estava completamente absorto na sua contenda com Malagor e, sem pensar nos comos ou nos porquês, soube que o mago não podia ser interrompido e que morreria se isso acontecesse, pelo que brandiu a espada e correu ao encontro dos seus atacantes, vendo outros três pelo canto do olho que vinham da entrada. Momentos antes do embate, vieram-lhe à memória fragmentos de uma lição de Daveanorn acerca de enfrentar adversários múltiplos, e o jovem apercebeu-se do erro que por pouco não cometera, habituado como estava a arremeter contra condições desiguais ao lado dos seus companheiros.

 

”Chega-lhes de frente e morres. Espalha-os e elimina-os um a um. Vais ver como ficam que nem baratas pisadas.”

 

Travou o seu ímpeto e virou para a direita, começando a correr na direcção dos guardas que vinham da entrada principal, desviando-se de aflitos convivas pelo caminho. Os homens não tiveram tempo para estranhar a manobra, determinados como estavam em eliminar a ameaça ao seu senhor o mais rápido possível. A poucos passos do grupo que acabara de entrar, Aewyre gritou e oscilou com a espada, mas não chegou sequer a tocar nas dos guardas. O guerreiro desviou-se no seguimento do golpe e correu para a esquerda na direcção da outra mesa. Os guardas perseguiram-no, gritando e empunhando as espadas e lanças ao alto. Aewyre parou ao pé da mesa e virou-se a tempo de se desviar de uma lança arremessada que atingiu um conviva na ilharga. Sem perder tempo, pegou na toalha e puxou-a com força, despejando tudo o que tinha em cima no caminho dos que o acossavam. Dois deles escorregaram, outro contornou o empecilho de lança em riste e os restantes três aproximavam-se pelo flanco. Aewyre recebeu enganosamente o seu ataque como se quisesse fazer ali a sua derradeira resistência, orientando a ponta da espada para baixo, desviando a lançada do guarda por dentro e agarrando-a pelo cabo antes de esmagar o nariz do homem com uma cotovelada. De espada e lança na mão, o guerreiro rebolou por cima da descoberta mesa para o outro lado desta, por pouco não colidindo com uma mulher em fuga. Dois dos guardas saltaram desajeitadamente sobre a mesa, onerados pelas pesadas armaduras lamelares, e Aewyre atirou a lança contra o que permaneceu do outro lado de forma a distraí-lo enquanto dava uma cambalhota para baixo da mesa, assentando os pés no móvel e empurrando-o para trás, derrubando o guarda que ainda se encontrava em cima da mesa e desequilibrando o que passara para o outro lado. Aproveitando o ímpeto com que empurrara o móvel, Aewyre rebolou para uma posição acochada a tempo de ver o guarda que se preparava para o cravar contra o chão. O jovem surpreendeu-o, saltando em frente e enterrando a ponta da espada no seu pé, e o homem uivou de dor, deixando a arma cair e atirando-se ao chão, agarrado ao pé ferido. Allumno deflectiu um míssil crepitante que atingiu um conviva, mas que nele se dissipou, provavelmente devido aos resíduos de Entropia no seu corpo. Malagor estava a fustigar as suas protecções com uma implacável bateria de feitiços e, concentrado como estava na sua defesa, o mago começava a ter cada vez mais dificuldades em contra-atacar. O senhor da Torre Judicante era poderoso, usava a Essência com grande habilidade, e os segredos da Palavra, que tivera uns bons dez anos mais do que Aliumno para deslindar, permitiam-lhe moldar a energia do Pilar de forma mais eficaz. Duas potentes rajadas explodiram à sua frente, bafejando-lhe os cabelos para trás e obrigando-o a flectir os joelhos para não ser derrubado. Não tinha tempo para chamar o seu mestre, para lhe pedir conselhos, não podia dispensar uma mera batida de coração em qualquer coisa que não dissesse respeito imediato ao combate, pois poderia muito bem ser a sua última se o fizesse. O sucedido no Pilar estava prestes a repetir-se, com Allumno incapaz de ripostar aos fulminantes ataques do seu adversário. Determinado a que tal não tornasse a acontecer, o mago cerrou os olhos, franzindo o cenho no qual a gema brilhava com tal fulgor que parecia servir-lhe como um olho místico. Concentrou-se na revoltosa Essência à qual ambos estavam a aceder e com as suas palavras começou a moldar o seu escudo enquanto mantinha a consistência deste através do desgastante uso de pura Essência. Esperou pelo momento certo, aguentando os ataques com membros trémulos e testa luzente de suor tingido de vermelho pela gema, e quando ele chegou, inverteu o seu escudo, canalizando com a ajuda de Essência parte da energia do último feitiço do adversário contra o próprio, que estendeu as mãos em frente e gritou palavras arcanas para suster o contra-ataque que sobre ele se abateu como uma onda contra um vacilante rochedo. Os dois magos ficaram momentaneamente retidos num impasse, com uma corrente de tempestuosa e coruscante energia entre ambos que tanto um como o outro tentava, reverter contra o adversário. Allumno cerrou os dentes, tentando fitar o seu oponente através dos fios de cabelo que lhe pendiam defronte da face, e Malagor fazia o mesmo, tendo perdido o seu alto chapéu no contra-ataque de Allumno e exibindo uma enrugada calva na qual começavam a brotar pontos brilhantes. Então uma voz feminina entoou a Palavra, e Allumno foi derrubado por uma força invisível que o atingiu no flanco.

 

Linsha, não...! foi a única coisa que Malagor conseguiu gritar antes da deflagração.

 

Aewyre enfrentava os quatro guardas que sobravam quando as suas armas e armaduras e todos os objectos metálicos da sala refulgiram com um brilho verde e houve uma grande e quase cegante deflagração entre os dois magos que pareceu dar vida aos objectos, que começaram a voar em redor, atingindo os presentes indiscriminadamente. O jovem e os guardas tiveram de agarrar as espadas com força e tentaram resguardar-se dos objectos voadores enquanto cambaleavam em ligeiro desequilíbrio quando as suas armaduras foram arrastadas por uma corrente invisível. Ainda o brilho da deflagração não amainara quando todos os objectos metálicos caíram ao chão e começaram a crepitar, tremendo e formando uma teia electromagnética entre si. As armas foram similarmente afectadas, mas o efeito da surpresa já passara e o sangue corria com demasiado ardor nas veias de Aewyre e dos guardas para que mesmo tão bizarra ocorrência os detivesse. As lâminas do príncipe e de um guarda entrechocaram, estalando e chispando enquanto deslizavam uma na outra para a riposta, mas Aewyre recebeu a do adversário com um corte rente que lhe podou dois dos dedos que agarravam o punho da arma. O guarda gritou, agarrando os pequenos tocos sangrentos da mão enquanto um companheiro seu tomava a dianteira do ataque e outros dois se tentaram posicionar nos flancos do guerreiro. Aewyre optou por ceder o avanço ao adversário e recuou, batendo com as couraçadas costas contra um pilar anelado. Girando, pôs a coluna entre si e os oponentes, desafiando-os a um pequeno jogo. Dois avançaram por um lado, um pelo outro. Aewyre atacou o adversário isolado, contornando-o à espadeirada de forma a que servisse de barreira entre si e os outros dois, recuando provocadoramente na esperança de levar o homem a arriscar um ataque mais ousado, coisa que só fez quando o jovem fingiu escorregar para trás.

 

O homem investiu de imediato, tentando estocar o aparentemente desequilibrado guerreiro, mas Aewyre compensou a falta de balanço cruzando a perna atrás e descrevendo um arco para dentro com a espada, atingindo o homem em cheio no braço. Porém, o gume da lâmina de Lhiannah não conseguiu quebrar os elos da cota de malha do guarda, que apenas tropeçou em frente com a força do golpe do jovem e o ímpeto com o qual executara o seu. Aewyre agarrou-o pelas costas pelo colarinho e puxou-o para trás, servindo-se dele para se escudar do ataque de que se apercebera através da sua visão periférica, e o homem curvou-se, arfando em rouca surpresa quando a violenta estocada de um dos seus companheiros lhe atravessou as lamelas da armadura e os anéis da cota de malha, perfurando-lhe a barriga. O guerreiro empurrou-o contra o guarda, enterrando ainda mais a lâmina no ventre do homem e atrapalhando o que a empunhava para poder tratar do terceiro que ainda o ameaçava.

 

Allumno levantou-se, sacudindo a cabeça de forma a clarear a visão turva. Usara muita Essência em estado puro para poder contrariar o ataque de Malagor, e esse era um processo que exauria qualquer mago. O seu adversário também já estava de pé e testou a sua resistência com um feitiço que se dissipou nas ainda sólidas embora vacilantes defesas do mago. Allumno principiou a entoação de uma resposta, mas Malagor ergueu o seu bastão e através dele canalizou Essência numa potente rajada que enviou o mago cambaleante para trás, interrompendo o seu esconjuro e ganhando tempo para fazer um, que formou uma faiscante tenaz que grampeou a barreira essencial em volta de Allumno e começou a apertar. O mago sentiu as suas defesas racharem, cedendo ante a tensão retesada pelas palavras arcanas de Malagor, e curvou-se como se estivesse a ser sujeito a uma sufocante pressão por todos os lados. O senhor da Torre Judicante continuava a sua litania, pronunciando cada enfática palavra à vez, aumentando progressivamente de tom e com ele a pressão que exercia sobre as enfraquecidas protecções do seu oponente, que estava de tal forma ocupado a evitar ficar completamente exposto que nem reparou que Linsha cambaleava para os seus pés, tenteando a saia pela bainha do seu punhal.

 

O guarda que enfrentava Aewyre levou a espada atrás e trouxe-a para baixo num golpe lateral dirigido ao braço do jovem, que o desviou com a sua lâmina, dando uma passada em frente para penetrar na defesa do adversário. Antes que este pudesse recuar ou recolher o braço, o guerreiro agarrou-lhe o pulso com a mão esquerda, colocando-lhe o cotovelo em posição de luxação contra o seu ombro e orientando a ponta da sua espada pelo avental de cota de malha do seu elmo adentro, perfurando-lhe o pescoço ou o trapézio. O homem grunhiu, arregalando os olhos e levando a mão ao pescoço, e Aewyre trouxe a ponta da espada atrás para lhe cravar uma bordoada com o pomo no nariz, derrubando-o. O guarda que faltava acabara de arrancar a lâmina do ventre do seu companheiro e atacou Aewyre com um furioso berro, oscilando a espada à semelhança do outro guarda com a intenção de cortar o ombro do jovem, que recebeu o golpe com o lado da lâmina e deu um passo atrás para amortecer o embate. Rápido como uma cobra, Aewyre trouxe a lâmina abaixo e deslizou com o pé para a frente, espetando-lha na barriga. A ponta passou por entre duas lamelas, mas o golpe não foi suficientemente forte para quebrar os elos da cota de malha, pelo que Aewyre avançou com a outra perna, posicionando o pé atrás do calcanhar do homem ao mesmo tempo que lhe agarrava o pulso direito, empurrando-o com o peso do seu corpo e forçando-o a virar-lhe as costas e levar o joelho ao chão para não cair. O homem ainda reagiu, desferindo uma ineficaz cotovelada com o braço esquerdo na couraça do guerreiro, mas Aewyre estocou-lhe o jarrete e descartou-o, empurrando-o pelas costas com o pé. Sem se permitir sequer um instante para respirar, o guerreiro olhou em redor, ignorando os últimos convivas que fugiam porta fora e certificou-se de que todos os guardas estavam devidamente incapacitados. Um deles apoiava-se sobre a tábua caída da mesa, tentando levantar-se, e Aewyre deu um passo na sua direcção, mas um fulgor do outro lado da sala chamou-lhe a atenção e o jovem viu que Allumno estava em perigo. Malagor parecia estar a ganhar, e a rapariga que o acompanhara estava em pé e com um punhal desembainhado, aproximando-se do seu tutor. Com um surto de energia, Aewyre percorreu a sala a largos passos e, antes que a mulher se aproximasse mais de Allumno, gritou para lhe chamar a atenção. A acompanhante de Malagor virou a cara, sobressaltada. O seu ornamentado diadema com véu caíra na confusão, e guerreiro reparou que era bem mais jovem do que lhe parecera, mas a mulher não perdeu tempo e entoou a Palavra, projectando coruscos das pontas dos dedos que atingiram um surpreso Aewyre na couraça, electrizando-o e derrubando-o com o choque. Aewyre ficou atordoado no chão, mas o seu instinto obrigou-o a rebolar para o lado a tempo de se desviar dos mísseis escarlates que sucederam o primeiro ataque e que racharam os ladrilhos. O jovem ergueu-se, cambando, e soube que estava demasiado desprotegido para se dar ao luxo de um confronto prolongado com uma inesperada feiticeira, pelo que investiu em frente, gritando. A sua arremetida teve o efeito desejado, pois a mulher arregalou os olhos e balbuciou algo rapidamente, chicoteando o ar com os braços e formando dois látegos incandescentes que vergastaram o guerreiro. Aewyre cortou-os, mas os movimentos erráticos de ambos ainda lhes permitiram causticar fervilhantes relhadas nos braços e ombros do jovem antes de se dissiparem. Gritando mais alto, Aewyre oscilou o braço livre de punho cerrado e atingiu a mulher no queixo com as costas da mão, deitando-a secamente por terra e caindo com ela, cego pela dor das feridas nos seus braços.

 

Alheio ao que se passava nas suas costas e com um zumbido estático nos ouvidos, Allumno fazia uso de toda a sua vontade para resistir ao aperto de Malagor. Tinha de se libertar, mas para o fazer seria necessário sacrificar as suas defesas e ficaria exposto ao certamente letal ataque do adversário. Outra palavra de Malagor, outro tranco que fez com que o mago se curvasse, rangendo os dentes quase tão alto quanto as suas barreiras gemiam. O homem estava de braços estendidos, empunhando o bastão de luzentes esmeraldas com uma mão e curvando os dedos da outra como garras, arreganhando os dentes com o esforço para quebrar de vez as defesas do insolente mago. Não tinha tempo para um feitiço, não um que conseguisse ultrapassar as barreiras de Malagor e dar-lhe tempo para tomar a ofensiva; o homem aguardava uma mínima abertura para reduzir Allumno a pó, e dispunha de um bastão que lhe permitiria canalizar pura Essência para esse efeito. Outro tranco, e o mago cerrou os olhos de esforço. O medo começava a apoderar-se de Allumno outra vez, tal como o fizera no seu primeiro confronto no Pilar, só que desta vez não havia escapatória, não tinha como fugir, e o Aewyre... Aewyre!

 

Pensar no seu protegido avivou-lhe o sentido do dever, que por sua vez lhe inflamou a determinação. O mago abriu os olhos e retesou-se na sua posição quase acocorada com o intuito de se levantar, mas a pressão que Malagor exercia era demasiada. Tenteou a sua barreira, procurando um ponto do qual pudesse partir para um contra-ataque semelhante ao seu anterior, mas a tenaz do adversário era envolvente e ameaçava-lhe as defesas como um todo. Outro tranco, e a pressão começou a provocar-lhe ligeiras tonturas, embaciando-lhe a visão. A aflição e a sensação de impotência por pouco não afogaram a determinação de Allumno, que no seu momento de necessidade pensou no seu mestre e se lembrou de uma coisa. Não trouxera o bastão, mas a gema que tinha incrustada na testa era também ela uma conduta de Essência. Como a sua visão estava fosca, Allumno levou os trémulos dedos indicador e médio à suada testa, concentrando-se e rezando para que a iminente vitória tivesse feito com que Malagor baixasse as suas defesas. Houve outro tranco, mas o mago ignorou-o, e a gema começou a brilhar com maior intensidade. Estava naquele momento a canalizar Essência para duas fontes diferentes, e os custos que tal feito arrecadava para o seu corpo já se começavam a fazer sentir, mas Allumno também os ignorou. A gema fulgurou ao ponto de iluminar a redoma transparente que o rodeava e que Malagor tentava quebrar, e o mago gritou, apontando para o adversário com ambos os dedos e soltando da gema um fino feixe de pura Essência concentrada que atravessou as suas defesas, as de Malagor e o ombro deste. Malagor gritou, cambando para o lado e levando a mão ao buraco cauterizado no ombro, desmantelando as barreiras que o protegiam e a tenaz que envolvia o seu adversário. Com um derradeiro esforço, Allumno gritou palavras arcanas e arrojou com dois bruscos gestos das mãos duas esferas ardentes contra Malagor que nele deflagraram, impelindo-o pelo ar, ardendo como uma tocha humana. O mago caiu de joelhos ao mesmo tempo que o senhor da Torre Judicante tombava no chão, contorcendo-se e rebolando e berrando em ardente agonia, tentando arrancar as roupas em chamas. A dor no seu joelho obrigou Allumno a apoiar-se com as trémulas mãos no chão, mas antes que conseguisse levantar a cabeça para procurar Aewyre, ouviu os passos exaltados e o grito de um guarda com a cara, a barba e a gola manchadas com o sangue do seu nariz partido que corria na sua direcção, empunhando uma espada com a qual tencionava matar o mago. Allumno não tinha forças para nada mais além de olhar o seu executor de frente, mas o corpo de Aewyre surgiu no seu campo de visão, abatendo-se sobre o homem e caindo com ele ao chão. O guerreiro agarrou o pulso do surpreso guarda e assentou-lhe quatro socos em rápida sucessão, fazendo-o cuspir dentes sangrentos com o último. Largou o inconsciente homem e olhou uma vez mais em redor, constatando a ausência de ameaças imediatas e permitindo-se a si mesmo parar, dirigindo o olhar ao seu tutor.

 

Allumno... ofegou estás bem?

 

Não... admitiu o mago, mas vou sobreviver.

 

Os dois ficaram então calados, recuperando o fôlego e permitindo aos seus corações amainarem. O cenário da sala era de total destruição. Os estranhos fenómenos ocorridos haviam marcado as paredes, chamuscado os pilares com tochas e as lareiras, espalhado o serviço de louça pelo chão coberto de cacos de vidro e barro. As mesas estavam viradas, uma toalha e um cafetão descartado ardiam, os guardas que Aewyre ferira gemiam e arrastavam-se pelo chão, embora dois estivessem em condições de se levantarem, e o corpo flamejante de Malagor já parara de se mexer.

 

Deuses, Allumno, o que foi isto tudo? Aquele era o Malagor! exclamou Aewyre, apontando um incrédulo dedo na direcção do cadáver.

 

Foi ele... que me atacou no Pilar... explicou o mago, embora o próprio ainda não se tivesse apercebido inteiramente da gravidade do que fizera. E a rapariga... foi ela que nos espiou... oh, Acquon me cure... Allumno estava visivelmente exausto e não conseguiu falar mais.

 

Aewyre apoiou a mão no joelho, fazendo uma careta devido à dor nos braços, e ergueu-se, observando o que o rodeava, estupidificado. A espada de Lhiannah estava caída no chão e o guerreiro foi buscá-la, pisando pratos e talheres pelo caminho. Passos vindos do corredor apressaram o seu gesto, e o guerreiro empunhou a arma, pronto para enfrentar quem quer que ameaçasse o seu tutor. Uma patrulha de oito homens com briais azuis e vermelhos sobre cotas de malha entraram de rompante pela sala, espadas desembainhadas e escudos empunhados. O símbolo desenhado nos escudos identificava-os como laicos de Bellex, mas Aewyre não baixou a guarda.

 

Derreei, em nome de Bellex! ordenou o homem que tomava a dianteira.

 

Aewyre estava incerto e olhou para Allumno, que fitava a patrulha de forma incerta e ofegante de mãos apoiadas no chão.

 

Escocharam lorde Malagor! acusou um guarda que segurava o jarrete ferido, apontando para o cadáver cuja gordura começava a crepitar de forma enjoativa, libertando um nauseabundo odor rançoso. Lorde Malagor está morto! Sicários! Tredos!

 

Os laicos olhavam chocados para o corpo em chamas de um dos Três e alguns contemplavam a destruição em redor, visivelmente perturbados.

 

Em nome de Bellex, derreei, toste! instou o que devia ser o comandante, dando um passo em frente que os restantes emularam, empunhando as espadas. Lâmina deposta!

 

Aewyre continuava hesitante, a sua noção de legítima autoridade algo abalada pelo confronto com um membro do Triunvirato e os seus guardas.

 

Tate! O outro faz artemages! advertiu o guarda da axila ferida, apontando para Allumno.

 

Os laicos levaram o aviso a sério e avançaram mais depressa, afoitados pelo cada vez mais belicoso tom do seu comandante.

 

Aewyre... chamou Allumno fracamente. Baixa a espada. O seu protegido fitou-o e aos laicos alternadamente, ignorando as palavras do comandante, mas sentindo que teria de tomar uma decisão depressa. Baixa-a, não te inculpes... tu também... fui eu que o matei...

 

O guerreiro ainda não tomara uma decisão quando quatro dos fiéis de Bellex o começaram a cercar, mas nesse momento sentiu que o mais acertado era de facto baixar a sua espada, e assim fez. Allumno baixou a cabeça, aliviado, e os homens caíram sobre Aewyre, tirando-lhe a espada, agarrando-lhe os braços e torcendo-lhos atrás das costas enquanto outro lhe agrilhoava os pulsos com pesadas grilhetas de ferro. Os restantes três ocuparam-se de Allumno, que não ofereceu qualquer resistência quando um laico o agarrou pelos pulsos, puxando-lhos para trás enquanto lhe empurrava a nuca para a frente com um pé. Os outros dois agrilhoaram-lhe as mãos e enfiaram-lhe um pedaço de tecido sujo na boca, amordaçando-o ainda com um pano.

 

Aewyre e Allumno foram bruscamente arrastados para o comandante, um homem de barba e bigode grisalhos que os examinou dos pés à cabeça, olhando uma vez mais em redor para a destruição e para os feridos, e pousando os olhos na pira funerária que era o corpo do senhor da Torre Judicante. Tinha ar de veterano, e via-se nos seus vincados olhos azuis que nunca contemplara tal cena.

 

Vão ver a mulher e os guardas, e expunguem a flama. Tapem lorde Malagor com um mantel. Virou a sua atenção para os dois prisioneiros. Estais detentos pelo occídio de lorde Malagor. Temei o punho e orei para serdes dignos da palma.

 

Aronova, uma laica de Acquon, caminhava a passos lentos de cabeça baixa e braços cruzados pela nave do templo, ladeada por duas séries de colunas de ondulantes capitéis. Terminara mais um dia de trabalho nas Alas e, embora ainda restasse a vigília nocturna pelos doentes, na qual participaria num turno naquela noite, a rapariga queria aproveitar o tempo de descanso antes da velada para orar em paz e contemplação. O jantar já fora servido, e a maior parte do corpo sacerdotal do templo já se retirara para os seus aposentos ou para o oratório, mas Aronova” sempre preferira o sossego e a soledade dos corredores da nave lateral, nos quais os ecos dos seus suaves passos tinham um efeito calmante na rapariga, que era por natureza nervosa e agitada. A sua compaixão fora desde sempre a principal motivação para ter escolhido servir Acquon, mas tratar dos enfermos todos os dias, expondo-se diariamente a doses massivas de miséria e desgraça humana era taxativo para os seus frágeis nervos, razão pela qual não prescindia dos seus relaxantes passeios nocturnos quando o templo adormecia.

 

Absorta nas suas silentes orações, Aronova não reparou numa silhueta sentada e encostada a uma das colunas à sua esquerda, parcamente iluminada pelas tochas e entrecortada pelas sombras das colunas às quais estas estavam afixadas. Um ruído raspante chamou-lhe a atenção, contudo, e a rapariga deteve-se, olhando em redor e acabando por avistar a silhueta com o bruxulear da chama de uma tocha. Deu uns passos em frente para a ver melhor e fitou-a durante alguns instantes, estranhando a posição na qual estava sentada, com os braços apoiados nos joelhos e a cabeça encapuzada descaída para a frente. A cor branca da toga identificava-a como pertencendo aos laicos.

 

Boas noites... saudou Aronova, sem saber se se tratava de um irmão ou de uma irmã.

 

Não houve resposta.

 

Aronova avançou hesitantemente, apoiando a mão na fria coluna à qual o vulto estava encostado e puxando o capuz para trás. Era uma pálida rapariga de cabelos escuros presos numa trança com uma fita branca à testa e gentis olhos azuis que pareciam sempre tristes. Os restantes laicos das Alas conheciam-na como uma pessoa prestável e carinhosa, sempre pronta a ajudar mesmo quando essa ajuda não lhe era requisitada, daí que frequentemente se metesse em mais trabalhos além dos que lhe eram impostos, em detrimento dos seus nervos. Mas Aronova não o podia evitar, e sentiu que aquela pessoa precisava de uma voz amiga, pelo que se aproximou dela e se acocorou a seu lado, estendendo a mão para lhe tocar o braço.

 

Irmão... irmã, o que... ia perguntar, quando sentiu algo quente e molhado nos dedos que ainda tocavam a coluna. Aronova estranhou a sensação e olhou para os seus dedos, cujas pontas estavam escuras e húmidas. Esquecendo o vulto ao seu lado por momentos, os seus olhos dirigiram-se instintivamente para cima, e a rapariga sufocou, arregalando-os ao ver o que parecia ser uma mão que pendia do espaço sobre o telhado da nave lateral. Antes que algum som lhe pudesse sair da estrangulada garganta, dedos grosseiros de unhas afiadas fecharam-se sobre a sua boca, puxando-a para trás da coluna. Os movimentos bruscos do vulto libertaram um odor cediço e estercoral, e a nuca de Aronova foi pressionada contra um peito coberto de couro fervido. Ainda mal se apercebera do que acabara de acontecer quando algo frio e pontudo lhe picou a garganta ameaçadoramente, obrigando-a a cessar todo e qualquer movimento antes de sequer ter começado a estrebuchar.

 

Luta como o teu amigo e morres disse-lhe uma voz áspera e ciciante que parecia sair através de dentes afiados. Ajuda-nos e vives.

 

Aronova mal respirava, o seu coração parecia prestes a explodir-lhe para fora do peito, bombeando-lhe as veias a um ritmo alucinante. Outros vultos surgiram, descendo como aranhas das colunas a seus lados. Algo correento se encostou à pele macia da sua cara, provavelmente a face do seu captor, e o seu hálito quente bafejou-lhe o pescoço.

 

Leva-nos ao Flagício.

 

Os companheiros estavam reunidos em volta da cama de Lhiannah, observando atentamente o rito que a rechonchuda sacerdotisa de Acquon executava à luz das candeias que ardiam à mesa-de-cabeceira e na parede. A mulher estava sentada sobre o leito e ao lado da desperta princesa, que mantinha os olhos fechados a mando da sacerdotisa, ela própria de pálpebras cerradas. Tinha as sapudas mãos de dedos curtos sobre o epigastro de Lhiannah, pressionando-lho ligeiramente mas com firmeza debaixo dos seios, acompanhando as regulares subidas e descidas da sua caixa toráxica. A pequena boca da mulher recitava em voz baixa uma prece em Leochlan ao deus da medicina, da qual os companheiros apenas conseguiam perceber certos trechos nos quais rogava a Acquon que sarasse os ossos e curasse as feridas da princesa. Antes de iniciar o ritual, a sacerdotisa ministrara os ferimentos da arinnir através de meios mais mundanos com ervas, unguentos e tinturas, mas a bendição do seu deus apressaria todo o processo da recuperação, e Worick não olhara a despesas para exigir uma.

 

O que é que a gorda está para ali a fazer? Se a Lhiannah melhora com cantigas, também posso ser eu a fazê-lo sem ter de pagar por isso resmungou o thuragar.

 

O que aconteceu em Vau do Caar foi uma excepção, Worick explicou Quenestil, uma bênção directa de Acquon. Algo que se faz por merecer. Este é só um rito de cura.

 

O thuragar não se mostrou satisfeito pela explicação que já antes ouvira da boca de Allumno, mas cruzou os resignados braços e resmoneou sozinho. Pelo menos Lhiannah parecia estar a gostar, julgando pela sua expressão de paz e alívio, e a verdade era que em três dias a sua protegida parecia ter melhorado o equivalente a uma semana de cama. Dos seus inchaços já só sobravam manchas amareladas, os cortes na cara e nos lábios estavam cobertos por sadias crostas e mesmo com o não mais inchado maxilar ainda cingido já conseguia articular algumas palavras. As costelas ainda lhe tornavam a respiração algo custosa e continuava a ouvir muito mal do ouvido esquerdo, mas comparando o seu presente estado de espírito com o de dois dias atrás, Lhiannah estava de facto bem melhor, e todos os físicos que Worick encontrara ao longo da sua já consideravelmente longa vida sempre lhe haviam dito que um corpo provido de uma alma alentosa sarava duas vezes mais depressa. Se as cantigas da sacerdotisa tinham pelo menos esse efeito, então não eram uma completa perda de tempo e dinheiro, pensou o thuragar.

 

A rotunda mulher entoou uma última prece e abriu os olhos miúdos, suspirando ao tirar as mãos de cima do epigastro da arinnír, que abriu os seus mais lentamente, como se estivesse a despertar de um agradável sonho. Presenteando Lhiannah com um sorriso apertado entre as suas anchas bochechas, a sacerdotisa deu umas palmadinhas reconfortantes na mão da princesa, levantou-se e alisou a saia da sua toga azul-escura com estrias brancas.

 

E então? inquiriu Worick.

 

A menina vai ressarcir-se afirmou convictamente.

 

Ressarcir-se, é? O thuragar deduziu que era uma coisa boa, mas não se esquecera do prognóstico que a mulher fizera antes de ser paga para levar a cabo os ritos. Está bem. Então e o ouvido? perguntou, indicando a sua orelha.

 

A mulher encolheu os rechonchudos ombros, ajustando o toucado que lhe cobria a cabeça e o pescoço.

 

Temos de esperar. Axes na outiva são implexas...

 

Não percebi nada, mas parece-me que não sabe. Adeus, então convidou-a Worick a sair.

 

Alheia ao mau humor do thuragar, a mulher sorriu uma vez mais a Lhiannah, dirigindo aos restantes companheiros uma saudação, estendendo-lhes as mãos em forma de concha e abrindo os braços de modo a inclui-los a todos.

 

Que a ânfora de Acquon boje sobre vós disse antes de sair porta fora.

 

E que o martelo de Tharobar te amasse esse rabo gordo... retorquiu Worick, virando-se para Lhiannah. A arinnir sorria de lábios fechados e agarrava a pequena mão do burrik, que lhe afagava os cabelos com a outra, e o thuragar deu-se por satisfeito com essa pequena demonstração de bem-estar.

 

Como é que te sentes? perguntou Slayra do lado direito da cama, apoiando a mão no recosto.

 

A princesa virou a cara para a eahanoir, que lhe sorriu encorajadoramente. Lhiannah retribuiu tanto quanto lhe era possível com o maxilar cingido.

 

Melhor respondeu entre dentes numa voz ainda arrastada e débil.

 

A sacerdotisa bamboleava pela nave lateral que ia dar à enfermaria, cantarolando guturalmente. A pobre rapariga estava a recuperar bastante bem, tendo em conta a extensão dos seus ferimentos, mas não esperava que a sua audição esquerda melhorasse. Já vira esse tipo de ferimentos antes, pancadas desferidas perto de ou sobre a orelha que resultavam em ensurdecimento parcial, e a rapariga fora bem mais castigada que muitas vítimas de espancamento que assistira, que não haviam sido poucas. Podia mesmo considerar-se afortunada pelo simples facto de ainda conseguir ouvir de todo do ouvido esquerdo. A sacerdotisa abanou a triste cabeça e não pela primeira vez desejou que os serviços de Acquon não fossem necessários. Fome, doença, acidentes... já havia desgraça e miséria suficientes no mundo para manter os fiéis de Acquon ocupados todos os dias, não precisavam da ”ajuda” adicional dos homens. Malditos Gilgethan e Kispryn, cujos dogmas encorajavam e incitavam os seus seguidores a actos de perigo nos quais acabavam sempre por se ferir ou a terceiros...

 

Suspirando de tristeza, e insatisfação, e cansaço, a rotunda mulher continuou o seu resignado caminho, tencionando passar uma última vez pela enfermaria antes de se ir deitar para o seu bem merecido repouso. Já era tarde, e as únicas pessoas que ainda caminhavam pelo templo eram os laicos que cumpriam recados de última hora ou os que haviam sido designados para a vigília nocturna, razão pela qual estranhou ver dois vultos com togas brancas ao pé de uma coluna, um dos quais encostava o outro ao pilar. A mulher deteve-se momentaneamente, mas cedo se apercebeu dos subtis movimentos e sons emudecidos e corou, levando a mão à boca e afastando-se. Considerou por momentos voltar atrás para repreender o casal, mas acabou por dar consigo a rir para dentro e a abanar a cabeça, achando que os jovens tinham direito a dar largas ao seu afecto, mesmo que fosse na consagrada casa de Acquon. Decerto o seu deus não se importaria...

 

Só que não era afecto o que arregalava os lacrimejantes olhos da rapariga encostada ao pilar, mas sim a bruxuleante luz que iluminava os dentes afiados debaixo do capuz de quem lhe encostava a refulgente lâmina à garganta.

 

Aquele convite não me inspirou confiança nenhuma disse Quenestil em voz baixa a Worick enquanto ambos olhavam de braços cruzados para Lhiannah, que estava a ser amimada por Slayra e Taislin. Eu devia ter ido à procura dos Corações Quebrados na mesma.

 

O thuragar coçou a barba, franzindo os lábios para o lado. O facto de Lhiannah se sentir melhor animara a sua disposição ao ponto de falar.

 

Entonces, meninos...? começou, mas a voz morreu-lhe na garganta quando os laicos se viraram na sua direcção.

 

Uma rapariga com ar aflito chorava, a sua boca tapada por uma grotesca mão acastanhada de quatro longos dedos providos de garras. A outra ameaçava-lhe a garganta com a ponta de uma lâmina curva, cujo indicador se ergueu defronte da cara encapuzada do indivíduo, dando a entender que desejava silêncio da parte da sacerdotisa. O medo, contudo, apoderou-se da mulher que, soltando um ruidoso vagido, lhes virou as costas e começou a correr. Antes que pudesse chamar ajuda, o vulto que ameaçava a laica chiou, olhando para cima, e outro saltou das sombras da arqueada abóbada, planando na direcção da gorda sacerdotisa. Em pleno ar, o vulto desembainhou duas curtas lâminas curvas e passou-as pela anafada garganta da mulher, dando uma cambalhota por cima da sua cabeça e aterrando acocorado a seus pés, fazendo com que tropeçasse no seu corpo e se estatelasse no chão, chapejando as lajes do templo com o seu sangue. A sacerdotisa ainda se contorceu no chão, agarrada à garganta, tentando impedir a sua vida de lhe escorrer para fora do corpo, e virou-se de barriga para cima, boca aberta e olhos arregalados. Um brilho e um vulto indistinto e duas coisas frias enterraram-se no seu coração.

 

A cabeça de Quenestil chicoteou para o lado ao ouvir o angustiado vagido no corredor. Com os reflexos aguçados e as reacções condicionadas pelas provações pelas quais já haviam passado juntos, os companheiros correram a pegar nas armas e fizeram uma rápida avaliação da situação.

 

Slayra, Taislin, fiquem aqui! vociferou Worick, empunhando o martelo com ambas as mãos ao correr para a porta.

 

Quenestil frechou o arco sem se deter com considerações e foi atrás do thuragar, que abriu a porta bruscamente e saltou para o exterior, pronto a rachar a cabeça a qualquer coisa que pudesse emperigar a sua protegida, mas a cena com a qual deparou fê-lo parar momentaneamente. Um vulto de toga branca tinha uma espécie de foice encostada à garganta de uma laica, e outro puxava as suas do peito da sacerdotisa, que jazia no chão numa poça do seu próprio sangue. A criatura chiou, empunhando as sangrentas lâminas, e de início Worick não a reconheceu, mas não lhe tardaram a saltar à vista as grandes orelhas foliadas, os pequenos olhos ferozes, o nariz achatado constituído por pouco mais além de duas alongadas fossas nasais das quais se estendia uma linha nodosa até ao topo da cabeça acuminada, a boca de dentes afiados e as membranas entre os braços e a cintura. Envergava uma parcimoniosa armadura de couro fervido e empunhava com perícia assassina as suas duas estranhas lâminas em forma de foices com gume invertido.

 

Pedras me partam, nycatalos! Dispara! berrou o thuragar e, antes que as criaturas pudessem reagir, Quenestil fez pontaria e, após um breve instante de hesitação, soltou a flecha contra o vulto que ameaçava a rapariga, atingindo-o no ombro do braço que empunhava a lâmina. A criatura chiou, agarrando o membro ferido, deixando a foice cair e libertando a sua prisioneira, que correu tropegamente na direcção de Worick, gemendo de aliviado desespero.

 

Lá para dentro, cachopa! Chega-lhes, eahan, eles não estão aqui para brincar! gritou Worick, empurrando a rapariga para dentro do quarto e atacando de martelo erguido o vulto que Quenestil ferira.

 

Mas nesse momento o efeito de surpresa desapareceu e os nycatalos reagiram.

 

A rapariga tropeçou pelo quarto adentro, acabando por cair nos braços de Slayra, que já desembainhara estilete e quebra-espadas e que por pouco não os usou nela.

 

Valha-me, senhora, valha-me! rogou-lhe a laica com voz soluçante e olhos marejados de lágrimas.

 

Taislin tinha as lâminas de quatro punhais entre os dedos, olhando para a porta como um gato à espera de que um rato saísse do buraco. Lhiannah puxou o lençol e pôs um pé fora da cama, mas as suas costelas não tardaram a queixar-se do brusco movimento, fazendo a princesa contorcer-se de dor. Do outro lado da porta vinham os ruídos de uma luta.

 

O vulto ferido arrancou a seta do ombro, chiando quando as arestas buriladas lhe rasgaram a carne, e pulou para trás, afastando-se da oscilante martelada de Worick. O salto foi curto, mas a criatura parecia deslizar pelo ar enquanto se livrava da embaraçosa toga, pousando atrás da que matara a sacerdotisa. O thuragar rosnou e investiu contra ambos, mas não viu o nycataal pendurado no tecto que lhe saltou em cima, aterrando sobre Worick e encalhando ambas as lâminas curvas na cota de malha na garganta do thuragar. Quenestil largou o arco e desembainhou o facalhão, olhando para cima e vendo outra das criaturas pendurada de cabeça para baixo impulsionar-se na sua direcção de foices nas mãos. O eahan baixou-se e sentiu o chofre das lâminas passarem-lhe a curta distância da cabeça, atirando-se de costas contra a parede de forma a não cair e vendo a pirueta com a qual o nycataal aterrou sobre os seus pés. O que caíra sobre Worick saltou de cima do thuragar a tempo de evitar o espeto do seu martelo e planou na direcção do shura, foices a cintilarem à luz das tochas; Quenestil atirou-se ao chão, deixando-as rasparem contra a parede.

 

Worick viu-se confrontado por dois nycatalos, um dos quais com o braço ferido e ambos sedentos do seu sangue. O que matara a sacerdotisa investiu, empunhando as suas estranhas foices de forma reversa, e Worick estocou em frente com o espeto do martelo. O nycataal esquivou-se dele e tentou atacar pelo flanco ao mesmo tempo que o seu companheiro saltava de lado para a parede de modo a impulsionar-se para cima do thuragar, mas o velho guerreiro trouxe a cabeça do martelo bruscamente atrás, agredindo o seu adversário com a ponta do cabo, e girou em si para desferir um esmagador altabaixo ao outro, que se encontrava em pleno ar e que apenas com uma violenta torção do ágil corpo conseguiu evitar o golpe, dando uma cambalhota por cima de Worick e saltando da parede para o chão. Os nycatalos eram muito rápidos e lestos devido aos seus ossos ocos, mas as suas habilidades eram-lhes mais úteis em espaços abertos, e o thuragar sabia que teria de aproveitar o espaço confinado do corredor, embora isso também fosse um empecilho para o uso do seu martelo. O nycataal que concutira tornou a atacar enquanto o seu companheiro procurava um ponto fraco no arnês do adversário, desta vez rilhando a cota de malha entre duas placas do braço do thuragar, chiando da sangrenta boca escancarada.

 

Quenestil rebolou pelo chão e, assim que se ergueu, teve de se defender de uma série de rodopiantes golpes do primeiro nycataal que o atacara, desviando-se deles e deflectindo os que podia com o facalhão, tentando ainda manter o outro nycataal debaixo do canto do olho. Uma das estocadas foi longa, e o shura julgou por uma fracção de instante que iria conseguir agarrar o delgado braço do adversário para o desarmar, mas este torceu o pulso e puxou a lâmina para trás, passando-a pela palma da mão do eahan. Antes que Quenestil tivesse sequer recolhido a mão ferida, o nycataal lambeu a outra lâmina e ainda lhe abriu um abrasante golpe no antebraço com estonteante rapidez. Com o sangue a arder nas pugnaces chamas do combate, o eahan mal sentiu a dor e desferiu um corte oblíquo para afastar a criatura, mas assim que esta lhe fez a vontade, a outra atacou. Quenestil viu-se forçado a agarrar-lhe os pulsos, deixando-se cair para trás e assentando os pés no ventre do nycataal, aproveitando o impulso deste para o projectar para trás e para se acocorar com uma cambalhota, pronto para a inevitável investida do segundo. Porém, o nycataal que o ferira não o atacou e preferiu golpear a tocha ao seu lado com a sua foice, arrancando o archote que nela ardia.

 

Não os deixes, eles conseguem ver no escuro! avisou Worick assim que se apercebeu da estratégia dos adversários.

 

O thuragar oscilava o martelo, mantendo os dois nycatalos à distância e tentando pressioná-los de forma a impedi-los de o atacarem ao mesmo tempo. Já tivera experiências anteriores com as criaturas em emboscadas nocturnas nos seus tempos de general, e sabia bem o quão perigosas eram. Desferiu um golpe lateral que obrigou o nycataal à sua direita a saltar para trás e o outro a baixar-se, evitando a cabeça do martelo que lascou uma das pedras da parede. O que se baixara investiu contra o flanco desprotegido de Worick, mas fora essa a intenção do thuragar, que se defendeu do golpe com a sua manopla e trouxe o martelo abaixo, deixando o cabo deslizar pela sua mão até encalhar no pomo, aumentando o alcance do golpe. O nycataal chiou, alarmado, e foi forçado a deixar-se cair em frente para evitar o esmagador golpe, que rachou as lajes do chão. Antes que se pudesse levantar, Worick pisoteou-lhe a perna, cujo frágil osso oco estalou, e a criatura guinchou em agonia. O outro nycataal saltou a acudir o seu companheiro, escancarando a boca e soltando um guincho inaudível para os ouvidos de Quenestil ou Worick, mas que de alguma forma afectou o equilíbrio e o balanço do thuragar, que cambaleou antes que pudesse desferir o derradeiro golpe no adversário caído. O nycataal aproveitou-se do momento de instabilidade, e Worick grunhiu de dor quando se tentou desviar da rutilante foice e um afiado gume lhe cortou o lábio superior, riscando-lhe os dentes.

 

Taislin deu um passo na direcção da porta, pronto a crivar de punhais a primeira coisa que reconhecesse como ameaça para os seus amigos.

 

Taislin, não! disse Slayra, tentando desenvencilhar-se da aterrada rapariga que ainda estava abraçada a ela. Nós não podemos deixar a Lhiannah sozinha aqui!

 

O burrik parecia dividido, olhando alternadamente para a porta e para a princesa. Lhiannah segurava as costelas, que lhe ardiam por ter tentado sair da cama, e todo o seu corpo se queixava do seu indevidamente brusco movimento. Nenhum dos três reparou na silhueta que surgiu detrás do vitral da janela do quarto.

 

Quenestil debatia-se a custo contra os dois nycatalos, cujas rutilantes foices o obrigavam a uma constante série de bloqueios, desvios e esquivas, sobretudo as últimas. Não iria conseguir manter tal ritmo durante muito tempo, pois os seus adversários eram dois e eram mais rápidos. Pelos vislumbres que captava de Worick entre os golpes, o thuragar também estava a ter dificuldades e não poderia ajudá-lo. Precisava de alguma vantagem, pois o seu facalhão não era maior que as quatro foices dos nycatalos, que pareciam estar em todo o lado e vir de todas as direcções, daí que a sua primeira reacção ao passar por uma tocha foi arrancá-la da sua tocheira, empunhando-a com a mão esquerda. Os nycatalos demonstraram desagrado perante a chama, mas os seus ataques não amainaram, e foices choveram sobre a lâmina do facalhão e a tocha.

 

Worick cambaleou, levando a mão à sangrenta boca e erguendo o braço que empunhava o martelo para se resguardar dos golpes do nycataal, que lhe retiniam furiosamente contra a manopla. Os seus dentes estalavam de dor, e o seu lábio cedo lhe molhou os dedos acerados de vermelho, deixando-lhe um sabor férreo na boca. O thuragar forçou-se a recuperar a compostura, rilhando os dentes riscados e grunhindo de raiva ao baixar a cabeça quando uma foice lhe bateu no elmo. Golpeou cegamente com o martelo para afastar o nycataal, mas embora estivesse caído no chão com a perna partida, o outro enganchou o tornozelo de Worick com a foice e desequilibrou-o, conseguindo uma abertura para o ataque do seu companheiro, que se abateu sobre o adversário com abandono. Worick aparou os golpes com o cabo do martelo, mas não conseguiu compensar a falta de balanço e caiu de costas, convidando um novo ataque pela parte do nycataal, que, no entanto, se limitou a saltar por cima do thuragar caído, desviando a sua atenção do seu companheiro que, apoiando as mãos no chão, se impulsionou para o ar, dando uma cambalhota e deixando-se cair de foice erguida sobre Worick, chiando pela sua morte. Apenas os reflexos temperados pelos anos de experiência do thuragar lhe permitiram erguer o seu martelo a tempo sobre a barriga, apresentando o espeto da arma ao nycataal, que tarde demais se tentou desviar da sua trajectória, caindo com o flanco esguio sobre o espinho. Mortalmente ferido, o nycataal guinchou agudamente, e Worick deixou o martelo cair para o lado enquanto a criatura crispava os longos dedos no cabo, tentando desesperadamente desenterrar o ardente espeto das suas vísceras. O outro nycataal pulou e atacou o thuragar enquanto este estava desarmado.

 

A rapariga gritou quando o vitral da pequena janela se estilhaçou e um vulto a atravessou, mergulhando pelo quarto adentro. Com os músculos tensos como arames, Taislin virou-se de imediato na direcção do ruído e arremessou um dos seus pequenos punhais, que tiniu contra a parede enquanto o vulto aterrava com uma chuva de estilhaços numa posição acochada no chão. O nycataal avaliou a situação rapidamente, e a sua cabeça virou-se bruscamente para Lhiannah, chiando. Taislin arremessou os três restantes punhais, e a criatura foi forçada a devolver-lhe a sua atenção, desviando-se deles com uma pirueta lateral mas ainda assim incapaz de evitar que um lhe raspasse a perna. Slayra empurrou a rapariga e avançou contra o nycataal, pernas flectidas e estilete e quebra-espadas em riste. O coração da eahanoir bombeou com mais força ainda, parecendo acalorar-lhe o ventre como aviso, mas Slayra ignorou-o. O nycataal pulou antes que a eahanna o conseguisse interceptar e planou na direcção de Lhiannah, levando as foices atrás. A princesa praticamente saltou para fora da cama, arrastando o lençol atrás de si com uma perna, e as lâminas da criatura afundaram-se no colchão. A criatura chiou de frustração e esfarrapou-o ao arrancar as lâminas, abrindo feridas das quais jorraram penas. O chio de protesto transformou-se num guincho de dor quando outro punhal de Taislin lhe lacerou o ombro. Slayra então atacou, passando por cima de Lhiannah e estocando em frente, mas o nycataal evitou o golpe com um salto mortal por cima da eahanoir, cuja cabeça ainda tentou cortar com um golpe de foice que a sua adversária por pouco não conseguiu aparar com o quebra-espadas. Lhiannah viu os pés providos de garras da criatura aterrarem perto da sua cabeça, mas Slayra girou em si antes que esta a pudesse atacar, obrigando-a a mexer as foices para evitar as dardejantes estocadas do estilete e os cortes traiçoeiros do quebra-espadas.

 

Quenestil ouviu os gritos vindos do quarto e foi acometido de um desesperado furor, mas antes que se abatesse sobre os nycatalos, sentiu o chão escapar-se-lhe debaixo dos pés quando uma das criaturas escancarou a boca, guinchando em aparente silêncio. Espanejou o ar com a tocha por reflexo para manter os inimigos afastados enquanto cambaleava para trás, tentando recuperar o equilíbrio. As suas costas encontraram a parede, que lhe ofereceu necessitado amparo, mas os dois nycatalos lamberam as foices e atacaram, decididos a acabarem a luta ali mesmo. O eahan descreveu um semicírculo à sua frente com a tocha, desviando os golpes de ambos e estocando cegamente, rosnando de triunfo ao sentir a lâmina do facalhão provar a carne de um dos nycatalos. A ponta de uma foice puncionou-lhe o ombro que empunhava o facalhão, ardendo como o primeiro golpe que recebera, mas o shura ignorou-a e persistiu no seu ataque ao nycataal ferido, enxotando o outro com a tocha. Quenestil correu em frente, esmagando a criatura contra a parede e concutindo-a com a tocha, mas antes que pudesse arrancar a lâmina para tornar a golpear o nycataal, ouviu o chio do outro atrás de si. Trouxe a tocha atrás a tempo de bloquear duas foiçadas, mas a momentânea distracção permitiu ao nycataal encurralado agarrar o pulso do shura de forma a retirar a lâmina da sua carne, torcer-lhe o braço e agarrá-lo por trás, puxando-o para si. Dedos grosseiros cobriram a cara de Quenestil e dentes afilados cravaram-se-lhe no pescoço, queimando-lho com saliva abrasadora. O eahan grunhiu de dor, mas o nycataal à sua frente ameaçava acabar de vez com o seu sofrimento, levando as foices atrás como se fosse ceifar uma meda de palha. O shura agarrou a cabeça da criatura, baixou o joelho e impeliu-a por cima de si, interceptando ambas as foices com as suas costas. O nycataal guinchou, e Quenestil deixou-o cair, devolvendo a sua atenção ao outro, que se viu atrapalhado para arrancar as suas lâminas do corpo do companheiro, uma vantagem que o eahan não perdeu tempo em aproveitar, arrojando-lhe a tocha ardente contra a face. A criatura guinchou, levando as mãos ao rosto queimado, e Quenestil rachou-lhe o frágil crânio com uma violenta bordoada que o atirou de cara contra o chão.

 

Slayra! gritou, correndo na direcção do quarto e olhando de relance para Worick, que tinha um nycataal aos seus pés e era atacado pelo outro.

 

Ajuda-as, eahan! berrou o thuragar, rasgando um pouco mais o seu lábio e atirando-se de cabeça contra o seu adversário em pleno ar. As duas foices rasparam-lhe as costas da couraça assim que Worick colidiu contra o nycataal, que, com uma torção do corpo, conseguiu inverter ligeiramente a posição e fazer com que caíssem de lado, deixando o thuragar absorver o impacto de ambos.

 

O ar foi expulso dos pulmões de Worick, e a criatura estrebuchou para cima dele, chiando e erguendo as foices. Ainda com o fôlego por recuperar, o thuragar ergueu os punhos e defendeu-se das cutiladas como pôde, resguardando a cara das cruéis lâminas. O seu próprio sangue entrava-lhe pela boca, escorrendo-lhe quente pela barba e pescoço abaixo até à nuca, e os seus dentes ainda lhe atormentavam as gengivas, mas Worick sabia que a sua protegida corria perigo e tais ferimentos eram a menor das suas preocupações. A ponta de uma foice entrou por uma fresta das placas que lhe cobriam o braço, que o thuragar mexeu de forma a encalhar a lâmina. O nycataal chiou enraivecido e trouxe a outra abaixo numa tentativa de a espetar na testa do obstinado adversário, mas Worick conseguiu agarrar-lhe o pulso e torcer-lho com força, estalando o osso oco com facilidade. A criatura soltou um guincho agudo, levando a cabeça atrás, mas o thuragar puxou-a violentamente pelo braço, trazendo-lhe a cara de encontro à sua manopla cerrada com efeito esmagador. O nycataal espirrou-lhe sangue para a cara e peito, e Worick golpeou-o uma segunda vez, fazendo-o cair para o seu lado, rebolando ainda para cima das costas da criatura para lhe desferir o derradeiro golpe na nuca com ambos os punhos, calcando-lhe a cara contra o chão com um enjoante som despedaçador. O thuragar apoiou-se na parede com as mãos sujas de sangue e miolos e cambaleou para os seus pés, ignorando os ruídos de passos e gritos que já se ouviam vindos do corredor.

 

Slayra tentava manter o nycataal afastado de Lhiannah enquanto a princesa se debatia com as suas dores numa tentativa de passar para o outro lado da cama. A criatura lutava de forma acirrada, brandindo as suas foices com arrebatado alento que já por várias vezes quase arrancara o quebra-espadas da mão da eahanoir. Não só isso, a criatura era também rápida, quase fulminante, e Slayra não estava em condições de a acompanhar durante muito tempo na dança mortal que ambos bailavam. A eahanna defendeu um golpe por pouco, e a foice do nycataal encalhou perto da ponta nos dentes do seu quebra-espadas, que Slayra torceu, partindo boa parte da extremidade superior da arma e dando-lhe seguimento com uma rápida estocada destinada ao coração do adversário, que se desviou. Slayra viu a sua rutilante morte vir de lado quando o nycataal de repente estacou, guinchando e arqueando as costas com um punhal de Taislin nelas cravado pelo próprio. A criatura inclinou-se para o lado e escoiceou a cara do burrik, arrancando-lhe os pés do chão, mas a eahanoir aproveitou a distracção para lhe puncionar o trapézio com o estilete, cuja ponta falhou em chegar ao coração devido a um osso no qual raspou. O nycataal tornou a chiar e pulou para o ar, aterrando a um canto do quarto e arrancando o punhal das costas. Encolhida contra a parede, a laica gritou, tapando a cara com os dedos. A criatura ignorou-a e fitou a sua adversária com ódio, lambendo ambas as foices com uma língua intensamente vermelha e saltou, planando por cima da eahanna na direcção de Lhiannah, que parecia tentar enfiar-se debaixo da cama.

 

Lhiannah! gritou a eahanoir, vendo o nycataal passar por cima de si e arremessando o quebra-espadas, que rodopiou contra a coxa da criatura e nela se enterrou, fazendo com que esta se contorcesse no ar e caísse de mãos e pés ao chão.

 

O nycataal arrancou a lâmina denteada da perna, trazendo atrás dela um espirro de sangue, e olhou enraivecido para Slayra quando esta ainda teve a ousadia de investir contra ele armada apenas com o seu delgado estilete. Chiando de cólera, a criatura rodopiou com foice e meia sobre a eahanoir, castigando-lhe o estilete e obrigando-a a recuar contra a parede. A lâmina quebrada rasgou-lhe a manga e o braço esquerdo, e a eahanoir desferiu um pontapé na perna ferida do nycataal de dentes e olhos cerrados pela abrasante dor que lhe grassou no membro. O seu adversário tornou a chiar e arrancou o estilete da mão de Slayra com uma violenta foiçada, forçando-a a encostar-se de forma desequilibrada à parede para evitar a outra. Mas a seguinte seria impossível de evitar, e a eahanoir soube-o ao ver o nycataal abrir os braços, pronto a desferir uma mortal cutilada de ambos os lados.

 

Quenestil irrompeu pelo quarto adentro, empunhando a tocha com a mão sangrenta, e viu Slayra encurralada contra a parede. Taislin tentava levantar-se. Lhiannah estava no chão. Não tinha o seu arco. Não chegaria a tempo.

 

Slayra, não! berrou, levando a tocha atrás para a arremessar em vão desespero.

 

O nycataal soltou um vitorioso guincho, mas antes que envolvesse a eahanoir no seu mortal abraço afiado, Ancalach atravessou-lhe o torso de um lado ao outro e a criatura estacou, olhou aparvalhadamente para a ponta da lâmina tingida de vermelho pelo seu próprio sangue e tombou, morta antes de sequer chegar ao chão.

 

Todos ficaram a olhar para o corpo do nycataal durante alguns instantes, esmagados pelo alívio e pelo horror do que estivera prestes a acontecer, quase incapazes de respirar, temendo que algo de mal ainda pudesse acontecer caso permitissem ao tempo correr outra vez. Worick fê-lo contra a vontade de todos, entrando no quarto com grande estrépito.

 

Cachopa! berrou, vendo Lhiannah no chão, contorcida em dores e agarrando o pulso da mão esquerda, cujos dedos sangravam por neles ter apoiado a afiadíssima lâmina de Ancalach ao arremessá-la.

 

Os corações dos companheiros recomeçaram a bater e a primeira reacção de Quenestil foi deixar a tocha cair e correr para Slayra, mas esta deteve-o com uma mão erguida e indicou a princesa com um gesto da cabeça, agarrando o braço ferido. O eahan hesitou e Worick empurrou-o para fora do seu caminho, mas todos se detiveram outra vez quando o nycataal foi acometido de um violento espasmo que fez com que esticasse os membros e as costas além dos seus limites, estalando boa parte dos ossos do seu corpo. O thuragar empunhou o martelo, e Quenestil correu a pegar na tocha, mas a criatura limitou-se a espirrar sangue de todos os orifícios do seu corpo, criando novos para libertar a violenta pressão que dentro dele se formara, a sua carne a fervilhar em torno da lâmina de Ancalach. Os companheiros desviaram o olhar e escudaram-se dos quentes respingos que lhes mancharam as roupas e os cabelos. A laica calou-se, olhou para as trémulas mãos e braços molhados com o mesmo vermelho que lhe escorria da cabeça e vomitou perante o horror, apoiando-se com as mãos no chão.

 

Pedras me partam... praguejou Worick, enrugando a cara com uma verdadeiramente enojada careta antes de se virar para Lhiannah que, como permanecera no chão, fora poupada ao pior. Cachopa, estás bem? perguntou, ajoelhando-se perante a sua protegida, que acenou afirmativamente de olhos semicerrados.

 

Quenestil quis pegar em Slayra, que se curvava perante o que pareciam ser tonturas, viu que a eahanoir tinha o braço ferido e lembrou-se dos seus próprios ferimentos, incluindo o corte na mão, a mordidela no pescoço e a punção no ombro, que continuavam a arder e sangrar como se tivessem acabado de ser infligidos.

 

Taislin? perguntou a eahanoir, agarrando-se ao shura.

 

Estou bem disse o atarantado burrik, abraçando a laica, que tossia e chorava.

 

Worick, o que eram estes bichos? perguntou Quenestil, acariciando suavemente as costas de Slayra, cujo coração ainda sentia a bater contra o seu peito e cujo ventre pressionou protectoramente contra o seu.

 

Nycatalos esclareceu o thuragar, ajudando a sua protegida a deitar-se na cama outra vez e esfregando o sangue que lhe escorria do lábio para a barba. Temos de tratar destas feridas. O cuspo dos bichos não as deixa parar de sangrar.

 

Slayra afastou-se de Quenestil, vendo o sangue que lhe pingava da mão e lhe manchava o ombro, e apertou o ferimento no seu próprio braço.

 

A Lhiannah e o Taislin...? perguntou o shura, olhando para o burrik.

 

Não foram feridos, mas... a eahanna foi interrompida pelos ruídos de passos e as vozes exaltadas que se pronunciaram perante o que Quenestil e Worick haviam deixado para trás no corredor.

 

Aí vêm eles disse o thuragar, ligando a mão ensanguentada de Lhiannah com o lençol enquanto a princesa esperava em cima da cama que as suas dores amainassem. Agora vão todos cantar para nós...

 

Quenestil pareceu lembrar-se de algo, e os seus preocupados olhos fitaram os de Slayra, que não compreendeu o súbito alarme.

 

Deuses, o Aewyre e o Allumno! É uma armadilha!

 

Worick parou com o que estava a fazer e olhou para o eahan, franzindo o sobrolho e o lábio cortado.

 

Não vêem? Eles separaram-nos! O Aewyre e o Allumno foram sozinhos para uma armadilha!

 

Filhos da mãe... murmurou o thuragar entre dentes, largando a mão de Lhiannah e pegando no seu martelo. Slayra, Taislin, vocês ficam aqui. Eahan, vem comigo!

 

Quenestil debateu-se por um ínfimo instante, apertando a mão de Slayra, mas esta facilitou-lhe a decisão ao indicar a entrada com a cabeça. Eahan e thuragar saíram porta fora, colidindo e abrindo caminho por entre alarmados laicos e sacerdotes, exigindo espaço e direcções aos berros. Taislin olhou para a eahanoir, abraçando a soluçante laica, mas os apreensivos olhos de Slayra estavam na porta e a sua cara manchada de sangue traduzia tudo menos a tranquilidade que transmitira com o aceno de cabeça.

 

A desolada e monótona paisagem de Karatai não apresentava quaisquer variações na sua gélida vastidão, tanto mais que a visibilidade era severamente restringida pelos ventos nevosos que uivavam desalmadamente, dealbando o ar. O Inverno não dava sinais de renúncia, e os habitantes das estepes refugiavam-se nos seus abrigos, encovavam-se em busca do calor que os céus lhes negavam ou aconchegavam-se para se protegerem do cruel frio. Porém, a fome obrigava muitos a abandonarem os seus refúgios e a aventurarem-se na frígida desolação em busca de alimento. Um desses aventureiros era uma pequena criatura com um alongado e sinuoso corpo de pernas curtas e pêlo ralo castanho-escuro no dorso que deixava entrever a pelagem amarelada por baixo. O furão das estepes encontrara algo de invulgar na monótona paisagem branca e farejava atentamente em redor, erguendo o focinho branco e exibindo o pêlo negro da face ventral. Convencido de que não havia perigo, aproximou-se do vulto caído e parcialmente coberto por uma manta nívea, farejando-o hesitantemente. Os ratos haviam desaparecido há algum tempo, mortos ou comidos pelo furão ou por um outro predador esfaimado, e o alimento tornara-se inexistente na área circundante, pelo que o estranho vulto soterrado na zona limítrofe do seu território lhe chamou a atenção de sobremodo. Um estranho odor pairava em redor do vulto, um cheiro acre e cobreado parecido com... sangue seco. O focinho trémulo do furão aproximou-se de uma greva que se erguia da neve como um pináculo negro num mar alvo, farejando e achegando-se hesitantemente. Guinchou quando o frio da superfície gelada lhe queimou a ponta do nariz, saltando para trás e arqueando o corpo como se estivesse perante uma ameaça. A greva, contudo, não se mexeu, e o animal tornou a tentar, constatando ao segundo toque frígido que não seria avisado lamber tal coisa, embora emanasse um mortiço olor a sangue seco. Optou por uma abordagem diferente e torneou o vulto, aproximando-se antes por trás, subindo pela capa que cobria amplas espaldeiras e chegando à cabeça encimada por um elmo com quatro chifres ligeiramente recurvos. O furão associou a caveira debaixo do elmo às ossadas que ultimamente costumava encontrar, restos descartados por outros predadores, mas a textura era diferente; estes eram ossos antigos. Ainda enfiou o vacilante focinho dentro de uma cavidade orbital, mas nada encontrou no interior que pudesse comer, pelo que desceu e procurou pelo braço, também esse frio de mais para sequer pensar em lhe tocar. Chegou por fim ao punho soterrado que empunhava a espada, cuja lâmina porosa jazia enterrada na neve. Porém, os copos da arma e o punho que a empunhava estavam revestidos por uma camada rachada de sangue seco e grumoso. O odor e a textura não enganavam, mas ainda assim o furão farejou cuidadosamente antes de se atrever a deitar a pequena língua rosada de fora e lamber a camada de sangue congelado no punho do vulto. O frio magoava-lhe e colava-lhe a frenética língua, mas o sabor que se ia revelando incitou-o a lamber mais, acabando por derreter o sangue com a sua saliva e deliciar-se com o módico festim sangrento que cobria a mão e sobretudo os copos da espada.

 

O furão regalava-se de corpo esticado e patas dianteiras apoiadas sobre a neve que cobria parte do punho para chegar ao sangue aglomerado nos copos, quando de repente virou a cabeça, farejando o ar com o focinho branco manchado de vermelho. Os seus mascarilhados olhos negros distinguiram entre a agitada ventania nevosa seis vultos que se aproximavam, lenta e decididamente. O animal estacou por momentos, permanecendo na mesma posição, uma pequena estátua felpuda com um farejante focinho que não parava de se mexer, partindo subitamente, rápido como um relâmpago e desaparecendo na ventania à procura de um local onde se pudesse esconder. Os seis vultos eram atarracados e corpulentos, e envergavam trapos e peles humanas com ossos e ossículos nelas pendurados ou cosidos. A cor cinzenta da sua tez era a de cinzas de mortos, os longos cabelos brancos que orlavam as suas cabeças achatadas e calvas agitavam-se ao vento como se dele fizessem parte, os seus olhos amarelos luziam na opacidade e os seus achatados narizes puxados para cima prendiam as suas bocas num eterno arreganhar dos compridos caninos brancos. Empunhavam colunas vertebrais, clavas feitas de tíbias e bacias e costelas com arestas afiadas, mas não vinham com intenções de fazer uso das grotescas armas.

 

Assim que viram o vulto semi-sepulto, detiveram-se e perscrutaram-no com curiosidade a uma distância segura, estudando a fonte da estranha atracção que quase os avocara até aquele lugar. O moorul estava num estado lastimoso, com a fronte do elmo fendida e o crânio e o maxilar superior rachados por um golpe de sabre, que não fora o único, julgando pelas inúmeras cutiladas e golpes de lança espalhados pelas partes visíveis da sua armadura cor de sangue seco. Os ocarr haviam deixado o seu indigno enterro ao cuidado da intempérie, que se limitara a cobri-lo parcialmente com uma mortalha de neve e que provavelmente fora várias vezes destapada pelo implacável vento. Os udagai aproximaram-se mais, cercando o moorul caído como uma família enlutada, mas as suas expressões não traíam qualquer emoção além de mera curiosidade enquanto o observavam frios e impassíveis. A lâmina porosa do moorul bebera muito sangue, mas não fora o suficiente para colmatar os danos que o seu portador sofrera durante o combate. Tanto quanto era possível a um dos tenentes do Flagelo ter vida, neste já não sobrava nenhuma, nada mais era além de uma carcaça negra. Um dos udagai ajoelhou-se perante o moorul e tenteou-lhe a caveira com dedos ásperos. Era um espécime com a pele cinzenta engelhada e com um verdadeiro avental de pele e ossos a cobrir-lhe o corpo. Furara as orelhas com ossículos e usava uma caveira humana com uma coifa de” pele na nuca como máscara, o que tornava os seus longos caninos numa visão ainda mais grotesca. Era um osteomante, um ledor de ossos, e estava bastante curioso quanto à história que as ossadas do moorul tinham para lhe contar. Os restantes cinco observavam em silêncio enquanto o osteomante fechava os olhos e raspava a caveira fendida com as unhas, principiando a entoar uma mórbida ladainha em Olgur na tentativa de sondar os segredos que o fenecido moorul certamente guardava.

 

Velhos... são ossos velhos... disse o osteomante enquanto passava as pontas dos dedos pela superfície polida da caveira. Dor... muita dor... e sangue... tanto sangue... doce essência dos vivos... Baodegoth... de seu nome Baodegoth...

 

Os udagai nada disseram, sabendo que o osteomante apenas tocava nas impressões mais superficiais das ossadas.

 

Um propósito... um desígnio de contingência... a busca por um objecto... o Flagício! o osteomante praticamente sibilou a última, e os seus companheiros reagiram de igual forma, retesando-se como se tivessem recebido um golpe inesperado.

 

Os dedos do osteomante afastaram-se por breves instantes da caveira do moorul, retomando o contacto apenas quando as batidas do seu coração amainaram.

 

Derrota... grande derrota... aprisionado... tempo... tanto tempo a aguardar... anos e anos na escuridão... anos... o chamamento... chegada a hora... o... Flagício... a palavra saiu-lhe por entre dentes cerrados. Ancalach!

 

O osteomante viu-se uma vez mais forçado a retirar a mão, avassalado pelas memórias do moorul e pela força destas. Os outros udagai continuaram sem nada dizer, embora a sua curiosidade não parasse de aumentar a cada momento. O osteomante ergueu-se, com a coifa de pele a abanar ao vento, e falou sem tirar os olhos do moorul.

 

Grande era a força que o movia. Expirou antes de alcançar o seu objectivo.

 

O Flagício disse outro, o primeiro a conseguir enunciá-lo outra vez.

 

Sim. O seu objectivo era... esse.

 

Está... morto? perguntou outro.

 

Além de qualquer restauração? inquiriu um segundo.

 

Sim.

 

Os seis ponderaram, cercando o moorul como indecisos abutres de adejantes cabelos brancos ao vento, cujos desesperados aulidos pareciam vaticinar o que estava para acontecer.

 

Vejo nele uma saída para nós disse por fim um deles.

 

A ideia também me ocorreu admitiu outro.

 

Requererá um sacrifício lembrou um terceiro.

 

Vários corrigiu o osteomante.

 

De sangue?

 

E não só.

 

Os seis reflectiram, aparentando chegar a um consenso em simultâneo.

 

Será o nosso veículo.

 

Sim, para fora das estepes.

 

Se a isso estivermos dispostos.

 

A saída do nosso encarceramento.

 

O regresso às terras fora deste deserto estéril.

 

Às quais pertencemos.

 

Por direito.

 

E das quais fomos injustamente expulsos por Ele.

 

Sem qualquer motivo.

 

Ou por um motivo mesquinho.

 

Mesquinho, sim.

 

O vento tornou a tomar a palavra enquanto os udagai se tentavam convencer da sua própria decisão, cada um imerso em serena contemplação a despeito das violentas rajadas que os fustigavam, borrifando-os com neve.

 

Está decidido? perguntou por fim o osteomante.

 

Sim responderam-lhe os cinco em uníssono.

 

Que seja feito, então.

 

O osteomante começou a andar em círculos em volta da carcaça, espalhando pequenos ossos e bocados de cartilagem em seu redor em preparação do rito, finda a qual se ajoelhou ao lado do moorul e principiou a entoar um cântico em Olgur, preparando as ossadas de um dos tenentes de Seltor como receptáculo. Os restantes udagai baixaram as cabeças e ouviram atentamente as suas palavras, aguardando a sua vez. Enquanto executava o rito, o osteomante agarrou a manopla e o punho que seguravam a espada negra, alheio ao gélido metal ao qual a pele das suas mãos ficou colada.

 

Que venha o primeiro disse por fim, erguendo a manopla e a espada convidativamente, apontando a ponta da porosa lâmina a nenhum em especial.

 

Os cinco vacilaram momentaneamente, até que um udagai acabou por avançar e postar-se diante da ponta da espada, disposto a dar o exemplo.

 

Seis seremos unos. Sem os seis nenhum ressurgirá. Com o teu sangue e a tua alma, depões a tua vida perante este Seu servo?

 

Com o meu sangue e a minha alma o faço assentiu o udagai quase em surdina, flectindo as pernas e arremetendo sobre a ponta, que lhe atravessou o ventre de um lado ao outro, projectando-se fumegante das suas costas.

 

O vento soltou um aulido estridente, e a última coisa que o udagai viu enquanto o seu sangue era sugado pela sequiosa espada foi a cara mascarada do osteomante que o fitava, imperturbado. As fendas visíveis na armadura do moorul começaram a remendar-se como feridas que se fechavam, formando uma espécie de crosta que rapidamente se solidificava, fundindo-se à armadura. O udagai soltou arquejos roucos nas suas derradeiras vascas debaixo dos olhares apreensivos dos seus companheiros, que só então viam o que os aguardava e que se começavam a questionar acerca do valor da liberdade pela qual se iriam sacrificar. Quando o udagai morreu, o osteomante chamou outro para o puxar para fora da espada que o deixara exangue. O menos desmotivado dos quatro foi em frente e assim fez, puxando o corpo do seu companheiro, atirando-o ao chão e constatando que nem uma gota de sangue ficara na porosa lâmina. O osteomante aguardou que o udagai se posicionasse, mas viu que os quatro vacilavam, já não tão resolutos.

 

A dor é passageira. Um mero sacrifício pela nossa liberdade. Os outros não pareceram persuadidos. Uns instantes de dor ou uma vida de reclusão nas estepes. Escolham.

 

Posta dessa forma, a escolha pareceu bem mais fácil aos udagai e, após um derradeiro momento de incerteza, o que puxara o companheiro da lâmina também flectiu as pernas.

 

Seis seremos unos. Sem os seis nenhum ressurgirá. Com o teu sangue e a tua alma, depões a tua vida perante este Seu servo?

 

Com o meu sangue e a minha alma... o faço.

 

A morte do segundo não foi mais agradável nem menos dolorosa, mas os três seguintes repetiram o procedimento tão depressa quanto lhes foi possível, até restar apenas o osteomante defronte de um cadáver exangue e empalado e com outros quatro espalhados em mórbidas posições no chão. Chegara a sua vez, e o osteomante quis largar a manopla e o punho do moorul para executar o último sacrifício, mas a sua pele estava colada ao metal frio, e por muito que puxasse não se conseguia libertar. O udagai mordeu o lábio inferior e o queixo com os seus caninos, assentou o pé sobre o braço do moorul e puxou as mãos com toda a força, deixando impressões palmares de carne viva na manopla e no punho. Grunhindo de dor, o osteomante enfiou as sangrentas palmas na neve com o único intuito de amainar o ardor das mãos feridas, pois em breve não mais lhe seriam úteis. Quando a dor foi entorpecida, o udagai tirou as sangrentas mãos da neve e tornou a agarrar a manopla do moorul, desta feita resguardado do nefasto efeito do frio do metal pelo sangue quente que lhe escorria das palmas, escorrendo fumegante pelo metal rugoso. Ergueu a espada e pousou a ponta no seu estômago, inclinando-se sobre ela e deixando o punho assentar no chão de forma a poder apoiar-se na lâmina. Seguiu-se um momento de hesitação, na qual o udagai contemplou o que estava prestes a fazer e as duradouras consequências que o acto teria. Olhou em redor e soube que era a última vez que o fazia ao sentir nada mais além de desprezo e ódio pelas estéreis estepes às quais fora relegado como punição. Não, não mais. Iria ter a sua liberdade, e estava certamente disposto a pagar o preço.

 

Com o meu sangue e a minha alma o faço... declarou, fechando os olhos e caindo de joelhos para a neve.

 

Algo frio lhe trespassou a barriga, ardendo-lhe nas entranhas e contraindo-as de seguida ao começar a sorver como uma sanguessuga de aço. Os seus sentidos ficaram embotados nesse instante, todas as suas sensações se centravam na zona ventral e no ardor pulsante que nela grassava. Os olhos do osteomante abriram-se, tendo à frente a imagem distorcida da couraça peitoral da armadura do moorul. Sentia a vida esvair-se-lhe, alimentando o insaciável apetite da voraz espada negra e com ela revigorando a inanimada carcaça do moorul, que contudo continuava a servir de receptáculo. Finalmente, a sua visão ficou turva e o seu coração deu as suas derradeiras batidas, bombeando o sangue que lhe restava para fora do corpo, que descaiu, frouxo, para cima do moorul, deixando o seu capacete ósseo cair.

 

O vento acalmou, emulando o último suspiro do udagai e cobrindo os seus companheiros mortos em seu redor com uma ligeira poeira nívea. Os sete corpos assim permaneceram, imóveis num sinistro quadro de morte, retratando a grotesca paródia de um sacrifício. Mas o súbito brilho nas órbitas da caveira do moorul destoou na cena, conferindo-lhe uma vida própria que desarmonizava totalmente a composição. Após um breve refolgo, as rajadas do vento intensificaram-se numa espécie de protesto, mas o moorul era alheio ao cortante frio das fustigantes lufadas. As suas cavidades orbitais incandesceram-se num furioso rubor vermelho, que acabou por diminuir em dois malignos pontos, duas gotas de sangue a flutuarem em duas fossas de inescrutável profundidade. A esquelética cabeça ergueu-se, estalando e rachando, e viu o cadáver empalado na espada que empunhava. A caveira meio fendida virou-se para um lado e para outro, tomando nota dos cinco outros corpos espalhados à sua volta, e mexeu a mão esquerda, desenterrando-a da neve e erguendo-a defronte da sua cara, vendo a alvura escorrer-lhe por entre os dedos acerados. Cerrou o punho, abriu-o e tornou a cerrá-lo, como se precisasse de comprovar que ainda se conseguia mexer. Confirmada essa capacidade, o moorul tirou o cadáver bruscamente de cima de si sem largar a espada e virou-se de lado, apoiando-se com a mão sobre o peito do corpo para se levantar. O vento alçou-lhe a esfarrapada capa cor de sangue pisado, e o moorul apoiou o pé sobre o cadáver para puxar a espada para fora do seu corpo. Uma vaga de neve carregada pelas violentas rajadas abateu-se sobre ele, como se a alva monotonia das estepes estivesse a tentar tapar a mancha negra que nela se revelara, mas o moorul ignorava-a, imune aos seus efeitos. Olhou para um ponto indeterminado no obscurecido horizonte e lá fixou o seu átono olhar, sendo repentinamente acometido de convulsões na cabeça que duraram até a caveira tornar a estacar, feito o qual saiu uma voz cava do vazio debaixo do seu maxilar superior.

 

Está feito.

 

De facto corroborou outra no mesmo tom, mas com uma inflexão ligeiramente diferente.

 

Somos unos aditou uma terceira, também ela com uma quase imperceptível diferença na voz.

 

Seis unidos no receptáculo.

 

Mas que sinto eu... nós? -Um chamamento?

 

Um apelo?

 

Os seis reflectiram, e o moorul permaneceu imóvel, uma estátua negra de adejante capa ao vento.

 

Não disseram todos em uníssono.

 

Uma convocação mandatória. Já antes a senti... sentimos.

 

Várias luas atrás.

 

Um chamamento muito forte, sim.

 

Difícil de resistir.

 

Mas desapareceu.

 

E agora surge uma vez mais.

 

Não, sempre lá esteve.

 

E deixei... deixámos de o sentir.

 

Agora sinto... sentimo-lo de novo.

 

Estranho.

 

Sim.

 

As vozes tornaram a calar-se, imersas nas suas próprias reflexões.

 

Põe-se a dúvida então: seguimos o chamamento?

 

Ou não?

 

Aqui não permanecemos.

 

Está fora de questão.

 

Não.

 

Sim, totalmente fora de questão.

 

E longínquo. Fora das estepes. Devemos segui-lo?

 

Saímos de uma prisão para seguir um apelo forçoso?

 

É forçoso?

 

Não, está longe de mais.

 

Longe de mais para o ser, sim.

 

Sigamo-lo então, para fora destas estepes.

 

Porque podemos?

 

Porque é um propósito.

 

Um propósito? questionaram-se cinco das vozes.

 

Sim, um propósito. A marca da liberdade. Escolhamos um propósito.

 

Sim, escolhamos um propósito.

 

Porque podemos.

 

E porque somos livres.

 

Livres, sim.

 

Seguiremos o chamamento então?

 

Sim concordou o coro de cinco.

 

Será o nosso propósito.

 

Levá-lo-emos a cabo.

 

Para fora das estepes, então.

 

Sim, para longe delas.

 

Para nunca mais voltarmos.

 

Sigamos o chamamento.

 

O nosso propósito.

 

Consumada a decisão, os movimentos regressaram ao corpo do moorul, que embainhou a espada e retomou a incansável marcha contra o vento que fora interrompida pelo ataque dos ocarr. Os escalpins negros arrastavam-se vigorosamente pela neve enquanto se afastava dos seis cadáveres dos udagai que agora dentro dele residiam, ocupando a sua identidade com um colectivo de mentes, que de repente se depararam com algo que fez com que o moorul se detivesse novamente.

 

Que é isto?

 

Memórias impregnadas nos ossos?

 

No sangrento metal?

 

Difícil dizer.

 

Mas a sua mensagem é clara.

 

Claríssima, sim.

 

A caveira meio fendida do moorul ergueu-se como se estivesse a visualizar algo.

 

Ancalach... foi o cavernoso coro que saiu do vazio debaixo do seu maxilar.

 

As vozes quedaram-se, agudamente cientes do seu propósito, e o moorul que antes fora Baodegoth recomeçou a andar, desaparecendo na ventosa névoa nívea.

 

Aewyre abriu um olho, estranhando o calor que sentia na face e a sensação de claridade através das pálpebras, e a primeira coisa que viu foi o ofuscante facho de luz que manava de uma janela. Acabara de amanhecer, pensou, pois a janela do quarto das Alas estava virada para Leste. Ainda podia dormir mais um pouco...

 

Então lembrou-se de que não estava no templo e ergueu-se, alvoroçado, espalhando palha e olhando em redor com a visão ainda fosca.

 

Bom dia, Aewyre disse alguém de braços cruzados e de ombro encostado à parede sem tirar os olhos da janela gradeada.

 

Allumno? confirmou o guerreiro, embora o nome lhe saísse mais como uma pergunta. Onde... estamos?

 

O mago não lhe respondeu, pois sabia que o jovem se lembraria antes que sequer acabasse de lho dizer, e a subsequente exclamação de reconhecimento do seu protegido deu-lhe razão.

 

Não esperava voltar ao Cenóbio tão cedo... bocejou Aewyre, esfregando a remela seca dos sonolentos olhos.

 

Tens ali água e pão de centeio disse-lhe o mago, apontando para um tabuleiro à porta sem sequer olhar para o seu protegido, que piscou os olhos antes de se erguer para se espreguiçar e ir buscar o pequeno-almoço. O jurisconsulto deve chegar daqui a pouco para falar connosco.

 

Aewyre trincou um naco de pão seco e empurrou-o pela garganta abaixo com um trago de água, alheio ao sabor devido à fome e à boca seca.

 

Quanto tempo dormi?

 

Não muito. O sol nasce cedo nesta altura em Tanarch. Deves ter dormido umas quatro badaladas. Se te quiseres deitar outra vez...

 

Não disse o guerreiro de boca cheia, esfregando o ouvido com o dedo mínimo da mão que agarrava o pão. Eu nem era para ter adormecido. Por que é que não me acordaste?

 

Há dias que não descansavas, e quando te deitavas mal conseguias dormir. Achei que era altura de conceder a vitória ao cansaço; de nada serviria teres ficado acordado.

 

E tu?

 

O mago quedou-se em silêncio, braços cruzados, olhos fixos no que quer que estivesse a ver do outro lado da janela gradeada, provavelmente nada. Aewyre bebeu mais um trago enquanto esperava pela resposta que não veio, e reparou que os seus braços estavam enfaixados com bandas de linho, erguendo-os para os ver melhor. Lembrou-se de ter pedido ligaduras e água após ter sido trancado na cela com Allumno, que lhe enfaixou os membros queimados pelo feitiço da acompanhante de Malagor.

 

Não te preocupes, foram só queimaduras superficiais sossegou-o o mago. Nada de grave.

 

Aewyre baixou os braços e aproximou-se do seu tutor, mastigando antes de falar.

 

Allumno, o que tens? Perante a renitência do mago, o jovem insistiu: Mas fala, homem! Ou vais ficar a olhar para fora da janela o resto da manhã?

 

Allumno fechou os olhos, suspirou e virou a cara para o seu protegido. A luz da janela sombreava-lhe um dos lados da face, e a que incidia sobre a gema lançava um reflexo escarlate na cara de Aewyre.

 

Eu matei Malagor, Aewyre, matei um dos Três. Tu estavas comigo e lutaste a meu lado, és cúmplice. Aewyre ouvia com atenção, pois na noite anterior mal haviam falado um com o outro. Mas tu és da realeza, não farão mais do que notificar Ul-Thoryn exigir um avultado resgate; eu serei executado com toda a certeza.

 

O quê? Nem pensar negou de imediato o guerreiro.

 

- És o conselheiro do regente de Ul-Thoryn e tutor do príncipe, não um criminoso qualquer.

 

Também não matei uma pessoa qualquer... lembrou o mago.

 

Não interessa! Ninguém te vai executar!

 

Allumno tornou a suspirar com a ingenuidade do seu protegido, mas nada mais disse. Aewyre ficou satisfeito por o mago não tentar refutar a sua convicção e mudou de assunto.

 

Mas afinal o que aconteceu ontem, quando tu e o Malagor começaram a lutar, aquele estrépito todo?

 

Allumno dirigiu o seu olhar para fora da janela, aparentemente grato pela mudança de assunto.

 

Conheces a alegoria da magia? perguntou, referindo-se à parábola com o recalcado desdém de um entendido perante uma definição popular referente a um tema da sua especialidade.

 

Sim, aquela do pincel, da mão e...

 

O mundo é a tela, a Essência é a tinta, a Palavra é o pincel e o mago é a mão recitou Allumno. Bastante simplificado, mas ilustra com razoável exacção a forma como a magia se processa. No caso de ontem, o salão de festas era a tela e a Essência que o permeava era a tinta, mas houve dois pincéis manejados por mãos divergentes a pintarem a mesma tela. Consegues imaginar o que acontece a um quadro se dois pintores trabalharem nele ao mesmo tempo? O guerreiro acenou com a cabeça. Foi o que sucedeu ontem, e por pouco não houve um desastre quando a acompanhante de Malagor se juntou ao combate. É por isso que todos os que usam a Palavra são reclusos e raramente combatem uns contra os outros, e a principal razão pela qual é inviável usar grupos de magos em batalhas. A destruição que daí resultaria seria tão perigosa para amigos como para inimigos.

 

Então é por isso... sempre pensei que vocês eram só uns ascetas que não queriam saber do resto do mundo...

 

É o que se costuma dizer, e pode até ser verdade para alguns. Mas a principal razão é esta.

 

Muito bem, então da próxima vez que aparecer um mago, deixa-nos tratar dele.

 

Allumno ignorou a ênfase que o seu protegido pôs na ”próxima vez” e nada mais disse, devolvendo a sua atenção ao exterior. Aewyre encolheu os ombros e terminou a sua refeição matinal, andando de seguida às voltas pelo cubículo com as mãos nas pensativas ancas. Estavam numa cela comum que o guerreiro cobria em menos de três passos de um lado ao outro, coberta com uma ditosamente fresca camada de palha sobre a qual dormira por cima de uma manta de serapilheira. As inevitáveis picadas de pulgas faziam-lhe comichão um pouco por todo o corpo, mas não passavam de um incómodo menor que o jovem coçava distraidamente.

 

Os outros, achas que sabem? lembrou-se.

 

Provavelmente. O legista ainda fazia tenções de falar com o Worick, a Slayra e a Lhiannah. Pode ser que os interroguem também se pensarem que eles podem estar de alguma forma implicados no que aconteceu.

 

O guerreiro abanou a cabeça, incrédulo.

 

Não acredito... tínhamos um dos Três atrás de nós... foi o desgraçado que atacou os Corações, foi ele que mandou os Fadados atacarem a estalagem, e ainda nos tentou apanhar na sua festa. O que é que ele pensava fazer?

 

Allumno tinha as suas reservas quanto ao envolvimento de Malagor em tudo o que acontecera desde que haviam saído de Karatai, mas de facto tudo apontava para ele.

 

Não sei. Talvez nem fosse fazer nada naquela noite. Só sei que foi ele quem me atacou no Pilar...

 

O guerreiro deu mais alguns preocupados passos.

 

Mas será que as pessoas, mesmo os Corações, imaginam que os Filhos já chegaram tão alto na cadeia de comando de Tanarch? Será que há mais?

 

Certamente haverá outros, mas resta-nos esperar que Malagor fosse o único em tal posição... O mago reflectira um pouco sobre essa questão, mas de momento a sua mente estava ocupada com outros assuntos de maior premência.

 

Raios, é mesmo como a Slayra diz: a Ancalach atrai-os como abelhas para o mel. Os outros não estão seguros no templo...

 

Tu mesmo disseste que nas Alas estávamos tão seguros como em qualquer outro lugar... recordou-lhe o mago.

 

- Isso foi antes de saber que um dos Três era um Filho do Flagelo, porra! estalou o jovem, batendo com os braços no ar.

 

Allumno não pareceu afectado com a quebra de paciência do seu protegido, que olhou para o chão e esfregou o cabelo para trás.

 

Desculpa...

 

Não te preocupes. Tenta só fazer com que isso não aconteça quando estiveres a falar com o jurisconsulto.

 

Quem é esse, afinal?

 

É ele quem nos vai representar no julgamento. Deve vir em breve para nos fazer umas perguntas...

 

Quanto tempo é que achas que vai durar o julgamento? Aewyre nutou com a cabeça. Alguns dias. Mas não vai começar antes de chegar uma comitiva de Ul-Thoryn, e talvez uma de Vaul-Syrith também, se a Lhiannah for de alguma forma implicada. Somos bem capazes de passar umas quantas semanas nesta cela à espera. E prefiro não pensar nas repercussões políticas que isto pode ter...

 

Porra, porra, porra! praguejou o jovem ao aperceber-se das implicações de tudo, chutando um monte de palha contra a parede, que de seguida esmurrou, estalando os dedos. Aereth ia ser informado, viria buscar o seu travesso irmãozinho que fizera um grande disparate ao trazer um brinquedo que não devia e que teria de ser castigado. Tudo o que planeara, tudo pelo qual tanto viajara e sofrera, e a demanda pelo seu pai iria acabar da mais humilhante forma possível, certamente ridicularizada pelo seu sempre mais sensato irmão. Aewyre apoiou as mãos na parede e bateu nela com a testa, deixando a laje fria arrefecer a sua cabeça fervente.

 

”Ah, meu pobre rapaz...”, pensou Allumno, vendo a consternação do seu protegido. ”Desta vez haverá consequências, e a culpa nem sequer foi tua...” A sua vontade era consolar Aewyre com um abraço, mas o próprio mago precisava de conforto, pois a ele aguardava-o uma pena bem pior.

 

A desconsolação de ambos foi interrompida pelo ruído de passos vindos do outro lado da porta de ferro, para a qual ficaram a olhar, expectantes. Não tardaram a ouvir uma chave roçar na fechadura e o trinco a deslizar no exterior, seguido do ranger das enferrujadas dobradiças quando a porta foi aberta por um guarda com um brial azul sobre uma túnica de cota de malha.

 

O causídico vem falar convosco para o vosso razoamento anunciou, dando um passo atrás para deixar entrar um homem corcovado pelo peso do livro que carregava em ambas as mãos, seguido por um guarda que trazia um banco com recosto.

 

Bons dias, lorde Thoryn, conselheiro Allumno saudou o vetusto jurisconsulto em Glottik, franzindo os finos lábios quando os seus joelhos rangeram ao sentar-se no banco que o guarda pousou, retirando-se de seguida e fechando a porta atrás de si. Podemos começar?

 

Perante a concordância de ambos, o homem pousou o pesado livro sobre as pernas e desenrolou uma folha de pergaminho por cima da dura capa de couro, aprontando uma pena e um tinteiro. Envergava o manto azul com o símbolo de Bellex sobre a beca vermelha dos clérigos do deus da Justiça, cujas funções aparentemente apenas se distinguiam pelas respectivas denominações, e o seu rico cabelo branco já só lhe crescia na pálida nuca e por cima das orelhas. Tinha descaídos olhos azuis debaixo de longas e hirsutas sobrancelhas, e o seu lábio inferior pendia-lhe juntamente com as flácidas bochechas. Murmurando qualquer coisa excusatória pela demora, assentou umas lunetas sobre o nariz, que franziu para as manter no lugar.

 

Ora muito bem... Vitanan... sexto dia... Aticus... ano de 4029... ia o homem dizendo enquanto escrevinhava no canto superior direito do pergaminho. Lorde Thoryn, conselheiro Allumno, não vos incomodarei por ora com pormenores, digamos apenas que são formalmente acusados pelo assassínio de lorde Malagor, o falecido senhor da Torre Judicante, razão pela qual gostaria de ouvir a vossa versão dos acontecimentos.

 

Aewyre olhou para Allumno, mas este surpreendeu-o ao encostar-se à parede de braços cruzados, passando-lhe despreocupadamente a palavra. Contudo, lançou-lhe um olhar de advertência que o jovem leu como ”nada de mentiras desta vez”. O jurisconsulto aguardava, olhando alternadamente de pena pronta para os dois homens que deveria representar.

 

Bem, tenho de lhe contar como tudo começou... acabou o jovem por dizer, coçando a nuca e questionando-se quanto à sensatez do que ia fazer, embora Allumno parecesse aprovar. Aewyre inspirou fundo e explicou ao jurisconsulto a razão da sua presença em Tanarch e a ausência de uma escolta real de qualquer espécie, relatando de seguida as peripécias pelas quais haviam passado desde a saída das estepes, lembrando-se sempre de apelidar Ancalach de ”o Flagício”, e destacando o combate de Allumno com Malagor no Pilar, tentando passar a palavra ao mago nessa altura, mas vendo-se forçado a continuar pela recusa do seu tutor. Terminou com uma pormenorizada narração da luta na casa do magistrado, na qual haviam sido ameaçados e tiveram de se defender.

 

Ouvindo a sua própria voz e reflectido enquanto falava sobre o que acontecera, tudo parecia lógico e fundamentado a ver de Aewyre, mas o jurisconsulto nada disse até acabar de escrevinhar, parecendo ter apontado cada palavra. Quando terminou, pousou a pena, tirou as lunetas e esfregou os descaídos olhos.

 

Obrigado, lorde Thoryn. Mais tarde apontarei um relato do conselheiro Allumno, mas por ora este será suficiente para eu reflectir e ponderar. Contudo, lamento dizer que logo numa primeira leitura me saltam vários problemas à vista.

 

O peito de Aewyre aqueceu ao ouvir as palavras do homem, mas Allumno permaneceu calmo e sereno, como se tivesse esperado ouvir tal afirmação desde o início.

 

Não existem ou não foram encontradas ou sequer procuradas provas de que o falecido Lorde Malagor tivesse pertencido à secta dos Filhos do Flagelo, o que nos impossibilita de o ligar de qualquer forma aos ataques dos quais lorde Thoryn e os seus companheiros foram vítimas. A suspeita de que o conselheiro Allumno confrontou a senhora Linsha, a ”acompanhante de lorde Malagor” no Pilar não pode ser corroborada a menos que a própria o admita, e o alegado combate entre o conselheiro Allumno e lorde Malagor nesse mesmo local tão-pouco o pode ser, visto que dispomos apenas da palavra do conselheiro Allumno e nenhuma prova física do que realmente decorreu. Sendo... difícil provar o sucedido no Pilar, ser-nos-á igualmente difícil justificar a agressão do conselheiro Allumno na festa para a qual foi convidado juntamente com lorde Thoryn, visto que todas as testemunhas alegam ter sido o conselheiro Allumno a abrir as hostilidades com intentos assassinos. Do confronto resultaram ainda vários convivas feridos, entre eles seis guardas, um dos quais quase morto devido a ferimentos nas vísceras. Agora, não pretendo desmoralizar o lorde Thoryn ou o conselheiro Allumno, todavia, como vosso jurisconsulto, cabe-me dizer que a situação se afigura complicada. Lembrais-vos de mais alguma coisa?

 

Mas... mas... Aewyre quase perdera a fala. Foi Malagor quem nos ameaçou, e...

 

Não segundo os testemunhos, e não dispomos de provas para os adversar.

 

Mas não pode ser... vocês não podem condenar o Allumno por...

 

Lorde Thoryn, não vos devíeis preocupar apenas com a condenação do conselheiro Allumno... afirmou o homem.

 

O quê...? Como?

 

O jurisconsulto estranhou a reacção do jovem.

 

Lorde Thoryn, aguarda-vos uma pena... disse como se Aewyre fosse obrigado a sabê-lo.

 

Não! exclamou Allumno, perdendo toda a calma, compostura e serenidade com um brusco descruzar dos braços, aproximando-se do homem com tal ímpeto que este por breves momentos julgou que iria ser agredido. O que dizeis?

 

Pensei que soubésseis... bom, na verdade, não poderíeis saber, duvido de que os guardas vo-lo tenham dito...

 

O quê, homem? Dito o quê?

 

Aewyre viu as veias das têmporas do mago latejarem e achou por bem agarrar-lhe o braço, embora também estivesse desnorteado pelo que o jurisconsulto acabara de dizer.

 

A mando do meirinho Volgo Dokhan, o caso foi inteiramente entregue ao Cenóbio da Equidade...

 

O quê... mas... o Aewyre... fui eu quem matou Malagor, eu! Ele não fez nada!

 

Isso, temo bem, teremos de o comprovar em tribunal, conselheiro Allumno...

 

Não... oh, deuses, não! vociferou o mago, atirando palha ao ar com o pé e esmurrando a parede com ambas as mãos.

 

A porta abriu-se e três guardas entraram de rompante de mocas empunhadas, mas o jurisconsulto aquietou-os com um gesto da mão e indicou a um deles que lhe levasse o banco ao levantar-se.

 

Vejo que não contáveis com esta possibilidade. Retiro-me então para vos dar tempo para reflectirdes; mandai-me chamar se precisardes de algo que esteja ao meu alcance. Amanhã haverá uma audiência, na qual poderemos apresentar as vossas versões dos acontecimentos. Vendo que estava a ser ignorado tanto pelo desconsolado mago, que lhe virara as costas, como pelo jovem que o tentava acalmar, o homem suspirou e abraçou-se ao livro, retirando-se da cela. Com licença... despediu-se antes de a porta se fechar, deixando os dois prisioneiros entregues à sua angústia.

 

Allumno, o que foi? O que foi? insistia Aewyre, abanando o mago com gentileza e tentando desencostar a sua cabeça da parede. O seu tutor balbuciava palavras incompreensíveis contra a parede, mas não era nenhum feitiço que estava a preparar; apenas dava largas ao seu desespero, o que preocupou Aewyre ainda mais. Allumno!

 

O mago acabou por se virar, lentamente, e deixou-se cair de desalentadas costas contra a parede antes de falar.

 

O caso foi entregue ao Cenóbio... reiterou, esperando que o jovem compreendesse.

 

E então? Não eram eles que iam fazer o julgamento de qualquer...

 

Não é só isso. O caso ficou entregue ao Cenóbio para este julgar e condenar como muito bem entender. Aewyre, a igreja de Bellex é imparcial e isenta de quaisquer restrições régias. Se provarem que foste culpado pelo ataque, vais ser condenado e executado como qualquer outra pessoa, o teu sangue e título de nada te valerão!

 

O guerreiro primeiro ficou a olhar para Allumno em silêncio, cara inexpressiva, olhos fixos enquanto parecia ruminar a crueza do que lhe fora dito. À medida que se ia apercebendo das implicações, as suas pernas começaram a fraquejar e o seu corpo foi acometido de uma nauseante vaga acalentadora, uma mistura de medo, raiva e frustração que lhe deu a volta à cabeça e fez com que a cela girasse ligeiramente à sua volta. Allumno pegou-lhe nos braços para o apoiar e abraçou-o, murmurando-lhe pouco convincentes palavras de coragem ao ouvido.

 

Mais tarde nesse dia, Aewyre e Allumno tornaram a ouvir passos do outro lado da porta, cuja portinhola o guarda abriu.

 

Visitas anunciou, e o guerreiro e o mago levantaram-se apressadamente perante o som de vozes familiares, esfregando a palha das pernas enquanto se dirigiam à porta.

 

Aewyre! apareceu a cabeça de Quenestil na portinhola gradeada.

 

O guerreiro por pouco não se precipitou contra a porta, limitando-se a bater com as mãos no ferro frio, contente por ver o seu amigo. Mais contente parecia o eahan, que enfiou a mão por entre as pequenas grades para apertar a do jovem, que acedeu sem hesitar.

 

Estávamos preocupados convosco disse o shura.

 

Aewyre! ouviu-se a vozinha de Taislin vinda de baixo.

 

Olha lá, tu! Abre esta porra que nós não vemos! resmoneou uma estranha voz que parecia ser a de Worick, provavelmente dirigida ao guarda.

 

Worick...?

 

Estão bem? inquiriu o thuragar, ainda com a voz estranha.

 

Sim...

 

Então espera aí. Deixa o rapazelho ali abrir isto que já falamos... irra, anda daí que nós não temos muito tempo!

 

Estás bem, Allumno? perguntou Quenestil assim que o mago se pôs ao lado de Aewyre.

 

Na medida do possível, meu amigo.

 

E vocês? quis Aewyre saber, ao qual o eahan respondeu com hesitante silêncio, desviando-se para permitir ao guarda abrir a portinhola pela qual eram servidas as refeições dos prisioneiros.

 

Já não era sem tempo... rabujou o thuragar. Vá, chega-te aqui abaixo que eu não gosto de ver o que tens aí entre as pernas.

 

Allumno fez-lhe a vontade e conseguiu sorrir perante a radiante cara de Taislin, mas Aewyre não se baixou, pois ainda esperava uma resposta do seu amigo.

 

Quenestil...?

 

Fomos atacados disse o shura por fim.

 

O quê? Aewyre crispou os dedos numa das barrinhas da portinhola, achegando-se dela. Foram atacados?

 

Está tudo bem, ficámos só um pouco...

 

Eram nycatalos despachou Worick. Entraram no templo, atrás da Ancalach de certeza. Demos cabo deles, mas os bichos ainda deixaram mossa... admitiu o thuragar, indicando a compressa sobre o lábio ferido que o obrigava a falar com o lado da boca.

 

Nycatalos? Deixaram algum vivo...? perguntou Allumno, considerando a possibilidade de ligar Malagor ao ataque.

 

Não, matámos todos.

 

A Lhiannah? inquiriu Aewyre, preenchendo o silêncio causado pelo esmorecimento do mago.

 

Está bem, as duas estão bem, ficámos todos surrados mas bem, e agora o quarto está vigiado. E vocês, o que é que andaram a fazer? Eu e o eahan saímos para a rua depois do ataque e aquilo parecia noite de festa, era só tochas por todo o lado e pessoas a gritarem...

 

Sim, nós demos com a guarda e disseram-nos que houve problemas na festa... interveio Taislin.

 

É, daqueles problemas em que membros do Triunvirato morrem... colmatou o thuragar.

 

Silêncio.

 

Aewyre...? perguntou Quenestil, vendo o seu amigo baixar a cabeça e Allumno levantar-se para lhe pôr a mão no ombro.

 

- É verdade?

 

Não... disse o mago. Fui eu quem matou Malagor. O Aewyre só me defendeu dos guardas.

 

Ui, ui, ui... Worick anteviu sérios problemas de imediato. Taislin olhava assustado para o thuragar e para as pernas de Allumno. Como é que foi isso, mago?

 

Foi o Malagor que me atacou no Pilar, mas não tenho como o provar, e na festa fui eu quem primeiro abriu as hostilidades, além de ter entrado sob disfarce. Matei-o por impulso, porque tinha medo de que se tratasse de uma armadilha, mas para todos os efeitos pareceu assassínio, e todos os convivas o atestarão.

 

Quenestil fitava ambos, confuso, pois pouco sabia acerca das leis dos humanos, embora estivesse ciente de que a opinião acerca do assassínio provavelmente fosse igual em ambas as raças.

 

Suspeito de que ele e os guardas fossem Filhos do Flagelo, mas também não tenho como o provar. O Aewyre atacou-os e feriu alguns com gravidade, o que o implica no crime também...

 

Então, mas eles agora sabem quem vocês são! lembrou-se Worick. Isto não é Alyun, é uma porra de uma nação! O Aewyre é um príncipe, o que é que vos podem fazer?

 

Muito. O meirinho entregou o caso às mãos da igreja de Bellex.

 

Pedras me partam... oh, pedras me partam! praguejou, esmurrando a porta.

 

Não faça argel! ouviu-se a voz do guarda. O vosso tempo está a findar.

 

Vai chuchar na ponta da tua moca, bodefe! enxovalhou o thuragar. O Cenóbio é que vos vai julgar?

 

Quenestil e Taislin não estavam a perceber, e enquanto o olhar atarantado do eahan pedia explicações, o aflito burrik quase puxava a barba de Worick a reivindicá-las.

 

Worick, o que...

 

Irra, espera, mafarrico dum raio! Oh, pedras me partam... o que é que eles vos disseram? perguntou, olhando para cima sem reparar que o guarda se aproximava.

 

Já falámos com um jurisconsulto. Ele vai defender-nos no julgamento, mas disse que não vai ser fácil...

 

O guarda interrompeu a conversa, agarrando o ombro do thuragar.

 

Senhor, está a fazer muito argel. Tenho de lhe pedir para...

 

Argel fiz eu com a tua mãe! berrou Worick, esbofeteando a mão com a manopla suja de sangue seco. E se me tornas a interromper, faço-o outra vez à tua frente!

 

Worick, acalma-te! rogou-lhe Aewyre, agarrando as barrinhas da portinhola com ambas as mãos.

 

O guarda lançou um olhar indignado ao thuragar e, ao ver que este tinha a mão perto da cabeça do martelo enfiado no cinto, deu um passo atrás.

 

Senhor, se não exir, vou ter de chamar os guardas...

 

E tu és o quê? Vá, vai lá chamá-los! Pode ser que estejam a fazer argel todos juntos, cambada de rabilas...

 

Insultado, os dedos do homem ainda formigaram na direcção do cabo da sua moca, mas o thuragar parecia disposto a parti-lo ao meio e achou melhor ir pedir apoio.

 

Worick, assim não estás a ajudar... disse-lhe Aewyre.

 

Eles que venham. Mago, não foi isso que eu te perguntei. O que é que eles vos disseram?

 

Allumno suspirou, apercebendo-se de que não havia maneira de ocultar a verdade ao velho thuragar.

 

Se formos considerados culpados, tanto eu como o Aewyre seremos executados confessou o mago sem mais rodeios.

 

A cabeça de Worick descaiu de olhos fechados, e os seus punhos cerraram-se. A face de Quenestil perdeu a cor, e os seus olhos cinzentos tentaram prender os de Aewyre, que fitou de chocada boca entreaberta, pedindo-lhe que negasse a verdade, abanando lentamente a cabeça. O seu amigo, contudo, foi incapaz de lhe dar essa satisfação e confirmou-a com pesarosos acenos da sua.

 

Executados...? gemeu Taislin. Não pode... não podem... pois não...?

 

Aewyre ajoelhou-se e apoiou as mãos no chão para encarar o seu pequeno amigo, que se achegou da estreita portinhola.

 

Taislin, nada é certo. Só o saberemos no julgamento...

 

Mas eles não vos podem matar...

 

Depende de muita coisa. Vamos ter de os fazer perceber que não fomos matar o Malagor intencionalmente, que não foi assassínio...

 

Não quero saber! Eles não vos podem matar! insistiu o burrik teimosamente de voz trémula.

 

Taislin...

 

Não podem! guinchou Taislin, esmurrando a porta. Não podem, não podem, não podem! Eu não deixo! Ouviram? Eu não deixo!

 

Taislin, ouve-me... Taislin, não, espera! pediu o guerreiro quando o seu pequeno amigo se afastou repentinamente da porta com lágrimas a brotarem-lhe dos olhos. Quenestil tentou agarrá-lo, mas o célere burrik evitou a sua mão com facilidade e correu na direcção da porta da qual saíram cinco guardas de mocas empunhadas.

 

Está quieto, mafarrico! Anda cá! berrou o thuragar ao ver Taislin correr como um gato contra o grupo de homens armados.

 

Não lhe façam mal! gritou Quenestil, estendendo a mão como se ainda o pudesse agarrar.

 

Ao verem um pequeno humanóide dirigido a eles a fugir, a primeira reacção dos guardas foi a de o agarrar, mas Taislin não fazia tenções de ser apanhado. Com agilidade felina, o pequeno ladrão esquivou-se das primeiras mãos que o tentaram agarrar, pulou por cima de uma perna destinada a rasteirá-lo, bateu com um pé no peito de um guarda de forma a impulsionar-se contra a parede, deu um pontapé na cara de outro enquanto o fazia, impulsionou-se da parede para cima de um guarda na retaguarda, sobre cujo capacete se apoiou com as duas mãos, cabriolando sobre ele e para trás do grupo, rebolando pelo chão e disparando pelo corredor fora.

 

Taislin! ainda gritou Aewyre em vão, e um guarda correu atrás do burrik enquanto os restantes quatro avançaram contra Worick e Quenestil assim que recuperaram da surpresa.

 

Calma aí, não é preciso haver argel! disse o thuragar, erguendo as mãos em sinal de paz. Deixem-nos só ir ali apanhar o...

 

Quietos, em nome de Bellex! gritou o mesmo guarda que Worick insultara, desta vez bem mais seguro de si.

 

Não te exaltes, rapazola. Não aconteceu nada de grave...

 

Agarrem-nos! Dois guardas seguraram o thuragar pelos braços, e um terceiro agarrou Quenestil pelo colarinho, mantendo a moca em riste.

 

Esperem, eles não fizeram nada! gritou Aewyre pela portinhola superior.

 

Worick, tem calma! rogou-lhe Allumno a seu lado. Não piores as coisas!

 

Não se preocupem, não lhes vou rebentar as cabeças. Mas exijo falar com o vosso superior.

 

Em nome de Bellex, estão detentos! Levem-nos ao legista! disse o autoritário guarda, fingindo não ouvir as palavras do thuragar.

 

Aewyre, Allumno, não se preocupem. Nós encontramo-lo asseverou Quenestil ao ser empurrado pelo guarda.

 

Aguentem-se aí. Nós voltamos quando estes estiverem a fazer argel juntos outra vez...

 

Em frente! ordenou o guarda, irritado.

 

Aewyre e Allumno viram os seus amigos serem empurrados para fora da sua vista e ouviram a porta do corredor fechar-se com força. O guerreiro suspirou e deixou a cabeça descair contra as grades da portinhola, que o guarda se esquecera de fechar.

 

Não te preocupes, eles não vão arranjar problemas de maior disse-lhe Allumno, retirando-se para o seu canto na cela.

 

Eles talvez não, mas e o Taislin?

 

Porquê, por ter fugido?

 

Não, Allumno. Aewyre virou-se para o seu tutor. Ele vai tentar libertar-nos, como o fez em Alyun, e é bem capaz de o tentar sozinho.

 

Então só podemos esperar que os outros o apanhem. Caso não o consigam e ele porventura o tente fazer, não podemos aceitar, seria...

 

Seria o quê?

 

O mago hesitou, apercebendo-se do disparate que estivera prestes a dizer.

 

Seria como admitir que somos culpados? Nós somos culpados, Allumno...

 

Não, tu não és culpado apressou-se o mago a corrigir. Eu é que matei Malagor.

 

E eu protegi-te e ia matando os guardas...

 

Não digas isso em tribunal! sibilou o mago. Eu vou tentar justificar as minhas acções, mas tu não! Fica calado e deixa o jurisconsulto falar por ti; ainda existe a hipótese de os conseguirmos convencer de que agimos em legítima defesa...

 

Como, Allumno? Como?

 

De alguma forma! O Cenóbio é justo, não vai favorecer ninguém em tribunal. Teremos a nossa ocasião...

 

Por muito que tentasse, o seu tutor não estava a conseguir parecer confiante nem tão-pouco convincente, mas Aewyre nada mais disse. Nada mais havia a dizer, pois estavam ambos nas mãos dos deuses desta vez.

 

O alto e gordo meirinho subia a custo as escadas da sua mansão, acompanhado pelo seu mordomo, um indivíduo velho e calvo com um castiçal na mão e átonos olhos azuis que pareciam olhar sempre em frente. Já os do seu mestre estavam inchados e orlados de olheiras, pois não dormira devido aos eventos ocorridos noite anterior na sua própria casa. O cansaço curvava-lhe o corpo, e o símbolo de Bellex que trazia ao pescoço parecia-lhe pesado, fazendo com que as bainhas do cafetão vermelho com bordados alaranjados que usara na festa se arrastassem pelos degraus. Fora um dia agitadíssimo, audiências com a guarda da cidade e o Cenóbio da Equidade, para o qual também tivera de prestar testemunho, relatórios das agitações na noite anterior, inúmeras formalidades respeitantes ao falecimento de lorde Malagor, e como se não bastasse tudo isso, Linsha ainda ordenara que transferisse o caso para as mãos da igreja de Bellex e inculcasse a prisão dos restantes companheiros de lorde Thoryn, alegando que também eram suspeitos e possíveis cúmplices. A mulher estivera agitadíssima e parecera disposta a arrancar-lhe as tripas com magia se não acatasse as suas ordens, mas o meirinho sabia que não fora o procedimento mais correcto. O Triunvirato (ou Dueto, como muitas vezes fora referido ao longo do dia na cidade) não iria gostar de não ter sido informado antecipadamente de tal decisão e certamente não aprovaria o procedimento, razão pela qual a última coisa que o meirinho fizera antes de fechar as portas da sua sala de audiências fora escrever uma carta aos senhores das torres Administrativa e Executiva. Não informara Linsha acerca do seu procedimento e exigira o máximo sigilo ao mensageiro, pois a feiticeira iria certamente ficar desagradada se soubesse. Por alguma razão, não desejava o envolvimento dos dois magocratas, e não se mostrara de todo aberta a justificar as suas ordens.

 

Senhor...? disse o mordomo. O meirinho já chegara à porta do seu quarto e mal se apercebera disso. Estava mesmo cansado...

 

O mordomo abriu-lhe a porta, e o meirinho arrastou-se para dentro do seu quarto, olhando ansiadamente para a sua cama de dossel e para os seus convidativos lençóis. Os seus olhos pesavam-lhe enquanto o cafetão e camisa lhe eram tirados, substituídos por uma camisa de noite e seguidamente pendurados numa vara horizontal ao lado da cama, na qual se sentou para lhe serem tirados os sapatos, fazendo um derradeiro esforço para não se deixar cair de costas.

 

Necessita de mais alguma coisa, senhor? perguntou o mordomo.

 

Não, Sergo. Boa noite bocejou o homem, enfiando-se na cama como um laparoto sonolento. Ah, e amanhã quero acordar tarde... seja quem for que requisitar uma audiência, pode esperar...

 

O homem fez uma vénia e retirou-se, fechando a porta atrás de si com a maior delicadeza e mergulhando o quarto na escuridão. O meirinho aconchegou-se nos lençóis, tornou a bocejar, estalou os lábios, virou-se para o lado e deixou-se embalar pela doce fragrância das folhas de absíntio neles espalhadas para afastar os insectos. Esperava-o um dia atarefado, mas não era obrigado a começá-lo cedo...

 

Quando ouviu o ruído de pedra a arrastar-se atrás de si, não soube dizer se já estava a sonhar ou se ainda não adormecera. Os passos que se lhe seguiram fizeram com que o homem espertasse da sua doce indolência e se virasse para olhar por cima do ombro, mas a cortina que pendia do dossel tapava-lhe a vista. A única coisa que distinguiu atrás do tecido vermelho foi uma estranha luminosidade que o alumiava, recortando a silhueta de um vulto contra a cortina, da qual se aproximava.

 

Quem vem lá...? perguntou, demasiado sonolento para estar verdadeiramente assustado.

 

A cortina foi bruscamente puxada para o lado, revelando uma mulher que os ainda foscos olhos do meirinho demoraram a reconhecer como Linsha, e não foi senão após essa percepção que o homem se assustou, arfando e encostando-se à parede com a sobressaltada reacção do seu corpo. Um globo de luz flutuava por cima da cabeça da feiticeira, que ainda usava as mesmas roupas da festa, tendo substituído o seu véu rasgado por um novo, provavelmente para cobrir o grande inchaço roxo que o meirinho vira na sua face após a detenção de lorde Thoryn e do seu mago. Linsha trazia um cesto tapado com um pano branco numa das suas delicadas mãos adornadas por anéis, mas o meirinho não conseguiu adivinhar o seu propósito e, durante o tempo que levou a lembrar-se de como falar, a mulher nada disse, limitando-se a cravá-lo à parede com os seus olhos felinos.

 

Senhora Linsha... a que se deve esta visita não anunciada...? perguntou o homem, revelando mesmo a meio do seu medo uma réstia de indignação por ser incomodado nos seus aposentos sem aviso prévio.

 

Os olhos de Linsha inflamaram-se de ira e da sua petulante boca saíram palavras que despertaram os lençóis que tapavam o meirinho da cintura para baixo, cingindo-lhe o anafado corpo até ao pescoço e imobilizando-lhe os membros. O homem soltou um grito estrangulado quando a bainha rendada do seu lençol lhe apertou a papada, mas por essa altura já estava envolvido num autêntico casulo de linho. Linsha observou os seus fúteis esforços e contorções para se libertar e falar durante algumas batidas de coração, que o meirinho bem temeu serem as suas últimas, mas o aperto acabou por ser ligeiramente aliviado ao ponto de permitir ao homem respirar, coisa que fez profunda e ruidosamente quando a pressão diminuiu.

 

Senhora... Linsha... por favor... rogou-lhe o homem antes de os seus lençóis tentarem uma vez mais arrastá-lo para o seu derradeiro sono, desta vez sacudindo-o violentamente sobre a cama e fazendo com que batesse mais do que uma vez com a cabeça contra um poste ou a parede.

 

Quando as agitadas contorções pararam, o meirinho sangrava de uma ferida na testa e fizera várias distensões nos músculos das costas e pescoço, cuja sensibilidade aumentada o supliciava na sua inerte posição, tornando-o incapaz de articular palavras coerentes.

 

Seu verme gordo e idiota... disse Linsha por fim, mexendo os dedos com se estivesse a tentear algo. A sua voz saía-lhe lenta e cuidada, pois estava ocupada a controlar os cordéis de Essência com os quais movia os lençóis, e a luz do seu globo diminuiu como consequência da sua negligência. Não te disse que eles não deviam ser informados? Houve algo que eu tenha dito e que tu não tenhas percebido?

 

Senhora... gemeu o homem.

 

E fala depressa, gordo inútil, ou juro que te espremo até a tua gordura te começar a sair pela boca mentirosa.

 

Eu... não... sei...

 

Não sabes? exclamou a feiticeira, comprimindo o homem com tal brusquidão que este soltou uma rouca exalação forçada de ar. Então talvez isto te avive a memória.

 

O aperto tornou a diminuir, e a mulher destapou o cesto que trazia à mão, despejando o seu conteúdo sobre a ampla barriga do meirinho, pela qual algo lhe rebolou até ao queixo, batendo nele e assentando sobre o seu peito. Duas pontas do lençol enlaçaram-se atrás da nuca do homem e levantaram-lhe a cabeça à força, originando um grunhido de dor devido aos músculos magoados do seu pescoço. Quando a sua visão clareou, o homem engasgou-se, arregalando os olhos perante o que viu.

 

Tinha ao peito a cabeça decepada do mensageiro, cujos olhos revirados prendiam os seus e de cuja boca saía a metade molhada e amarrotada do pergaminho que o destacara para entregar aos dois restantes membros do Triunvirato.

 

Estás lembrado agora, porco gordo? perguntou Linsha sem na verdade esperar uma resposta. Pegou na cabeça pelos cabelos e, após a deixar defronte dos aterrados olhos do meirinho por mais alguns instantes, tornou a enfiá-la no cesto e a tapá-lo. Desobedece-me outra vez e o teu destino será igual, embora bem mais doloroso. Juro que frito a gordura debaixo da tua pele se tornares a ignorar uma ordem minha ameaçou, inclinando-se sobre a cama de mãos atrás das costas para que o homem pudesse ver a franqueza da ameaça nos seus olhos. O Alto Vulto morreu, e a sua autoridade foi-me transferida. Serve-me bem e serás recompensado; desobedece-me, e garanto-te que te espeto como um porco na vara. Fiz-me entender?

 

Aterrado e meio cego pela dor, o homem acenou com a cabeça de lacrimejantes olhos fechados, balbuciando qualquer coisa com lábios trémulos.

 

Óptimo. Espero para teu bem que não sejam necessárias mais visitas destas disse, e a luz do globo diminuiu ao ponto de pouco mais ser além de um esbatido bruxuleio na escuridão. Amanhã estarei na audiência, e conto com a tua presença lá às quatro badaladas. É bom que não te atrases...

 

Senhora... eu...

 

A mulher cerrou os dentes de irritação perante a ousadia da hesitação do homem e ergueu bruscamente a mão de dedos retesados, arqueando arrebatadamente o castigado corpo do meirinho para cima. O homem grunhiu audivelmente de dor, e Linsha fez com que os lençóis o impelissem uma, duas, três vezes de cabeça contra o poste da cama, fazendo o dossel tremer com cada pancada. A luz do globo apagou-se e assim ficou durante algumas inspirações da feiticeira, que lhe devolveu a sua atenção pouco depois e o acendeu outra vez. O meirinho sangrava da testa e mesmo após o sofrimento pelo qual passara, a sua boca estava entreaberta numa expressão que Linsha não conseguiu descrever como nada mais além de estúpida. O obtuso não percebera ainda que já não era Malagor quem dava ordens, e provavelmente pensava que agora andava de rédeas frouxas só porque Linsha fora aprendiza. Queria Aewyre Thoryn e o mago mortos, pois ambos sabiam de mais, principalmente o mago, que a combatera e ao seu mestre no Pilar. Se o príncipe fosse julgado num tribunal da cidade presidido pelos dois restantes membros do Triunvirato, nunca poderia ser executado e acabaria por ser resgatado por Ul-Thoryn, livre para destruir os Filhos do Flagelo ou no mínimo revelar a sua existência aos pares de Malagor, que sempre haviam ignorado que o seu terceiro membro era o Alto Vulto, e isso Linsha não o iria permitir, não agora que estava à cabeça da secta de Val-Oryth. Havia contudo o problema do Flagício, pois permanecia na posse dos companheiros de Aewyre Thoryn, mas Linsha esperava que a sua recomendação de prisão lhe resolvesse esse problema. Caso fossem presos, o Flagício seria confiscado pelo Cenóbio e posteriormente oferecido como soldo ao Triunvirato pela morte de um dos seus membros. A feiticeira pretendia apoderar-se dele então, mas era um plano arriscado que quase fora comprometido pelas acções do estúpido meirinho. Exalando e abanando a cabeça em sinal de desprezo, a mulher retirou-se e fechou a porta secreta atrás de si.

 

Bons sonhos... desejou antes de deixar a escuridão e o silêncio infiltrarem-se uma vez mais no quarto.

 

A sala de audiências do Cenóbio da Equidade em pouco diferia do tribunal do mesmo templo, um amplo recinto com traves de madeira no tecto que sustentavam austeros candelabros de ferro, dez filas de longos bancos pouco cómodos, com cinco de cada lado da sala, e um estrado sobre o qual se encontravam três mesas de leitura de igual tamanho defronte de uma grande tapeçaria com o símbolo de Bellex. Uma desconfortável cadeira isolada para os réus estava entre os bancos e as mesas de leitura, a curta distância do estrado. Havia apenas duas portas nos lados opostos da sala, uma pequena para a entrada e saída dos legistas, outra grande e dupla para os restantes participantes da audiência. Dois pares de janelas estreitas serviam a única função de arejar o opressivo recinto, pois pouca ou nenhuma luz passava por entre elas.

 

As portas duplas da entrada estavam abertas e por elas entravam de forma ordeira todos aqueles que, por uma razão ou outra, iriam tomar parte na audiência: convivas da festa, guardas feridos, servos do meirinho, laicos de Acquon, cidadãos de renome de Val-Oryth que simplesmente desejavam manter-se ao corrente daquele que prometia ser o mais abalador evento da cidade dos últimos anos. Worick, Quenestil e Slayra cercavam Lhiannah protectoramente, lançando olhares de aviso aos guardas que os escoltavam para dentro da sala e aos sussurrantes curiosos que os rodeavam. Após o incidente no Cenóbio, o thuragar e o eahan foram notificados pelo legista de que estavam para todos os efeitos preventivamente presos, confinados ao quarto nas Alas da Convalescença devido à condição da princesa, e que o seu equipamento iria ser confiscado. Worick não reagira bem às notícias, exigindo explicações com tal veemência que fora preso, deixando o destreinado Quenestil com o legista, que lhe tentara explicar a situação. O shura soube que o meirinho recomendara a sua detenção e que, dadas as circunstâncias e os antecedentes do grupo na cidade, a exortação fora aceite. O legista esforçara-se por lhe dar a entender que não estavam necessariamente implicados no caso, mas que, consoante a evolução deste mesmo, poderiam ser chamados a depor. De qualquer forma, estavam detidos e deveriam comparecer na audiência do dia seguinte, e, enquanto falavam, um destacamento de laicos fora enviado às Alas para informar Slayra e Lhiannah da situação e proceder ao confisco do equipamento. O atarantado eahan ainda tivera de convencer o legista de que não sabia para onde Taislin fugira, embora suspeitasse de que o burrik tivesse voltado para o templo, o que de certa forma se confirmou aquando do seu regresso escoltado às Alas. Encontrara Slayra e Lhiannah bastante agitadas, com sacerdotes de Acquon a tentarem temperar os ânimos que haviam irrompido devido à abrupta vinda dos laicos do deus da justiça, mandato ou não. A eahanoir e a arinnir ficaram momentaneamente aliviadas pela vinda de Quenestil, mas quando o eahan corroborou o que já haviam ouvido dos laicos de Bellex pareceram bastante consternadas, e mais ainda ficaram ao saberem que o shura não vira Taislin após a sua ida ao Cenóbio.

 

Ele apareceu aqui, sozinho e a chorar, rápido como uma doninha. Entrou, tirou a Ancalach debaixo da cama e saiu sem uma única palavra sussurrara-lhe a eahanoir, longe dos ouvidos dos laicos de Bellex.

 

No dia seguinte, os dois eahan ajudaram Lhiannah a entrar na carroça que os levou ao Cenóbio, no qual um extremamente maldisposto Worick os aguardava após uma noite nas masmorras do templo. O thuragar também não ficou nada alegre ao saber que não haviam encontrado o burrik e que este levara a Ancalach, temendo que o pequeno ladrão tentasse fazer o mesmo que em Alyun. Quenestil ainda o procurara pela cidade, escoltado por dois laicos de Bellex, mas não havia rasto do esquivo burrik, e aparentemente tudo o que os transeuntes e mercadores haviam visto não fora mais do que ”um pequeno borrão branco e vermelho que trazia uma coisa grande nos braços”. Frustrado e desapontado, o shura fora forçado a voltar às Alas de mãos vazias, aguardando com Slayra e Lhiannah até ao dia seguinte dentro do quarto vigiado.

 

Esse burrik ainda vai fazer um disparate... resmungou Worick por entre a compressa manchada de sangue seco no lábio, caminhando de lado entre dois bancos e ajudando Lhiannah a sentar-se no meio. A princesa viera com uma capa e capuz castanhos que lhe davam um ar enfermo, mas a verdade era que a arinnir aguentara muito bem a tensão do dia anterior e ao quinto dia de repouso de cama parecera quase agradecida pela ocasião de poder andar um pouco, embora o seu corpo dorido ainda requeresse alguma ajuda para se adaptar ao ritmo de actividade fora do quarto do templo.

 

Esperemos que não disse Quenestil, deixando Slayra passar-lhe à frente para se sentar ao lado de Lhiannah e dispensando o guarda atrás de si com um gesto da mão. Mas por que é que o estúpido fugiu? Assim só nos vai arranjar mais problemas.

 

A eahanoir nada disse, pois lembrava-se muito bem da noite em Alyun, sabia do que Taislin era capaz, e não excluía de todo a possibilidade de o burrik vir mesmo a tentar libertar os seus amigos do Cenóbio, talvez mesmo das Alas. Contudo, não podia deixar de se sentir satisfeita por pelo menos um membro do grupo estar livre, pois a sua vida em Jazurrieh podia ter sido bem mais curta se não fosse pelas contingências que se habituara a preparar. E um burrik à solta era sempre uma peça imprevisível, fosse qual fosse o jogo.

 

A sala continuava a encher com o afluxo de pessoas, cujas coloridas roupas davam um ar quase festivo à solene ocasião. Orientados por um cenobita, um clérigo de Bellex, os laicos indicavam a cada um o seu lugar, mantendo a ordem e assegurando-se de que os níveis de ruído permaneciam baixos, embora pairasse sempre no ar um nervoso murmúrio de antecipação cuja cadência se alterava constantemente. Os companheiros sussurravam entre si, encostando as cabeças umas às outras para conseguirem ouvir e ser ouvidos, mas o silêncio esgueirou-se inesperadamente pela sala adentro, emudecendo gradualmente todos à volta dos quatro, que de repente se aperceberam de que eram os únicos a falar. Olharam para trás e viram uma mulher entrar de braço dado com um homem com o símbolo de Bellex ao pescoço e o ceptro prateado que o identificavam como o meirinho da cidade. Faziam um estranho casal, pois enquanto ela mantinha um porte emproado, ele, mais alto e corpulento, estava hirto e retesado, parecendo desagradado com o contacto próximo da sua acompanhante. O meirinho envergava um rico cafetão, e a sua testa estava enfaixada com ligaduras, razão pela qual não trouxera nenhum chapéu e exibia a sua pálida calva. A mulher trajava uma saia verde-azeitona debruada a vermelho e uma folgada vestimenta vermelha de mangas compridas abainhada a amarelo com um capelo da mesma cor e fabrico aos ombros. Uma barretina branca e vermelha de topo chato com um véu na nuca que também lhe tapava a cara abaixo do nariz e um colar de contas de âmbar completavam a sua indumentária, de longe a mais ostensiva na sala. Atrás de ambos vinha um homem calvo de cabelos brancos e ralos com idade para ser avô da mulher e pai do meirinho, caminhando placidamente com as mãos atrás das costas. A sua beca vermelha ostentava apenas o punho de ferro de Bellex, o que o identificava como representante da acusação. As pessoas pelas quais a mulher passava apresentavam-lhe as suas condolências, inclinando a cabeça e murmurando ininteligivelmente, mas apenas o meirinho lhes dava atenção, parecendo aliviado com a presença de outros. A mulher olhava em frente com o véu a ocultar-lhe a expressão, olhos fixos nas três mesas de leitura enquanto avançava, dando a impressão de que arrastava o homem, até que subitamente parou.

 

Lhiannah olhava estarrecida para ela, para os felinos olhos castanhos que se cruzaram com os seus e os retiveram, debatendo-se com memórias difusas e contrastando reminiscências assustadoras num diálogo desprovido de palavras. As duas ficaram imóveis durante alguns instantes, nos quais a sala pareceu conter a colectiva respiração, mas a recém-chegada acabou por virar a cara e dar dois ligeiramente mais apressados passos em frente, arrastando o meirinho consigo para um dos bancos mais próximos do estrado do lado oposto ao da fila da princesa.

 

O que foi isso, cachopa? sussurrou Worick, lançando olhares ferozes a todos quantos olhavam para a sua protegida. Por que é que ela olhou assim para ti?

 

É ela... disse Lhiannah entre dentes, puxando o capuz mais para a frente para se ocultar dos olhares alheios.

 

Ela quem? perguntou Slayra, achegando-se da arinnir para a ouvir melhor, pois o maxilar ligado ainda lhe dificultava a fala.

 

A mulher... nas montanhas, com os Corações! Foi ela que me enfeitiçou, foi ela que me fez atacar-vos!

 

Puta desgraçada... rosnou Worick, agarrando o banco da frente e levantando-se.

 

Worick, não! tentou a eahanoir retê-lo. Quenestil...! com a ajuda do shura, os dois eahan conseguiram impedir o thuragar de cometer algo potencialmente ruinoso para o caso e forçá-lo a sentar-se outra vez. Worick, ouve-me: esta é só a audiência, ela não vai falar e nós também não, mas podemos depois confrontá-la com isso no julgamento.

 

O thuragar ainda parecia pronto a saltar por cima do banco da frente, mas sabia que Slayra tinha razão e contentou-se com ameaçar os laicos de Bellex com o olhar, pois a pequena agitação chamara-lhes a atenção. A eahanoir notou que os nós dos dedos de Lhiannah estavam esbranquiçados devido à força com a qual a princesa apertava a borda do banco, de medo ou de raiva era difícil dizer, mas em todo o caso cobriu-lhe a mão com a sua, aquietando-a. A arinnir olhou para Slayra, revelando nos seus orbes azuis o fogo ao qual a eahanna estava habituada, a chama insubmissa da guerreira de que Slayra apesar de tudo aprendera a gostar. Mas a presente situação requeria prudência e cautela, razão pela qual a eahanoir ergueu uma aquietadora mão enquanto apertava a de Lhiannah com a outra.

 

A porta pequena abriu-se e dela saíram três velhos legistas com maços de papéis abraçados ao peito, um dos quais o que anteriormente falara com os companheiros, e os guardas exigiram silêncio em voz alta. Todos envergavam becas vermelhas e mantos azuis com o símbolo de Bellex neles bordado, sem nada que os diferenciasse uns dos outros além dos veneráveis semblantes. A idade vergava-os, mas os três esforçaram-se por manter uma postura recta na medida do possível antes de se sentarem nas cadeiras acolchoadas, deixando escapar estalos e rangidos no silêncio da sala ao fazê-lo. O respeitoso sossego permaneceu, quebrado apenas pelo ocasional tossido ou fungadela enquanto os legistas colocavam as lunetas, folheavam os maços de papéis e organizavam a sua disposição nas respectivas mesas de leitura, murmurando casualmente entre si.

 

Três juizes? sussurrou Slayra, admiradamente, sendo uma relativa conhecedora das leis dos humanos.

 

São legistas corrigiu Worick, e são ainda mais complicados que juizes; esses normalmente são só bailios ou vílicos estúpidos e percebem tanto da lei como um burrik. Quando passam o veredicto, erguem o punho ou a palma ao mesmo tempo para considerar o réu culpado ou inocente...

 

Mas isto é só uma audiência...

 

Sim, mas os três acompanham o processo todo e cada um desempenha a sua função, embora vão alternando ao longo do julgamento, cada um faz as suas perguntas e desenvolve as dos outros, às vezes chamam testemunhas mais do que uma vez e fazem-lhes as mesmas perguntas por outras palavras, só para ver se as respostas correspondem às anteriores, e o mesmo acontece com os réus, que normalmente ficam tão confusos que acabam por se descair quando mentem. Já assisti a um julgamento num cenóbio de Bellex, e ia adormecendo...

 

Achas que nos vão chamar? perguntou Quenestil, esticando-se por cima de Slayra para se fazer ouvir.

 

Hoje não, mas amanhã... quase de certeza. Hão-de ouvir umas quantas coisas de mim...

 

Silêncio no precinto! vozeou o cenobita postado à porta ao ver que os legistas estavam prontos. O silêncio tornou a abafar os murmúrios, e a sala mostrou-se pronta para o início da audiência. Que a audiência comece! A palma de Bellex defensará os inóxios; o punho punirá os culposos!

 

Com estas palavras, os três legistas enclavinharam os nodosos dedos, e o do meio disse numa voz grave:

 

Que entrem a defesa e os réus.

 

O cenobita virou bruscamente as costas à sala e entreabriu a porta para constatar que os invocados se encontravam no exterior, escancarando-a de seguida e dando um passo para o lado.

 

Aewyre e Allumno entraram, ambos com os pulsos agrilhoados e o mago com uma certamente desconfortável mordaça de pano na boca. Nenhum dos dois parecia ter dormido bem, pois os seus olhos estavam orlados de escuras olheiras, e Aewyre tinha os braços enfaixados com ligaduras sujas. Allumno caminhava a custo devido à falta de apoio para o joelho, embora o idoso homem de ricos cabelos brancos a seu lado o ajudasse. Envergava uma beca azul com a misericordiosa palma de Bellex nela bordada, mas o seu lábio, os olhos descaídos e as bochechas flácidas não lhe davam um ar particularmente convincente, o que não passou despercebido a Worick.

 

Pedras me partam, se é aquele que os vai defender, bem os podem linchar já aqui... resfolegou, ajustando a compressa no lábio.

 

Os outros ignoraram o aziago comentário do thuragar e passaram um braço por cima dos recostos para melhor verem os seus amigos. Allumno olhava estoicamente em frente, mas Aewyre passava os cansados olhos pela audiência, como se esperasse que alguém lhe explicasse a razão de tudo o que se estava a passar. O seu olhar cruzou-se com o de Lhiannah, que puxou o capuz ligeiramente para trás com ambas as mãos, mostrando um pouco do seu cabelo louro e formando a palavra ”coragem” com os lábios superficialmente encrostados. O gesto conseguiu arrancar um sorriso ao guerreiro, que retribuiu com o nome de Taislin, perante o qual os três companheiros encolheram os ombros e abanaram as cabeças. O semblante de Aewyre tornou-se carregado ao sabê-lo e mal viu os gestos de confiança enviados pelos dois eahan e por Worick, que de seguida tentaram em vão chamar a atenção de Allumno. Os dois réus sentaram-se com o jurisconsulto no banco da frente da fila na qual os companheiros se encontravam, sem repararem no olhar de ódio que Linsha lhes lançou e que acabou por assustar apenas o meirinho. Os três legistas perscrutaram os réus em silêncio durante alguns momentos, findos os quais o do meio falou enquanto os outros dois remexiam mais um pouco nos papéis.

 

Seja feito o libelo.

 

Sentado ao lado de Allumno, o jurisconsulto inclinou-se e indicou a ambos com a mão que se aproximassem.

 

A audiência irá decorrer em Glottik hoje, mas durante o julgamento falar-se-á Leochlan, devido às testemunhas. Terão então direito a um intérprete...

 

O homem da beca vermelha levantou-se e dirigiu-se à cadeira entre o estrado e os bancos, apoiando-se nela com uma mão tisnada com manchas castanhas.

 

Os réus Aewyre Thoryn, príncipe de Ul-Thoryn, e Allumno da Gema Vermelha, conselheiro de Aereth Thoryn, regente da mencionada comarca, são acusados do assassínio de lorde Malagor, senhor da Torre Judicante, membro do Triunvirato, o conselho regente desta nossa nação de Tanarch começou sem quaisquer formalidades de protocolo, esperando para deixar as suas palavras assentarem bem nas mentes dos presentes. Lorde Thoryn e seus companheiros, um dos quais é a princesa Lhiannah Syndar, filha de Sunlar Syndar, regente de Vaul-Syrith, entre os quais o único acusado de comparticipação no crime por agora é o conselheiro Allumno, chegaram incógnitos à nossa cidade de Val-Oryth. Antes da sua chegada, contudo, atacaram em consórcio com um grupo de foras-da-lei o solar de Eivan Manets, leal monteiro que durante tanto tempo velou pela segurança das estradas que circundam a nossa cidade, enquanto este era visitado pela senhora Linsha Akselban, protegida de lorde Malagor, em reconhecimento do senhor da Torre Judicante pelo seu exemplar serviço...

 

O quê? proferiu Aewyre, virando todas as atenções da sala para si.

 

Lorde Thoryn... advertiu-o o legista da direita, ao qual dera nomes falsos aquando do depoimento quatro dias atrás. Aguarde a vez da defesa. Libelista, não fomos notificados desta inclusão na acusação.

 

Estão a dizer que atacámos o quê? sussurrou Lhiannah.

 

O solar que os Corações atacaram disse Worick. Deviam ser todos Filhos do Flagelo, foi por isso que aquela cabra estava lá...!

 

Perdão, senhores legistas, mas a senhora Akselban ainda está bastante perturbada com todos os acontecimentos e apenas me informou do sucedido esta manhã.

 

Ficará registado, mas por ora restrinja-se apenas aos eventos ocorridos na cidade disse o legista da esquerda com uma voz rouca.

 

Pela vontade de Bellex acedeu o libelista, virando-se para os bancos uma vez mais e lançando um olhar a Aewyre que dava a entender que não desejava ser interrompido. Lorde Thoryn e os seus companheiros entraram então em Val-Oryth, e na sua primeira noite dentro das muralhas da cidade envolveram-se num confronto numa estalagem do qual resultaram quinze mortos e seis cadáveres não identificados. O incidente foi investigado por este templo, mas dois dos companheiros de lorde Thoryn ainda não prestaram depoimento e um membro do grupo que de momento se encontra ausente furtou um documento pertinente à investigação. Muitas perguntas ficam por responder, algo que porventura poderá ser feito no âmbito deste julgamento...

 

Evite os comentários e restrinja-se aos factos, libelista... disse o legista do meio.

 

Perdão, legistas escusou-se o homem. Nessa mesma tarde, munidos de informação por averiguar do documento furtado, lorde Thoryn e os seus companheiros envolveram-se em mais um confronto, desta feita em pleno dia e num estabelecimento público cheio. O visado foi o senhor Ruinen Latrusko, um dos suspeitos listados no documento furtado, que terá sido violentamente abordado por lorde Thoryn. Do confronto resultaram vários feridos e a destruição parcial de propriedade alheia; uma vez mais, perguntas ficaram por responder acerca dos motivos para as acções de lorde Thoryn e seus companheiros.

 

Oh, raios... praguejou Worick, apercebendo-se de que os factos em nada abonavam a favor da inocência do grupo.

 

O que foi? perguntou Quenestil, completamente fora do seu meio, e secundado por Lhiannah, cujo ouvido esquerdo lhe estava a dificultar a audição.

 

Esperem recomendou Slayra. Vamos ver o que a defesa diz.

 

...o senhor Ruinen Latrusko, devo acrescentar, terá sido aliciado por lorde Thoryn a ceder-lhe informações pertinentes a lorde

 

Malagor, tanto nesse dia como num encontro posterior, ou devo dizer emboscada...

 

Mentira! vociferou Aewyre, apercebendo-se de seguida que na verdade não o era, pois apesar de não o ter sabido, fora Malagor quem de facto procurara.

 

Lorde Thoryn... tornou o legista da direita a admoestar. Outra intervenção dessas e será expulso da audiência.

 

O jurisconsulto aconselhou calma ao jovem e Allumno tocou-lhe no braço, mas Aewyre acenou com a cabeça, dando a entender que estava tudo bem, e recostou-se tensamente, olhando para o libelista e roçando os elos das grilhetas. O homem lançou-lhe um olhar de desprezo e prosseguiu:

 

O segundo ”encontro” de lorde Thoryn com o senhor Ruinen Latrusko será posteriormente detalhado, mas o senhor Latrusko ficou ferido em resultado da coacção de lorde Thoryn, e testemunhará contra...

 

Estamos cientes da lista de testemunhas, libelista informou laconicamente o legista do meio. Prossiga de costas para os três, o homem acenou com a cabeça calva e assim fez.

 

Após estes quatro eventos, e apesar do anonimato de lorde Thoryn e seus companheiros, lorde Malagor tomou conhecimento da sua presença em Val-Oryth e, como cabe a qualquer governante de boa-fé, convidou lorde Thoryn e a princesa Syndar para uma festa em sua honra na habitação de Volgo Dokhan, o meirinho desta nossa cidade. O conselheiro Allumno assumiu o semblante de princesa através de meios mágicos e com esse disfarce foi transportado juntamente com lorde Thoryn numa liteira para o local da celebração. Ambos foram recebidos com toda a civilidade e cortesia que lhes eram devidas, tanto pelos guardas destacados para zelarem pela sua segurança e pela dos restantes convidados, como pela parte do senhor Dokhan. Contudo, assim que lorde Malagor entrou na sala, o conselheiro Allumno revelou a sua verdadeira identidade e atacou o seu anfitrião sem qualquer agressão ou ameaça prévia da parte deste. Lorde Thoryn participou naquele que todos testemunharam como um traiçoeiro ataque...

 

Dispense os comentários, libelista. Já lhos temos perdoado vezes de mais só nesta audiência disse o legista da esquerda, pigarreando de seguida de forma pouco autoritária.

 

Perdão uma vez mais, legistas. Lorde Thoryn tomou parte no ataque, ferindo vários guardas com gravidade, um dos quais veio mais tarde a falecer, e agredindo violentamente a senhora Akselban, que tentou defender o seu mestre. O conselheiro Allumno então matou lorde Malagor, cauterizando o seu corpo com claros intentos assassinos, e isto os legistas perdoar-me-ão, mas é uma agravante e não um comentário.

 

Será registada, libelista. Tem algo a ajuntar?

 

Sim, senhores legistas. Devo acrescentar que lorde Thoryn e os seus companheiros são procurados tanto por Ul-Thoryn como por Vaul-Syrith, visto que o príncipe Aewyre fugiu com uma relíquia pertencente à comarca: Ancalach, a Espada dos Reis. É também do conhecimento de certos presentes nesta audiência que lorde Thoryn e os seus companheiros organizaram uma rebelião na não mais independente cidade de Alyun, em Thyr...

 

O jurisconsulto virou-se para Aewyre e Allumno.

 

Não me informaram acerca disso! sussurrou.

 

O mago e o guerreiro também estavam surpresos, embora ambos se sentissem estúpidos por isso. Afinal, mais de meio ano era tempo suficiente para tais notícias terem chegado a Tanarch, porventura trazidas por mensageiros de Aereth ou Sunlar Syndar.

 

... o que só por si levanta mais questões que terão de ser respondidas. Nada mais tenho a acrescentar, legistas. Os culpados serão punidos pelo Seu punho anunciou o homem num tom quase triunfal, sentando-se a lado de Linsha, cujo véu era incapaz de esconder o seu sorriso.

 

Um murmúrio generalizado tornou a erguer-se na sala, e foi rapidamente silenciado pelo cenobita e os laicos que faziam cumprir as suas ordens.

 

Lhiannah olhava preocupada para Worick, que estava erguido para ver melhor e se limitava a olhar severamente em frente, embora a sua compressa manchada se mexesse nervosamente. Quenestil e Slayra trocaram olhares inquietos.

 

Que a defesa se pronuncie disse o legista do meio sem tirar os olhos do que rabiscava com uma pena.

 

O jurisconsulto limpou a garganta, olhou confiante para Aewyre e Allumno, e levantou-se, ajeitando a sua beca enquanto se dirigia à cadeira.

 

Os réus Aewyre Thoryn e Allumno da Gema Vermelha não me informaram acerca do sucedido fora das portas da cidade que o libelista mencionou, mas esse assunto será em breve esclarecido. Restringir-me-ei ao caso em questão, começando por declarar que o príncipe Thoryn empreendeu a sua viagem por motivos pessoais que, embora não sejam mencionados hoje nesta audiência, em nada estão relacionados com o infeliz fenecimento de lorde Malagor...

 

Isso caberá ao tribunal decidir, jurisconsulto arguiu o legista da direita.

 

Certamente, senhores legistas. Em relação ao primeiro sucedido dentro das muralhas de Val-Oryth, lorde Thoryn e os seus companheiros foram atacados por um bando de quinze rufias a mando do senhor Ruinen Latrusko...

 

O libelista não se esforçou minimamente por conter um zombeteiro fungar, que o jurisconsulto ignorou.

 

...e por um grupo de Fadados. Nesse ataque surgiu ainda uma agressora não identificada que feriu gravemente a princesa Syndar, razão pela qual o grupo se alojou nas Alas da Convalescença e não noutro estabelecimento qualquer. Lorde Thoryn e os seus companheiros nada mais fizeram além de se defenderem de um ataque inesperado. No dia seguinte, o membro não presente do grupo furtou de facto um documento deste templo, cujo conteúdo era uma lista de suspeitos do ataque da noite anterior e entre cujos nomes

 

-figurava o do senhor Latrusko, o que os motivou a procurá-lo num dos estabelecimentos mencionados nesse mesmo documento como um dos locais por ele habitualmente frequentados. O diálogo entre ambas as partes não foi pacífico e acabou por desencadear uma contenda no estabelecimento, do qual lorde Thoryn e os seus companheiros se retiraram...

 

Mas o que é que aquela azémola está para ali a zurzir? revoltou-se Worick, suficientemente expressivo para que os laicos tomassem nota da sua reacção e se posicionassem discretamente perto do thuragar.

 

Lhiannah mordia a parte sã do lábio inferior, apertando a sua capa com força, apreensiva pelo que fora dito e pelas reacções que presenciava. Havia algo nos olhares das pessoas que denotava uma incondicional condenação que por nada podia ser demovida, e o que ouvira em nada abonava a favor do grupo.

 

Como suspeitavam do envolvimento do senhor Latrusko no ataque do qual haviam sido vítimas, lorde Thoryn e três dos seus companheiros (apenas dois dos quais se encontram presentes) armaram o que de facto só pode ser descrito como uma emboscada Worick tornou a grunhir vitupérios de lado, virando algumas cabeças na sua direcção, mas os legistas ignoraram-no ou então não o ouviram, na tentativa de obter informações acerca dos motivos do ataque, e não acerca de lorde Malagor especificamente, como foi dito no libelo.

 

O jurisconsulto fez uma pausa para recuperar o fôlego e humedecer a boca e o libelista abanou a condescendente cabeça, segredando algo ao ouvido de Linsha.

 

Contudo, as informações providenciadas pelo senhor Latrusko provaram ser inconclusivas, e lorde Thoryn e os seus três companheiros retiraram-se para as Alas da Convalescença. Enquanto o faziam, o conselheiro Allumno, como é seu hábito e o daqueles que fazem uso da Palavra, meditava nos aposentos do grupo no templo de Acquon. Na sua incursão pelo Pilar, deparou com a manifestação da senhora Akselban, que aparentava espiar o local, e foi por ela atacado sem qualquer provocação, envolvendo-se num confronto.

 

O libelista atirou as mãos ao ar e revirou os olhos, ciente da total ausência de provas do que era afirmado e comunicando os seus pensamentos a Linsha, que permanecia tranquila.

 

O conselheiro Allumno perseguiu a senhora Akselban pelo Pilar, acabando por deparar com a manifestação de lorde Malagor, que também o atacou, forçando-o a retirar-se do Pilar. Nessa mesma tarde lorde Thoryn recebeu o convite de lorde Malagor que, devo dizer, apareceu nesse dia na cidade sem qualquer aviso prévio...

 

Como habitualmente o fazia... comentou o libelista, tapando a boca de seguida e escusando-se com a mão livre num gesto de sinceridade duvidosa.

 

Sem qualquer aviso prévio... reiterou o jurisconsulto. Não tendo ainda associado o nome de lorde Malagor à manifestação que atacara o conselheiro Allumno, lorde Thoryn mesmo assim desconfiava do convite, tendo em conta tudo o que até então acontecera, razão pela qual não levou Ancalach e o conselheiro Allumno se disfarçou como a princesa Syndar, de forma a poder garantir a segurança de lorde Thoryn. Aquando da sua chegada à habitação do meirinho, lorde Thoryn preparou-se para ser apresentado a lorde Malagor, e nesse instante o conselheiro Allumno reconheceu-o como a manifestação que combatera no Pilar, atacando-o ao reconhecê-lo como uma ameaça para lorde Thoryn, seu protegido. O que de seguida veio a acontecer nada mais foi do que a infeliz consequência do caos da refrega que teve lugar na sala e na qual tanto lorde Thoryn como o conselheiro Allumno lutaram para protegerem as suas vidas...

 

O jurisconsulto franziu os lábios, olhando para cima como se estivesse à procura no tecto de algo mais para dizer.

 

Tem algo a acrescentar, jurisconsulto?

 

Não. Está feita a defesa, senhores legistas. Os inocentes serão resguardados pela Sua palma terminou o homem, regressando ao seu lugar ao lado de Allumno.

 

O murmúrio de vozes ergueu-se mais uma vez e uma vez mais foi suprimido pelo rigoroso cenobita e os seus laicos, deixando o escrevinhar dos legistas como o incontestado ruído dominante na sala, secundado apenas pelos fortuitos sussurros dos presentes.

 

Pedras me partam... praguejava Worick, de cotovelos apoiados sobre os joelhos e pressionando com o punho a compressa do lábio que abrira com os seus veementes protestos.

 

Calma, Worick. Há certas coisas na defesa que o outro vai ter de refutar... tentou Slayra alentá-lo.

 

E daí? Podem convencê-los de muita coisa, mas o mago matou o Malagor, isso é certo, e o Aewyre estava com ele. Não têm como provar que o mago foi atacado pela outra e pelo Malagor no Pilar, mas uma multidão inteira viu-os a atacá-lo na festa. Oh, pedras me partam é a isto tudo...

 

A eahanoir não soube o que dizer, desapontando Quenestil e Lhiannah, que olhavam para ela com expressões expectantes, desejando vivamente que contestasse o que o thuragar acabara de dizer. Mas não sabia como.

 

Os legistas acabaram de escrever em quase perfeita sincronia, arrumando as suas folhas e conversando uns com os outros antes de devolverem a sua atenção à sala.

 

Foram apresentados o libelo e a defesa a este tribunal, que agora deseja ouvir o parecer dos réus disse o legista do meio. Requisitam a Bellex a Sua palma para na vossa inocência vos proteger; ou submetem-se ao Seu punho como reconhecimento da vossa culpabilidade?

 

A sala parou de respirar nesse instante. Cabeças viraram-se para a direita, fixando as rígidas nucas de Aewyre e Allumno, que pareciam estacados nos seus assentos. O jurisconsulto olhou para ambos, puxando discretamente uma prega das calças de Allumno, mas o mago tinha o olhar fixo em frente, talvez no símbolo do deus da justiça representado na tapeçaria. Aewyre olhou hesitantemente para o seu tutor, esperando ver nele uma resposta para o seu dilema interior, mas o mago aparentava estar envolvido num conflito parecido.

 

Recordamos que, em caso de declaração de inocência, o julgamento começará no dia seguinte e decorrerá debaixo da inteira jurisdição da igreja de nosso senhor Bellex, sem qualquer envolvimento da nação de Tanarch. O estatuto social dos réus não será tido em conta, e serão julgados com total imparcialidade afirmou o legista da direita.

 

Allumno virou lentamente a cara para Aewyre, vendo os escuros olhos preocupados do jovem, que mais parecia a criança da qual o mago tinha memória, o pequeno príncipe travesso que perante as adversidades sempre se lhe dirigira em busca de conselhos e apoio. O mago soube então que só havia uma coisa a fazer, a única que ainda concederia ao seu protegido uma hipótese de não ser condenado, por ínfima que fosse: declarar-se como o único culpado e tentar arcar com a responsabilidade do crime na íntegra. Os seus lábios formaram-se naquele que pareceu ser um sorriso triste, pronunciando de seguida em silêncio a palavra ”desculpa”.

 

Allumno, não... pediu o guerreiro em surdina, lendo-lhe os pensamentos.

 

O mago abanou a cabeça curtamente de olhos fechados, pousou brevemente as mãos agrilhoadas sobre as do seu pupilo e inclinou-se para a frente para se erguer.

 

Não... disse Aewyre, esmaecido e incapaz de agarrar as mãos do seu tutor enquanto este se levantava, indicando a mordaça na sua boca.

 

O jurisconsulto levantou-se, pesaroso, e desatou o pano que amordaçava Allumno, que engoliu em seco e pigarreou, olhando decididamente para os legistas.

 

Oh, não... disse Quenestil que, mesmo sem ter compreendido inteiramente o que se passara, sentia como todos os outros que algo de grave e decisivo estava para acontecer.

 

Worick fechou os olhos, pressionando a compressa com tal força contra o lábio que sangue fresco brotou da ferida, escorrendo-lhe num fio para dentro da boca. Lhiannah agarrava o braço de Slayra, que abanava languidamente a cabeça.

 

Senhores legistas... disse Allumno fracamente, reforçando a voz com outro pigarreio. Eu...

 

As portas duplas da sala escancararam-se de repente, e todos os presentes viraram as caras para trás para verem um imponente homem arnesado baixar os braços estendidos e entrar a passos largos na audiência, flanqueado por outros dois de afunilados elmos sobraçados.

 

Enquanto avançavam com pesadas passadas as suas capas azuis esvoaçavam-lhes nos calcanhares, aos quais também vinha um minúsculo humanóide que trazia aos braços algo embrulhado cujo comprimento excedia a sua altura.

 

Taislin! exclamou Quenestil em surdina, o primeiro dos companheiros a conseguir ver o seu amigo.

 

O quê?! levantou-se Worick.

 

Os três sirulianos ignoraram-nos e aos restantes olhares que neles estavam fixos, bem como os laicos que vieram atrás, hesitantes e encolhendo os ombros num impotente pedido de desculpas. O homem que vinha à frente tirou o elmo da cabeça sem sequer parar, revelando os seus cabelos grisalhos e os determinados olhos pardos que não tolerariam discussões, detendo-se defronte da cadeira dos réus.

 

Embora surpresos, os legistas mantiveram a compostura e o do meio pronunciou-se:

 

Mandatário Aelgar, a que se deve esta intrusão?

 

O siruliano não respondeu de imediato, olhando para Allumno e sobretudo para Aewyre enquanto Taislin se postava timidamente ao lado da sua perna direita, sorrindo para os seus amigos.

 

Chegou ao meu conhecimento que estes dois indivíduos serão julgados pelo assassínio de lorde Malagor disse Aelgar, ainda de olhos postos em Aewyre, que não pôde deixar de se sentir intimidado por aquele olhar arbitrário que parecia desnudá-lo por dentro.

 

Assim é. E por que interrompeis a audiência? perguntou o legista da direita, algo menos diplomático.

 

O siruliano tornou a olhar em frente e prendeu os três com os seus olhos, levando alguns laicos a aproximarem-se discretamente embora nada na sua postura denotasse qualquer tipo de ameaça.

 

Invoco a Lei da Conscrição de Clausura.

 

As palavras do siruliano tiveram um violento impacto nos presentes. Vozes e pessoas ergueram-se em protesto, apontando acusadoramente para os réus, clamando justiça e reclamando contra a lei reivindicada. Aewyre e Allumno olhavam confusos em redor, e os restantes companheiros pensaram por momentos que teriam de evitar que os seus amigos fossem linchados naquela sala, no entanto, a pedido dos legistas, os laicos impuseram uma ténue ordem, obrigando os presentes a retomarem os seus assentos.

 

Mandatário Aelgar...

 

Informei esta semana o meirinho Volgo Dokhan e o Cenóbio da Equidade de que um exército se move em Asmodeon. A Lei da Conscrição de Clausura permite-me em tal situação alistar indivíduos enclausurados ao serviço de Sirulia, sejam eles réus ou culpados.

 

Os murmúrios na sala tornaram-se mais agitados, e não apenas devido à presença dos sirulianos. Corriam nas ruas rumores de um exército vindo de Asmodeon, razão pela qual Sirulia enviara os seus Mandatários com ordens adicionais para recolherem prisioneiros em Tanarch, mas poucos os haviam levado a sério.

 

Julgávamos que tivésseis terminado a recolta esta semana... comentou o rouco legista da esquerda.

 

A Lei da Conscrição de Clausura não impõe limites de qualquer espécie ao alistamento, desde que efectuado nas referidas condições. Assim dita o acordo assinado pelo Triunvirato, por este cenóbio e pelos das restantes cidades de Tanarch.

 

Silêncio tenso. A revolta mal contida dos presentes era quase palpável, mas a igreja de Bellex era imparcial, e as palavras do Mandatário eram as que a lei ditava. Os legistas entreolhavam-se, pois embora soubessem que só havia uma decisão a tomar, o procedimento não lhes parecia de todo ortodoxo, e sentiam que tal sentença requeria um protocolo mais elaborado do que aquele que o siruliano parecia aguardar. Aelgar e os seus acompanhantes esperavam, seguros e convictos como três estátuas esculpidas num momento de vitória. O legista do meio tirou as conformadas lunetas do nariz e olhou para Aewyre e. Allumno por entre as papudas frestas das suas sobrancelhas.

 

Príncipe Aewyre Thoryn, conselheiro Allumno, é-vos apresentada uma escolha disse, fazendo os possíveis por esconder o descontentamento que sentia, pois não tinha memória de um julgamento interrompido de tal forma. Poderão permanecer em Tanarch e aguardar julgamento, cuja sentença está por determinar; ou colocarem-se debaixo da protecção do Mandatário Aelgar, o que pelos ditames da Lei da Conscrição de Clausura vos isentará do estatuto de réus, vinculando-vos contudo ao serviço de Sirulia por um período de tempo indeterminado.

 

Vão ser usados como soldados rasos, conselheiro Allumno! advertiu o jurisconsulto ao ouvido do mago, que olhava para os sirulianos com um misto de surpresa, alívio e dúvida. Eles não vos deixarão partir em liberdade!

 

Aewyre entretanto também se levantara e viu Taislin, fitando o seu pequeno amigo com uma expressão de total confusão. O burrik passara quase despercebido até então devido à imponente presença dos sirulianos, mas as pessoas começavam a tomar nota do pequeno humanoide com o estranho embrulho aos braços, e essa atenção estava a deixá-lo nervoso. Todavia, acenava com a cabeça de cada vez que apanhava o olhar de Aewyre ou Allumno, incitando-os a uma resposta afirmativa.

 

Que dizeis, príncipe Thoryn, conselheiro Allumno? rouquejou o legista da esquerda. Desejais permanecer em Val-Oryth para serdes julgados e poderdes provar a vossa inocência, ou partir com o Mandatário a serviço... mandatário da nação de Sirulia?

 

Nesse preciso momento, Aewyre não reflectiu. O legista explicara as suas opções, e a escolha não podia ser mais clara. Nesse preciso momento, não houve tempo para pensar em consequências ou repercussões, responsabilidades ou implicações. Allumno estivera prestes a considerar-se culpado, e o jovem sabia que fora ele a razão para tão abnegada decisão. Vivera por instantes o entorpecedor horror de ver o seu tutor e amigo prestes a assinar a sua sentença para uma ignóbil morte, e a oferta de Aelgar afigurou-se-lhe como uma mão estendida a quem se afogava, um facho de luz na escuridão, um santuário para um animal acossado por uma matilha de cães. Não havia como recusar. Como podia recusar?

 

Eu desejo partir com o Mandatário declarou a alto e bom som, olhando de seguida para Allumno à espera da sua resposta.

 

O mago, contudo, hesitou. A sua boca estava entreaberta, os seus olhos estavam alternadamente postos nos sirulianos, nos legistas e no seu protegido. Todos esperavam uma resposta, e a que cada um pretendia acarretava consigo consequências bem diferentes. Aewyre estava ilibado, fora de perigo de momento. A sua decisão já não o podia afectar, mas como conselheiro sabia que podia bem comprometer irreversivelmente as relações entre Tanarch e Ul-Thoryn. Tinha a oportunidade de corrigir o erro que cometera, de pagar pelo crime que perpetrara, nada menos se esperaria do conselheiro real do regente de Ul-Thoryn, do pupilo de Zoryan, o Arquimago.

 

E, no entanto, o desespero que começava a ressurgir nos olhos de Aewyre dilacerava-lhe o coração. Não só isso, tinha medo. Não se podia esperar de um homem que desse a sua vida por uma causa jurídica, mesmo que fosse culpado, embora tivesse agido com o único intuito de defender o seu príncipe, que jurara proteger com a sua vida. Estaria a fazê-lo, se a entregasse às mãos dos legistas? Teria cumprido o seu dever?

 

Conselheiro Allumno? despertou-o o legista da direita.

 

O mago piscou os olhos. A sala era parcamente arejada, e pareceu-lhe excessivamente abafada, como se as próprias quatro paredes estivessem a exercer pressão sobre si. A gema na sua testa ficou orlada por suor, os olhares de todos os presentes pesavam-lhe em cima e um calor opressivo no peito dificultava-lhe a respiração. E os olhos de Aewyre, sempre os olhos de Aewyre... não, não podia. Não o podia abandonar. Fosse por fraqueza, cobardia, instinto de autopreservação ou amor pelo seu protegido, o mago renegou às considerações que o atormentavam e cedeu ao impulso mais básico, que durante os seus momentos de reflexão sempre lhe tentara quebrar os pensamentos com gritos de sobrevivência.

 

Com o aval deste tribunal, também desejo partir com o Mandatário disse por fim de cabeça baixa.

 

A tensa corda que sustia os presentes estalou e estes insurgiram-se, e os laicos não tinham a certeza de os querer impedir. Linsha manifestou a sua revolta, erguendo-se de súbito e apontando acusadoramente aos sirulianos e aos legistas.

 

Não! Não podem! Não têm autoridade! gritou, fazendo-se ouvir mesmo através do véu e no meio do bulício generalizado. Eles mataram lorde Malagor, membro do Triunvirato, não podem ser ilibados assim! Merecem a morte!

 

Morte! ecoaram alguns dos presentes, saltando dos ou sobre os seus assentos. Morte!

 

Os quatro companheiros viram-se por instantes a braços com uma furiosa turba que não tinham a certeza de conseguir impedir de matar os seus amigos, mas então uma possante voz explodiu na sala, ressoando e reverberando na pedra das paredes e emudecendo todas as outras. Os três sirulianos estavam voltados para a multidão, as espadas não haviam saído das suas bainhas, os punhos permaneciam descontraidamente aos seus lados, as suas expressões, apesar de rígidas e inflexíveis como rocha, não eram ameaçadoras, e contudo quase todos os presentes estavam estarrecidos e haviam involuntariamente retomado os seus lugares, alguns estavam mesmo sentados ou acocorados no chão. Os que continuavam exaltados olharam para trás e constataram que já não dispunham do apoio dos números, achando então por bem retraírem-se na tentativa de passarem despercebidos. Os olhos dos laicos estavam esbugalhados, o cenobita apoiava a mão no ombro de um, e dos quatro companheiros apenas Quenestil e Lhiannah não estavam defensivamente tensos, como se esperassem ser atacados. Aos pés do velho siruliano, Taislin estava hirto e agarrava o comprido objecto embrulhado com força, olhando para cima como um rato assustado. Aelgar virou a cara para Linsha, que se encolheu contra o perfeitamente aterrado meirinho, e prendeu ambos ao assento como se os seus olhos fossem dois pregos. Deixando a vigilância da aquietada turba a cargo dos dois jovens sirulianos, o Mandatário então devolveu a sua atenção aos legistas, cujos nodosos dedos estavam a agarrar as bordas das suas mesas de leitura com involuntária força antes de as largarem.

 

Legistas, os réus fizeram a escolha. Qual é o parecer do tribunal?

 

O trio entreolhou-se, conferindo em silêncio, mas estavam perfeitamente cientes de que apenas retardavam o inevitável e que o seu parecer não podia ser outro. Suspirando, o do meio foi o primeiro a falar.

 

Pelo poder que por Bellex nos foi investido, e pela autoridade da qual fomos revestidos pelo órgão judicial desta cidade de Val-Oryth, consideramos os réus dispensados do julgamento e doravante livres de qualquer litígio pertinente a este caso.

 

Houve movimentos nervosos na sala, abanares de cabeça, mãos erguidas em fracos gestos de protesto, sussurros indignados, mas debaixo da vigilância dos dois sirulianos ninguém se manifestou com o mesmo ardor demonstrado momentos atrás.

 

Assim o dita a lei disse o legista da esquerda, pigarreando.

 

Assim o proclama este tribunal continuou o do meio.

 

Assim Bellex o entende garantiu o da direita.

 

Que o Seu punho nos puna por qualquer erro ou falha voltou o da esquerda a falar.

 

Que a Sua palma nos perdoe se assim o entender aditou o do meio, baixando a cabeça de olhos fechados.

 

Esta audiência está terminada. Que os réus sejam libertos finalizou o da direita, arrumando os seus papéis num maço.

 

O burburinho continuou, mas ninguém se mexeu enquanto os legistas se levantaram, recolhendo os documentos enquanto se preparavam para sair. Quase todos na sala estavam atónitos ou incertos, completamente tomados de surpresa pelo virar dos eventos. Aelgar olhou para Aewyre e Allumno enquanto estes eram desagrilhoados por dois laicos, mas umas batidas na sua greva chamaram-lhe a atenção para baixo, onde Taislin tapava a boca de lado de bicos de pés para lhe dizer uma coisa. Aewyre ouviu o timbre esganiçado da voz do seu amigo, mas a meio do burburinho não conseguiu ouvir as suas palavras. O velho siruliano ergueu uma nobre sobrancelha e olhou para trás para os quatro companheiros no meio dos ouvintes, que se detiveram, incertos perante a sua atenção. A um sinal de Taislin, olhou para o outro lado para Linsha, e a reacção da mulher foi igual, embora talvez um pouco mais assustada. Tornou a fitar Taislin, parecendo reflectir enquanto o fazia, e tomou uma decisão quando os legistas já pareciam prontos para se retirarem.

 

Legistas, tenho outra petição a fazer a este tribunal.

 

Os três homens emproaram-se de indignação, pois sabiam muito bem que o que acabara de ser feito não fora nenhuma petição.

 

Desejo também alistar os companheiros de Aewyre Thoryn, considerados suspeitos neste caso.

 

O pico da indignação dos presentes já fora há muito alcançado, mas a exigência adicional teve o efeito de uma cuspidela na cara de um adversário derrotado, e um pequeno coro de vozes protestou, embora sem grande efusividade. Os legistas ponderaram, mas rapidamente chegaram à conclusão de que, estando o caso terminado, não havia razões para reterem os suspeitos, pelo que acederam.

 

São-lhe concedidos caso o escolham, Mandatário disse o legista do meio.

 

Aelgar não se dignou sequer a virar-se para trás, mas Taislin fê-lo, acenando com o longo objecto embrulhado para chamar a atenção dos seus companheiros e fazendo freneticamente que sim com a cabeça. Worick e Slayra entreolharam-se, mas Quenestil e Lhiannah pronunciaram-se de imediato.

 

Aceito disseram ambos ao mesmo tempo, embora a voz do eahan abafasse a da princesa, ainda fraca.

 

O thuragar e a eahanoir sentiam que a decisão que estavam prestes a tomar não devia ser feita de ânimo leve, mas os seus amigos, amados e protegidos já a haviam tomado, e abandoná-los era algo que nem sequer se punha em consideração.

 

Aceito disseram os dois também em uníssono.

 

Perante a concordância dos companheiros, os legistas anuíram com as cabeças, dispensando protocolo adicional, e ergueram um punho cerrado e uma palma estendida de olhos fechados e cabeças baixas.

 

Temei o punho e sede dignos da palma disseram os três em uníssono e retiraram-se numa ordeira fila para fora da sala pela pequena porta.

 

A saída dos legistas deixou atrás de si um ambiente de incerteza, mas os três sirulianos aprontaram-se para retirar antes que a audiência chegasse a qualquer decisão.

 

Aewyre Thoryn, Allumno, venham praticamente ordenou Aelgar, enfiando o capacete na cabeça e baixando a babeira. Vocês também disse aos restantes companheiros. Guarnecer flancos, Ajuramentados.

 

Com o Mandatário à frente, os companheiros atrás e os dois jovens sirulianos nos flancos, a pequena procissão saiu da sala, quase empurrada pelos olhares nas costas, e os Ajuramentados fecharam as portas, ignorando os laicos que lhes tentaram dirigir hesitantes palavras. Uma vez fora da sala, Aewyre não se conteve e pousou um joelho no chão para esmagar Taislin com um abraço, apertando o comprido objecto entre ambos.

 

Meu endiabrado... quase soluçou o guerreiro, enfiando a cara no barrete do burrik. Fizeste-o outra vez... seu desnaturado, inconsciente... fizeste-o outra vez...

 

Taislin viu-se incapaz de responder, sentindo que se mexesse um músculo as suas costelas cederiam, e os sirulianos detiveram-se, observando a cena com olhares impacientes. Aewyre acabou por libertar o burrik, mas não antes de lhe apertar a cabeça com tal força que o pequeno ladrão julgou que os seus olhos iriam saltar.

 

Toma... disse por fim quando foi liberto dos dolorosos afagos do guerreiro, presenteando-o com o objecto embrulhado, cujas Cobras soltas durante o abraço revelavam o reluzente aço da lâmina de Ancalach.

 

Aewyre sorriu e estendeu a mão para a agarrar.

 

Obrigado, meu...

 

A manopla de Aelgar surgiu do nada e pegou na Espada dos Reis pela lâmina encoberta, reclamando-a para si. O guerreiro ficou momentaneamente estupefacto, e olhou boquiaberto da sua posição ajoelhada para o Mandatário com as surpresas sobrancelhas franzidas.

 

Não estás em liberdade, Aewyre Thoryn, nem tu nem os teus companheiros. Estão todos ao serviço de Sirulia por vossa própria escolha, o que significa que até depararem com uma autoridade superior, estarão sob o meu comando pessoal.

 

Os companheiros nada disseram, também eles aturdidos com o que quase lhes pareceu ser súbita hostilidade da parte de Aelgar. Os dois Ajuramentados permaneceram em silêncio nos flancos do grupo, sem traírem qualquer tipo de emoção com os seus semblantes.

 

Não vos foi feito nenhum favor, e espera-se uma contrapartida da vossa parte, o que ficou bem explícito na audiência.

 

Mandatário... conseguiu Allumno pronunciar-se, lembrando-se das palavras do jurisconsulto. O que é esperado de nós?

 

Não ouviram? perguntou, dirigindo-se a todos os companheiros. Um exército está em marcha, vindo de Asmodeon, e uma batalha é inevitável. Mas não serão apenas os sirulianos a darem o seu sangue em defesa de Tanarch.

 

As palavras de Aelgar apertaram os corações dos companheiros, e Taislin pareceu de todos o mais surpreso, olhando para o Mandatário como se tivesse sido por ele traído.

 

Vocês e os outros criminosos em breve irão aprender o valor do sacrifício...

 

As estradas de Tanarch eram praticamente intransitáveis durante a Primavera devido aos mares de lama causados pela neve derretida nos picos das montanhas, mas felizmente para os seus habitantes, as vias fluviais abundavam, ligando as cidades umas às outras nos meses do degelo. Val-Oryth dispunha de um pequeno porto fora das suas muralhas, ligado ao caudal do Doleg, um afluente do rio Niolga, que nascia no vale da Cinta ao fundo do qual a cidade se situava. O embarcadouro era constituído por uma série de quatro cais, um armazém ligado a uns estábulos com bestas de carga, um estaleiro, o edifício do fiscalizador e um posto que abrigava o contingente de seis guardas que zelavam pela ordem e pelo pagamento dos impostos fluviais.

 

Contudo, nessa manhã fresca e seca de céu limpo, os milicianos tiveram de ser assistidos por reforços da cidade devido à exaltada multidão que perseguia os conscritos escoltados pelo grupo de sirulianos. Os quarenta e quatro prisioneiros absolvidos caminhavam numa andrajosa fila, agrilhoados uns aos outros pelos pulsos, todos eles criminosos e transgressores que haviam preferido arriscar combater pelos sirulianos a cumprirem as suas penas nas masmorras ou nos cadafalsos de Val-Oryth. Aelgar, o Mandatário, liderava a procissão, ignorando altivamente os insultos e vitupérios que lhe eram dirigidos e a todo o seu povo, bem como os cães que se lhe punham no caminho, ladrando e fugindo e tornando a ladrar. Deadan e Taeran seguiam nos flancos da fila ao lado de quatro milicianos da cidade, cuja vontade mais parecia ser juntarem-se à multidão e apedrejarem os arrogantes jovens. Outros dois sirulianos altos e arnesados seguiam mais atrás, estes acompanhados por seis milicianos, pois escoltavam Aewyre e Allumno, os mais polémicos conscritos de que havia memória na já longa linha de eventos causados pela Lei da Conscrição de Clausura. Os dois estavam na cauda da fila, sobre a qual recaíam grande parte das atenções da exaltada multidão e, na falta de uma bengala, o mago apoiava-se sobre os ombros do guerreiro, roçando-lhe a pele entre as omoplatas com as suas grilhetas. Aewyre tentava resguardar o seu tutor dos legumes e manelos de lama dos quais estavam a ser alvo e dos quais nem os sirulianos nem os milicianos os podiam (ou queriam, no caso dos últimos) proteger, e o seu cabelo e braços ligados já estavam empastados com detritos. Sendo voluntários, Worick e Quenestil caminhavam sem grilhetas atrás da fila e tentavam sem grande sucesso proteger os seus amigos da fúria da multidão. Lhiannah, Taislin e Slayra, os três restantes voluntários, estavam sentados na carroça de víveres e equipamento puxada por Alfarna e outra mula, conduzidas por um sexto siruliano, que também tinha de arcar com a indignação dos habitantes de Val-Oryth que haviam seguido a fila desde a sua saída dos portões da cidade. No dia anterior, o resultado da audiência espalhara-se como fogo em palha seca, e um considerável número de cidadãos revoltados saíra às ruas para protestar à porta do Cenóbio da Equidade. Ainda não chegara nenhuma palavra dos restantes membros do Triunvirato, e o facto de a procissão partir no dia a seguir à audiência fomentara muitas teorias de conspiração e acusações de fuga à justiça, bem como novos pretextos para pregar o ódio a Sirulia. Homens, mulheres, crianças e cães seguiam a procissão num coro de insultos e protestos, vaiando os sirulianos, exigindo justiça para os assassinos de lorde Malagor e a libertação dos restantes prisioneiros, indignados com o que para eles nada mais era do que tanarchianos a darem o seu sangue por Sirulia, ignorando o facto de serem voluntários e vendo-os apenas como mais uma prova da tirania da nação vizinha.

 

Uma vez chegados ao embarcadouro, os sirulianos dispuseram a fila de forma a que ficasse enrolada como uma serpente à beira de um dos cais, separada da multidão por uma barreira de contrariados milicianos enquanto se preparavam para embarcar. O batel no qual iriam viajar era uma alongada barcaça de fundo chato desprovida de convés, com um leme, um mastro com uma pequena vela azul, lugar para uns setenta homens e uma borda esburacada para o uso de remos. Um siruliano pulou para dentro da barcaça e estendeu a prancha de embarque, após o que Aelgar ordenou ao primeiro prisioneiro na fila que entrasse, deixando oito passar e mandando a fila parar uma vez mais para separar esses oito dos restantes para que estes coubessem num dos assentos. Repetiu este procedimento quatro vezes debaixo dos assobios e protestos da multidão, fitando cada um dos prisioneiros que por ele passavam e que, por uma razão ou outra, se recusavam a olhá-lo nos olhos, até que chegou a vez de Aewyre. O jovem enfrentou o olhar do velho siruliano, cujos severos orbes acerados eram bem visíveis, focalizados pela abertura entre o elmo e a respectiva babeira. A expressão e a postura do guerreiro não eram impertinentes ou de alguma forma hostis, mas denotavam uma certa medida de desafio. Os dois olharam-se durante longos momentos, chamando a atenção dos restantes prisioneiros e de alguns membros da multidão. Allumno apertou-lhe os trapézios, incitando o jovem a continuar, mas Aewyre parecia decidido a obter naquele momento uma resposta para uma pergunta que contudo desconhecia. Um pedaço de verdura escorria-lhe pela mancha de lama no malar abaixo, mas o guerreiro ignorava-a e aos restantes nacos de legumes plantados na sua cabeça, determinado a não se retrair perante o inflexível olhar de Aelgar desta vez. Talvez por se aperceber disso, foi o velho siruliano quem terminou a contenda de vontades.

 

Avança, Aewyre Thoryn. A ênfase que o homem dava ao seu nome continuava a confundir o jovem, mas perante a insistência de Allumno acabou por fazer como lhe fora ordenado e entrou na barcaça.

 

Quenestil ajudou Lhiannah e Slayra a descerem da carroça, e Taislin despediu-se da Alfarna. A mula permanecera nos estábulos das Alas da Convalescença durante a estadia dos companheiros em Val-Oryth, e o templo de Acquon acordara em ficar com o animal após a partida dos companheiros.

 

Adeus, Alfarna. O Worick já não te vai chatear mais... disse o burrik, abraçando-lhe o pescoço crespo. A mula orneou de contentamento.

 

Embora não partilhassem dos sentimentos de Taislin, Slayra e Lhiannah também se despediram da mula com festas no nariz, e Worick lançou-lhe um último insulto que, com algum esforço de interpretação, eventualmente pudesse ser visto como sendo de boa índole. Os cinco companheiros foram encaminhados para um assento perto da popa da barcaça, cuja madeira estava húmida devido à neve derretida, enquanto dois sirulianos traziam o carregamento da carroça para dentro da embarcação: peles, provisões, barricas e meia dúzia de caixotes. Aewyre e Allumno olhavam frequentemente para trás, assegurando-se da presença dos seus companheiros e ignorando os olhares que lhes eram dirigidos pelos restantes prisioneiros. Slayra segredou algo a Quenestil, que perguntou algo a Lhiannah e Worick, recebendo um aceno afirmativo das cabeças de ambos, e os dois eahan levantaram-se, pedindo licença a um dos jovens de cabelos penteados para a frente e nuca rapada, apontando para os seus dois amigos. O Ajuramentado, que parecia ser mais novo que o casal mas que era uma boa cabeça mais alto do que eles, olhou para os prisioneiros, para o Mandatário, que estava ocupado a orientar os carregadores, e estudou o casal, incidindo sobretudo em Slayra com o seu escrutínio. Quando a eahanoir começava a ficar nervosa com o olhar do jovem siruliano e Quenestil já a agarrava protectoramente pela cintura, o Ajuramentado consentiu e indicou-lhes que seguissem em frente com uma inclinação da cabeça, prosseguindo com os seus deveres. Os sirulianos estavam completamente alheios à multidão e não pareciam sequer ter em conta a hipótese de um motim dos prisioneiros, tal eram o à-vontade e a naturalidade com os quais agiam. Os dois eahan foram ter com Aewyre e Allumno, que se sentavam lado a lado com seis outros prisioneiros, aos quais continuavam ligados por correntes.

 

Como está o joelho? perguntou a eahanoir a Allumno quase em surdina, ajoelhando-se ao lado do assento. Quenestil permaneceu atrás, lançando olhares de aviso a todos quantos observavam Slayra.

 

Menos mal disse o mago, esfregando-o.

 

Os sirulianos foram bastante inflexíveis quanto à bengala, como aliás parecem ser com tudo o resto...

 

Precisas de que eu o veja?

 

Não, não é necessário. O Aewyre deu-me uma ajuda a andar.

 

Aewyre? virou-se a eahanoir para o guerreiro.

 

Tudo bem aqui, Slayra assegurou Aewyre, erguendo os dois antebraços ligados.

 

Estás todo sujo... Slayra tirou-lhe uma madeixa de cabelo enlameada da frente da cara, levantou-se e desapertou a faixa vermelha que lhe cingia a cintura, originando alguns murmúrios pela parte dos prisioneiros que não estavam absortos nos seus próprios pensamentos ou com a multidão.

 

O que é que estás a... ? A boca do jovem foi tapada pela cinta da eahanoir, que começou a esfregar-lhe a cara com ela. Slayra... queixou-se Aewyre, fechando um olho e fazendo uma careta.

 

Está quieto, não te mexas disse-lhe Slayra, limpando a porcaria e a lama que cobriam a face de Aewyre. Aqueles idiotas tentaram plantar uma horta podre na tua cara.

 

Aewyre acedeu e deixou-se limpar, queixando-se apenas quando a eahanoir usou a faixa como uma toalha, embaraçando-lhe o cabelo sujo. Quenestil mantinha-se vigilante atrás dela e reparava que os sirulianos olhavam muitas vezes para o seu amigo enquanto trabalhavam. Allumno também o notara, mas humano e eahan limitaram-se a trocar olhares deliberados sem saberem o que deduzir do que viam.

 

Não precisas de que eu te mude as ligaduras? perguntou Slayra, dobrando o lado sujo da faixa para dentro e atando-a à volta da cintura.

 

Não, elas estão só um pouco sujas. Foram só umas queimaduras... e vocês, como é que estão?

 

Melhor do que vocês, ao que parece comentou a eahanoir, erguendo a fina sobrancelha. Vocês são prisioneiros; nós somos voluntários.

 

O que importa é que já não estão presos nem sob julgamento

 

interveio Quenestil. Agora ao menos temos todos uma hipótese.

 

É verdade, chegaram a saber mais alguma coisa acerca do que se passa na Sirulia? perguntou Allumno.

 

Não, só sabemos aquilo que nos disseram à saída da audiência disse Slayra. Vem um exército de Asmodeon e vai haver uma batalha. E nós vamos tomar parte nela.

 

Tu não apressou-se Quenestil a corrigir.

 

Slayra revirou os olhos e inclinou a cabeça para o eahan.

 

E a Lhiannah, como está? quis Aewyre saber.

 

Está bem afirmou Quenestil. Queixa-se um pouco das costelas e do maxilar, mas tem lidado bem com a situação... Um Ajuramentado passou atrás do shura, empurrando-o ligeiramente com o ombro para cima de Slayra ao dirigir-se para a popa da barcaça para começar a verificar as grilhetas dos prisioneiros.

 

O pior já passou, felizmente acrescentou a eahanoir, olhando para as costas do siruliano. Se ela não fizer esforços desnecessários e me deixar tratar dela, deve recuperar bem, mesmo sem grande ajuda de Acquon.

 

O guerreiro permitiu-se suspirar pelo menos essa preocupação para fora e coçou o nariz, tilintando as grilhetas que lhe prendiam os pulsos.

 

São mesmo necessárias? perguntou Quenestil, indicando as correntes.

 

Somos prisioneiros... lembrou-lhe Allumno. Vocês voluntariaram-se; a nós foi-nos dada a escolher a forma de cumprir a pena que merecíamos.

 

Não fales assim, Allumno... disse a eahanoir.

 

Infelizmente é a verdade, Slayra.

 

Nenhum dos quatro soube responder. Era evidente que o mago ainda não se conciliara com o sucedido na mansão do meirinho, e nada do que os seus companheiros dissessem poderia tranquilizar-lhe a consciência. O ruído da multidão foi o pretexto de que os companheiros precisavam para virarem as suas atenções para outro lado. A linha de milicianos era bastante permissiva e teria sido praticamente ignorada pela turba não fosse pela obstrução física que representava. Legumes e seixos caíam na água e dentro e contra o barco, fazendo a madeira ressoar com os baques e atingindo o ocasional prisioneiro. Insultos e pragas voavam com perdigotos; mulheres choravam a partida dos maridos, mais tementes das mortes destes que dos anos que de outra forma teriam passado sem a sua companhia; cães latiam e rosnavam, por vezes com a própria multidão, chegando mesmo a morder alguns cidadãos.

 

Eles odeiam-nos disse Aewyre a ninguém em especial, deixando pouco claro se estava a referir-se a si mesmo e a Allumno ou aos sirulianos.

 

Quenestil e Slayra foram pela segunda hipótese e nutaram com as cabeças, espantados com o ódio patente nas vozes e nas caras da turba. Não fosse pelo destemor dos sirulianos e o respeito inspirado por inúmeros sentimentos para com estes, a multidão decerto já teria tomado uma acção mais directa, e os eahan duvidavam de que a linha de milicianos fosse obstáculo para a sua fúria.

 

É só asco e ódio. Parecem duas nações em guerra admirou-se Quenestil. Afinal o exército vem de Asmodeon ou de Tanarch?

 

- É uma longa história, Quenestil disse Aewyre, lembrando-se do que Mamã lhe contara na caverna. Na altura tomara o relato que a líder dos Corações Quebrados lhe fizera por um exagero faccioso ou religioso, pois era inegável que o que os sirulianos faziam com as suas mulheres ia contra os dogmas de Assana, mas o que via naquele cais excedia as suas piores expectativas, não se comparava sequer à cena que presenciara ao encontrar Aelgar pela primeira vez. Os insultos que ouvia eram os de uma nação ultrajada, os apelos eram os de homens e mulheres injustiçados, os gestos e gritos de raiva eram os de soldados incipientes prontos a entrarem em guerra caso alguém a declarasse.

 

Os sirulianos começaram a gritar algo enquanto os últimos caixotes eram carregados, e os dois eahan perceberam a deixa.

 

Se calhar devíamos voltar lá para trás disse Quenestil. Allumno concordou com um absorto aceno da cabeça.

 

Sim. Precisam de alguma coisa? perguntou Slayra, recebendo abanares negativos como resposta. Muito bem. Então vemo-nos depois, seja lá quando isso for...

 

Quenestil estendeu o braço para apertar o ombro de Aewyre, que pousou as suas mãos agrilhoadas sobre a do seu amigo, tensionando o músculo em forçada confiança quando o shura lho apertou, dando ainda uma palmada nas costas de Allumno antes de se retirar.

 

A voz de Aelgar sobrepôs-se a todas as outras, dando por fim o sinal do início da partida. Os caixotes foram provisoriamente arrumados entre os assentos vazios e um Ajuramentado levantou a prancha de embarque enquanto outro desfraldava a quadrangular vela azul em cujo tecido estava bordado um estranho brasão que Aewyre não reconheceu ao virar a cabeça para trás. A vela retratava a mesma insígnia que o Mandatário ostentava ao peito, a do busto de uma mulher coberta por uma mantilha branca e com uma coroa dourada na cabeça, uma imagem que dificilmente associaria a um povo em constante estado de guerra como os sirulianos. Ia perguntar a Allumno o que representava, mas nesse preciso momento surgiu um Ajuramentado que lhes verificou o estado das grilhetas, dando leves sacões nas cadeias de cada um dos seis prisioneiros no seu assento. A um sinal de Aelgar, outro jovem siruliano desamarrou a grossa corda que atracava o barco ao cais, pelo que a pergunta teria de ficar para mais tarde.

 

Um jovem siruliano encarregou-se do leme, e a barcaça afastou-se do embarcadouro, deixando-se arrastar pela corrente e pelas suaves exalações do vento que soprava naquela manhã. Os milicianos puderam por fim respirar de alívio quando a turba abandonou o cais e foi seguir a barcaça pela margem do caudaloso rio abaixo, sem nunca cessar de arrojar praguejes e maldições aos seus ocupantes. A embarcação foi-se afastando da cidade, e as pessoas começaram a voltar atrás, de regresso às suas vidas, mas muitas continuaram a perseguição, gritando até ficarem roucas e atirando os derradeiros detritos que tinham à mão. Houve mesmo uma mulher que entrou pela seixosa margem do frio e lamacento rio adentro, ficando com água pelos tornozelos, e que se acocorou, levantando a saia e urinando, deixando a corrente levar o seu asco de encontro aos sirulianos. Por fim, mesmo os mais determinados acabaram por se cansar e voltaram para a cidade. A barcaça percorreu a sinuosa curva que o rio descrevia e desapareceu atrás de um outeiro rochoso, deixando apenas a ponta da vela azul visível, levada pelas águas do rio como uma má memória.

 

A barcaça desceu o Doleg até Val-Oryth e as aldeias circundantes desaparecerem da vista dos seus tripulantes. As águas do rio estavam castanhas e turbulentas, e a corrente era forte devido à neve derretida que os contrafortes a estibordo copiosamente choravam. O céu permanecia claro, e o sol primaveril brilhava, quente, mas agora que não se encontravam no meio do calor de uma furiosa turba, os andrajosos prisioneiros sentiam na pele a aragem fria que parecia resvalar na água de encontro aos seus corpos mal agasalhados. Os odores que pairavam no ar eram uma mistura de terra molhada e resina dos pinheiros que orlavam a riba do rio e em cujos ramos já só se viam sobejos de neve. Sentiam-se contudo outros aromas no ar, fragrâncias florais que enfatizavam as novas cores na paisagem, que até então apenas exibira tons de branco e castanho-escuro, pois o desabrochar primaveril começara durante a semana que os companheiros haviam passado em Val-Oryth. As brenhas cortadas pelo curso do rio e as vertentes dos contrafortes estavam tingidas de amarelo, roxo e azul, contrastando com a alvura da moribunda neve.

 

Aewyre abraçava os braços para se resguardar do frio, olhando ocasionalmente para Allumno, cuja toga parecia suficientemente quente para o meditabundo mago. A barba que lhe estava a crescer fazia-lhe comichão nas suturas, mas sabia que coçar a cara só lhe poderia trazer problemas, pelo que optou por se distrair com um pouco de conversa, lembrando-se da estranha insígnia da vela.

 

Allumno, aquele é o brasão da Sirulia? perguntou, achegando-se ao ouvido do seu tutor e indicando a vela. O mago virou a cabeça para trás.

 

Não, é o brasão dos Mandatários esclareceu numa voz desinteressada. Aquela é a rainha Ashlae.

 

Também foi exilada? indagou. O ondeante busto era de um desenho singelo, mas fora executado e bordado com tal mestria que de alguma forma conseguira captar o porte nobre da mulher que retratara.

 

Não ficou uma única mulher na Sirulia depois da Cisão. Asmodeon era forte então, e os castelos dos sirulianos estavam constantemente debaixo de ataque. Todas as mulheres, crianças e homens fracos e enfermos da nação foram enviados para aquela que viria a ser Tanarch, embora na altura nada mais fosse do que uma terra parcamente habitada por tribos bárbaras. Nem mesmo a rainha escapou a esse destino.

 

E a minha mãe? lembrou-se o guerreiro.

 

Adelayne era uma descendente de Ashlae, mas a família real da Sirulia deixou de existir muito antes da Guerra da Hecatombe. O rei Aelgor e os seus filhos Anaeron e Gaenan morreram numa batalha anos após a Cisão, e Ashlae declarou luto enquanto o comando de Sirulia era entregue aos Castelães.

 

E não teve mais filhos depois disso? insistiu Aewyre, ainda a pensar na sua mãe. Por muito taciturno que estivesse, Allumno nunca resistira a responder a perguntas acerca da história de Allaryia.

 

Teve, mas não da forma desejada. Após anos de luto, os Castelães começaram a ficar preocupados, pois Ashlae já não era uma mulher jovem e o tempo urgia que desse à luz um herdeiro, mas a rainha recusava-se a ser tomada fosse por quem fosse, embora não faltassem voluntários da mais elevada estirpe.

 

Allumno calou-se quando um Ajuramentado passou ao seu lado, olhando em redor e verificando o estado de espírito dos prisioneiros. O jovem siruliano dispensou mais tempo a olhar para Aewyre do que para os restantes, mas acabou por avançar.

 

Ashlae era intransigente, mas o herdeiro acabou por vir. Certa noite, na povoação que mais tarde viria a ser Dul-Goryn, a rainha deu uma festa para celebrar a aliança dos exilados de Sirulia com uma poderosa tribo liderada por um carismático chefe, Ovan Rakow, que desde o início os ajudara. Ninguém sabe ao certo o que aconteceu, se foi do excesso de bebida, se da solidão, se da necessidade de conforto, se do alegado magnetismo animal de Ovan, mas a verdade é que nessa noite Ashlae quebrou o luto nos seus aposentos...

 

Allumno tornou a calar-se quando um Ajuramentado na popa perguntou em voz alta algo sobre a margem do rio ao que fora verificar os prisioneiros, que lhe respondeu afirmativamente. Certo de que nada de relevante se passava, o mago prosseguiu com o que para Aewyre já se tornara numa lição de história.

 

Muitos souberam, mas poucos o comentaram. Consolidada a aliança, Ovan voltou para as suas inúmeras mulheres, deixando uma esperançosa Ashlae grávida para trás.

 

O quê, ela pensou que ele a amava?

 

Também ninguém sabe ao certo o que Ashlae pensou. O que aconteceu foi que a rainha entrou em depressão e que nunca mais se livrou dos sentimentos de culpa e vergonha que a partir de então a atormentaram. A criança nasceu, mas Ashlae estava cansada e já não era jovem, e os rigores do parto foram demasiado para ela. Morreu ao dar à luz o filho bastardo de um pai bárbaro, e assim que os Castelães souberam do sucedido privaram de imediato a criança de qualquer título ao qual pudesse eventualmente ter direito e declararam a família real como extinta, assumindo permanentemente o controlo da Sirulia.

 

E a minha mãe? insistiu Aewyre.

 

Descendente do filho de Ashlae, que casou com uma siruliana. A tua mãe foi princesa apenas no nome e apenas em Tanarch, pois nunca lhe foi reconhecido poder algum por parte dos sirulianos. O conselho de Thoryn, por exemplo, tentou reivindicar direitos de regência para o teu irmão muitos anos atrás, mas foram sumariamente refutados.

 

Estou a ver... O jovem nunca pensara nas implicações de ser filho de uma princesa siruliana, mas o mago dera de qualquer forma a entender que não havia grandes considerações a ter. Tornou a olhar para a vela e continuou a admirar o busto da rainha. E os Mandatários?

 

São encarregues de todos os anos liderarem as expedições de... concepção em Tanarch. São os Mandatários que mantêm os registos das linhagens, das descendências, e asseguram-se da pureza do sangue siruliano das mulheres.

 

Mas isso... parece que estão a criar cavalos...

 

O mago encolheu os ombros, limitando-se como sempre a constatar os factos sem emitir juízos de opinião.

 

Então e por que é que não trouxeram crianças?

 

Vamos para uma batalha, já te esqueceste? relembrou-lhe Allumno asperamente como um tutor o faria com um pupilo desatento. Os sirulianos não iriam pôr as suas crianças em risco levando-as para a guerra pela qual exilaram as suas mulheres.

 

Aewyre apercebeu-se de que a lição terminara e de que era melhor deixar o mago sossegado, e nesse preciso momento os pesados passos na madeira do barco anunciaram a aproximação de Aelgar, que passou a seu lado e se postou diante da proa, gritando indicações ao Ajuramentado que manuseava o leme e apontando para a margem. Na área na qual se encontravam, o Doleg descrevia uma sinuosa curva, acompanhando o relevo do contraforte da Cinta a estibordo e contornando uma língua de terra coberta de pinheiros, entrando na sombria parte ao poente do contraforte, cuja margem o Mandatário indicava. O Ajuramentado fez como lhe foi dito e orientou a barcaça nessa direcção, mergulhando na penumbra da umbria. Os tripulantes sentiram de imediato mais frio quando a embarcação saiu da área abrangida pelo sol e todos estranharam a razão da paragem, preparando-se para a iminente colisão do casco da barcaça com a margem saibrosa. O impacto não foi violento, porém, de qualquer modo, Quenestil pôs um instintivo braço à frente de Slayra. Os dois eahan entreolharam-se e Worick, Lhiannah e Taislin fizeram o mesmo, todos igualmente curiosos. O Mandatário estava na proa e virou-se para os prisioneiros, confirmando se tudo estava em ordem antes de falar.

 

As peles, Ajuramentados disse numa voz vigorosa e clara. Deadan e Taeran abriram dois caixotes e deles tiraram peles que distribuíram pelos prisioneiros. O Verão aproxima-se, mas vocês estão vestidos com trapos e poderão necessitar de roupas quentes em certas partes da viagem.

 

Quando os agasalhos acabaram de ser distribuídos, Aelgar continuou:

 

Todos sabem por que estão aqui. Todos vocês são criminosos condenados ou por condenar, e todos sem excepção escolheram servir Sirulia de forma a obterem o perdão de Tanarch pelos vossos crimes. Os quatro companheiros que se haviam voluntariado olharam nervosamente uns para os outros, sem saberem se o Mandatário os incluía a eles também ou não. Vamos a caminho de uma batalha em defesa da própria terra que vocês de uma forma ou de outra lesaram. Um exército de drahregs e afins progénies do Anátema marcha de Asmodeon em direcção a Sirulia, e cabe-vos a vós ajudar-nos a impedi-los de passar. Lutem bem e poderão partir absolvidos e em liberdade. Os que lutarem e morrerem serão enterrados com dignidade em Tanarch. Os que fugirem ou desertarem serão capturados e executados, seja qual for o vosso crime.

 

Um colectivo gesto nervoso percorreu o grupo de prisioneiros.

 

Encontram-se neste momento debaixo da jurisdição da Sirulia, que eu represento e me asseguro de que é respeitada. Enquanto estiverem debaixo da minha alçada, exijo obediência incondicional e boa conduta, e não aceito conflitos que possam de alguma forma retardar o nosso avanço. A viagem deverá durar duas semanas, numa das quais percorreremos o Doleg e o Niolga até Ul-Syth; nessa parte da travessia não terão de remar, pois os rios são demasiado estreitos e haverá algumas paragens. Viajaremos apenas de dia, pois tanto o Doleg como o Niolga são perigosos à noite. De Ul-Syth partiremos para o mar nesta mesma embarcação, e nessa segunda semana os mais fortes entre vós serão destacados para manusearem os remos. Velejaremos dia e noite até chegarmos ao nosso destino: Aemer-Anoth, onde nos posicionaremos para defender a passagem para o Istmo Negro. Perguntas?

 

Se havia, ninguém ousou fazê-las.

 

Muito bem. Ajuramentados, sirvam-lhes o repasto.

 

Os jovens sirulianos abriram outro caixote com filetes de peixe seco e pão de centeio que distribuíram pelos prisioneiros e serviram-lhes kashkin de barricas em taças de madeira. Os cinco companheiros receberam o mesmo, e Worick franziu o nariz com a bebida.

 

Há coisas que não merecem sequer ser fermentadas... resmungou, bebendo com desagrado.

 

Lhiannah encolheu-se e baixou a cabeça para não ser vista enquanto erguia a taça com as duas mãos para ser servida. O jovem siruliano que o fazia mal reparou nela, concentrado apenas em cumprir a tarefa para a qual fora designado. Slayra contudo reparou, e esperou que o Ajuramentado se afastasse antes de se inclinar para a arinnir.

 

Lhiannah, o pior já passou. Isso são só feridas superficiais...

 

Se a princesa a ouviu, não o deu a entender, limitando-se a levar a taça à boca e permanecendo curvada.

 

Lhiannah... Slayra sentiu a mão de Quenestil no seu ombro e virou a cara para ver o eahan abanar lentamente a cabeça. A eahanoir abriu a boca para dizer algo mais, mas Quenestil apertou-lhe a espádua com mais veemência, e Slayra soltou um conformado suspiro, trincando o seu filete.

 

Isto não te lembra nada? sussurrou-lhe o shura ao ouvido para mudar o assunto.

 

O quê? indagou a eahanna, algo contrariada. -Água à nossa volta, um barco, peixe seco...

 

Slayra parou de mastigar e olhou para Quenestil, parecendo brilhar dos cristalinos orbes azuis. O eahan fingiu desinteresse, bebendo da taça sem contudo tirar os olhos dos da eahanna.

 

Isso não é nada teu... disse Slayra em admirada surdina. Lembrares-te disso numa situação destas...

 

Quenestil pousou a taça sobre o joelho e pegou-lhe no queixo, acariciando-lhe o lábio inferior com o polegar, sorrindo enquanto mastigava.

 

Querias dizer alguma coisa com isso, ou foi só para me calar?

 

perguntou a eahanoir, matreira.

 

O shura não respondeu e em vez disso percorreu o pescoço e peito de Slayra com a mão até chegar ao seu ventre, que afagou com todo o cuidado. A eahanna olhou para a mão, agarrando-a e olhando para o eahan, trocando com os olhos sentimentos que dificilmente podiam ser transmitidos por palavras.

 

Haverá três refeições todos os dias ouviram a voz do Mandatário dizer, quebrando o encanto do momento. Deverão ter cuidado com o que comem, pois muitos decerto não estarão habituados às oscilações e podemos perder muitas provisões dessa forma. Todos os que se sentirem minimamente enjoados devem comer com parcimónia, principalmente quando chegarmos ao mar. Aelgar percorreu as filas de prisioneiros com o olhar uma última vez para se assegurar de que as suas palavras haviam sido ouvidas e compreendidas.

 

Muito bem. Ajuramentados, removam os vossos arneses para partirmos. Quero chegar às Penhas Lacrimosas antes do anoitecer.

 

Os dois dias que se seguiram foram rápidos e monótonos. Boa parte da jornada decorria debaixo da sombra dos montes e penhascos que ocultavam o sol a estibordo à medida que o Doleg ia subindo ligeiramente para Norte, pelo que boa parte dos dias eram passados ao frio. As Penhas Lacrimosas eram uma longa série de altos e arrogantes penhascos de escura rocha talhada, mascarrados com líquenes brancos e encimados por mirrados pinheiros rupestres, e de cujas alcantiladas vertentes manavam pequenas cascatas de água acastanhada pelo degelo da tardia Primavera. O ar era especialmente fresco e húmido ao longo da extensão das Penhas devido aos borrifos do constante cachoar, e a tripulação ficou com os cabelos molhados e as roupas humedecidas. Os sirulianos envergavam apenas casacões de tecido forrado de penas, pois haviam removido e arrumado os seus arneses em caixotes como precaução contra eventuais acidentes no rio. Contrastando com a encolhida e miserável tripulação, erguiam-se altos e dignos de cabelos húmidos colados à testa, olhando sempre em frente para o destino que ainda não avistavam durante o tempo que levaram a percorrer a extensão das Penhas. As refeições eram rápidas e insossas, as noites ao relento frias e desaconchegadas, embora fossem um alívio temporário do desconfortável barco, e providenciavam parco repouso para o abrupto despertar no dia seguinte e o decorrente retomar da viagem. Aelgar não aceitava demoras, pois era óbvio que o tempo urgia e que queria aproveitar cada dia para percorrer o máximo de distância possível, o que tornava a satisfação das necessidades fisiológicas em algo desconfortável e desprovido de privacidade para todos aqueles que não aguentavam esperar até à noite. Da tripulação era apenas esperado que se mantivessem silenciosos e sossegados, pelo que cada longo dia era extremamente fastidioso.

 

Slayra verificava o joelho de Allumno regularmente, embora as averiguações não passassem de uma desculpa para falar com ele e com Aewyre, pois o mago não se queixava mais que o que era habitual, e na verdade a travessia estava a servir como uma espécie de repouso para a sua rótula. Por sua vez, o mago lembrava-se de inquirir acerca da condição da eahanoir, que nunca tinha nada de novo a anunciar e que sempre dizia que havia coisas mais importantes com as quais se deviam preocupar. Os companheiros sabiam que iam para uma batalha, mas, com a excepção de Worick, nenhum sabia ainda ao certo o que esperar. Porém, mesmo o thuragar estava apreensivo, não só por praticamente desconhecer aqueles pelos quais iria combater e os motivos e pormenores da vindoura batalha, como também por Lhiannah. A única alternativa do grupo fora oferecer-se para ir com os sirulianos, pois de outra forma teriam sido separados, mas agora Worick matutava acerca do que seria esperado da princesa. Exigiriam os sirulianos que ela combatesse? Mesmo que a sua protegida não estivesse ferida, não era uma perspectiva que lhe agradasse. Lhiannah passava os dias em silêncio e de cabeça baixa. Comia o que lhe davam, respondia sucintamente a quaisquer perguntas que lhe fossem feitas e deixava Slayra ver e tratar das suas feridas na privacidade das árvores quando atracavam ao fim de um dia de viagem. Já não tinha a vontade de se isolar de que dera mostras nos dias após o seu despertar, mas permanecia reservada e pouco comunicativa. O thuragar tentara por várias vezes falar com o Mandatário acerca das duas mulheres e do seu papel na batalha, mas Aelgar nunca lhe prestara atenção, e os Ajuramentados afirmavam sempre que todas as perguntas lhe deviam ser dirigidas. Os sirulianos não o pareciam ter a ele nem a Slayra em grande estima, julgando pela forma com a qual os ignoravam e pelos indecifráveis e prolongados olhares dos quais ambos eram frequentemente alvos.

 

Pedras me partam, não tarda vou buscar o meu martelo ao caixote a ver se isso lhe chama a atenção... resmoneou o thuragar ao fim do dia sem se incomodar em baixar o tom de voz de modo a não ser ouvido pelo Ajuramentado que guiava o leme e que, de qualquer forma, o parecia ignorar.

 

Calma, Worick disse Quenestil quase em surdina. Não te esqueças de que eles se consideram filhos de Sirul. Não gostam muito de thuragar e eahanoir, como podes imaginar...

 

São mas é uns filhos da...

 

Worick... admoestou-o Slayra, indicando o siruliano ao leme. O Ajuramentado mantinha o olhar fixo em frente e empunhava o leme com ambas as mãos com uma rigidez quase estatuária. O sol que se aproximava do poente incidia-lhe nas costas, escurecendo-lhe a fronte.

 

Quero lá saber. Eles já nem sequer com o mafarrico falam, e foi ele que os levou à audiência disse Worick, indicando Taislin com o seu polegar.

 

É verdade concordou o burrik. Já tentei várias vezes perguntar-lhe o que devemos fazer, mas ele manda-me sempre sentar.

 

Paciência. Ao menos são sirulianos, não tanarchianos. Neles ao menos podemos confiar.

 

Hum. Eu cá não vou com os focinhos escanhoados deles...

 

Worick, eles desde sempre protegeram Allaryia. São aliados dos Eahan...

 

E os eahanoir sempre foram traiçoeiros e manhosos, sempre com as facas nas costas dos outros, não é...? comentou Slayra, mordaz.”

 

Quenestil franziu as sobrancelhas, olhando para a eahanna, mas esta limitou-se a abanar a cabeça e revirar os olhos sem mais nada dizer. O shura ia perguntar-lhe o que quisera dizer, mas como já se estava a tornar hábito, a voz do Mandatário interrompeu-o.

 

Ajuramentados, aproximamos-nos dos rápidos! À proa! gritou, e dois sirulianos prontamente acorreram ao mastro, desatando duas compridas e grossas varas nele atadas e posicionando-se na proa. Agarrem-se aos assentos avisou os prisioneiros.

 

Aelgar conhecia bem o Doleg, e sabia que havia uma estreita abertura nos primeiros rápidos que aumentava de altura durante o degelo. Estava ciente do risco existente, mas achava preferível corrê-lo a ter de arrastar o barco por terra e perder tempo precioso. À medida que a barcaça ia percorrendo a curva descrita pelo rio, o ruído de águas turbulentas ia aumentando e os pinheiros da frondosa margem foram lentamente descortinando o trilho descendente de acastanhada água escumosa que os aguardava, na qual era visível um irregular trilho escuro que o Mandatário de imediato indicou aos Ajuramentados. Aewyre e Allumno sentiram as suas correntes tensionarem-se quando os prisioneiros no seu assento as enrolaram e se agarraram ao banco e à borda da barcaça. Quenestil envolveu os ombros de Slayra com o seu braço e agarrou Taislin com o outro, enquanto Worick mantinha um aperto firme no cotovelo de Lhiannah. Todos os presentes na embarcação se seguraram de alguma forma, preparando-se para a iminente turbulência.

 

A barcaça inclinou-se subitamente para a frente quando a descida começou e houve grunhidos e praguejos pela parte dos prisioneiros. Aelgar berrava indicações ao siruliano ao leme enquanto os dois Ajuramentados na proa se asseguravam de que a embarcação se mantinha no curso do trilho. Houve alguns breves momentos de tensão, mas o trajecto foi percorrido sem quaisquer acidentes e com apenas alguns prisioneiros derrubados. O Doleg acalmava depois dos rápidos, fluindo livre e gradualmente para norte ao longo das encostas dos cada vez mais distantes contrafortes da Cinta. Os dois jovens sirulianos foram amarrar as varas ao mastro e a barcaça velejou durante mais algumas horas até Aelgar olhar pensativamente para o sol, que já não estava longe do seu ocaso.

 

Por hoje chega, Ajuramentados. Atraquemos anunciou, e o siruliano ao leme orientou a barcaça para a margem.

 

Os prisioneiros desceram ordeiramente com a água ainda pelos tornozelos e empurraram a embarcação pela margem adentro, esmagando pedaços de gelo entre os seixos e pedras. Após dois dias de viagem, os sirulianos haviam-se assegurado de que já todos conheciam o ritual: empurrar a barcaça, aguardar que as correntes fossem ligadas umas às outras para formar uma cadeia que praticamente impossibilitava a fuga, montar os camastralhos, abluções no rio, jantar, fazer as últimas necessidades e dormir. Os companheiros seguiam o mesmo ritual, embora tivessem direito a camastralhos separados e não estivessem presos por grilhetas. Eram voluntários, e os sirulianos não tinham para com eles quaisquer obrigações além de lhes providenciar transporte e alimento. Aewyre e Allumno comeram em silêncio juntamente com os outros prisioneiros, olhando por vezes para os seus amigos do outro lado do acampamento entre os pinheiros e abetos que orlavam a margem do rio. Os sirulianos mantinham-se vigilantes mesmo enquanto comiam, formando um hexágono em redor do acampamento improvisado. Estava frio. A temperatura ia baixando a par do sol, e a pequena fogueira acesa pouco mais dava além de luz e fumo, pois a comida era seca e os sirulianos não desejavam chamar a atenção de eventuais bandidos ou piratas de rio.

 

A voz do Mandatário teve o efeito de um toque de recolher ao fim do jantar insípido e frio, e os prisioneiros deitaram-se, cansados de nada terem feito ao longo do fastidioso dia. Aelgar e outros dois sirulianos deitaram-se também, deixando o primeiro turno da vigia a cargo de Deadan e outros dois jovens Ajuramentados, que ajeitaram as bainhas das espadas e se sentaram de costas para a lareira nas posições mais confortáveis que conseguiram. Continuavam a envergar apenas os seus casacões, pois não valia a pena vestirem os arneses para de seguida os tirarem outra vez para dormir. Os três Ajuramentados viram os últimos movimentos no acampamento quando o sol já pouco mais era do que um rebordo avermelhado recortado pelas árvores no horizonte, e deram início à sua vigia com a madeira húmida a crepitar e a fumegar na fogueira nas suas costas.

 

Taeran foi acordado pelo seu colega Deadan a meio da noite, sendo informado por um sussurro ao ouvido de que chegara o seu turno. O Ajuramentado ergueu-se sem um único queixume e esfregou os olhos, olhando para o céu que já estava discretamente tingido de azul a leste. Tal como na Sirulia, as noites de Tanarch eram curtas na Primavera e no Verão; não faltavam muitas badaladas até o sol nascer.

 

Boa vigília, irmão desejou Deadan, deitando-se no seu camastralho e adormecendo num sono rapidamente induzido, razão pelaa qual não obteve qualquer resposta.

 

Taeran levantou-se enquanto outro irmão alimentava a fogueira e o Mandatário que, apesar da idade, fazia sempre questão de cumprir o dever de vigília se erguia ele também. À luz da fogueira, o Ajuramentado reparou que alguns prisioneiros se mexiam e outros estavam hirtos como se tivessem acabado de acordar e não o quisessem mostrar. Estavam alerta, como era natural, e Taeran esperava que os seus sentidos aguçados os servissem igualmente bem na vindoura batalha. Fora uma recolta fraca, mas aqueles quarenta homens teriam de servir; talvez os restantes Mandatários tivessem tido mais sucesso. A única coisa que continuava sem compreender era a razão pela qual o seu comandante também aceitara levar aqueles cinco voluntários. O eahan e o thuragar seriam sem dúvida úteis na batalha embora lhe desagradasse a ideia de ter um espécime da primeira criação de Luris dentro de Aemer-Anoth mas uma mulher ferida e uma eahanoir? Decerto o Mandatário Aelgar teria os seus motivos, mas que o Flagelo o possuísse se ele podia adivinhar quais. O seu olhar cruzou-se com o do seu superior, e Aelgar cumprimentou-o com um curto aceno da cabeça, afastando-se da fogueira para o perímetro do acampamento. A luz da fogueira já não era tão necessária, pois já era possível ver com um mínimo de clareza, e Taeran seguiu o exemplo do Mandatário, dirigindo-se à direcção oposta enquanto o outro Ajuramentado fazia o mesmo de forma a que os três formassem um triângulo vigilante em redor do acampamento. A noite estava sossegada, e o único ruído era o do rio e o crepitar da fogueira; não corria a mais pequena aragem para agitar os ramos dos pinheiros e abetos da margem. Taeran sentiu vontade de urinar e dirigiu-se à árvore mais próxima, puxando a bainha do casacão e desapertando as calças com uma mão enquanto a outra agarrava o pomo da espada para a manter fora do caminho. Enquanto fazia o que tinha a fazer, ouvia os passos do seu irmão e do Mandatário a esmagarem neve e caruma na sua patrulha do acampamento.

 

O fumegante jorro ia escorrendo regularmente até que de repente cessou. Mantendo a cabeça baixa, os olhos de Taeran olharam para o lado como se pudesse ver o que sentia atrás de si. Os seus dedos enluvados deslizaram imperceptivelmente pelo cabo da sua espada enquanto ajeitava as ceroulas e, com uma rapidez que ninguém preveria num homem do seu tamanho, o siruliano girou em si e desembainhou-a, empunhando-a de forma reversa. Não atingiu ninguém, mas captou movimento no canto do olho e pareceu-lhe ver uma sombra esconder-se entre as árvores. Ouviu a voz do Mandatário ciciar uma ordem ao outro siruliano e vir na sua direcção enquanto se aproximava a passos lentos do local no qual vira a sombra.

 

Ajuramentado Taeran, o que se passa? perguntou o seu comandante com a mão sobre o pomo da espada.

 

Senti uma presença vil, Mandatário disse o jovem siruliano, empunhando agora a espada com ambas as mãos, cuja ponta usou para indicar umas árvores mais à frente. Vi uma sombra esconder-se além.

 

Aelgar olhou na direcção indicada, e os seus lábios firmaram-se ao sentir ele também a sórdida impressão deixada para trás por quem quer que o Ajuramentado tivesse sentido.

 

Sim, vil de facto concordou o Mandatário, retendo o jovem siruliano com a mão no seu peito e avançando. Quando avistou um movimento na penumbra, abriu a boca e soltou uma possante exclamação em Eridiaith com voz de estentor, originando um chio pela parte da criatura, que se retirou.

 

O acampamento inteiro acordou com o grito do Mandatário, e os Ajuramentados acabados de adormecer levaram de imediato as mãos às armas. Houve um agitado reboliço quando os prisioneiros despertaram, estrebuchando como ovelhas presas dentro de um curral após o uivo de um lobo. Aelgar virou-se de imediato para trás e, como não estava à vista do acampamento, gritou:

 

Não há perigo, Ajuramentados! Mas devemos partir imediatamente!

 

Sem que qualquer explicação ou justificação fosse necessária, os sonolentos e cambaleantes Ajuramentados cumpriram de imediato a ordem do Mandatário, pois assim haviam sido treinados. Muitos prisioneiros ainda estavam apenas meio despertos, mas os que não se levantaram de imediato foram erguidos à mão, foram-lhes atirados os camastralhos aos braços e de seguida enviados para o barco. Os companheiros estavam tão surpresos quanto os outros, mas foram eles também encaminhados para a embarcação enquanto os sirulianos apagavam a fogueira e aguardavam o Mandatário, que caminhava apressadamente ao lado de Taeran. Um dos Ajuramentados tentou saber o que se passava.

 

Mandatário, o que...?

 

Um filho do Flagelo está por perto. Foi afugentado, mas pode haver mais e não quero arriscar os prisioneiros. Vamos.

 

Sem mais perguntas, os sirulianos ajudaram a empurrar a barcaça e fizeram-se ao rio enquanto o sol ainda estava por despertar, revelando-se apenas como um rubor azulado a leste.

 

Algures na margem do rio, escondida atrás de um pinheiro, uma figura observava, revelando apenas a mão de dedos sujos com unhas negras e metade da ensombrada cabeça encapuzada. Quando viu a embarcação afastar-se através das árvores, as suas unhas cravaram-se na escamosa casca do pinheiro, e o branco dos seus frustrados dentes cerrados surgiu nas sombras do capuz.

 

O arrebol da aurora saudou a cansada tripulação insultuosamente cedo enquanto muitos prisioneiros ainda dormiam encostados uns aos outros nos assentos, incapazes de manterem os olhos abertos devido à imobilidade. Os sirulianos que não haviam dormido andavam pelo barco de forma a manterem-se despertos. Em breve o sol reflectia-se nas acastanhadas águas do caudaloso rio, e os seus reflexos batiam na cara de Lhiannah, que aninhava a cabeça nos braços apoiados sobre as costas couraçadas de Worick, que por sua vez amparava a testa nos braços cruzados sobre os joelhos. A arinnir franziu o cenho e fez umas caretas, incomodada com a luz que lhe incidia sobre as pálpebras, e entreabriu um olho, vislumbrando o lamacento rio. Soergueu a cabeça e olhou em redor com olhos enevoados, tentando assimilar o que a rodeava num estado semidesperto. Taislin dormia sobre as suas pernas e um siruliano em casacão estava de pé e de braços cruzados ao lado do seu assento, dispensando-lhe brevemente a sua atenção. Lhiannah pensou em perguntar-lhe o que se passara, o que se estava a passar, mas a sua mente estava demasiado nublada e a única coisa que lhe apetecia verdadeiramente fazer era dormir. O Ajuramentado, um bem constituído jovem mais alto que Aewyre, tinha cabelos negros penteados para a frente, e os seus olhos garços revelavam a rígida opacidade de uma juventude embotada enquanto observavam as feridas da arinnir, que nem sequer se lembrou de ocultar a sua cara enquanto fitava sonolentamente o jovem. O siruliano olhou para o lado, vendo o Mandatário sentado à frente de costas para ele a raspar a barba com pedra-pomes, e tirou a sua manta do caixote, passando-a com o seu comprido braço por cima de Slayra e Quenestil e entregando-a a Lhiannah, que ainda a estudou de olhos piscantes antes de a aceitar.

 

Dorme, princesa disse o jovem sem qualquer formalidade. Pela tarde teremos de atravessar outra série de rápidos.

 

A arinnir ainda piscou os murchos olhos, agarrando a manta com ambas as mãos, até que pareceu estabelecer uma ligação e se envolveu nela, tapando Taislin inadvertidamente e enrolando a ponta como uma almofada sobre as costas de Worick. O Ajuramentado viu a princesa pousar a cabeça e adormecer instantaneamente e, tal como os seus irmãos, questionou-se acerca dos motivos do Mandatário para a ter aceite e à eahanoir. Como se tivesse pensado em voz alta, o seu comandante olhava para ele por cima do ombro quando o Ajuramentado virou a cara, retesando-se instintivamente ao perceber que fora visto a fazer algo sem a aprovação do seu superior. Aelgar, contudo, limitou-se a acenar com a cabeça e libertou o jovem siruliano da sua atenção, continuando a raspar o arruçado restolho com a pedra-pomes. O Ajuramentado, porém, sentiu-se compelido pelo dever a dirigir-se ao comandante e escusar-se pelo seu comportamento inusitado, pelo que pediu a um irmão que o substituísse ao leme e foi ter com ele.

 

Mandatário, eu...

 

A vontade, Ajuramentado disse Aelgar sem sequer olhar para ele, chapinhando a cara com água de uma taça. Os voluntários devem dormir, pois esta tarde será laboriosa.

 

Sim, Mandatário concordou o jovem, baixando a cabeça. Aelgar ergueu-se, sombreando o Ajuramentado, e deitou a água da taça borda fora, esfregando o nariz molhado com as costas da mão enluvada e puxando umas madeixas do oleoso cabelo grisalho para trás da orelha.

 

Que novas havia em Val-Oryth acerca dos piratas do rio? inquiriu, sem nunca olhar para o seu interlocutor, que de qualquer forma mantinha a cabeça baixa.

 

Têm aparecido ocasionalmente, Mandatário, mas o Triunvirato declarou-lhes guerra e aparentam estar menos ousados.

 

Suficientemente ousados para atacarem uma barcaça de conscritos acorrentados?

 

Presumo que sim, Mandatário. Aelgar não pareceu preocupado.

 

Envergaremos os arneses assim que chegarmos à margem. De quantas armas adicionais dispomos?

 

A armaria de Val-Oryth disponibilizou-nos vinte e duas lanças, nove espadas de condição degradada, trinta e seis adagas enferrujadas, nove arcos longos com fios frouxos, catorze arcos curtos e quatro barricas com trezentas e quarenta e três flechas.

 

Armaduras?

 

Sete túnicas de cota de malha danificadas.

 

Terão de servir. Quero os prisioneiros acorrentados em grupos de dois. Armem os que conseguirem, mas uma das cotas de malha vai para Aewyre Thoryn.

 

Sim, Mandatário.

 

Volta para o teu posto, Ajuramentado dispensou-o Aelgar, preparando-se para ir para a proa.

 

Mandatário?

 

Sim?

 

O que fazemos com... o Flagício?

 

Aelgar não respondeu de imediato, parecendo procurar a resposta algures em frente. A sua expressão era ilegível, mas quando o jovem seguiu o olhar do seu comandante, viu que este fitava Aewyre Thoryn, que estava sentado no chão, encostado ao assento e a dormir de cabeça descaída.

 

Mandatário?

 

O Flagício... fica ao meu cuidado disse Aelgar por fim, coçando o queixo raspado. O que esperas, Ajuramentado? Regressa ao teu posto.

 

O jovem ainda considerou brevemente a situação, mas o seu dever era obedecer às ordens do seu superior sem o questionar, pelo que se limitou a baixar a deferente cabeça e retirar-se. Aelgar permaneceu alguns momentos na mesma posição até cruzar as mãos atrás das costas e encaminhar-se para a proa, detendo-se brevemente para olhar para Aewyre Thoryn ao passar pelo seu assento.

 

Nunca pensara sequer vê-lo, e agora aqui estava ele, ao fim de tantos anos: o filho de Aezrel Thoryn, à sua mercê...

 

A meio de mais um longo dia primaveril, a barcaça dos conscritos chegou aos rápidos seguintes, numa curva que o Doleg descrevia entre duas margens, uma rasa e pedregosa e a outra alta de terra erodida e entrançada de raízes de pinheiros. Os marinheiros e mercadores chamavam-lhes os Bicos dos Pelicanos, pois além de serem habitados por essas mesmas aves, eram também uma sucessão de rochas acuminadas que se projectavam das águas que contra elas furiosamente rugiam. Por muito hábil que a tripulação fosse, qualquer barco teria extremas dificuldades em passar pelos apertados intervalos entre as rochas, e as bruscas descidas e traiçoeiras pedras ocultas debaixo da turbulenta água, encarregar-se-iam de afundar qualquer embarcação mais ousada. A única forma de transpor os Bicos era através do trilho pavimentado de toros fendidos que começava na margem rasa e que torneava os rápidos durante cinco milhas através de uma vereda desbastada no bosquete. Aelgar mandou acordar os prisioneiros e que estes retomassem os seus assentos, e o siruliano ao leme orientou a barcaça para a pedregosa margem, contra a qual a quilha raspou audível e violentamente. Os prisioneiros desembarcaram de seguida e foram armados por dois sirulianos enquanto os outros quatro vestiam os seus arneses, trocando de seguida para supervisionar os preparativos para arrastar a barcaça pela margem coberta de pedras e seixos até ao trilho de toros.

 

Foi uma tarefa morosa que o trilho apenas aligeirou quando os prisioneiros o alcançaram, pois estava em mau estado devido às chuvas e derrocadas da Primavera, e os prisioneiros mais fracos tinham de andar à frente para ir repondo quaisquer toros que estivessem deslocados. Quatro sirulianos caminhavam atentos nos flancos da arrastante procissão enquanto um ia na retaguarda, vigiando os que carregavam os caixotes e mantimentos, e o Mandatário caminhava à frente com a mão apoiada no pomo da espada e com algo comprido e embrulhado ao ombro. Aewyre, Worick e Quenestil ajudavam a empurrar a barcaça; Slayra, Lhiannah e Allumno carregavam o equipamento com os homens menos robustos; e Taislin andava à frente com os restantes prisioneiros a desobstruir o trilho. O dia estava sossegado, e o único som que passava por entre os pinheiros era o rugido dos furiosos rápidos e o crocitar e rufiar das asas dos corvos que se afastavam do grupo. Os sirulianos estavam atentos a qualquer sinal de piratas, e deram-se por satisfeitos por não terem avistado nenhum até ao fim do dia, quando Aelgar ordenou a paragem. Os prisioneiros estavam exaustos e podiam dar-se ao luxo de descansar antes de o sol se pôr, pois haviam coberto bastante distância nesse dia. Montaram acampamento em redor da barcaça e jantaram sem grande apetite e sem a mínima vontade de falar. Aewyre e Allumno eram em grande parte ignorados pelos restantes, que não viam o porte siruliano do jovem com bons olhos e que, por associação, também evitavam contacto com o mago. Alguns segredavam por vezes nas suas costas, embora estivessem demasiado cansados para o fazer naquela altura, provavelmente devido ao assassínio de Malagor, e Aewyre presumia que essa também fosse uma razão para não terem até então trocado palavra com nenhum dos prisioneiros. Os restantes companheiros mantinham-se à parte, visto que os sirulianos não aprovavam frequentes contactos com Aewyre e Allumno, talvez para evitar segregacionismos ou ideias de favoritismo, mas Slayra aproveitava sempre a desculpa do joelho de Allumno para falar com ambos.

 

Após a última ”consulta” do dia da eahanoir, tutor e protegido estavam sentados lado a lado debaixo de um pinheiro e, embora o sol vermelho ainda raiasse a oeste, aconchegavam-se nas suas mantas para dormir como a maior parte dos prisioneiros. O jovem nem se incomodou a tirar a túnica de cota de malha que lhe fora oferecida ao sair do barco, mas antes que fechasse os olhos viu que um Ajuramentado de cabelos castanhos e olhos azuis o que o Mandatário chamara de Deadan se aproximava. Os dois aguardaram a chegada do jovem, que avançava na sua direcção com o decisivo intuito com o qual os sirulianos pareciam levar a cabo tudo aquilo a que se propunham ou eram ordenados a fazer.

 

Aewyre Thoryn disse, ensombrando ambos, o Mandatário deseja falar contigo. Estende os teus pulsos.

 

O guerreiro hesitou perante a inesperada ordem e olhou para Allumno, mas o mago parecia igualmente surpreso, tentando descortinar algum intuito no ilegível semblante de Deadan, que esperava sem qualquer gesto a denotar impaciência. Vendo que não havia outra opção a contemplar, Aewyre acabou por fazer como lhe fora dito, e o siruliano abriu-lhe as grilhetas dos pulsos com uma chave.

 

Prende os tornozelos do teu companheiro com elas, Aewyre Thoryn disse Deadan, apontando para os pés do mago. Aewyre tornou a hesitar, mas Allumno anuiu com a cabeça, e o jovem assim fez, deixando o seu tutor impossibilitado de fugir. Segue-me.

 

Os prisioneiros que ainda estavam acordados seguiram os dois com os curiosos olhos, tentando nas suas sonolentas mentes imaginar o que se passava e falhando em grande parte na tentativa. Também não passaram despercebidos aos cinco outros companheiros, que trocaram encolheres de ombros com o seu amigo. Um Ajuramentado aproximou-se discretamente deles enquanto Aewyre e Deadan desapareciam atrás dos pinheiros.

 

O que quer o Mandatário? perguntou o jovem, afastando um ramo de pinheiro com a mão.

 

Falar respondeu Deadan sucintamente, dando a entender que não obteria grandes esclarecimentos da sua parte.

 

Aelgar aguardava-os de costas e de braços cruzados numa minúscula clareira entapetada com uma carpete de neve, raízes, caruma e terra negra. O comprido objecto embrulhado que portara durante o dia inteiro estava aos seus pés, e Aewyre reconheceu-o como Ancalach, estranhando de imediato a situação.

 

A tua espada e adaga, Aewyre Thoryn requisitiu Deadan, estendendo a mão.

 

O guerreiro ergueu uma ligeiramente apreensiva sobrancelha, mas uma vez mais fez como lhe fora pedido e entregou as duas lastimosas armas, esperando em troca um esclarecimento que não veio da boca do Ajuramentado, que se retirou sem proferir mais nenhuma palavra, deixando-o sozinho com Aelgar.

 

Aewyre Thoryn... disse o Mandatário de costas, pronunciando o nome com exagerada clareza.

 

Por alguma razão, o seu tom de voz irritou o jovem. Estava cansado, com sono, e francamente farto de ser tratado como um vulgar criminoso.

 

Mas por que é que diz sempre o meu nome dessa forma? exigiu saber, cerrando os punhos. Por que é que está a fazer isto? E o que faz a Ancalach aí?

 

Sem descruzar os braços detrás das costas, Aelgar virou-se para Aewyre, perscrutando-o na ruborizada luz do entardecer que penetrava na sombria clareira.

 

Por que é que está sempre a olhar assim para mim? A voz do jovem aumentava gradualmente de volume, e em poucas frases já estaria a gritar. O que é que eu...

 

Aproxima-te, Aewyre Thoryn interrompeu Aelgar, desta vez sem vocalizar o nome.

 

O guerreiro não relaxou os punhos de imediato, e manteve-os fechados enquanto avançava hesitantemente, ainda sem saber o que ali fazia ou por que fora chamado. Parou à distância de um golpe de espada do Mandatário, mas este não pareceu satisfeito.

 

Aproxima-te mais.

 

Aewyre estranhava toda a situação, mas não queria dar parte de fraco ou assustado, pelo que deu um longo passo em frente, ficando praticamente cara a cara com Aelgar, que reteve os seus olhos durante uns breves instantes antes de com eles esquadrinhar as feições do jovem. O homem era enorme, intimidante, avassalador e, com o seu arnês, parecia um guerreiro lendário de outrora.

 

És filho do teu pai, sem dúvida, mas os traços da tua mãe estão-te gravados na cara como uma marca de fogo avaliou.

 

O meu pai...? O que sabe sobre o meu...

 

Em resposta às tuas três primeiras perguntas, enfatizo o teu nome por me teres de início mentido a seu respeito explicou o Mandatário, tornando a interromper o seu jovem interlocutor. Na tua segunda pergunta, presumo que te referisses ao facto de te ter de certa forma salvo do tribunal. Pois bem, fi-lo porque tu e o mago são dois homens adicionais e porventura relevantes para a defensa de Aemer-Anoth, tão simples como isso. Se por outro lado te referias às razões que me levaram a aceitar os teus companheiros, dos quais três dificilmente contribuirão para a batalha que se avizinha, deves agradecer ao burrik, que me disse que seriam mortos pelos Filhos do Flagelo caso permanecessem na cidade. Estamos cientes da sua existência, mas embora façamos tudo o que está ao nosso alcance para impedir esse cancro de se alastrar, infelizmente não está no nosso poder extirpá-lo. Há muito que desconfiávamos de Malagor, mas não dispúnhamos de provas para o incriminar; de certa forma, tu e o teu companheiro mago prestaram-nos um serviço e a toda Tanarch. A sua aprendiza também é suspeita, mas por ora nada podemos fazer.

 

Aewyre acalmou um pouco, embora a verbosidade de Aelgar rivalizasse com a de Allumno e conseguisse ser ainda mais fastidiosa pela secura com a qual era proferida. Pelo que percebera, Aelgar fizera um favor aos seus amigos ao aceitá-los, mas ainda assim a situação lhe parecia estranha.

 

Em relação à tua terceira pergunta, Ancalach está em minha posse, bem como todos os bens anteriormente pertencentes a ti e aos teus amigos. Vocês estão todos sob a custódia da Sirulia, e embora possas pensar que vos libertámos, volto a enfatizar que apenas vos concedemos uma alternativa de pagarem pelo crime que cometeram. Foi o que se pode chamar de um crime louvável, é certo, mas se nós esperamos que Tanarch cumpra com as leis que a Sirulia com ela acordou (o que, diga-se de passagem, raramente faz), também devemos fazê-lo, e é por isso que, para todos os efeitos, tu e o Allumno ainda são prisioneiros.

 

Muito bem... então e por que é que está sempre a olhar para mim dessa maneira? inquiriu Aewyre directamente, ainda demasiado cansado para rodeios.

 

A pergunta travou o jorro verbal do Mandatário, cuja boca permaneceu entreaberta, esperando pelas palavras que procurava. Aelgar inspirou profundamente perante o expectante olhar do jovem, que exigia uma resposta.

 

A tua impudência é notoriamente sulista, Aewyre Thoryn. O sangue intempestivo do teu pai corre-te nas veias, e não vejo nenhuma da temperança e sobriedade da tua mãe para o contrapor...

 

As mãos de Aewyre crisparam-se na gola da capa de Aelgar, e o jovem sacudiu o pesado guerreiro.

 

O que é que você quer de mim? sibilou o guerreiro, com uma ínfima parte racional da sua mente a não acreditar no que estava a fazer. Não pára de falar do meu pai e da minha mãe; aonde é que quer chegar? O que sabe deles?

 

O Mandatário olhou para as mãos que lhe agarravam a gola da capa e de seguida para Aewyre, calmo e sereno como sempre.

 

O que sei acerca deles? Muito. Menos sobre o teu pai, bastante acerca da tua mãe.

 

O quê?

 

A tua mãe, Adelayne Moryth disse Aelgar, arrastando cada palavra para fora da sua boca, era minha esposa.

 

Aewyre encolheu-se como se tivesse levado um murro no estômago. As suas mãos afrouxaram, escorregando lentamente pela couraça corrugada de Aelgar, os seus olhos escuros estavam arregalados, o seu queixo descaído enquanto dava um passo atrás.

 

Sim, Aewyre Thoryn, Adelayne Moryth era a minha esposa enfatizou Aelgar, conseguindo manter a compostura mesmo enquanto estava claramente a refrear impulsos mais violentos.

 

Esposa...? Mas... eu... O jovem estava a ter dificuldades em pensar, quanto mais articular palavras.

 

Tivemos duas filhas, Aelenia e Deana, meias-irmãs tuas, no fim de contas. A Aelenia foi atropelada por uma carroça numa rua de Val-Oryth, a Deana morreu à nascença. Aezrel Thoryn, o teu pai, passou por Tanarch durante a sua demanda pelos dois pedaços da Lança de Istegard. Desconheço como obteve o primeiro, mas o segundo encontrava-se alojado na infecta carcaça do lobo Wrallach, que a Horda arrastou consigo após a derrota nas Colinas dos Mortos até ser atacada perto de Val-Oryth por um batalhão de sirulianos vindos das catacumbas de Gul-Yrith e um levantamento popular de tanarchianos. A Horda foi dividida, e um pequeno contingente fugiu com a carcaça do lobo até às montanhas a noroeste da cidade, na qual permaneceram e onde se formou uma espécie de culto. O teu pai e Zoryan encontraram-nos, desbarataram o culto e recuperaram o segundo pedaço da Lança, mas Aezrel ficou ferido no combate e foi levado para as Alas da Convalescença em Val-Oryth, pouco tempo após a morte da Deana. Adelayne costumava visitar os feridos no templo. Era uma princesa, descendente da rainha Ashlae, desprovida de título ou poder, mas o povo de Val-Oryth gostava dela, e Adelayne cumpria aqueles que julgava serem os seus deveres. Encontrou o teu pai em convalescença e, segundo o que se diz... o Mandatário engoliu em seco os dois apaixonaram-se.

 

Aelgar deixou um atónito Aewyre digerir bem as suas palavras antes de continuar.

 

Após a sua recuperação, Aezrel foi reforjar a Lança ao reino de Tharobar, e quando voltou, decidiu levar Adelayne para Nolwyn, antes que a guerra começasse. Na Primavera seguinte, quando voltei a Val-Oryth para cumprir o meu dever, soube que Adelayne aceitara o pedido de Aezrel. Por toda a cidade corria a já romanceada história do valente guerreiro do Sul que levara consigo a pobre e infeliz princesa siruliana, salvando-a do seu cruel marido e de um triste destino, desprovida do seu título real, relegada a uma vida sem amor... A voz do Mandatário tremeu quase imperceptivelmente, e este pareceu ler algo nos olhos de Aewyre que não estava lá. Eu amava-a, Aewyre Thoryn. Não vivíamos juntos, pois a Cisão separava-nos, mas isso não me impediu de a amar, nem tão-pouco nos impediu de contrairmos matrimónio. Não tomava outras mulheres, e sempre que os meus deveres mo permitiam, eu vinha... deteve-se, apercebendo-se de que estava a dizer mais ao rapaz do que este precisava de saber. Mas imagino que ainda não tenha respondido à tua pergunta, não é verdade? Pois bem, olho para ti porque vejo no teu semblante traços de Adelayne, olho para ti porque de certa forma a revejo quando o faço. És o segundo fruto bastardo da sua união ilegítima, mas eu não te consigo odiar por isso, muito embora me lembres o teu pai. Sim, eu conheci-o, Aewyre Thoryn. Já com Ancalach em sua posse, ele e Zoryan vieram a Sirulia para nos alertar dos tempos negros que se iriam aproximar. Falei com ele e reconheço que o seu ardor galvanizou muitos dos nossos Ajuramentados; talvez tenha sido esse mesmo ardor, do qual nós sirulianos tanto carecemos, o que arrebatou Adelayne...

 

Aelgar quedou-se silencioso uma vez mais, prendendo a atenção de Aewyre com os olhos, que contudo eram mais expressivos do que quaisquer palavras que pudesse proferir. A sua mãe, casada com o Mandatário? Aereth e ele eram filhos ilegítimos? O seu pai... o Allumno nunca lhe contara...

 

Vejo que isto é uma grande surpresa para ti, Aewyre Thoryn disse Aelgar, recuperando alguma da sua serenidade. Vejo também os sentimentos que te acometem, entre os quais uma sensação de culpa. Não há razão para isso, pois embora tenhas nascido em delito, a ofensa não foi levada a cabo por ti. Não pretendia de alguma forma inculpar-te com o que te disse.

 

Então... o que pretendia? indagou Aewyre, demasiado atarantado para saber como se devia sentir, furioso, envergonhado ou triste. Por que me disse isso?

 

O Mandatário virou a cara para o lado e o seu olhar perdeu-se algures, lobrigando velhas memórias.

 

Fala-me dela pediu, devolvendo a atenção a Aewyre. Eras muito novo, estou certo, mas alguma memória deves reter, alguma imagem, por muito vaga que seja. Descreve-ma. Por favor.

 

A boca do jovem permanecia aberta, embora não para falar. Esquadrinhou os olhos pardos de Aelgar, tentando ver neles algum propósito, algum motivo, qualquer coisa que lhe pudesse explicar o que se estava a passar, mas não encontrou nada além de sinceridade e soube que o pedido era genuíno. Não lho exigira, não o requisitara, apenas pedira. Por favor. Confrontado com a inesperada cortesia, o jovem ainda tartamudeou algumas palavras dúbias, esfregando a nuca e franzindo o cenho. O Mandatário esperava imóvel e em silêncio, aguardando a memória que de alguma forma sabia que Aewyre retinha. Ou talvez fosse só esperança, Aewyre não soube dizer. Em todo o caso, sentiu-se verdadeiramente compelido a dizer-lhe alguma coisa, a relatar-lhe as memórias da sua mãe, como se de facto devesse algo ao velho siruliano, como se, ao fazê-lo, o pudesse compensar pelo que o seu pai alegadamente lhe fizera.

 

Eu... quer dizer, isto é muito estranho... acho que nunca o disse a ninguém... Aewyre iria jurar que os inflexíveis olhos de Aelgar se haviam abrilhantado, mas não o julgava possível. Está bem, está bem. Mas eu era muito novo, a memória é um bocado difusa... limpou a garganta, inspirou fundo e olhou para o lado de olhos semicerrados, tentando focar a reminiscência. Ela está numa sala iluminada pelo sol, branca, de mármore, deve ser o vestuário do solário. O Allumno sempre me disse que ela gostava muito do sol, que não havia muito na Sirulia...

 

Aewyre parou, sentindo-se verdadeiramente desconfortável a relatar uma memória tão íntima a um desconhecido.

 

Continua, Aewyre Thoryn. Por favor solicitou Aelgar.

 

Eu não sei por que estou a fazer isto... disse o jovem em surdina, suspirando e olhando para o chão antes de continuar. Ela está a amamentar o meu irmão; ele não foi desmamado até muito tarde. Está sentada num banco de mármore, com o Aereth ao colo, a agarrar-lhe a cabeça com uma mão. Tem um vestido azul, e um diadema de brilhantes na cabeça. O sol bate-lhe nos cabelos castanhos, ondulados, cor de avelã... Aewyre começava a embrenhar-se na memória, como sempre sucedia quando se recordava da única imagem que guardava da sua mãe. Ela é linda. O sol bate-lhe de lado, na sua pele branca, e os seus olhos brilham quando olha para mim. São violeta. O seu sorriso é triste, mas aberto. Ela sentia muito a falta do meu pai, é o que o Allumno sempre me disse. Quando ele não voltou...

 

Aewyre não continuou, apercebendo-se de que já estava a afastar-se daquilo que Aelgar lhe pedira. Olhou para o Mandatário e viu que os músculos do seu maxilar estavam tensos e que o pomo da sua garganta se mexia, engolindo em seco. Nada mais disse, e Aelgar também não proferiu palavra alguma, olhando por cima de Aewyre para nenhures, pelo que ambos ficaram em silêncio na clareira. O céu estava roxo, com o sol pouco mais do que uma escandecência atrás das montanhas sombreadas, dourando os dispersos estratos rosados. A clareira onde se encontravam escurecia gradualmente, e as sombras abatiam-se sobre a já de si sombria face de Aelgar, que deu um inesperado passo atrás e cujos olhos por fim tornaram a encontrar os do jovem.

 

Pega nela, Aewyre Thoryn disse, referindo-se a Ancalach, que jazia embrulhada em lona no chão. E dá-ma.

 

Aewyre estranhou, mas fez como lhe fora pedido, destapando o punho decorado da Espada dos Reis e entregando-a a Aelgar, que a empunhou, erguendo-a defronte da sua face.

 

Às vezes dou comigo a pensar, Aewyre Thoryn: a Lança de Istegard foi a causa da vinda do teu pai a Tanarch. Não fosse por ela, Aezrel provavelmente nunca teria conhecido a minha esposa. E às vezes pergunto-me também: como teria a Guerra da Hecatombe decorrido sem Ancalach? Sem a sua existência a instigar o Flagelo a actos desesperados, a incitá-lo a assolar tudo o que se interpunha entre Ele e a Espada dos Reis? Perguntas para as quais não tenho respostas e que duvido de que alguém algum dia venha a ter, mas que não obstante... Aelgar fechou os dentes, brandindo Ancalach a perigosa distância de Aewyre, que se afastou involuntariamente. Se analisarmos a questão a fundo, Aewyre Thoryn, apercebemo-nos de que perdi a Adelayne por causa desta singular espada afirmou, erguendo-a na horizontal, deixando que os derradeiros raios do sol incidissem na sua lâmina e a inflamassem.

 

- É uma forma algo egoísta e egocêntrica de ver as coisas, bem sei, mas vinte anos depois ainda penso nisso. E tudo por causa... disto baixou a espada, virando-a na sua mão em escarnecedora contemplação. A sua voz estava calma, mas acelerou e aumentou de tom quando os olhos de Aelgar vararam Aewyre. Esta lâmina não é nada, Aewyre Thoryn. Está maculada, conspurcada. O seu metal matou Wrallach e o Flagelo; o sangue dos filhos da amaldiçoada Luris tisnou-a irremediavelmente, corrompeu-a como uma doença infecta, e nada mais é que um chamariz para a progénie do Flagelo! exclamou Aelgar, orientando a ponta de Ancalach para baixo e cravando-a no chão como se a quisesse enterrar. Apoiou-se no seu pomo durante alguns instantes, respirando mais depressa do que era habitual, até que se recompôs e cruzou as mãos atrás das costas.

 

O mérito foi do teu pai, que era um excelente guerreiro, e portador da Essência da Lâmina. Ancalach nunca passou de um símbolo, a ruína dos seguidores da Sombra e nada mais que isso. Pois bem, Allaryia não precisa de símbolos; nunca precisou de nada mais além de almas alentosas e braços fortes, que nestes tempos tanta falta fazem. E vai ser preciso bem mais que uma quimera para que tu e os restantes prisioneiros sobrevivam à batalha que se avizinha, Aewyre Thoryn.

 

Noutra ocasião Aewyre tentaria refutar as palavras do Mandatário, negar furiosamente as suas convictas afirmações, mas naquele momento estava demasiado abalado com o que Aelgar lhe revelara para o fazer. Não tinha palavras.

 

Retira-te, Aewyre Thoryn dispensou-o o velho siruliano por fim, parecendo repentinamente cansado. Aproveita para repousar, pois amanhã partiremos cedo.

 

O guerreiro olhou para trás, mas Deadan não estava à vista, e Aelgar leu-lhe a pergunta nos olhos.

 

Sendo filho de quem és, estou certo de que nunca fugirias nem abandonarias os teus companheiros. Vai, Aewyre Thoryn disse, virando-lhe as costas e deixando Ancalach cravada no chão como uma barreira entre ambos.

 

Aewyre sentiu a necessidade de dizer mais alguma coisa, sentia que por alguma razão não deveria retirar-se sem dizer uma última coisa, mas nenhuma lhe ocorreu. Despediu-se com um aceno de cabeça que o Mandatário não viu e saiu da clareira, seguindo o rasto de volta para o acampamento. De costas para ele, Aelgar olhava em frente, e dos seus olhos cinzentos brotavam lágrimas como gotas orvalhosas em dois rígidos penedos.

 

Quenestil permanecia desperto a custo, encostado a um pinheiro escamoso e com Slayra aninhada no seu peito a dormir. Worick roncava de pescoço inclinado para trás e Taislin dormia no colo de Lhiannah, que também estava acordada. O eahan tentara convencê-la a dormir, mas a princesa afirmara que dormira demasiado tempo nos últimos dias e de facto estava a ter menos dificuldades que o shura em ficar acordada. A sua cara ensombrada pelo capuz olhava na direcção dos pinheiros nos quais Aewyre desaparecera com o jovem siruliano, que entretanto voltara, e que se ocupava a vigiar os dormentes prisioneiros. Worick não ficara minimamente preocupado, mas Quenestil e Lhiannah acharam estranho e haviam decidido esperar até Aewyre voltar.

 

Quando o jovem surgiu dos pinheiros, Lhiannah agarrou o braço de Quenestil, que piscou os olhos e lhe acenou com a mão, inquirindo com a cabeça se estava tudo bem. Aewyre sossegou-os com uma aquietadora mão e foi ter com Allumno já com o jovem siruliano nos seus calcanhares. Enquanto o siruliano o agrilhoava, Quenestil e Lhiannah entreolharam-se, tão confusos como antes. Acordada pelos movimentos bruscos, Slayra gemeu qualquer coisa num tom interrogativo, mas o shura afagou-lhe a cabeça, e a eahanoir tornou a adormecer.

 

O que achas que aconteceu? perguntou Lhiannah entre dentes.

 

Não sei admitiu Quenestil, ainda a afagar os cabelos de Slayra. Mas há algum tempo que não vejo o... como é que ele se chama?

 

O Mandatário?

 

Sim, ele. Será que estiveram a falar?

 

E acerca de quê? inquiriu a arinnir, sabendo de antemão que o shura não poderia sequer fantasiar acerca do que os dois haviam discutido.

 

O melhor é dormirmos... disse Quenestil, mas ambos se calaram ao verem Allumno tentar sem sucesso falar com Aewyre, que fechou de imediato os olhos quando o jovem siruliano se retirou depois de o agrilhoar.

 

O mago ainda tocou no ombro do guerreiro, mas este não esboçou qualquer reacção, pelo que Allumno se recostou resignadamente no pinheiro e seguiu o seu exemplo. Quenestil e Lhiannah entreolharam-se uma vez mais, e o shura encolheu os ombros.

 

Amanhã eu peço à Slayra para lhe perguntar o que se passou bocejou o shura, tapando a boca. Mas ao menos parece estar tudo bem. Boa noite.

 

Boa noite retribuiu a arinnir antes de Quenestil adormecer. Não tinha muito sono, pois sentia que durante a sua recuperação pouco mais fizera além de dormir.

 

Rodeada pelos seus companheiros adormecidos, a princesa aproveitou a escuridão que se adensava no acampamento para descobrir a cabeça, libertando-se da sensação confinadora que o capuz lhe causava por o usar tanto tempo. Dedos hesitantes percorreram-lhe a face, tenteando os cortes encrostados e esvanecentes equimoses. A sua sobrancelha direita estava fendida por uma crosta que iria certamente deixar cicatriz, e os restantes ferimentos provavelmente deixariam marcas também. O que mais a incomodava era a ligadura que lhe cingia o queixo como uma espécie de mordaça, e as costelas ainda lhe doíam a cada inspiração.

 

”Lindo estado...”, pensou com amargura. ”Não seria capaz de me defender mesmo que fosse necessário...”

 

A princesa tornou a cobrir a cabeça com o capuz, tentou encontrar na árvore uma posição confortável para as costas, coçando a nuca do burrik ao seu colo, e acabou por se deixar afundar num sono resignado.

 

Soturnamente montado numa pequena égua isabel, Tannath segurava as rédeas com uma mão enquanto a outra pendia frouxamente a seu lado, erguendo-se de tempos em tempos para afastar o ocasional ramo de pinheiro que tentava despertá-lo dos seus pensamentos. À sua frente ia um guia tanarchiano, também ele montado, um homem de meia-idade com um casaco castanho-claro sobre uma camisa branca de frente bordada e mangas abertas. Trazia um barrete coniforme de lã cinzenta à cabeça, ocultando as falhas no cabelo que contudo eram visíveis mesmo na nuca, e Tannath pouco vira dele além das suas costas durante boa parte das duas semanas que com ele viajara. Era reservado, falava pouco, e a idade vincara a sua cara num perpétuo esgar acentuado pelo seu bigode hirsuto, pelo que as suas conversas se resumiam ao mínimo necessário. Por estranho que parecesse, o eahanoir dava por vezes consigo a preferir que o homem fosse mais comunicativo, pois o silêncio permitia-lhe a paz e o sossego necessários para reflectir, e não tinha feito outra coisa desde que saíra de Jazurrieh. A sua travessia marítima decorrera sem incidentes de maior, e conseguira escapar dos marinheiros latvonianos nas docas da cidade de Ul-Syth com um mínimo de gargantas cortadas. Depois disso, fora uma questão de fazer as perguntas certas no mercado para apanhar o rasto de um casal de eahan que surpreendera uma velha senhora numa barraca de roupas com um colar de valiosas contas de âmbar, que ainda usaram para comprar equipamento e provisões, donde se podia concluir que não tinham ficado na cidade mais do que um dia. Investigações adicionais nas docas e uma breve e persuasiva conversa com o mestre do porto haviam-lhe assegurado de que nenhum casal tomara um barco para Ul-Syth, que era mais rapidamente alcançada pelo rio, pelo que Tannath, por necessidade de exclusão de hipóteses, de imediato eliminou a cidade como destino de Slayra e Quenestil, sobrando então Val-Oryth como a destinação mais próxima. Havia muitos ses na linha de pensamentos do eahanoir, mais do que alguma vez julgara ter em conta numa acção levada a cabo por si, mas não tinha outra escolha.

 

Arranjara de seguida um guia para o levar até à cidade e servir como intermediário, pois o homem, Sasko de seu nome, arranhava um razoável Glottik e fora invulgarmente loquaz a relatar a boa parte da sua vida que passara a desbastar as árvores da estrada que ligava Val-Oryth a Ul-Syth, e afirmara conhecer bem ambas as cidades. Viajar de barco era inútil, dissera também, pois enfrentar a corrente na altura do degelo ”partiria o pescoço a qualquer boi que arrastasse a embarcação”, pelo que Tannath comprara dois cavalos para a longa viagem que os aguardava. Não sabia o que fazer assim que chegasse a Val-Oryth, provavelmente o mesmo que fizera na anterior cidade: questionar pessoas no mercado e no porto, caso tivesse um. Slayra dissera que o grupo que a ”capturara” fazia tenções de ir para Asmodeon; não tinha como saber se os havia ou não encontrado e se ainda se encontravam sequer em Tanarch. Duvidava de que os sirulianos lhes permitissem a entrada directa em Asmodeon, mas, uma vez mais, havia demasiados ses envolvidos em tal linha de pensamentos. O melhor que tinha a fazer era mesmo seguir o curso de acção ao qual se propusera e esperar para ver que frutos dele colheria.

 

Outro ramo de pinheiro forçou-o a dispensar a sua atenção ao ambiente que o rodeava. A neve derretida havia causado uma derrocada num barranco que ladeava a ensombrada estrada, obstruindo-a e forçando Tannath e o seu guia a subirem pelo lamacento barranco oposto de forma a contornarem a intransitável via. Contudo, a já de si alcantilada descida do barranco tornava-se íngreme e traiçoeira conforme avançavam, sulcada por cursos de água que haviam amolecido a terra e coberta por um emaranhado de raízes espremidas pelo degelo, pelo que o guia achou que deviam permanecer no topo e prosseguir em frente até encontrarem uma ladeira mais segura para os cavalos descerem. Tannath não tinha qualquer razão para objectar, e assim fizeram. Do topo do barranco desfrutava de um abrangente panorama do curso das acastanhadas águas do rio, interrompido apenas pelo ocasional pinheiro. A ourela do Doleg era escabrosa, mas além da margem já se revelava uma incipiente carpete verde pontilhada com outras cores florais aos pés de um extenso morro coberto de pinheiros.

 

O céu mantinha-se claro, com esparsas nuvens visíveis nas montanhas ao longe, e a temperatura estava nitidamente a aumentar, tornando o casacão que Tannath comprara na cidade útil apenas de noite, quando o chão parecia emanar o frio com o qual o longo Inverno impregnara os ossos pétreos da terra.

 

Assim é o tempo em Tanarch dissera Sasko certa noite, ajudado por uns valentes tragos da estranha bebida à qual chamava kashkin. Meses e meses de dias curtos com um frio de rachar os dentes, depois mares de lama durante uns tempos, e depois uns poucos meses de dias que nunca mais acabam com um calor abrasador para a endurecer. E depois vem o frio outra vez... Olhe, um barco.

 

Tannath demorou alguns instantes para se aperceber de que a última frase fora pronunciada fora dos pensamentos nos quais estivera a ouvir a voz do homem, na qual a verdadeira se imiscuiu. Tirou os olhos da paisagem e olhou em frente, avistando uma barcaça com uma vela azul.

 

Sirulianos disse Sasko em desagrado, cuspindo para o lado. Tannath emitiu um anuente ruído gutural, e os dois continuaram o seu caminho, com Sasko a resmungar e a praguejar entre dentes, lançando olhares odiosos à barcaça e fazendo gestos rudes na sua direcção. Ao que parecia, havia mais coisas além da bebida que o faziam falar, mas o eahanoir não estava com disposição para entrar numa conversa acerca do notório rancor dos tanarchianos para com Sirulia. Não tinha qualquer interesse, na verdade, mas Sasko parecia estar a convidá-lo a fazer-lhe perguntas, sem dúvida cheio de argumentos e calúnias para lhe apresentar. Tannath nada disse e limitou-se a observar a barcaça, constatando que quase toda a tripulação permanecia sentada e, tanto quanto podia deduzir pelo brilho de correntes, agrilhoada. Apenas seis figuras permaneciam de pé, e mesmo àquela distância, o eahanoir podia ver que eram mais altos do que a maior parte dos humanos tinham o direito de ser, embora sem as suas armaduras não correspondessem à imagem de estátuas de aço que Allaryia deles tinha.

 

Os dois chegaram a uma parcela do barranco a descoberto, na qual houvera uma derrocada que formara uma lamacenta e pedregosa rampa com árvores arrancadas até à margem do rio. Os dois homens montados ficaram expostos e houve quem reparasse neles no barco, sem contudo lhes dar mais atenção além de um mero vislumbre. Sasko continuou com a sua resmoneante diatribe, mas Tannath não lhe deu ouvidos e perdeu o interesse na barcaça, regressando aos seus pensamentos. Contudo, quando estava prestes a embrenhar-se nos pinheiros inclinados à beira da derrocada, o eahanoir sentiu-se observado, como se dois olhos pairassem na sua visão periférica. O eahan negro virou a cabeça e, ao ver a cabeleira ruiva de quem se levantara ao avistá-lo, puxou bruscamente as rédeas da égua, detendo o animal. O seu guia continuou a avançar, mas apercebeu-se de que Tannath parara e olhou para trás.

 

O que se passa? perguntou.

 

O eahanoir não respondeu. Os seus olhos azul e cinzento seguiam a figura que o observava, presos nela, ligados ao seu olhar que mal lobrigava, mas cujo odioso peso sentia incidir em si.

 

Quenestil.

 

Viu alguma coisa?

 

Tannath notou que outros ao lado de Quenestil se levantavam, entre os quais uma mulher encapuzada que devia ser Slayra. Um jorro de emoções foi bombeado pelo seu coração, fervilhando-lhe nas veias e tensionando os seus maxilares de tal forma que os seus dentes por pouco não se partiram. O assassino desferiu duas rápidas pancadas com os tornozelos nos flancos da égua, que se apressou pelos ocultantes pinheiros adentro, por pouco não colidindo contra a montaria do seu guia, que se agitou com a brusquidão dos movimentos.

 

O que foi? exigiu o homem saber, aquietando a sua égua. Tannath olhava através dos ramos dos pinheiros, esperando até a barcaça se afastar o suficiente. Quenestil e os seus companheiros ainda olhavam na sua direcção, mas era improvável que o estivessem a ver. O eahanoir agarrou as rédeas com força e olhou de soslaio para Sasko.

 

Esqueça Val-Oryth. Vamos atrás daquela barcaça. A sua voz estava calma e serena, suave e afiada como uma lâmina acabada de amolar. Há pessoas naquele barco que eu gostaria de ver...

 

Sasko foi acometido de um involuntário arrepio e nutou com a cabeça.

 

O resto da tarde foi passado a volver pelo caminho que haviam calcorreado desde manhã, tentando em vão acompanhar a barcaça impelida pela furiosa corrente. As éguas foram forçadas a manter um trote regular, e Sasko subia ocasionalmente a um barranco para ter uma ideia do progresso da embarcação, vislumbrando quando muito apenas a vela azul da barcaça ao longe. O guia estava confuso com a súbita mudança de planos, mas desde que recebesse o seu pagamento não se importava com o destino que tomavam. O eahanoir era estranho, e normalmente Sasko não lidaria com os da sua laia, mas tinha bom dinheiro e por ele estava disposto a ignorar os ditos populares acerca da sua espécie. Só descobrira a identidade do seu empregador na quarta noite após a partida, na qual o vira sem capuz, mas como este não parecera de sobremodo incomodado com isso, nenhum dos dois abordou o assunto nessa ou nas subsequentes noites. Ainda assim, era para o guia menos uma razão para falar com Tannath, pois sempre ouvira dizer que eahanoir descortinavam ofensas ou agravos nas mais inocentes palavras, e de cada vez que o seu empregador afiava o comprido estilete, Sasko por vezes sentia que era a sua vida que pendia do fio do gume e que podia não ver a manhã seguinte. Esses pensamentos e outros percorriam-lhe a mente enquanto liderava o caminho, dando consigo por vezes a sentir uma ligeira impressão nas costas, pois o simples facto de estarem perto do objectivo do eahanoir fazia com que o homem se questionasse acerca das razões que sobravam para Tannath o manter vivo. Não lhe agradara de todo a voz e o olhar do seu empregador quando este tomara a decisão de seguir a barcaça dos sirulianos. O sol punha-se nas suas costas, estendendo as suas alongadas sombras em frente, e as suadas éguas começavam a resfolegar de cansaço, tendo sido forçadas a um ritmo ao qual a vida nos estábulos da cidade as desabituara. Em breve teriam de parar, mas Sasko não sabia como o dizer ao eahanoir, que parecia determinado a continuar. O homem que repentinamente saiu das árvores de mãos erguidas para se pôr no seu caminho foi quase oportuno.

 

Sasko vozeou algo e puxou as rédeas da égua, que de bom grado parou, dando o exemplo à de Tannath. O corpulento desconhecido vestia as peles de um homem do ermo e um barrete castanho com uma felpuda aba; portava um machado ao cinto, do qual também pendia uma aljava de camurça, e um arco ao ombro. Sasko não gostou da cicatriz de um golpe no nariz achatado do homem, nem da sua espigada barba suja e das linhas sórdidas que lhe riscavam a cara.

 

Alto, viajores! gritou o homem ainda de braços erguidos enquanto se aproximava da égua de Sasko. Não têm algunos cobres que possam abonar a um póvero mendigo?

 

Sasko respondeu algo hesitantemente, mas Tannath não lhe prestou atenção, olhando antes em redor à procura dos restantes membros daquela que já sabia ser uma emboscada.

 

Parecem aganados, viajores. Não querem sustar e acarrar um pouco? sugeriu, agarrando as rédeas da égua de Sasko. E compartir comigo o kashkin que têm nesses cantis?

 

Sasko respondeu, olhando nervosamente em redor, mas Tannath tornou a não ouvir, pois avistara o segundo homem e o brilho da seta que tinha frechada. O terceiro, quarto e quinto surgiram de seguida da vegetação, rindo para consigo mesmos em aparente satisfação com o seu ardil. As éguas resfolegaram de nervosismo, mas as rédeas da de Tannath foram rapidamente agarradas por um indivíduo gordo que caminhava desajeitadamente nas suas apertadas e andrajosas roupas, exibindo os dentes faltosos num sorridente esgar. Tannath retribuiu com um frio olhar impassível enquanto outro indivíduo circundava a sua montaria para o ameaçar do lado oposto com uma espada curta e esboçada.

 

Descavalga, bom homem, e o teu camarada outrossim disse o primeiro indivíduo a Sasko, indicando-lhe que assim fizesse com um gesto chamativo da mão. Vamos haurir kashkin juntos e podem mostrar-nos o dinheiro que aquistaram nas vossas longadas...

 

O bandido que flanqueara a égua de Tannath grunhiu algo semelhante, embora bem mais sucinto, enfatizando com um ligeiro toque da ponta da espada na perna do eahanoir. Sasko fez como lhe fora requisitado, desprovido de qualquer espírito ou intenção de resistência, mas o assassino permaneceu na sela, avaliando a situação. O indivíduo gordo grunhiu algo ao concluir que Tannath precisava de mais persuasão e tirou a clava que trazia ao cinto, mas antes que pudesse fazer uso dela, o eahanoir agiu. Apeando-se no estribo, levantou a perna esquerda e girou sobre o pé direito, passando a perna por cima da garupa da égua e desferindo com o tornozelo um pontapé seco na cabeça do bandido armado com a espada, deitando-o por terra. A montaria assustou-se e relinchou, empinando-se e fazendo com que Tannath perdesse o equilíbrio e caísse, torcendo o pé no estribo. Uma flecha voou, atingindo o animal no pescoço e fazendo com que entrasse em pânico. O eahanoir por pouco não conseguiu rebolar para longe das violentas pisadas dos seus cascos, acochando-se e desembainhando estilete e quebra-espadas. O bandido gordo afastou-se da égua ferida e permitiu-lhe virar-se para trás e fugir num desenfreado galope, empunhando a sua clava e preparando-se para enfrentar o adversário. Sasko pagou pela resistência do seu empregador quando o quinto bandido lhe enterrou a cunha da machada no pescoço, encalhando-a nas suas vértebras e arrancando-a a empurrar o corpo pelas costas com o pé. O arqueiro escondido devia estar a frechar outra seta, e o primeiro bandido já empunhava o seu machado. Tannath não perdeu tempo a pôr o seu adversário gordo entre si e a linha de fogo do arqueiro, e o homem reagiu com um altabaixo para lhe rebentar a cabeça. O eahanoir desviou-se facilmente para o lado, mantendo os outros dois adversários debaixo de olho, e enfiou o estilete no torso do homem, pretendendo perfurar-lhe o coração. A lâmina, contudo, encalhou entre duas costelas e não passou além do pulmão, o que só por si bastou para o homem soltar um aflito grunhido e oscilar cegamente com o punho direito, que Tannath evitou ao recuar um passo. Uma seta atravessou a capa do eahanoir, e o bandido gordo girou então a clava num arco sobre a sua cabeça, atacando com abandono enquanto os seus outros dois companheiros se aproximavam. Tannath deu um passo atrás para se desviar do golpe, mas os tendões do seu pé direito inflamaram-se em brasa nesse preciso momento e a sua perna cambou, custando-lhe uma dolorosa pancada no osso do ombro, que lhe paralisou o braço esquerdo, fazendo com que deixasse o quebra-espadas cair. O eahan negro cerrou os dentes e os olhos com a dor do golpe, mas quando o seu adversário gordo trouxe a clava de volta, inclinou o tronco para trás para se desviar, apoiando-se desta vez com o pé esquerdo, e ripostou com uma investida que culminou com o seu estilete atravessado na garganta do bandido. Enquanto o moribundo caía de joelhos, esguichando sangue por entre os dedos que procuravam tapar a mortal ferida no pescoço, os seus dois companheiros avançavam por lados opostos, empunhando machado e machada. Tannath estava com o tornozelo torcido e o braço esquerdo inutilizado, e o arqueiro escondido provavelmente estaria a visá-lo com mais uma seta. Já enfrentara pior...

 

Um grito de agonia vindo das árvores fez com que os três contendedores parassem subitamente, estarrecidos pela cruciante dor do berro. O eahanoir recuperou antes dos dois bandidos e atacou, investindo coxeante contra o da machada, que foi incapaz de erguer a arma a tempo de se defender da estocada que lhe varou o coração. O seu companheiro despertou e tentou atingir Tannath na nuca com um golpe lateral do seu machado, mas este baixou-se e a cunha da arma enterrou-se na boca do seu atónito companheiro, partindo-lhe os dentes e encalhando entre ambos os maxilares. O eahanoir então puncionou-lhe a parte interior do braço, atingindo a artéria e fazendo com que largasse instintivamente a arma para tapar a ferida, da qual começou a sair sangue às golfadas que lhe molharam a andrajosa camisa. O outro bandido caiu, hirto e com o machado enterrado na boca, enquanto Tannath tombava o outro com um corte de misericórdia na garganta. O indivíduo caiu aos pés do seu executor com um arquejo sufocado, agarrando o braço ferido com uma mão e a linha vermelha na traqueia com outra, cruzando os braços numa espécie de grotesco abraço de morte. O eahanoir assistiu ofegante às derradeiras vascas dos seus adversários enquanto o sangue destes se misturava com a lama pisoteada da estrada, formando regatos escarlates na superfície irregular, mas antes que se permitisse relaxar, lembrou-se do grito agonizado vindo das árvores e olhou na sua direcção, ouvindo passos na caruma enlameada. Uma figura emergiu dos ramos espigados dos pinheiros, e não correspondia de todo ao que Tannath esperara ver.

 

Uma escanifrada mulher de negro com mãos de compridas unhas manchadas de sangue até aos pulsos deteve-se perante o seu olhar surpreso, enfrentando-o com olhos escuros. Envergava um esfarrapado vestido negro que lhe pendia dos magros ombros e que deixava entrever a sua contrastante pele branca em inúmeros rasgos, e os seus longos cabelos pretos caíam-lhe em desalinho como uma cortina esfarripada defronte da cara. O seu nariz estava torto, partido, e o braço esquerdo ligado por uma tala pendia-lhe frouxamente ao lado. Estava suja, obviamente ferida e num estado lastimoso, e contudo revelava em cada movimento seu, um vigor e uma agilidade quase animalescos, comprovados pelo sangue do arqueiro nas suas mãos. A mulher retomou o passo hesitantemente, parecendo avaliá-lo enquanto o fazia, e,, Tannath deu consigo a apertar o cabo do estilete com mais força, mantendo o quebra-espadas a alguns passos de distância debaixo do canto do olho. Havia algo de perturbador no seu olhar, uma aura que irradiava, algo estranhamente familiar e intrinsecamente... maligno. Quando o eahanoir estava prestes a dizer algo, a mulher antecipou-se-lhe e falou dubiamente numa língua que Tannath desconhecia, parecendo estar a fazer-lhe uma pergunta. A sua voz estava rouca, debilitada, mas ocultava uma perigosa selvajaria.

 

Não te compreendo, mulher. Quem és tu?

 

Perante a sua falta de compreensão da língua, a mulher retesou-se e dobrou as suas unhas como uma gata selvagem, avançando cautelosamente. As pernas de Tannath estavam flectidas, mas o eahanoir permaneceu no mesmo lugar, aguardando uma resposta da desconhecida.

 

Não falas Olgur, eahanoir? acabou esta por inquirir em desconfiado Glottik.

 

Não. Qual era a tua querela com estes bandidos? perguntou, indicando os corpos com a ponta do estilete. Quando a mulher se aproximou, os dois começaram a circundar-se como dois animais em luta territorial.

 

Nenhuma. Eles servirão apenas para saciar a minha fome. ”Fome?”, pensou Tannath. As roupas, o aspecto selvagem, as unhas negras... seria uma harahan?

 

E tu, eahanoir? Qual a tua querela com eles?

 

Nenhuma. Fui atacado.

 

A harahan relaxou visivelmente e permitiu-se distender os dedos de unhas negras, abandonando a sua postura ameaçadora, a sua hostilidade apaziguada por um instinto quase fraternal perante a presença de outro filho do Flagelo. Tannath seguiu o seu exemplo, endireitando-se e esfregando o ombro magoado com a mão do estilete, reparando em como a mulher contemplava os cadáveres com olhos ávidos.

 

São teus, mas gostaria de os revistar. Podem ter dinheiro ou provisões, que duvido de que necessites... harahan arriscou.

 

A mulher confirmou as suas suspeitas com um inconfundível olhar e aceitou o acordo com um aceno de cabeça, ajoelhando-se ao lado do cadáver de Sasko.

 

A única coisa de que necessito... é disto disse, enfiando a mão de dedos hirtos na cavidade abdominal do homem e arrancando-lhe bruscamente o fígado.

 

Tannath não pôde evitar arregalar os olhos e, apesar de toda a violência que vira em Jazurrieh, o seu estômago deu uma nauseante volta com a violência da cena. A mulher espremeu a brilhante e avermelhada víscera com ambas as mãos, esguichando o fel amarelo-esverdeado para dentro da boca sequiosamente aberta. O revoltante espectáculo fez com que o eahanoir embainhasse o estilete e virasse a cabeça, decidindo que a altura era boa para ir buscar o seu quebra-espadas. Sabia que a harahan o observava pelo canto do olho como um animal cioso a comer uma presa perante a presença de outro, mas fingiu ignorá-la e aos enojantes ruídos que fazia. Ao longe, ouviu os relinchos de morte da égua ferida. A outra fugira na direcção oposta, e ainda tinha hipóteses de a apanhar quando esta parasse. Estava a perder tempo ali, pelo que começou a revistar os outros cadáveres enquanto a harahan se alimentava do fel do bandido com o machado encalhado na boca. Teve um súbito acesso de misericórdia ao vasculhar as bolsas do indivíduo inconsciente, sabendo o que o aguardava às mãos da mulher, e cortou-lhe a garganta com o clemente quebra-espadas antes de passar para outro.

 

Quando Tannath terminou a sua recolta, a harahan ainda bebia do fígado do segundo bandido, pelo que achou que a altura era a melhor para se retirar.

 

Bom apetite, harahan. Eu tenho um barco para apanhar... despediu-se, sobraçando a bolsa com o espólio dos bandidos.

 

As suas palavras tiveram um efeito inesperado na mulher, que engasgou e cuspiu uma porção de bile para o lado, erguendo-se num movimento quase elástico e avançando na direcção de Tannath com mãos de palmas para cima e o queixo manchado de fel. O eahan negro deixou a bolsa cair e aproximou as mãos instintivamente dos cabos das armas.

 

Persegues aquele barco, eahanoir? inquiriu a mulher com um brilho quase maníaco nos olhos escuros, escorrendo bile da boca.

 

Sim... respondeu Tannath hesitantemente, cerrando os olhos. Que sabes tu acerca dele?

 

Pergunto o mesmo...

 

Os dois circundaram-se como da primeira vez, tensos e flectidos, avaliando-se de novo um ao outro à luz das novas revelações. A harahan tinha o braço partido e estava obviamente cansada, mas o eahanoir também não estava nas melhores condições, e conhecia bem as histórias acerca da força e da velocidade das damas da noite cujas garras rasgavam como punhais. Talvez um confronto não fosse necessário, mas Tannath manteve-se em guarda e retorquiu.

 

Digamos que gostaria de ter uma conversa com um casal que faz parte da tripulação da barcaça, que por sinal se está a afastar cada vez mais enquanto eu estou a perder tempo com estas brincadeiras. Diz o que queres, mulher, para eu me ir embora.

 

A harahan hesitou perante as suas palavras.

 

Um casal... dois eahan? perguntou. Foi a vez de Tannath hesitar, surpreso. Um eahan da montanha ruivo e uma eahanoir?

 

Como... o que sabes sobre eles, mulher?

 

Fazem parte do grupo que persigo. O seu líder é Aewyre Thoryn.

 

Grupo...? Sim, o grupo do qual Slayra falara. Haviam-nos encontrado, então, e dirigiam-se para Asmodeon. Quantos são?

 

Sete. Dois guerreiros humanos, um mago, um thuragar e um burrik. Já foram oito, mas um deles desapareceu. O casal eahan reencontrou-os há pouco tempo.

 

”Sete?”, pensou Tannath, alarmado, e a sua inquietude transpareceu-lhe na expressão, o que não passou despercebido à mulher.

 

Eles são perigosos, eahanoir, e estão a ser vigiados por seis sirulianos. O que sabes tu acerca deles?

 

Deles? Não sei nada. Só conheço os dois eahan, e são só eles os dois que eu quero. Os outros não me interessam, a menos que se ponham no meu caminho.

 

Então... Aewyre Thoryn não é o teu alvo? Por que fazia a mulher estas perguntas?

 

Já disse, mulher, não sei quem ele é. E tu, desejas algo com os eahan?

 

Não... a menos que se ponham no meu caminho.

 

Tannath permitiu-se erguer o canto da boca num sorriso enviesado e relaxou a sua postura, sendo de seguida imitado pela harahan. Ainda tinha várias perguntas a fazer-lhe, mas pelo menos já pudera perceber que os objectivos de ambos não eram antagónicos. Os dois aproximaram-se cautelosamente um do outro, atentos a qualquer movimento brusco e estudando-se mutuamente com novos olhos.

 

Talvez... nos possamos ajudar um ao outro, eahanoir sugeriu a mulher para grande surpresa deste. Ao ver a sua reticência, a harahan esclareceu: Como disse, os sete são perigosos, e estão debaixo da protecção de seis sirulianos. Juntos, temos melhores hipóteses.

 

Eu trabalho sozinho, mulher...

 

Eu também, mas não sou estúpida. Já tive demasiados dissabores com aquele grupo, e não pretendo que se repitam declarou, mexendo o seu braço entalado e passando o dedo pelo nariz partido.

 

Tannath acenou com a compreensiva cabeça, mas ainda estava incerto quanto a uma aliança com a harahan, mesmo que fosse apenas temporária. Confiança era algo que Jazurrieh erodia gradualmente da alma de todos os seus habitantes, pois esta podia facilmente levar à morte de qualquer um e nada mais era do que um convite para uma faca nas costas. A harahan podia facilmente matá-lo durante o sono, e sabia que a mulher pensava que lhe podia acontecer o mesmo, apesar de nenhum dos dois ter alguma razão evidente para o fazer. Nenhuma, a não ser...

 

Consegues controlar o teu... apetite? perguntou sem rodeios, indicando o fel no queixo da mulher com os olhos.

 

Já passei por provações piores... afirmou a harahan, passando os dedos por baixo do lábio e lambendo-os com prepositada lentidão. E estes devem chegar para alguns dias...

 

Tannath tornou a erguer o canto da boca e embainhou as suas lâminas, incapaz de conter uma careta contrita com a dor que o movimento lhe causou no ombro magoado. Sempre trabalhara sozinho, mas também nunca tivera como alvo um grupo de sete guerreiros guardados por seis sirulianos numa terra na qual era um estranho. Nem mesmo a harahan faria grande diferença caso os tivessem de enfrentar; seria necessário um estratagema, e a mulher parecia conhecer bem o grupo, julgando pelas marcas de anteriores confrontos que ostentava. Sim, talvez se pudessem ajudar mutuamente...

 

Muito bem, mulher. Temos um acordo. Mas não te esqueças: os dois eahan são meus.

 

E Aewyre Thoryn é meu.

 

Podes tê-lo, e aos outros, e aos seus fígados. Não significam nada para mim disse, esfregando o ombro. A clava atingira-o de raspão, mas com a adrenalina a diluir-se começava a doer como se lhe tivesse partido a ponta da clavícula. O seu tornozelo também se queixava, mas não parecia ser nada de grave.

 

Vamos, então? A tua égua não deve ter ido muito longe. É melhor tentarmos apanhá-la antes que escureça.

 

A égua...? O eahanoir sabia que as harahan eram capazes de nadar pelas sombras, especialmente de noite.

 

Sim. Estou cansada, e andar pelos meus próprios meios exaure-me ainda mais e atrasa a minha recuperação. Também não faria grande diferença apanhá-los antes de ti, estando sozinha.

 

- E julgas que eu farei a diferença numa luta?

 

Teremos de pensar em algo...

 

Bom, pelo menos a sede de vingança não a cegara. Sabia que as harahan eram notoriamente instáveis, frequentemente movidas por instintos como predadoras da noite que eram, ocultando-se debaixo de sofisticadas fachadas para engodar os mais incautos.

 

Sim, teremos de pensar em algo... Um silêncio desconfortável. Sou Tannath.

 

A mulher fitou-o.

 

Não revelo o meu nome a qualquer um... Tannath.

 

Parece-me sensato anuiu o eahanoir, certo de que a harahan devia ter as suas razões. As suas já as perdera há muito tempo, a partir do momento em que saíra de Jazurrieh. Muito bem. Vamos então?

 

Vai tu à frente, tenta apanhar a égua. Ainda tenho uns... preparativos a fazer disse a mulher, olhando vorazmente para os cadáveres. Eu depois encontro-te.

 

Sem qualquer vontade de tornar a assistir ao grotesco procedimento, Tannath virou-lhe as costas, foi buscar a sacola que deixara cair ao chão e pôs-se a caminho sem mais uma palavra. Teria de confiar na sua nova e temporária aliada até certo ponto, embora não tivesse nenhuma razão para o fazer além da semelhança dos objectivos e o simples facto de pertencerem os dois à progénie do Flagelo. Tannath matara três meios-irmãos em Jazurrieh, dois dos quais em legítima defesa. Só podia esperar que este não acabasse por ser outro assunto de família...

 

Mas acalma-te, eahan dum raio! berrou Worick, cingindo a cintura de Quenestil com os braços pela frente.

 

Um Ajuramentado retia o shura, agarrando-lhe os ombros, Taislin estava praticamente pendurado na sua perna e Slayra rogava-lhe que parasse. Lhiannah mantinha-se a uma distância segura, incerta quanto ao que fazer.

 

Larguem-me! Ele está ali! Eu vi-o! bramava Quenestil, esbracejando com os olhos vivos e a cara rubra. Parem o barco ali na margem! Eu vou atrás dele!

 

Vais mas é para a água se não paras quieto! ameaçou o thuragar, falando com a cara esmagada contra o torso do eahan.

 

Quenestil, tem calma! pediu Slayra. A eahanoir estivera a falar com Allumno antes do grito do shura, e correra para ele assim que o vira a gritar com um Ajuramentado. Os restantes prisioneiros estavam todos cativados pelo ruidoso espectáculo que Quenestil lhes estava a providenciar, enquanto Aewyre e Allumno se tentavam levantar sem grande sucesso, acorrentados a dois outros homens que não tinham vontade de sair dos assentos.

 

Pela Mãe, larguem-me! Eu vou matar o desgraçado! vociferava o shura, ignorando furiosamente as palavras de todos os que o rodeavam, até o Mandatário chegar.

 

O que se passa?

 

Ele está na margem, seus idiotas! Larguem-me! quase espumou Quenestil.

 

Ajuramentado, imobiliza-o! disse ao jovem siruliano, que prontamente deitou o furibundo eahan às tábuas da barcaça, arrastando Worick e Taislin com ele.

 

Slayra ajoelhou-se à sua cabeça e agarrou-lha, temendo que o shura entrasse no frenesim de carcaju como o fizera em Jazurrieh. Com a eahanoir a sussurrar-lhe palavras aquietadoras ao ouvido vermelho, Worick e o pesado siruliano em cima, e um estrebuchante Taislin agarrado à perna, Quenestil acalmou, respirando profunda e rapidamente. Aelgar virou-se para trás, vendo que Aewyre Thoryn quase arrastava o mago e os outros dois prisioneiros para fora do assento, e ergueu uma mão para aplacar os ânimos.

 

Ajuramentados, imponham a ordem! disse aos quatro jovens sirulianos mais perto da proa, devolvendo de seguida a atenção a Quenestil. Tu, eahan, o que se passa?

 

Ainda com as mãos de Slayra a segurarem-lhe a cabeça e com os braços imobilizados, o shura inspirou fundo antes de responder.

 

Um assassino persegue-nos na margem da esquerda.

 

Qual esquerda?

 

O eahan apontava para bombordo, Mandatário esclareceu o Ajuramentado que retia Quenestil e Worick, que resmungava debaixo dele.

 

Conhece-lo, eahan?

 

Ele persegue-nos. É o Tannath, Slayra. O desgraçado não morreu afirmou entre dentes cerrados, olhando para a eahanoir com os mais graves olhos cinzentos que esta alguma vez vira.

 

A eahanoir não podia empalidecer mais, mas os seus lábios perderam a cor e o seu peito inflamou-se dum súbito pavor, que lhe revoluteou o estômago. Largou a cabeça de Quenestil e tropeçou até à amurada, vomitando o frugal pequeno-almoço borda fora para a água castanha.

 

Slayra! estrebuchou o eahan.

 

Larga-o, Ajuramentado disse Aelgar calmamente, e o jovem assim fez, permitindo ao shura livrar-se de Worick e Taislin, arrastar-se para os seus pés e ir ter com Slayra.

 

Livra, nunca o vi assim... disse Taislin, ajustando o barrete de pernas cruzadas e aceitando a ajuda de Lhiannah para se levantar. O que quer que ele tenha visto na margem...

 

Tanto a arinnir como o burrik encolheram os ombros, alheios ao Mandatário, que ouvia cada palavra sua atentamente enquanto observava o casal de eahan. Quenestil perdera todo o ardor e já nem sequer fumegava, limitando-se a agarrar gentilmente os ombros de Slayra, cujo corpo se convulsionava intervaladamente para regurgitar as fermentações do susto. Aelgar deu-lhes algum tempo, mas avançou assim que a eahanoir pareceu aliviada, cobrindo o casal com a sua imponente sombra. O shura abraçou a sua companheira protectoramente enquanto esta esfregava o empalidecido lábio inferior com as costas da mão.

 

Dizes tu que um assassino nos persegue, eahan?

 

Sim respondeu Quenestil. Um eahanoir. Já nos tentou matar antes.

 

Tens a certeza?

 

O shura trocou um breve olhar com Slayra, cuja inquietação transparecia claramente na sua cara.

 

Absoluta. Corremos perigo.

 

Estava acompanhado?

 

Vi outro cavaleiro, mas acho que só eram dois. O Ajuramentado também viu, e os meus companheiros também.

 

Eu e o Ajuramentado Taeran sentimos uma presença vil cinco noites atrás. Não era um eahanoir, contudo.

 

Mas quem eu vi, é um eahanoir. Disso estou certo. Se está acompanhado ou não por essa presença vil, não o sei.

 

O Mandatário virou-se ligeiramente para o lado, contemplando o rio que haviam deixado para trás, no qual incidiam os derradeiros raios de sol, fulgurando nas águas enlameadas. Em breve anoiteceria, e as trevas da noite libertariam os perigos ocultos da região durante o longo dia.

 

Muito bem. Atracaremos na margem a estibordo e estaremos atentos nesta noite e nas próximas. Faltam três dias para chegarmos a Ul-Syth; assim que nos fizermos ao mar, nada mais teremos a temer de assassinos.

 

Obrigado... Mandatário agradeceu o eahan, sentindo que o devia fazer.

 

Aelgar anuiu com a cabeça e foi ajudar os Ajuramentados, que entretanto já haviam imposto a ordem. O jovem siruliano que imobilizara Quenestil foi tratar do leme, e Worick, Lhiannah e Taislin foram ter com o casal a passo hesitante enquanto ambos se confortavam nos braços um do outro.

 

Slayra...? perguntou a voz abafada da arinnir, cuja cara estava compadecidamente ensombrada pelo sol que lhe batia atrás no capuz.

 

Tudo bem... é só esta maldita barriga... disse a eahanoir com a garganta queimada por sucos gástricos.

 

Pedras me partam, eahan, que raio de chiqueiral foi este? interrompeu o thuragar. E quem é esse Tannath?

 

Quenestil afagou o cabelo de Slayra, que encostou a cara ao seu peito.

 

Um eahanoir de Jazurrieh. Quase nos matou aos dois... e o Babaki morreu por causa dele.

 

Lhiannah engasgou-se. A expressão de Worick tornou-se mais carregada. Taislin pareceu ser atingido com algo. Slayra abriu a boca, mas dela não saiu nenhuma palavra. Não valia a pena tentar esclarecer que Tannath não fora directamente culpado pela morte de Babaki, acabaria por criar algum mal-entendido, o que naquele momento era a última coisa de que precisava. Quenestil tomou o ligeiro movimento como um tremor ou um gesto de medo e abraçou-a com mais força, beijando-lhe a cabeça.

 

Taislin, podes ir dizer ao Aewyre que está tudo bem? pediu ao burrik. Só para ele não ficar preocupado.

 

Eu... está bem concordou o seu pequeno companheiro, encaminhando-se distraidamente para o guerreiro por entre as pernas dos sirulianos.

 

O Babaki...? perguntou Lhiannah através dos dentes, crispando os punhos.

 

Tens a certeza de que era ele, eahan? inquiriu Worick.

 

Veio da Latvonia até cá e ainda nos encontra?

 

Não me perguntes como, só sei que é ele. Sei que é ele... o maldito desgraçado veio atrás de nós.

 

Bom, ele que se atreva a mostrar o focinho. Rebento-lho à martelada.

 

O Babaki... repetiu Lhiannah.

 

Os quatro quedaram-se silentes por um momento, tentando não se deixarem avassalar pelas memórias despertas. Para o thuragar e para a princesa, a morte do seu amigo ainda era muito recente; para Quenestil, a mera menção do nome de Tannath despertara nele os derradeiros momentos vividos com o antroleo na arena.

 

Anda, cachopa. Vamos sentar-nos... acabou Worick por dizer, puxando a sua entorpecida protegida pelo braço. Eahan, tu...

 

Os dois permaneciam abraçados, e o thuragar achou que não valia a pena dizer mais nada.

 

Ajuramentados, atracamos antes dos rápidos anunciou a voz de Aelgar enquanto Worick e a arinnir retomavam os seus assentos.

 

Toda a tripulação tinha a distinta sensação de que a vindoura noite podia vir a ser agitada.

 

O sol já ia baixo quando avistaram a revolta frente escumosa dos rápidos, que o Mandatário preferiu evitar em tais condições de iluminação. A atracagem foi brusca como sempre, embora a margem não fosse seixosa, e a tripulação procedeu com a já habitual rotina de arrastar a barcaça para fora da água e montar o acampamento. Aewyre e Allumno já não se embaraçavam com as correntes, e cada um preparou o seu camastralho em silêncio. O mago estranhava o comportamento do seu protegido, que desde a conversa com o Mandatário há quatro noites não trocara palavra com ele ou com qualquer outro dos companheiros. Questionava-se acerca do que poderiam ter discutido que o deixasse em tal estado, mas o jovem quando se fechava revestia-se com uma manta de silêncio impermeável a qualquer tentativa de diálogo, e Allumno já sabia que qualquer esforço da sua parte seria em vão. Restava-lhe esperar, como sempre fazia nas oscilações de humor de Aewyre. De momento estava mais apreensivo com o que Taislin lhe contara na barcaça. Um assassino eahanoir que perseguira Quenestil e Slayra desde Jazurrieh... o burrik não soubera responder à maior parte das suas perguntas, pelo que teria de as fazer a Slayra ou a Quenestil assim que a oportunidade se apresentasse, o que podia tardar, tendo em conta o estado de espírito de ambos... ou talvez não, pois o casal levantou-se do outro lado do acampamento e parecia fazer tenções de vir ter com os seus amigos. Lhiannah também se levantou, e a eahanoir e a princesa falaram uma com a outra até a primeira lhe indicar umas árvores para as quais Lhiannah se dirigiu. Os dois eahan vieram então ter com Aewyre e Allumno de braços dados. O guerreiro permaneceu sentado com os braços sobre os joelhos, absorto nas suas cismas, mas o mago levantou-se já com as perguntas na língua.

 

Quenestil, Slayra...

 

Como está o joelho, Allumno? perguntou a eahanoir.

 

Há muito que deixou de ser pretexto para vires falar connosco. Esse assassino...

 

Desculpa, Allumno escusou-se Slayra. Aewyre?

 

Os olhos do jovem viraram-se para cima, mas o resto do seu corpo não se mexeu. A eahanoir ajoelhou-se à sua frente, assistida por Quenestil para grande arrelio seu.

 

Não estou inválida! protestou, mas não se libertou das suas mãos. Aewyre, tu tens andado esquisito nestes últimos dias. Não sei do que foste falar com o Mandatário, mas... a Lhiannah precisa que vás falar com ela. Slayra conseguiu a atenção indivisa do jovem.

 

As feridas já não precisam de grandes atenções, mas ela ainda está mortiça e desanimada, porta-se como se estivesse doente com uma praga qualquer e esconde sempre a cara. Eu... não estou em condições de animar ninguém neste momento, e o Worick também não é nenhuma autoridade nessas coisas.

 

Aewyre olhava espantado para a eahanoir e fitou Quenestil, procurando esclarecimento, mas o eahan limitou-se a encolher os ombros.

 

Mas... eu...?

 

-Sim, tu... Slayra suspirou, baixando a cabeça. Aewyre, és o único que neste momento a conseguiria atiçar, e é disso que a Lhiannah precisa. Vai lá, diz alguma coisa errada, provoca-a, faz aquelas coisas que tu sabes. Nunca tiveste de te esforçar muito para a irritar.

 

Quenestil tornou a encolher os ombros quando Aewyre tentou obter alguma resposta ao olhar para ele. Slayra agarrou a mão do guerreiro.

 

Não sei o que é que tu tens, mas a Lhiannah precisa de um empurrão, e tu és de todos nós o mais indicado para lho dar.

 

Mas... eu... mas ela está...

 

”Bom, se para mais nada, pelo menos isto serviu para o avivar”, pensou Allumno. Vai falar com a rapariga, Aewyre disse, dando-lhe uma palmada no ombro para o incitar a mexer-se.

 

O guerreiro ainda olhou uma última vez para o seu amigo eahan, que se limitou a acenar com a cabeça. Resmungando qualquer coisa, acabou por se levantar, atraindo olhares pouco amistosos dos restantes prisioneiros, quatro dos quais quase arrastara na barcaça durante o acesso de fúria de Quenestil. Allumno chamou a atenção a um Ajuramentado, que por sua vez foi chamar Aelgar.

 

O que desejas, Aewyre Thoryn?

 

O jovem pareceu inicialmente incerto quanto ao que dizer, mas o peso do impaciente olhar do Mandatário forçou-o a eructar as suas palavras.

 

Eu... a minha amiga, a princesa Syndar... ali atrás das árvores... preciso de falar com ela... a sós. Aelgar ergueu o sobrolho, estranhando o pedido. Pode tirar-me as grilhetas?

 

O Mandatário não respondeu de imediato.

 

Eu não fujo assegurou o guerreiro.

 

Nunca me ocorreu que o fizesses, Aewyre Thoryn... declarou o velho siruliano, coçando o queixo e olhando para o arvoredo que o guerreiro indicara. Liberta-o, Ajuramentado Deadan. Não se afastem demasiado do acampamento, Aewyre Thoryn, e mantenham-se ao alcance do ouvido.

 

Sim, Mandatário assentiu o jovem obedientemente enquanto Deadan lhe destrancava as grilhetas, esfregando os pulsos ao ver-se livre das suas cadeias.

 

Volta antes que o sol se ponha por completo, Aewyre Thoryn. Hoje os prisioneiros também participarão na vigília...

 

Eu ajudo prontificou-se Quenestil de imediato.

 

Muito bem, eahan. Vai, Aewyre Thoryn.

 

O jovem agradeceu uma última vez e assim fez, ignorando os sussurros e olhares indiscretos dos restantes prisioneiros enquanto se dirigia aos pinheiros atrás dos quais Lhiannah se escondera, questionando-se acerca do que estava a fazer e sentindo que as suas pernas se estavam a mexer contra a sua vontade. Começava a escurecer e já não sobrava muito tempo de luz, que teria de aproveitar para... o quê? O que é que lhe ia dizer?

 

Aewyre tirou um ramo de pinheiro do seu caminho e viu que Lhiannah estava acocorada perto de um arbusto numa posição embaraçosa, pelo que virou de imediato as costas e escondeu-se atrás da árvore. Não o ouvira provavelmente devido ao capuz ou ao seu ouvido esquerdo, e o jovem bateu com a nuca na casca escamosa do pinheiro, tecendo comentários pouco elogiosos acerca de Slayra.

 

”Mas o que é que eu estou aqui a fazer? Ganha juízo, homem! Vais dizer-lhe o quê? Que o dói-dói vai passar?” Aewyre esfregou a cara, bateu uma vez mais com a nuca no tronco e suspirou. ”Bom, cá vai...”

 

Proferiu um aviso ao pigarrear desnecessariamente alto e deu a Lhiannah o tempo que julgava necessitar para se recompor antes de sair detrás do pinheiro. A princesa parecia surpresa por o ver, e nada na sua postura denotava alegria pela sua presença. A sombra do capuz ocultava-lhe boa parte da face, deixando apenas entrever a boca enquanto a princesa arranjava atabalhoadamente a capa.

 

Como... como é que te sentes? Lhiannah.

 

A arinnir inclinou a cabeça para a esquerda, dando a entender que não ouvira bem com o seu ouvido esquerdo.

 

Como é que te sentes?

 

Bem respondeu a princesa sucintamente.

 

O queixo...?

 

Consigo falar. Mais ou menos murmurou a arinnir, recolhendo-se discretamente nas sombras dos pinheiros.

 

Não te tenho visto a comer. O que é que... andas a comer?

 

A Slayra faz uma papa com o pão e aquela bebida... respondeu Lhiannah desinteressadamente. Mas sabe mal, e eu ando sem fome.

 

A Slayra. Pois. A Slayra... ela diz que já estás melhor. Lhiannah não respondeu. Mas que... não são bem as feridas o teu problema.

 

Aewyre deu um passo em frente e teve a impressão de que a arinnir deu dois atrás, pelo que se deteve, incapaz de reconhecer a sua companheira naquele vulto assustado.

 

Lhiannah, não há razão para isso... tu...

 

A princesa disse algo entre dentes e abafado pelo capuz, mas o guerreiro não percebeu.

 

Vai-te embora, Aewyre repetiu, mais um pedido que uma exclamação.

 

O jovem suspirou, questionando-se uma vez mais quanto ao seu lugar ali, mas por alguma razão sentiu-se compelido a ficar.

 

Eu... não te cheguei a agradecer. Salvaste-me a vida e ias morrendo por isso...

 

Nada que qualquer um de nós não fizesse pelo outro afirmou Lhiannah de uma forma quase imperceptível.

 

Mesmo assim insistiu Aewyre assim que percebeu o que a princesa dissera. Obrigado.

 

De nada. Agora vai-te embora. Por favor.

 

Os dois ficaram nas mesmas posições e em silêncio, olhando com forçosa distracção em redor por falta de palavras. As coisas não estavam a correr da forma que Aewyre esperara, embora este nem soubesse ao certo o que havia esperado da conversa. Por fim, optou por uma abordagem mais directa.

 

Pelo amor de Assana, Lhiannah, olha para ti! exclamou repentinamente, avançando de encontro à arinnir e agarrando-a pelos ombros antes que esta tivesse tempo de reagir. Não falas, não comes, escondes-te, já olhaste para ti? É claro que não, andas sempre a tapar a cara com esse maldito capuz!

 

A arinnir tentou libertar-se, e agarrou o pulso de Aewyre antes que a mão deste lhe tirasse o capuz.

 

Larga-me! tentou Lhiannah gritar, mas a ligadura no queixo não lho permitiu.

 

Tira isso, mas que raio! persistiu o guerreiro

 

Pára! As minhas costelas! grunhiu Lhiannah numa voz plangente que apenas incitou Aewyre a ser mais duro.

 

O jovem acabou por conseguir agarrar o capuz da princesa e puxou-lho para trás, destapando-lhe a cara e a cabeleira loura num movimento brusco. Lhiannah guinchou e cobriu a face com o braço, virando as costas a Aewyre e encostando-se a um pinheiro.

 

Que vergonha, Lhiannah! repisou Aewyre. A mulher que lutou ao meu lado em Alyun e em Moorenglade! Olha bem para ti agora! Metes dó! A princesa arquejava, queixando-se de dores nas costelas. Sabes o que penso? Se calhar sempre foste assim, armada em durona, mas sempre que alguém te chegava a roupa ao pêlo, começavas a choramingar que nem uma donzela! Os arquejos de Lhiannah cessaram e a sua cabeça virou-se ligeiramente para o lado, fitando Aewyre de soslaio.

 

É isso, não é? És a princesinha mimada e dura até te queimares, e então deitas-te de barriga para o ar a ganir. Bela guerreira que me saíste!

 

Não foi necessário continuar, pois nesse preciso instante Lhiannah rosnou, e o seu punho cerrado arremeteu na direcção de Aewyre, que desviou a cara e o aparou com a palma da mão, crispando os dedos nele. A arinnir deu-lhe um pontapé na canela e tentou arranhar-lhe os olhos com a mão livre, mas o guerreiro agarrou-lhe o pulso e prendeu-lhe as mãos atrás da cintura, achegando-se dela.

 

Eh lá, o que é que temos aqui? zombou o jovem. Parece que afinal...

 

A sua voz foi cortada por um forçado arquejo quando o joelho de Lhiannah se enterrou entre as suas pernas, curvando-o e permitindo à princesa empurrá-lo para o chão. Lhiannah começou a dar-lhe pontapés na coxa, rosnando de raiva, mas Aewyre ria divertido, tentando aparar os golpes com os seus pés.

 

Au! Então? Não te dói fazer... ai! Vê lá não te mag... au! A chacota do guerreiro apenas enfurecia mais a princesa, que tentava dar-lhe pontapés na barriga enquanto Aewyre rebolava pelo chão, permitindo-lhe apenas bater-lhe nas pernas.

 

Seu estafermo! praguejava a arinnir a cada pontapé. Safado! Pulha!

 

Aewyre deu uma cambalhota para trás e levantou-se, ficando de costas para um pinheiro, e Lhiannah investiu furiosamente contra ele como uma gata assanhada. O guerreiro agarrou-lhe os pulsos e inverteu bruscamente as posições, encostando-a ao ramoso pinheiro e colando o seu corpo ao dela de forma a evitar mais joelhadas imprevistas. A princesa debateu-se, agitando os ramos de pinheiro nos quais estava enterrada e despejando os últimos resquícios de neve em cima de ambos. Aewyre riu.

 

Então? Essas costelas?

 

Lhiannah tentou desferir-lhe uma cabeçada na boca, mas o jovem desviou-se e a testa da princesa atingiu-lhe apenas o trapézio.

 

Doem-me como tudo! protestou Lhiannah furiosamente. Queres que te mostre como elas doem? Tentou libertar os braços e trazer um joelho acima para agredir Aewyre, mas o aperto do guerreiro era firme e os seus corpos estavam demasiado próximos.

 

A arinnir estrebuchou mais um pouco, mas os seus membros acabaram por relaxar e deixou-se afundar nos densos ramos do pinheiro, respirando pesadamente pelo nariz por não poder abrir a boca enquanto Aewyre ofegava com os olhos postos nos seus. Estava a escurecer, e com Lhiannah enterrada nos ramos do pinheiro, era difícil distinguir os detalhes da sua face.

 

Posso largar-te? perguntou.

 

Podes disse a princesa contritamente.

 

O guerreiro afrouxou o aperto nos seus pulsos e descolou o corpo do seu, e nesse momento Lhiannah esbracejou, empurrando Aewyre pelo peito e desenvencilhando-se dos ramos com violentos bracejos. Aewyre nada disse e ficou a olhar enquanto a arinnir esfregava os cristais de gelo do cabelo, da ligadura e dos ombros, constatando alegremente que continuava a ignorar a alegada dor nas costelas e no resto do corpo.

 

- És um cretino, sabias? disse Lhiannah, tapando a cabeça com o capuz, passando ao lado do guerreiro e fazendo tenções de voltar para o acampamento.

 

Aewyre agarrou-lhe o braço e puxou-a para si, destapando-lhe a cabeça ao fazê-lo e prendendo-a com os olhos. Lhiannah manteve uma postura pronta a arrancar o braço e fugir, mas não o fez, intrigada com o que via nos orbes do guerreiro, que lhe esquadrinhavam atentamente a face. As pontas da ligadura que lhe cingia o maxilar pendiam para os lados no topo da sua cabeça, fazendo-a parecer um coelho desanimado.

 

Lhiannah, sabes bem que eu não estava a falar a sério. Disse aquilo só para te provocar. És a mulher mais corajosa que já conheci, e nunca hesitas em te arriscar para ajudar os teus companheiros, incluindo eu. Salvaste-me e quase foste morta... A expressão da arinnir era ilegível. É claro que és chata como uma meiga no ouvido, e tens o feitio de uma javalina prenha, mas essas é que deviam ser as razões para tu andares escondida e tapada... não isto. Levantou a mão livre e passou-lhe a parte exterior dos dedos pela maçã do rosto, retirando-a bruscamente como se tivesse produzido faísca. Isso... são só feridas, Lhiannah. Vão passar como estas disse, esfregando os arranhões suturados debaixo da sua barba medrante, ganhando a coragem para tornar a tocar na cara da arinnir.

 

Passou as pontas dos dedos pelas marcas que os ferimentos iriam deixar na pele macia de Lhiannah, evitando os seus olhos inquiridores até lhe tocar na pequena crosta prestes a cair do seu lábio inferior. Os olhos de ambos encontraram-se então, e Aewyre constatou que os orbes azuis da princesa estavam vivos uma vez mais, com as pepitas douradas que os pontilhavam a cintilarem mesmo à fraca luz. O guerreiro sorriu, mas o sorriso rapidamente se desvaneceu à medida que os seus dedos deslizavam pela mandíbula de Lhiannah, passando por baixo da orelha enquanto o seu polegar lhe acariciava os lábios. Agarrou gentilmente a nuca da princesa, enlaçando os seus dedos nos ensebados cabelos louros, e deu consigo a aproximar-se da cara de Lhiannah, apartando ligeiramente os lábios. A arinnir estava hirta, mas Aewyre sentia as suas veias do pescoço a palpitarem-lhe na nuca, e não apresentava qualquer tipo de resistência. O seu queixo foi bafejado pela respiração quente e húmida do nariz da princesa, e a mão com a qual lhe agarrava o braço largou-o e cingiu-lhe a cintura, puxando-a para si e cada vez mais perto da sua boca.

 

Aewyre Thoryn?

 

Os dois sobressaltaram-se e quase se empurraram para longe um do outro com o susto. Deadan estava de braços cruzados a poucos pés de distância.

 

Está escuro. Regressemos ao acampamento disse sucintamente, aguardando que os dois assim fizessem.

 

Aewyre e Lhiannah olharam um para o outro, certos de que algo havia ficado pendente com a interrupção do siruliano, mas a princesa foi a primeira a começar a andar, deixando o guerreiro para trás. Todavia, não puxou o capuz ao passar por Deadan, o que só por si trouxe um sorriso à cara de Aewyre.

 

Esta noite designaremos prisioneiros para uma vigília, Aewyre Thoryn. Ofereces-te para essa função? inquiriu o Ajuramentado.

 

Sim... acedeu o jovem, indo atrás da arinnir. Por que não? Antes isso que cobrirmos as cabeças com medo, não é?

 

Deadan ergueu uma dúbia sobrancelha e não respondeu. Aewyre afastou algo com a mão, dando a entender que não esperava que o siruliano compreendesse.

 

A lua estava alta e cheia sobre Val-Oryth, brilhante e de contornos bem definidos, nimbando os telhados dos edifícios e predizendo um agradável dia na manhã seguinte. A lama das ruas endurecera ao longo de vários abençoados dias sem chuva, e as brenhas do vale defronte da cidade já se avivavam durante o dia em tons de amarelo, roxo e azul, exalando suaves aromas florais aquecidos pelo sol pela vertente abaixo. Os habitantes dormiam descansados pela primeira vez após os incidentes que haviam seguido a morte de lorde Malagor; provavelmente aplacados pela proximidade do Verão.

 

Mas nem todos dormiam na cidade. Caminhando pelos becos e vielas de Val-Oryth, ocultos pelas sombras e afugentando gatos e ratos com a sua passagem, vultos negros mexiam-se na noite, provenientes de todos os distritos da cidade. Tamancos, botas, sapatos e pés enfaixados de tiras de pano pisavam a lama seca e as poças de dejectos citadinos; mãos gesticulavam freneticamente numa linguagem silenciosa; sussurros sibilavam no ar, afoitando todos quantos ficavam para trás. As patrulhas dos laicos de Bellex eram evitadas, as dos milicianos encobriam os vultos, sendo constituídas na sua maioria por guardas corruptos que se haviam voluntariado para a vigília naquela noite. A portinhola incorporada no portão sul abria-se mediante as palavras certas e uma breve troca de saudações feitas por homens e mulheres de caras cobertas por capuzes. Vista do topo da barbacã, a estrada de terra batida que levava ao portão era pontilhada por pequenas figuras formigantes ao longo da sua sinuosa extensão alumiada pelo luar. A via que servia de acesso à cidade para os lenhadores e proprietários de quintas no vale serpeava pela baixa, bifurcando-se em frente para as quintas e para cima na direcção das cabanas de lenhadores, cuja direcção os vultos tomavam. À medida que subia, a estrada ia-se tornando num carreiro cada vez mais acidentado e alcantilado, mas os vultos subiam a encosta do vale com afinco, acicatados pela premência do chamamento que durante todo o dia fora silenciosamente espalhado em Val-Oryth, através de sussurros, notas, e sinais secretos dependurados ou escrevinhados em boa parte da cidade. O carreiro ia dar a um lapedo na encosta do vale, uma área rochosa coberta de ervas rupestres habitualmente frequentada pelos rebanhos de cabras durante o dia, mas que naquela noite estava apinhada de vultos humanos agregados numa irrequieta e expectante turba. Camponeses, mercadores, artesãos, guardas, homens e mulheres estavam reunidos diante de uma enorme e projectante lapa escura, debaixo da qual se encontrava a razão da vinda de todos, ocultada por um grupo de celebrantes que envergavam togas negras e máscaras que lhes cobriam as faces. Os indivíduos estavam de costas para a lapa, de braços cruzados atrás das costas e mantendo a multidão em sussurrante sossego com os seus olhares átonos através dos buracos nas suas máscaras. Entre eles e a turba jazia um hirsuto homem desnudo, amarrado e amordaçado sobre uma laje de pedra natural, de braços e pernas estendidos e com a sua pele pálida quase a brilhar no meio da massa de negritude que o rodeava. O infeliz Coração Quebrado fora capturado pelos diligentes vultos na preparação da cerimónia ao ser apanhado a espiar os aprestos, e os seus olhos arregalados traíam o medo proveniente do conhecimento do destino que lhe estava reservado.

 

Por fim, quando a multidão já começava a dar sinais de impaciência, foi aberta uma brecha na barreira de celebrantes e dela saiu uma mulher sumptuosamente vestida para a ocasião, silenciando todos os presentes com a sua aparição.

 

Linsha trajava um pesado vestido de alças negro com as bainhas debruadas em tons de roxo e decorado com um padrão bordado de runas verdes. Trazia a sua gargantilha de ferro com um pingente vermelho ao pescoço, e os seus delgados braços pálidos estavam descobertos e decorados com manilhas de prata e pulseiras encastoadas, às quais estavam atadas as pontas de badanas que pendiam do amplo xaile bordado que lhe cobria a cabeça baixa, ocultando-lhe a cara com farripas de tecido enroladas com contas de âmbar escuro nas pontas. A pupila do anterior Alto Vulto ia ser elevada ao estatuto do seu falecido mestre, e fizera questão de fazer jus ao título no mínimo em aparência, razão pela qual calçava um par de tamancos absurdamente altos que a obrigavam a um passo lento e cuidadoso enquanto se aproximava da laje com o Coração Quebrado. Todos os olhos estavam postos em si naquele momento, julgando, apreciando, avaliando como uma matilha de cães na escolha de um novo líder. Linsha estava nervosa, e dava graças ao xaile por ocultar a sua cara naquele momento, embora tivesse de a descobrir mais cedo ou mais tarde para encarar a multidão de Filhos do Flagelo. A sua perícia com a Palavra não bastaria para os convencer, tinha de provar ser merecedora do mais alto título da seita, e muitos eram da opinião que vários celebrantes eram mais experientes e adequados para a posição do que a temperamental feiticeira. Aquele conclave seria decisivo. Alcançar o seu sonho prematuramente ou ser relegada a uma vida de subserviência na seita.

 

Quando deu por si, já chegara à laje e era fitada pelos horrorizados olhos do prisioneiro, que suava ao ar frio e seco da encosta do vale. Não era muito mais velho do que ela, tinha idade para ser seu irmão. Pelo que lhe fora extraído através de tortura, era um cabreiro que servia de olhos e ouvidos para os Corações Quebrados, e haviam sido os da sua laia a alertar os malditos foras-da-lei para o encontro secreto na casa do monteiro, onde Linsha quase fora morta. Ser sacrificado em honra d’Ele era mais do que merecia, mas serviria os propósitos do conclave. A feiticeira inspirou fundo e removeu o xaile num gesto propositadamente lânguido e solene, revelando a sua cara resoluta com os olhos felinos fixos num ponto indeterminado na multidão e a boca desafiadoramente petulante. Os seus cabelos negros rebeldes estavam subjugados por uma fita de couro tingida de preto, da qual pendiam contas de ónix que contrastavam com a alvura da sua testa. O seu malar ainda ostentava uma recordação de Aewyre Thoryn, na forma de uma esvanecente equimose amarelada. Não houve qualquer reacção, embora houvesse algo claramente cínico no silêncio dos Filhos, acusando a jovem idade e falta de experiência que a sua boa apresentação não podia ocultar. Os celebrantes permaneciam atrás de si; deles não receberia qualquer apoio.

 

Filhos do Flagelo! disse por fim, cruzando os braços à frente, incapaz de aguentar o silêncio. Fostes invocados esta noite para tomardes uma decisão. Lorde Malagor, o Alto Vulto, foi assassinado. Estais hoje aqui para escolher a sua sucessora. Linsha arrependeu-se da escolha das palavras, que se lhe afiguraram como sendo tendenciosas, mas já era tarde para voltar atrás. Houve movimentos impacientes e desagradados na multidão. Culpá-la-iam pela morte do seu mestre? Estariam a pensar que o deixara morrer para ocupar o seu lugar?

 

O portador do Flagício, o assassino de lorde Malagor esteve entre nós disse, desviando o assunto. Esteve nas nossas mãos, mas os sirulianos tiraram-no-lo. Tiraram-no-lo como nos tiram as crianças, como nos tiram a liberdade, como nos tirariam a vida a todos se estivessem cientes da nossa existência. Lorde Malagor tolerava estes actos, mas eu proponho que, neste novo começo, tratemos os inimigos d’Ele como merecem prosseguiu, esperando que a demagogia resultasse onde a sinceridade falhara. Linsha nunca fora grande oradora, uma das grandes imputações do seu mestre, que sempre insistira na correcção da sua fala e no desenvolvimento das suas parcas capacidades de diálogo. Houve alguns olhares, mas nenhuma manifestação de concordância.

 

A vontade da feiticeira era matar uns quantos com feitiços ostensivos para convencer os restantes, mas o seu mestre nunca procedera de tal forma, embora tivesse sido detentor do poder para bem mais do que isso. Malagor sempre inspirara respeito, não só pela sua perícia com a Palavra, como também pelas suas persuasivas palavras e a autoridade da sua mera presença. Por que não se deixavam todos intimidar como o meirinho, que certamente estaria algures na multidão? Se o conseguisse encontrar, faria dele um exemplo... mas estava certa de que os choramingos e as súplicas do cobarde gordo não convenceriam ninguém. Olhou para o Coração Quebrado na laje, que tremia e suava em amedrontada expectativa de olhos postos nela. Poderia fazer um exemplo dele, mas sabia que seria uma demonstração gratuita de poder, e não era esse o seu propósito.

 

”Maldição...”, pensou a jovem feiticeira, inspirando fundo para uma nova tentativa. Estamos numa posição vulnerável. As outras seitas estão a aproveitar-se da nossa desorientação. Só nos últimos dois dias perdemos mais de uma dúzia de membros para os Fadados. Não fora surpresa nenhuma. A lealdade dos Filhos para com a sua seita era ténue na melhor das hipóteses; os seus membros exigiam gratificações imediatas, e os Fadados providenciavam-lhes um contacto mais directo com a essência do Flagelo, ou pelo menos assim o apregoavam.

 

Lorde Malagor trouxe prosperidade aos Filhos, mas era muito moderado, evitava acções directas e temia confrontos com as restantes seitas. Pois eu digo que são eles quem devem temer! Já se estava a insinuar como líder uma vez mais, o que não passou despercebido.

 

Somos mais numerosos, estamos infiltrados na justiça de Val-Oryth e servimo-lo a Ele sem adulterar os Seus ditames! Os Filhos estiveram retraídos durante demasiado tempo, escondidos debaixo de pedras como... centopeias. Mas nós temos veneno! E devemos ser temidos!

 

Apesar de empolgadas, as palavras de Linsha nem a ela própria convenciam. A sua audiência era constituída por rufias, mendigos, ladrões, assassinos e usurários, homens e mulheres que procuravam ganhos fáceis através de meios ilícitos, e cuja fé era quase inexistente devido em grande parte à ausência de provas da existência do Flagelo nos últimos anos. A maioria dos Filhos consideravam-se membros de uma organização criminosa e pouco mais do que isso, satisfeitos com os ganhos que até então a liderança de Malagor lhes havia trazido, e pouco dispostos a mudanças radicais, principalmente umas levadas a cabo por uma jovem e inexperiente feiticeira temperamental, pupila do Alto Vulto ou não. Linsha estava a ter dificuldades em encontrar palavras que ao menos a ela lhe soassem persuasivas, e a impaciência da multidão começava a fazer-se sentir com o ocasional murmúrio. Os celebrantes permaneciam silenciosos e imóveis, inexpressivos atrás das suas máscaras negras, aguardando também eles uma palavra que os convencesse. Gotas de suor começavam a formar-se na testa de Linsha, que ia flectindo os joelhos alternadamente de forma a controlar os tremores que sentia estarem prestes a trepidar-lhe as pernas. A sua vontade era queimar os malditos olhos que a fitavam, liquescê-los nas órbitas para que escorressem pelas caras impassíveis da sua audiência. O homem na laje começava a ser demasiado tentador, pois o odor do seu pânico suado mesclava-se ao do seu próprio nervosismo, excitando a feiticeira mais do que seria aconselhável na sua posição. Os dedos da sua mão direita deslizaram quase imperceptivelmente para dentro da manga esquerda, na qual estava embainhado um punhal cerimonial, cujo pomo cinzelado acariciou indecisamente. Sim, talvez um pouco de sangue servisse para ilustrar o seu ponto de vista...

 

Um inalar de espanto colectivo deteve Linsha antes que a feiticeira pudesse levar avante os seus desígnios para o prisioneiro. Por momentos atreveu-se a pensar que fizera algo para causar tal reacção, mas não era em si que os olhos estavam postos, e a sombra que a cobriu não era a da protuberante lapa atrás de si. Os Filhos olhavam para cima, apontavam para algo sobre a cabeça de Linsha, e a feiticeira virou-se instintivamente para ver de que se tratava, inalando ela também de espanto com a visão que a aguardava.

 

                                                                                                                      CONTINUA

 

 Recortado contra a lua, um vulto de capa observava o conclave da ponta da enorme lapa que o encimava. Pouco mais era visível além de um elmo de quatro chifres recurvos e uma esfarrapada capa negra que a suave brisa nocturna agitava ligeiramente, mas o que mais atenção chamava eram os dois pontos vermelhos que brilhavam onde deveriam estar os olhos do estranho visitante. A sua mera presença silenciou todos os presentes, pois havia algo de desnatural na sua silhueta, na sua postura de caçador perante presas inscientes do perigo, na sua pose imota e atenta. Ninguém se atreveu a abrir a boca, a tentar estabelecer contacto com o vulto, e nenhuma iniciativa dele partiu nesse sentido. O único ruído a quebrar o silêncio foi o de ossos a ranger quando os pontos vermelhos se mexeram, dando a impressão de que o vulto estudava o conclave, passando cada um dos presentes com o seu rubro olhar maligno. Por fim, ouviu-se algo parecido com metal a franger, e o vulto encolheu-se e saltou, pairando pelo ar com a capa a esvoaçar-lhe atrás, congelando momentaneamente no ar à visão de todos, e precipitando-se violentamente de seguida sobre a laje, na qual aterrou de clangorosas cócoras com os pés precisamente ao lado da barriga do prisioneiro, fazendo a pedra tremer e afastando todos os presentes como se estes fossem anéis numa superfície de água perturbada. O homem ficou paralisado com o terror incutido pelos pontos vermelhos alojados nas órbitas vazias da caveira desprovida de maxilar inferior e fendida ao meio que o fitou durante breves instantes antes de o vulto se erguer e olhar em redor.

 

 

 

 

Todos o viam agora pelo que era: um moorul, e essa constatação teve os mais variados efeitos. Gritos, joelhos no chão, mãos atiradas ao ar, preces, olhares átonos de choque, louvores, maldições. Os moorul haviam infligido incontáveis e inomináveis atrocidades ao povo de Tanarch durante a Guerra da Hecatombe, embora a grande maioria dos Filhos presentes apenas tivesse memória desses factos das histórias que lhes haviam sido contadas. Nenhum fora visto após o fim da guerra, e poucos sabiam como reagir perante a presença de um dos infames tenentes do Flagelo. E na verdade, apesar da sua aura de pavor, o próprio moorul parecia não saber o que fazer ao certo, limitando-se a olhar em redor de forma intimidante. Havia algo na situação que lhe estava a escapar, algo que o impedia de se abater sobre a massa humana como uma foice negra, e não estava a conseguir descortinar de que se tratava. Linsha recuara quando o moorul saltara, e ainda não ousara aproximar-se mais, embora este estivesse de costas para ela. Recuara tanto, aliás, que estava praticamente ao pé dos celebrantes, eles também hirtos e incapazes de tomarem qualquer tipo de acção. Um deles, contudo, balbuciava algo detrás da sua máscara ao lado da feiticeira, incapaz de desviar os olhos do mooru mas parecendo estar a tirar ilações acerca da sua presença no conclave.

Um sinal... é um sinal... tartamudeava o homem quase imperceptivelmente.

Que dizes? ciciou outro atrás de Linsha, chamando a sua atenção para a silenciosa conversa.

É um augúrio... Ele enviou-nos um sinal... um moorul para nos transmitir a Sua vontade... nesta noite...!

Um arauto do Flagelo... disse um terceiro.

Sim! concordou o primeiro, alto o suficiente para chamar a atenção do moorul, que olhou por cima do seu ombro para o grupo de celebrantes e...  

                                                                                           

 

 

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