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MÉDICO DE HOMENS E DE ALMAS-P.2 / Taylor Caldwell
MÉDICO DE HOMENS E DE ALMAS-P.2 / Taylor Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MÉDICO DE HOMENS E DE ALMAS

Segunda Parte

 

"Se um homem olhar com amorosa compaixão para seus semelhantes sofredores, e tomado de amargura indagar aos deuses: Por que afligis meus irmãos? Então ele é, sem dúvida alguma, olhado por Deus mais ternamente do que o homem que com Ele se congratula por ser misericordioso e o deixar florescer com infelicidade, tendo só palavras de adoração para oferecer Porque o primeiro reza por amor e piedade, atributos divinos, tão próximos do coração de Deus, e o outro fala pelo egoísmo complacente, um atributo animalesco, que não se aproxima da luz envolvente do espírito de Deus."

HORÁCIO

 

Íris escreveu a seu filho Lucano:

"Já faz quase quatro anos que nos vimos pela última vez, meu querido e bem-amado filho, e tu não te tens cansado de inventar desculpas para não vir a Roma que, confesso, não é tão bela quanto a Síria. Apesar disso, vivemos tranqüilamente em nossas propriedades e gozamos a paz da noite e o brilhante cristal das manhãs. É o que basta para mim. Tua irmã, Aurélia, depressa fará três anos; é a luz das nossas almas, com os cabelos de ouro e os olhos tão castanhos e doces como o coração de uma margarida. Nada há que ela peça, em sua insistência infantil, a Diodoro, seu pai, que ele não lhe dê imediatamente, apesar dos meus protestos. Teu irmão, Prisco, é o companheiro de brinquedos mais afetuoso de Aurélia, que o tiraniza, um estado de coisas que ele suporta com o mais afável Junilo. Seu novo irmão, Gaio Otávio, nome do antigo companheiro de armas de teu pai, está quase com um ano e é um menino muito sério, com meus olhos e a expressão grave do pai. Raramente ri, e prefere engatinhar na grama e inspecionar cada fio dela, cuidadosamente. Certamente é um filósofo. Se ao menos meu filho Lucano estivesse conosco, seríamos os mais felizes dos mortais. Não nos escaparás! Dentro de três meses não encontrarás mais desculpas, pois terás deixado a Academia, já serás um médico!

"Durante o ano passado Diodoro tornou-se inquieto. Ele é homem de ação, tanto quanto de pensamento. Durante muito tempo contentou-se com a biblioteca, os olivais e palmeiras, o jardim, os campos e a família. Filo, o filósofo judeu que é muito admirado e amado em Roma, visitou-nos, e os dois conversaram incessantemente até o amanhecer. Desde então, Diodoro começou a mostrar-se meditativo e a visitar Roma pelo menos uma vez cada sete dias. E volta com o gênio muito irascível, e nova sensação de ultraje. Digo-lhe que não é possível um homem sozinho salvar o mundo ou endireitá-lo, e isso só serve para irritá-lo ainda mais. Ouço-o amaldiçoando muitas vezes a sua biblioteca, e uma vez atirou uma porção de livros de encontro à parede e pôs-se a andar opressivamente de um lado para o outro, durante horas. Mas comigo é delicado como uma pomba e o mesmo é para nossos filhos. Talvez quando nos visitares e eu rezo para que queiras permanecer conosco possas clarear sua expressão sombria e consolá-lo."

     A carta dela irradiava seu delicado amor e contentamento, e sua solicitude pela família. Lucano podia sentir essas coisas, e movia-se, agitado, no grande jardim próximo da principal colunata. O piso da colunata era de mármore amarelo-escuro, mas a dupla fileira de colunas jônicas brilhava como neve acanalada, subindo do chão para o teto branco. Dois homens passeavam de um lado para o outro, ao pôr-do-sol, um deles, estudante respeitoso, alto, e o outro um professor de matemática, baixo, de rosto de harpia, Cláudio Vesálio. A luz dourada iluminava-os enquanto andavam entre as colunas. Às vezes, Cláudio Vesálio parava para gesticular com veemência, e sua voz aguda e feminina perturbava a paz dos pássaros e perturbava, mais especialmente, Lucano. O professor não gostava de nenhum de seus alunos, e, em particular, de Lucano, porque o jovem era o melhor matemático da universidade e, ainda assim, inflexível, insistia em ser médico. Lucano sorriu de leve, lembrando-se disso. Cada professor acreditava ser a sua arte a mais importante, e todas as demais de menor significância, com exceção de José ben Gamliel, que acreditava ser Deus a única Importância, e que todas as artes, ciências e conhecimentos caminhos da Roma onipresente, levavam apenas a uma compreensão maior de Deus e da Cidade de Deus. Mas José ben Gamliel era judeu.

A universidade cobria oito acres de terra, uma ágora[1] mais ou menos quadrangular em torno de imensos jardins tropicais e de todos os quatro lados havia colunatas como aquela que agora se achava em frente de Lucano. Cada escola tinha sua entrada particular através dos jardins e colunatas, e havia escolas de democracia, filosofia, medicina, matemática, arte, arquitetura, drama, ciência, poesia épica, didática e gramática, línguas e filologia, leis, história, astronomia e literatura. Havia, também, uma escola de governo para jovens romanos que aspiravam o serviço público, um museu guardado pelos vigilantes professores egípcios, a mais famosa biblioteca do mundo, um odeum ou salão de música, e para além da ágora, propriamente dita, um teatro para jovens dramaturgos promissores e um panteão. Cada professor imaginava que sua própria colunata abrigava o saber mais profundo da casa e os estudantes mais estúpidos, indignos de serem ensinados por tal mestre. Apenas José ben Gamliel possuía humildade, e sua colunata de religião oriental era o único lugar pacífico, onde não se ouviam vozes insolentes e imprecações contra os estudantes de cabeça de burro, regularmente enviados para o Inferno e aconselhados a se dedicarem ao ofício de oleiro, ou ainda a ofícios menores do que este. Nada representava para os professores dizer, por exemplo, e violentamente: Os idiotas dos meus alunos e eu nos parecemos ao Laocoonte[2], e quem me livrará daquelas serpentes!" Mas José bem Gamliel dizia, delicadamente: "Contemplemos juntos a Deus, e tentemos descobrir Seus mais Sagrados desígnios.".

Pensando naquele professor, agora, Lucano moveu-se, inquieto, em seu banco de mármore, no centro dos jardins. Só ele não encontrava paz na colunata de José ben Gamliel. Muitas vezes cogitava, sombriamente, por que o professor o procurava com tanta freqüência para conversar com ele nos jardins.

Os edifícios da escola, atrás das colunatas, escondiam o mar, mas Lucano podia ouvir sua voz eternamente inquieta falando para a luz dourada e para os céus. Por que Cláudio Vesálio, cuja voz aguda gania continuamente para o estudante silencioso, não se ia dali para que os jardins pudessem trazer a Lucano a única tranqüilidade que ele conhecia? O grande jardim ali estava a rodeá-lo, musical em suas fontes, brilhante em seus canteiros floridos, farfalhando suavemente nas palmeiras, murmurando com o vento do mar, harmoniosamente vivo com os chamados, as canções e o sonolento tagarelar dos pássaros. Os escravos de rostos escuros que vinham buscar água nas fontes, carregando seus jarros de terracota aos ombros, ou os escravos que alcançavam os cachos dourados das tâmaras nas palmeiras e os colocavam em seus cestos, ou os escravos que passavam o ancinho no caminho de terra vermelha entre os canteiros não perturbavam Lucano. Eram partes da flora e da fauna naturais. Suas peles escuras contrastavam lindamente com as muitas e altas estátuas dos deuses, deusas, eruditos e filósofos, que se levantavam com alva e poderosa graça de entre as moitas e olhavam para os jardins com dignidade, majestosamente. O perfume das rosas, dos lírios, dos jasmins, e odores mais pungentes, erguiam-se como teias de fragrâncias no ar da tarde que se ia fazendo noite. De súbito, um papagaio guinchou ruidosamente, um escravo riu e respondeu ao grito da ave, que saiu de um maciço de árvores para a luz, num bater de asas vermelho verde e amarelo, vindo pousar no ombro do escravo. Comeu com elegância um pedaço de tâmara, tomando ar de tolerante cortesia.

- Velhaco! Disse o escravo, em egípcio.

O pássaro inclinou a cabeça para um lado, o olho inteligente e alerta, cínico e brilhante, no ar dourado. Lucano sentiu vontade de rir. Como se o papagaio tivesse percebido esse divertimento, soltou um grito único, áspero, que pareceu uma blasfêmia. Voltou a cabeça e dirigiu um olhar furibundo para o jovem, que estava sentado em seu banco de mármore, depois elevou-se nos ares e foi praguejar num ramo de árvore.

O escravo riu baixinho, e depois, humilde e disfarçadamente, ficou a olhar para Lucano, que tinha sobre os joelhos as suas cartas.

Todos os professores, estudantes e escravos tinham consciência da beleza e das maneiras majestosas do jovem grego, e ficavam secretamente espantados com aquilo. O rosto claro, que nem mesmo o sol violento conseguira escurecer, tinha traços firmes e lisos, como se esculpido em pedra branca. Os olhos azuis, perfeitamente cerúleos, assemelhavam-se a pedras preciosas, e, como pedras preciosas, eram frios. Seu cabelo louro tombava-lhe da testa cor de neve em ondas brilhantes, encaracolava atrás das orelhas. O pescoço era uma coluna, os ombros perfeitos sob a túnica de cor suave. Era extraordinário nas corridas, no arremesso do disco, na luta, no boxe, no salto, no arremesso da lança, na natação, no mergulho e nos demais esportes estudantis.

- Mente sã só pode existir num corpo são, e um corpo são não pode existir sem mente sã dizia o mestre da escola.

Lucano apanhou a carta de Diodoro, que chegara de Roma naquela manhã. Gostava das cartas do tribuno; elas podiam ser violentas, picantes, cheias de blasfêmias coléricas, mas possuíam vitalidade e uma cólera saudável, bem como alguma eloqüência. Desabafava suas iras com seu enteado, percebendo que ali estava um ouvido receptivo.

"Cumprimentos a meu filho Lucano", começava a carta, com formalidade.

Depois continuava:

"Tudo está bem em casa. Tua mãe goza o calor entre seus filhos, como Níobe[3], e é uma coisa bela de se ver. Ao contrário de Níobe, ela é infinitamente sensata e um consolo constante para meu coração, que freqüentemente se inflama, depois de visitas à Cidade. Cada ano ela parece mais encantadora, como se a própria Vênus a tivesse tocado com o dom da juventude e da beleza imortais. Que fiz eu para merecer tal esposa e tão adoráveis filhos? Sinto que devo esforçar-me para ser digno de tanta felicidade. Daí minhas freqüentes visitas a Roma e meus coléricos debates com os senadores de sandálias vermelhas, que observam, complacentes, como nosso mundo vai rapidamente descendo para o inferno. Por causa das minhas relações, e através dos bons ofícios de Carvílio Ulpiano, que cada dia se torna mais gordo de corpo e mais magro de rosto, tenho, de vez em quando, licença para dirigir-me ao Senado. Eles ouvem sem tédio, eu te garanto!”.

"Preferem a serenidade ao pensamento, empoladas conversas sobre seus Interesses particulares às sérias reflexões sobre o estado de nosso pai. A maior parte deles é de generais de gabinete, gostando de sentar-se em seus terraços, pelas tardes, com um copo de vinho nas mãos, discutindo com os amigos as campanhas de algum militar em evidência, fazendo comentários eruditos de desaprovação. Preparam diagramas de campanhas. Que sabem eles da vida em tendas, nos lugares selvagens, das longas e ardentes caminhadas, das lutas com os bárbaros? São legisladores, dizem. Pois que se contentem com suas leis e deixem os soldados em paz! Mas logo que há qualquer arruaça entre o populacho são os senadores os primeiros que falam de pretorianos e de legiões e com vozes acovardadas. Os prefeitos e a polícia da cidade não são suficientes para esses patifes. Precisam que os militares os protejam! Roma, às vezes, parece um acampamento armado.”.

       "Enquanto não se dirigem a seus companheiros senadores a propósito dos banhos públicos, de mais circos e de mais habitações gratuitas para a multidão heterogênea de Roma, e mais comida gratuita para a turma que detesta o trabalho, vigiam furtivamente negócios tais como a confecção de uniformes e de armas para os militares, fábricas de cobertores e de tecidos, ou ajudam a dar subsídios a parentes que estão em tais negócios, quando não atiram os contratos do governo em sua direção. Não conheço um senador cujas mãos não estejam enlameadas de suborno ou mesmo que não tenha recebido um suborno.

O senado tornou-se uma organização fechada de canalhas que saqueiam o Tesouro em nome do bem-estar geral, e que têm como séquito uma população composta de barrigas esfaimadas e ladrões ávidos, a que dão o nome de clientes, e pelos quais exibem a mais comovedora solicitude. O destino de Roma, o destino dos contribuintes desesperados, nada é para eles. Que a dívida pública cresça! Que a classe média seja esmagada até morrer sob taxas, extorsões e explorações! Por que os deuses criaram a classe média senão para servir de bois de tiro para as bigas de senadores seguidos das multidões de mendigos vorazes? Um homem honesto, um homem que trabalha e honra a cidade de Roma e a Constituição da República não é apenas um tolo. É um indivíduo suspeito. Manda-se-lhe o coletor de taxas para novos assaltos! Provavelmente, ele está pagando sua "justa" cota de impostos.”.

"Os militares estão constantemente reclamando novas verbas para a "defesa" de Roma, e contra o "inimigo". Discutir tais verbas é despertar o grito da denúncia. Eu sou um traidor, Eu sou um indiferente no que se refere ao fortalecimento de Roma? Quero ver Roma em condições fracas diante de bárbaros circundantes? Não compreendo que precisamos manter fortes nossos aliados, com donativos do Tesouro, com armas e com a presença das nossas legiões? Isso para não falar na assistência dos nossos especialistas em assuntos militares e políticos, cujas longas e dispendiosas viagens em suas capacidades de aconselhar são financiadas pelo Tesouro? Não é de estranhar que Carvílio Ulpiano, que é egiptologista, um amante da arte egípcia, chegasse a convencer o Senado de que era absolutamente necessário que lhe fosse financiado o "estudo das defesas presentes do Egito" e de que sua presença era exigida no Cairo, para tal "estudo". Foi, naturalmente, acompanhado de pretorianos e todo um séquito de bonitas senhoras e escravos, atores, gladiadores, tudo pago com os fundos do Tesouro. Voltou, e dirigiu-se ao Senado, dando-lhe as tranqüilizadoras notícias de que o Egito era leal no que se referia à Paz Romana, embora o procônsul do Cairo pudesse ter mandado tais notícias, a pedido, pelo custo de um só mensageiro ou de um navio de carreira regular."

Lucano sorriu, involuntariamente, mas o sorriso tinha um toque de fatigada melancolia. A carta que tinha nas mãos parecia vibrar com a cólera apaixonada do tribuno. Lucano Continuou a leitura:

"Há dez dias, porém, fui apresentado como convidado ao Senado. Um senador declarou triste, mas nobremente, que a liderança do mundo fora colocada sobre os ombros de Roma: "Não fomos nós que escolhemos isso", disse aquele mentiroso hipócrita, articulando heroicamente as suas palavras, "mas houve a escolha do fado, ou dos deuses, ou das misteriosas forças da História." Dava assim a impressão de que a História, de uma certa maneira mítica, existe acima e à parte da humanidade que faz a História! “Devemos recusar de novo esse jugo”?", perguntava o vomitador de mentiras. "Devemos recusar de novo receber o que nos foi decretado porque possuímos o gênio do governo, o gênio da invenção, o gênio do trabalho produtivo? Não, Por Júpiter, não! Embora a carga seja onerosa, nós a aceitamos por amor da humanidade!"

"Não me pude conter. Levantei-me de meu lugar de convidado, sentado que estava ao lado de Carvílio Ulpiano, e ali fiquei de pé, os polegares metidos do cinturão, deixando que eles vissem minha couraça e minha espada. Como aqueles homens efeminados gostam da exibição do militarismo! Tomaram, imediatamente, expressões sérias, embora me tenham visto bastantes vezes, Marte o sabe! “Que fale o tribuno”!, alguns deles gritaram, como se pudessem impedir o filho de Prisco de falar!

"Levantei meu punho e o sacudi em direção de suas faces mendazes. "E quem", perguntei, “declarou que Roma recebeu a liderança do mundo”? Os gregos civilizados, que nos detestam, e riem de nós e de nossas sanguinolentas pretensões? Os egípcios, que eram uma velha dinastia quando Remo e Rômulo ainda estavam sendo amamentados pela loba? Os judeus, que tinham seu sábio código de lei quando Roma não possuía outro código senão sua curta espada? Os bárbaros da Bretanha, que põem abaixo nossas fortificações assim que terminamos de levantá-las? Os gauleses, os godos, os antigos etruscos, os germanos, os milhões dos que ainda não foram infelicitados pelo militarismo romano? Os milhões que não sabem nosso nome ou, se o sabem, cospem ao ouvi-lo? Quem nos deu a liderança, se não nós próprios, usando nossa força, nossa habilidade e nossas ameaças, nossa urgência de despojar e roubar, nossa avidez de poderio? Somos como jovens, rudes, mas corruptos fanfarrões, contando basófia entre anciãos, ou entre criancinhas que no futuro estarão crescidas, alimentadas pelo leite materno.”.

As sobrancelhas louras de Lucano juntaram-se, em súbita ansiedade. Seu coração palpitou, tomado de vago receio. Respeitava Diodoro por aquelas palavras valentes e honestas, aquelas palavras atiradas aos rostos de mentirosos, políticos e outros canalhas intumescidos de ambição. Ainda assim, tinha medo. Tentava consolar-se com o pensamento de que Tibério César também era um soldado, e respeitava Diodoro, sendo à sua moda um homem de honra. A carta de Diodoro continuava:

“Eu esperava que me fizessem calar aos gritos”. Mas aqueles que estavam mais perto de mim continuaram apenas sentados, em silêncio, contemplando-me de cenhos carregados. Um ou dois, mais jovens do que os outros, enrubesceram e ficaram a olhar para as próprias mãos. Carvílio Ulpiano evitava meus olhos e retorcia-se em sua cadeira. É possível que tenha um reto irritado, por isso eu o perdoei. Esperei, mas ninguém me respondeu.

“Roma não é a minha Roma, a Roma dos meus antepassados”. Os Pais Fundadores estão esquecidos, ou são mencionados apenas quando algum político deseja cometer infâmia ainda maior. Os dias de fortaleza, de fé, de caráter foram para sempre, como os dias da coragem e da disciplina. Por que então eu luto? Porque é da natureza do homem lutar contra a escravidão e a mentira. Se tombar, então tombo em boa luta, embora irremediável.

"Chega, porém, destas coisas sombrias. Voltarás para tua família, em futuro próximo. Receberemos nosso filho querido com regozijo e afeto. Deus te abençoe, meu filho."

Os olhos de Lucano estavam secos e ardentes enquanto ele enrolava a carta. Era sempre perigoso dizer a verdade. Num mundo corrupto como este é coisa fatal. Se Deus chegasse a se preocupar com os homens, pensou Lucano, amargamente, criaria muitos Diodoros, ou os protegeria quando eles falassem com suas vozes altas e claras.

Depois, com severidade, ordenou a si próprio: Que eu esqueça minha família. Não devo amar embora ame! Porque se me deixar envolver profundamente, as conseqüências, como sempre, serão trágicas e eu já tive bastante tragédia. Se eu pudesse rezar, rezaria para que os senadores depressa fechassem suas portas com cadeados, contra Diodoro, para sua própria querida e vociferante segurança, e para segurança de minha mãe e de meus irmãos.

Lembrou a si mesmo que entrara na posse, ultimamente, e a preço considerável, de um manuscrito traduzido, vindo de Catio, contendo palavras sábias escritas, havia séculos, por um K'ung Fu'tze, ou Confúcio[4], como José ben Gamliel o chamara. O professor judeu relutara para separar-se dele, mas Diodoro, refletia Lucano, poderia ser acalmado por aquelas palavras altaneiras, tão calmas, tão resignadas, tão corteses, tão contemplativas. Também haveria de fazer um vigoroso movimento aprobatório de cabeça, ao ler: "Lembrai-vos disto, meus filhos, um governo opressivo é mais violento e mais de temer do que um tigre.”.

O pequeno Cláudio Vesálio, de cara de harpia, viera parar bem junto de Lucano, com seu desventurado aluno, e elevara a voz:

- A matemática, realmente, é uma arte apolínea esganiçava-se ele. - Quem a detesta, ou a evita, ou vê nela uma ciência menor, não passa de um macaco imprudente e obstinado!

Ele está se referindo a mim, pensou Lucano, um tanto divertido, fingindo estar muito absorvido na carta. O gregozinho afetado sentia-se tomado de irritação. Continuou a falar com o aluno, mas em realidade dirigia-se a Lucano.

- Considero Pitágoras[5] superior a qualquer Aristóteles ou Hipócrates ou Júlio César! Declarava ele. - Ou a qualquer Fídias[6] ou a qualquer artista, ou seja a quem for. Toda a ciência e toda a arte estão baseadas em princípios matemáticos definidos. Raciocínio! Tudo é matemática! Digamos que desejemos provar que a soma dos primeiros números ímpares N é N-2, isto é, um mais três mais cinco mais, mais 2N... um igual a N-2. Não é verdade que N é igual a 2? Sim.

Pois um mais três é igual a quatro igual a 22. É também verdade que N é igual a K. Nesse caso teríamos...

Lucano bocejou longamente e, vendo isso, Cláudio Vesálio se agitou. O jovem grego levantou se calmamente e caminhou até o portão distante, na outra extremidade do jardim. Os dentes de Cláudio Vesálio rangeram. Ali estava um indivíduo dotado para a arte apolínea e que preferia meter a mão em cadáveres e ensangüentar suas vestes e respirar cheiros odiosos em enfermarias e casas de tratamento! Ufa! Odiava Lucano por esse desperdício todo. Que fosse para o inferno! Que trouxesse garotos ao mundo, garotos que jamais deveriam ter nascido, e abrisse barrigas para retirar pedras dos que não resistem ao seu desejo ardente à mesa! Digno trabalho para um digno choramingas!

Aquele embusteiro não freqüentava os bordéis de Alexandria, como qualquer jovem normal fazia, nem se mostrava demasiado respeitoso no que se referia aos professores. Suas atitudes eram despropositadas.

Por acaso dava a honra de sua presença às tavernas, circos e teatros?

Não, realmente não. Valia demais para isso. Estava sempre cuidando de proteger suas delicadas mãos durante os esportes mais rudes, receoso de lesar o dedo que devia manter o bisturi.

- Ele é um jovem Hermes[7] disse o perseguido aluno, em tom de admiração, seguindo Lucano com os olhos. Cláudio Vesálio, furioso, guinchou como um porco e esbofeteou-lhe o rosto.

Lucano saiu dos jardins e da universidade. Mais adiante estavam os vastos gramados verdes sobre os quais as palmeiras, ciprestes, mirtos e salgueiros lançavam sombra esmeraldina naquela atmosfera brilhante e dourada. Uma imobilidade suave estendia-se sobre a terra. O mar em seu mistério insondável, estendia-se para o infinito. Lucano estava só. Tudo era silêncio, exceto pelas vozes inquietas das águas que corriam para o ocidente.

De súbito, o crepúsculo desceu e terra e mar modificaram-se. Lá em cima, o céu tornou-se um arco côncavo e sombrio, de um azul esverdeado, O mar escureceu para um violeta intenso e tranqüilo, seus pontos mais distantes alvoroçando-se com o vermelhão do sol que parecia pousar sobre as ondas. O ocidente ilimitado queimava em luz cor de laranja e escarlate contra as nuvens negras que se deslocavam sob a forma de galeões romanos, movendo-se em suas viagens desconhecidas, as velas enfunadas por um vento não-sentido e não-terreno.

A imensidade do céu e do mar fazia minúscula a terra, crescia sobre ela, rolava em torno dela, em tom de respeitoso temor, ainda assim carregada de fatalidade e pressentimento para Lucano.

Involuntariamente, recordou-se de José ben Gamliel falando num crepúsculo como aquele, aquela sua voz sonora, embora suave: "Os Céus declaram a glória Dele!"

Lucano sentou-se na relva. Sentiu de novo a terrível estranheza entre ele e Deus. Ah! Mas não devemos permitir jamais que Deus entre em nosso coração! Porque, com Ele, vêm a angústia, a dúvida, as ordens, as exortações, o medo e a tragédia. Uma vez dono da alma do homem, Ele torna-se Rei, e não há mais ninguém além Dele.

Mas com Suas ordens e Suas leis Ele também traz amor e deleite espiritual, e pão para a alma, e luz para as trevas disse José bem Gamliel a Lucano, certo crepúsculo. - Sem Ele apenas temos o mundo de desilusão, de fome, poeira e dor, e um vazio que o homem não pode preencher. Temos a morte, sem o Mais Santo, abençoado seja Seu Nome. Temos apenas lágrimas, que não podem ser consoladas. Todo o ouro do mundo não pode comprar a Sua paz, que fica para além do entendimento. Ensinei-te os salmos de Davi, o Rei: "O Senhor é gracioso e cheio de compaixão, lento para encolerizar-se e de grande misericórdia. O Senhor é reto em todos os Seus caminhos, e santo em todos os Seus trabalhos... Não criticará sempre nem para sempre conservará Sua cólera... Pois, assim como o céu é alto acima da terra, tão grande é a Sua misericórdia em relação aos que O temem.”.

"Meu Lucano, eu O sinto junto de ti. Sinto-O tão próximo quanto o respirar. Sua Mão está sobre ti. Não tenhas medo, meu filho. Volta-te para Ele, em teu desgosto e pavor, pois sei que tais coisas te devoram."

- Ele nos angustia respondera Lucano, amargamente – Nada quero Dele. Que explicação tens tu, Rabi, para o que diariamente vejo nas enfermarias públicas e nas casas de tratamento? Por que deve uma criança sofrer, e um homem ter a aflição da lepra? Como chegaram eles a ofender a Deus para que Ele os castigue? O mundo é um imenso gemido de agonia.

José voltara para seu aluno seus grandes olhos luminosos, que irradiavam compaixão:

- Jó foi homem angustiado, chorou por ele próprio e pelos seus semelhantes e censurou Deus pelo que lhe parecia a miséria sem sentido da Terra. E Deus respondeu-lhe, reprovando-o: “Por acaso deste tu ordens às manhãs, desde os teus dias, e levaste a aurora a conhecer seu lugar”... Entraste nas nascentes do mar?... Viste as portas da sombra da morte? Podes fazer Mazarote surgir na sua época? Ou podes guiar Arcturo[8] com seus filhos? Conheces os decretos do céu? Podes determinar o domínio dele sobre a tentação... Podes enviar o relâmpago, para que ele se aproxime de ti e diga: "Aqui estou"?... Quem fornece o alimento ao corvo, quando seus filhotes gritam para Deus. O que discute com o Todo-Poderoso deverá instruí-Lo? Que responda aquele que reprova Deus.

José ben Gamliel estivera ali com ele, naquele mesmo lugar, alto, majestoso e delgado até a transparência, vestido em trajes de cor castanho-escura e carmesim, sua cabeça altaneira envolvida num tecido de algodão vermelho. O rosto provido de barba, com sua pele aperolada, nariz delicadamente aquilino e boca suave, brilhara ao crepúsculo como alabastro. Lucano amava-o e venerava-o mais do que a qualquer dos outros professores, e ele, entretanto, estava constantemente exacerbando o próprio coração do jovem. Mesmo assim, procurava José e não saberia dizer por quê, a não ser por lhe atirar friamente suas perguntas e comentar cinicamente as respostas amorosas que recebia.

Naquele crepúsculo, Lucano arremessara palavras como se fossem pedras sobre aquele rosto venerável e delicado.

- Se tivesses sofrido, professor, se tivesses suportado a perda de alguém que te fosse mais querido do que a vida, se tivesses visto esse ser amado morrer em aflição e sem esperança, a vitalidade deixando-lhe o corpo como um vazamento invisível de água, sendo ela a mais doce das mulheres, não falarias assim. Como Jó, cobririas de cinzas tua cabeça e gritarias tua censura contra Deus! Falarias, então, da Sua misericórdia?

O rosto de José modificou-se, ou talvez fosse apenas porque a noite descera um pouco mais. Fora, sem dúvida, apenas o cair da noite que atirara aquele aspecto de tragédia e cansaço sobre o rosto do professor. José jamais falava a não ser tranqüilamente, como alguém que tivesse jantado bem ou que vivesse confortavelmente, sem indagações nem transtornos.

Sim, era apenas o crepúsculo que se fizera de súbito mais denso e contorcera-lhe o rosto por um só momento. Depois, sorrira para Lucano e partira, suas vestes flutuando em torno do corpo. Era fácil, para os que não tinham ferimentos, considerar insignificantes os ferimentos alheios, espantando-se de que os atingidos por eles se queixassem!

Agora, Lucano estava ali, naquele crepúsculo, e olhava para o mar que escurecia e para o reluzir distante do poente de um laranja escarlate. E sentiu novamente aquela horrorosa solidão, seu abandono, e o infinito, o inconsolável desgosto, não apenas por Rúbria, que estava perdida para ele pela eternidade, mas por todos quantos sofriam e choravam em voz alta, sem conforto. Sua alma enrijeceu nele, resistindo. Jamais Deus tornaria a falar-lhe, pois ele fechara os ouvidos! O irrespondível não tivera resposta nem consolação.

Um vento frio, picante e imenso varreu-lhe a carne. Voltou-se para se ir dali, desolado como sempre, para voltar à pequena casa onde vivia com Cusa e a esposa deste, Calíope. Voltava para a lâmpada acesa, para o jantar frugal e para seus estudos. Era um soldado em bivaque, preparando-se para o dia próximo em que estaria adequadamente armado a fim de encontrar o Deus da dor e vencê-Lo.

- Ora! disse Cusa à esposa Calíope, que estava diante dele com a filha gorducha empoleirada em seu quadril. - Tu não passas de uma mulher, e é sabido que as mulheres não possuem inteligência.

- Eu tive conhecimento bastante para te apanhar como marido, embora não sejas, verdadeiramente, o mais belo dos homens existentes respondeu Calíope, o rosto atrevido e bonito sorrindo petulantemente - Fui eu quem te pediu a Aurélia, e fui eu quem sugeriu àquela pobre e nobre dama que desejávamos ser libertos. Ela comunicou a Diodoro os meus desejos, e assim aqui estamos, livres, embora tenhamos nascido livres.

- Estás enganada disse Cusa, mal-humorado, mas sorrindo à sua filhinha, que arrulhava para ele. - Aurélia nos libertou, ou aquele feroz descendente dos Quirites? Não. Quando fomos oferecidos por ele a Lucano, nosso grego de olhos azuis disse que não nos aceitaria a não ser que fôssemos primeiro libertos, e como o romano lhe tem um amor paternal e adotou-o como filho, o pedido foi aceito, a fim de que Lucano não ficasse sozinho em Alexandria. Teria o Tribuno pensado que sem a nossa assistência Lucano se tornaria um sibarita? Ou um freqüentador de bordéis? Ou um jogador? Ora! Eu só desejaria que ele apreciasse tais coisas um tantinho! É uma virgem vestal do sexo masculino. Não terá ele sangue, nem órgãos, nem paixões, a não ser para o estudo da sua maldita medicina?

- Poderás observar disse Calíope. sentando-se e pondo-se a amamentar a filha que tu mesmo andas cheio de dúvidas, apesar de teus comentários sobre a minha inteligência. Por que Lucano foge a todos os prazeres nos jovens, por que é tão abstêmio[9]. Alguém menos caridoso poderia supor que ele fosse um devoto de Narciso[10] ou que se desse a relações inomináveis com outros jovens. Mas ele não é uma coisa nem outra. Algo está roendo as partes vitais de seu espírito, como a raposa espartana. Mostra-se impaciente com todo mundo, suas palavras são frias ou sombrias. Senta-se durante horas no terraço, em silêncio, com seus livros abertos, ou com as mãos caídas sobre eles.

Quando interrompido, torna-se áspero e seco de palavras. Já o viste sorrir com alguma freqüência? Somente nossa pequena Mara consegue diverti-lo. Ontem visitei o templo de Serápis[11] a fim de rezar por ele. Não é que eu o ame, pois é impossível amar um jovem tão distante que mais parece uma estátua do que um ser feito de carne. Mas estava pensando em nós.

- Esqueces de que foi ele quem insistiu pela nossa liberdade?

Calíope ergueu os ombros.

- Liberdade é bom para a alma. Assim dizes tu, com freqüência, e quem sou eu para contradizer-te? Ainda assim, nos aposentos dos escravos, em casa de Diodoro, havia alegria. Sem dúvida, deve ser tudo ainda mais alegre em Roma, ou nas propriedades do tribuno.

Quem vem a esta casa a não ser professores e filósofos fanfarrões? E ainda assim aparecem sem que Lucano os convide. Lucano tem amigos entre os estudantes? Há risos aqui, e conversas animadas sobre moças e festas? Não! Nós não somos velhos, mas esta casa parece-se a uma casa de ancião.

Cusa fez-lhe uma tremenda carranca, mas a moça sacudiu suas tranças longas, de um tom castanho-claro, e resmungou:

- Hum!

- Quando voltarmos a Roma daqui a quatro semanas, Calíope, verás de novo as tuas amigas, e terás tuas tagarelices e tuas alegrias.

Diodoro já garantiu uma situação para Lucano como funcionário médico em Roma, com excelente salário. Ele poderá ter certo número de clientes particulares e também se ocupará no sanatório. Poderemos ter, então, nossos próprios e pequenos banquetes particulares, com os nossos amigos. Não podemos culpar Lucano por não termos amizades aqui; somos estrangeiros.

Calíope sorriu para ele, afetadamente:

- Com o generoso estipêndio que o tribuno te envia, e com tua avareza, podemos bem comprar um pequeno horto e granja perto de Roma. É necessário que continuemos a ser parte do pessoal doméstico de Diodoro e que sejas professor de seus filhos?

         - Jamais ouviste falar em gratidão disse Cusa, severamente. Deu uma palmada na própria coxa, e continuou: - Não. Se Diodoro nos quiser, devemos permanecer em Roma, com Lucano, e tomar conta do pessoal dele. Estou certo de que ali ele se casará.

- Ah! Disse significativamente Calíope. - Digo-te que ele jamais se casará. Por acaso aceitou os convites das famílias dos estudantes aqui de Alexandria? Não. Vive, sozinho, naquele seu terrível silêncio marmóreo. Pensa apenas em Rúbria, jamais a esqueceu. Ela se tornou uma divindade para o rapaz. Em nome dela, despoja-se de dinheiro, e isso não é coisa natural num grego; dá o que pode a cada mendigo que vê. Não está sempre visitando as prisões para curar e confortar criminosos e escravos? Aquele moço é um escândalo. Sou mulher de intuição. Ele nada disse com respeito a essa situação de funcionário médico em Roma, e fica silencioso quando te referes a isso. Receio que recuse...

- Não sejas néscia! Trovejou Cusa, indignado. – Lucano pode não ser natural ou caloroso, mas não é um imbecil. Para que tem estudado?

- Por alguma terrível razão que só ele conhece disse Calíope. Contente por ter conseguido deixar Cusa ansioso, a mulher retirou-se com a filha para fazer a sesta. Cusa, entretanto, estava perturbado demais para repousar. Saiu para o terraço alto, resmungando consigo mesmo.

A casa não era pequena nem grande, e fora construída com pedra branca, com um pórtico externo agradável, voltado para o mar, apoiado em simples colunas. Atrás da casa ficava a quente e impetuosa cidade de Alexandria, ainda mais poliglota do que Antioquia, maior e mais ofuscante e muito mais corrupta. Fervia, rolava, gritava, urrava em inúmeras línguas. Em uma torrente inquieta de faces negras, morenas e brancas, e de trajes de outras terras. As ruas abafadas e tortuosas ferviam de caravanas, camelos, cavalos, bigas e burros. Os chacais uivavam a noite inteira, lá pela periferia da cidade. O prefeito nunca Podia estar certo de quantos de seus homens voltariam à noite de seus postos; o assassínio era muito freqüente. Mesmos as legiões romanas que ali estavam não poderiam manter sempre a ordem. Coletores de impostos desapareciam quando não iam acompanhados de soldados e seus corpos eram com freqüência encontrados no rio, quando a maré os devolvia para o porto de esplêndido colorido. Aquele era, para Cusa, um dos aspectos agradáveis da cidade que ardia como se tivesse fogo interno dia e noite, de manhã e à tarde. Prostitutas de todas as raças e de todas as cores freqüentavam as ruas estreitas e violentas a qualquer hora. Toda casa de família de algum porte tinha sua própria guarda armada nos portões, e mesmo assim o roubo era coisa tão comum que pouca gente chegava a comentá-lo. Sobre a cidade, uma poeira amarela e quente esvoaçava em nuvens tais que fazia vermelhos os ares sufocantes, à noite, sob o luar, em cima das tochas colocadas em soquetes ao longo dos muros. Turbas assaltavam-se mutuamente no meio da noite, e havia sempre bandos de jovens judeus e egípcios em conflitos, amaldiçoando-se e espancando-se com cacetes, e usando navalhas brilhantes. A cada manhã, os becos ficavam cheios de cadáveres, evidência de outros conflitos também entre outras raças.

Embora os romanos tivessem criado um sistema sanitário muito adequado de esgotos, que iam desaguar no porto, o povo usava as ruas como latrinas durante a noite, desprezando os sanitários públicos, que ficavam a pequena distância. Conseqüentemente, Alexandria tresandava, mesmo durante o mais brilhante e seco dos dias. Em comparação, Antioquia era um sanitário limpo. O alho parecia ser o perfume popular, e as ruas cobertas de pedras lisas estavam sempre juncadas de entranhas, tanto de animais quanto de homens, apesar dos exércitos de escravos que eram levados diariamente aos trabalhos de limpeza.

Era uma cidade perigosa e flamejante, uma cidade sufocante e violenta, sempre ruidosa pelos gritos de perseguição e fuga. As epidemias assolavam as casas de famílias e as prisões estavam constantemente repletas. Bigas faziam estrondos pelas ruas, sem cessar, e as pessoas jamais estavam longe de serem arrastadas ou batidas por elas.

A casa de Lucano, porém, ficava num ponto mais ou menos isolado, não muito longe da universidade. Era rodeada de jardins alcantilados e de um muro confortavelmente alto, rematado por agudas pontas de ferro. Cusa espalhara cuidadosamente na cidade o boato de que Lucano não tinha dinheiro, que a casa era espartana, sem conter ouro nem prata ou qualquer outra coisa que valesse a pena roubar. Em conseqüência, houvera na residência apenas doze tentativas de roubo durante aqueles quatro anos.

Cusa amaldiçoava a cidade e sua inquietação, ao ficar ali, na colunata alta, sobre o porto. O mar exibia o mais régio dos tons azuis, quase um arroxeado imperial, enquanto fervia lentamente sob o céu, aquecido a ponto de parecer branco. Centenas de navios, pequenos e grandes atravancavam o porto. Velas azuis, vermelhas, brancas, escarlates e amarelas pendiam frouxas de seus mastros, pois não havia vento na imobilidade brilhante do meio-dia. Nenhum navio se movimentava: era a hora da sesta, a fuga ao calor intolerável. A cidade mostrava-se relativamente tranqüila, para Alexandria, e só o mais leve dos estrondos alcançava os ouvidos de Cusa. Ele enxugou o suor da testa com o       braço nu e arquejou. Aquela brisa quase imperceptível, vinda do mar reluzente, era úmida; Alexandria fazia-se tolerável apenas quando um vento quente e seco vinha dos desertos. Os navios agora balançavam pesadamente, tocados pela maré lenta e incandescente.

As palmeiras no jardim, a grama ressecada e as árvores enlanguescidas sobrecarregavam-se com poeira amarela faiscante. Era impossível combater o calor da África com qualquer água, e as fontes mostravam-se apáticas. Cusa podia ouvir sua queixa leve entre ele e o mar. As flores magoavam os olhos com suas cores demasiado intensas, e a luz vinda do céu bem como o fulgor arroxeado do porto ainda os magoavam mais. Apesar disso, Cusa sentou-se e entregou-se a pensamentos perturbadores.

Lucano jamais fora uma alma jubilosa, mesmo quando menino, a não ser quando em companhia da jovem Rúbria ou cavalgando loucamente o pequeno burro, no caminho para Antioquia, com Keptah.

Sempre se mostrara demasiadamente reservado, quieto demais, contemplativo demais para uma criança, e suas cóleras, apesar de infrenes, eram frias e glaciais como o gelo. Qualquer calor solar, qualquer tepidez e amor que tivessem sido parte de sua personalidade gastara-os com a filha de Diodoro. Rira muito raramente e quase sempre em presença dela.

Se Lucano se mostrara bastante difícil em Antioquia, depois da morte de Rúbria, fora, às vezes, intolerável para Cusa durante aqueles quatro anos. Fixava em Cusa um olhar sardônico, quando o professor discordava dele a propósito dos trabalhos que trazia da universidade para casa. (Cusa sentia-se em igualdade com qualquer dos professores da universidade e ofendia-se quando Lucano preferia a interpretação deles à sua.) Lucano o provocava, atormentando, não com leveza, mas Com uma espécie de amargo desejo de aguilhoar.

- Não és Sócrates dizia-lhe Cusa, intimamente ofendido -, e eu me ressinto desses intermináveis diálogos que não levam a coisa alguma a não ser a me apresentar como um tolo. É essa a tua intenção?

Lucano desculpava-se, com sincero arrependimento, mas seu rosto permanecia sombrio. Era como um homem que aperta constantemente um dente tomado por um abscesso, pensava Cusa. Quando, em nome dos deuses, irá ele esquecer aquela donzela?

Ali estava Cusa, sentado, pensando em Lucano, na colunata. Sacudia e tornava a sacudir a cabeça. Apesar das queixas de Calíope, resolvera não deixar Lucano, a não ser que o jovem grego o despedisse.

 

- É uma pena, meu bom Lucano disse Rustrumjee, o licenciado em letras -, que estejas firmemente decidido a ser médico, pois és artista de imenso mérito.

Rustrumjee, curador do museu de arte na universidade de Alexandria, era homem erudito, vindo da Índia; seus gostos eram universais, curiosamente aparentando deformidade, tinha rosto moreno e olhos de estranha palidez, bem como sorriso sutil. Para Rustrutujee, um homem que não produzisse arte ou não estivesse envolvido com a arte era um homem incompleto. Como a maior parte dos hindus, a arte, para ele, não se separava da religião. Ensinara também o sânscrito a Lucano.

- Como brâmane[12], pertenço à casta exclusiva dos sacerdotes, e nosso voto é preservar a nossa velha língua. - Olhou para Lucano com dignidade, por um momento, depois apanhou dois pequenos retângulos de madeira no qual Lucano pintara retratos. Franziu delicadamente as sobrancelhas.

Lucano recebeu um pedido do professor para permanecer ali quando os outros alunos se fossem.

- Mestre disse o jovem -, eu sou um médico desde que nasci. Não posso conceber para mim nada a não ser a medicina.

Rustrumjee fez um sinal afirmativo com a cabeça, e suspirou:

- O que foi ordenado durante o carma[13] deve ser realizado. É provável que isso seja um outro aspecto do teu carma, a transmissão de tua alma, precisando completar as necessidades de teu espírito. Gosto, muitas vezes, de fazer trabalho especulativo sobre os pecados que cometeste contra teu próximo, durante um carma prévio, e que agora deves expiar, salvando-o da dor e da morte.

Lucano sorriu, involuntariamente, rompendo a rigidez habitual e mostrando a juventude de suas feições. Em seguida ficou novamente sombrio. Jamais discutia com Rustrumjee sobre religião, ou entabulava conversa com ele a esse respeito. Reservava isso para José ben Gamliel, que ensinava religião, era compassivo, ao contrário do hindu, que não tinha compaixão verdadeira, pois acreditava que a sorte terrena do homem era determinada antes de infinitos renascimentos e deveria ser recebida sem protestos. Ainda assim, Rustrumjee jamais mataria a mais detestável mosca ou inseto, receoso de interferir com seu próprio e determinado carma. Homem, mosquito, ou rato: eram todos a mesma coisa para o hindu, movendo-se lentamente, através de penosos renascimentos. para chegarem ao ser e depois irem ao Nirvana[14] não recebendo nem pedindo, no caminho, a piedade humana, pois eram o que eles próprios haviam formado, sem auxílio nem condenação dos deuses, através de eons[15] de tempo, através de eons de existências. Lucano considerava de certa forma fascinantes os vastos encadeamentos da religião bramanista. Pareciam explicar, em grande parte, as agonias da vida, suas misteriosas calamidades, sua aparente anarquia. Que tal se os miseráveis doentes das prisões e das enfermarias, sofrendo torturas aparentemente imerecidas, estivessem apenas expiando antigos crimes e desajustamentos espirituais? E, ao expiá-los, estivessem subindo para melhores condições de vida?

Discutira isso com José ben Gamliel. Então, o judeu dissera:

- Não. Temos a considerar a ilimitada harmonia da Natureza, que é um reflexo de Deus. suas leis precisas, jamais desviadas, sua exatidão. Deus é a Lei, e a Lei é perfeita e imutável. Considera os Dez Mandamentos, a Lei. O fato de romper a Lei traz sofrimentos ao homem, sofrimentos intensos, físicos, espirituais, às vezes as duas formas, e obedecer à Lei traz amor e justiça, de forma que se ele tiver dor mortal terá sustentáculo espiritual e isso prova, sem dúvida, que a perfeição não está além dele, mas dentro de seu alcance. Por que, então, os contínuos renascimentos? Não. A expiação é de forma espiritual, um reino de expectativa onde a alma pode limpar-se e purificar-se.

Lucano não acreditava em José ben Gamliel, como não acreditava em Rustrumjee, pelo simples fato de que, embora não pudesse rejeitar a existência de Deus, não acreditava na imortalidade do homem. Convencido tanto da morte física quanto da morte espiritual, jamais deixava de se sentir tomado da mais terrível cólera contra Deus.

Rustrumjee dizia, agora:

- Estes retratos. São rostos de homens que pintastes nas enfermarias ou nas prisões; faces moribundas. Que colorido extraordinariamente apaixonado! Quase que vívido demais, quase amedrontador demais em sua crueza. Alguns diriam que tal colorido não é a verdadeira realidade, mas expressam apenas a emoção que vem de tua própria alma. Há qualquer coisa de deformado nestas feições, também, que não vem do que realmente existe, mas também de tua emoção pessoal. Esta agonia! Esta angustia imensa! Esta fantasmagoria atormentada! Estas linhas torcidas que se destacam de tal maneira que sentimos poder tocá-las e encontrá-las em relevo, como uma excrescência! O suor nas frontes e nas faces parece vividamente úmido, e espera-se ver rolar as gotas. Os olhos dilatados de sofrimento têm sangue latejante, e não me surpreenderia vê-los voltarem-se para mim em desespero e súplica, implorando consolo. Os outros professores estão horrorizados com as tuas pinturas, mas eu não! Ah! Lucano, tu pertences à Índia. e sinto que em vários de teus carmas tu ali viveste, pois só os hindus pintam assim. e são uma afronta para os moderados gregos, que preferem a beleza olímpica e a harmonia à realidade; preferem esculpir estátuas de seus deuses e colori-las para além das cores naturais dos homens. Ainda assim, Zéuxis[16] pintou um cacho de uvas tão realista, dizem, que vários pássaros entraram como flechas na sala da exposição para debicá-las.

Olhou pensativamente para Lucano e prosseguiu:

- Tens certeza de que não te inclinas mais para a arte do que para a medicina?

- Tenho, professor. Sou médico.

Lucano foi para a enfermaria, embora, tendo já passado duas horas ali, naquela manhã, muito cedo, não tivesse de voltar naquele dia. Ali havia, também, um médico hindu, mas era budista e se esforçava por aliviar a tortura, de forma que a alma pudesse ficar em contemplação pacífica. Havia também um médico judeu, que tinha as mãos mais delicadas e a mais profunda piedade por todos os que sofriam. Havia, ainda, um grego e um egípcio, e mesmo um romano interessado em epidemiologia, que era a sua especialidade. Lucano de há muito observara que em Alexandria os professores não tinham arrogância a propósito de suas raças individuais, suas famílias ou ambientes. Nem mesmo o romano jamais declarava, orgulhosamente: "Sou um romano!" A humanidade, a fraternidade, a animada troca de conhecimentos entre os professores, a aceitação mútua e sua reverência uns pelos outros foram, de início, uma revelação para o jovem grego. Tratava-se de uma fraternidade dedicada à verdade e ao esclarecimento. A verdade e o partilhar dela eram tudo.

Viram Lucano entrar e o receberam com sorrisos afetuosos, sabendo que para ele a medicina era arte divina, acima de todas as artes, e conhecendo-lhe a dedicação. Mas só o judeu podia entender sua obstinada preocupação pessoal com a dor e a morte. Para os Outros, ele parecia um estudioso como eles próprios, academicamente interessado nos aspectos da doença e impelido por desejo de pesquisa, por amor apenas à própria pesquisa. Para eles, a morte era somente um dos seus malogros, o malogro derradeiro, e excitavam-se com aquilo desinteressadamente, discutindo-a sem cessar. Faziam experiências por amor à experiência em si.

A enfermaria limpa e branca tinha dez camas. Ali vinham os que estavam irremediavelmente enfermos, e eram trazidos das prisões e dos bairros miseráveis de Alexandria. Também vinham os enfermos crônicos, os desesperadamente atingidos. Como todos aqueles doentes eram escravos, ou destituídos de tudo, as experiências feitas com eles, às vezes impiedosas, muito freqüentemente não tinham de forma alguma relação imediata com a sua moléstia. Isso Lucano considerava odioso e intolerável e nisso também ainda era apenas o professor judeu que o compreendia.

Os outros riam bondosamente de Lucano:

- Não é justificável que um homem morra para que outros, para que multidões de outros, se possam salvar? perguntavam-lhe. E ele respondia, enquanto o professor judeu ouvia em silêncio:

- Não. Um homem é tão importante quanto a massa, e talvez ainda mais.

Essa atitude estranha não diminuía a afeição e o respeito que lhe votavam os médicos. Mas quando Lucano se lamentava a propósito de uma doença mortal e trabalhava e suava para aliviar as dores e salvar o paciente, todos, menos o judeu, ficavam perplexos. A verdade, o conhecimento, eis o objetivo da medicina. A morte era o fadário de todos os homens, a dor também.

- Sim, os homens devem morrer dizia Lucano, amargurado.

- Mas não é dever nosso nos preocuparmos grandemente com a dor? Mesmo com a dor de um escravo?

Ele não faria experiências apenas pela própria experiência. Tratava a enfermidade, pois, para ele tanto quanto para Keptah, a enfermidade era o homem. Para além da enfermaria ficava o necrotério, onde corpos de escravos e de abandonados, que morriam na enfermaria ou nas prisões, eram dissecados. As leis do Egito, ao contrário das leis da Grécia e de Roma, permitiam tais dissecações, pois os escravos e os pobres eram vistos como desprovidos de alma, e o Egito não era particularmente obcecado pela carne, a não ser que se tratasse de carne régia ou aristocrática.

O médico hindu e seus assistentes tinham ensinado a Lucano a arte da vacinação contra a varíola. Ele permitia que o vacinassem muitas e muitas vezes, e vacinava os pacientes.

- Tu és excessivamente zeloso diziam-lhe os professores, em afetuosa zombaria. - Experiências, só em ti!

- Ele não é excessivamente zeloso! dizia o professor judeu.

- Só deseja ajudar o paciente que se pode recuperar da doença atual e evitar a varíola para o futuro. Mas ele jamais operaria o olho das nossas... vítimas.., por exemplo, se esse olho não estivesse doente, nem injetaria em um paciente outra doença, fosse remédio ou veneno, apenas para observar o resultado, para saber por que o paciente não pode resistir. Ele aliviará a dor, e dará todo o tratamento que acredita capaz de aliviar a dor ou aquela particular doença, mas infligirá dor ou doença em nome da pesquisa.

O professor egípcio e seus assistentes tratavam dos olhos, do coração, e de vários órgãos separadamente, e Lucano resistia contra essa idéia de especialização.

- Se o fígado está doente protestava ele então o homem todo está doente, pois suas toxinas alcançam o sangue, os olhos, o coração, o estômago, os intestinos, a pele. E o mesmo se dá com as úlceras, degenerescências e todas as outras doenças. Não é apenas o peritônio que está inflamado, é o corpo inteiro que está inflamado, por solidariedade. O câncer é doença do homem inteiro, não apenas da parte que está atacada. Se um homem tem artrite, não deve tê-la no ombro, no joelho, no tornozelo, nos artelhos ou nas mãos. Têm-na universalmente.

Os médicos egípcios divertiam-se, exceto o judeu, que concordava. E o judeu falou particularmente com Lucano:

- A doença não é apenas o homem inteiro mas também a sua alma. Um espírito doente cria um corpo doente, ou um corpo doente cria uma alma doente. Não só a carne e sua doença devem ser tratadas, mas também a mente. É muito possível, embora não esteja provado, que todas as doenças, mesmo as epidêmicas, originem-se em alguma câmara secreta da alma.

Pacientes não eram, para Lucano, escravos, destituídos, ou criminosos. Eram homens, que deviam ser auxiliados para combater a inexorável ira de Deus contra eles mesmos. Seus sofrimentos atormentavam-no pessoalmente; tratando um homem com uma doença cardíaca, sentia arrepios doloridos em seu próprio coração. A artrite que retorcia e aleijava as juntas de um sofredor, muito freqüentemente pungia em suas próprias juntas. Sentia, realmente, o câncer devorar sua própria carne sadia, quando tratava de um canceroso. Um tumor no cérebro de um escravo dava-lhe latejantes dores de cabeça. Era como se a doença lhe mandasse filamentos do paciente e esses filamentos o emaranhavam em seus sintomas e agonias.

O professor egípcio e seus assistentes usavam com freqüência a magia no tratamento de seus pacientes da enfermaria. Aquilo provocava a hilaridade amistosa entre os eruditos professores gregos e romanos que havia muito perderam suas crenças nacionais no valor dos amuletos e encantamentos ou ritos. Mas o professor judeu ensinara a Lucano que "já que a alma está tão doente quanto o corpo, esse corpo Pode ser curado freqüentemente através de mistérios e, como a doença do Corpo humano pode bem originar-se na mente, aquela mente pode ser convencida pela taumaturga de que está curada, e em conseqüência muitas vezes o próprio corpo se cura . E acrescentara:

- Esses egípcios não estão assim tão errados quanto os demais acreditam. Repara que quando pões tua mão suavemente, e com uma espécie de vigorosa resistência, sobre um paciente, os egípcios se tornam inexcedivelmente interessados, embora os outros pilheriem contigo. Porque os egípcios descobriram, através da observação, que tens um misterioso poder curador. Os outros são nacionalistas, acreditando apenas em poções e na cirurgia. Os gregos, entretanto, como observaste, não são da escola de Cinidos, que tratava apenas o órgão atingido. Eles acreditam, também, como nós, que o doente é parte de sua estrutura.

Exatamente naquele momento Lucano estava particularmente interessado num homem que sofria de uma doença do cérebro então frustradora. Alguns dos cirurgiões haviam sugerido um tumor: não era comum terem a oportunidade de estudar um cérebro vivo. Lucano suspeitava que eles, realmente, não acreditavam que o homem tivesse tal tumor. Agora, completara seus estudos e era médico. Podia, portanto, protestar, o que não lhe fora permitido enquanto estudante.

Além disso, o paciente era do judeu e depois de o ter ouvido, Lucano não deixara que seus colegas interviessem com suas serras, brocas e trépanos ansiosos.

O homem era um escravo, enviado por seu dono à prisão por um roubo insignificante. De acordo com a lei, poderia tê-lo mandado executar e, realmente, ele estava condenado à morte. O dono fora persuadido a mandá-lo para a prisão. Dentro dos últimos dias o professor judeu comprara a pobre criatura, e dera-o a Lucano como paciente:

- Se o curares, Lucano, será teu.

- Se eu o curar respondera Lucano comprá-lo-ei de ti e o libertarei.

- Então, dou-to como um presente, e poderás libertá-lo pessoalmente. Bem me lembro que os judeus foram escravos no Egito.

Lucano dirigiu-se imediatamente ao leito do homem, e os médicos egípcios reuniram-se em torno para observar. O nome do escravo era Odílio, homem de origem racial obscura, como acontecia com muitos dos escravos no Egito. Tinha rosto delgado e aquilino, olhos fundos, ardentes e escuros, corpo emaciado e alto, com bonitas mãos inquietas e pés longos e delicados. Devia ter mais ou menos vinte e dois anos. Olhou suplicante para Lucano, em silêncio, mas suas mãos ergueram-se um pouco, como que em oração.

Lucano puxou um banquinho para junto do leito e olhou para o escravo com ansiosa piedade. Desenrolou um papiro e de novo tomou conhecimento dos sintomas do homem. Não havia dor premente e contínua, como num tumor. Não havia sinais de paralisia, ainda. As íris não se mostravam turvas ou escurecidas. Faculdades e sentidos estavam inalterados. Mas o homem agonizava. Controlava-se muito, mas com freqüência gritava, angustiado, apertando a cabeça com as mãos. Sua pressão arterial era descontrolada. Às vezes, o coração sacudia-se e saltava, embora nada houvesse de organicamente lesado nele.

Outras vezes todo o seu corpo era convulsionado por espasmos. Depois de tomar sedativo, os espasmos cediam rapidamente e um aspecto de profundo alívio surgia no rosto sonolento, aspecto muito comovente e tocante para Lucano. Não havia mais sinais físicos de doença em qualquer de seus órgãos: sua pele, se bem que frequentemente lívida ou manchada e trêmula, era sadia. Mas as dores de cabeça, segundo dissera o doente a Lucano, em tom lamentoso, variavam em intensidade e forma, mas estavam sempre presentes.

Os outros professores médicos chegaram até o leito e ficaram observando Lucano, que fazia mais um dos seus meticulosos exames.

Viram que ele chegava uma vela acesa junto dos olhos do homem e tornava a pesquisar o estado das íris. Viram-no mandar Odílio erguer as mãos, os pés, a cabeça. Lucano procurava reflexos perdidos ou exagerados. Todos estavam praticamente normais, porém o homem torcia-se na cama e gemia. Era inteligente, sabia ler e escrever em três idiomas, e fora o secretário de seu senhor.

Lucano cruzou os braços nus sobre o peito, contemplou o homem durante um longo momento.

- Qual é a dor de hoje? Indagou, com ar abstraído. Ao lado do ombro dele o professor judeu inclinava-se, observando tudo bem de perto.

- Oh! Senhor! Gemeu o escravo -, hoje meu crânio está apertado demais para meu cérebro! Meu cérebro está para estourar a sua caixa!

- Tumor, evidentemente disse o professor grego, com avidez.

Lucano sacudiu a cabeça, sem retirar os olhos do escravo.

- Há mais de um mês ele está aqui, e não mostra perda de qualquer faculdade ou sentido, nem epilepsia, nem há o mais leve sinal, mesmo da mínima paralisia, cegueira ou surdez. Os reflexos hoje estão apenas um pouco mais acentuados. Não, não se trata de um tumor que é inexoravelmente progressivo em seu dano. Ele informa que tem sentido esses sintomas já há anos, embora menos agudamente. Não tem tumor, portanto, nem benigno nem maligno.

Seu rosto bonito, repleto de comiseração, ternura e simpatia, curvou-se para o escravo que gemia. Tomou uma das mãos dele e imediatamente o gemido cessou e Odílio perscrutou suplicante o rosto de Lucano. Lucano disse:

- Vou dar-te essência de ópio, não o bastante para atordoar-te, mas para aliviar-te as dores. Então, farei perguntas. Tenho algo em mente... - Parou, depois disse: - Hoje a pressão arterial dele está perigosamente alta.

- Há possibilidade de um derrame sugeriu um dos jovens assistentes.

- É possível que ele venha a ter um derrame concordou Lucano.

- Mas não em conseqüência de qualquer tumor e, possivelmente, não em conseqüência de qualquer moléstia do cérebro ou de qualquer parte do seu corpo. Seria possível que os derrames pudessem resultar, às vezes, de causas que não sejam orgânicas? Murmurou ele.

Deram ao escravo essência de ópio, que ele engoliu avidamente, sabedor de que aquilo lhe traria alívio. Lucano esperou. Minuto a minuto. Os gemidos foram se espaçando, as contrações dos músculos diminuíram visivelmente, e as linhas cavadas de angústia cessaram de se mostrar no rosto fino e inquieto. Odílio sorriu levemente de gratidão, sem retirar os olhos do misericordioso Lucano. Seus olhos começaram a fechar.

- Vou dormir murmurou ele.

Mas Lucano apertou-lhe fortemente a mão:

- Ajuda-me, Odílio, para que possas ficar curado disse ele.

Odílio respondeu, com um soluço:

- Senhor, não quero ficar curado, porque então terei de voltar para meu senhor e ser executado.

Lucano abriu a boca para dizer algo em consolação, e para informar-lhe que já não tinha aquele senhor. Mas calou-se. A preocupação em sua mente acentuou-se.

- Antes de seres condenado, Odílio, quando teu senhor confiava em ti, e ainda não havias roubado, tinhas, entretanto, essas terríveis dores. Por favor, abre os olhos e responde-me! Não é isso?

Os olhos que se fechavam foram se abrindo, relutantes.

- É isso, senhor. Ah! Deixa-me dormir. Se ao menos - murmurou ele eu tivesse tido a coragem de me matar, quando era mais jovem...

Falou Lucano, excitado. - Dize-me, Odílio, há quanto tempo és escravo?

- Não sei; senhor. Minha lembrança mais remota é de ser muito pequenino, e vir para o Egito, trazido por um senhor escravagista, um persa, que me veio vender aqui. Não sei se nasci livre ou escravo. Meu senhor atual é meu dono desde que eu tinha três ou quatro anos, e não sei quem são meus pais.

- Por que roubaste, Odílio? Teu senhor não era mau para ti, e merecias a sua confiança.

Os olhos adormecidos do escravo acenderam-se como um fogo sombrio.

- Mergulhei as mãos nos cofres dele, pois era homem rico e nem sempre tinha conhecimento da quantia que existia em seus cofres, para poder fugir. Pretendia retirar uma bolsa de ouro. Mas ele mandara o dinheiro naquela manhã para a fortaleza de Alexandria, e só ficara no cofre uma pequena bolsa de prata. Eu não a queria. Ainda assim, tomei-a. Estando ali, não pude resistir.

- Por quê? Uma soma tão pequena!

- Sim, senhor. - O escravo ficou silencioso por alguns momentos, e seus olhos expressivos pararam, muito abertos, tomados de alguma lembrança profunda e dolorosa. - Ainda assim continuou ele seria o primeiro passo para a liberdade.

Então, estalou em soluços e lágrimas, com tal intensidade que seu corpo tiritante fazia sacudir a cama.

- Mesmo que eu tivesse roubado ouro isso não me teria salvo! Exclamou ele. - Eu teria sido encontrado!

Agarrou a mão de Lucano com seus dedos suarentos.

- Tu não podes entender, senhor, tu, que és homem livre, o que significa ser escravo! Muitos havia naquela casa, com os quais eu falava em liberdade, e eles me sorriam com sorrisos estranhos e espantados. "Não estamos abrigados, alimentados, adequadamente vestidos, não temos os dias santos e, quando particularmente agradamos ao senhor, não temos recreação e mesmo uma peça de prata? Estamos melhor do que os pobres da cidade, que são livres mas dormem nas sarjetas ou sob as arcadas, e esmolam seu pão, ou morrem de fome. Por que, então, uma liberdade onerosa para morrer como cães?"

- Sim disse Lucano. - Ah! Sim!

O escravo olhou suplicante para ele, e viu que havia umidade em seus olhos azuis. Ergueu-se sobre um dos cotovelos, esquecendo-se dos demais que ali estavam.

- Senhor, agora sei que desejei roubar porque sabia que seria apanhado e morto! E preferi a morte à escravidão! Podes compreender isso?

- Sim disse Lucano. - Sim, sim.

O escravo tornou a tombar no leito, gemendo novamente.

- Não me cures, senhor. Deixa-me morrer aqui. Então, ficarei livre para sempre.

Levou a mão à cabeça e seus olhos abateram-se nas órbitas, em renovado tormento.

- Ópio, senhor. Ópio bastante para matar-me imediatamente.

Então eu adormecerei profundamente e nunca mais acordarei, e serei um dos inumeráveis que são livres para sempre.

Lucano ergueu sua voz para que os ouvidos endurecidos do homem o ouvissem. Olhou para os outros médicos, que observavam atentamente tudo.

- Nesta universidade precisam de um homem hábil em escrituração e contabilidade, e que seja digno de confiança? - perguntou.

O escravo abriu os olhos, olhando com a mais completa perplexidade. Os outros médicos franziam as sobrancelhas, tentando compreender.

- Ele é um escravo, Lucano disse um egípcio -, e não nos pertence, mas a seu senhor.

Lucano riu baixinho e sacudiu a cabeça. Pôs a mão no rosto do escravo como no de um irmão.

- Não. Ele pertencia a meu professor, Jacó, que o comprou de seu dono antigo, mas agora pertence-me, e amanhã visitarei o pretor e lhe darei liberdade.

O escravo fez um movimento para se levantar, e lançou um grito abafado de estonteada alegria. Atirou os braços ao pescoço de Lucano, depois retirou-os, agarrou a mão do jovem, cobriu-a de beijos.

Soluçava e gemia, estava fora de si. Todo o seu rosto ardia. Arquejava, e atirou-se ao chão. Ali ficou deitado, abraçando os pés de Lucano, e apertando a fronte contra eles, alternadamente.

Lucano ergueu-o com a maior delicadeza e colocou-o de novo no leito, mas o homem agarrou-se à mão dele, sem a querer largar. Olhava com adoração para o jovem médico.

- Meus caros colegas, disse Lucano -, repito meu oferecimento e o oferecimento de Odílio para vós. Precisais dele?

- Posso usá-lo imediatamente como meu próprio funcionário disse Jacó, cujos olhos se tinham enchido de lágrimas.

Lucano fingiu duvidar e sacudiu a cabeça.

- Ah! Que coisa triste disse, baixinho. - O pobre Odílio está liberto, mas está doente, e quem sabe se vai ficar bom?

O enfermo fez de novo menção de se levantar, e o ardor de seu rosto parecia mais brilhante.

- Senhor! Já não estou doente! Já não tenho dor de cabeça, que está fresca e tranqüila. Deixa-me servir-te, suplico-te!

- Como ficarás livre pela manhã, estás tacitamente livre agora para planejar teu próprio futuro, e não me deves dizer: "deixa-me!" falou Lucano, com zombeteira severidade.

Odílio, cujos olhos estavam em fogo, olhava-o como se olhasse um anjo. Então sorriu radioso e disse:

- Senhor, se o médico Jacó deseja meus serviços, ficarei encantado em servi-lo, como homem livre.

- E com um estipêndio que discutiremos disse o jovem e barbudo judeu.

- Agora, dorme falou Lucano, levantando-se – Quando acordares, Odílio, não tens dor, e a dor jamais voltará.

Os médicos riam-se um tanto ao se afastarem, com Lucano entre eles.

Um grego disse, divertido:

- Agora, estamos privados de um cérebro vivo para estudar.

- Mas vistes o morto reconduzido à vida disse Jacó – Vede como dorme, ali, com o sorriso de uma criança jubilosa em seu rosto, e a liberdade é mais do que a vida para os que são como ele, e que seu nome seja legião. Que Deus conceda a todos os homens a graça de serem livres, de forma a que eles não pensem na morte como única evasão.

Odílio não sofria de qualquer doença do corpo ou do cérebro disse Lucano, respeitosamente, aos pragmáticos gregos. Sofria uma doença da alma e agora está curado. Em vosso racionalismo, vos esquecestes de Hipócrates.

 

O crepúsculo lilás impregnava a atmosfera de Alexandria quando Lucano, exausto, deixou a enfermaria e o necrotério. Aqui e ali um rastro de sangue manchava sua túnica, e a cabeça latejava. Encontrou José ben Gamliel, que aparentemente o esperava.

José disse:

- Cumprimento-te, Lucano. Desejo um favor teu. Tenho um amigo querido que está vivendo em Alexandria há dois meses, não por escolha, mas porque adoeceu gravemente e está próximo da morte.

Chama-se Eleazar ben Salomão, negociante rico que viaja em torno do mundo. Negociante riquíssimo, e um bom homem. Irás vê-Lo?

Lucano respondeu secamente:

- Lamento José, mas não desejo tratar nenhum homem rico, em parte alguma. Tomei a resolução de viajar para cada porto, em qualquer navio, a fim de tratar dos miseráveis e dos escravos das galés, pois estes não têm hospital em parte alguma, a não ser em Roma, que, portanto, não precisa de mim.

- Dizemos em nossas Escrituras falou José, sorrindo que a sabedoria com herança é coisa muito boa. Não fiques assim vermelho, meu Lucano. Estou apenas felicitando-te por teres um pai adotivo rico. De outra maneira, como viverias em tuas viagens por todos os portos? Não me consta que os ricos sofram menos com suas doenças do que os pobres, nem que Deus tenha outorgado a eles qualquer imunidade. Um câncer é tão doloroso em César quanto no mais mesquinho dos escravos.

- Apesar disso, não desejo tratar de qualquer homem rico - repetiu Lucano, friamente. Depois, ficou curioso: - Ainda sou um principiante. Teu amigo ainda não consultou os médicos competentes de Alexandria, os que estão ávidos de gordas remunerações? Eu podia dar-te o nome de uma dúzia deles!

José olhou-o, pensativo:

- Lucano, eu acredito que podes ajudar Eleazar ben Salomão, e só tu. Ele está morrendo, é provável que não Lhe possas salvar a vida. Está também conturbado em sua alma, e poderias confortá-lo.

- Eu! Exclamou Lucano, sorrindo penosamente. - Eu, o destituído de conforto, dar conforto?

- Fazes isso constantemente disse José, com gravidade. Virás, como favor que me fazes, pois que eu quero muito a Eleazar bem Salomão. Crescemos juntos em Jerusalém, antes que eu viesse para Alexandria. - O rosto dele modificou-se, tornou-se sutilmente desolado. - Minha liteira está à espera lá fora do jardim.

Lucano hesitou. Havia algo misterioso nas maneiras de José, pensava, e apesar da repugnância que o jovem grego sentia em tratar dos ricos e privilegiados, seu coração de médico não poderia ter negado.

Ele disse:

- É possível que ele tenha uma doença na qual eu esteja interessado, por isso irei.

José sorriu para ele mesmo. Ambos aproximaram-se dos portões, que foram abertos para eles por escravos armados. José, como a sua família, não tinha escravos; empregavam apenas homens livres, que tinham comprados como escravos e libertado. Os carregadores de sua liteira eram jovens e fortes, que se inclinaram afetuosamente diante de seu amo. O entardecer estava muito quente e o céu agora parecia uma ametista em fogo. José e Lucano sentavam-se lado a lado na liteira, abrindo as cortinas de lã, a fim de usufruir alguma brisa erradia. De súbito, naquela terra tropical, o dossel da noite tombou sobre Alexandria, e a lua saltou para o seu lugar.

A cidade, como sempre, era um tumulto de cores, lâmpadas, vozes que clamavam, animais, homens e mulheres, pois só ao entardecer é que Alexandria acordava completamente. As tochas escarlates silvavam em seus soquetes, mendigos guinchavam e suplicavam a cada passo. Bigas estrondejavam, correndo pelas ruas tortuosas. Homens berravam, mulheres riam, a música erguia-se por trás de paredes e jardins, anunciando a turbulência de uma cidade ensandecida.

Rapidamente, veio o luar, banhando os telhados brancos e baixos, planos como a terra. Naqueles terraços ele parecia pálido, tal água, e ali as pessoas das casas se iam reunindo para obter um pouco mais de frescor. Suas formas escuras e rostos sem feições moviam-se, e elas falavam, riam, batiam com as mãos, para que os escravos lhes trouxessem vinho. E vozes chamavam em muitas línguas estranhas. Às vezes, uma Porta em arco se abria numa parede, e era possível ver jardins iluminados, docemente perfumados e cheios de fontes e estátuas sobre as quais o luar derivava como chuva prateada.

José não falou durante o curto percurso. Parecia mergulhado em melancolia que só a ele dizia respeito e Lucano não o interrompeu.

Estava zangado consigo mesmo e cogitava na razão de lhe parecer sempre tão difícil negar alguma coisa a José ben Gamliel. A voz e o cheiro do mar aproximavam-se, e assim Lucano percebeu que a casa a que se destinavam ficava perto da água e seria, portanto, muito desejável. A imensa e branca lua olhava lá de cima, implacavelmente, para a cidade quente e fervilhante, sem lhe dar frescor. Agora, eles chegavam a uma parede lisa, branca e alta, toda iluminada, e um liberto bateu numa porta em arco. Ela se abriu, e para além de suas portas dormia o tranqüilo jardim banhado de luar, cheio de flores, árvores, relva, fontes, mas sem estátuas. O perfume das flores dos figos e dos jasmins veio em baforada para a rua. A casa, a uma pequena distância, era grande e branca, com ampla colunata e, lateralmente, com sacadas à maneira oriental.

Mesmo ali, entretanto, naquela tépida limpeza, o odor fétido e aromático do Oriente mostrava-se insistente, o odor não era desagradável; tinha mesmo um certo aroma de especiarias, e de incenso, e de terra extraordinariamente fecunda.

- É agradável, isto aqui disse Lucano, de má vontade, lembrando-se da enfermaria da universidade. - Este homem não poupa o seu dinheiro!

- Por que pouparia? Indagou José em voz razoável. - dinheiro foi feito para ser acumulado?

- Poderia ser usado com maior vantagem no auxílio a os desamparados, na construção de sanatórios para os pobres, em abrigos para os que não têm lar disse Lucano.

José ben Gamliel suspirou:

- Elieazar ben Salomão é conhecido por suas muitas caridades e por sua bondade, pois tem o maior dos corações, liberta todo escravo judeu que encontra e não descobrirás escravos em sua casa nem em suas muitas casas em muitas cidades. Quanto mais dá, mais Deus lhe dá.

As cortinas das janelas estavam afastadas, para que algum frescor pudesse entrar. Ali fora, nos jardins, tudo estava imóvel, quando os dois homens se aproximaram da casa. Rouxinóis cantavam à luz, e as canções eram ao mesmo tempo lancinantes e pungentes. Grilos trilavam. Em algum lugar papagaios esganiçavam-se Mas não havia humanas. As grandes portas de bronze estavam abertas para trás, e o vestíbulo a que elas davam acesso era de mármore alvacento, cheio de altas colunas, e iluminado por muitas lâmpadas de prata em suportes altos. Havia flores por toda parte, em vasos gregos e egípcios, pousados no chão.

A mais bela das jovens que Lucano jamais vira apressou-se a vir em direção de José, as mãos estendidas em afetuosa saudação. Era mais bela do que Íris, a mãe de Lucano, que o jovem considerara sem rival, mesmo no que se referia às mais belas estátuas. A moça parecia ter menos de vinte anos, provavelmente estava mais próxima dos dezesseis, e era tão leve, ainda assim tão bem-feita em suas roupagens azuis, que sua altura não se fazia imediatamente aparente. Parecia uma rainha e movia-se de forma régia, deslizando sobre o piso de mármore branco. A cabeça pequena e soberana deixava tombar tranças escuras e desfeitas, como seda ondulada, e o cabelo mostrava-se tão fino que dava a impressão de uma névoa vaporosa. O rosto oval era cor de pérola, translúcido e luminoso, como que interiormente aceso, e seus lábios mostravam um vermelho suave. O nariz era fino e delicadamente moldado, os olhos profundos e de um violeta brilhante. Usava colar, brincos e braceletes de pedras azuis cintilantes, engastadas em ouro finamente trabalhado. Delicioso perfume, como que de rosas, parecia exsudar de sua carne cor de neve, mais do que dos enfeites de seu cabelo. As vestes azuis arredondavam-se docemente sobre seus seios virgens, e sua cintura esbelta via-se rodeada com um cinto de ouro, onde também se inscrutavam pedras de um tom azul mais escuro. A seda drapejava sobre suas macias ancas jovens e roçava seus tornozelos delicados. Suas sandálias eram de couro dourado.

Ficou jubilosa ao ver José, e seu pescoço de brancura luminosa palpitou, como se estivesse se contendo para não estalar em lágrimas de alívio e gratidão pela presença do amigo. José tomou-lhe as mãos estendidas, apertando-as calorosamente e olhando a moça nos olhos, com amor paternal.

- Minha querida Sara disse ele, delicadamente -, espero que teu pai esteja passando melhor esta noite.

Sara não observara imediatamente que Lucano estava presente e mantinha-se ao fundo, encantado pela visão daquela beleza virginal que tinha um toque primaveril de pureza e adoráveis coloridos. O sorriso desapareceu do rosto da moça e seus lábios cobriram os dentes de branca porcelana.

- Não, ele não está melhor, José declarou ela, e sua voz era tão lamentosa e branda quanto o arrulhar de uma pomba. – Mas ficará feliz ao ver-te.

Como José, a moça falava aramaico. Seus cílios longos palpitaram e suas sobrancelhas castanhas, sedosas e brilhantes, pareciam flechas contra sua testa clara. Não precisava de artifício algum para pintar seus olhos ou usar nele o kohl[17], como não necessitava colorir de róseo as pontas de seus dedos. A natureza a havia agraciado com as cores mais sedutoras, vivas como as de uma flor.

José voltou-se para Lucano:

- Sara disse ele-, aqui está meu discípulo predileto, Lucano, do qual te tenho falado freqüentemente. Ele é grande médico e eu o convenci a vir ver teu pai.

Lucano estava de tal modo deslumbrado, enfeitiçado e estonteado com a visão de tão jovem e sobrenatural beleza, que se passaram alguns segundos antes que pudesse fazer uma inclinação cerimoniosa diante da jovem. Seu sangue grego saltou em adoração por aquela beleza e pensou numa estátua da jovem Hebe que vira certa vez num templo de Alexandria, pois Sara nascera para servir com amor e devotamento.

Isso estava evidente em seu ar de ternura e solicitude, em sua delicada humildade.

- Antes que vejais meu pai, José, disse ela, os olhos subitamente fixos em Lucano como que fascinados -, deveis ambos jantar e tomar um pouco de vinho.

- Beberemos o vinho, disse José, acompanhando a moça para um aposento que se seguia ao vestíbulo e que estava mobiliado com bom gosto, embora sem ostentação, cheio de flores de coloridos variegados. Também ali não havia estatuas. As paredes eram brilhantemente coloridas, de mosaicos que formavam florações, folhas torcidas e formas orientais estilizadas. As colunas eram de mármore amarelo, as lâmpadas de bronze corintio, o piso de quadrados brancos e pretos, sobre os quais espalhavam-se tapetes persas, que pareciam jóias tecidas.

- Mas devemos voltar às nossas casas para jantar, pois, em caso contrário, nossas famílias ficariam preocupadas conosco.

- Ah! Compreendo... Disse Sara, sem poder retirar os olhos de Lucano, que estava de pé, constrangido, no centro do aposento grande e fresco, alto e bonito como um deus. Depois   de um momento Sara teve um sobressalto e baixou os olhos, Seus belos seios ergueram-se rapidamente, depois abaixaram. Bateu palmas, e um criado entrou trazendo uma bandeja de prata na qual havia copos cravejados com muitas pedras preciosas diferentes. A própria Sara serviu o excelente vinho, que cheirava a vinhedos aquecidos ao sol. Como que fascinada, deu a Lucano o primeiro copo, em vez de entregá-lo a José, o mais velho.

Lucano tomou-o e seus dedos encontraram-se. O rapaz, a despeito de si próprio, sentiu como que uma descarga elétrica. Habituado às maneiras reservadas de Aurélia e de Íris, e das "antigas" mulheres romanas, estava pensando na liberdade e naturalidade daquela jovem.

Bebeu o vinho, que tinha um aroma e um gosto sedutores, e aborreceu-se consigo mesmo por ter apreciado a bebida. José, também bebendo, fazia perguntas à jovem, em relação ao pai, falando baixo. E ela respondia com notas de angústia na voz. Lucano ouvia encantado, o som da voz dela, tão dulcoroso, tão variado, tão eloqüente. De vez em quando, falando, ela relanceava os olhos, timidamente, para o jovem médico, e quando os olhos dele encontravam os seus, Sara corava profundamente.

Finalmente, os dois homens seguiram a jovem através de uma colunata aberta, cujas colunas eram prata e brilho sob luar. A moça afastou para um lado uma cortina de pesada renda oriental, e entraram todos num amplo dormitório, que brilhava docemente com as lâmpadas de prata, e cheirava a flores e a especiarias. Num grande leito esculpido em marfim, prata e ouro, jazia um homem de meia-idade, recostado em almofadas de seda, e um cobertor leve, de lã colorida, a cobrir-lhe os pés. Antes de Lucano ver-lhe o rosto, ouviu-lhe os arquejos desesperados em busca de ar, e seu espírito de médico esqueceu tudo, menos sua dedicação.

- Cumprimentos, meu caro Eleazar, disse José, aproximando-se da cama seguido por Lucano. José tomou a mão do amigo e curvou-se para ele, sorrindo com carinhosa preocupação, enquanto Sara ficava aos pés do leito, também sorrindo ansiosa para seu pai.

Eleazar tentou falar, mas sua voz, no meio da respiração alta, abafava-se e desaparecia. Tossia repetidamente.

- Repousa disse José. - Trouxe comigo o jovem médico Lucano.

Ergueu o corpo e olhou para o grego, chamando-o com os olhos.

Lucano aproximou-se, toda a sua vivacidade concentrada no enfermo.

Imediatamente, sem falar, viu que Eleazar estava no momento extremo. O negociante e mercador judeu mostrava-se um homem moreno, emaciado, tonalidade de chumbo na pele, dono de grandes olhos tristes onde havia o brilho da vida, apesar de seu estado agonizante. Suas feições lembraram a Lucano as de Diodoro, pois Eleazar tinha o mesmo perfil agudo de rosto e de expressão, e o jovem pensou novamente na estranha semelhança entre os judeus e os romanos.

Eleazar tentou sorrir polidamente para Lucano, mas estava extremamente agitado, apesar de sua prostração. Seus lábios, lóbulos das orelhas, bem como as pontas de seus dedos, mostravam-se cianosados. Um ar de profunda melancolia se estampava em seu rosto. A boca mantinha-se aberta, na tentativa de absorver o ar, e os estertores de seus pulmões faziam-lhe a respiração rascante e cheia de silvos. Lucano, sem falar, ergueu a túnica do homem, e inclinando a cabeça em seu peito encostou o ouvido sobre a região do coração. Sim, havia as extra-sístoles e fibrilação auricular; os sons pareciam abafados, curtos e fracos, entremeados com um ritmo inconstante.

O latejar deslocado do ápice ali estava, o ligeiro e rápido pulsar, a fraca, mas bem definida primeira bulha, com segundo e abafado som. O paciente sofria de grave crise cardíaca. Erguendo a cabeça, Lucano estudou silenciosamente, mais uma vez, o rosto dele, a cor mortal da pele, ouviu a tosse, que trazia um pouco de sangue aos cantos dos lábios moribundos, e notou o intumescimento aumentado e tóxico da glândula do pescoço. O jovem médico, então, ergueu um frasco que repousava sobre a mesa dourada de mármore, à cabeceira da cama, e cheirou o conteúdo, examinando-o. Franziu as sobrancelhas; o estimulante cardíaco que ali estava era forte demais.

Apesar disso, pouco podia ser feito agora pelo doente, e imediatamente a alma de Lucano se comoveu e esqueceu que Eleazar Bem Salomão era um homem rico. Tratava-se, apenas, de um homem atormentado pelo sofrimento.

Em aramaico, Lucano disse, delicadamente:

- Tivestes os melhores médicos? Não tentes falar; responde apenas com movimentos de cabeça. Penso que já deves estar doente há semanas. Deves ter tido indigestões, vômitos, náuseas e diarréia. - Calou-se, e depois, ainda mais delicadamente: - Compreendes quais são as tuas condições de saúde?

Eleazar, recostado em seus travesseiros, olhava intensamente para os lábios cheios e bem recortados, embora ascéticos, para o longo e bem-feito nariz grego; para a fronte em declive, e para os eloqüentes olhos azuis, agora repletos de compaixão, simpatia e bondade. Uma ansiedade passou pelo moribundo, uma luta para reunir as últimas forças. Seu olhar fixo penetrava na alma de Lucano com a intensidade peculiar dos que estão morrendo, e ele sorriu. Murmurou roucamente, com dificuldade:

- Sim, compreendo, e não me causa pesar, a não ser pela filha que precisarei deixar.

Olhou para Sara com profundo amor, e a moça rompeu em soluços. Ajoelhou-se ao lado da cama e colocou a cabeça sobre o ombro do pai.

- Na qualidade de médico disse Lucano nada posso fazer por ti.

E disse-o porque compreendia que ali estava um homem heróico, que se sentiria insultado com mentiras consoladoras.

- Estás para além do auxílio humano, Eleazar.

- Mas não além do auxilio de Deus, louvado seja Seu Nome - disse Eleazar.

- Louvado seja Seu Nome repetiu José ben Gamliel, com grande emoção.

O rosto de Lucano tornou-se novamente frio e distante. Voltou-se para José e disse:

- Não sei por que fui chamado. Apenas para repetir o que outros e melhores médicos já tinham dito a Eleazar ben Salomão?

- Não disse José. - Foi para ouvir a história dele e prometer ajudá-lo. Por que acredito que possas fornecer tal auxílio, não sei. Nós, judeus, temos, com freqüência, intuições espirituais, acima das razões racionais; além de qualquer explicação. - Seus olhos demoraram-se em Lucano, e ele alisou a barba.

- Ergue-me pediu o doente, e Sara e José suspenderam-no contra os travesseiros. Durante esse intervalo ele não retirou os olhos suplicantes do rosto de Lucano, como se soubesse que ali estava sua derradeira esperança.

- Ele deve descansar disse este -, não se lhe devia permitir que falasse.

Estava grandemente constrangido a propósito das palavras enigmáticas de José, pois sua mente grega, portanto lógica, rejeitava o sonoro misticismo dos judeus.

- Apesar disso, se eu puder ajudar Eleazar, ajudarei, embora tal forma de auxílio me seja desconhecida.

- Talvez não seja desconhecida de Deus disse José, e Lucano ignorou aquele comentário. Misturou o elixir do frasco com um pouco de vinho e chegou o copo aos lábios de Eleazar, que engoliu penosamente o conteúdo. A imensa glândula em seu pescoço parecia a ponto de estourar, abrindo a pele esticada e cor de chumbo. Lucano sentia a dor em sua própria garganta e a dificuldade de engolir. Sua cabeça começou subitamente a doer.

Eleazar disse:

- Preciso falar, pois tenho pouco tempo, e ouvi José bem Gamliel.

Jamais esse homem fez um comentário tolo. E há também em mim alguma coisa que assegura, jovem senhor, que me podes auxiliar. Ouve-me com atenção.

Parou para lutar novamente pelo fôlego, e o rosto de Lucano endureceu de angústia àquele som lamentoso.

- Há dois anos prosseguiu Eleazar, arquejante minha amada esposa, Rebeca, deu à luz nosso primeiro e único filho homem, nesta mesma casa. Morreu desse parto. - Seus olhos encheram-se de lágrimas que pareciam de sangue. - Dei o nome de Arieh, o leão, ao menino, e ele me consolava, pois realmente assemelhava-se a um jovem leão e era forte e belo. Tratava-se da alegria do meu coração.

Jamais em Israel houve criança mais adorável e eu o ofereci a Deus.

Apertou as palmas lívidas das mãos, uma contra a outra, num gesto convulsivo de angustioso desgosto.

- Meu tempo vai expirando arquejou. - Sara, não chores. Preciso falar. Jovem senhor, eu não tenho escravos, só homens e mulheres libertos, que me são devotados e à minha família. Um dia, duas moças, pajens, brincavam com Arieh, meu filho, neste jardim e pátio fechados, e da minha biblioteca eu ouvia o riso do menino. Então, percebi que, de repente, não havia mais vozes, nem mais alegria.

Deixei a biblioteca para saber o que acontecia. As moças jaziam entre flores, suas cabeças esmagadas e sangrentas, e meu filho desaparecera.

Parou e fechou os olhos, e a tortura daquela lembrança saltou-lhe para o rosto em grandes gotas de suor. Fez um gesto fraco e tornou a abrir os olhos:

- O prefeito da cidade tomou conta do caso. Eu tinha inimigos? Tinha tentado ser justo, honrado em minhas transações todas, e enriquecera muitíssimo. Isso teria levado amigos a conceberem inveja e ódio a meu respeito? É possível. Um homem pode guardar-se contra seus inimigos, mas nunca no que se refere a seus amigos, pois eles estão dentro de suas paredes. O prefeito, contra os meus protestos, prendeu alguns de meus bons empregados e mesmo chegou a torturá-los.

Como, perguntava ele, dois assassínios haviam sido cometidos dentro de muros guardados de jardins, e uma criança roubada sem o conhecimento dos outros servos? Os guardas do portão não deixaram entrar ninguém. Teria havido suborno? Isso era muito possível. Minha gente foi libertada por insistência minha. Jurara-me que não estava implicada no caso.

Lucano sentia-se tomado de cólera, esquecido de que Eleazar era um homem rico, e sentindo sua angústia em si próprio.

- Isso passou-se há dois meses disse Eleazar. - Meu filho Arieh só tem dois anos. Que fizeram eles com meu filho? Está morto, jazendo em algum ponto solitário do deserto, ou foi afogado? Não sinto isso em meu coração. Sei que ele esta vivo, e que aquele desaparecimento foi malícia deliberada, inspirada pelo ódio. Qual o amigo que subornou um servo para matar e roubar o pequenino? Ficara ele, às vezes, ao lado de minha cama, murmurando palavras consoladoras, bebendo meu vinho, confortando minha filha? É muito possível. Meus olhos cegaram de tanto investigar rosto por rosto. Quem é o amigo? Envolve-se em perversidade, portanto faz-se invisível.

Ergueu a mão esquerda e mostrou-a a Lucano. O dedo mínimo era estranhamente deformado, dobrado em curva aguda na segunda falange, de forma que passava por sobre o dedo anular.

- Esse dedo é a marca dos elementos masculinos de minha família disse ele. - Meu filho Arieh o tem. Isso o identificará. Parou de falar, mas seus olhos dolorosos não se afastaram do rosto de Lucano.

- Tu encontrarás meu filho, disse ele, com um leve sorriso.

Meu coração diz isso. Talvez não seja amanhã, nem dentro de um ano, ou de dez, vinte anos. Mas tu o encontrarás. Mandei anunciar imensa recompensa em todas as capitais do mundo, mas ainda não houve resposta, embora milhares e milhares de informantes, ladrões, soldados, marinheiros, escravos, bem como marítimos, estejam à procura movidos pela cobiça. As mãos de rapazinhos, multidões de rapazinhos em toda parte, têm sido furtivamente examinadas, em centenas de aldeias, cidades e comarcas, em becos, em cortiços, em ruas; nas casas dos poderosos e dos pobres. Tenho libertos pelo mundo todo, investigando boatos e enviando todos os relatórios. Mas ainda não há sinal de meu filho.

- É mais provável que esteja morto, disse Lucano, com tristeza.

- Não disse Eleazar, levando a mão ao peito. - Meu coração diz-me que ele está vivo, talvez escondido, mas vivo, com certeza. Eu saberia se ele estivesse morto. E, assim, tu o encontrarás, e o trarás para Jerusalém, a fim de que herde o que lhe deixarei, a meu filho que carrega no dedo a marca da família, a meu filho que se assemelha a um leão novo.

Lucano ficou silencioso, tanto por compaixão como por ódio contra Deus. Compreendia agora que Eleazar estava morrendo em conseqüência daquela angústia, daquele desgosto.

- Encontrarás meu filho disse Eleazar, e um sorriso de trêmula alegria passou-lhe pelo rosto. - Ele voltará para a sua gente e para sua irmã e para as portas de Jerusalém.

Lucano achou aquilo despropositado. Abriu a boca para protestar, depois silenciou, sem saber por quê. Finalmente disse, enquanto Eleazar o observava:

- Sou médico, e estarei sempre entre os pobres, que não têm amigos nem consoladores, e não podem pagar uma consulta. E procurarei teu filho. É tudo quanto posso prometer.

- É o bastante disse Eleazar, estendendo sua mão trêmula para Lucano, que lhe sentiu a úmida algidez. O rosto de Eleazar, ao toque dos dedos de Lucano, sofreu mudança extraordinária. Um ar de maravilhosa paz instalou-se nele; uma cessação de suas dores. Seus olhos fecharam-se, sua respiração irregular abrandou-se, enquanto Lucano lhe segurava a mão, e tornou-se ainda mais lenta, de momento para momento. E então aquela respiração cessou e apenas um rosto ligeiramente sorridente, rígido e cadavérico, permaneceu.

Sara ergueu-se com um soluço despedaçador e ficou de pé ao lado da cama. As lágrimas rolavam-lhe pelas faces pálidas. Cruzou as mãos e estremeceu.

José bem Gamliel disse, em voz alta e reverente:

- O Senhor dá e o Senhor Deus tira. Louvado seja o Nome do Senhor.

- Louvado seja o Nome do Senhor repetiu Sara, através de lágrimas.

Lucano pousou a mão morta, com amorosa delicadeza, mas em seu coração havia uma cólera e uma dor que lhe causavam náuseas. Relanceou os olhos, que faiscavam violentamente, para José bem Gamliel. Como era possível que um homem sábio e erudito louvasse o nome do mortífero inimigo de todos os homens, considerou pusilânimes e fracas as palavras de José, as palavras de um escravo servil sob o chicote. Teve nojo, e sua cabeça estonteou, de furiosa dor e aversão.

Girou nos calcanhares e deixou o aposento, caminhando rapidamente através da colunata e deixando a casa.

 

É perigoso andar sozinho pelas ruas de Alexandria, durante a noite, e Lucano afrouxou a lâmina de sua adaga, no cinturão. Medo não tinha; era atleta, alto e forte, e não estava longe de casa. Mantendo a mão no punho da adaga e caminhando rapidamente, cheio de fervente sensação de cólera e piedade, puxara o capuz de sua capa branca sobre a cabeça e deixava que flutuassem atrás de si as suas roupagens. Descia as ruas tortuosas, pelo centro delas, evitando os resíduos espalhados, sem ver ninguém que por ele cruzava, as narinas cheias de fedentina, do picante e aromático odor da cidade, coração e mente consumidos pelos pensamentos que levava. As tochas metidas em seus soquetes das paredes salpicavam sua figura com uma luz vermelha que saltava e morria, alternadamente. A grande lua branca e luzente corria sobre ele em lençóis de fogo prateado, e tão formidável e poderoso era o seu aspecto, que rostos furtivos a espiar das arcadas e dos limiares das casas pestanejavam e retraíam-se, como se tivessem visto uma aparição caminhando a passos largos.

Lucano não estava consciente dos gritos e exclamações distantes, nem da música e risos, nem de todos os tumultuosos arquejos e sons à cidade tórrida. Tinha consciência apenas dos pensamentos turbulentos, da piedade por Eleazar e pela jovem Sara, e de sua ira contra Deus, que sem cessar traía e perseguia, em Sua vingança insone contra o homem. Pensava na criança, Arieh, que estava morta, ele tinha certeza, assassinada com malícia e ódio. E agora, pela primeira vez, Lucano revoltava-se contra a perversidade dos homens; contra sua crueldade e impiedade; contra sua avidez e inveja; contra sua sede de sangue e desmesurada dureza de coração e contra os crimes que cometiam em relação a seu próximo. Ali estava outro inimigo, além de Deus; o próprio homem. Naqueles terríveis momentos, Lucano odiou tanto Deus como os homens, e sentiu-se nauseado de sua própria existência, de sua presença no mundo da humanidade, O universo era perverso em seu âmago, e as próprias estrelas mostravam-se manchadas com as nódoas da vida. Tudo aumentou, distorceu-se e inclinou-se aos ardentes olhos do jovem grego. Estava embriagado de cólera. Quando um homem que passava esbarrou nele, sua mão apertou o cabo da adaga, e pela primeira vez em sua existência ele lançou uma praga violenta. E o homem fugiu aterrorizado, vendo a adaga fora da bainha e sentindo, mais do que vendo, uma raiva maior do que a raiva humana, consciente de olhos que fulguravam, mesmo sob o abrigo do capuz, e que ultrapassava a raiva dos homens.

Os pés de Lucano, calçados com sandálias, soavam sobre as pedras como as passadas de um deus. Sem pensar conscientemente, a não ser que procurava caminho mais curto através de um beco para alcançar sua casa, entrou por uma rua escura e estreita, iluminada pela luz de uma só tocha colocada logo à entrada e pelo reluzir do luar. Muros altos fechavam a rua e subitamente tudo ficou muito quieto ali, sinistramente quieto. O único som próximo era o borbulhar de água suja na sarjeta. E a fedentina dominava. Lucano continuou a descer a rua, depois parou. Defrontava-se com uma parede alta. A rua não tinha saída. Olhou em torno de si para as formidáveis paredes que o haviam como que apanhado em armadilha. Estava sozinho, ali; nada podia ver a não ser os vultos escuros dos andares superpostos e sem luz das casas que ficavam para trás daquelas paredes. Ninguém falava ou gritava; era um lugar morto.

Bufando de cólera, percebeu que se perdera, momentaneamente. Teria de retraçar seus passos até o início da rua e olhar em torno de si.

Tornou a soltar aquela blasfêmia, em tom baixo e violento. Talvez houvesse uma porta na parede que tinha pela frente, o que o permitiria entrar num pátio e daí para a outra e menos perigosa rua. Com o auxílio do luar e de seus dedos sensíveis, explorou a parede, e então, na junção da extremidade da parede e da parede da rua, sua mão caiu sobre um ferrolho. Levantou-o, uma porta abriu-se, estreita e pequena, e Lucano viu um pátio calçado de pedras lisas, rodeado das habitações coletivas que se foram delineando, as habitações onde viviam os muitos pobres da cidade. Mas as janelas estavam cerradas e sem luz, e as portas fechadas com trancas. No centro do pátio havia um poço redondo, comunitário, construído de pedra escura. Não havia flores desabrochando, ali, não havia perfume de rosas, jasmins ou lírios para o cheiro azedo da pobreza, do medo e da morte. A luz do luar, Lucano podia ver as casas sórdidas fazendo círculo ao pátio, e observou que ali não havia saída para qualquer outro beco ou rua. Fechou a porta; deixou tombar o ferrolho e recomeçou a subir até a extremidade do beco que o aprisionava.

Percebeu que havia água malcheirosa, silêncio, paredes ameaçadoras e ia apertando a mão, fortemente, sobre o punho de sua adaga. A tocha crepitava, avermelhada e fraca, lá na ponta. Estava junto da esquina quando ouviu o rápido ruído de pés ainda invisíveis que se aproximavam. Parou bruscamente. O som de uma corrida despertou todos os seus prudentes instintos. Pensou que as pessoas fugitivas podiam ser ladrões, escapando a uma perseguição.

Então, um homem e uma mulher viraram a esquina e correram em sua direção, os pés impulsionados por um terror palpável, as cabeças olhando para trás dos ombros. Lucano podia ouvir as respirações arquejantes, no silêncio intenso, e o tropeçar da mulher sobre as pedras.

Estavam quase a esbarrar em Lucano, antes de o terem visto, quando estacaram no ímpeto da corrida, olhos fixos nele, os globos oculares reluzindo, como os de animais aterrorizados, à luz do luar. Se Lucano tivesse saltado de seu lugar para surpreendê-los, não se mostrariam mais apavorados. O capuz do seu manto havia tombado sobre os ombros e a luz arrancava reflexos dourados de sua cabeça, enquanto as feições rígidas e lisas de seu rosto pareciam as da face de uma estátua. O homem e a mulher recuaram, pois algo havia no altaneiro aspecto de Lucano que lhes sufocava a respiração na garganta, e seus olhos cansavam-se a examiná-lo.

Lucano notou que eram jovens e imediatamente percebeu que não se tratava de criminosos, embora o homem estivesse vestido com adejastes farrapos e seus pés se mostrassem descalços. Não tinha capa, nem armas. A roupa da mulher era boa, modesta e respeitável, e de um tom roxo escuro, com cinto de prata. Trazia nas orelhas argolas também de prata, brilhando como jóias simples, e em seus braços tilintavam vários aros de prata. Tinha os pés calçados.

- O que houve? Perguntou Lucano rapidamente, em grego.

Eles não responderam, e o moço repetiu a pergunta em egípcio. A mulher estalou em soluços desvairados, depois atirou-se de joelhos diante de Lucano e agarrou-se às suas vestes.

- Ajuda-nos, senhor! Exclamou ela, gemendo baixinho. O jovem mantinha-se de lado e não podia tirar os olhos de Lucano. Mas encolhia-se e tentava cobrir o corpo com seus farrapos.

Então, Lucano ouviu muitos passos de perseguidores que corriam e que se aproximavam da rua; e viu o clarão vermelho das tochas que eles levavam. A moça gemeu e instintivamente apertou a fronte contra Lucano, enquanto de novo lhe suplicava auxílio. Mas o jovem disse, numa voz curiosamente rouca:

- Asah, vai com este homem, e ele te ajudará a escapar. Deixa-me, Asah! Volta para nossos filhos!

A moça apenas tornou a gemer.

- Não! Ficarei contigo para sempre soluçou ela. – Morrerei contigo.

O som dos perseguidores se aproximava e despertou Lucano.

Fez a moça levantar-se e disse ao jovem:

- Vinde comigo! Depressa!

Agarrou a mão da moça e correu com ela em direção à parede da retaguarda e o homem seguiu-o. Encontrou a porta, abriu-a, empurrou os dois lá para dentro, e disse, baixinho:

- Ficai aqui. Eu os distrairei.

Tremendo, eles ficaram por um momento a olhá-lo, e de novo sentiram-se estranhamente impressionados com o que viam. Então a porta fechou-se e ficaram sozinhos.

- Ele se parece com Osíris[18] murmurou a moça, juntando as mãos e deixando-se cair sobre a borda do poço. O homem não se aproximou dela, mas se afastou contra o lado das casas circulares e fechou os olhos.

- Viste o rosto dele! Continuou a moça, inclinando a cabeça.

- Psiu! Querida... disse o homem, mantendo-se sempre afastado dela.

Lucano subiu rapidamente a rua, e então um grupo de homens e soldados apareceu na entrada e hesitou, erguendo as tochas altas e blasfemando. O jovem grego retardou o passo e aproximou-se deles calmamente. Os homens começaram a descer pelo beco, mas viram-no aproximar-se e pararam. Lucano caminhava com dignidade e segurança, como um nobre caminha, a adaga na mão. Olhou para os soldados suarentos, metidos em armaduras, e falou com a linguagem autoritária de Roma:

- Quem estás procurando? E dirigia-se apenas ao centurião.

- Sou Lucano, filho de Diodoro Cirino, de Roma, e médico.

A luz da tocha iluminou os rostos da turba que rodeava os soldados e Lucano pôde ver os olhos desvairados, as bocas selvagens e as clavas levantadas que dançavam naquela luminosidade vermelha. Silêncio pleno tombou entre os perseguidores, e então o centurião deu um passo à frente, levantou a mão, respeitosamente, e falou, os olhos cogitativos:

- Senhor, estamos procurando um homem e uma mulher, um homem e sua esposa. Correram diante de nós! Tu os viste?

Lucano parou. Não costumava mentir. E disse:

- Vês que estou só, e não há ninguém aqui comigo. Além disso, é uma rua sem saída. Observa aquela parede no fundo. Estava voltando para casa, e perdi-me. Agradecerei a escolta de um dos soldados, pois esta cidade é perigosa.

Seu único pensamento era afastar os soldados e a turba daquela rua, de forma que o homem e a mulher pudessem escapar mais tarde.

O centurião saudou-o.

- Senhor, um dos meus homens te acompanhará. Nesse entretempo, devemos procurar aquelas pessoas até que as encontremos.

- São ladrões? Indagou Lucano. E defendia as narinas contra o odor impregnante de suor e violência que envolvia os perseguidores.

- Não, senhor. O homem é leproso.

- Leproso?

Lucano ficou a olhar para eles.

- Sim, senhor, chama-se Sira. Há alguns meses foi expulso da cidade, lançado no deserto. Sabes que é obrigatória a morte para o leproso que volta depois de ser exilado para viver nas cavernas. Entretanto, esta noite alguns de seus vizinhos viram-no espiando, através da janela, sua casa que fica a algumas quadras de distância daqui, contemplando sua esposa e filhos. A mulher, Asah, vive com seus pais, e seu pai é um lojista de alguma prosperidade. Os vizinhos deram o alarma. Como médico, senhor, compreendes que um leproso que volta não é apenas uma ameaça, mas deve morrer, pois rompeu a lei e pode contagiar outros.

- Sim, compreendo disse Lucano, cujos pensamentos se iam fazendo selvagens. Fremiu, e imediatamente seu coração encheu-se de uma piedade calorosa e de tristeza ao considerar a situação de Sira; desejava apenas lançar um olhar para sua esposa e seus filhos, mais uma vez, antes do exílio eterno e da morte. E disse: - Como foi que a mulher soube da presença do marido ali fora, na janela?

O centurião respondeu, pacientemente:

- Ela ouviu os gritos da vizinhança, os seus gritos de alarma, e correu com ele, sabendo que o homem tinha de ser morto imediatamente.

O centurião sacudiu a cabeça:

- As mulheres não têm inteligência, senhor.

Não, têm apenas amor, pensou Lucano.

Embainhou sua adaga. Não sabia o que fazer, mas devia fazer algo. Refletiu que Sira apenas desejara ver a família. Era evidente que não tinha a intenção de permanecer na cidade ou sequer de permitir que sua esposa tivesse conhecimento de sua presença. Aquilo significava que, se os vizinhos não o tivessem visto, ele teria partido silenciosamente, sem nada dizer, como viera, retornando à sua morte em vida, e sofrendo no deserto. Precisava ter aquela oportunidade, embora a morte fosse melhor do que a vida para um leproso. Ainda assim, havia a esposa a considerar. Ela devia ser poupada ao espetáculo da turba sórdida caindo sobre seu marido, e trucidando-o diante dos seus olhos. Lucano sentia o cheiro da volúpia do sangue naqueles homens, a ânsia de esmagar, de destruir, de pisotear, e foi aquela volúpia que o decidiu.

E falou:

- A situação é muito séria, meu bom centurião. Por isso, não quero privar-te de um só homem nessa tua busca. Sou médico, compreendo a gravidade do assunto. Não moro longe daqui. Nesse tempo, aquele desgraçado está fugindo. Vai, imediatamente, em procura dele.

O centurião hesitou. O filho de Diodoro Cirino era homem importante e reverenciado, e um médico. Deveria ser protegido. Mas Lucano era muito mais alto do que ele, jovem e forte, e estava armado.

O centurião sorriu, saudou-o, e soldados e homens apressaram-se a subir rua acima, com as bandeiras carmesins de suas tochas, desaparecendo, em avalancha ruidosa.

Lucano esperou até que a rua se fizesse novamente silenciosa.

Nem uma só luz havia aparecido nas janelas escuras que se erguiam sobre os muros, nem um só estranho surgira, nenhuma porta escondida se abrira, apesar do ruído. Aquele lugar era escuro e sinistro, e os moradores se haviam mantido em paz, discretamente, dentro de suas casas e de suas paredes. Lucano voltou, cautelosamente, à porta, olhou de um e de outro lado da rua, depois ergueu o ferrolho e entrou, calado, no pátio circular.

Asah estava sentada no paredão baixo do poço, chorando e lamentando-se. Sira mantinha-se a distância, fugindo ao luar, suplicando à esposa, em voz abafada, que cessasse com aquelas lágrimas.

Nenhum deles percebeu a presença de Lucano, que ficou dentro das trevas profundas, junto da porta fechada.

- Ah! Meu querido chorava a jovem -, se ao menos, como médico que és, não tivesses tentado curar os leprosos! Mas tu, tão misericordioso, tão terno, tão bom, quiseste atendê-los, e quiseste sacrificar por eles nos templos. Quiseste escondê-los das autoridades, em tua compaixão sem remédio. "Não são humanos, e sangue do meu sangue, meus irmãos, o latejar do meu coração?" Isto dizias, meu muito querido. Mas os deuses e os homens não conhecem justiça, e a horrível doença veio dos que a sofriam para ti. Pensaste em tua esposa e em teus filhos pequenos? Não. Tu me disseste que o médico é dedicado a Um, maior do que nós, que jura um juramento sagrado, que é de amar a humanidade e aliviar-lhe os sofrimentos. E em vingança, os deuses te enviaram esse monstruoso horror e arrancaram-te de junto dos braços de tua esposa e dos beijos de teus filhos!

Sira gemeu:

- Não traí meu juramento. Se os deuses traíram-me, esse é um crime que a eles diz respeito.

A moça ergueu o rosto pálido para a luz, e seu cabelo escuro desenrolou-se em desordem sobre seus ombros. Suas lágrimas tornaram-se como que gotas de mercúrio.

- Ah! Sim murmurou ela. - É verdade que os homens são às vezes melhores do que os seus deuses. Eu teria conseguido que voltasses as costas aos sofredores? Não o acredito, agora. Que pode um homem fazer, senão aquilo que é o seu dever?

Levantou-se, dirigiu-se para o marido, os braços estendidos lastimosamente para ele. Mas o homem exclamou, repelindo-a:

- Imundo! Imundo!

- Não para mim, não para mim, Sira. Sou tua esposa. Onde fores, irei. Onde viveres, viverei. Que são filhos e pais para uma esposa que ama seu marido? Nada são, nem mesmo fantasmas, quando ela ouve a voz de seu esposo. Morarás numa caverna? Pois numa caverna viverei, também. Comerás o pão da caridade? Desse pão também eu comerei. Se dormires com as raposas e com os abutres selvagens, também eu dormirei, e tua cama será a minha cama. No mundo nada há para mim senão tu, e não há mar, nem morte, nem sangrenta mão de homem, nem ódio de deuses que nos possam separar.

Sira estendeu as mãos, desesperadamente, para mantê-la a distância.

- Eu te imploro, meu amor, não te aproximes de mim! Em nome dos deuses, mantém-te longe de mim! Não, não irás comigo para morreres como leprosa, para uma campainha que avise os demais que não se devem mostrar amigos, para apodrecer, e sangrar, e tornar-te entorpecida, e cega, e cheia de chagas. Amei tua doçura e tua beleza. Devo morrer relembrando o que fiz de ti?

- Devo morrer eu, sim, lembrando-me de que desertei de teu lado, eu, que jurei jamais deixar-te? - A mão dela estendia-se, mas o homem apertava-se contra a parede, como um réptil, rastejando ao longo dela e fazendo um ruído rascante.

- Deves torturar-me, Asah, com a visão de teu rosto amado e leproso? Vai, suplico-te. Vai e esquece-me. Eu estou com os mortos. Eu morri. A coisa apodrecida que vês não é o teu marido. És jovem. Casa-te novamente e tem outros filhos, e chora por mim, mas não me recordes por muito tempo.

- Em meu coração a lembrança viverá para sempre. Não me expulses de junto de ti, Sim. Deixa-me beijar-te. Deixa-me beijar teus lábios mais uma vez.

Asah chorava, e o som leve de seu pranto enchia o pátio com os ecos mais desoladores. A moça seguia-o lentamente, uma perseguidora trêmula de amor e devotamento.

- Não! Gritou Lucano, saindo de entre as sombras. – Teu marido tem razão. Não deves tocá-lo!

Sira e Asah sobressaltaram-se ao som daquela voz, e ficaram a olhar para o jovem, sem nada dizer. A cabeça dele erguia-se sobre os ombros largos como a cabeça de um deus, belo e terrível em sua beleza. Asah levou a mão aos lábios e manteve-se imóvel, o vento da noite sacudindo-lhe os cabelos soltos, como uma flâmula. Sira olhava longamente para ele, lá das trevas, os olhos ardentes. Lucano aproximou-se dele, tomou-o pelo ombro e puxou-o para a luz do luar, examinando-o de perto e rapidamente.

- Sou médico disse Sira, em voz quebrada. - E tenho lepra.

Não havia dúvida. A aparência leonina da moléstia já se materializara nas feições de Sira. Trechos eritematosos, de tons azul-avermelhados e de um castanho-amarelado, marcavam-lhe o rosto. Aqui e ali, em sua testa e em seu pescoço, lesões ulcerosas exsudavam soro e pus. Sua voz rouca traía a invasão da laringe. Mesmo suas mãos revelavam a repugnância da moléstia, e dois ou três dedos já estavam gangrenados.

- Como são impiedosos os deuses disse Asah, seus braços trêmulos estendidos para o marido. - Meu Sira é o mais delicado dos homens, O mais devotado deles. Entretanto, deve morrer se não fugir da cidade sem ser visto. Mas se ele deve morrer então eu morrerei com ele, bom senhor.

- Senhor, leva-a para longe de mim implorou Sira. - Leva-a para nossa casa. Porque, seguramente, ela se perderá se demorar mais tempo.

Lucano foi tomado de um verdadeiro êxtase de ódio, desespero e piedade. Agarrou Sira pelos ombros, em suas mãos fortes, e fechou os olhos, dirigindo-se silenciosamente a Deus, mas com fúria.

"Oh! Tu que assim atormentaste este homem que apenas desejava salvar tuas vítimas de Tua ira! Deves para sempre golpear os que ajudam os aflitos, os que são inocentes, os que não têm malícia nem perversidade? Deves sempre reservar Teus sorrisos para os vis e seus filhos, e Tuas bênçãos devem ser derramadas sobre os que não procedem com retidão? Por que não nos destróis e não nos deixas ter paz na sepultura sem dias, cobertos pela noite misericordiosa, longe de teus olhos vingativos? Que Te fizemos para merecer Teu ódio, Tu que não tens os olhos, os membros e o sangue dos homens, e não és da carne deles? Sangras, como os homens sangram? Teu coração treme como treme o coração de um homem? Sofreste dor, ó Tu que infliges a dor? Amaste como os homens amam, geraste um filho, para que pudesses chorar por ele?"

Sira e a esposa estavam de pé, imóveis, seus ouvidos esforçando-se. Não ouviam voz alguma, mas, vagamente, tinham consciência de que algo muito terrível estava soando naquele lugar batido de luz da lua, naquele lugar silencioso e fétido. Viam o rosto contorcido de Lucano, seus olhos fechados, seus lábios entreabertos, entre os quais os dentes luziam como o mármore.

De novo ele se dirigiu a Deus, na desvairada amargura e angústia do coração:

- Oh! Se fosses misericordioso, em Teu ilimitado poder, curarias este desgraçado e o devolverias à esposa e filhos! Se possuísses um frêmito apenas de piedade humana retirarias dele a moléstia e o deixarias perfeito. Eu serei maior do que Tu, mais misericordioso do que Tu? “Juro-Te, por tudo que tenho de mais querido, que se eu pudesse tomaria sobre mim as lesões desse horror, no lugar desse homem, e fugiria para sempre em direção do deserto, lembrando-me de que tinha salvo um homem, sua esposa e seus filhos.”

Sira sentia as mãos de Lucano em seus ombros magros, e pareceu-lhe que uma força estranha e temível emanava dos dedos do jovem como um fogo frio que jorrasse. A força impregnou-lhe o corpo, percorrendo-lhe os ossos, ondulou sobre sua carne, fez com que a espinha e seus cabelos se arrepiassem. Era como se um corisco o tivesse atingido. Não podia respirar nem se mover. Encostou-se às mãos de Lucano e seu coração esmagou-se, estalou em sons contra seus ouvidos, como que de tambores não terrenos. Pensou: Estou morrendo! E a luz do luar apagou-se de seus olhos e tudo se fez trevas diante deles.

- Não sou Deus! Exclamou Lucano, de dentro de seu coração. - Sou apenas um homem. Entretanto, tenho piedade. Oh! Sê misericordioso! Tu! Oh! Sê misericordioso!

Agarrou Sira contra o peito e abraçou-o estreitamente e suas lágrimas tombaram sobre as faces e caíram sobre a testa do outro homem. E Asah, compreendendo vagamente que algo acontecera para além da compreensão humana, tombou aos pés de Lucano e encostou a cabeça contra eles.

Lucano, então, sentiu certa virtude tremenda abandoná-lo, como sangue que escoasse, e misteriosa fraqueza sacudiu-lhe o corpo. Delicadamente, com mãos trêmulas, afastou Sira, suspirando.

- Toma o meu manto, que tem capuz disse-lhe. – Esconde nele teu rosto. Aqui tens minhas sandálias.

Curvando-se, retirou suas sandálias e colocou-as junto dos pés do leproso.

- Aqui tens minha bolsa, minha adaga. Ninguém te reconhecerá nem te encontrará. Vai para longe da cidade e não voltes. E se há um Deus, vai na Sua paz.

Atirou o manto sobre os ombros de Sira e colocou-lhe nas mãos a bolsa e a adaga. Ficou de pé diante do marido e da mulher com os pés nus, vestido apenas com sua túnica amarela. E eles olharam-no e não podiam falar, de estupefatos e gratos, e parecia-lhes que o jovem fosse o próprio filho de Íris.

Lucano voltou-se, abriu a porta e saiu para a rua fétida. Uma pedra cortou-lhe os pés e ele não sentiu a dor, cego pelas lágrimas. Caminhou, cambaleante, mergulhado em desgosto e tristeza.

Durante muito tempo Sira e Asah não se moveram nem falaram. Ficaram sob o luar como estátuas esculpidas de si próprios, mudos de espanto. Então Asah tornou a aproximar-se do marido com braços estendidos, e ele a repeliu.

- Imundo murmurou, e fez com que ela visse seu rosto e braços, claramente, à luz.

Asah soltou um grito agudo e alto, depois caiu desmaiada sobre as pedras, como que abatida por um golpe. E Sira olhava para seus braços e via que estavam inteiros, limpos, sem qualquer sinal. Estonteado, moveu-se e examinou-os, e não havia marcas ali. Pôs as mãos nas faces e na testa e elas se mostraram lisas e macias como a carne de uma criança, e quentes, cheias de sensações.

Olhou para a porta fechada, através da qual Lucano desaparecera. Caiu de joelhos junto da esposa desmaiada, e ergueu as mãos em prece:

- Oh! Louvadíssimo! Murmurou. - Oh! Tu, que nos visitaste!

 

Cusa olhava para Lucano, consternado:

- Não é possível, senhor! Exclamava ele, agarrando a própria cabeça entre as mãos. Seu rosto malicioso de sátiro, com as bochechas gorduchas e a barba pequena, os olhos cheios de humorismo e o nariz insolente, havia empalidecido de horror.

- Sinto muito disse Lucano. Com paciência. – Tentei explicar; não há necessidade de mais um funcionário médico em Roma, que está cheia de hospitais modernos. Sim, compreendo que a Assembléia Pública me nomeou, graciosamente por ordem de Diodoro, e com um estipêndio considerável. Mas um médico não deve ir para onde mais necessitam dele? Hipócrates disse isso, e eu jurei por ele.

Meu trabalho será entre os pobres, os oprimidos, os abandonados, os moribundos, os desesperadamente doentes, para os quais não há assistência nas cidades que ficam ao longo do Grande Mar. Tratarei de escravos e dos que vivem em pobreza irremediável, e não pedirei pagamento, a não ser dos ricos senhores de escravos. Irei visitar as prisões e as galés, as minas e os cortiços, os portos e as enfermarias para indigentes. Esse é o meu trabalho e não me posso desviar dele.

- Mas por quê? Indagou Cusa, incrédulo.

Lucano sentou-se na cama do simples quarto branco de dormir onde se acomodara, e ficou a olhar longamente para suas próprias mãos, compridas e pálidas.

- Eu te disse falou. - Devo ir para onde sou necessário.

Cusa balançou a cabeça entre as mãos. Lucano teria enlouquecido? As Fúrias vermelhas teriam posto em desordem a sua mente? Flécate o teria visitado durante a noite? Por todos os deuses, aquilo não era coisa que se entendesse ou que se suportasse! E Cusa falou, sensatamente, como se fala com um homem atacado de insanidade.

- Senhor, tua família precisa de ti. Teu pai adotivo orgulha-se de ti, e ele é o mais orgulhoso dos romanos. Tua mãe há anos que não te vê. Teus irmãos jamais te viram. Que se dirá de Diodoro se seu filho adotivo for um indivíduo errante, tratando da escumalha da terra em cidades quentes e bárbaras, em estradas e atalhos? Isso é bom bastante para um médico escravo, mas não para o filho de Diodoro Cirino. Que dirás a Diodoro, e à tua mãe? Eles ficarão envergonhados diante de Roma.

Lucano sacudiu a cabeça.

- Não tenho palavras que te alcancem Cusa, ou que afastem a névoa de tua perplexidade. Chega. Tu e tua família ireis comigo amanhã para Roma, para as propriedades de meu pai. Ali, sereis felizes.

E sorriu afetuosamente para seu velho professor.

- Minha falta de compreensão é suave, diante da falta de compreensão que Diodoro demonstrará, senhor.

- Eu sei.

Lucano franziu as sobrancelhas, depois sorriu, recordando o belicoso romano.

- Mas farei o que devo.

- Não sabes o que é a pobreza, senhor! Quando fores um médico mendicante, derivando de um porto para outro, pois, com certeza, dadas as circunstâncias, Diodoro não te sustentará com seu dinheiro parcimonioso, então descobrirás o que é ter fome, estar sujo e sem lar, vestir farrapos. Não acharás deleite nessas coisas, Lucano, tu, cuja carne foi cuidadosamente alimentada e assistida e vestida em linhos e lãs finas. Lucano, esclarece-me: que vem a ser essa loucura? Que são um escravo, um pobre ou um criminoso? Menos do que seres humanos.

Seria melhor para ti tratar cães e outros animais dos patrícios ricos em Roma! Isso daria menos vergonha e tristeza a Diodoro!

Lucano refletia. Como podia ele dizer a Cusa: "Devo libertar os atormentados de seu Inimigo?" Cusa teria completa certeza, então, de que ele estava louco.

O outro observava-o de perto. Explodiu então:

- Foi aquele maldito José ben Gamliel! Eu ouvi quando ele falava contigo nos jardins. Senhor, os judeus são incompreensíveis, com seu Deus misericordioso. Seus Mandamentos, e suas ridículas leis para relações equânimes entre os homens. Tudo isso não passa de superstição, é deplorável, pois faz a vida mais sombria ainda. Já viste um judeu de rosto feliz? Já ouviste os risos das festas romanas e a despreocupação das danças romanas na casa de um judeu? Não, isso        são coisas só para os bárbaros romanos! Não acrescentou Cusa - que eu considere os romanos muito mais do que bárbaros. Mas, pelo menos, são homens de fibra e sangue e têm adequado respeito pelas artes da Grécia, embora não passem de filhotes de lobo. Os romanos são realistas. Os judeus tratam com superstições transcendentes. Falam de liberdade, o que é absurdo. Esperam o impossível de seu Deus, e uma pessoa de senso compreende que os deuses nunca tratam do impossível. E nunca se espera deles grandes virtudes.

Lucano falou, encolerizado:

- Eu não acredito que Deus seja misericordioso e bom! Não acredito no que José ben Gamliel diz Dele! Poupa teu fôlego, Cusa. Preciso ir despedir-me de meus professores.

Cusa, ofendido, ferido e perplexo, compreendeu que tinha sido despedido dali e foi procurar a esposa. Calíope ouviu-o enquanto amamentava a filha, revelando um semblante meditativo. Depois, ergueu os ombros:

- Sempre achei Lucano extraordinário disse ela.

Lucano não tinha pena de deixar Alexandria. Desde que Rúbria morrera ele não se sentia ligado a lugar algum do mundo, nem tinha desejo de visitar qualquer deles, ou de viajar como um jovem rico. O mundo, para ele, era um hospital, cheio de gemidos. Nem a beleza da arquitetura nem a música tinham o poder de aliviar o desgosto infinito. Na noite anterior, porém, sonhara com Sara bas Eleazar, Sara, cujo pai fora enterrado na véspera. O sonho fora dos mais confusos. A moça procurara-o, correndo através de um campo florido, rindo docemente, e quando o alcançou seu rosto era o de Rúbria, faiscante sob o sol da primavera. Seu cabelo escuro caíra da fronte branca, e Lucano Sentira um arrebatamento de completa beatitude e júbilo. Então, vira o violeta dos olhos dela e a dor voltara. Em seu sonho, não sabia por que, dissera à moça, em tom indagador: "Rúbria?" E ela respondera, a voz dulcorosa: "Amor." O rapaz sacudira a cabeça: "Não há na minha vida lugar para o amor. Não amarei de novo, pois o amor é como uma serpente que tivéssemos no coração, cheia de veneno e de agonia." Ela se afastara, então, olhando tristemente para seu rosto, até o último instante, como que indagadora e dolorida. E as flores se haviam erguido, escondendo-a aos olhos dele. Então Lucano sentira de novo o velho desgosto e acordara gritando.

Lembrava-se daquele sonho enquanto arranjava em sua grande bolsa de médico, feita de couro, seus preciosos instrumentos cirúrgicos: bisturis, fórceps, serras de amputações, sondas, seringas, trépanos. Cada instrumento, feito de ferro cuidadosamente trabalhado, e perfeito, fora envolvido por ele num pano de lã impregnado de óleo de oliva, a fim de protegê-lo de ferrugem. Havia também instrumento mais antigo e grosseiro de cobre ou bronze. Também esse ele colocou delicadamente na bolsa, envolvido em suas capas. Acrescentou vários de seus preciosos livros de medicina, certa quantidade de ligaduras num invólucro de seda, e alguns frascos de remédios especiais, vindos do Oriente. Cusa tomaria conta de seus objetos pessoais, que eram poucos. Lucano examinou-os para ver o que poderia dar aos pobres e aos desvalidos da enfermaria da escola de medicina. Uma pequena bolsa tombou no chão, caindo de uma peça de roupa, e produzindo som pesado. O moço inclinou-se, apanhou-a e abriu-a. A cruz de ouro que Keptah dera a Rúbria estava em sua mão, a corrente tilintando.

Lucano sentiu um súbito fervor de desespero, e desejou atirar a cruz para longe de seus olhos. Mas Rúbria a apertara na mão no instante de sua morte. Não se lembrava de ter trazido aquilo para ali.

Esquecera-o. Agora, bafejou o ouro e esfregou-o com a manga até que ele brilhasse e, recordando-se de Rúbria com uma nova crise de dor, beijou o símbolo da infância, recolocou-o em sua bolsa, e deixou-o tombar em seu estojo médico. Pensou de novo em Sara, na bela e jovem Sara, com figura graciosa, desabrochando apenas para a vida adulta de mulher, em seu pescoço branco e adorável, em seus olhos sem artifícios. Deixou o aposento apressadamente, como se fugisse, e dirigiu-se para a universidade.

Seus professores saudaram-no carinhosamente, e todos lhe ofereceram amuletos, mesmo os cínicos professores gregos, expressando desgosto pela partida do jovem e dando-lhe suas bênçãos.

- Lembra-te, meu caro Lucano disse-lhe um dos gregos - que a medicina sempre esteve associada ao sacerdócio, pois há campo maior para a medicina do que o corpo e um médico deve tratar também da alma de seus pacientes e, finalmente, deve depender, para a cura, do Médico Divino. - Lucano ficou surpreendido com aquela declaração do tal grego, de mente das mais lúcidas, mas o homem olhava para ele com seriedade e depois beijou-o nas duas faces: - Não receio por ti acrescentou.

Havia apenas um de seus professores que Lucano desejava evitar.

Mas encontrou José ben Gamliel à sua espera, e o professor chamou-o à biblioteca de sua colunata. A biblioteca era pequena, fria e austera, o mobiliário simples.

- Nunca mais nos encontraremos disse o professor judeu contemplando-o com tristeza. - Nunca mais nos encontraremos. Isto, para nós, é o adeus.

- Tu não sabes...

- Ah! Eu sei. - E José ben Gamliel ficou silencioso durante algum tempo. Voltou seu perfil barbado para Lucano, e a luz quente e branca que entrava impiedosa, através da janela pequena, iluminou aquele perfil, dando-lhe radiosidade misteriosa, aguçando-o e modificando-o. - Preciso contar-te uma história disse José.

Lucano sorriu, impaciente.

- Já percebi que os judeus sempre têm uma história para contar disse ele. - Tudo é em poesia ou metáfora, hipotético ou obscuro, ou oferecido sob a forma de pergunta. A vida é curta. Por que os eruditos judeus tratam o tempo como se ele não existisse, e como se houvesse uma eternidade para discussão?

- Pela razão respondeu José de que o tempo não existe e há uma eternidade para a discussão. Ainda acreditas, meu pobre Lucano, que o espírito do homem está acorrentado pelo tempo ou pelos acontecimentos?

Voltou-se de novo para ele e de novo seu rosto modificou-se, fazendo-se estranha e infinitamente doloroso, e Lucano pensou nos velhos profetas de que tinham falado os judeus de Antioquia, e José, em Alexandria.

- Recordarás a esperança que os judeus têm a respeito de um Messias que virá, e do qual te falei disse José. - Ele libertará nosso povo, Israel, de acordo com a promessa de Deus. Foi Abraão, o Pai dos judeus, um babilônio da velha cidade de Ur, quem nos trouxe essas boas novas. Leste as profecias de Isaías com relação a Ele. Será chamado o Príncipe das Dores, segundo aquele profeta, e Sua Mãe esmagará a cabeça da serpente com o seu calcanhar, e o homem ficará liberto do mal e do sofrimento e não mais existirá a morte. Por Suas feridas, seremos salvos.

- Sim disse Lucano, com impaciência crescente, enquanto José cravava-lhe os olhos. - Conheço as Escrituras judaicas. Conheço as profecias em relação ao vosso Messias. Mas que tem isso a ver comigo? Todos os povos têm seus mitos e seus deuses, e que vem a ser um Deus judeu para os outros?

- Há apenas um Deus disse José. - E é o pai de todos os homens. Pensas que o Messias virá apenas para os judeus? Eles são um povo de profecias. Assim, compreende-se que a profecia lhes tenha sido dada. A Lei foi entregue nas mãos deles por Moisés. Por aquela Lei o homem vive ou morre. Isso os gentios precisam aprender, através da elevação de seus impérios e de seu sangrento declínio e da vasta e amontoada poeira dos séculos.

“Lucano, tu te lembrarás que a profecia referente ao Messias insinuou-se em todas as religiões do mundo, e não apenas nas Escrituras dos judeus”. Deus outorgou a todos os homens, em toda parte, a vaga noção de Sua vinda entre os homens. A alma tem seu conhecimento, que fica para além do estéril raciocínio da mente. Tem seus instintos tanto quanto o corpo.

Lucano não respondeu. Sua impaciência ia se fazendo selvagem.

Remexia na corrente de ouro que lhe pendia do pescoço e então recordou-se de que à última hora retirara a cruz de Keptah da bolsa médica e a pendurara ao pescoço. Agora, a cruz aparecia sobre sua túnica, e José a viu. Grande emoção cruzou-lhe o rosto, como um relâmpago, mas ele continuou a falar, calmamente:

- Há treze anos, Lucano, eu era professor da Sagrada Lei, em Jerusalém. Minha esposa teve um filho numa fria noite de inverno. Foi uma noite muito estranha aquela, pois uma grande Estrela aparecera subitamente no céu, mantivera-se firme durante algumas horas, depois movera-se para a direção do Oriente. Nossos astrônomos ficaram muitíssimo excitados. Chamaram-na a Nova, e profetizaram que sua aparição agourava tremendos acontecimentos. Lembro-me bem daquela noite. Herodes era nosso rei e um homem mau. Correu pela cidade um boato de que na pequena cidade de Belém nascera O Rei dos judeus. Tal notícia foi trazida a Jerusalém por homens humildes e simples; entre eles alguns pastores que tinham uma história das mais temíveis a contar. Falavam de Hoste Celeste que lhes aparecera, quando cuidavam de seus rebanhos de carneiros, nas montanhas, e que lhes tinha dado notícias de grande júbilo. Como os reis são desconfiados, tem milhares de ouvidos, e assim essa história chegou aos de Herodes, a história dos pastores anônimos e ignorantes. Imediatamente, receando pelo seu poder, ele ordenou que todos os meninos nascidos recentemente fossem mortos, passados a fio de espada.

José fez uma pausa. Lucano ouvia-o com relutante fascinação.

Então, de repente recordou-se da grande Estrela que vira em Antioquia, quando criança, e seu coração bateu, apavorado.

José continuou, dizendo, simplesmente:

- Meu filho estava entre os que Herodes mandou assassinar, e minha esposa, com o coração despedaçado, morreu.

Lucano sentiu-se imediatamente tomado de compaixão e envergonhado de sua impaciência; e ainda mais envergonhado pelos comentários coléricos e veementes que outrora dirigira a José. Este conhecera a morte, o desgosto, a dor amarga, e ele, Lucano, o acusara de nada saber. Olhou com piedade para José. E disse:

- Quanto deves ter odiado, não apenas Herodes, mas Deus, por aquelas mortes sem sentido!

José sacudiu a cabeça e sorriu de leve:

- Não. Como pode um homem de compreensão odiar Deus? Isso é coisa para a paixão de crianças.

Ficou silencioso durante tanto tempo que Lucano chegou a pensar que ele o esquecera. Então José, contemplando a distância através da janela, continuou, ainda mais sossegadamente:

- Na última Páscoa visitei meu velho lar, em Jerusalém. A cidade fervia de peregrinos vindos da Galiléia, Samaria, Judéia. Num pátio interno eu estava conversando com meus eruditos amigos e comentaristas. Era um adorável dia de primavera, repleto do perfume das florações e dos ricos odores das especiarias e do incenso. O céu era de um aperolado reluzente e a cidade via-se inundada de luz e dos sons de cânticos e de regozijos. Jamais eu vira dia tão calmo e belo, e os corações de todos se regozijavam com ele, esquecidos de César e Herodes, pois Deus os tinha livrado novamente da Terra do Egito[19].

Ouviam-se por toda parte os sons dos címbalos e das trombetas. A cidade brilhava com suas flâmulas coloridas, e o Templo suspendia-se contra o céu, como jóia de ouro. Embora fosse viúvo, com uma só filha casada em Alexandria, pela primeira vez em treze anos senti alegria, e meu coração ergueu-se numa espécie de expectativa.

         Parou. Suas mãos serenas cruzaram-se, seu rosto ergueu-se e ele sorriu sonhadoramente.

- As ruas estavam cheias de soldados romanos. Também eles tinham sentido um deleite incomum na primavera. Tinham apenas uma forma de expressar tal sentimento, pois eram estrangeiros em terra estranha que os odiava. Pobres rapazes. Desejavam tomar parte no regozijo geral, mas os judeus os ignoravam em seus dias santificados. Os soldados embriagaram-se e andaram pelas ruas, cantando. É triste ver qualquer homem rejeitado pelos seus irmãos e eu tive compaixão dos romanos.

“Temos guardas no Templo para proteger os pátios internos de qualquer intrusão”. Onde estava o guarda daquele pátio, naquele dia? Não sei. Mas de repente as cortinas afastaram-se, e um rapazinho entrou no pátio, um rapazinho alto e muito bonito, trajado com a grosseira veste parda do povo comum. Seus pés mostravam-se descalços e queimados de sol. A pele clara também fora amorenada pelo sol; seus caracóis louros mostravam sinais de terem sido queimados pelo calor, e caíam-lhe sobre os ombros. Tinha olhos azuis como o céu de verão, e um aspecto solene e majestoso. Sorriu-nos, não como um rapaz que acaba apenas de alcançar a idade de Bar-Mirzvah[20] e, portanto, ainda tímido quando num grupo adulto. Seu sorriso era o sorriso de um homem, e ele estava à vontade, como um homem entre seus pares, como um erudito e um sábio entre eruditos e sábios.

"Ficamos muito espantados e alguns entre nós franziram as sobrancelhas. Que estava fazendo aquele rapazinho em nosso pátio reservado, dedicado apenas à sabedoria e à discussão? Onde estava o guarda? O menino, era evidente, não passava de um camponês. Mais tarde, ficaram a cogitar na razão de não terem mandado que ele se fosse imediatamente dali. Mas, ao vê-lo, pensei em meu filho, que se não tivesse sido assassinado teria a idade daquele menino. E disse-lhe “Menino, que estás fazendo aqui, e onde estão teus pais”?" E ele me respondeu, com seu sorriso grave, e com o sotaque rude dos pobres e iletrados galileus: "Vim para fazer-te perguntas e para dar-te respostas, senhor.".

O rosto e o couro cabeludo de Lucano arrepiaram-se. Então, de repente, desejou ir embora e pulou sobre os pés. José, entretanto, não pareceu notar tal coisa, e continuou com sua voz remota e como que sonhadora:

- Ele tinha o porte régio de um rei, aquele jovem camponês da Galiléia, com as mãos ásperas pelo trabalho, os pés descalços e a cabeça erguida. Penso que foi aquele seu aspecto que evitou a despedida encolerizada dos eruditos e doutores. Não temos grande respeito pelo povo da Galiléia. São pastores e artesãos, e sua fala é iletrada. Gente humilde. Mas aquele rapaz era um rei.

"Sentou-se entre nós, falou conosco, e depressa estávamos estupefatos com as suas perguntas e com as suas respostas, pois, apesar de seu sotaque galileu, falava com autoridade e profunda erudição. Ficamos absorvidos nele. Perguntamos-lhe as coisas mais obscuras e difíceis, e ele as respondeu com simplicidade. Era como a luz da aurora entrando em aposento escuro, repleto de livros eruditos, cheios de dificuldades. E mal saíra da infância, aquele jovem do campo, que vinha das nuas e quentes montanhas da Galiléia, onde não há doutores nem sábios. E eu lhe disse: “Menino, quem é o teu professor”?" Ele sorriu para mim, com um sorriso que se parecia ao sol, e não respondeu.

Foi então que a cortina afastou-se, agitada, e um homem humilde, barbado, e uma bela e jovem senhora, vestida como camponesa, entraram, num ímpeto, pelo nosso pátio adentro.

De novo José se calou. Sorria, e seu sorriso era infinitamente suave e remoto. Lucano sentou-se de novo, lentamente. Dizia de si mesmo:

Não devo ouvir! Isto é tolice obscura! Mas ouvia e esperava que José continuasse.

- Jamais esquecerei aquela jovem senhora, Lucano, pois seu rosto era o de um anjo, radiante para além de qualquer descrição.

Lembro-me de ter ficado instantaneamente atônito diante daquele rosto, que se erguia de pescoço e ombros vestidos em roupas ordinárias e opacas. Um pano azul tombava de sua cabeça, e eu vi o cabelo brilhante de sua fronte pura. Como posso descrevê-la? Não há palavras para isso, em idioma algum. Devia ter uns vinte e sete anos, o que não é muita idade, mesmo para uma mulher. Dava a impressão de ser, ao mesmo tempo, velha como Eva, e nova como a primavera. Passado e futuro mesclados num só: ela não tinha tempo, não tinha idade.

Imediatamente, eu soube que se tratava da mãe do rapazinho, pois tinha um aspecto régio.

"O camponês barbado nada disse, embora fosse aparente a sua angústia. Manteve-se junto da cortina, mas a mulher adiantou-se para o menino, que voltou a cabeça e olhou para ela. E ela lhe disse: “Meu filho, por que nos deixaste, de forma que sentimos falta de ti em nosso caminho para casa e ninguém te havia visto”? Temos estado a tua procura com grande ansiedade." O rapaz não respondeu por um momento, e depois disse, muito suavemente: "Por que me procurastes? Não sabeis que devo tratar dos negócios de meu Pai?" E seus olhos irradiavam terno amor para ela.

José silenciou e Lucano ficou à espera. Mas José não tornou a falar e Lucano perguntou, impaciente:

- É tudo?

- É tudo.

Lucano mordeu o lábio.

- Tu nada explicaste, José ben Gamliel. Quem era aquele rapazinho?

José levantou-se e Lucano levantou-se com ele. José pôs a mão no ombro do moço e olhou-o bem dentro dos olhos, profundamente.

- Isto terás de descobrir por ti mesmo, Lucano.

Sorriu para o moço, com súbita melancolia.

- Dizem as nossas Escrituras que Deus nem sempre lutará contra os espíritos dos homens. - Hesitou, depois prosseguiu: - Quando Deus luta contra o espírito de um homem é pelo mais sagrado e misterioso propósito, e aquele propósito muitas vezes permanece oculto ao homem até o dia de sua morte. No teu caso, não creio que isso permaneça sempre oculto para ti. - Levantou a mão, em bênção: - Vai em paz, meu aluno, querido e muito amado médico.

 

Foi apenas quando se viu no convés do navio, no porto de Alexandria, e olhou para a cidade, vistosa e vociferante, aglomerada contra o ardente céu azul, que Lucano sobressaltou-se ao sentir a pungência da nostalgia. Deixou que os olhos errassem pela cidade, e imediatamente pensou onde tinham ido ter os anos, por que ele jamais sentira qualquer afeto antes, por seus companheiros e professores e por que o tempo fora para ele como um sonho negro. Dera excelentes presentes a seus professores, nas suas despedidas, mas sabia, agora, que foram dados sem sentimentos, e envergonhava-se. Era tarde demais para ir ter com os professores e dizer o que sentia em seu coração: "eu vos amei e respeitei, pois os professores são os mais nobres dos homens e trabalham por pouco, apenas para realizarem o que desejam suas almas sem egoísmo. Em vosso nome, e lembrando-me de vós, farei o melhor que puder, e vos recordarei sempre.”.

O grande galeão balançava-se pesadamente no ancoradouro.

Embarcações menores, com velas azuis, brancas, amarelas e escarlates voavam como flechas sobre as águas, como que em travessuras em torno do grande vulto do galeão, parecendo-se a libélulas que lançassem seus vívidos reflexos na água imóvel e arroxeada. Aquelas embarcações estavam cheias de pescadores seminus, os corpos morenos reluzindo ao sol quente e branco, bocas vermelhas abertas para lançar blasfêmias, zombarias, risos e canções. Passando rapidamente ao lado do galeão romano, levantavam os olhos para Lucano e cumprimentavam-no ou pilheriavam obscenamente com suas vozes roucas, ou pediam-lhe esmolas. Sorrindo, como havia muitos anos não sorria, ele abriu a bolsa, atirou-lhes moedas, que refletiam o sol e brilhavam como ouro ou prata. Os homens apanhavam-nas habilmente e, sendo velhacos e alegres, beijavam-nas, cumprimentavam Lucano com irônicas reverências, faziam comentários licenciosos, depois tornavam a vogar com rapidez. A água marulhava placidamente contra o navio, que ainda estava sendo carregado no cais. Escravos negros, núbios ou citas faziam rolar pesados tonéis de óleo, mel ou vinho pelas rampas ou carregavam fardos de algodão, barricas de azeitonas e cestos de coco.

Outros traziam para cima os sacos e as caixas carregadas com especiarias e outros produtos do Oriente. Então um som de pranto subiu do cais repleto e um certo número de escravos encadeados, homens e mulheres, escuros pelo caminho feito através do deserto, foram sendo tangidos a chicote pela rampa. Lucano, observando-os, já não sorria. Voltou-se e contemplou os rostos chorosos e desesperados, e algo ergueu-se dentro dele, em cólera apaixonada. Algumas das mulheres carregavam crianças recém-nascidas, e aqui um pequenino corria atrás de seu pai ou de sua mãe, em prantos. Os escravos foram amontoados embaixo, como um rebanho, onde as lamentações se tornaram mais abafadas, apesar de mais insistentes.

Dois centuriões romanos foram designados, para guardá-lo durante a viagem, e apareceram ao lado de Lucano, que olhou para seus rostos jovens e morenos de sol com aversão.

- Senhor disse um deles -, estamos a vosso serviço.

Estavam encantados por voltar à pátria, mesmo que fosse servindo um grego, o que eles consideravam aviltante. Ainda assim, mostravam-se gratos para com Lucano.

- Eu de nada preciso disse este, secamente.

Um deles tirou o elmo enquanto enxugava o rosto suarento:

- Ufa! Que cidade desprezível falou, com movimento de cabeça para Alexandria. - Estou fervendo sob a minha armadura, como fogo.

- Por que não a retiras, então? Indagou Lucano.

Os dois jovens soldados, escandalizados diante de tal impropriedade, recuaram um pouco. Lucano deu um leve sorriso. Não tinham culpa, aqueles rapazes, que os escravos fossem impelidos para o navio, e ele fora ilógico, exibindo sua aversão. Contemplou os homens que ali estavam olhando para as docas e para o carregamento das mercadorias, os polegares metidos no cinturão de couro, as costas mais retas do que de costume, como que a censurá-lo. Procurou com os olhos Cusa, que estava supervisionando espalhafatosamente a armação do toldo roxo da popa, reservado a Lucano. E chamou-o:

- Atenção!

Este olhou para ele, irritado, depois, repetindo avisos e ameaças aos marinheiros suarentos que lutavam com cordas e tecidos, veio, de andar balouçante e ares importantes, ao encontro de Lucano. Vestia uma suntuosa túnica de algodão egípcio, de um vermelho brilhante e bordada trabalhosamente com seda amarela. A barba rala fora ungida com óleo perfumado, o mesmo se dando com o cabelo, e ele trazia à cinta, metido numa bainha de prata, um delgado punhal alexandrino.

         - Tu disse-lhe Lucano cheiras como uma prostituta.

- Ah! Replicou Cusa, com um sorriso lascivo. – Como sabes disso?

- Não importa falou Lucano. Indicou os jovens e ofendidos soldados com um movimento de cabeça. - Traze um jarro do nosso melhor vinho. Se temos um melhor vinho.

- Para eles? Perguntou Cusa, incrédulo.

- Para eles.

- Mas, senhor, o vinho da região é bastante bom. Não é uma das bazófias dos romanos, isso de dizerem que, cosmopolitas como são, o que cada região produz a eles parece bom?

- Eu disse repetiu Lucano, severamente, mas com uma fagulha divertida nos olhos, que jamais havia ali aparecido desde sua mais recuada adolescência o melhor vinho que tivermos.

Cusa considerou. Depois, olhou para Lucano com um ar de completa candura, que não enganou o rapaz.

- Senhor, tu sabes que nunca tivemos qualquer vinho melhor. Sem desrespeito para contigo, devo confessar que não tens paladar.

- Ladrão disse Lucano. - Sempre tiveste o cuidado de manter o melhor vinho em tua mesa. Não há muito tempo vi, de relance, várias garrafas incrustadas, cobertas de teias de aranha, que trazias para bordo em teus próprios braços, ternamente, como se tratasse de uma criança querida. Traze-me uma delas e três taças. Eu próprio estou curioso para provar aquele néctar.

Cusa empertigou-se:

- Senhor Lucano, eu trouxe aquelas garrafas compradas com meu próprio dinheiro, segundo o generoso estipêndio que me envia Diodoro Cirino.

- Muito bem disse Lucano. - Comprarei de ti uma dessas garrafas.

Cusa fez uma reverência solene:

- Permita-me, ó Baal, que te faça presente de uma garrafa, com meus cumprimentos. - Falava sarcasticamente, depois hesitou e olhou para Lucano, com olhos imploradores: - É um crime contra os deuses permitir que esses romanos bárbaros lavem suas bocas de couro em semelhante vinho! Vamos, eu tenho um bom e forte vinho da Alexandria mais a gosto deles.

- O melhor vinho repetiu Lucano. - E não me enganes. Eu examinarei cuidadosamente o sinete.

- Suponho disse Cusa que não teria permissão para trazer uma quarta taça e ficar a uma distância humilde desses patrícios romanos e provar um pouco do meu próprio vinho?

- Podes tomar um pouco, muito pouco, do vinho que comprarei de ti disse Lucano, gravemente.

- Eu o estou dando de presente falou Cusa, com altivez. E desceu.

Enquanto esperava, Lucano tornou a observar a cidade. As cores violeta obrigavam-no a pestanejar. O sol brilhava fortemente sobre as águas arroxeadas e arrancava odores da madeira, do óleo e do alcatrão aquecidos do navio, bem como a fedentina dos peixes mortos e o picante do sal e do suor. Sua luz fervente dançava sobre as embarcações menores que corriam lá embaixo e suas velas pareciam arder. As armaduras dos soldados reluziam. Os escravos amontoados começaram a cantar tristemente, e os capatazes irritaram-se contra eles e fizeram estalar o chicote. Mais e mais carroções, carregados com mercadorias, rolavam pelos cais, com ruído surdo.

Cusa apareceu, com grande dignidade, trazendo uma bandeja de prata na qual havia quatro taças, uma delas de prata, incrustada com turquesas, para Lucano. Colocou a bandeja sobre um rolo de cabos que estava próximo, com um gesto que mostrava estar ele mais habituado à mesa de mármore. Os centuriões voltaram a cabeça e ficaram a olhar com interesse, e quando viram o vinho rosado lamberam furtivamente os lábios. Ficaram estupefatos quando Lucano os chamou:

- Quereis dar-me o prazer de tomar comigo este excelente vinho, que meu professor garante ser o melhor do mundo?

Os homens aproximaram-se com sorridente alacridade, perdoando-o imediatamente- Lucano, pondo Cusa de lado, com um gesto, serviu-lhe o vinho. O sol refletia-se nele e fazia-o semelhante a uma destilação de pálidos rubis. Lucano deu uma taça a cada um e serviu uma terceira para si próprio. Deixou tombar algumas gotas em libação - e os outros fizeram o mesmo- provou um pouco, e disse:

- Excelente! Excelente! Meu professor tem o paladar mais impecável em três mundos!

- E como saberias isso? Murmurou Cusa, sem se deixar aplacar. Encheu uma taça inteiramente, como um sacerdote ao altar, lenta e reverentemente. Pelo menos um dos quatro saberia apreciar aquela delícia. Conservou-se afastado do grupo composto de Lucano e dos soldados e bebericou o seu vinho. Era uma vindima maravilhosa, dos melhores anos possíveis. O sol ali estava, fogo tépido e doce. Ficava na boca, perfumado, delicioso, intoxicante. Cusa, relanceando os olhos para Lucano e para os soldados, sentia-se deprimido. Os soldados, era evidente, percebiam apenas o fato de ser o vinho capitoso, quanto a Lucano era impossível conceber que ele sequer provasse a sua delicadeza. Estava conversando, para surpresa de Cusa, com maior animação do que jamais demonstrara diante dele, e com um interesse mais magnânimo. Afinal, pensava Cusa, que lhe aconteceu? Posso quase acreditar que ele tem carne latejante e não é feito de mármore rígido...

Por Baco, foi realmente um gracejo que ele disse agora? E não um dos mais altamente delicados! Deve ter aprendido isso, inconscientemente, com aqueles estudantes velhacos. Será que realmente entende o que isso quer dizer? Ah! Ah! Foi muito bom, muito bom, é lindamente malicioso. Cusa estava muito animado. Se Lucano mantivesse aquele estado de espírito durante a viagem, esta não seria tão monótona quanto ele esperara. O professor, sentindo-se delicadamente exultante, nem sequer pestanejou quando Lucano tornou a servir o vinho aos soldados e para ele mesmo. Se ele se embriagasse, pensou Cusa, eu ficaria regogijadíssimo.

O comandante do navio aproximou-se de Lucano, mas antes que pudesse falar, Lucano exclamou:

- Meu bom Galo, vem beber conosco! Cusa, traze outra taça!

Amaldiçoando o comandante, que ele suspeitava saber farejar uma garrafa, Cusa obedeceu e trouxe outra taça. O comandante era de meia-idade, corpulento, de rosto áspero, mas inteligente. Começou a contar histórias muito indelicadas, que faziam os centuriões explodir em risos divertidos e Lucano sorrir. Azedo, Cusa disse consigo mesmo que pelo menos aquelas histórias obscenas estavam para além da compreensão de Lucano, pois um ar distraído surgira no rosto do Jovem grego, indicação de que ele agora achava a conversa tediosa ou de mau gosto. Era evidente que Galo aprendera aqueles gracejos em grande número dos bordéis menos seletos, e mesmo Cusa os achou um tanto crus para seu gosto.

Expansivamente, Galo falou:

- É uma honra ter-te a bordo, Lucano. És nosso passageiro mais ilustre. Este navio, como sabes, é cargueiro, mais rápido, e não se retarda como os navios de recreio. Embora tenhamos vários portos de escala, chegaremos depressa à Itália.

- Estou ansioso por chegar a casa disse Lucano.

- Num dos portos de escala haverá, sem dúvida, cartas para ti.

O comandante olhou de soslaio para as grandes velas brancas que começavam a desdobrar-se como asas de pássaros gigantescos contra o céu, e gritou algumas advertências aos marinheiros que subiam precipitadamente pelos mastros. Lucano serviu mais vinho, mas dessa vez não se serviu. - Temos bom vento disse o comandante, falando agora em tom de voz normal. - E quando a maré descer, sairemos. Isso se dará em menos de uma hora.

Lucano olhou para a cidade, e por uma razão qualquer foi subitamente assaltado por uma saudade e uma sensação de tristeza poderosas. Seu coração doeu com um desejo sem nome, e ele sentiu-se solitário e perdido. Urgência quase irresistível lhe veio de deixar o navio. Esqueceu o comandante e os soldados. Lutou contra as suas emoções às quais não podia atribuir face nem voz.

- Que foi? - Galo perguntou a um oficial inferior que subiu e o estava saudando. O oficial murmurou-lhe algo ao ouvido, e o comandante relanceou depressa os olhos para Lucano e seus próprios olhos de um tom enfumaçado de ágata, embora já alegres e astutos, iluminaram-se. Seu rosto queimado de sol desmanchou-se em rugas sorridentes. Voltou-se para Lucano e deu-lhe calorosas pancadas no ombro, piscando-lhe os olhos.

“Uma liteira carregada por escravos bitínios bem-vestidos acaba de chegar ao cais, Lucano”! Exclamou ele, piscando também para os centuriões. - Não sou o oráculo de Delfos, mas apostaria contigo três sestércios como se trata de uma dama nobre! Ah! Isto é ser jovem! Falei-te que os escravos declararam que a dama deseja dizer-te uma palavra antes da nossa partida?

Lucano teve um sobressalto. Olhou para o cais, e viu, realmente, que uma liteira ali esperava, as cortinas bem fechadas, e carregadas por seis robustos bitínios, cujos braços fortes mostravam largos braceletes de prata. O sangue subiu à cabeça de Lucano que começou a tremer.

- Não conheço ninguém murmurou ele. - Tens certeza de que é uma senhora? - Olhava com insistência para a liteira fechada.

- Eu apostaria! Exclamou o comandante.

Cusa, ouvindo aquela conversa, aproximou-se e também ficou a olhar a liteira, distante, apertando os olhos para ver melhor. Uma mulher? Era impossível, no caso desta Virgem Vestal do sexo masculino. Cusa sacudiu a cabeça em dúvida. Mas Lucano desceu vagarosamente a rampa, a cabeça brilhando ao sol, e os alegres soldados, bem como o comandante e Cusa, debruçam-se sobre a amurada do navio e deram à liteira toda a sua atenção.

Quando Lucano chegou ao lado da liteira, disse:

- Quem deseja falar comigo?

As cortinas afastaram-se e Lucano viu o rosto pálido e desgostoso de Sara ben Eleazar que se levantava para ele. Estava vestida inteiramente de preto, e o médico reparou que tinha as roupas rasgadas aqui e ali conforme o costume judaico de usar luto, e que seus lindos olhos cor de violeta estavam enegrecidos pela dor.

Sara, disse Lucano, sentindo que seu coração crescia no peito.

Ela estendeu-lhe a mão pequena e branca que ele tomou.

- Eu não devia ter vindo, Lucano murmurou ela -, pois ainda choro a morte de meu pai.

Seu cabelo preto mostrava sinais das cinzas[21]. Tentou sorrir, mas apenas soluçou, sem lágrimas.

A mão dela estava fria entre as de Lucano. Tudo, em torno dos jovens, era ruído e movimento, naquele cais, com os escravos correndo, os gritos, os chamados, mas ele nada via além daquela moça tão jovenzinha, e pensava: Certamente ela se parece com Rúbria!

- Sara disse ele de novo, e agora seu desejo e sua urgência tinham um rosto e uma voz.

- José ben Gamliel disse-me que partias hoje falou ela, a voz ligeiramente rouca, porque estivera chorando. - Tinha que vir ver-te, embora seja errado e escandaloso o que fiz, para agradecer-te, querido Lucano, pelo alívio que levaste a meu pai e pela promessa que lhe fizeste.

- Foi uma promessa feita com a certeza de que provavelmente será impossível cumpri-la disse Lucano, abstraidamente. Pensava que a manhã de primavera estava ali, nos olhos da jovem; uma fragrância, como de incenso feito de resina aromática, evolava-se das vestes dela. Mesmo em seu desgosto era mais bela do que qualquer mulher que ele já vira; a fronte mais pura e mais branca, o corpo virginal mais doce e mais suave. O sol brilhava-lhe no rosto, através das cortinas afastadas, e suas faces mostravam os vestígios das lágrimas.

- Encontrarás meu irmão, Lucano disse, com sua voz dulcorosa. - E eu estarei à espera, em Alexandria ou em Jerusalém.

Ou acrescentou, em tom mais baixo e mais trêmulo, em qualquer lugar. Poderás sempre encontrar-me, Lucano.

Ficaram então silenciosos, olhando um para o outro. O rosto dele estava tão pálido quanto o dela. Depois, ele disse:

- Sara... Aonde eu vou, ninguém pode ir, nem irmão, nem irmã, nem mãe... Nem esposa. Há muita coisa que eu preciso fazer, e não terei lar nem paradeiro. Não há lugar na minha vida para o amor pessoal, pois o amor, para mim, significa perda.

Subitamente, lembrou-se de Asah, no pátio, das palavras dela ao marido, e sacudiu a cabeça em desesperada negativa. Mas não largou a mão de Sara.

Ela disse:

- Eu sempre poderei encontrar-te, Lucano e seus olhos encheram-se de saudade. De novo ele sacudiu a cabeça. Mas levou a mão da jovem aos lábios e beijou-a, voltando-se depois, bruscamente e tornando a subir a rampa. Mesmo quando ela exclamou: "Adeus! Que Deus te acompanhe! ", ele não olhou para trás.

Lucano não usou o toldo roxo reservado para ele na coberta e, assim, quem o aproveitou foi Cusa, que se esparramou sobre as almofadas como um rei, em meditação. Por quê, perguntava-se ele, aquele incompreensível louco do Lucano mantinha-se lá embaixo, durante todos aqueles belos dias de outono, subindo para a parte de cima do navio apenas ao crepúsculo? Ficava sentado lá embaixo com seus livros, mas, ao crepúsculo, vinha para a coberta balouçante, deixando claro que não queria conversa. Debruçava-se na amurada e ficava a olhar para o intenso céu do poente e para o mar chicoteado pelo fogo escuro, inconsciente da presença dos marinheiros, dos centuriões, do comandante e dos poucos Outros passageiros. Seu rosto mostrava uma expressão imóvel e fechada, de pedra, e seus olhos causavam medo. Perdera-se em algum sonho torturante, do qual ninguém conseguia arrebatá-lo.

Àquela hora, a voz do mar, quieta e marulhenta durante todo o dia, começava justamente o seu ciamor. A esteira branca e as velas brancas que se curvavam contra o céu tomavam sombras de sangue vindas do poente aceso, tão silencioso e ainda assim tão ameaçador.

Uma vez o céu explodiu em curta, mas turbulenta tempestade, nuvens negras com cristas brilhantes de relâmpagos correndo perto dos altos e balouçante mastros, o trovão ecoando com voz gigantesca através dos vagalhões assustadores e semelhantes a montanhas. Lucano, entretanto, parecia inconsciente daquilo e debruçava-se pesadamente contra a amurada, sem sentir o encharcamento da chuva quente e abafada.

Olhava essa direção de leste, como se tentasse atravessar com os olhos as milhas que se estendiam. Sentia-se doente, com seu imenso vazio e seu anelo. Acima e abaixo do trovão e da ventania tumultuosa ele ouvia a voz de Sara.

O navio se deteve em vários portos, brilhantemente coloridos durante o dia, mas Lucano não subiu para vê-los. Era como se a vida se tivesse de novo tornado para ele uma coisa que magoava terrivelmente, como se todas as suas feridas tivessem começado a reabrir com novas infecções. Suas lutas consigo mesmo tinham alcançado um estado insuportável. "Não posso amar de novo!", gritava ele, para si próprio.

"Amor é corrente e cadeia; amor é morte. Amor é ficar preso à lareira, e o fogo da lareira destrói a paz de um homem."

A Grécia não o seduziu; ficou sentado lá embaixo, em seu quartinho quente, os olhos vazios, as mãos cruzadas entre os joelhos.

- Pelo menos podias dar uma olhadela à pátria de tua gente...insistia Cusa, com um misto de impaciência e preocupação. Mas Lucano apenas sacudia a cabeça. - Se me dissesses o que te despedaça a alma... começou Cusa. E Lucano apenas tornou a sacudir a cabeça. - Não comes falou Cusa. - Trouxe meu vinho, meu próprio e precioso vinho, e tu mal o provas.

Lucano continuava silencioso.

Um dia, o mar e o ar estavam tão calmos que as velas tombaram encolhidas e o sol fez-se uma fúria, o navio seguia mais lentamente, pois o único meio de propulsão era, agora, o fornecido pelos escravos das galés. Ao crepúsculo, o navio era como mariposa erradia sobre a flor lisa e cor de heliotrópio do oceano, e a esteira silvava com um som mal audível. Então, Lucano, na coberta, ouviu o profundo e doloroso cântico dos escravos, e aquilo lhe pareceu um prolongamento de sua própria dor. Eles têm de cantar assim todo o tempo..., pensou. Não ouvi isso antes! Estive pensando, egoisticamente, apenas em meu próprio sofrimento. Ao pensar nisso voltou-se e viu alguns homens subindo a escada que vinha da coberta inferior, carregando, penosamente, um homem negro e nu. Colocaram o corpo sobre a balaustrada e daí o atiraram ao mar, onde ele mergulhou com um ruído leve de água esparramada.

Os escravos ficaram a vê-lo desaparecer, depois levantaram até os lábios os amuletos que traziam pendurados ao pescoço, beijaram-nos, e trataram de descer rapidamente. A morte vem para os navios como para as cidades, pensou Lucano. Lembrando-se de que tinha ouvido vagamente aquele agoureiro som de um corpo atirado ao mar, em outros crepúsculos, franziu as sobrancelhas. Então foi procurar o comandante, que estava sentado em seu próprio aposento, lá embaixo, com alguns subalternos. O homem levantou os olhos para Lucano, ao vê-lo e o jovem percebeu que seu rosto largo estava ansioso e colérico.

Ergueu-se, sorridente, dizendo, com ar cordial:

- Pensei que te havia ofendido, Lucano. Não me dirigiste a palavra desde que saímos de Alexandria. Queres jantar comigo?

- Obrigado. Já jantei, Galo. - Lucano hesitava, perscrutando o rosto do homem: - Acabo de ver atirarem um corpo ao mar. Estou errado ao acreditar que isso se tem repetido muitas vezes nestes últimos dias?

O comandante nada disse. Relanceou sombria e furtivamente os olhos para seus oficiais, depois sorriu mais amplamente:

- Ah! Sempre há algumas mortes numa viagem longa como essa - disse ele. - Trazei vinho falou, imperioso para o oficial. - Não é um vinho excelente como o seu, Lucano, acrescentou, dirigindo-se ao jovem grego -, mas espero que sirva.

Ele curvou-se ante Lucano e ofereceu-lhe o amplo assento próximo à vigia. A sala do comandante estava quente e abafada; tinha as paredes cobertas de mapas e, sobre uma mesa de madeira, encontravam-se o sextante e um diagrama das estrelas. Lucano sentou-se, percebendo um curioso aroma seco naquele ar viciado, e subitamente percebeu que se tratava de especiarias, incenso e ervas medicinais que ardiam numa lamparina pequena sobre a mesa. Uma lanterna balançava, pendurada no forro e lançando fumaça.

Um oficial trouxe uma jarra de vinho e algumas taças, e Lucano, com o comandante e os oficiais, bebeu lentamente. Por um motivo qualquer, estabeleceu-se na cabina um silêncio tenso e estranho, e a alma de médico de Lucano começou a latejar. Estudou o rosto de Galo e dos outros, e esses rostos estavam definitivamente fechados e secretos. O navio mal balançava, e parecia mover-se em óleo espesso. O cântico dos escravos estava mais próximo e mais agudo.

Então Lucano disse calmamente:

- Conta-me, Galo.

O comandante olhou para ele, como em alegre surpresa:

- E que devo contar-te, Lucano?

- Esqueceste, Galo, de que sou médico. - Este fixou nele os olhos com firmeza, por alguns instantes. Olhou então, significatívamente, para a lamparina fumegante, mas não perdeu a rápida troca de olhares entre o comandante e seus oficiais.

- Ah! És médico, sim disse Galo, animadamente. - E eu não o esqueci. - Fez um movimento de cabeça para os oficiais, que deixaram a cabina. Mas quando acabaram de sair, Galo não mostrou pressa em falar. Ficou a olhar para seu copo, tornou a enchê-lo, fechou os olhos, fingiu estar absorvido no bouquet do vinho, e em seu gosto, que era inferior.

Depois, disse:

- Estou contente por te teres mantido à parte, Lucano, e por não te haveres misturado aos outros passageiros. Afinal, és nossa carga mais importante.

- Parece-me, Galo, que nada notei nos outros passageiros, embora confesse que não lhes procurei a companhia.

- Eles se mantiveram aqui embaixo por sugestão minha. – Galo pousou o copo e virou-se para o gráfico que estava sobre a mesa.

- Peste? Indagou Lucano, baixinho.

Foi como se ele não tivesse falado, durante uns dois minutos.

Então, Galo empurrou para o lado o seu gráfico e descansou o rosto na palma da mão.

- Deves ter percebido que passamos sem parar por vários portos de escala disse ele. Então, deu uma palmada sobre a mesa e já não sorria: - Eu devia ter dito antes para tua própria proteção, mas tu não estavas entre os outros. Sim, é a peste. Estamos agora levantando a bandeira amarela, que provavelmente viste. Os portos não nos deixarão entrar, quando virem essa bandeira. Mas houve apenas alguns casos e, ainda assim, entre os escravos das galés. - Suspirou: - Este maldito Oriente! Todos os transtornos de Roma vêm de lá. Quando chegarmos à nossa terra não nos permitirão descer, até que estejamos livres da peste, pelo menos durante uma semana. É a lei.

- Sou médico repetiu Lucano.

- Temos médico no navio disse Galo, contrariado. - És um passageiro. Não estas a meu serviço. És o filho de Diodoro Cirino. - Que me aconteceria se te expusesses ao perigo, ou se apanhasses a peste e morresses? - Seus olhos castanhos faiscavam de ressentimento. – Já te disse: apenas os escravos estão atacados, e nós os conservamos fechados na coberta inferior. Na noite passada não tivemos mortes. Foi uma pena que visses o sepultamento no mar, esta noite. Lucano, eles não passam de escravos, cães e criminosos acrescentou, com sensatez.

Lucano pensou nos desgraçados de rostos anônimos, no porão, encadeados uns aos outros, inchando, doentes, morrendo. E disse, bruscamente:

- Chama teu médico.

O médico era um homem de meia-idade, de ar cansado, um gaulês olhos percucientes e escuros, ele próprio um escravo.

Curvou-se para ele e disse, num tom contido:

- Tu ainda não entendeste. És um romano, e pensas e sentes como um romano, Galo. Um escravo, para ti, é menos do que um chacal. Para mim, ele é um irmão.

Galo estava desesperado. Tinha muitos transtornos ainda mais um louco em seu precioso navio! Relanceou os olhos para Príamo, que fixava Lucano como que hipnotizado, uma lágrima a um canto da pálpebra. Galo ficou olhando para seu médico. Estaria bêbado aquele patife? E disse, encorelizado:

- Príamo, conduz o nobre Lucano aos seus aposentos e prepara-lhe imediatamente um sedativo, pois ele está doente, é óbvio.

Lucano, porém, voltou-se para Príamo e disse:

- Meus professores hindus ensinaram-me que os ratos e suas pulgas é que espalham essa doença. Ouvistes falar nisso?

Príamo não conseguiu falar. Sacudiu a cabeça, confuso.

- É verdade disse Lucano, como um médico a outro.

Apontou para as pernas finas e escuras de Príamo. - Deverias usar envoltórios de linho para protegê-las das pulgas, quando vais tratar dos escravos.

Galo perdeu o controle, e berrou:

- Pensas que eu permitiria que o meu médico, pelo qual paguei mil sestércios de ouro... mil sestércios de ouro!... Vá até as galés? Ele está aqui para proteger meus passageiros e não os escravos, e nenhum dos passageiros foi atingido. No momento em que ele me comunicou que a peste havia surgido entre os escravos das galés eu o proibi de se aproximar da porta fechada com cadeado. Sou o comandante! Minhas ordens são vida e morte neste navio, e não peço perdão nem mesmo a ti, Lucano, quando te faço lembrar isso!

Lucano respondeu, calmamente:

- Sugiro que todos os ratos deste navio sejam encontrados e exterminados imediatamente; que todos os aposentos sejam fumigados contra as pulgas; que cada polegada de madeira deste navio seja lavada com lixívia.

Galo havia recuperado o controle. Lucano falava razoavelmente, mas os loucos também têm seus momentos de sensatez. E ele disse:

- Darei essas ordens imediatamente. E agora...

Lucano levantou-se.

- Este é Príamo, o meu próprio médico, disse Galo.

Príamo olhou para Lucano e inclinou-se.

- Há peste a bordo? Perguntou Lucano.

- Apenas entre os escravos das galés disse Galo, com impaciência. - Mas agora sabes, Lucano... E eu temia que soubesses... E mandarei colocar em tua cabina uma destas lamparinas de fumigação.

Teu Cusa já sabe, e mantém-se fechado, com a mulher e o filho, em sua própria cabina, a não ser quando te serve. Dei-lhe ordem, como comandante e absoluta autoridade neste navio, de que não espalhasse a notícia da peste a bordo, a fim de te poupar inquietação.

- Os escravos são homens disse Lucano, a voz dura.

Galo olhou para ele, estupefato. O rosto de Príamo tornou-se estranho e também ele fixou os olhos em Lucano.

- Que é um escravo? - Galo estava horrorizado. Não podia acreditar no que ouvia. Sabia que Lucano era estranho e não se parecia aos outros jovens, mas aquilo ficava para além do que se poderia acreditar. - Lucano, essas criaturas são traidores, assassinos, ladrões, condenados perpétuos às galés.

- Ainda assim, são homens disse Lucano. O rosto claro trazia manchas de um furioso vermelho sobre os malares e os olhos azuis revoltavam-se sob as sobrancelhas louras. Galo convenceu-se de que o rapaz era louco. Um escravo das galés era um homem! Galo sentia-se alarmado. E disse, com solicitude:

- Tua aparência não é boa, Lucano. O clima de Alexandria é penoso, eu sei. Se permitires que Príamo te receite um ligeiro sedativo para que...

- Tu não me compreendes disse Lucano, tentando manter a voz num tom tranqüilo. - Para mim, médico, um escravo é um homem, um ser humano, que pode sofrer tão violentamente quanto César.

Criminosos, traidores, assassinos também são homens. Não estão parte de nós em sua humanidade.

Os olhos de Galo apertaram-se. Mandaria pôr uma droga no vinho de Lucano. Deuses, pensou ele, não sou responsável por esse desvairamento! Mas, que direi às autoridades quando chegarmos à pátria? Que o filho adotivo de Diodoro Cirino foi trancafiado como louco? Só aquele pensamento fê-lo estremecer. E disse, num tom fraternal, tentando acalmar Lucano:

- Sim, sim, certamente. Príamo te levará aos teus aposentos. Ficará contigo durante algum tempo, Lucano. Ele se diplomou em Tarso, e sem dúvida tereis muitos conhecimentos médicos a discutir juntos.

Fez um movimento para se erguer de sua cadeira, mas Lucano curvou-se para ele e disse, num tom contido:

- Tu ainda não entendeste. És um romano, e pensas e sentes como um romano, Galo. Um escravo, para ti, é menos do que um chacal. Para mim, ele é um irmão.

Galo estava desesperado. Tinha muitos transtornos ainda mais um louco em seu precioso navio! Relanceou os olhos para Príamo, que fixava Lucano como que hipnotizado, uma lágrima a um canto da pálpebra. Galo ficou olhando para seu médico. Estaria bêbado aquele patife? E disse, encorelizado:

- Príamo, conduz o nobre Lucano aos seus aposentos e prepara-lhe imediatamente um sedativo, pois ele está doente, é óbvio.

Lucano, porém, voltou-se para Príamo e disse:

       - Meus professores hindus ensinaram-me que os ratos e suas pulgas é que espalham essa doença. Ouvistes falar nisso?

Príamo não conseguiu falar. Sacudiu a cabeça, confuso.

- É verdade disse Lucano, como um médico a outro.

Apontou para as pernas finas e escuras de Príamo. - Deverias usar envoltórios de linho para protegê-las das pulgas, quando vais tratar dos escravos.

Galo perdeu o controle, e berrou:

- Pensas que eu permitiria que o meu médico, pelo qual paguei mil sestércios de ouro... Mil sestércios de ouro!... Vá até as galés? Ele está aqui para proteger meus passageiros e não os escravos, e nenhum dos passageiros foi atingido. No momento em que ele me. comunicou que a peste havia surgido entre os escravos das galés eu o proibi de se aproximar da porta fechada com cadeado. Sou o comandante!

Minhas ordens são vida e morte neste navio, e não peço perdão nem mesmo a ti, Lucano, quando te faço lembrar isso!

Lucano levantou-se:

- E agora irei até as galés e verei o que posso fazer, depois de ter envolvido minhas pernas e braços contra as pulgas.

Galo ergueu-se. E disse, num tom implacável:

- Devo fazer-te lembrar, de novo, que sou aqui o comandante, e que mesmo César, se fosse meu passageiro, teria de obedecer às leis marítimas. Enquanto estivermos neste navio, meu navio, sou a autoridade suprema. Voltarás para teus aposentos, Lucano, e meu médico irá contigo para acalmar-te.

- Não disse Lucano. - A não ser que me arrastes até lá. Sou médico e também tenho meus deveres e minhas leis.

Ele terá que ser confinado com firmeza, pensou o desventurado comandante. A qualquer momento pode tornar-se perigoso, e só os deuses sabem o que acontecerá. Como é possível que mesmo um louco chegue a tão alto grau de loucura? "Irei até as galés..." Galo hesitava. Chamaria seus oficiais e mandaria prender correntes leves às pernas e pulsos de Lucano. Diante dele surgia a desanimadora expectativa de entregar o filho adotivo de Diodoro Cirino, o descendente dos quirites, o antigo procônsul da Síria, acorrentado como um criminoso, no porto de chegada. As cóleras e indignações de Diodoro eram famosas. O próprio comandante teria que responder por aquela séria ofensa contra a pessoa de Lucano, apesar de o jovem estar evidentemente louco. Galo raciocinava. O dilema era horrível. Mas ainda tinha a lei a seu favor, e era para proteger Lucano que devia agir.

- Não tens piedade, Galo? Perguntou Lucano, desanimado.

- Sei que um escravo, e particularmente um escravo das galés, é menos do que um animal para ti. Os escravos das galés podem ser assassinados com impunidade. Mas considera. Deixa teu coração ouvir e comover-se por um momento. Os escravos sangram como tu sangras, morrem como tu morres. E aonde teu espírito vai, também vão as almas deles. Estás preocupado com a minha própria saúde e segurança? Sim. Se eu adoecesse, ou morresse, então terias medo de Diodoro, meu pai adotivo. Compreendo. - Sua voz suavizou-se: - Basta que deixes sem cadeado a porta das galés. Tenho meus remédios e juro-te que me protegerei e que te absolverei de qualquer censura em relação a mim. Ninguém precisa saber, a não ser nós, que estou tratando dos escravos. Irei e voltarei, sem ser visto senão por eles.

- Estou cansado, Lucano disse o comandante. - Vai para teus aposentos imediatamente, ou eu terei... Eu terei... De levar-te à força para lá.

- A não ser que eu detenha essa doença, Galo, ela se espalhará entre os passageiros. Podemos ir à deriva para um porto, o navio cheio de mortos.

Galo voltou-se, afastando-se dele.

- Vai para os teus aposentos repetiu. - Nesse meio-tempo darei ordens para que façam o que sugeriste.

 

Preciso entrar naquelas galés disse Lucano, depois de chamar Cusa à meia-noite. Durante horas ouvira o rumor provocado pelos escravos e marinheiros, na caça e destruição de ratos, e na limpeza inteira do navio, feita com lixívia.

Cusa disse:

- Estás louco, naturalmente. Vou aquecer um pouco de vinho para ti, e nele colocarei especiarias.

Lucano contemplou-o demoradamente.

- És um homem esperto, Cusa. Quanto tempo levarias para forçar o cadeado da porta que dá para as galés?

Cusa recusou-se a levá-lo a sério, ou antes, recusou-se a mostrar que o tomava a sério.

- Forçar um cadeado, Lucano? Eu? - E riu-se, divertido.

Depois, bocejou amplamente: - Por que me acordaste a esta hora? Foi para trocar gracejos?

- Seu grego velhaco disse Lucano. - És um especialista, sem dúvida alguma, nisso de forçar cadeados. Não havia cofre, ou arca, ou armário, que estivesse seguro contra a tua curiosidade, em Etioquia. Dizes que Calíope é uma mexeriqueira, mas tu és o pior de todos os mexeriqueiros. Eu costumava observar-te com admiração, confesso, a uma certa distância, quando era criança. Lembro-me bem de teus talentos. Não precisas mostrar-te tão ofendido. – Prestou atenção por uns momentos. Os guinchos dos ratos perseguidos terminaram, e o navio estalava e gemia, balançando-se languidamente.

Apenas os apelos do vigia podiam ser ouvidos, aqui e ali.

Lucano começou a meditar em voz alta.

- O navio dorme, a não ser pelos escravos das galés e pelo vigia e oficiais de convés. Segundo minhas observações no passado, Cusa, acho que poucos momentos serão suficientes para que abras aquela porta no interior do navio, e me permitas entrar ali com meus remédios.

Agora, Cusa estava grandemente alarmado.

- Senhor! Imagina se tu próprio te contagiares! Ah! Sim! Já pensaste nisto? Devo entregar a Diodoro um cadáver? Teu rosto parece de ferro. Consideremos os aspectos mais práticos da situação. Galo recusou-se a deixar que entrasses nas galés, eu me desculpo diante dele por o haver considerado pessoa grosseira, para a qual o oferecimento de um bom vinho é uma blasfêmia. Ele tem o comando supremo neste navio. Se o vigia me descobrisse às voltas com o cadeado, o comandante me poria a ferros, e isso seria apenas o que eu mereceria.

Tu e ele, então, manteríeis um silêncio de gelo, enquanto eu teria que me conformar, esperando pelo dia em que chegássemos, e então eu fosse arrastado para a prisão. Sim, sim e ele erguia a mão delicada - compreendo que te arrogarias a culpa. Galo, porém, não iria colocar Lucano, o filho de Diodoro, a ferros. Poderia confinar-te em teus aposentos, o que ele devia ter feito desde o momento em que começamos a viagem. Tenho mulher e filha; a expectativa de prisão por violação das leis marítimas não me seduz. Pensa na minha esposa e minha filha, Lucano.

O jovem tornou-se impaciente:

- Pensei em tudo disse. - Irei contigo até a porta, e se formos apanhados direi ao comandante que te obriguei sob as mais ferozes ameaças, e então podes pedir ao homem que te proteja contra a minha loucura. Se os ferros ainda forem o resultado, Diodoro te libertará num abrir e fechar de olhos.

- Duvido! Exclamou Cusa. - Sabeis bem como ele respeita a lei!

O rosto de Lucano iluminou-se, e ele estalou os dedos:

- Traze Cipião, o mais jovem dos centuriões!

- A esta hora?

- A esta hora. Depressa, Cusa. Teus argumentos aborrecem-me.

Sacudindo a cabeça melancolicamente, Cusa deixou a cabina fumacenta e depressa voltava com Cipião que, embora de rosto avermelhado pelo sono e com os olhos inchados e remelosos, tinha envergado primeiro sua armadura, elmo e espada, como convém a um soldado. Levantou o braço direito em saudação a Lucano, que retribuiu o cumprimento.

- Senta-te a meu lado, meu excelente Cipião disse ele. - quero conversar contigo.

Cusa ficou junto da porta, ouvindo, coçando-se sob a túnica de noite e cheio de ansiedade.

- Cipião disse Lucano -, como soldado não tens os marinheiros em alto conceito, não é mesmo?

- Senhor, como soldado, eu os desprezo. Servem apenas para manobrar navios de guerra, colocando-os em boas posições para que os soldados possam atacar.

Os olhos negros de Cipião começaram a brilhar com interesse, mas, militar que era, não perguntou por que Lucano o mandara chamar à meia-noite. Lucano, para ele, era um procurador daquele homem poderoso, Diodoro, cujo nome todos os soldados reverenciavam.

- Marinheiros são tão arrogantes disse Lucano, suspirando.

- Sabes que Galo esta noite ameaçou-me fechar-me em meus aposentos porque eu demonstrei Opinião diferente da dele? Gritou comigo e disse que ele era um rei neste navio.

Cipião sentiu-se ultrajado.

- Ele falou assim contigo, senhor, contigo, o filho de Diodoro Cirino? - Não podia acreditar em coisa tão monstruosa.

Lucano tornou a suspirar:

- Fez isso. E na presença de seu escravo.

- Na presença de seu escravo! - O rosto jovem de Cipiao escureceu, e ele levou a mão ao punho da espada, fazendo um movimento como que para se levantar.

- Vamos, gemeu Cusa, atirando as mãos para a frente -, quem é agora o grego velhaco?

Lucano ignorou.

- Sou médico, Cipião, e seguramente um médico é mais inteligente do que um simples comandante de navio cargueiro e, sem dúvida alguma, vale muito mais. Há peste a bordo.

Ouvindo isso, Cipião empalideceu, e sentou-se de novo, lentamente.

- A não ser que eu examine as galés, o navio inteiro ficará contaminado e talvez nós pereçamos. Já viste casos de peste, Cipião? Ah! É uma coisa das mais horrorosas. As glândulas distendem-se, ficam cheias de pus, os corpos apodrecem, vomita-se sangue e a tosse é sangue. A pessoas em delírio, se arrisca às mais perigosas situações. É o que nos espera a todos. Morte. Há poucas possibilidades de sobrevivência, quando se contrai a peste. Mas aquele comandante de cabeça de marionete se recusa a permitir que eu trate e detenha a doença.

Não é uma coisa incompreensível?

O soldado jovem e simples estava incrédulo.

- Mas que se pode esperar de um miserável marinheiro, senhor? - Ele ia se excitando.

- Posso falar? Perguntou Cusa.

- Não podes respondeu Lucano, rapidamente, enquanto Cipião dirigia a Cusa um olhar ameaçador.

- Naturalmente, como médico e homem de nobreza e família, desejas ignorar as ordens desse comandante de cabeça de suíno - disse Cipião, fervendo de cólera.

- Cipião, és um jovem de compreensão das mais agudas - disse Lucano, com admiração.

- Hum! Grunhiu Cusa. - Fui acusado de ter uma natureza serpentina, mas aqui está um que envergonha as próprias serpentes de Ísis.

Lucano continuou a ignorá-lo. Cipião, com voz que tremia de cólera, disse:

- Como se atreve ele a ter a presunção de dar ordens ao filho de Diodoro Cirino?

Lucano sacudiu tristemente a cabeça:

- Gritou-me a sua autoridade, bateu com o punho na mesa.

Ameaçou-me com... Como é que dizes mesmo, Cusa?... Com os ferros.

Cipião se pôs em pé de um salto:

- Alguém pagará por isso! Exclamou.

- E tudo quanto eu desejava era proteger-nos a todos contra a peste. Estamos com a bandeira amarela arvorada, Cipião.

Poderemos não obter permissão para descer na Itália. Podemos mesmo ser mandados de volta para Alexandria ou ficarmos flutuando no mar até que morramos todos. Sabes como os médicos de Roma são rigorosos. Há quanto tempo não vês tua namorada, Cipião, e teus pais, e Roma, onde os romanos são romanos e não guardiães de um mundo ingrato?

Os olhos de Cipião encheram-se de lágrimas. Naquele momento, ele teria matado Galo num relance.

Cusa, boquiaberto, fitava Lucano em atônita admiração. O corajoso néscio era tão sutil quanto um oriental!

- Preciso de tua ajuda, Cipião. Poderá haver uma sentinela junto da porta das galés, fechada a cadeado. Ou a sentinela de vigia pode fazer suas rondas antes que o meu maravilhoso Cusa force o cadeado.

Forçar cadeados era coisa censurável e por um momento no rosto de Cipião transpareceu certa dúvida. Depois, clareou. Que significava para um grego isso de forçar um cadeado?

Assim disse Lucano, com um gesto da mão -, tudo quanto precisas fazer, Cipião, é dizer que não tens sono ou que te ordenei que me guardasses esta noite, porque sou homem muito nervoso e sujeito a pesadelos. Assim, perambularás com ares desconfiados, pelo navio. Irás até a porta das galés e descobrirás para mim se tal porta está guardada. Depois, distrairás a sentinela enquanto Cusa força o cadeado. Preciso apenas de uma ou duas horas. Cusa te dirá quando sairmos das galés. Ele é um homem medroso, naturalmente, e não se aventurará a entrar lá.

- Ser pusilânime nada tem a ver com isso! Exclamou Cusa.

- Trata-se de respeitar a lei!

Lucano olhou-o, ainda com mais tristonho ressentimento.

- Cusa, esqueceste o que significa ser um soldado de Roma, que é executora da suprema lei.

- Nós somos a lei disse Cipião, lançando a Cusa um olhar furibundo e imobilizante. - Pensas que as ordens de um marinheiro são mais importantes do que nós?

Cusa, porém, apenas olhava com piedade para ele, pois o via como vítima de um plano que ele considerava não só perigoso como abominável.

- Ordeno-te que guardes silêncio, Cusa! Disse Lucano.

- Silêncio! Disse Cipião. - Ouviste o que teu senhor falou.

- Hum... Sim... Mas ele não te disse...

Lucano interveio:

- Agora tudo está muito silencioso, Cipião. Recebe meus agradecimentos e vai. Não desejamos chegar bem e depressa à nossa pátria?

- E a ferros disse Cusa, desesperado.

- Vai também, Cusa, e traze aquela tua pequena bolsa de couro preto, com aquelas excelentes ferramentas para forçar cadeados, que provavelmente compraste de algum ladrão disse Lucano, sorrindo.

- E trata, Cusa, de não fazer qualquer tentativa para choramingar acovardados receios aos ouvidos de um soldado de Roma, quando estiveres longe de meus olhos.

- Senhor disse o jovem centurião, altivamente -, um romano é surdo para a conversação de um liberto.

Cusa voltou sozinho, com sua bolsa preta. Lucano estava ocupado em examinar o conteúdo de seu estojo médico.

- Naturalmente disse Cusa, com amargura mandarás algum vinho fino para Cipião, a fim de consolá-lo, quando o comandante o puser a ferros. E esquecerás de mandar-me do mesmo vinho.

- Tu te preocupas demais falou Lucano. Estava alerta e enérgico, como que renascido. Suas faces mostravam-se rosadas e seus olhos faiscavam de satisfação.

- Nunca pensei que meu aluno chegasse à degradação das mentiras falou Cusa.

Lucano verificava seus bisturis.

- Jamais cheguei a dizer uma só mentira falou.

- Não, não, evidentemente não. Tu és um sofista. Tresandas virtudes. Isso faz de ti também um estóico[22]. És um homem de muitos recursos, Lucano, e confesso que havia subestimado o veio de vilania que há em ti. E assim, como teu professor, confesso que estava cheio de ilusões, o que foi uma grande tolice de minha parte.

- Grande tolice concordou Lucano, com um sorriso juvenil.

Cipião voltou, irradiando satisfação.

- A porta das galés não está guardada, senhor. Evidentemente, não o consideram necessário. Quanto à sentinela, descobri que se trata de agradável pessoa de meu conhecimento, da qual fui instrutor em assuntos militares. Penso acrescentou Cipião, com o entusiasmo de um conspirador que um pequeno jarro de vinho, bebido em minha companhia no convés superior, aguçará seu interesse pelas campanhas militares.

- Um jarro de vinho disse Lucano a Cusa, que, gemendo como que atacado de fortes dores, foi buscar o que lhe pediam. Cipião descobriu, com alegria, que o jarro estava cheio, e lá se foi para o seu trabalho de distrair a sentinela mantendo-a quieta.

- O comandante mandará enforcar a sentinela lá no mastro da ponta da verga, ou da maldita coisa que seja disse Cusa. - Isso, naturalmente, não te preocupará. Esqueceste o oficial de serviço no convés superior.

- Cipião é um jovem e inteligente oficial disse Lucano, pondo o comentário de parte. - Ele, como tu, ama a tagarelice e conhece todos os oficiais de bordo. Assim, conversarão alegremente entre eles.

Como se deve sentir solitário o que está de serviço com o mar tão calmo! Vamos. Dentro de três horas amanhecerá. Ah! Espera um momento. Preciso de dois baldes para água. Não te arrastes como um velho, Cusa. Não estás para ser executado.

- Isso eu duvido disse Cusa.

Apanharam a lanterna da cabina e levaram-na para o estreito corredor externo. Lucano tinha pena, tanto pelo medo de Cusa quanto pela crença do professor na autoridade absoluta, e pela sua aceitação indiscutível de tal autoridade. Embora o comandante tivesse direito de vida e morte sobre as pessoas que estavam no navio, por amor dessas mesmas pessoas em face de elementos caprichosos e imprevisíveis, quando o perigo estava sempre presente havia, ainda mais importante, uma lei moral que um homem não tinha o direito de ignorar. O comandante tinha suas leis, mas que se tornavam opressões, em lugar de leis, quando ele negava àqueles pobres escravos qualquer socorro, alívio ou direito à vida.

Lucano recordou histórias autênticas de navios como aquele, quando escravos das galés tornavam-se doentes, com distúrbios violentos e brutais e ficavam trancados lá embaixo, sem auxílio. Os passageiros e outros escravos que se não haviam contagiado tinham permissão para desembarque, depois de examinados pelos funcionários da saúde pública, e então o navio era rebocado para o mar, com sua carga de prisioneiros, moribundos escravos de galés, irremediavelmente atingidos. E incendiavam a embarcação. Lucano fremiu, recordando aquilo. Aquele era o destino que esperava os pobres desgraçados do porão.

O jovem grego cobrira as pernas e braços com apertadas tiras de linho, bem como as mãos. Envolvera-se em seu manto, com o capuz cobrindo a cabeça. Cusa levantava bem alto a lanterna fumegante. As passagens estreitas, de madeira, estavam absolutamente silenciosas e escuras, e os dois homens deslizaram por elas, para baixo. Cipião fizera bem o seu trabalho; não encontraram sentinela. Deslizando pelas portas fechadas, retendo o fôlego e caminhando tão levemente quanto possível, podiam ouvir o longínquo e rítmico movimentar-se dos remos nas profundezas do navio, o estalido e os gemidos na madeira, o ressonar distante de homens. Todo o navio recendia a lixívia e alcatrão e a diversas fedentinas de cargas, gente, óleo, e do calor e sal dos últimos dias. O piso dos corredores, enquanto eles se moviam como fantasmas descendo as escadas para os fundos da embarcação, estava quase tão imóvel quanto a terra. O navio deslizava sobre a face do oceano com um movimento apenas perceptível.

Mais e mais desceram eles, e a vigorosa fedentina ia se fazendo quase insuportável. Agora, outro cheiro se acrescentara: o da morte e da doença. O forro do último corredor tornara-se tão baixo que Lucano era obrigado a curvar sua cabeça. Viu que água estagnada se ia infiltrando ali em pequenos fios negros, infinitamente nauseantes para as narinas. Num esforço para deter a infecção que se espalhava, ervas, especiarias e substâncias insalubres foram queimadas ali, aumentando a fumaceira, o calor sufocante e a poluição do ar. A lanterna atirava sombras atrás dos dois homens que deslizavam sobre o piso imundo, pelas paredes de madeira podre, com forro que deixava vazar líquidos.

Lucano teve consciência de um som como que de um sopro contínuo de vento, selvagem e ainda assim abafado, sonoro e melancólico.

Era a voz dos escravos das galés, a voz sem amparo, menos do que humana e, entretanto, repleta da agonia de toda a humanidade. Cusa parou, assustado.

- São apenas os escravos murmurou Lucano, confortando-o.

Mas Cusa tremia. Lucano empurrou-o com delicadeza e a lanterna vacilava na mão do outro, que cochichou:

- Como poderemos evitar que o comandante venha a saber disto? Ali há muitos escravos e um capataz. Isto transpirara.

- Provavelmente respondeu Lucano. - Mas um fato consumado é um fato consumado, e somente eu serei visto. Contudo, se tiver sucesso, e sinto que o terei, o comandante será o primeiro homem a ser cumprimentado pelas autoridades e podes estar certo de que não mencionará a parte que terei tomado nisto.

O corredor era tão estreito que eles tinham de andar um atrás do outro. Era, também, bastante curto. No fim, uma espessa porta de madeira, com ferrolho e cadeado. Lucano fez sinal a Cusa, que deslizou em direção a ela, abrindo sua bolsa de ferramentas - Não te ajoelhes sussurrou-lhe Lucano. Há infecção na água.

Cusa curvou-se para o cadeado e começou a trabalhar nele, suas mãos ágeis e úmidas tremendo, o suor correndo-lhe por sobre os olhos.

Lucano mantinha a lanterna junto dele, e observava-lhe o trabalho por sobre os ombros. As lamentações dos escravos, atrás da porta, pareciam parte do próprio ar, e as paredes e forro vibravam com elas.

Outros escravos estavam confinados no corredor vizinho, pois tinham o dever de levar comida aos escravos das galés, bem como água, e substituir aqueles que morriam. A maior parte deles eram os que Lucano vira serem trazidos para bordo no dia em que embarcara. Foram condenados à morte, sem culpa, pelo comandante, e sabiam disso. Lucano podia ouvir os soluços sufocados de suas mulheres, e os gritos de seus filhos, através das paredes.

Enquanto Cusa trabalhava, Lucano despejava pacotes de desinfetantes em dois baldes de água que tinham trazido com tanta dificuldade. Um era para que o bebessem os escravos doentes e moribundos, o outro para seu próprio uso. Tinha que manter as mãos molhadas, enquanto fazia os tratamentos. O cheiro de desinfetante misturou-se aos outros cheiros intoleráveis, e Cusa espirrou miseravelmente, limpando o nariz na manga e continuando a trabalhar. Houve, então, um estalido agudo, e o cadeado estava aberto.

- Vai embora já murmurou Lucano. - Não abrirei a porta enquanto não estiveres longe dela. Fica na minha cabina e, se alguém vier, dize que estou dormindo.

Durante um longo momento, entretanto, o professor ficou a olhar estranhamente para Lucano, à luz alta da lanterna, e seus olhos ativos mostravam-se estranhamente imóveis e fixos. Estava pensando: Se eu tivesse tido um senhor menos bom e justo do que Diodoro, também poderia estar nestas galés, morrendo, sem auxílio, sem esperança. Se não fosse por Lucano, eu ainda seria um escravo.

E sussurrou:

- Senhor, eu não te deixarei.

Lucano franziu para ele as sobrancelhas, mas Cusa repetiu:

- Aonde fores, eu irei.

O jovem grego sorriu, e pareceu a Cusa que seu rosto tinha um rápido e súbito halo de luz.

- Vem comigo disse o jovem grego.

Alguns ratos, que escaparam à matança geral daquela noite, passaram correndo por eles, guinchando, alvoroçados, e Cusa teve a impressão de que eles se mantinham contra as paredes do corredor, como se houvesse algo que só eles viam, algo não terreno, que lhes dera uma ordem não ouvida. Com aquilo, veio a coragem a Cusa. Sentiu um ímpeto de exaltação. Nada jamais poderia ferir Lucano, nem aqueles que o serviam.

Foi preciso que ambos reunissem suas forças para abrirem a porta, e ainda assim apenas com um esforço tremendo o conseguiram.

Tinham colocado no chão os baldes, a lanterna e o estojo médico, no ponto mais seco, de forma que a luz tombava apenas no piso da galé.

O resto era treva absoluta. Mas tão poderosa insalubridade e calor correram dali para fora que Cusa os sentiu como poderosos golpes em seu corpo e em seu rosto, e tropeçou, recuando, cobrindo a face com a manga. Os gemidos e lamentações dos escravos encheram todo o corredor com um eco surdo.

- Depressa! Sussurrou Lucano. Apanhou a lanterna e seu estojo, e Cusa, recuperando o controle, mas nauseado, levantou os dois baldes com os desinfetantes. Lucano dirigiu a luz fraca da lanterna para as galés e Cusa seguiu-o. A porta rodou, fechando-se atrás deles, pesadamente, pois o navio jogava um pouco, pela força do mar.

Lucano se havia preparado para uma cena de desolação. Mas aquilo ficava para além da sua imaginação, quando ele, devagar, foi iluminando a galé. Apenas pequenas e altas vigias, descobertas, admitiam ali alguma luz que vinha do céu estrelado, mas sem lua, e da fosforescência do mar. Não se podia chamar luz aquilo, e sim sombras de luz, como o reflexo das asas das mariposas. E, naquela iluminação erradia, assistida pela pálida luminescência de remos que saíam através das vigias, e pelos raios bailarinos da lanterna, Lucano pôde ver homens nus e barbados, em seus bancos, homens acorrentados, agrilhoados, brancos, pretos, amarelos e morenos, as cabeças baixas, os olhos fechados de dor, os peitos arquejantes, costelas e ossos visíveis sob a pele esticada. Seus braços moviam-se em ritmo mecânico, suas vozes carpiam em vasto gemido, e o unir e reunir de suas correntes e grilhões acrescentavam um coro surdo de ferro ao seu lamento. Ao longo das paredes, próximas da porta, estavam os mortos e os moribundos empilhados; os que ainda viviam, os que tinham acabado de morrer Ou que estavam mortos havia horas, os rostos semelhantes a crânios rijos, à luz incerta. O capataz, ele próprio escravo e criminoso, caminhava de cá para lá entre as fileiras de remadores, o chicote estalando, os olhos arregalados de terror. Parou, ao ver Lucano e Cusa, e ficou calado, umedecendo os lábios.

Lucano teve a impressão de que aquilo era uma cena do inferno, cheia de espectros torturados, impregnada com as fedentinas que só uma cavidade carnal pode expelir. Riachos profundos e imundícies, negros como serpentes rastejantes, movimentavam-se de cá para lá, com o balanço do navio, correndo pelo piso. Havia vômitos de sangue; fezes sangrentas foram expelidas no chão, bem como urina contaminada.

O capataz voltou a si de seu espanto ao ver os dois intrusos.

Pensou que fossem fantasmas, pelas suas roupagem brancas. Então, adiantou-se para eles, amedrontado. Lucano disse, imediata e calmamente:

- Sou médico e preciso de tua ajuda, e ele é o meu assistente.

Não temos nomes. Devemos trabalhar depressa.

O homem ali ficou a olhar, tão despido quanto os outros escravos.

Lucano fez-lhe sinal, impaciente:

- Devemos trabalhar repetiu. - Ou todos morrerão. Toma este balde, e dá um gole desta água a cada homem.

Em sua voz ressoava autoridade, e o capataz agarrou o balde, recuperando-se da surpresa. Mas foi o primeiro a tomar um gole. Lucano e Cusa, nesse meio-tempo, molhavam o rosto e as mãos com o conteúdo do outro balde, e Cusa molhou também as pernas. Enquanto o capataz obedecia, Lucano examinava os que ainda estavam vivos, morrendo junto dos já mortos. Os que não pareciam estar no fim ele separava para a parede oposta, encostando-os nela. Os que já não podiam ser ajudados, deixava que ficassem com seus companheiros imóveis.

Era, sem dúvida, a peste mortal. Os fígados dos doentes mostravam-se imensamente inchados, suas línguas intumescidas e cobertas de uma grossa capa branca, as peles febricitantes. Bubões erguiam-se, intumescentes de sangue e pus, nas regiões inguinais latejantes. As pernas dos doentes tinham sangue que escorria do reto, e sangue corria da boca de outros. Alguns bubões já haviam estourado e seu conteúdo corria pelos corpos dos homens.

O coração de Lucano subiu-lhe à garganta, soluçante de piedade.

Não havia tratamento efetivo para os já atingidos, apenas algum alívio para seus sofrimentos. Rapidamente abriu seu estojo e tirou dele pequenas bolsas contendo fortes sedativos em frascos. Em cada boca arquejante derramou um pouco do liquido. Os homens levantavam os olhos para ele, como animais mudos e atormentados. Lucano sorria-lhes, suavemente. A lanterna fazia faiscar parte de seus cabelos que exposta, e seus olhos azuis irradiavam para eles a mais profunda e terna compaixão. Os lábios inchados dos homens moviam-se silenciosamente; um ou dois, inconscientemente, estenderam as mãos para as roupas do jovem, pois sentiam sua dor e seu amor por eles. O capataz voltou com o balde vazio e olhou para Lucano com olhos estranhos e dilatados. Cusa tornou a encher o balde, com água de um tonel que ali estava e, a um gesto de Lucano, deitou nele novo remédio.

Lucano disse ao capataz:

- A cada hora que se passar, dá a cada homem um gole da água deste balde. Amanhã, baldes iguais, para os que não estão atingidos, serão colocados do lado de fora da porta. Manda que o escravo que abre a porta os traga para dentro. E haverá também baldes de água, marcados com sinal vermelho, contendo desinfetante, os que estiverem bem devem molhar o corpo, com intervalos freqüentes.

Procura e mata todos os ratos, imediatamente, e atira os corpos deles pelas vigias.

- Sim, senhor murmurou o capataz. Olhava Lucano com respeitoso temor. Sorriu, um sorriso trêmulo: - Senhor, foi como se um deus tivesse entrado aqui. Bebi o teu remédio e vida nova entrou em mim, como nos escravos das galés.

Foi Cusa quem percebeu que os homens já não se lamentavam. À luz da lanterna podia ver dezenas de olhos dirigidos para Lucano, que os socorrera, e eram olhos de homens que subitamente adquiriram esperança naquele buraco fétido e pobre. Alguns deles começaram a cantar uma canção sem nome, e um momento depois outros se reuniram.

Era um canto de ação de graças, de gratidão, mesclado com o sibilo e o estalido dos remos. Mesmo os moribundos e os doentes o ouviram e moveram as cabeças, cessando de se lamentar. O rosto grotesco de Cusa mantinha uma expressão iluminada, enquanto auxiliava Lucano. Não havia escravos naquele buraco úmido: todos eram homens.

- Bom disse Lucano, abstraidamente. Estava em pé, entre os destroços dos doentes, dos moribundos e dos mortos e, para Cusa, realmente, ele tinha o aspecto de um deus conquistador. Havia pendurado a lanterna num gancho de ferro gotejante. Suas vestes estavam manchadas de sangue e sujeira. Mas seu rosto era radioso. E disse ao capataz: - No convés, duas cobertas acima, há vigias e janelas bastantes. Manda dois ou três dos remadores removerem os mortos daqui, e atirá-los, sem muito alarde, no mar. isto não pode esperar até amanhecer. Os mortos são o perigo.

O capataz encolheu-se:

- Senhor, estou proibido, como todos esses remadores, de deixar as galés!

- Se isso não for feito todos morrerão disse Lucano, severamente. - Movei-vos o mais silenciosamente possível. Não sereis ouvidos. Isto tem de ser feito! É minha ordem.

O capataz relutou, depois viu a luz autoritária nos olhos de Lucano e não mais pôde hesitar, pois era como se um deus lhe desse ordens.

Chamou dois ou três dos homens mais confiáveis e soltou-lhes os grilhões. Os homens ergueram-se de seus bancos ásperos, rígidos e enfraquecidos e adiantaram-se cambaleando. Começaram a erguer os mortos sobre os ombros, seus próprios corpos ensopados de suor misturado ao desinfetante. Um ou dois, reconhecendo entre os mortos os rostos de amigos, soluçaram alto.

A porta abriu-se para trás, e os escravos, com sua lastimável carga, deslizaram para fora. Um por um, enquanto Lucano continuava a tratar dos doentes, os mortos foram silenciosamente removidos. O navio balançava e murmurava por todo o seu madeiramento. Quando o arquejante capataz tornou a se aproximar dele, Lucano disse:

- Deves também molhar as paredes e o forro com este desinfetante. Lembra-te das minhas ordens! É a vossa única possibilidade de sobreviver!

O capataz disse, em voz abalada:

- Senhor, estive pensando. Os que atiramos ao mar foram mais felizes do que nós.

- Sim falou Lucano, franzindo as sobrancelhas. Apesar disso, alguns entre vós serão eventualmente libertados, depois de terem cumprido as suas sentenças. Quanto aos outros, enquanto viverem, terão esperança.

E disse, apaixonadamente:

- Pensas que sou mais afortunado do que vós? Digo-te, todos os que vivem estão condenados!

Os doentes e os moribundos adormeceram subitamente, amontoados. Nos rostos de alguns dos doentes havia um grande alívio das dores, e uma paz em suas faces barbadas e sujas. Cusa ficou a olhar para eles, com medo.

- Não há esperança para esses falou Lucano, pesaroso. - temos métodos efetivos de tratamento. Mesmo sob as melhores a peste é quase sempre fatal. - Sua sombra aparecia alta nas paredes, e dava a impressão de ser alada.

Ao capataz ele deu o resto dos frascos, ainda não abertos.

- Tem misericórdia, pois és um homem disse-lhe. - Dá a cada um dos doentes e dos moribundos um gole disto, a cada três horas, para que eles possam morrer em paz, sem dores.

Parou e, depois, involuntariamente, disse:

- Que Deus vos acompanhe.

E não foi realmente ele quem falou, mas Sara através dele.

Repetia mecanicamente as palavras da moça, vendo de novo o rosto dela diante de seus olhos. Reteve o fôlego, com um som áspero, e fez sinal a Cusa, que apanhou a lanterna do forro e ergueu do chão o estojo médico. Tinha trabalho a fazer. Precisava destilar mais desinfetantes e remédios, sozinho em sua cabina, de forma que os escravos tivessem o fornecimento necessário. Cipião e Cusa, de certa maneira, poderiam deixar os baldes à porta, pela manhã.

Com o professor, ele abriu a porta. As vozes dos escravos ergueram-se atrás dele, numa vaga estática de trêmulo regozijo, e foi sob aquele som, como uma prece em uníssono, que fechou a porta e tornou a trancar o cadeado. Então, Cusa inclinou-se, ergueu a fímbria da túnica de Lucano e beijou-a em silêncio.

Três dias depois o comandante chamava Lucano à sua cabina, e Lucano obedecia, depois de dizer palavras que aliviaram a ansiedade e o medo de um aflito Cusa.

- A culpa é minha. Ninguém estava comigo disse ele, confortadoramente.

         O rosto de Galo era um amplo sorriso.

- Senta-te, digno Lucano! Exclamou ele, para espanto do jovem grego, que vinha preparado para qualquer acontecimento calamitoso. - Vinho? Sim, vinho! Hoje, sinto-me um homem feliz, meu querido amigo! Um homem muito feliz!

Lucano provou o vinho que o comandante lhe dera com uma reverência de encantada cerimônia, e olhou para o rosto bem-humorado do homem, no qual os olhos dançavam triunfantes. O comandante sentou-se em lugar oposto ao dele, as grandes mãos abertas sobre os joelhos, e ficou a olhar zombeteiramente para Lucano.

Sacudiu um dedo como um pai amistoso que advertisse o jovem médico:

- Todas as tuas sombrias profecias! Exclamou. - Ah! Se não fosses o filho de Diodoro Cirino eu riria de ti! Mas és jovem e sem experiência, desgraças que o tempo curará!

Estava exuberante, e Lucano sentia-se perplexo.

- Tens boas notícias? Aventurou ele. - Vindas do porto em que tocamos rapidamente na noite passada?

- Não tocamos no porto disse o comandante - Uma pequena embarcação remou até nós, trazendo cartas. Uma é para ti. Aqui está, sobre a mesa. Não temos permissão para tocar nos portos, se levantamos a bandeira amarela. Mas a bandeira está sendo arriada, hoje.

Gritava de alegria, batia nas próprias coxas, e abria amplamente a boca num sorriso para Lucano.

Depois, sacudiu a cabeça, o ar tolerante:

- Vós, médicos! Mesmo meu Príamo se enganou. Não havia peste a bordo. Sabes que todos os que apanham a peste morrem, mas mesmo os escravos das galés, que foram atingidos, ficaram bons, e há três dias que a doença não aparece entre eles. Estás ouvindo, jovem senhor? Mesmo os atingidos ficaram bons, e isso é impossível, tratando-se da peste! De uma hora para outra levantaram-se do chão da galé e tomaram seus lugares nos remos. - Bateu de novo nas coxas, e mugiu alegremente, em seu alívio. - E nem uma só morte, em três dias! Não era absolutamente a peste!

Lucano estava incrédulo.

- Não é possível! Exclamou ele. E quase se traía. Mas acrescentou: - Teu Príamo é excelente médico. Não se podia ter enganado.

Já tinha visto a peste, antes.

Sentia sua autoconfiança grandemente abalada. Seria possível que tanto ele como Príamo tivessem cometido um erro? Recordou-se dos rostos dos mortos e dos que morriam sob seus olhos, viu de novo os bubões, sentiu o cheiro do vômito vermelho e o ardor crescente da febre. Sacudiu a cabeça em absoluta perplexidade. Os doentes e os moribundos não tinham mais possibilidade de cura. Entretanto, haviam sobrevivido, recuperado rapidamente a saúde, retornando ao bem- estar! Algo impossível acontecera.

Não era trabalho dos remédios que deixara para os que estavam irremediavelmente perdidos. Aquilo não passava dos opiatos comuns, que aliviam a agonia do moribundo. O desinfetante podia ter tido sua parte na prevenção de novas infecções da peste, mas mesmo isso era com freqüência inútil, diante de tanta virulência. Entretanto, os doentes e moribundos viviam! Lucano tornou a sacudir a cabeça, estonteado, e pensando: Que espécie de médico sou? A única explicação para isto é estar meu diagnóstico errado. Mas os bubões, as hemorragias do reto e dos pulmões! Poderia, por acaso, tratar-se de alguma outra doença ainda desconhecida com os sintomas da peste?

- De uma hora para outra os que estavam aparentemente doentes e moribundos levantaram-se do chão e estavam curados! Disse o comandante, jubiloso. Estendeu a mão e deu uma palmada no ombro de Lucano. E sacudiu-se em riso, muitas e muitas vezes. - Falei com o capataz, e sabes como são supersticiosos aqueles animais. Jurou-me que Apolo e um de seus assistentes, brilhantes como a luz, entraram através da porta fechada a cadeado... Fechada a cadeado!... E trataram dos moribundos. E eles se curaram! - O comandante sacudiu a cabeça, divertido: - Ah! Bem... Deixemos que os pobres desgraçados tenham seus sonhos. É tudo quanto têm.

- Sim disse Lucano, levantando-Se. - É tudo quanto temos.

Apanhou de sobre a mesa do comandante a carta que lhe era destinada e, seguido pelo riso do homem, deixou a cabina e foi para a que lhe pertencia, com um andar pesado e a cabeça meditativa. Que isto te sirva de advertência, disse a si próprio, com severidade. Não faças julgamentos precipitados. Encontrou Cusa na cabina, que tremia na expectativa de ser apanhado e atirado aos ferros. Lucano sorriu-lhe, um sorriso fraco.

- Não tenhas medo disse. - Tudo esta bem. - E contou-lhe a conversa com o comandante.

Cusa ouviu, e seu rosto alerta fez-se grave e imóvel. Fixou os olhos em Lucano, com a mais estranha das expressões.

- É o que suspeitei murmurou, e antes que Lucano pudesse evitá-lo, caiu de joelhos e encostou a cabeça nos pés do jovem, para espanto deste.

- Não, não disse Lucano. - Eu não os curei, meu bom Cusa! Não se tratava de peste, afinal.

Cusa, porém, beijou-lhe os pés e nada disse.

Lucano ergueu-o, tentando rir.

- Tenhamos juízo falou. E, apanhando a carta vinda de Roma, pôs-se a lê-la. Era Íris quem lhe escrevera.

Então, Lucano soltou um grande grito de desgosto e desespero, e quando Cusa correu para ele, o moço atirou-se nos braços de seu professor, chorando desabaladamente.

 

Duas semanas antes de Lucano deixar Alexandria, escrevera a Keptah e agora, naquela manhã, cinco semanas depois, Keptah desenrolava a sua carta, que chegara naquele dia, através dos serviços tanto de um navio rápido como de correios especiais. O médico leu a carta, depois olhou pensativa e melancolicamente para o jardim onde estava sentado. Para além do pórtico aberto as árvores cantavam ao brando sopro do vento outonal e a terra exalava tal doçura e frescor que chegava a ser pungente para o coração. O sol reluzia sobre fontes rústicas e sobre as grandes estátuas malfeitas, pois Diodoro preferia formas e movimentos que se assemelhassem aos da Terra, em seu esboço forte, no gesto e na simplicidade. Daí as cores brilhantes das lajes que formavam o piso do pórtico, a robustez despretensiosa das colunas que o rodeavam, o colorido vigoroso das flores, as poderosas e resistentes árvores.

Bem além do jardim erguiam-se as colinas baixas, como que trabalhadas em mosaicos, com os cachos maduros nos vinhedos pertencentes à propriedade. Seu perfume vinha com o vento, como uma rica promessa. Os olivais e pomares subiam para outras colinas, e entre a casa e essas colinas as pastagens ainda conservavam um verde esmeraldino, povoadas com as formas plácidas do gado, dos carneiros e dos cavalos. O pequeno regato, que se movimentava através dos prados, mostrava-se de um verde mais brilhante, muito calmo, porém, esquecendo a turbulência da primavera. Uma atmosfera de paz, quase palpável, suspendia-se sobre aquele trecho de terra, colorida de uma doçura dourada, ampla e tépida.

Keptah pouco envelhecera durante os quatro anos passados. Havia nele aquele ar sem idade e a secreta sabedoria do Oriente. Seus olhos fundos, entretanto, estavam inquietos naquela manhã. Pensava em Diodoro. Deveria contar ao senhor a decisão a que Lucano chegara, quanto ao seu futuro? Ou, considerando as condições físicas do tribuno, seria melhor deixar o assunto para o próprio Lucano? Keptah tornou a ler a carta, especialmente a última parte.

“Tenho certo pressentimento sombrio e temeroso quanto a meu pai Diodoro”. Ele me escreveu, e também minha mãe, sobre suas freqüentes visitas ao Senado, como convidado de Carvílio Ulpiano. Eu não conheço esse senador, que é aparentado com meu pai, mas há algo de inquietação em mim, quando penso nele. Quem poderia conhecer Diodoro sem honrá-lo, amá-lo e respeitá-lo? Sem dúvida, apenas homens perversos.

“Compreendo que Diodoro, homem tanto de ação como de pensamento, amando patrioticamente seu país, sinta que devemos fazer o possível para salvar Roma”. Cheguei, entretanto, à conclusão de que Roma não merece que a salvem, tão baixa se tornou nestes últimos cem anos, tão corrupta e monstruosa. Por quê, então, deve meu pai lutar assim desesperadamente? Além disso, o destino do homem está nas mãos de Deus, e Deus não é notável, segundo minhas observações, pela demonstração de misericórdia ou amor pelos Seus profetas.

Ainda ontem um dos meus professores censurou-me por essa convicção. Disse-me: "Tu estás demasiado absorvido nos homens. O sofrimento e a morte são o destino comum de todos os homens. Portanto, por que sentes tão amarga rebelião? Que desejas tu? Que todos os homens sejam imortais e jamais tornem a sentir dor?" Vi que ele não me compreendera, mas disse: "Quando Deus fez o mundo e o homem, por que os fez tão imperfeitos, tão cheios de agonia, tormento e perversidade?" E ele me respondeu: "És jovem. Mas eu te falei de nossos heróis e profetas e de nossa antiga religião e lendas. Deus fez o homem dotado de livre-arbítrio; quando não, o homem seria tão inocente como os animais dos campos. Como o homem é uma alma imortal, bem como um corpo físico, a honra de escolher seu próprio destino lhe foi outorgada, pois o espírito não é uno com as árvores e os animais. Se o homem escolhe o mal, e suas conseqüentes dores e sofrimentos, ele é o único a ser censurado por isso, e não Deus."

"Ao que parece, Roma escolheu dores, sofrimento e morte através da sua sede de sangue, seus crimes contra a humanidade, sua libertinagem e opressão. Deve meu pai esforçar-se contra isso, inutilmente? Há também minha mãe e irmãos a considerar. Se ainda acreditas no poder das preces a um Deus que não ama os homens, reza para que meu pai volte para a paz de suas propriedades, das quais falava constantemente em Antioquia, pois eu temo por ele."

E eu também, pensou Keptah. O vigilante do vestíbulo veio ter com ele, então, caminhando apressadamente pelos caminhos apedregulhados que corriam em curvas pelo jardim.

- Meu senhor deseja falar contigo, senhor. Está com uma das suas dores de cabeça.

Franzindo as sobrancelhas, Keptah levantou-se e dirigiu-se majestosamente até a casa grande, mas simples, e foi ter ao quarto de Diodoro. O tribuno estava deitado em sua cama, torcendo-se e blasfemando, apertando violentamente as têmporas entre as palmas das mãos.

Vendo Keptah, sentou-se e lançou-lhe um olhar de furibunda cólera.

- Estou de novo com a enxaqueca! Exclamou, em tom de acusação. - Mas esta é a pior de todas; devo ser convidado de Carvílio Ulpiano hoje, no Senado, onde falarei para aqueles canalhas, num último esforço para comover suas almas de aves de rapina. Vós, médicos! Não podeis curar uma simples dor de cabeça, ou entupimento de nariz, ou inflamação de garganta, e falais eruditamente de doenças obscuras e seu tratamento! Ora!

Gemeu e tornou a deitar-se, sempre blasfemando terrivelmente.

Era óbvio que estava muito doente. Sua fronte baixa mostrava-se tomada de vermelhidão brilhante, e os lóbulos das orelhas, bem como os lábios, exibiam coloração azulada. Seus olhos envesgavam de dor sob as sobrancelhas pretas e ferozes, e rios de suor rolavam-lhe das têmporas. Em seu pescoço robusto era visível o latejar das artérias, e a respiração parecia fazer-se penosa.

Keptah sentou-se silenciosamente ao lado do leito. Então, falou:

- Senhor, eu te disse, durante todo o ano passado, que não tens apenas as tuas enxaquecas habituais. Tua pressão sangüínea está excessivamente alta, e eu tive de sangrar-te várias vezes. De vez em quando teu coração tem bulhas alarmantes. Tenho suplicado que lutes pela calma e tranqüilidade; um homem só é vítima de suas emoções quando permite que tal coisa aconteça. Imploro-te que esperes por aquela raiz que virá da Índia, pois estou informado de que os médicos têm usado ali há milhares de anos, com efeito maravilhoso, no tratamento da alta pressão sangüínea, mentes confusas e insanidade. O professor hindu de Lucano prometeu mandar-me essa raiz, que deverá aqui chegar dentro de quatro semanas.

Diodoro sentou-se de súbito, furioso, e tomou a agarrar as têmporas, gemendo, depois olhou encolerizado para Keptah:

- Insanidade! Trovejou ele, blasfemando. - Escravo infernal!

Keptah respondeu com um sorriso afetuoso:

- Não sou escravo, senhor, graças a ti. Como médico, e livre, segundo a lei de Júlio César, também sou um cidadão de Roma. Não, senhor, não te considero louco. Considero-te um nobre espírito de retidão, tomado pela paixão da justiça e da verdade.

Devemos nossos poetas e nossos heróis a mentes e almas como as tuas, bem como nossos artistas, professores, eruditos, patriotas, e todos os que, como Pigmalião[23], tentam transformar a pedra obstinada em carne resplandecente. E quem sabe? Talvez daqui a milhares e milhares de anos suas palavras de exortação, beleza e força, suas censuras piedosas ecoarão como poder dominador nos corações dos homens e não mais haverá o mal.

Diodoro ouvia encolerizado, ali estendido, com a cabeça entre as mãos. Então, berrou:

         - Tudo belas palavras! Mas só a minha voz se deve erguer em favor de Roma? E se há apenas a minha voz, devo eu retraí-la? Não estou interessado em nações que ainda não surgiram. Estou interessado em meu país! Como posso viver de outra maneira diante de mim próprio?

Keptah suspirou e nada disse. Diodoro sentou-se penosamente, e agora sua voz era mais tranqüila, quase suplicante:

- És homem de sabedoria, meu bom Keptah, mas és um filósofo, esperando que a poeira do deserto chegue a ser governo num futuro remoto. Suponhamos que todos nós tomemos as palavras dos filósofos a sério e deixemos o mal presente fazer seu caminho, indiferentemente.

Então, o mal se tornaria universal e não haveria nem presente rejuvenescido nem futuro!

“Keptah, eu estou neste mundo, e em seu presente”. O futuro pertence a meus filhos. Não devo lutar por um mundo de lei, ordem e justiça, para eles, quando eu for um punhado de cinzas, junto a meus pais? Ou devo resmungar, como tu, sobre futuras e grandes gerações e deixar que meus filhos herdem, de imediato, degenerescência, ilegalidade e crime?

“Ouve-me, Keptah”! O primeiro dever do homem é seu dever para com Deus e para com a sua pária. As nações são expressões dos remos espirituais de Deus. Quando essas nações tornam-se abandonadas e rebaixadas, entregues a um orgulho sanguinolento e ao deboche, à guerra e à tirania, então elas desfiguram o reino da terra, e a penalidade é a morte. Roma morrerá, inevitavelmente, a não ser que como eu falem. E onde estão as vozes que se erguem em favor dela?

Quem gritará aos romanos: "Destruístes o que Deus construiu e deveis retornar à liberdade, à pureza e à virtude, imediatamente, a não ser que desejeis morrer"?

Levantou a mão para impedir o médico de falar. Sua testa estava quase tão vermelha quanto o sangue, e veias arroxeadas corriam-lhe pelas têmporas, enquanto ele arquejava:

- Deixa-me acabar. Deus é a pátria. Eles são a Lei. Tu me falarias de minha família, como já o fizeste antes, advertindo-me, constrangido, do perigo mortal. Mas minha primeira responsabilidade é para com Deus e a minha pátria, para com a memória de meus pais, que morreram por ambos. Se eu morrer, então deixarei o destino de minha família nas mãos de Deus. Devesse também ela perecer, por minha causa, então não teria suportado o horror de viver num mundo que se tornou depravado, sem misericórdia ou bondade. Eu preferiria que morresse, pois quem, sendo homem, escolheria a escravidão?

Levantou seu punho fechado, solenemente:

- É melhor morrer do que viver num mundo como o de hoje. E é meu desesperado dever tentar modificar esse mundo, mesmo que não o consiga!

Keptah levantou-se e curvou-se profundamente diante dele:

- Sim, senhor, eu compreendo. Perdoa-me colocar meu amor por ti antes da poderosa e justa paixão que te domina. Prepararei agora uma poção que te aliviará os sofrimentos temporariamente, a fim de permitir que vás a Roma esta manhã.

Ia saindo do quarto, quando Diodoro, a voz estranhamente suave, chamou-o de volta. O tribuno estendeu timidamente a mão e tomou a do médico:

- Meu bom Keptah, amado tanto por meu pai como por mim e pela gente da minha casa, seu miserável obscurantista! Sei que jamais deixarás minha família.

A emoção não permitiu que Keptah falasse. Apenas pôde levar a mão de Diodoro até os lábios.

- Que fale o nobre tribuno! gritaram os senadores, e aqui e ali o coro era zombeteiro.

Diodoro levantou-se, escura e aquilina figura em sua túnica militar, o elmo emplumado e a armadura com a espada curta e larga pendente do cinto. Levantou sua mão revestida de malha, e os senadores, alguns desdenhosos, outros sorridentes, alguns velhos, outros jovens, alguns patrícios, outros desprezíveis libertos sem honorabilidade, ficaram em silêncio, olhando para o tribuno. A luz do sol deslizava pelos ombros vestidos de branco, e aqui e ali um rosto nobre recortava-se em claridade sombria, ou um lábio se iluminava, ou um olho faiscava, ou fazia-se de fogo, ou um perfil mesquinho se revelava no recorte de seu contorno como o desenho tosco de uma criança. O piso de mármore e as paredes reluziam, as colunas fulguravam, e soldados de espadas desembainhadas perfilavam-se às portas de bronze das entradas.

Diodoro olhou para eles todos e um pressentimento estranho e poderoso desceu sobre ele. Aquilo apenas aumentou a crescente força da ira em seu coração, sua repulsa, sua sensação de que as soldaduras de seu corpo lutavam contra a paixão de sua alma que desejava explodir. Caminhou para o podium e, no silêncio, o eco de suas sandálias revestidas de ferro soou de parede a parede, de coluna a coluna, e a luz do sol relanceou pelo seu elmo e pela sua armadura, em súbita fulguração. Ele era Marte, abroquelado e belicoso, armado com o raio, e envolvido em alta grandiosidade.

Descansou as mãos no rebordo da estante e olhou para os senadores. Sorriu, não agradavelmente, mas tomado de raiva.

- Vós, romanos, amigos e compatriotas, ouvistes-me antes deste dia. Falo hoje em nome de Roma, pela última vez. Depois, silenciarei.

Aspirou o ar, profundamente, e seu peito se dilatou, tomado pela paixão e força:

- Não vim honrar Roma, mas enterrá-la.

Uma voz gritou:

- Traição!

Diodoro tornou a sorrir, e curvou a cabeça.

- É sempre traição falar a verdade.

Ergueu a cabeça e lixou os senadores, com o faiscar poderoso de seus olhos.

- Neste mesmo Senado, não há muitos anos, um senador foi assassinado por ter falado a verdade. Não pela faca ou pela espada ou pela lança foi ele assassinado, nem pelas pedras honestas. Não foi mão digna a que o atingiu e derrubou, pois não havia aqui mãos dignas.

Ele falou de Roma. Gritou que Roma já não era uma República. E que se tornara um império sedento de sangue, governado não por homens de sabedoria, não pela lei, mas por César e suas legiões, seus generais e seus libertos rapaces, e seus políticos palacianos. O senador ergueu-se neste mesmo podium e chorou pela República. Chorou porque os imperadores não eram eleitos pelo povo, mas por legiões infames e pelas turbas ociosas e ávidas que desejavam apenas devorar os frutos dos celeiros e os tesouros, e divertirem-se com charlatães e saltimbancos, atores e cantores, gladiadores e pugilistas, a expensas do público.

“Aquele senador era um jovem de olhos brilhantes e coração como o do touro sagrado, ardoroso de amor pelo seu país”. Um jovem brutal, que não usava frases polidas e não tinha elegância. Tinha apenas amor pelo seu país. Um jovem apaixonado, que acreditava ser a verdade invulnerável e as mentiras frágeis teias de aranha! Mas, como sabeis, ele apenas amava sua pátria, e só os loucos amam sua pátria.

Os senadores conservavam-se em duro, mas tenso silêncio, e alguns dos mais velhos baixavam a cabeça, lembrando-se de sua vergonha, e encolerizavam-se contra o tribuno, que trazia tal vergonha à sua lembrança. Os soldados andavam de um lado para o outro, nas portas, lentamente, e ouviam, os seus rostos voltados para Diodoro; alguns eram jovens e patriotas, e seus corações batiam apressadamente.

O tribuno bateu com a mão recoberta de malha sobre a estante, e foi como que o ribombar de um trovão no resplandecente silêncio marmóreo.

- Por avidez, aquele jovem senador gritou-vos, as turbas desta cidade têm prestigiado péssimos césares, que andavam apenas poder, porque aqueles césares lhes prometeram o saque dos tesouros públicos. Senadores venais apoiaram esses césares, para retirar disso proveito e poder. Os césares mentirosos falaram às multidões e disseram-lhes que nossa pátria não se podia defender dos bárbaros sem aliados, e esses aliados deviam ser eternamente comprados, adulados e afagados. Os césares traidores conspiraram contra sua nação, enlouquecidos pela avidez de serem adorados como os deuses, por todo o mundo, e serem aclamados por milhões de ladrões, mendigos, lutadores, libertos e pusilânimes, que jamais sentiram pulsar o patriotismo em seus corações de abutres!

- Traição! Várias vozes exclamaram, aterrorizadas, e rostos voltaram-se uns para os outros, em fúria e alarma.

Diodoro manteve-se atrás da estante e pôs os polegares no cinto, olhando para eles com ódio e escárnio.

- Estas são as minhas palavras, embora eu já as tenha dito diante vós. São as palavras do senador que entregastes à morte neste mesmo local.

Abriu a túnica no peito, e a armadura tombou ao solo, retumbando:

- Olhai para as minhas cicatrizes, para a evidência dos meus ferimentos! Vós, senadores, vós, canalhas, vós, mentirosos perfumados, olhai para os meus ferimentos! Vós, velhacos e ladinos, que vos deitais sobre sedas ao som das liras e sob o murmúrio das mulheres prostitutas e dissolutas, e das concubinas compradas... Olhai para os meus ferimentos! Estão eles em vossa carne lisa? Há ferimentos semelhantes em vossos corações que traem Roma a cada movimento respiratório e levam-na para o inferno com cada lei?

Virou lentamente seu peito nu e coberto de cicatrizes, para que todos o pudessem ver. Era uma visão terrível, e alguns dos senadores mais velhos cobriam os olhos com as mãos.

A voz de Diodoro ergueu-se e estava mais profunda em gravidade e força:

- Tais feridas estavam na carne do senador que enviastes à morte naquele dia. Não com uma espada honesta, não com um estoque embotado, mas com mentiras e condenações, com ostracismo e com silêncio. Porque ele ousara amar sua pátria, e ousara tentar salvá-la de traidores, assassinos, ambiciosos e mentirosos! Seu coração partiu-se e não houve conforto para ele.

“Poderíeis vós confortá-lo, vós que traístes vossa pátria e sustentastes vossos traiçoeiros césares”? Ousaríeis confortá-lo, vós, cujas línguas envenenaram seu próprio sangue e o levaram à morte? A ele, o único que amava seu país e inocentemente acreditava que também vós amásseis vosso país?

Diodoro tornou a bater na estante, e agora pareceu a alguns senadores que o próprio Marte produzira aquele som em seus ouvidos.

- Deixai-me comover vossos corações! Exclamou ele. – Ainda não é tarde demais! O curso do império conduz apenas à morte. Senadores, olhai para mim! Ouvi com vossos corações, e não com vossas mentes malévolas. Voltai à liberdade, à frugalidade, moralidade, à paz, a Roma. Não penseis mais nos que vos elegeram naqueles cujos ventres exigem, para se satisfazerem, o próprio sangue de Roma, a própria carne de Roma, o ouro duramente ganho de Roma. Não vos inclineis mais diante de falsos Césares que desabando nossa própria Constituição, lançam mandatos contra o bem-estar de Roma e colocam-se acima da lei que nossos pais formularam, e pela qual ganharam suas vidas, suas fortunas e sua sagrada honra.

“Roma foi concebida com fé e justiça, e na veneração de Deus, e em nome da varonilidade do homem”. Devolvei esse país ao governo da lei e derrubai o governo dos homens. Restaurai os tesouros. Retirai nossas legiões dos países estrangeiros que nos odeiam, e que nos destruirão num relance, assim que isso sirva aos seus interesses. Repeli as taxas que esmagam os que trabalham dura e industriosamente. Dizei às multidões que devem trabalhar ou morrer à fome. Arrancai do próprio Palatino as massas de parasitas, aproveitadores e ladrões! Arrancai do Palatino os mesquinhos libertos que dizem "sim, sim" a César, e se inclinam diante dele como se fosse um deus e não um ser feito de carne humana! Limpai este local dos velhacos, charlatães e demagogos que declamam frases arredondadas, dizendo que o bem-estar do povo está dentro de seus corações, mas que realmente querem dizer que farão a vontade das turbas em troca de seus aplausos, poder e suborno!

Levantou as mãos para eles, numa atitude de premência, e seus olhos violentos encheram-se de lágrimas enquanto observavam os senadores imóveis:

- Romanos! Em nome de Deus, em nome de Cincinato, o pai de sua Pátria, em nome do heroísmo e da paz, do brio, da liberdade e da justiça, eu vos suplico que restaureis vossa qualidade de guardiães de Roma, que expulseis o usurpador dos poderes que de direito vos pertencem, que impeçais e castigueis todos os que se apoderaram de tais poderes a fim de perverter as leis de nossos pais! Deixai que falem vossos corações romanos e vosso espírito romano grite contra o oportunista e o corrupto, contra o fanfarrão e os traidores. Contra os césares que se ungem a si próprios como reis e mantêm cortes para os depravados e ambiciosos, e contra os que dissipariam a força de nosso povo, a nossa Constituição e nossas tradições! Se voltardes as costas à vossa pátria, ela morrerá, então, e os milhares e milhares de legiões não a salvarão, e os milhares de césares sedentos de sangue em vão gritarão contra os ventos.

Os olhos percorriam desesperadamente os rostos. Então a cabeça tombou-lhe sobre o peito e ele saiu do podium, caminhando vagarosamente, naquele silêncio acovardado, até as portas, e sem olhar para trás. Os jovens soldados que ali estavam, com os olhos fixos nele e os rostos resplandecentes, perfilaram-se e saudaram-no e ele, voltando para os moços seus olhos cegos de lágrimas, sorriu-lhes como um pai cujo coração sangrasse.

Depois, endireitou-se, como um general ferido que morre pela pátria, e retribuiu-lhes a saudação militar.

Carvílio Ulpiano precipitou-se para o Palatino em sua liteira. Seu capataz chicoteava os escravos núbios para que tomassem velocidade furiosa, e seu trombeteiro corria diante da liteira, tocando e gritando.

"Fazei caminho para o nobre senador Carvílio Ulpiano!" As turbas fervilhantes afastavam-Se, na Via Apia, alvoroçadas, mas havia os que paravam para zombar e cuspir na direção da liteira cujas cortinas estavam cerradas.

Descendo no Palatino, Carvílio subiu aos saltos a longa escadaria de mármore, como um jovem, achegando ao corpo a toga senatorial, o que fazia sobressair seu ventre adiposo. Trazia no rosto terror e sórdida apreensão. Os lacaios e soldados afastaram-se à sua passagem frenética. Os vigilantes dos vestíbulos ficaram impressionados com a sua agitação e prometeram informar Tibério César de que o senador desejava falar imediatamente com ele, e pela mais urgente necessidade.

Foi admitido na biblioteca de César. Tibério estava, languidamente, lendo mensagens militares. Levantou seu rosto pálido e frio quando Carvílio Ulpiano apareceu e seus lábios embranquecidos torceram-se. Disse:

- Cumprimentos, Carvílio. Congratulo-me contigo por teres vindo tão junto dos calcanhares dos meus informantes. Deves ter voado do Senado até aqui. Mercúrio emprestou-te suas asas?

Levantou uma taça de vinho até os lábios, sorveu um gole, e sobre a beirada de ouro e pedrarias da taça seus olhos eram uma geada negra, cheia de malicioso divertimento.

Carvílio foi apanhado de surpresa. Sentiu os joelhos tremerem diante de Tibério, e beijou a mão pálida e indiferente que o outro lhe estendeu.

- Senhor falou, em voz trêmula -, já foste informado, portanto não é necessário falar-se na atrevida traição de meu parente por afinidade, Diodoro Cirino. Juro-te, Divino César, que se eu soubesse que ele iria agir assim, jamais o teria levado ao Senado. Em suas visitas anteriores à Câmara, como meu convidado, servia apenas para divertir os senadores e eu pensei que hoje aconteceria a mesma coisa.

Mal sabia que meus ouvidos e os ouvidos de meus colegas iam ser atingidos pelas expressões mais traidoras contra tua pessoa divinal, e que iria gritar contra ti e contra teus decretos!

Uniu as mãos num gesto de súplica, e seu rosto suava de pavor.

- Ele é meu parente por afinidade, mas eu o denuncio.

- És homem discreto e de novo eu me congratulo contigo - falou Tibério, secamente. Não mandou que o senador se erguesse de sua posição ajoelhada, e não lhe ofereceu vinho. Os pretorianos, das grandes portas douradas, olhavam para Carvílio Ulpiano, e seus rostos, como que esculpidos em bronze, mostravam-se imóveis.

Tibério contemplava sua taça. Estava sentado numa cadeira de marfim, e sua toga branca, bordada com a púrpura imperial, envolvia um homem alto e magro, de rosto frio e absorto, e expressão inescrutável. Então falou, a voz dura e melancólica, como para si próprio:

- Sou um soldado. Estou rodeado de bajuladores mentirosos, e nisso Diodoro diz a verdade. Que vem a ser o elogio derramado e sem compreensão, dado apenas por ambição ou medo? O que é a lisonja, se os lábios que a articulam só o fazem por bajulação, e nessa bajulação buscam proveito? Ouvidos estúpidos são servos de língua ainda mais estúpida. Como soldado, prefiro homens de simples verdades e sem complexidades, que falam com honra e patriotismo. Também prefiro a condenação da inteligência aos aplausos da população.

Mas onde estão os homens de hoje em Roma?

Carvílio Ulpiano ouvia-o, incrédulo, umedecendo os lábios que se haviam tornado ressecados de repente. Estava apavorado.

- Divino César gaguejou ele -, não compreendo.

- Não disse Tibério. - Tu não poderias compreender - Tornou a contemplar sua taça. - Como soldado, posso prestar homenagem a Diodoro Cirino. Conheço-o bem. Não é mentiroso e jamais o ouvi dizer uma mentira. Ama sua pátria.

O Imperador deu um riso curto e amargo.

- Só por isso merece a morte! Quem ama Roma, agora? Tu, Carvílio Ulpiano? Eu, César?

O senador acocorou-se sobre os calcanhares e estremeceu.

- Deixa-me dizer isto falou Tibério, calmamente. - Césares venais, césares enlouquecidos pelo poder, jamais tomam, jamais destroem a lei e seu país. O poder lhes é imposto por um povo mau e desprezível, um povo ávido, estúpido e cúpido, egoísta e pusilânime. Onde estão os guardiães da liberdade do povo, então? Vós ficais silenciosos, sois escravos em espírito, sois ladrões e covardes. Mas um povo merece os legisladores que tem. Merece a ti, disse ele.

Deuses, ajudai-me! Pensou o senador, a mente rodopiando.

Mordeu o lábio, tremeu, seu corpo todo fremia. Tibério sorriu, sombriamente.

- O que eu te disse não será repetido por ti, meu caro senador, meu caro e devotado amigo.

- Divino César falou o senador, com os lábios trêmulos, eu nada ouvi!

- Bom. É muito triste que mesmo os césares precisem às vezes ter o desejo de dizer a verdade. Eu te agradeço pela minha felicidade, Carvílio.

Pousou com força a taça sobre o mármore dourado da mesa que tinha ao lado e, não sendo ele homem violento, o gesto foi mais terrível do que o de qualquer um mais veemente.

- Roma! Disse ele. - Reconheço eu esta Roma de escravos poliglotas, dos citas, bretões, gálios, bárbaros, gregos, assírios, egípcios, e a escumalha de todo o mundo? Onde estão os romanos? Perderam sua identidade. Perderam sua língua, suas mentes, suas almas, sua virilidade. Que tenho eu a fazer com uma tal Roma? Não sou homem digno! Sou o que meu povo fez de mim. Sou seu cativo, não seu Imperador. Não se pode escapar ao mal de um povo degradado.

Suas mãos apertaram os braços da cadeira.

- Estou aqui apenas pelo imundo desejo de uma nação obstinadamente resolvida a suicidar-se. Se transgrido a lei e a Constituição, em favor de sua avidez, eles me aplaudem. Se abandonei a esperança de restaurar o Tesouro, louvam-me por ter tomado a peito seu bem estar. Seu bem-estar! Cães e chacais!

Fixou os olhos no senador atônito, que se humilhava servilmente diante dele. Houve, então, um imenso e envolvente silêncio na grande biblioteca. Os soldados estavam perfilados, como estátuas cegas.

Então, Tibério tornou a falar.

- Apesar disso, é tarde demais para a verdade, e os que falam a verdade não têm o direito de viver em Roma. Portanto, Diodoro Cirino deve morrer. Como ousa ele falar a verdade em tal nação!

Fez um sinal ao capitão da guarda, que se aproximou saudando-o.

- Irás imediatamente, capitão, à propriedade do tribuno Diodoro Cirino, e dir-lhe-ás que seu Imperador, seu general, não tem necessidade de seus serviços, e que, neste caso, ele tem de obedecer.

Apesar de si próprio e de sua traição, Carvílio Ulpiano pestanejou. Sabia o que aquilo significava. Diodoro estava recebendo ordens para se atirar contra sua espada.

O capitão saudou, girou nos calcanhares, fez sinal a dois soldados para que o acompanhassem e deixou a biblioteca. Carvílio permaneceu de joelhos, a cabeça baixa. Tibério sorria perversamente, olhando para ele.

- Está feito disse. - E, novamente, congratulo-me contigo, Carvílio Ulpiano. Meus informantes eram homens inferiores, metidos à sorrelfa no Senado e eu, como o deus que fizestes de mim, não podia acreditar muito nas palavras deles. Diodoro precisava ser condenado por um de seus iguais, e tu me prestaste esse serviço.

O senador ergueu a cabeça, e Tibério fez um gesto de assentimento.

- Sim, compreendo disse o Imperador. - É do costume confiscarem-se os bens daquele que denuncia César e fala traiçoeiramente. Mas eu estou disposto a ser misericordioso. Decretarei que a fortuna de Diodoro permaneça com sua viúva e seus três filhos.

Aplaude-me por minha compaixão, Carvílio Ulpiano!

O senador estava dominado pelo desalento. Seus olhos foram observados pelos olhos glacialmente frios de Tibério, e este tornou a assentir com a cabeça, dizendo:

- Pensaste, não é mesmo? Que, como meu devotado amigo e adorador, e denunciante do traidor que falou contra mim, eu te recompensaria com as propriedades de Diodoro Cirino. Ah! Vamos, Carvílio, tu és homem muito rico, e eu te recompensarei em ocasião que considerar própria, à minha maneira. Mas não com a fortuna de Diodoro e não em tal medida.

O senador estava doente de desespero, desapontamento e também porque sentia sua degradação. Não era homem inteiramente perverso.

Teria preferido viver em paz, em agradável luxo; nem por um instante pensara que Diodoro, excelente bastante para atacar senadores, tivesse passado o limite de segurança. Afinal, Diodoro era estimado por Tibério pessoalmente, e o senador sentira satisfação ao ouvi-lo atacar os outros senadores, muitos dos quais ele não tinha em bom conceito. Tinha, mesmo, exibido Diodoro aos seus rostos astuciosos, na certeza de que eles sabiam que o Imperador o admirava. Mas Diodoro falara contra "falsos césares" em tal tom, e implorara ao Senado que se voltasse para suas antigas leis e prerrogativas, que Carvílio se sentira em tremendo perigo, também.

No caminho, entretanto, considerara que Tibério o recompensaria com as propriedades de Diodoro. Não esquecera Íris, e de cada vez que a via, desde que a família voltara para Roma, seu desejo por ela se tornava como uma fome desesperada.

Inclinou a cabeça diante de Tibério. Depois, gaguejou:

- É, realmente, muita compaixão do Divino César não deixar, como mendigos os filhos de Diodoro, que é nobre e tribuno. Mas a esposa de Diodoro é uma liberta e foi, outrora, escrava dos pais dele, viúva de um antigo escravo, que também fora liberto.

- É assim? - Tibério franziu os sobrolhos.

Carvílio olhou para ele ansiosamente, e um pouco de saliva surgiu a um canto de sua boca lasciva.

- Sim, César. Diodoro inventou uma falsa genealogia para ela, de forma a não ofender seus amigos de Roma, e a ti.

A carranca de Tibério fez-se formidável. Tamborilou com os dedos sobre a mesa, pensativo. Depois, involuntariamente, seus olhos fixaram-se no senador, que se remexia no chão, em sua excitação e ansiedade.

- Ah! Disse o Imperador. - E é uma bela mulher, a tal liberta?

- Das mais belas, majestade!

Tibério sorriu:

- E tu serias o tutor dos filhos de Diodoro, e particularmente de seus cofres. E quererias que eu revogasse a liberdade da bela esposa de Diodoro e que a desse a ti, em sinal da minha gratidão?

- Há anos eu a desejo, majestade, desde que a vi pela primeira vez em Antioquia. Ela é a própria Afrodite!

Tibério estudou-lhe o rosto, impassivamente. Depois disse:

- Amanhã baixarei um decreto resolvendo que a esposa de Diodoro seja tutora de seus filhos e da fortuna do pai deles, e que o nome dela e sua falsa genealogia sejam inscritos nos livros públicos de Roma.

Carvílio ficou a olhar para ele, boquiaberto, os olhos exorbitados, os braços caídos ao lado do corpo; estava cheio de terror e vergonha.

Tibério, então, ergueu sua taça da mesa e atirou o conteúdo no rosto do senador.

- Aqui tens disse-lhe tua Justa recompensa, meu nobre senador.

 

Keptah estava sentado no jardim, dominado pela exaustão e pelo desgosto. Suas mãos jaziam abandonadas sobre os joelhos e seus olhos fatigados desfaleciam. Viu o céu que se avermelhava sobre as colinas e estremeceu. E embora o ar se mostrasse tépido ele sentia frio. As árvores, mirtos, carvalhos, pinheiros e salgueiros banhavam-se de luz rosada, e o zênite do céu luzia com muitas colorações delicadas como uma opala. O cincerro de uma vaca soava docemente, enquanto o gado ia fazendo lentamente seu caminho para os estábulos, e uma cabra elevou sua voz, grasnidos dos gansos protestavam contra os pastores que os tangiam, e os carneiros deitavam-se pacificamente sob as oliveiras e nos declives das colinas mais próximas. Agora, uma pequena luz crescente estremecia no vermelho ocidental do céu. Em Keptah não havia tranqüilidade e seu rosto moreno estava pálido e esgotado.

Como pela manhã, o vigilante do vestíbulo veio procurá-lo excitado, - mas dessa vez o rosto do homem estava contorcido de medo.

- Senhor! Exclamou ele. - Estão aqui três pretorianos que acabam de chegar, e um deles é alto oficial. Pedem para ver o tribuno imediatamente. Eu lhes disse...

Keptah empalideceu e levantou-se.

- Eu irei vê-los imediatamente. Ofereceste-lhes vinho?

- Sim, senhor. Mas recusaram.

Keptah estacou em seu movimento para a frente e fechou os olhos espasmodicamente.

Entrou então na casa e dirigiu-se ao grande vestíbulo, com seu mosaico rude, azul, amarelo, vermelho e branco, suas colunas baixas e corpulentas e seu mobiliário simples. Os raios do sol, de um vermelho intenso, inundavam o vestíbulo e, em sua luz agoureira, o médico viu os pretorianos, suas armaduras vermelhas como sangue, suas cabeças cobertas com os elmos mantendo-se altas e sombrias.

- Sou médico, cidadão romano, e tomo conta do pessoal desta casa disse Keptah para o oficial, inclinando-se. - Disseram-me que desejais ver o nobre tribuno Diodoro.

O oficial olhou para ele por um momento, depois disse:

- Sim. Vim diretamente mandado pelo Divino Augusto, com uma mensagem de grande importância.

Keptah estudou-lhe o rosto e viu mais agudamente as bordas ásperas das pálpebras do jovem soldado, e ficou pensativo. Disse, a seguir:

- Por acaso conheces Diodoro?

A cabeça do oficial ergueu-se, e seus altivos olhos romanos se desviaram dos de Keptah. Falou, truculentamente:

- Ele foi meu general, quando eu era muito jovem e novo no campo, e foi amigo de meu pai. Meu nome é Plócio Lisânias. O tribuno me conhece bem. Foi o padrinho de meu filhinho, nascido há um ano, e eu dei a esse filho o nome de Diodoro, em honra dele. – Sua garganta convulsionou-se de repente, e ele ergueu a cabeça ainda mais alto. - Preciso ver imediatamente o tribuno.

Keptah falou, muito delicadamente:

- Tu sentirás no fundo do coração saber que Diodoro está morrendo. Voltou de Roma hoje, e desmaiou neste mesmo vestíbulo, em meus braços. Há dois anos que está morrendo. Agora, chegou o último instante, e ele expirará antes que a lua se erga por completo. Sua esposa e seus filhos estão agora com ele.

O oficial ficou a olhá-lo por alguns momentos, incrédulo, depois, subitamente, seus olhos de moço encheram-se de lágrimas. Olhou para os soldados e disse:

- Deixai-me a sós com o médico.

Quando ficaram sozinhos, Keptah lhe disse:

- E qual é a tua mensagem, nobre senhor, a um romano heróico que está morrendo como morre um soldado, cheio de ferimentos?

Plócio ficou silencioso. Depois, embainhou sua espada e olhou com altivez para Keptah.

- Como oficial subalterno do tribuno, sei como me dirigir ao meu general disse. Hesitou, depois continuou: - Meu tio era um bravo e jovem senador, Plócio, cujo nome me foi dado, e que o Senado condenou à morte há alguns anos, e não pela espada do soldado nem protegido pelo escudo do soldado. Morreu, ignominiosamente, pelo veneno da mente dos homens.

- Não morreu ignominiosamente disse Keptah, com tristeza.

- Não há verdadeiro herói que morra assim. Ele vive no coração de seus compatriotas, para sempre, e no âmago brilhante da História.

Conduziu, então, o oficial até o aposento de Diodoro, onde o tribuno jazia imóvel em sua cama, sob o profundo vermelhão do poente. Estava consciente, entretanto, rodeado por sua esposa e seus filhinhos. Plócio, oprimido como estava, viu que a esposa de Diodoro era bela e régia como Vênus, sentada à beira da cama e segurando a mão do esposo. Na sua atitude havia amor, devotamento e fortaleza espiritual. As crianças estavam de pé junto do leito paterno, chorando Lastimosamente, e o tribuno tentava consolá-las.

- Ah! Meu Prisco dizia ao mais velho, em voz amorosa e fraca. - Não deves sofrer assim. És meu filho, e serás um soldado, e soldados não choram. Deveis tomar conta da tua mãe, de teu irmão e de tua irmã e recordar, sempre, que a morte é preferível à desonra.

Subitamente calou-se e arquejou. Íris curvou-se sobre ele e beijou-lhe a fronte pálida, onde corria o suor da morte, depois beijou-lhe os lábios. Seus cabelos dourados tombaram sobre ele como um véu.

Diodoro ergueu a mão trêmula e fraca para aqueles cabelos. Íris deitou a cabeça sobre seu peito arquejante, e ficou inteiramente imóvel.

- Minha muito querida, minha muito amada esposa - murmurou ele. - Mãe dos meus filhos. Eu vou, mas não vou para sempre. Esperarei por ti, fora destes portais, e quando teu dia chegar eu estarei ali, para tomar-te a mão novamente, na paz e na resplandecência eternas.

Keptah e Plócio aproximaram-se da cama e Diodoro notou-lhes a presença. Seus olhos moribundos fizeram-se vívidos e alertas.

- Ah! Plócio disse ele, com ligeiro espanto -, ouviste dizer que estou sendo chamado para os vestíbulos de Plutão. Obrigado por teres vindo, pois tu és como um filho para mim.

O arrogante pretoriano ajoelhou-se do outro lado da cama e olhou para o tribuno; de seus olhos de soldado corriam lágrimas de soldado. E disse:

- Nobre Diodoro, eu tenho uma mensagem para ti, vinda de César, e que te devo transmitir pessoalmente.

O rosto acinzentado de Diodoro modificou-se. Tentou levantar a cabeça. Olhou para Íris por um momento, depois para as crianças, e seu rosto balançou. A última agonia que devia sofrer correu como lívida maré pelas suas feições.

O soldado ergueu a voz e disse, claramente:

- César chorará esta noite, pois a mensagem que te trouxe, meu general, é um chamado para que te apresentes diante dele a fim de discutires a colocação pouco satisfatória de certo general no campo.

Ele deseja que seja a tua própria pessoa que substitua o general.

Uma grande vaga de alegria envolveu o rosto de Diodoro. Olhou arrebatado para a esposa:

- Ouviste, minha bem-amada? Falei contra Tibério hoje, dizendo que ele era um falso César, sedento de sangue e corrupto, e ainda assim recordou-se de que sou um soldado e deseja dar-me a honra que se dá a um soldado. Ah! Então ele não é venal como julguei e há ainda esperança para Roma, minha pátria querida!

Sua mão incerta procurou a mão de Plócio, e o jovem oficial baixou a cabeça e beijou aquela mão, sentindo contra seus lábios a frialdade da morte.

Diodoro falou, em voz mais alta:

- Dize a César que Diodoro Cirino não pôde responder ao seu chamado, pois foi solicitado por alguém maior do que ele, em cujas mãos deve encomendar seu espírito.

Tentou levantar Plócio, mas este continuou ajoelhado e chorando.

Então Íris soltou um grande grito e tombou sobre o corpo do marido, como uma bétula branca derrubada pelo raio.

Keptah e Plócio voltaram para o vestíbulo, ouvindo o som de pranto que se erguia de todos os cantos da casa. Plócio ali ficou, em silêncio, a cabeça baixa, os lábios severos latejando. Finalmente, olhou para o médico, e disse:

- Foi Carvílio quem procurou César, mas, fosse como fosse, o resultado teria sido o mesmo. - Fez uma pausa, e concluiu: - Não te aflijas pela esposa e pelos filhos dele. Com meus próprios ouvidos ouvi Tibério dar sua palavra que eles não seriam atingidos, e que a esposa de Diodoro seria nomeada tutora das crianças e da fortuna, e que sua genealogia iria ser inscrita nos livros públicos de Roma, testemunhando sua ascendência patrícia.

- Deus é misericordioso disse Keptah. - Mesmo do mal ele pode retirar o bem, louvado seja o Seu Nome.

O Senado, ao ter conhecimento da morte súbita de Diodoro, resolveu, furtivamente, entre seus membros, que não compareceria ao funeral, receoso da cólera de César. Tais membros ficaram atônitos, em perplexidade, quando César ordenou que estivessem todos presentes, com honras integrais e suas togas senatoriais. Não podiam acreditar no que ouviam quando souberam que a própria guarda pretoriana de Tibério escoltaria o corpo até a pira, em completo garbo militar, e que um destacamento de velhos soldados, membros da antiga legião de Diodoro, deveria levar o corpo, envolvido nas bandeiras do Império.

A última e estupefaciente notícia foi que o próprio Tibério faria a oração fúnebre, vestido com seu aparato militar e de pé sobre sua biga de guerra. Dez corneteiros também ali estavam, e dez tambores.

Antes de entregar o corpo à pira, Tibério disse:

- Aqui estava um soldado de Roma, simples em suas palavras, terno em seu coração, arrebatado em sua cólera e rápido em sua misericórdia. Aqui está um soldado de Roma, que ajudou a forjar o Império com sua espada valente que ninguém jamais ouviu pronunciar mentiras, ou enganar, ou trair, tanto sua pátria como seu próximo.

Nós, de pé neste momento, não o podemos honrar, pois a honra lhe foi dada pelo nascimento, manteve-se a seu lado no campo de batalha e deitou-se a seu lado quando ele morreu! Não somos nós que entregamos suas cinzas às cinzas de seus pais, e às mãos dos deuses. Ele jamais os desertou.

Alguns dias depois, Carvílio Ulpiano era misteriosamente envenenado. Contaram isso a Keptah, que disse:

- Que ele tenha paz, como Diodoro a conquistou.

 

Aquele fora o mais miserável dos invernos. As Sete Colinas erguiam-se como sepulturas fortificadas, imóveis como a morte, recobertas por uma crosta de neve durante longos e amargos dias. A Campânia, alternadamente, estalava com o gelo, ou escurecia com a absorvência pantanosa. A neve soprava sobre o rosto das pessoas, as estradas reluziam como espelhos, levantavam vapor gelado à hora do meio-dia, tornavam a luzir sob uma lua de aço. Os palácios brancos assemelhavam-se a lousas e ossos apoiados nas extremidades, contra a brancura que os rodeava. Suas colunas deixavam escorrer água mortal e suas cornijas fremiam com os pingentes de gelo. O Tibre imobilizava-se pesadamente e às vezes sua corrente fluía entre neve, como a corrente escura do Estígio, refletindo um céu esmaecido e um pálido sol.

Fumaça elevava-se dos centros dos templos e dos lares dos ricos; mas no além-Tibre havia uma quietude como de peste; pessoas pobres, desoladas, famintas, amontoavam-se, aconchegando-se umas às outras em aposentos minúsculos e fétidos, para obter calor. De vez em quando, o vendaval invernoso mugia através da grande cidade segregada, como em cólera divina, e o povo declarava que aquela ventania estava cheia de vozes selvagens, que não pertenciam à Terra. Poucos iam para o Exterior, mesmo as senhoras com seus casacos de pele e suas liteiras aquecidas. Preferiam sentar-se no aposento menor e mais quente de suas casas, trazendo para junto de si os braseiros repletos de carvões ao rubro. Às vezes, turbas reuniam-se no Panteão, no centro do qual, sobre o próprio piso de mármore, protegido por uma lâmina de aço, grande fogueira fora levantada. As estátuas dos deuses e das deusas, em seus nichos dourados, pareciam vivas e movimentadas contra as sombras vermelhas e faiscantes. A fumaça da fogueira e do incenso revelava-as e depois as escondia, revelando-as de novo, como que através de nuvens. O imenso orifício do forro lançava a fumaça para fora e quando o vento mudava caprichosamente de direção, a mesma fumaça era devolvida ao templo, onde quase sufocava seus tiritantes freqüentadores. As estátuas iam lentamente adquirindo tons sombrios, e seus pés brancos escureciam.

Os velhos de barbas grisalhas diziam aos jovens, pomposamente.

- Este não é o pior dos invernos. Recordo-me de quando o Tibre ficou de braços gelados durante semanas, e as pontes pareciam mármore de gelo, reluzindo de maneira tão deslumbrante à luz do sol, quase cegando os que as atravessavam. Vós, jovenzinhos, é que sois fracos e moleirões!

As pombas juntavam-se sob os beirais; algumas delas congelavam e tombavam na calçada. Suas vozes silenciavam.

       Sua Majestade, Augusto Tibério, sua corte, todo o Senado, todos os cavalheiros, os augustais e o pessoal de suas casas, escravos prediletos, libertos, concubinas, esposas e filhos, gladiadores, cantores, dançarinos e lutadores, pugilistas e condutores de bigas deixaram Roma num vasto êxodo, para as ilhas aquecidas da Baía de Nápoles ou para Pompéia ou Herculano. Correios, em cavalos velozes, corriam entre a cidade, e Nápoles, e suas ilhas, com os últimos boatos e notícias, e as cotações diárias do mercado, bem como relatórios sobre o tempo.

Diziam estar os celeiros assustadoramente vazios, o povo desesperado e alimentando desejos de vingança. A corte e os que a rodeavam, entretanto, erguiam os ombros. Era agradável ver o mar cor de ameixa, ao crepúsculo, fluindo com reflexos vermelhos vindos do céu ardente, jantar nos terraços e nos jardins fechados, que os sons vindos dos pássaros, inquietos, e das fontes povoavam; visitar Tibério, jogar e beber, rir e divertir-se com os variados entretecedores que os haviam seguido, como animais comedores de carniça. Tibério construíra grandes áreas de banhos na ilha de Capri e barcos coloridos corriam para eles, com regularidade, cheios de risos e dos rostos pintados das damas.

     Então, quase entre um dia e uma noite, o Vento sul rugiu baixinho sobre a crestada terra nortista, cheio de perfume da vida e da fragrância dos campos longínquos de flores, e de promessas de verão. Em Roma tudo começou a gotejar e a tilintar, em súbito degelo, colunas ardiam de luz, platibandas corriam como cataratas, e as Sete Colinas e seus palácios repletos brilharam com o sol vivaz. As ruas inundaram-se com água de mau cheiro, mas o povo sentia-se feliz. As lojas abriram-se, os mercados alvoroçaram-se outra vez com a vida, o movimento dos animais e das criaturas humanas, os coloridos das mercadorias. As tavernas encheram-se, um perfume de pastelarias e carne assada introduzia-se no vento tépido. Um fluxo contínuo de passageiros apareceu animadamente pelas estradas que levavam à cidade. Os campos ondulavam com extensões de pequenas papoulas vermelhas, como sangue vivo. A Campânia, como sempre, cheirava mal, e nuvens de mosquitos apareceram. Mesmo eles não incomodaram demais o povo, pois que eram arautos da primavera que voltava. O inverno, com suas férreas misérias, foi esquecido. O Tibre corria, sob o sol esverdeado, e as pontes fervilhavam de gente.

Tibério e sua corte voltaram à cidade.

- É uma pena que o Senado também esteja voltando disseram alguns céticos, azedamente. - Pelo menos durante o inverno não tivemos de suportá-los e à sua corrupção. Ufa!

Tibério não era popular; a natureza fria, o rosto fixo e pálido não o recomendavam à volúvel população romana, que preferia em seus césares certa vivacidade e histrionismo. Caio Otávio, um simples soldado, não servira para o temperamento dela e Tibério ainda servia menos. Alguns dos velhos falavam de Júlio César e da animação de seus amigos. Então, eles apenas sacudiam as cabeças quando seus filhos e netos faziam lembrar que Júlio fora um ditador em potencial e um desprezador do Senado, e que Otávio e Tibério prestavam deferência ao Senado de acordo com a Lei.

- E chamais a isso leis? Perguntavam os velhos, com soberbo desdém. - O Senado pode ter a aparência do poder, mas Tibério é o poder. Abdicaram em favor dele para terem por sua vez mais poder!

- Isso não é absolutamente um paradoxo.

As multidões encaminhavam-se como rebanhos para a Porta Ostiana, a fim de observar o retorno de Tibério e de seu séquito, mesmo antes que o sol se levantasse em dourado esplendor sobre as casas mais para as bandas do leste, e sobre os palácios e colinas. César pára primeiro em Ancio para visitar sua vila e para se divertir à sua maneira parcimoniosa, além de sacrificar a Ceres e Proserpina, agora que esta última havia voltado para sua mãe, saída dos vestíbulos crepusculares da morte. Mesmo sua própria face, imóvel e descolorida, parecia tomar certo fulgor de vida que retornava a seu tom; estava menos áspero do que de costume, com os senadores. Quando viu as vastas turbas que o esperavam à Porta Ostiana, rodeado como estava pelos seus pretorianos que levavam as águias romanas, chegou a sorrir, à sua maneira frígida. Desdenhoso da multidão fervilhante, era ainda humano bastante para se sentir aquecido pela estrondosa ovação que lhe prestou ela. Estava de pé em sua biga dourada, como um corredor, e levantou seu braço direito, em rígida saudação militar. Poeira amarela, iluminada pelo sol, cintilava em derredor dele e também aquilo, depois do inverno úmido e gélido, deliciava o povo. Embora assobiassem para as damas, lançassem risonhas imprecações aos senadores, fizessem, mesmo, comentários sardônicos sobre o próprio Tibério e zombassem dos augustais e dos patrícios, aqueles homens e mulheres sentiam-se felizes.

O inverno sombrio e escuro, chicoteado pela neve e pela areia esquecido, também, nos domínios do tribuno morto, Diodoro. Quase da noite para o dia, ao que pareceu, as colinas estouraram em verdor, os olivais faiscaram como prata nova, o regato luziu com tom azulado quase celestial, o céu emaciou-se em turquesa delicada. Os campos dançaram com as papoulas, e os ciprestes pontudos e negros recortaram-se contra o firmamento, perdendo sua rigidez.

Renovos intumesciam e expandiam-se em árvores; as pastagens aveludavam e tornavam-se esmeraldinas; os cordeiros novos saltavam atrás de suas mães; os cavalos recomeçavam seu terno jogo libidinoso com as mulas; o gado perambulava de cá para lá e ficava a observar seu reflexo nos pequenos crescimentos do rio minúsculo; folhas pequeníssimas apareciam nos roseirais dos jardins, e as fontes libertas murmuravam ao longo dos pórticos, arcadas e colunatas. Pássaros gorjeavam veementes, enquanto se preparavam para construir novos ninhos.

E ao entardecer o ar resplandecia de amplo e tépido ouro, a estrela vespertina parecia nascida de novo e a luz cúprica suspendia-se, baixa, no horizonte, dentro de uma névoa do derradeiro escarlate. E mais doce do que tudo, mais excitante, era o apaixonado e invasor perfume da terra, ao mesmo tempo sagrado e carnal, ao mesmo tempo pacífico e perturbador.

Lucano jamais vira uma primavera romana, o oriente vermelho e turbulento tomava apenas uma forma ainda mais turbulenta naquela época do ano. Agora, aquela suavidade verde e primaveril, aquele som murmurado e doce, aquele contraste delicado de colorações o encantavam, apesar de todo o seu desgosto e da inquietação crônica de seu espírito. Mesmo no pequeno hospital para os escravos, ele não podia evitar erguer a cabeça ainda no meio de um grave exame, para ouvir as vozes da terra e aspirar o divino e insistente perfume, sentindo a tepidez do vento macio contra suas faces. Às vezes, chegava mesmo a sorrir, e era jovem novamente.

- Mesmo o mais duro dos miseráveis sentiria uma promessa na primavera disse Keptah a Cusa, numa tarde abençoada, quando ambos estavam sentados no pórtico externo e olhavam para o céu. - É a profunda promessa de Deus, e homem algum pode resistir-lhe, embora seu coração esteja vazio como um vaso quebrado.

- Lucano resiste com certo sucesso disse Cusa.

- Ele pensa demais em Diodoro comentou Keptah, com tristeza.

Uma vez, repreendeu me por ter deixado o tribuno ir à cidade naquele dia fatal. Gritou-me que eu lhe devia ter dado uma droga que o adormecesse. O fato do destino do tribuno ser inevitável como homem de caráter, integridade e honra que era, em nada aliviou a cólera do jovem contra mim. Como todos os jovens, ele é impulsivo. Está determinado a fazer seu caminho ao longo do Grande Mar, nos navios barulhentos e pelos portos, cidades e comarcas fétidas, pois acredita que esse seja o seu dever. Disse-lhe que Diodoro estava preocupado com seu próprio dever, tão selvagemente quanto ele se preocupa com o seu.

- E que disse ele ao ouvir isso? Indagou Cusa, avidamente.

- Disse que Roma já estava perdida, mas o homem não está perdido! Uma resposta de sofista, não pude evitar de dizer-lhe. O homem é o seu próprio carrasco, pendura-se pessoalmente em sua Própria cruz. É sua própria doença. Seu próprio fado, sua própria morte. Suas Civilizações são as suas expressões. Mas nosso jovem médico não se preocupa com as civilizações. Pensa apenas nos oprimidos, desprezados, rejeitados, que assim se acham porque suas nações apodrecem e porque eles trabalharam para que assim seja. Apesar disso, está mais agarrado ao seu estreito ponto de vista do que mosca ao âmbar. Os homens sofrem pelos homens, disse-lhe eu, mas ele responde que algo amorfo como a sociedade é o torturador do homem.

Só Deus, é o que ele pensa, e os poderosos que Ele criou são os opressores.

Keptah voltou-se para Cusa, que refletia sobre isto. E, como perguntara muitas vezes antes, perguntou agora:

- Tens certeza de que havia peste naquele navio?

- Senhor Keptah, tenho toda a certeza. Descrevi várias vezes os sintomas para ti, o aspecto dos mortos, os bubões e os vômitos de sangue.

Keptah confirmou com um movimento de cabeça.

- Embora eu saiba muito que não te posso dizer, meu bom Cusa, estou ainda espantado com o que me contaste.

Cusa olhou fixa e curiosamente para Keptah no crepúsculo tépido de ouro e escarlate.

- És muito misterioso. Eu acredito que ele foi dotado pela divindade. É protegido de Quíron[24], não há dúvida. Tento lembrar-me disso, quando ele me exaspera demais.

Keptah ficou um instante silencioso, depois disse:

- Há outra coisa que devora e entristece o rapaz, além de seu desgosto a propósito de Diodoro.

Cusa animou-se, pois tanto quanto a esposa Calíope, gostava de comentar a vida alheia. Pela primeira vez falou a Keptah da dama escondida na liteira, que viera dizer adeus a Lucano, nas docas de Alexandria:

- Vi-lhe a mão branca disse ele com satisfação -, embora não lhe visse o rosto. Mas a mão era notavelmente pequena e bela, e nunca vi mulher feia com mão igual àquela, nem mulher realmente bela que tivesse mão feia. Lucano voltou ao navio com o rosto morto e imóvel e seus olhos abatiam-se de desgosto e desespero. Incidentalmente, ele beijou aquela mão.

Keptah endireitou-se na cadeira e coçou o queixo, a expressão mostrando-se animada:

- Uma dama! Damas não vão a docas cheias de escravos e de população para dizer adeus, a não ser que amem e sejam amadas. Ah! A coisa se explica! Ele renunciou à dama, e a todas as damas, por causa da sua obsessão. Apesar disso, regozijo-me. Continuemos a ter esperança. Se a dama tem liteira e escravos, tem dinheiro, e uma mulher que ama e tem dinheiro é tão inquieta, audaciosa e inamovível como um tigre. Lucano tornará a vê-la.

- Ela terá que ser de fato muito audaciosa disse Cusa, ambiguamente. - Mas é possível que também nisto tenhas razão. Lucano passou muitas noites perambulando pelo navio, como sombra, sem nada dizer. Também o ouvi chorar dolorosamente, dormindo, como quem chora pelos mortos.

Lucano estava sentado com sua mãe e irmãos, à noitinha, e mostrava-se ainda mais calado do que de costume. Olhava para os vales verdejantes, que as sombras cobriam, e para as colinas iluminadas pelo sol poente. O ar tinha iridescência, como se repleto de pedras preciosas pulverizadas, e nas concavidades mais escuras dos jardins os vaga-lumes começaram a faiscar silenciosamente.

A carnadura de Íris perdera seu fulgor rosado e fizera-se de um palor translúcido semelhante ao da madrepérola, e o azul de seus olhos se intensificara com a calada serenidade de um sofrimento resignado.

Lucano sentia-se tomado de orgulho e piedade; via sua mãe, não apenas como tal, mas como esposa e mulher, e em muitas ocasiões cogitara em que pensaria ela, o que desejaria. Às vezes, ela o surpreendia pela sua aceitação dos acontecimentos e da morte do esposo amado. Teria preferido vê-la rebelada e colérica contra os fados. Certa vez, Íris lhe dissera:

- Sei que Diodoro vive, e que algum dia irei reunir-me a ele, com alegria e júbilo, pois Deus é bom e Ele não desapontará Seus filhos.

Havia ocasiões em que ela era, para Lucano, um mistério impenetrável.

Amava seus próprios filhos, os que tivera de Diodoro, a pequena Aurélia e Gaio Otávio, mas parecia amar ainda mais o filho de Diodoro e Aurélia. O alegre Prisco era afetuoso e devotado, adorava sua madrasta e, apesar de sua natureza afável, tinha profundo senso de responsabilidade, embora mal tivesse feito cinco anos. Parecia um pai, em relação à sua irmãzinha, cujo cabelo se assemelhava ao da mãe e Cujos olhos castanhos e meigos, luziam com doçura; e para seu pequeno irmão, que ainda não tinha dois anos, mas caminhava pela relva, vacilante e grave, observando as flores como um filósofo. O pequeno Gaio fazia lembrar seu pai, espantosamente, e às vezes aquilo divertia Lucano. Prisco, porém, tocava-lhe dolorosamente o coração, pois seu rosto era o da irmã morta, Rúbria, e tinha de Rúbria a vivacidade e a alegria.

Gaio desejou inspecionar os vaga-lumes, porém Íris apanhou-o no momento exato em que ele tropeçava e colocou-o sobre seus joelhos, beijando-o. O cabelo dourado da mãe foi iluminado num relance pelo último fulgor de sol, antes que ele expirasse atrás das colinas que iam escurecendo suas cristas ainda douradas. Gaio inspecionou seriamente o rosto materno, depois encostou a cabeça escura e redonda contra o peito dela, que se curvou sobre o menino.

- Embora ele mal saiba falar disse Íris -, tem pensamentos muito profundos e as mais intrigantes perguntas deste mundo. - Relanceou os olhos para Lucano e rematou, baixinho: - Como seu caro e amado irmão.

Lucano nada disse. Tentara, durante todos aqueles meses, manter-se à parte de sua família, receando amá-la demais. Sentia-se repleto de inquietação e ansiedade selvagens. Devia ir-se dali o mais depressa possível ou aquelas crianças e sua mãe lhe tomariam o coração e o despedaçariam de dor em suas mãos. Observava a lua lustrosa surgir trêmula por trás de uma colina. Para ele, a lua era como um crânio velho, batido pelo desgosto e pela tragédia. Sua beleza, portanto, não o comovia, pois era a beleza da morte, tal como no amor existe sempre tal beleza ameaçadora.

Íris observava-o por sob os cílios. Via o resplendor branco do rosto dele, a rigidez de sua expressão, seus olhos que se furtavam.

Suspirou. Então, disse:

- Nunca fui mulher de temperamento tão expansivo que pudesse falar abertamente das minhas emoções. Mas tu deves compreender, meu filho querido, o que significa para mim ter minha família comigo, e tu em casa finalmente, depois de todos esses anos. Não é maravilhoso que tenhas sido nomeado, através da graciosa vontade de César, para o cargo de médico-chefe oficial de Roma? Estarás na cidade apenas três dias da semana, e depois voltarás para cá, onde o pessoal doméstico precisa de ti. Tua mãe mais do que todos os outros - acrescentou, em tom mais natural.

Os lábios de Lucano reabriram-se, como se fosse falar, mas conservou-se silencioso. Olhava para o belo anel que Diodoro mandara fazer, para com ele presentear seu filho adotivo, quando voltasse ao lar.

Era trabalho realizado com grande delicadeza e habilidade, larga e intrincada mente esculpida banda de ouro, na qual se incrustava uma grande esmeralda. Nela fora engastado o caduceu de ouro, emblema do médico, bastão enlaçado pelas duas serpentes e rematado pelas asas de Mercúrio, cravejadas de rubis. Para Prisco, ficara o anel de cavalheiro de seu pai, que, no entanto, não era tão maravilhoso e rico quanto aquele e não tinha a metade da significação que aquela jóia trazia. Diodoro não esquecera Lucano, no que se referia a dinheiro. Fizera-o beneficiário de grande soma e nomeara-o, em caso de morte da mãe, o guardião de seus filhos. Mas, era o que Lucano dizia consigo mesmo, embora sua mãe não fosse mais tão jovem, quase com trinta e oito anos, tinha boa saúde e poderia esperar viver ainda alguns anos.

Viu que agora precisava falar, embora tivesse evitado tal coisa durante seis meses, temendo perturbar a mãe e aumentar seu desgosto.

Disse, o mais delicadamente possível:

- Preciso dizer-te, mãe. Não posso aceitar a nomeação de Tibério. Não, posso permanecer aqui.

Íris esperava. Lucano fixou os olhos nela, aguardando lágrimas e protestos, mesmo incredulidade. Íris, porém, esperava calmamente. E disse:

- Conta-me, meu filho.

Ele contou-lhe e ela ouviu-o, a cabeça curvada, as mãos acariciando abstraidamente o pequeno Gaio, que ia adormecendo. Prisco e Aurélia ocupavam-se em correr atrás dos vaga-lumes, e sua tagarelice e risos infantis misturavam-se aos sons dos pássaros vespertinos. A lua erguera-se mais, e o cheiro pungente da terra e dos ciprestes, bem como das árvores de recente floração, tornou-se insistente. De repente, os picos dos ciprestes fizeram-se de prata.

   Íris mantinha-se tão silenciosa depois que Lucano terminou de falar que ele disse, finalmente:

- Tu não compreendes.

- Sim disse Íris -, eu compreendo. És como Diodoro, meu filho querido, e isso me faz feliz. Tens a mesma severidade e disciplina de caráter, a mesma dedicação ao dever, coisas raras neste mundo desmoralizado. Tens consciência, naturalmente, de que o caminho que traçaste para ti próprio é doloroso e solitário, cheio de pedras agudas e sem luz do sol a iluminá-lo?

- Sim disse ele. - Mas isso não tem importância. De há muito sei que o mundo não tem para mim promessas de alegria ou de felicidade.

- Rezei falou Íris para que te casasses e trouxesses tua esposa para esta casa a fim de que eu tivesse netos que me dessem regozijo.

Lucano sacudiu a cabeça.

- Não te esqueceste de Rúbria disse Íris, e tornou a suspirar.

- Jamais a esquecerei.

Lucano hesitou, depois disse, abruptamente:

- Mas eu amo uma mulher que para mim é Rúbria renascida. Encontrei essa parecença na natureza dela, a mesma força feminina.

Seu nome é Sara bas Eleazar. Isto é tudo quanto te posso dizer. Para mim, ela se mistura em minha mente com Rúbria, de forma que se tornam uma e a mesma pessoa. Entretanto, assim como Rúbria desapareceu, Sara também deve desaparecer da minha vida.

Aquilo, para Íris, era uma grande calamidade. Lágrimas subiram-lhe aos olhos.

- Amor entre um homem e uma mulher é coisa sagrada, meu filho, e abençoada.

- Não para mim disse Lucano, com firmeza, e a mãe viu-lhe o rosto. Um pouco depois, ele disse: - Escrevi hoje a César, agradecendo-lhe a oferta, mas recusando-a. Roma não precisa de mim, como te disse. A cidade está cheia de excelentes hospitais e de excelentes médicos. Há mesmo um bom hospital para os escravos e criminosos mais abandonados, numa ilha do Tibre. Mas nas cidades e comarcas e lugarejos perdidos ao longo do Grande Mar, há poucos lugares para os doentes e para os pobres.

Embora compreendesse, Íris sentia-se um tanto desapontada. Um jovem tão belo e tão bem-dotado, dispondo de tal fortuna, com uma família amorosa, e considerado graciosamente até pelo próprio César!

E tudo isso ele abandonaria pelas multidões sem faces definidas, em cidades que para ele não tinham nomes.

- Quero ser livre disse Lucano. - Quanto mais necessidades um homem tem, menos liberdade. Eu nada quero para mim mesmo.

Tinha as mãos pousadas sobre os joelhos, imóveis, e elas pareciam esculpidas em pedra, à luz da lua que se erguia. O maravilhoso anel brilhava levemente em seu dedo. Lucano vestia-se com uma túnica simples e barata. Seu guarda-roupa era tão pobre e limitado quanto o de um humilde liberto. Ainda assim, sua mãe pensava, o moço mostrava uma majestade para além da de César, e uma nobreza que se igualava a dos deuses. O coração dela subitamente aliviou-se, e Íris sentiu-se misteriosamente confortada. Olhou para o céu que escurecia cada vez mais, como se tivesse ouvido uma voz que dali viesse.

As amas chegaram, vindas da agradável casa que ficava atrás deles, em busca das crianças, e Íris levantou-se. Quando as mulheres levaram os pequeninos, ela seguiu-os com seus olhos azuis, molhados de ternura. Então, pôs uma das mãos no ombro do filho:

- Deus esteja sempre contigo, meu querido Lucano disse ela, deixando-o.

Keptah encontrou Lucano sozinho à luz do suave luar, sob as lustrosas murtas. Os ciprestes recortavam-se negros, contra a luz, e uma grande imobilidade envolvia os jardins. Keptah sentou-se na cadeira que Íris ocupara e ficou a olhar para o seu antigo aluno.

- Contaste à tua mãe declarou ele.

Lucano moveu-se, constrangido.

- Contei. Ela compreende.

- Tens a visão de vida mais espantosa disse Keptah. – Como não tenho tal visão, embora reverencie a tua, só posso ficar atônito.

Apesar de que, naturalmente, estava determinado que seria assim.

- Por quem? Perguntou Lucano, desdenhosamente. – Eu fui quem determinou a minha vida.

Keptah sacudiu a cabeça:

- Não. - Fez uma pausa e continuou: - Estás em erro, também sobre um certo número de coisas e esses erros devem ser corrigidos ou não encontrarás verdadeiramente o teu caminho. Para ti, a natureza é caótica, varrida pelos ventos da anarquia, sem propósito, inspirada apenas pela violência e por uma vida clamorosa, essencialmente sem finalidade. A civilização, para ti, é uma patética tentativa do homem para colocar a natureza em ordem; para dar-lhe de certa maneira uma forma e significação; para guiar seu caminho sem alvo e dar-lhe alguma espécie de motivação. Para ti, a natureza, em seu semear, crescer e morrer, é uma soma sem equação, um círculo que envolve o nada, árvore que floresce, dá flores e frutos e morre em sombrio deserto. Tais pensamentos são letais; carregam consigo a morte...

- E que mais carregariam? Disse Lucano, impaciente.

Pensou, consigo, que Keptah se estava tornando tão tedioso quanto José ben Gamliel.

De novo Keptah sacudiu a cabeça:

- Estás errado. A natureza é a ordem suprema, governada pelas leis imutáveis e absolutas, estabelecidas por Deus desde o início do universo. As civilizações, enquanto concordarem com a natureza e suas leis, tais como criação, liberdade de crescimento, dignidade de tudo quanto vive, beleza de forma, reverência pelos seres de Deus e pelo seu próprio ser, sobrevivem. Desde que se fazem rígidas e anônimas sob o Estado e regulam formas sutis de desmantelamento e degradação do melhor das massas infecundas de homens, a rejeição da liberdade para todos... Então a natureza precisa destruí-la, através de guerras ou pestilências, ou rápida deterioração. Estás no centro, nesta época, dos trabalhos da Lei.

- Estamos apenas continuando as infinitas conversações sobre o mesmo assunto que tivemos durante estes últimos meses disse Lucano, cansado.

- Não tornarei a discutir tal tema falou Keptah. - Só quero lembrar-te de que estás errado. O homem não é a criatura pobre, destituída de voz, sofredora que o imaginas. Ele é uma Fúria, nascida de Hécate, e só Ele pode salvá-lo de seu fado, nascido de autodeterminação. Esperou que o obstinado Lucano falasse mas este nada disse.

Então Keptah continuou:

- És de carne e sangue ou de pedra? Tua preocupação com os homens é impessoal, embora compassiva. Receio que seja, mesmo, vingativa. És jovem, ainda. O mundo está cheio de mulheres bondosas, amorosas. Devias ter uma esposa.

Lucano corou e voltou-se colérico para ele.

- Quem és tu, para falares assim? Jamais te casaste!

Keptah olhou-o de maneira estranha.

- Enéias e Diodoro não foram os únicos homens que amaram tua mãe. Conheci Íris desde que ela era uma criança. Tu me consideras presunçoso, eu, que outrora fui escravo?

- Não penso em homem algum como num escravo disse Lucano. Fixou os olhos em Keptah e seu rosto jovem e duro abrandou-se por um momento.

- Mas todos os homens são escravos. Sempre quiseram ser escravos. Só Deus pode libertá-los, Ele, que lhes deu liberdade quando nasceram, embora eles tenham renunciado a ela e sempre continuarão a renunciar. - E Keptah levantou-se. Então, sem dizer mais nada, deixou Lucano.

O jovem médico olhou para o céu que agora explodia em estrelas cintilantes. Subitamente pensou na Estrela que vira quando criança. Os astrônomos egípcios lhe haviam falado naquela Estrela.

Era apenas uma Nova[25]. De início, pensaram tratar-se de um meteoro, mas ela se movera muito lentamente, mostrara-se brilhante demais, firme demais em sua passagem. Desaparecera, na noite seguinte. Lucano recordou a profunda emoção que sentira no coração ao vê-la, a segurança apaixonada e sem nome que se instalara em seu âmago, a intensa alegria. Agora sentia-se, de repente, dominado por uma sensação de profunda perda e desgosto e cobriu o rosto com as mãos.

 

No dia seguinte, Plócio, o capitão da guarda pretoriana do próprio César, chegou à casa de Diodoro em sua biga oficial, circundada por um destacamento de guardas armados. Tendo visitado aquela casa com freqüência, depois da morte de Diodoro, e se havendo afeiçoado muito a Keptah, ao qual honrava como homem sábio, sua visita não deu origem a qualquer consternação. Keptah convidou-o a tomar algum refresco, mas Plócio disse:

- Hoje não vim para uma proveitosa tagarelice contigo, meu bom Keptah. Vim por ordem de César. Ele deseja ver o filho de Diodoro, Lucano, imediatamente.

Vendo que Keptah demonstrava certo susto, Plócio sorriu:

- Deves lembrar-te de que César fez a oração fúnebre.

Mencionou, repetidamente em minha presença, seu profundo respeito por Diodoro, e sua determinação de honrar-lhe a memória. Creio que Lucano enviou-lhe ontem uma mensagem, e Tibério deseja discutir com ele os termos de tal mensagem.

- Penso saber de que se trata disse Keptah. – Lucano recusou a nomeação para médico-chefe oficial de Roma.

- O médico está louco? Perguntou Plócio, estupefato, sacudindo a cabeça.

- De certa forma, sim falou Keptah.

Plócio acompanhou Keptah aos jardins brilhantes onde Lucano como uma criança, brincava com seus irmãos. A pequena Aurélia estava montada às costas dele, que fingia ser um cavalo bravo, rosnando ferozmente e sacudindo a cabeça dourada. Plócio achou aquela cena belíssima. Estava, também, estupefato diante da beleza de Lucano. Mas quando o jovem médico viu seus visitantes, retirou Aurélia de suas costas e com um gesto mandou que as crianças se afastassem, o que elas fizeram, desapontadas, correndo a brincar na outra extremidade dos jardins. Prisco voltou um momento depois, fascinado como sempre, pelos soldados em armaduras, que muitas vezes lhe traziam doces e diziam-lhe ser o próprio Diodoro quando criança.

- Queres falar comigo? Perguntou Lucano, que jamais tinha visto Plócio, embora o conhecesse pelas cartas em que Keptah a ele se referia.

- Cumprimento-te disse Plócio, erguendo o braço na rígida saudação militar. És Lucano, filho de Diodoro Cirino? Eu sou Plócio, comandante dos pretorianos na casa de César. Deves vir comigo para uma audiência com César.

Lucano relanceou os olhos para Keptah, que disse:

- Quando César ordena, deve ser obedecido.

- Muito bem disse Lucano. Sacudiu da túnica as folhas de relva. Hesitou, e disse: - Não tenho grandes roupagens. Devo ir como estou.

- Não insultarás César aparecendo diante dele como um pastor rústico disse Keptah, sorrindo para Plócio. - Aqui está, meu bom amigo, um jovem de fortuna considerável. Ainda assim, faz-se passar por um pobre camponês. Vamos, Lucano, tenho uma bela toga, que mandei fazer para mim, e para o arranjo de suas dobras treinei uma pequena muito inteligente.

Tomou o braço relutante de Lucano. O jovem corara de constrangimento diante da zombaria que se filtrava no tom de Keptah. Plócio ficou a vê-los entrar na casa. Prisco, como sempre, estava tocando pensativamente, no punho da espada curta e larga do soldado.

- Ah! Disse Plócio. - Tu serás um esplêndido soldado como teu pai. - Desembainhou a espada e deu-a ao menino, que a agarrou com suas pequenas mãos fortes e morenas. O rosto moreno dele reluziu e seus olhos iluminaram-se. - Agora disse Plócio ataca assim, virando o punho desta maneira.

- Eu servirei César disse a criança, atacando e desviando-se de Plócio. - Serei um grande soldado.

As outras crianças voltaram para observá-lo, mas Prisco ignorou-as, orgulhosamente, embora as vigiasse com o canto dos olhos. Aurélia bateu palmas e deu gritos de admiração, vendo Prisco movimentar-se como um esgrimista e manejar poderosamente a pesada espada. O cabelo da menininha era como lua dourada em torno de seu rosto bonito.

Keptah voltou com Lucano, agora vestido com uma toga de régia aparência. Um cavalariço estava trazendo para o portão um dos mais belos cavalos da casa, um garanhão da Iduméia. Quando Lucano montou-o e dominou-o com hábil mestria, Plócio pensou em Febo, pois cavalo e cavaleiro destacavam-se contra o azul intenso do céu como estátuas subitamente dotadas de vida.

Lucano cavalgou silenciosamente ao lado da biga de Plócio, até a cidade, os demais pretorianos montados atrás deles. Ele é muito estranho, pensava o comandante. E disse para Lucano, algum tempo depois:

- Roma está hoje em disposição muito festiva. O povo festeja Cibele e seu templo transborda de gente.

- Eu nada sei de Roma respondeu Lucano, secamente. - Passei apenas fora de suas portas em meu caminho para casa.

Plócio ergueu os ombros e a conversação morreu. Mas Plócio continuou admirando as qualidades de cavaleiro de Lucano, a maneira pela qual ele se mantinha sobre o garanhão. Tinha, sem dúvida alguma, a aparência de um deus. As damas de Roma ficariam doidas por ele.

Muito antes de terem entrado na cidade, através da Porta Asinara, Lucano podia ver Roma, brancura, bronze e ouro, sobre suas sete colinas, amontoando-se contra o céu de turquesa. Ali estava ela, imensa, intumescida não só de romanos, mas de homens de muitas nações e muitas línguas, cidade violenta e depravada, a senhora de toda a lei, a senhora do mundo, gloriosa em potência e colorido, núcleo de suas estradas tremendas, alimentadas pelos seus grandes aquedutos que traziam água fresca e clara de milhas sem conta de distância, retirando-a de córregos e rios, e por seus navios, que vinham de todos os recantos da terra. Ali estava Roma, a devoradora, a destruidora, mais terrível do que suas águias, diante de cujas faces milhões incontáveis de germanos, árabes, gauleses, bretões, egípcios e núbios, bem como miríades de outros povos, inclinavam-se, aterrorizados. O sol refulgia nas paredes distantes e nas colunas resplandecentes, dourava os templos longínquos com ouro deslumbrador. Toda a riqueza do mundo estava ali, todo o seu poder, todas as suas depravações e línguas e costumes e anelos, todas as suas belezas e artes e filosofias, todas as intrigas e conspirações. Não é de admirar, pensou Lucano, que Diodoro a um só tempo amasse e odiasse esta cidade.

   A estrada pavimentada de pedra, orgulho de Roma, estava apinhada de cavalos, bigas, carretas e carroças, carregadas de mercadorias e produtos. Um aqueduto corria paralelamente, suas águas alias cantando ao sol tépido da primavera. Campos de papoulas e de botões de ouro ondulavam às margens, o ar enchia-se do fermento da terra e do suor e odores das caravanas. Plócio ordenou que alguns de seus lictores o rodeassem, bem como a Lucano, para abrir passagem. Este, a despeito dele mesmo, foi dominado pela curiosidade e pela fascinação.

Baixava os olhos para os muitos rostos escuros de seus companheiros de viagem, aspirava o odor das especiarias e do alho. O ar troava com o ruído de pés e de cascos e com o retumbar e estalar de inumeráveis veículos. Os olhos do médico ardiam, tal era a movimentação de cores vigorosas ao sol violento.

- O trânsito disse Plócio, revoltado torna-se cada dia pior. Todas as demais estradas que vêm a Roma também ficam assim extremamente movimentadas. E com tudo isso Roma jamais se cansa; é como uma boca enorme, eternamente aberta e insaciável. É como Crono, que devorava seus filhos.

Nuvens de andorinhas barulhentas voejavam sobre suas cabeças, aumentando o barulho feito pelos homens, veículos e cavalos, barulho que parecia sacudir a estrada. Os campos cultivados, de cada lado, brilhavam em seus tons verdes, quase incríveis, com as culturas novas, feitas em fileiras, sobre a terra vermelha e fecunda. De vez em quando, havia um grupo de murtas, carvalhos, ciprestes, lançando sombra ocasional nas pedras ardentes, e aqui e ali, ao lado de um córrego azul e raso, erguiam-se maciços de grandes salgueiros, deixando tombar de seus troncos pálidos e mosqueados, para a água brilhante, sua frágil cabeleira de jade. A estrada tumultuosa fazia caminho pelas vilas brancas, instaladas em jardins, pastagens cheias de gado tranqüilo, grupos de escravos encadeados erguendo novas paredes ou consertando as antigas.

Agora, a poeira amarela espessava-se e tornava-se névoa reluzente sobre os viajantes, e um pó semelhante a ouro apareceu nas dobras da preciosa toga de Keptah, que fora tão artisticamente drapeada sobre a leve túnica azul de Lucano. O rapaz tentou sacudi-lo, mas ele agarrava-se ao linho fino. Seu garanhão espirrou e bufou. Plócio achava ridículo que um homem de toga estivesse a cavalo. Oferecera trazer Lucano de volta a casa em sua biga, mas seu oferecimento tinha sido friamente recusado pelo jovem.

Quanto mais se aproximavam da cidade, mais a sensação excitante crescia em Lucano, além de uma curiosidade muito humana. Roma já alcançara os setecentos anos de idade, e era velha, agora, tendo cometido inúmeros pecados. Ficava-lhe bem ter sido fundada sobre um fratricídio. Entretanto, seu declínio começara com o declínio da República, que passava a império absoluto. Suas flâmulas abertas aos ventos de todo o mundo agitavam-se com o turbilhão. Seu poderio era mantido por centenas de legiões, de espiões, informantes e assassinos entre as turbas. A intriga sufocava o ar, outrora honesto da República.

Mas aquele era, inevitavelmente, o curso do império, o preço do poder e "liderança mundial". O poema de Lucrécio, Do Rerum Natura[26], que Lucano lera, tinha dupla significação: uma para as latrinas de Roma, e outra para as latrinas do espírito romano. Nas latrinas físicas as mães freqüentemente abandonavam recém-nascidos não desejados, e nas latrinas espirituais os homens tinham abandonado sua fé e seu caráter.

Que importava o fato de Caio Otávio, Augusto César, terem-se gabado de que encontraram uma cidade de tijolo e a converteram numa cidade de mármore, que luzia e reluzia ao sol? Seria melhor, pensava Lucano, uma cidade humilde com justiça do que um sepulcro de mármore das virtudes transcendentais. Mas, ainda assim, estava excitado. A cavalgada parou à porta, e os que queriam entrar foram cuidadosamente examinados pelos soldados de guarda, com suas espadas desembainhadas. No topo da porta sacudiam-se as flâmulas de Roma e as terríveis águias de pedra olhavam para baixo furiosamente, para a estrada e para as turbas inquietas de homens, animais e veículos.

Plócio e os que o seguiam foram admitidos com cumprimentos, e cavalgaram através da porta, deixando atrás deles um ensurdecedor alarido de impaciência. E agora estavam na cidade enorme, envolvidos e devorados por ela.

Se Lucano ficara aturdido pelos sons e ruídos da estrada, agora estava inteiramente estonteado pela cidade. O período de repouso, que se fazia depois da refeição do meio-dia, tinha terminado, e enquanto prosseguiam seu caminho ao longo da Via Asinara eram obrigados a diminuir a marcha para menos do que um trote, pela multidão de lojistas, funcionários e banqueiros que voltavam ao trabalho.

Embora Gaio Otávio tivesse declarado que todos os cidadãos romanos deveriam usar toga, a maioria dos homens apressados usavam a túnica curta de muitas cores: azul, escarlate, amarela, branca, marrom, vermelhão e verde, e matizes de todas essas colorações. A maioria andava a pé; alguns dos mais influentes eram carregados em liteiras.

Bigas e cavaleiros tentavam forçar a passagem sobre as pedras lisas ou arredondadas. O tráfego ficava ainda mais congestionado quando grupos de animados cidadãos resolviam parar mesmo no centro da rua para discutir negócios ou trocar boatos. Quando obrigados a se separarem pela força do próprio tráfego, refugiavam-se nos limiares das lojas e tavernas, para gritar, gesticular, blasfemar e rir, ou para concluir o negócio. O caminho era ladeado pelas casas altas, às vezes até de oito andares, onde mulheres debruçavam-se aos peitoris das janelas, a fim de gritar com crianças que haviam fugido dos pátios da retaguarda e se tinham juntado ao alvoroço e ao ruído gerais. Ali, a maior parte dos edifícios era construída com os compridos tijolos lisos e vermelhos da época anterior. Homens empurravam carros sobre os quais havia braseiros fumarentos, e no topo desses braseiros salsichas e pequenos pastéis fritavam. Outros carros, impulsionados por seus donos, estavam cheios de mercadoria barata, para que a vissem as mulheres que se esticavam lá de suas janelas e guinchavam agudamente com os vendedores, insultando-lhes as mercadorias, ou faziam sinal de que ficariam com determinado pedaço de lã, linho ou algodão de cor bizarra, e com outras ofertas diversas. Para Lucano, a cidade tinha cheiro bem pior que Antioquia e Alexandria, a despeito das eternas leis sanitárias, mas era um odor mais acentuado e de conseqüência quase temerosa.

Suas narinas foram atingidas pelos maus odores, pelo calor odorífero de vitualhas em cocção, pelo óleo e entranhas de animais, pelo impregnante miasma de milhões de latrinas, pela poeira adstringente e pelo cheiro de pedra e tijolo aquecidos ao sol. Ali, o frescor da primavera campesina perdera-se em imenso e sufocante calor, como em meados do verão. Marés de ar quente fluíam de outras ruas, como de bocas de fornos. E por toda parte o clamor, as corridas, os berros, as exprobações, o retumbar de rodas e cascos, e as nuvens encapeladas e pombas e andorinhas. Quando os lictores dos pretorianos interromperam uma turba particularmente grande de mercadores que estava disputando uns com os outros, vociferantemente, mesmo no meio da rua, Lucano teve consciência de dezenas de olhos escuros e indignados que se voltavam para ele e para sua escolta e, por causa do barulho, só pôde ver as bocas torcidas que lançavam maldições. A Urbs[27] não temia quem quer que fosse, nem mesmo César.

O que mais impressionava Lucano, e estonteava-o, era a altura da cidade, os edifícios elevados, os apartamentos altaneiros, encostados uns aos outros e amparando-se uns aos outros, contrastando em suas cores: vermelho, amarelo-calcário, cinza-esverdeado, os arcos repletos de redemoinhantes grupos, como água a girar. A cidade, contida pelos seus muros e portas, tinha apenas uma forma de crescer: para cima.

Conseqüentemente, todas as ruas ferviam como corredeiras impetuosas e os cidadãos, forçados a empurrar ombros e cotovelos dos vizinhos para arranjar passagem, mostravam-se irritáveis, o que bem se compreendia, e muitas vezes pegavam-se aos bofetões ou em discussões abertas por causa do movimento bloqueado. Conforme Lucano se foi aproximando de um bairro mais abastado, aquela confusão e ruído faziam-se entre paredes, edifícios mais altos, circos, teatros, casas particulares, estabelecimentos do governo, cobertos com mármores não só branco mas dourado, castanho, vermelho e, ocasionalmente, com uma lousa de fulgurante cor negra. Roma absorvera todos os deuses das nações conquistadas por ela, num fervilhante panteão de religiões. Templos salientavam-se por toda parte, e através de suas portas de bronze corria um fluxo perpétuo de fiéis, os que levavam sacrifícios e os que saiam, cheirando a incenso. Muitos, esperando amigos, estavam de pé nos pórticos, gesticulando, cuspindo, argumentando. Agora, colunas altas e acanaladas apareciam, e sobre elas erguiam-se estátuas dos deuses, em bronze, ferro, ou mármore branco, e de deusas, e de heróis montados, apontando para cima, como piques gigantescos saídos das hordas fervilhantes e dos apertados templos e edifícios, às vezes empoleiradas de cada lado de amplas escadarias que levavam aos edifícios públicos e locais de oração, e às vezes saltando de um alargamento da rua e ao centro dele, circundadas por pequenos círculos de terra cheios de flores brilhantemente coloridas no meio de fontes, ou reluzentes de mosaicos. E sobre tudo aquilo, sobre todo o ruído ensurdecedor de milhões de vozes, bandos de veículos e cavalos, todo o poder da Roma imperial e de suas colinas de mármore arqueava-se o quente azul do céu, cobertura abobadada e sufocante sobre um caldeirão fumarento e colossal.

O cavalo de Lucano tropeçou mais de uma vez nos sulcos que as bigas faziam nos caminhos. Ele suava vigorosamente. Como seria inútil tentar fazer-se ouvir, Plócio ergueu a mão e, sem palavras, apontou para o Palatino, onde ficava o palácio dos césares, construído por Gaio Otávio. O palácio e suas vizinhanças pareciam pequenos e distantes, vistos dali, mas Lucano, apesar da névoa de poeira amarela que se suspendia no ar, palpável, com ardente brilho, podia ver o Palácio Imperial rodeado por um bosque de colunas brancas, subindo de andar a andar, em níveis diminuídos de colunas menores e arcos ascendentes. Templos, jardins verdes, terraços suspensos e belas vilas fluíam, em descida, do palácio sobre a colina régia, rodeados por uma profusão de arcos, pórticos, teatros e imensos monumentos aglomerados. Lucano pensou que naquele grande palácio vivesse o próprio Zeus, com seus filhos em palácios menores, abaixo do seu, ostensivamente afastado, entre as árvores, os pátios floridos e as fontes perfumadas. Tudo aquilo estava contra o sol, reluzindo como se fosse de fogo branco, aquela seleta e faustosa cidadezinha de poderio e beleza reais.

Pela primeira vez, Lucano, que estivera absorvido por tudo quanto vira naquele dia, pensou em sua próxima entrevista com Tibério César. Tentou recordar-se do que Diodoro dizia daquele homem, de seu frio capricho, de sua desconfiança em relação a todos os romanos, a tal ponto que colocava guarnições de soldados fora das portas de Roma, soldados que só a ele prestavam contas. Outrora fora homem mais alegre e feliz, quando casado com sua amada Vipsania, mas cedera aos pedidos de sua mãe e de seu Imperador, e divorciara-se de sua encantadora esposa por causa de uma mulher que mais tarde o traiu.

Desde então, fizera-se um homem sombrio e caladamente vingativo, apesar de todas as suas declarações de que todos os romanos deveriam gozar de palavra e pensamento livres, inclusive o Senado, ao qual ele prestava deferência exterior, enquanto intimamente o desprezava. Mas, pelo menos, tinha gênio no que se referia à delegação do poder, e seus magistrados procônsules e procuradores tinham liberdade de ação e julgamento. Se exibia, agora, sintomas de se estar tornando tirânico e intolerável, se ia cada vez mais usurpando o poder pertencente ao Senado, ao povo e aos tribunais, e mostrando disposições para o absoluto despotismo, ninguém a ele se opunha. Isso, Diodoro escrevera a Lucano, relutantemente, era mais por culpa do Senado, do povo e dos tribunais do que de Tibério. Apesar disso, ele era, naquela ocasião, ainda um administrador competente e justo, e ainda um soldado em seu coração, embora alvo freqüente do espírito rude da plebe romana, que rabiscava comentários obscenos sobre ele e sua infiel esposa, Júlia, nas paredes de Roma. Às vezes, em caligrafia mais audaciosa, apareciam as letras vermelhas: "Onde está nossa República? Vivam os homens livres, ingênuos. Abaixo o tirano!”.

Mas a República morrera, e não fora César algum que a levara à morte.

A cidade, conforme disse Plócio, estava festiva naquele dia. Mas os romanos eram sempre festivos, e constantemente estavam festejando deuses nativos ou estrangeiros. Tudo era escusa para um feriado, para sacrifícios, para comemorações nos circos ou nos teatros, ou nos incontáveis banhos públicos. Três circos, apenas, estavam anunciando corridas de bigas e combates entre gladiadores, e escravos fluíam entre a população, gritando as novidades, inclusive a informação de que algumas das melhores e mais libertinas peças gregas deviam ser representadas em certos teatros. As hordas lutavam, insistentemente, em direção desses espetáculos públicos, blasfemando contra os ociosos que bloqueavam a sua passagem, e gritando imprecações em vários idiomas.

O jovem médico e sua escolta começavam agora a subir o Palatino e, enquanto subiam, o ar se ia tornando mais fresco. Lucano estava deliciado pela beleza que o rodeava e, momentaneamente esqueceu-se de Tibério. Ali havia menos aglomeração, e os que iam levados em liteiras, bigas e carros, eram homens e mulheres de elite, que se dirigiam para os templos e teatros que circundavam o palácio, ou para suas vilas. Alguns procuravam ser recebidos pelo Imperador. Lucano olhou para os rostos aquilinos dos homens e para as faces pintadas das adoráveis mulheres que lhe sorriam, de súbito, com satisfação. A despeito de sua beleza, pareciam-lhe estranhas e devastadas e, de certa forma, depravadas. Viu portões de vilas abrindo-se para receber os que voltavam para suas casas, teve relances de jardins que faiscavam para além deles, e de fontes argentinas e inquietas, e de arcos brancos, pórticos repletos de deuses e heróis montados. Nunca em todo o mundo a deidade fora tão linda e arrogantemente exibida, e nunca no mundo, era o que pensava o jovem, houvera tão pouca fé. Os deuses adornavam a Cidade Imperial mas não a governavam.

Agora, de um nível mais alto, Lucano olhava para baixo, para a cidade ávida e tremenda, com seus precipitados e coloridos rios de humanidade; para seus monumentos salientes e para seus edifícios sufocados, todos desaparecendo, finalmente, na grande distância dourada. De novo ficou atônito com o próprio peso e potência de Roma; com sua vastidão incrível; sua força dinâmica; seus milhões de pessoas carregadas, sombrias e excitadas; sua grandiosidade altiva, embora prodigiosa e vulgar; suas turbas esmagadoras; seu alvoroço descontrolado; seu temporal de flâmulas e, daquela altura, por sua feérica e incandescente beleza. Viu o Tibre, verde e pesado, as pontes esculpidas, e os edifícios que vinham até as bordas dele, e os telhados brancos e rosados que faiscavam violentamente ao sol. Aqui e ali, um domo dourado flamejava entre platibandas pontudas, como luminárias menores. Seus olhos ardiam, seu espírito estava quase dominado. E agora, sentia-se de novo como que vagamente amedrontado. Pequenas pérolas de suor explodiram ao longo da linha loura de seu cabelo.

As portas do palácio, guarnecidas com pretorianos severos, abriram-se para ele e sua escolta. E se tivesse ofendido Tibério? O imperador, de quem Diodoro desdenhara em linguagem tão rude, não se iria vingar dessa ofensa em Íris e nas crianças?

O prefeito dos pretorianos veio ao encontro deles no imenso vestíbulo do palácio, homem grande e formidável, de olhar furibundo e desconfiado, de sob seu elmo. Brilhava como uma estátua de bronze e de mármore marrom, sob a grande chapa de vidro que servia de forro e deixava passar a luz do sol, e seu passo era medido e pesado. Plócio levantou seu braço direito em saudação e apresentou Lucano, que não sabia como cumprimentar aquele homem imponente, que o examinava com tanta curiosidade.

- Cumprimentos disse, rapidamente.

Então aquele era o filho adotivo de Diodoro Cirino, o médico grego?

- Cumprimentos respondeu Lucano, com alguma rigidez, não gostando daquele exame. O prefeito sorriu: tinha agudos dentes caninos.

- César mandou chamar-te comentou ele, dando a entender, pelo seu tom de voz, que César era pessoa imprevisível, dada aos mais extraordinários caprichos.

Lucano corou. E disse, friamente:

- Isso eu compreendo. Pensas que eu estaria aqui, se não fosse assim?

Plócio escondeu rapidamente um sorriso, pois o prefeito ficara ao mesmo tempo espantado e aborrecido com a resposta de Lucano.

Ainda assim, depois de um momento, ele se sentia impressionado pelas maneiras altivas do jovem, pela segurança rigorosa de seus maxilares e pela evidente carência de temor obsequioso. Como acontecia a muitos militares rudes, tinha uma paixão secreta por rapazes e meninotes.

Resolveu que o bonito Lucano lhe agradava, e pôs a mão no ombro relutante do jovem.

Sentia-se mais à vontade falando a vulgata[28], mas agora falava em grego, para aplacar Lucano, que não estava, obviamente, gostando dele.

- Tu estás sendo grandemente honrado disse, e notou com prazer os ombros largos do jovem, o pescoço que parecia uma coluna, feições lindamente cinzeladas e os grandes olhos azuis.

Lucano não se moveu. Lembrou-se, subitamente, do mercador de escravos, Lino, e uma náusea quente apoderou-se dele. Apesar disso, não se moveu, reprimindo sua súbita aversão. Disse, em vulgata:

- César é muito bondoso.

Olhou para Plócio, que observava tudo com atenção, franzindo ligeiramente as sobrancelhas. Falou com o jovem comandante, desdenhando mover-se de sob a pressão da mão morena que estava em seu ombro.

- Como devo cumprimentar César?

Plócio tornou a lutar contra um sorriso, porque Lucano falara com ele em grego, a língua dos patrícios e dos educados. Disse gravemente:

- Chegas à sua augusta presença, e quando ele te vir, o que pode não acontecer imediatamente, e quando ele falar, deves ficar de joelhos e tocar o solo com tua fronte.

Lucano disse:

- Mas essa é uma posição com que se honram apenas os deuses. Os judeus se prostram diante de Jeová, mas não diante de homem algum.

O prefeito ainda apertou mais os dedos nos ombros de Lucano de uma forma paternal, e disse:

- Meu caro rapaz, não ouviste? César é um deus, e tu lhe rendes honras devidas à divindade.

Lucano percebeu que Plócio sacudia a cabeça para ele, ansiosamente. Portanto, nada disse. O prefeito, sorrindo-lhe afetuosamente, falou:

- Eu mesmo te conduzirei diante do Divino Augusto. - Despediu Plócio com um seco movimento de cabeça, e este, sem saber bem o que pensar, saudou-o e afastou-se. Seguindo um gesto afetuoso do prefeito, Lucano acompanhou-o.

O jovem médico jamais vira um local assim, e nunca imaginara tal esplendor e imensidão. Esqueceu mesmo o prefeito em seu espanto e em sua tentativa de tudo ver. Passara do mesmo vestíbulo para um imenso salão, e daí para infinitos outros vestíbulos e salões, e os pisos de cada um eram de mármore policrômico ou branco como a neve, incrustado com mosaicos ou pedras de um azul e vermelho brilhantes, cada qual refletindo a luz, como se viesse de alguma radiosidade interior. Florestas de colunas acanaladas abriam-se em toda parte, feitas de ônix, mármore branco, metal dourado ou alabastro. Estátuas de deuses e deusas erguiam-se em arcos, e bustos de César e de seus predecessores descansavam em pequenas colunas. As paredes reluziam com mosaicos que pintavam as vitórias e episódios das vidas dos deuses, e tão habilmente eram trabalhadas que pareciam as mais delicadas e heróicas pinturas. Divãs e cadeiras encostavam-se as paredes, peças feitas de marfim, teca e ébano, decoradas com ouro e estofadas com almofadas de sedas vermelhas, azuis, brancas e amarelas. Requintadas mesas de mármore e limoeiro estavam espalhadas junto delas e mantinham lâmpadas, de ouro e de prata, ainda não acesas, e pequenos vasos de cristal de Alexandria, cheios de flores, bem como bandejas de ouro e prata onde se viam romãs brilhantemente coloridas, uvas, figos e azeitonas brancas e pretas. Tetos enormes, de mármore ou de vidro, pareciam flutuar sobre as colunas, alguns deles pintados de branco e com relevos de delicado desenho, que eram folhas de ouro. E por toda parte, em todos os cantos, ficavam vasos altos, com galhos de flores, vasos importados de Catam, Pérsia e Índia, reluzindo em cores sutis, fontes perfumadas embalsamavam   o ar.

Não havia um vestíbulo ou um salão que não estivesse cheio e movimentado, com escravos, estafetas, pretorianos e altas patentes militares, senadores em busca de audiência, patrícios e augustais que ali se colocaram com idêntica intenção. Alguns desses últimos estavam sentados, empenhados em gracejos, pilhérias ou boatos, e negligentemente servindo-se das guloseimas que havia sobre as mesas. Quando viam o prefeito, sorriam-lhe encantadoramente, sabedores de seu poder, e trocavam palavras com ele. Mas olhavam, meditativos, para o jovem que ele conduzia com ar tão solícito. Vendo sua aparência, os cavalheiros piscavam-se mutuamente os olhos, cobriam a boca com a mão e sussurravam comentários obscenos.

O prefeito e aquele do qual se encarregara passaram entre a colunata aberta, depois para outra profusão de salas, até que Lucano se sentisse estonteado. Às vezes, tinha relances de jardins, através de uma janela ou de uma porta guardada, e do verde das árvores e da relva, das flores de colorido forte, contrastando com o alvo frescor lá de dentro. Às vezes, supunha estar vendo imensas pinturas nas paredes, tão vívidas e inesperadamente lhe surgiam os jardins com seus amplos terraços. Os ouvidos eram tomados por vozes, música e risos distantes e do exterior vinham as canções dos pássaros e o jorrar de fontes gigantescas. Ocasionalmente, uma dama do palácio passava por ele e pelo homem que o escoltava, o rosto bonito coberto de cosméticos; os cabelos, negros, ruivos ou louros, apanhados em redes de malhas de ouro onde se incrustavam pedras preciosas; os trajes brancos ou de cores delicadas a drapejar em torno dela. Invariavelmente, cada uma delas olhava bem de frente para Lucano e sorria-lhe. Jóias faiscavam nos pescoços e colos brancos, nos braços, pulsos e dedos.

Os dois homens alcançaram uma porta de bronze de tão altas proporções que Lucano ficou estupefato. Essa porta era guardada por pretorianos. A um gesto, quatro deles abriram as folhas da porta para trás e Lucano viu diante de si uma biblioteca, ampla, mas com mobiliário esparso. Sentado a uma mesa, cenho franzido, e lendo, um homem pouco atraente, de túnica roxa e branca, lentamente ergueu os olhos escuros e ressentidos.

- Salve, Divino César disse o prefeito, saudando. – Eu trouxe...

- Estou vendo interrompeu Tibério, a voz áspera. – Podes ir embora, meu bom prefeito, e leva contigo teus pretorianos. Fecha a porta e espera lá fora.

Aquilo era incrível! Apenas os mais altos potentados tinham audiências particulares com César e assim mesmo em raríssimas ocasiões.

O prefeito ficou a olhar.

- Vai! Disse Tibério e agora seu tom era friamente vitriólico.

O prefeito, desapontado, tornou a saudar, fez um gesto para seus pretorianos, saiu e fechou a porta atrás deles.

Tibério recostou-se em sua cadeira e fixou os olhos em Lucano, sem nada dizer, enquanto este retribuía-lhe o olhar, com ingênua curiosidade. Ali estava César, o próprio coração do centro do poder e da força romanos, e era apenas um homem como outro qualquer, alto e magro, calvo, de feições amarguradas num rosto pálido, e marcas de eczema nas faces, reluzindo de ungüento oleoso.

Lucano não estava com medo daquele homem tão temível.

Sentia-se apenas curioso. E sua mente de médico também comentava, automaticamente, o fato de aquela erupção de pele estar sendo tratada erradamente. Além disso, sua mente continuava, Tibério sofria, era evidente, de alguma forma obscura de anemia para a qual o fígado era altamente recomendado pelos sacerdotes-médicos egípcios.

Tibério, naquele longo silêncio, percebeu o exame agudo que Lucano estava fazendo, e sorriu. Para o jovem, o sorriso foi desagradável, mas se outros o tivessem visto, teriam ficado estupefatos com sua benevolência nada habitual!

- Cumprimentos, Lucano, filho de Diodoro Cirino disse César.

Lucano hesitou e agora lembrava-se do que Plócos lhe havia dito.

Mas não podia ajoelhar-se diante de homem algum! Assim, em sua voz jovem e sonora, respondeu:

- Cumprimentos, César!

O sorriso de Tibério alargou-se, divertido; seus lábios eram delgados e repuxados e mostravam dentes pequenos e amarelos. Fez sinal para uma cadeira, junto de sua mesa.

- Senta-te, por favor, disse ele. Os que esperavam para vê-lo, e os que tinham estado esperando durante horas, teriam ficado arquejantes de espanto, pois ninguém se sentava na presença de César, a não ser numa refeição. Lucano, aparentemente, não sabia de tal coisa e, assim, apenas fez um cortês cumprimento de cabeça e, sentando-se, esperou.

- Um dia agradável disse Tibério.

- Sim respondeu Lucano. - E continuou a esperar.

 

Lucano não podia saber que tinha merecido uma grande honra com a permissão de ver César a sós, sem sequer a presença de um guarda. Não podia saber que o astuto Tibério vira imediatamente que ali estava um jovem no qual se podia depositar absoluta confiança.

Lucano também estava julgando rapidamente Tibério. Um homem rude e ressentido: de que se ressentia ele? De sua esposa infiel, de seus amigos, de seus encargos, de Roma? Lucano sentiu até mesmo compaixão.

Em algum lugar, no jardim que ficava para além da biblioteca, pavões pipilavam, e havia um som distante de música. Mas, na biblioteca, os dois homens, um o poderoso César, o outro apenas um jovem médico, olhavam-se francamente. Lucano cheirou o ar; um odor leve, mas desagradável, dos ungüentos que se espalhavam pelo rosto espinhento de Tibério, chegou até ele. Desejou falar, mas recordou-se de que César sempre deveria falar em primeiro lugar. Tibério por sua vez, viu que Lucano não o temia. Ficou a cogitar, por um momento, se o jovem seria um tolo. Apesar disso, sentia-se impressionado pela aparência de Lucano.

E disse, observando atentamente o rapaz:

- Posso apresentar-te, meu bom Lucano, minhas condolências pela morte de teu pai? Homem justo, simples e heróico. O último dos grandes romanos.

Sua voz, embora áspera e relutante, revelava sinceridade. Lucano sorriu, grato. Provavelmente, para Tibério não seria um segredo o fato de Diodoro ter desdenhado de suas qualidades militares, e ainda assim César podia falar de maneira tão bondosa a respeito dele. Lucano, embora com desgosto renovado, pensou que também Tibério era um homem justo. Tibério recostou-se em sua cadeira, e ficou a olhar para a janela aberta, que reluzia com o sol.

- Ordenei que levantassem uma estátua dele para o pórtico do Senado falou. Distraidamente, coçou um ponto irritado de seu rosto.

Lucano sorriu, diante de tal ironia. Os senadores teriam o duvidoso prazer de ver sempre a estátua de alguém que os denunciara e mesmo no limiar de sua casa, armado com sua espada de mármore.

- Majestade, és muito sutil falou.

Tibério ergueu as sobrancelhas negras. O jovem não era um tolo, afinal. E disse:

- Se eu tivesse mil homens como Diodoro Cirino em Roma, poderia dormir bem as minhas noites... Estou preocupado, Lucano, em fazer tudo quanto estiver em meu poder para mitigar o desgosto da família e honrar a memória do tribuno. Não compreendo tua carta. Nomeei-te médico-chefe oficial em Roma, contra o ranger de dentes dos demais médicos, e tu me pediste que anulasse tua nomeação.

Estou curioso para saber por quê.

Lucano corou. Não tinha noção de que fosse não só incrível, mas perigoso, aquilo de recusar o que César oferecia. Era como se uma mariposa tivesse desafiado uma águia. E disse, gravemente:

- Roma não precisa de mim. Foi isto que te escrevi, majestade. Mas os pobres e os escravizados precisam de meus serviços nas províncias.

Tibério ficou silencioso. Seus olhos estreitaram-se e fixaram-se intensamente no rosto bonito do jovem. Mergulhou em seus pensamentos. Estava diante de algo que não podia compreender, e que lhe parecia louco. Pensou nos velhos filósofos que tinham ordenado que o homem tratasse bondosamente seu próximo. Também os sacerdotes dos templos de Roma exortavam as pessoas a terem bom coração, em nome dos deuses, e serem justas, honestas e misericordiosas.

Entretanto, tudo aquilo não passava de palavrório. Nenhum homem mentalmente são acreditava em tal coisa, considerando o que o mundo sempre fora. A boca de Tibério curvou-se num sorriso.

- És médico, cidadão de Roma, filho adotivo de um grande e venerável homem e possuidor de fortuna disse ele. - As portas dos patrícios e dos augustais estão abertas para ti. O que te ofereci foi apenas o limiar. E ainda assim, abandonarias tudo isso pela disposição de tratar de pobres, mendigos, e escravos sem valor?

Pertenceria Lucano a alguma estranha e obscura seita de estóicos, ou se teria dedicado a um deus estrangeiro em particular?

Lucano respondeu:

- Sim, pois tudo o mais nada significa para mim.

- Por quê?

Lucano tornou a corar.

- Porque, de outra maneira, minha vida não teria sentido.

Tibério franziu as sobrancelhas. Que sentido havia na vida, a não ser poder, fortuna e posição? Refletiu em sua própria vida, e suas feições estreitas revelaram dor involuntária. Que significação existia para a sua própria vida? Perguntou-se, com absoluta sinceridade.

Fizera o que pudera; era administrador cuidadoso, tentara erguer o orgulho no endurecido Senado e desejara devolver àquela casa o seu poder. Tácito[29] não gostava dele, mas concordava em que era homem de sensato julgamento. Ele, um soldado, desejava ter paz ao longo de todos os seus limites e fronteiras. Não aumentara as taxas, a despeito das vorazes exigências da plebe romana, em relação a novos benefícios.

Quando cortesões se queixavam de injustiças pessoais, friamente advertia-os para que levassem o assunto aos tribunais e não interferia pessoalmente.

Estava tentando, naquela ocasião, salvar Roma, restaurar algumas das qualidades que a tinham feito grande. Mas um povo depravado não aceitaria sua liberdade e sua antiga disciplina, seu antigo caráter.

Tibério podia sentir um pressentimento terrível de que a poluição daquele povo eventualmente o poluiria também, e aquilo, tomado de cólera, ele arremessava de volta contra os que insistiam em corrompê-lo.

Pensou em sua esposa; pensou nos que tinham fome de seu trono.

Pensou em seu filho único, Druso, jovem de paixões violentas e mente limitada, no momento atirando desajeitadamente tribos germânicas umas contra outras, em llírico, acreditando, à sua maneira simplória, que os portões da paz só podiam ser atingidos através de sangue.

Tibério podia sentir as forças inexoráveis que o rodeavam e que o destruiriam como homem justo, que o degradariam ao nível de um cão romano, por sua avidez, sua política mesquinha, suas exigências, sua sensualidade, sua própria cobiça de poder. Tinham, pensava com horrível lucidez, feito de sua vida uma inanidade, todos eles, sua esposa, seu filho, seus generais, o Senado. Mais do que tudo, porém, as desprezíveis turbas de Roma, as turbas gananciosas, poliglotas, que Viam seus césares como deidade equipada com uma cornucópia de infinitos benefícios para recompensar os ociosos, os fracos, os inúteis, os irresponsáveis, os ventres insaciáveis, que se alimentavam à custa de seus vizinhos industriosos. Animais desalmados! Subitamente, Tibério odiou Roma.

Fixou os olhos em Lucano, que lhe falara como um menino de escola em significação da vida!

- A vida deve ter um significado? Indagou ele. - Mesmo os deuses não deram ao homem um sentido para a sua existência.

- Sim, majestade, isso é verdade respondeu Lucano, o rosto endurecendo-se. - Mas podemos dar às nossas próprias vidas alguma significação. A que dei à minha foi a de aliviar a dor e o sofrimento, salvar os moribundos, evitar a intromissão da morte.

- Com que propósito? Indagou Tibério. - A morte é fado comum a todos. Assim como a dor, seja do corpo ou do espírito. E que valem os pobres e os escravos, também?

- São homens disse Lucano. - É verdade que dor e morte são inevitáveis. Mas a dor pode ser aplacada freqüentemente e a morte pode se tornar menos desconfortável, ou ser adiada. Quem pode olhar o mundo dos homens sem sentir piedade e sem desejar confortá-lo?

Tibério pensou em Roma e sorriu sombriamente. Ali estava, certamente, um menino de escola, loquaz, um filósofo amador, no qual a barba mal despontava. Tudo sabia a respeito de Lucano, que vivera existência tão protegida, que jamais tomara parte numa campanha militar e que passara seus anos num ambiente de família, pacífico e virtuoso e em escolas. Teve pena do jovem. Falava daquela turba fedorenta como "homens". Falava de escravos como "homens". Sem dúvida também consideraria um senador venal como "homem"! As narinas de Tibério contraíram-se.

- Estás dedicado a algum deus obscuro que ainda não teve sua estréia em Roma? Perguntou ele a Lucano, com leve sorriso zombeteiro.

Ficou surpreendido ao ouvir o rapaz responder com extraordinária veemência:

         - Não estou dedicado a deus algum!

- Não acreditas nos deuses? Perguntou Tibério.

Lucano ficou silencioso por alguns momentos, os olhos baixados para a vasta mesa de mármore que tinha diante de si. Depois, disse:

- Acredito em Deus. Ele é nosso Inimigo. Aflige-nos sem razão. Mesmo um carrasco lê para sua vítima a relação dos crimes de que ela é acusada, e diz-lhe por que deve morrer. Ele não nos disse por que devemos sofrer. Condena-nos à morte por sermos o que somos. Ele, que nos fez o que somos.

- Então, consolarás os que ficaram privados de um consolador disse Tibério. Estava com o espírito aberto e alegre e pensou novamente que Lucano seria um simplório. Continuou: - Estudaste em Alexandria. Sem dúvida encontraste professores judeus ali. Quando estive em Jerusalém, ouvi o povo falar de um Messias, isto é, de um consolador, de um Redentor, que livrará os judeus do domínio de Roma e os colocará em altos tronos, de onde eles governarão o mundo.

Não é um pensamento pretensioso? Mas verás que todos os homens são iguais, que desejam poder.

Desenrolou a carta de Lucano e repassou-a, num murmúrio.

Depois disse, sem olhar para o jovem:

- Quando eu era mais jovem e estava em uma das minhas campanhas, ficamos atônitos ao ver uma grande estrela no céu certa noite. Foi ocasião da Saturnal. A estrela moveu-se para o Oriente e então desapareceu. Meus astrônomos dizem-me que aquela estrela foi visível em toda parte, e era a Nova, e os astrólogos falaram de um grande destino que virá para o mundo. Mas do Oriente ouvi dizer que a estrela levava ao lugar onde nascera um deus. Isso passou-se há uns quatorze anos ou mais. Se um deus tivesse nascido, então, seguramente já teríamos notícia dele a esta altura. Bem vês quanto são supersticiosos os homens.

Lucano viu-se tomado por uma grande emoção. Lembrou-se de José ben Camliel e de sua história do menino camponês que discutira com os mais competentes e eruditos doutores do Templo. Sacudiu a cabeça, em negativa.

Tibério pousou sobre a mesa a carta de Lucano. Depois, estendeu a mão para apanhar um grande objeto chato, envolvido em seda amarela. Retirou cuidadosamente a seda e mostrou o objeto. Era feito de ouro na forma de um escudo. Lucano inclinou-se para a frente, a fim de vê-lo mais de perto. Viu o rosto de Diodoro, de perfil, gravado em relevo no escudo de ouro, e sob ele uma mão que agarrava uma espada curta, desembainhada. Com a espada havia uma citação tirada de Homero, em grego:

 

Sem um sinal, sua espada o valente arranca,

E não pede outro augúrio senão as leis de sua pátria.

 

Ainda mais abaixo, uma linha de Horácio, em latim:

 

Non omnis moriai (Não morrerei inteiramente).

 

Os olhos de Lucano encheram-se de lágrimas. Tibério falou, com sombria satisfação:

- Mandei que isto fosse pendurado atrás da estante de leitura do Senado.

Os olhos de ambos encontraram-se em completo entendimento.

Tibério passou a mão delicadamente sobre o escudo e disse:

- Consideraste o que Diodoro teria desejado que fizesses? Ele desejaria que servisse Roma, como ele a serviu.

- Ele era um grande homem, que acreditara na liberdade do indivíduo disse Lucano. - Embora estivesse em desacordo comigo, sei que ainda assim desejaria que eu fizesse o que considerasse direito.

- Apesar disso falou Tibério deverias honrar sua memória bastante para passar algum tempo em Roma, servindo o povo. Disseste em tua carta que desejas deixar Roma imediatamente. Para ser justo em relação a Diodoro, não posso consentir nisso. Ordeno-te que permaneças aqui durante seis meses. Se, ao fim desse período, ainda estiveres convencido de que teu dever está em outro lugar, eu te dispensarei.

         O obstinado Lucano ia protestar, quando sentiu sobre sua pessoa a força dos olhos imperiais, e compreendeu, inteiramente, pela primeira vez, que aquele era César, e que diante de seus decretos ele nada podia. Tibério não sorria, agora. Depois de um momento, Lucano curvou a cabeça:

- Seja murmurou. - Em nome de Diodoro.

- Quero ter-te ligado à minha casa durante esse período - disse Tibério com um riso de lábios apertados. - Talvez até te consulte, pessoalmente, sobre alguns assuntos.

O pensamento de ficar totalmente aprisionado naquele imenso palácio apavorou Lucano, mas compreendia, agora, que não poderia protestar.

- Os funcionários médicos estão se fazendo indolentes disse César. - Gostaria que inspecionasses os trabalhos deles e sugerisses melhoramentos. Além disso, minha casa está cheia de escravos, libertos e pretorianos. Teus serviços para com eles serão apreciados. Não estou inteiramente satisfeito com meus próprios médicos.

Lucano ficou um pouco mais encorajado.

- Se me permites, majestade, posso sugerir que teu tratamento para o eczema está errado?

As sobrancelhas de Tibério ergueram-se:

- Realmente? Que sugeririas tu? - Sentia-se de novo divertido.

- Ungüentos oleosos apenas aumentam os óleos naturais e infeccionados contidos nas bolhas disse Lucano, de novo o médico.

- Prefiro uma pasta de água com flúor e enxofre, aplicada depois de cuidadosa limpeza do local, com sabão forte, duas vezes por dia. Ela tem uma influência se cativa e desinfetante. - Hesitou, mas disse, depois: - Também acredito que César tem qualquer distúrbio de sangue. Se me permitisses...

Intrigado, Tibério fez um movimento de aceitação, e Lucano levantou-se e dirigiu-se para ele. Esqueceu-se, de novo, que aquele homem era o formidável e irresistível poder de um grande e temível império. Para Lucano, era apenas um homem que não gozava de boa saúde. Com dedos firmes e delicados baixou as pálpebras inferiores de Tibério, depois abriu-lhe a boca e examinou as membranas pálidas. Sentou-se de novo, sem permissão.

- Sentes um cansaço constante, majestade? Uma lassitude? O trabalho cansa-te para além do que deveria cansar-te naturalmente? A tua respiração torna-se mais rápida com o mínimo exercício e tens, com freqüência, sensação de vertigem e tontura?

Como a discussão da própria saúde encanta até mesmo um César, Tibério confirmou com a cabeça.

- Explicaste exatamente como me sinto, meu bom Lucano.

- Então, tens anemia disse o jovem médico. - Não é ainda um tipo muito perigoso embora possa tornar-se assim. Qual é a tua alimentação?

         - Sou muito frugal disse Tibério. - Sou soldado. Não freqüento orgias nem banquetes. Alimento-me como um soldado, muito sobriamente, de um pouco de queijo, leite de cabra, pão, vinho tinto simples, frutas e verduras. Ocasionalmente um pouco de carne ou uma coxa de ave.

- A alimentação é errada para um homem em sua sexta década disse Lucano, em tom reprovador. - Sugiro carne fresca, de vaca, três vezes por dia, rico e pesado vinho, poucos vegetais, e frutas só uma vez por dia. O peixe não é muito bom para a anemia, nem as aves. O melhor, que receito, é uma boa porção de fígado de vaca pelo menos uma vez por dia.

Tibério fez uma careta:

- Meu cozinheiro prepara um acepipe com fígado gordo de porca que tenha sido alimentada com grande quantidade de figos maduros.

Detesto aquilo. Apesar disso, já que agora és meu médico, comerei fígado de vaca na refeição da tarde.

Apoiou o queixo na mão direita e ficou a olhar para Lucano.

- És jovem disse e dono de extraordinária beleza. És também rico, estimado e médico. Entretanto, és infeliz. Se eu tivesse tua idade e fosse dono dos dons que possuis, sem ser César, seria o mais feliz dos homens. Vejo tua angústia. De onde vem ela?

Lucano não pôde falar durante alguns momentos. Depois, respondeu, em voz baixa:

- Um dos desgostos da vida é a precariedade de todas as alegrias.

Tibério ergueu os ombros.

- Até um menino de escola entende isso. Devemos nos privar de prazer, de alegria, hoje, por se tratar de coisas fugazes?

Lucano olhou diretamente para ele, então, e viu, instantaneamente, que ali estava um homem profundamente perturbado, sofrido e em desespero. E sentiu-se repleto de desespero correspondente, pois não tinha palavras para confortá-lo, nem esperança para dar-lhe. Como ele próprio perdera Rúbria, Tibério perdera seu amor, e compartilhavam, assim, uma desolação comum a ambos. Tibério olhou-o nos olhos e viu que deles emanavam sofrimento e desejo de ajudar, e viu a impossibilidade em que o jovem se sentia de ajudá-lo. Comoveu-se, e era espantoso que alguma criatura ainda conseguisse comovê-lo.

Respondeu, rapidamente, sua própria pergunta:

- O que os deuses nos deram não deve ser recusado, seja bom ou mau, pois que escolha temos nós? Mesmo eu não posso embriagar-me para alcançar a crença temporária de que o mundo é tolerável para um homem de pensamento.

Bateu uma campainha que estava sobre a mesa e as portas de bronze giraram, maciças, abrindo-se. Plócio e quatro pretorianos entraram imediatamente. Plócio relanceou olhos preocupados para Lucano, mesmo enquanto saudava o imperador, e ficou estupefato de ver que o jovem se encontrava recostado em sua cadeira de marfim, como um igual reconhecido.

- Meu bom Plócio disse Tibério -, tu conduzirás Lucano aos melhores aposentos, onde ele ficará durante algum tempo como meu hóspede de honra. E mandarás uma mensagem para sua mãe, informando-lhe que seu filho está comigo.

Depois de Lucano ter saído com Plócio, o imperador permaneceu sozinho durante algum tempo, a cabeça entre as mãos. Havia senadores, augustais e patrícios à espera para vê-lo, e também magistrados, e ainda assim Tibério não os mandava chamar. Pensava na ausência de afetação de Lucano, em sua nobre simplicidade e naquela qualidade férrea que havia nele e não podia ser removida, e em suas manifestas virtudes. Não podia decidir se Lucano era um tolo ou um homem muito sábio, apesar de toda a sua juventude. Depois, riu asperamente consigo mesmo. Lucano estava, agora, no Palácio Imperial. Depressa correria a notícia de que ele estava ali como hóspede de César, e a corrupção filtraria lenta e insidiosamente em direção dele, como água oleosa e negra. Seria o moço envolvido por ela? Seria, certamente, pois homens têm uma tendência natural para o vício, e poluição é seu elemento natural.

- Veremos! Disse Tibério, em voz alta, e tornou a rir, amargamente.

 

Enquanto Plócio conduzia Lucano através de outra floresta de brancos pilares e aglomerados de estátuas, disse-lhe:

- Só por curiosidade, que foi que disseste a César?

- Que foi que eu disse? - Lucano olhava para ele, surpreendido. - Ora essa, conversamos sobre vários assuntos, e César se mostrou muito compreensivo. Também receitei para ele.

Plócio sacudiu a cabeça, estupefato. Sabia-se que Tibério era caprichoso.

- Insististe em tua recusa? Indagou o jovem pretoriano.

- Certamente falou Lucano, um tanto irritado. - Eu disse que César foi muito compreensivo. Entretanto, concordamos em que permanecerei em Roma, entre o pessoal de sua casa, durante mais ou menos seis meses, a fim de honrar a memória de Diodoro. Depois desse tempo, partirei.

Plócio pensou que não ouvira direito e voltou a cabeça para fixar olhos confusos no médico. Um homem, um grego, recusara um oferecimento de César e não só deixara sua presença em liberdade mas fora tratado graciosamente como pessoa da mais alta importância.

Seguiram em silêncio, Lucano interessado em tudo quanto o rodeava, Plócio em estado de perplexidade. Se as estátuas se tivessem subitamente animado ele não poderia sentir-se mais atônito ou mais incrédulo.

Entraram num corredor amplo e particular guardado por dois pretorianos, que saudaram e ficaram a olhar para Lucano com curiosidade. O jovem observou que as paredes brancas eram delicadamente pintadas com cenas da mais alta licenciosidade e depravação, apresentando centauros e sátiros, ninfas e deuses, homens e mulheres divertindo-se das maneiras mais impudicas. Mas aquele suave deboche não nauseou nem revoltou Lucano, que era médico e nada achava de obsceno nas intricadas e maravilhosas belezas e funções do corpo humano. Para ele, aquelas pinturas eram imaginação de crianças pervertidas e impudentes, que encontravam prazer em diversões bestiais. Vira coisas muito piores pintadas cruamente nas paredes e tavernas de Alexandria e de Antioquia; as que ali estavam foram, pelo menos, executadas por um excelente artista. Uma das cenas era tão esdruxulamente divertida que ele parou por um momento, sorrindo para ela. Disse a Plócio:

- Esse homem teve um excelente treinamento em anatomia, e sentido do humorístico. - Os dois jovens contemplaram o trabalho de arte, depois entreolharam-se e riram.

Os pretorianos estavam em toda parte, rígidos, saudando, mesmo no vestíbulo que levava ao mais maravilhoso dos apartamentos, com grandes portas abertas e janelas que davam para um terraço amplo, florido e relvoso. Jamais Lucano vira tal luxo e nunca o imaginara. O vasto e espaçoso aposento tinha paredes de quatro cores diferentes de mármore, contrastantes lousas em branco, em preto brilhante, em dourado e cor-de-rosa, e o forro multicolorido e cintilante refletia a luz do céu e as tonalidades do jardim. No centro do aposento ficava uma grande cama de madeira dourada, no feitio de um delfim, marchetada de gemas rutilantes, de madrepérola, marfim e prata. Sobre ela estava atirada uma coberta de seda de desenho intricado, como um canteiro florido. Pedestais esbeltos, de mármore branco ou preto, espalhados pelo local, sustentavam graciosas estatuetas de bronze, representando mulheres nuas e altas laminadas de ouro e prata, bem como outros inestimáveis objetos de arte. De limoeiro, ébano e mármore eram feitas as mesas, cobertas com vasos de vidro murrino, cheios de flores de forma que a brisa leve da primavera fluía através das portas e janelas carregadas de fragrâncias. Divãs voluptuosos estavam dispostos perto das mesas, cobertos de sedas brilhantes, e junto das paredes havia muitas cadeiras, elaboradamente esculpidas e douradas, com pernas de marfim. Uma arca maravilhosa, de cobre batido, cravejada com pedrarias vermelhas, ficava entre as janelas, onde ondulavam delicadas cortinas de rendas. Um espelho de prata polida pendia sobre a arca. Para além daquele compartimento luxuoso de repouso havia outro, inteiramente de mármore rosado; a banheira instalada abaixo do nível do piso tinha pelo menos doze pés de comprimento por seis pés de largura, e estava cheia de água tépida e perfumada, o fundo revelando uma cena lasciva, no mais brilhante dos mosaicos.

Isto é um apartamento de mulher disse Lucano, habituado à austeridade das casas de Diodoro. Dois escravos entraram, nus, curvando-se diante dele, que ficou a contemplá-los com admiração. Eram um casal, altos e esbeltos, e de cor negra tão incrível e entontecedora que pareciam feitos mais de mármore polido do que de carne. Os vales e ondulações de seus corpos tinham um reflexo pálido, como que polvilhados de prata, e suas feições finas, delicadamente esculpidas e patrícias, davam a impressão de terem sido criadas pelo artista mais bem-dotado. Os cabelos negros da moça tombavam em vagas crespas, pelas suas costas macias, e seus seios eram altos e pontudos, brilhando com fulgor lustroso. Nem ela nem o rapaz usavam coisa alguma, a não ser pesados colares de ouro e argolas também de ouro nas orelhas, que atiravam reflexos sobre suas peles espelhantes.

- Estes são os teus servos disse Plócio. Parecia ridículo a Lucano estar naquele apartamento, com escravos unicamente para servi-lo. Quis protestar, mas Plócio, com um piscar de olhos, saudou-o e se foi dali. O médico olhou para o rapaz e para a moça e ficou sem saber o que dizer, e eles também o olhavam, com seus grandes olhos negros e amplo sorriso branco. Esperavam que ele falasse, portanto Lucano perguntou, desajeitadamente:

- Quais são os vossos nomes?

O rapaz respondeu, tornando a fazer uma reverência:

- Meu nome é Nuno, senhor, e esta é minha irmã gêmea, Nema.

Dá-nos tuas ordens. Estamos a teu serviço.

A moça caminhou graciosamente até a mesa e serviu vinho para Lucano, enchendo uma taça incrustada com pedrarias. Ele tomou-a da sua mão direita, encantado com a beleza incrível da jovem, com a perfeição de seu rosto e de seu corpo. Levou o copo aos lábios e bebeu um pouco. Jamais bebera tal vinho, rosado, perfumado e adoçado com mel. O rapaz trouxe-lhe uma bandeja de figos maduros rolados sobre nozes quebradas, e outras guloseimas. Lucano comeu um ou dois. Franziu as sobrancelhas e disse:

- Não preciso de servos.

O rapaz e a moça sorriram-lhe um sorriso vazio, mas se conservaram como estátua, imóveis, como se o que ele dissera tivesse sido dito num idioma estrangeiro. Se ele estava estupefato com os dois, os dois estavam igualmente estupefatos com ele, pois jamais viram pele tão branca, cabelos tão dourados e tanta beleza. Os três jovens ali estavam, admirando-se uns aos outros, com simplicidade.

Outro servo entrou, curvando-se profundamente, e informou a Lucano que a Augusta, Júlia, ordenara que ele comparecesse ao banquete que seria dado naquela noite às oito horas. Retirou-se, deixando os três novamente sozinhos em sua mútua contemplação. Então, Lucano disse, como um rapazola:

- Acho que não posso recusar. Mas nada tenho para vestir, a não ser o que trago no corpo.

Olhou para a toga que Keptah considerava tão preciosa, e que estava suja pela viagem, e para suas sandálias empoeiradas, feitas de couro simples. Nemo foi ter à arca de cobre, abriu-a, e dali tirou uma túnica de linho fino, com a beirada bordada a ouro, um par de sandálias douradas e um cinturão de ouro intricadamente trabalhado com pedrarias, bem como braceletes que com ele combinavam. Como um mercador que exibisse reverentemente sua mercadoria, colocou sobre o braço, em drapeado, aquele traje, erguendo o cinturão e os braceletes com a outra mão.

- Bem falou Lucano. Considerava o guarda-roupa efeminado, mas, apesar disso, estendeu a mão para sentir a finura do tecido e examinar aquelas jóias. - Vou sentir-me como um ator. Nemo fez sinal de que o banho o esperava e que ele e a irmã o lavariam e ungiriam com óleos perfumados, fazendo-lhe massagem pelo corpo. Lucano, porém, revoltou-se contra aquilo. Os dois escravos olharam-no espantados e contemplaram-se mutuamente sem dizer palavra.

- Desde que fiz três anos passei a tomar banho sozinho - explicou Lucano. Os escravos apenas continuaram a olhá-lo, incrédulos. Ele ergueu a voz: Quero ficar sozinho falou.

Perplexos, eles inclinaram-se e o deixaram, fechando as portas atrás de si. Tomaram seus lugares do lado de fora e tocaram música suave, a fim de embalá-lo, com flauta e lira. Sobre o som da frágil harmonia, Lucano podia ouvir o contínuo passo de vigilância do pretoriano que o estava guardando. Sacudiu a cabeça. Experimentou um divã e ficou alarmado ao sentir-se engolido pela sua ampla maciez.

Levantou-se e foi de uma obra de arte para outra. Jamais vira coisas tão artísticas. As minúsculas estatuetas eram tão lindamente executadas que revelavam as mínimas veias de suas mãos, pescoço e pés.

Correu os dedos sobre elas, e teve a impressão de que tinham vida.

Chamou-lhe a atenção o ressoar de vozes juvenis masculinas, no terraço que ficava para lá das portas abertas, e aproximou-se delas.

Dois jovens, de sua idade, ou mais novos, completamente nus, estavam lutando sobre o relvado. Seus corpos, cor de âmbar, mostravam o ondular de músculos disciplinados, e depois de alguns momentos cansativos sua carne deixou pingar suor brilhante. Eram, evidentemente, atletas hábeis, antes praticando do que se divertindo, e seus rostos bonitos mostravam-se tensos, atentos, sem sorrisos. Grunhiam, imprecavam e gritavam, sem perceber que Lucano os observava com profundo interesse. As vezes usavam blasfêmias obscenas. O médico ficou a cogitar se seriam escravos. Observou suas quedas, seus assaltos, seus músculos em movimento, sua destreza e força. Depois atravessou o limiar da porta. Viram-no, saltaram sobre os pés, separando-se, as sobrancelhas franzidas.

- Cumprimentos, disse Lucano, de súbito consciente de animosidade, de hostilidade.

Ambos fixaram os olhos nele, e insolente e deliberadamente examinaram sua roupa de viagem, suas sandálias simples. Como se tivessem falado, Lucano sentiu seu comentário de escárnio pela falta de jóias, e sua opinião de que se tratava de pessoa sem importância, bem como seu espanto ao ver um indivíduo como ele presente no palácio.

Acreditavam que fosse um liberto intruso, homem que de certa maneira conseguira meter-se naquele apartamento tão próximo dos apartamentos da Augusta. Mas não sabia que também havia despertado o ciúme deles por causa de sua aparência, pois embora fossem jovens bonitos, não se podiam comparar a ele. Então, um olhou desconfiado para o outro. Aquele estrangeiro iria ser o novo favorito da caprichosa e insaciável Júlia?

- Cumprimentos, disse um deles, carrancudo, e piscou, em ridícula ostentação, para o companheiro, que tossiu com força.

- Sou Lucano, médico e filho de Diodoro Cirino disse Lucano, que sentiu calor no rosto.

- Oh! Disse um dos lutadores em tom pesado, indicando que não se impressionara. Um médico. Sem dúvida algum antigo escravo. Nenhum dos jovens tinha jamais ouvido falar de Diodoro. O outro lutador disse:

- Estás aqui para tratar de nós?

- Estou aqui como hóspede de César respondeu Lucano friamente. Então, seus olhos azuis faiscaram diante dos insultos evidentes que lhe tinham sido lançados. E disse, enquanto eles estavam incredulamente se refazendo de sua casual referência a César: - Sois bons lutadores, mas toscos. Aos vossos treinadores falta arte. Não poderíeis competir por mais de um momento com um atleta completo. Sois amadores. Sem dúvida, entretanto, melhor treinamento vos transformaria em lutadores medianos, se trabalhásseis bastante para isso.

Ambos ficaram em silêncio, respirando descompassadamente.

Ainda não podiam acreditar que Lucano, vestido como um homem do campo, fosse realmente hóspede de Tibério César. E odiavam-no pela sua crítica.

- Sem dúvida disse um deles tu és muito melhor lutador.

- Sou disse Lucano, encostando-se ao umbral da porta, comeu o doce que tinha na mão, e fingiu estar absorvido em saboreá-lo.

Depois, acrescentou, enquanto os olhos dos outros ardiam sobre ele:

- Eu já era bem superior, mesmo antes do meu treinamento em Alexandria - E continuou, enquanto os outros permaneciam em silêncio: - Poderia lutar melhor do que vós quando tinha dez anos de idade. - E sorriu radiosamente para os jovens.

Um deles deu um passo a frente, os olhos faiscantes de cólera.

- Meu nome é Jacinto disse - E eu tenho dez sestércios que me dizem ser eu capaz de atirar-te ao solo em três segundos.

O outro repetiu-lhe as palavras.

- Meu nome é Óris disse e eu tenho doze sestércios que me dizem ser eu capaz de atirar-te ao solo em dois segundos.

Lucano encostava-se languidamente ao portal, lambendo os dedos lambuzados de doce. Depois tateou a bolsa que trazia no cinto e disse:

- E eu tenho quatorze sestércios que acabam de me sussurrar que posso enfrentar um de cada vez e atirar-vos ao solo em um segundo.

Cogitou, por um momento, se deveria informar-lhes de que fora instruído numa forma particular de combate, que um professor vindo de Cataio lhe ensinara em Alexandria. Resolveu que não. Eram insolentes demais, aqueles moços, demasiado insultuosos, demasiado seguros de si, e Lucano não gostava deles. Rapidamente endireitou-se, atirou para o lado a toga de Keptah, depois despiu a túnica de pano azul e grosseiro que lhe cobria o corpo. Surgiu diante dos outros dois como uma coluna de mármore branco e ambos recuaram, constrangidos.

Mas o corpo dele, depois de um momento, pareceu-lhes demasiado suave e elegante. Riram-se, e um deles dobrou o corpo a meio, para a frente, e veio ao encontro de Lucano, as pernas arqueadas. Era Jacinto.

Lucano esperou calmamente. Apenas ergueu o braço direito, e estendeu-o.       O gesto era lânguido, quase frouxo, e ele não curvou o corpo. Ónis soltou um riso seco. Os dentes de Jacinto reluziam entre os lábios esticados. Então, com grande agilidade, seu braço atirou-se em direção a Lucano e sua mão curvada agarrou o ombro do médico.

Óris pestanejou, pois algo toldou o ar diante dele. Aturdido, viu Jacinto tombado de costas na relva, os olhos protuberantes e fixos, como que estonteados. Lucano bocejou.

- Bem? Disse ele a Óris, ignorando o outro jovem. - Foi um segundo. E tu?

Óris umedeceu os lábios com a ponta da língua. Jacinto gemia, lá da relva onde estava, como uma estátua caída. Óris, então, que era muito corajoso, saltou sobre Lucano. Foi como se um corisco macio o tocasse. Sentiu-se projetado no espaço e foi cair junto de Jacinto, redondamente, sobre a relva, o corpo todo tomado de tremores.

Lucano vestiu a túnica, sorrindo.

- Deveis-me vinte e dois sestércios disse ele. - Não vos esqueçais de pagá-los.

Os dois jovens ergueram-se de sua posição sentada, examinando-se cuidadosamente. Sacudiam a cabeça, a fim de clarear a mente confusa.

- Não estais feridos, nem sequer contundidos disse Lucano, sacudindo a toga de Keptah. - Naturalmente, se tendes cérebro, coisa que eu duvido, ele está apenas um pouco confuso agora.

E entretanto, tornara a clarear.

- Que fizeste? Exclamou Jacinto, erguendo-se cuidadosamente. Não vi que te movesses! Nada senti! Entretanto, um segundo depois eu estava voando pelos ares. Isso é magia!

- Sim, é magia repetiu Óris. - Quem pode resistir á magia?

Esfregando o corpo, olhavam furiosos para Lucano, que erguia suas sobrancelhas douradas.

- Magia... Tolice! Respondeu. - Não passais de amadores! Eu não vos tinha dito?

- Ganhei uma bolsa de ouro nos Grandes Jogos! Berrou Jacinto, corando violentamente.

- E eu ganhei a segunda bolsa! Ecoou Óris, rangendo os dentes.

Lucano riu em pleno rosto de ambos.

- Então eu deveria ganhar duas bolsas disse. - Vamos, que mais sabeis fazer? - Estava animado, seu corpo jovem e forte ansioso por mais exercício. - Arremesso do disco? Arremesso da lança? Boliche de nove pinos? Boxe? Corrida? Salto em distância? Esgrima? Seguramente podeis fazer algo mais do que esse ingênuo corpo-a-corpo?

Afastou-se dois passos para trás, saltou para a frente, dobrou as pernas e atirou-se ao espaço. Incrédulos, dois pares de olhos estupefatos seguiram-no. Os pés elevaram-se limpamente para cima das cabeças erguidas dos outros dois rapazes e Lucano foi pousar de novo na terra, como um gato branco.

- Fazei a mesma coisa disse, sem que sua respiração sequer se acelerasse e nada me devereis.

Houve um ruído de entusiástico aplauso, junto da porta, e os moços, voltando-se, viram que Plócio ali estava rindo. Então, Jacinto e Óris ficaram assustados. Conheciam bem Plócio, e sabiam da alta estima em que Tibério o mantinha, pela sua coragem, discrição e qualidades militares. Plócio pôs-se a andar pelo relvado, e veio colocar a mão sobre o ombro de Lucano.

- Que exibição! Exclamou ele. - Meu caro Lucano, tu poderias competir em todos os papéis, no circo, e ter Roma a teus pés!

Para instrução minha peço-te que faças comigo, amanhã, uma sessão de esgrima. - Olhou para os dois jovens lutadores, perguntou - Quem são esses meninos?

Mas Jacinto e Óris baixaram a cabeça e foram escapulindo em direção à outra extremidade do terraço. Plócio falou:

- Eles precisavam de uma lição, esses queridinhos mimados da Divina Augusta. Cuidado para que eles não tentem envenenar-te no banquete que Augusta está dando hoje à noite, em honra de Cibele; ela é devota das deusas viúvas. Sem dúvida gostaria também de ser viúva. A propósito, não pude seguir teus movimentos, quando lutaste com esses dois rapazes. Nada fizeste, a não ser estender teu braço e então, quando te agarraram pelo ombro, tu te inclinaste para trás e eles saíram voando! Como Ícaro, com o mesmo resultado.

- Eu me prevaleci da ignorância deles disse Lucano, num riso feliz. Voltaram juntos para o quarto, enquanto Plócio indagava por que os escravos estavam ausentes, tocando sua música no corredor externo. - Eles queriam lavar-me e lambuzar-me com óleos perfumados disse Lucano. Arrancou a túnica e saltou para a banheira onde nadou alguns pés, atirando para trás seu cabelo molhado e como que de ouro e levantando prateado chuveiro de água. Plócio acocorou-se à beira da banheira e ficou a observá-lo com intensa admiração.

- Jamais vi um corpo assim disse ele.

Lucano deslizava através da água como se fosse de alabastro branco e com a mesma maciez.

- Ah! As mulheres vão amar-te! Acrescentou Plócio, sacudindo a cabeça coberta com o elmo.

Nenhum dos jovens tinha visto uma senhora, na extremidade mais distante do terraço, e que saíra de seus aposentos ao som das vozes que discutiam. Ela ficara ali, observando, o rosto bonito, sem qualquer expressão, banhado de sol. Quando Plócio apareceu, ela recuou para seus aposentos, sorrindo. Dirigiu-se ao espelho e estudou-se intensamente, cantarolando baixinho.

 

Nemo garantiu a Lucano que ele estava "radiante como um deus" depois do banho e da unção, da qual Nema fora banida, e depois de ter vestido suas roupas brancas e colocado as jóias de ouro. Lucano rejeitara a investidura, embora não o fizesse depois de um olhar subreptício ao espelho. Curiosa excitação obcecava-o. Jamais confessaria tal coisa a si próprio, mas o mundo de homens estranhos e novas experiências agora invariavelmente o impressionavam, como se fosse um recém-nascido. Estava para ser iniciado numa atmosfera da qual Diodoro falara com raivoso desprezo. O que Lucano até então vira o obrigara, relutantemente, à admiração, pois seu olho de grego não era insensível à beleza, e sua alma não era tão severa a ponto de se sentir degradada pela visão da adorabilidade e grandeza.

Agora, Lucano estava sozinho, ao crepúsculo, olhando lá embaixo a Cidade Imperial, das alturas em que se encontravam os jardins que ficavam do lado de fora de seus aposentos. A cidade tombara diante dele, como um sonho, púrpura, ouro, violeta e branco, nadando em névoa rósea, que de vez em quando elevava uma estátua alada em seu alto pilar, um domo incandescente, uma parede branca de neve batida pela luz dos últimos raios do sol, um arco esculpido e poderoso, ou um imenso leque de pedras de um lance de escadas olímpicas. Tudo quanto estava invisível na cidade envolvia-se naquela névoa rosada que começava a fluir, não apenas no céu mas sobre toda a face do centro da cidade, de forma que parecia a difusão de milhares de rosas, que se mesclassem num vasto turbilhão, através do qual emergiam sempre novas visões. O Tibre cheio de curvas, que parecia uma vela de fogo escarlate e polido, pulsava através de macia névoa cor-de-rosa, suas pontes frágeis dando a impressão de serem feitas de prata e marfim.

Mesmo as colinas distantes coravam levemente, e não pareciam reais.

E agora as colunas do palácio, que estavam em torno de Lucano, erguiam-se num tom suave e adejante de pérola, seu lado ocidental tomado de rubor. O som de fontes próximas desciam para música leve, e as vozes dos pássaros murmuravam em puro devaneio. Odor de floração de jasmins e lírios impregnava o ar doce, colorido e etéreo. As folhas de murta reluziam como se fossem de metal, e a relva tornou-se um cintilar de ametistas.

Enfeitiçado e preso pela miragem colorida que era a cidade colossal, Lucano recostou-se contra uma coluna e ficou a ouvir e ver. Teve consciência então da voz de Roma, abaixo, e ainda assim acima das vozes dos pássaros que estavam próximo dele. Era como o mover-se de uma roda gigantesca, um trovão abalado e titânico, constante e incansável.

Lentamente, Lucano foi ficando impressionado por uma percepção muito estranha. Impregnante como era a voz da cidade, faltavam-lhe certa firmeza, certo ardor, certa intensidade, certa masculinidade.

Lucano recordou-se, então, do que Diodoro lhe dissera uma vez. "Roma é agora uma cidade sem cólera, uma cidade sem virilidade nem heroísmo."

Diodoro, aquele homem viril, colérico e heróico ao extremo, falara bem. O rumor abafado de Roma era um rumor enfastiado. Seu esplendor e seu poder imperial eram uma opulência. Ela podia ser, em seus múltiplos aspectos, monstruosa e cruel. Mas eram a monstruosidade e a crueldade de um homem que envelhecia, que se fartara em excesso e esquecera a força dos membros e o entusiasmo do coração.

Ela jazia no centro do mundo, como um sátiro intumescido, embora ainda potente, reclinado num divã de seda carmesim e ouro, a mão agarrando uma espada, a outra levando, cansada, uma taça de vinho aos lábios, a grinalda escorregando-lhe da cabeça, suas bochechas pesadas repousando num peito saliente como o de uma mulher.

Falta de cólera. Falta de virilidade. Aquele podia ser o epitáfio de Roma. Ela não tombara em batalhas. Ganhara-as todas. Era o mesmo.

O triunfo, não menos que a derrota, tornou-se morte. Se um homem morria valentemente, metido em sua armadura, em algum campo de batalha de princípios ou patriotismo, ou na proteção do que considerava mais caro para si, então não vivera em vão. Mas aqueles que ganhavam batalhas pelo poder e quinquilharias viviam ingloriosamente e morriam também ingloriosamente, objeto de sátiras, mais tarde, ou de advertência para a posteridade. Era estranho que os homens jamais aprendessem coisa alguma. De repente, olhando para baixo, para a cidade envolvida no turbilhão róseo, Lucano sentiu-se tomado de tremendo constrangimento, de fatídica certeza. Sentiu que estava de pé no abismo de algo que ainda não podia discernir; era como se algo se houvesse modificado, apressado, vindo das imensas eternidades.

A névoa rosada diminuiu sobre a cidade. Um entardecer lilás, como vasta maré, deslizou sobre Roma, mergulhou nos jardins onde Lucano estava. A lua ergueu-se lentamente no céu cavado. Os pássaros estavam silenciosos, as fontes mais claras. Nemo tocou o braço de Lucano, e o jovem grego sobressaltou-se e voltou-se para o escravo.

- É a oitava hora, senhor disse Nemo.

Lucano olhou mais uma vez para a cidade. E murmurou:

- Não. Esta é a undécima hora.

Um clarão de tochas vermelhas lambeu a escuridão violeta, lá embaixo, milhares e milhares de tochas, como línguas rápidas e inquietas. Para Lucano, elas pareceram o início de uma conflagração.

Alguns momentos depois ele era parte de um bando de homens e mulheres vestidos de branco, movendo-se através de vestíbulos e vastos salões, que agora estavam iluminados por centenas de lâmpadas.

As mulheres caminhavam com enérgica segurança entre seus homens, pois Roma, segundo Diodoro amargadamente comentara, era agora uma cidade de mulheres, com mulheres arrogantes dirigindo seus homens em vozes estridentes, cheias de insolência. Aquilo era um matriarcado disfarçado, corrupto, egoísta, de peito de bronze, insistente e ávido. Era para as mulheres de Roma e seus corpos ociosos que galeões saíam em fileiras de todos os portos, com seu carregamento de luxo, alimentos, sedas e jóias. Era para as mulheres de Roma que as flâmulas estalavam sobre cidades e comarcas, e cornetas clangoravam.

Elas não podiam invadir o Senado, mas ali estavam, nas pessoas de seus maridos, filhos, ou amantes. As salas de vendas e os mercados, febris com o câmbio de ouro e a fúria dos investimentos, podiam ressoar com vozes masculinas, mas o eco estridente vinha da voz das mulheres. Elas possuíam a fortuna de Roma. Sua macia brutalidade soava no clangor das correntes de milhões de escravos.

Enquanto Lucano caminhava entre o grupo que se destinava ao pátio de Júlia, teve consciência de que os que se dirigiam apressadamente para as festividades tornavam-se mais numerosos. Era como se as estátuas dos deuses e deusas, com suas togas e estolas, estivessem deixando pórticos e nichos, juntando-se aos homens e mulheres, e como se os poucos que se conservavam em seus lugares olhassem com desprezo ou celestial indiferença para os desertores. Eu só conheço o mundo através do que tenho ouvido dele, maravilhava-se Lucano.

Olhava para os rostos belos e depravados das mulheres, recobertos com cosméticos, via as jóias, os cabelos, negros, castanhos, dourados, ou bronzeados, mantidos em redes consteladas de pedrarias, ou trançados com fitas, à maneira grega. Uma névoa de perfume flutuava, vinda de seus corpos e de suas roupas. Seus pescoços brancos ou cor de mel brilhavam como pedras preciosas, seus braços lustrosos traziam ouro e seus dedos refulgiam. Entre elas, havia cortesãs famosas e antigas escravas libertadas por senhores fascinados, bem como mulheres notórias. Era impossível distingui-las das damas das grandes casas e dos grandes nomes. As mulheres casadas apenas podiam ser reconhecidas entre as solteiras pelas suas estolas, e as solteiras mostravam trajes de falsa simplicidade e tinham os rostos tão mundanos e desiludidos como os das matronas e os das mulheres dissolutas. Não havia um olhar tímido, um sorriso jovem e cogitador, ou um relance de ternura, entre elas; apenas arrogância, avidez e um olhar em torno, para ver se estavam sendo admiradas. Alto sussurro de conversação incoerente suspendia-se sobre elas.

Os homens não eram menos ambíguos. Os senadores podiam ser reconhecidos pelas suas sandálias vermelhas, mas os augustais não se diferenciavam do gladiador, do liberto e do patrício, nem os mercadores dos homens que possuíam nomes brilhantes. Lucano ficou a cogitar em se aqueles que mostravam os ares mais altaneiros não seriam os mais baixos, e se os que se exibiam com maior elegância não teriam alcançado a fortuna saindo de alguma sarjeta. Diodoro dizia,         freqüentemente, que Augusto, Gaio Otávio, jamais permitira os mal-nascidos no seu palácio, fosse qual fosse sua posição e fortuna presentes. Mas sua degradada filha Júlia, esposa de Tibério, fazia freqüentes menções ao seu espírito democrático. Para ela declarava - um gladiador famoso era tão bem recebido quanto um senador. Pedia apenas que as mulheres suas convidadas fossem divertidas, e sugeria que entre concubinas e cortesãs encontrara com freqüência mais espírito do que entre as esposas e filhas das casas nobres.

Seu próprio pai uma vez a exilara pelo seu comportamento de meretriz. Por que forçara Tibério àquele casamento era coisa que permanecia como um enigma, pois Augusto tinha alguma afeição e admiração pelo César atual. Era possível ter Augusto acreditado que Tibério, frio, justo e notável por sua carência de suscetibilidade em relação a mulheres, e pela sua virtude particular, pudesse ter um efeito tranqüilizador sobre Júlia.

O som de pés que se apressavam elevou-se acima dos acordes de música distante. Lucano teve relances de pés calçados em sapatos de prata ou ouro, ou em material de brocado, com pedrarias. Os homens riam e murmuravam, olhando, insolentemente, em torno de si. O rio branco fluiu, subindo uma escadaria baixa e larga, através de longos pátios. Algumas das senhoras, em particular, olhavam curiosamente para Lucano, através de pestanas pesadamente recobertas de kohl, ou sorriam-lhe tentadoramente. Em certo momento ele viu um par de olhos cor de violeta, impressionantemente parecidos com os de Sara bas Eleazar, e ficou de súbito abalado. Mais adiante, um perfil recordou-lhe o de Rúbria, e de novo ficou abalado. Encolerizava-o o fato de qualquer daquelas mulheres poder parecer-se às moças que ele amara e que ainda amava. Curvou a cabeça, a fim de não mais olhar para elas. Os homens atiravam-lhe olhadelas desconfiadas, e perguntavam uns aos outros de quem se trataria. As lâmpadas deixavam tombar sua luz mutável sobre a multidão e as jóias, bem como sobre os olhos predatórios, que dançavam nela.

Lucano pensou: Cícero lamentava que embora as formas da Republica ainda fossem celebradas, a República não mais existisse.

Entre estes homens e mulheres não havia amor por seu país, nem comemoração de liberdade, nem honra pelos mortos poderosos que fundaram sua nação e suas instituições. Suas bocas exalavam perfumes, vindo de pastilhas que haviam chupado. Para Lucano, exalavam corrupção. De repente, sentiu-se profundamente deprimido. Pensou com saudades em seu lar. Teve a impressão de estar despido entre a turba, e que todos os trechos de seu corpo eram vulneráveis.

Um vento suave soprou-lhe no rosto, e ele levantou os olhos e viu que estava sendo levado para um vasto pórtico aberto, onde, por estar o tempo tão moderado e fresco, o banquete fora arranjado. O pórtico dava para um grande jardim, decorado com um emaranhado de luzes cintilantes, que se refletiam no orvalho da relva escura. Mesmo as estátuas tinham sido iluminadas com tonalidades diversas, de forma que se erguiam sobre águas coloridas, como figuras de fogo pálido.

Flores juncavam o chão, ou arrumavam-se em vasos altos, de forma que o ar palpitava com seu perfume. O pórtico, também iluminado, brilhava como neve esculpida contra o negrume do céu, e em torno dele foram levantadas grutas artificiais de musgos e flores, nas quais estavam as mais delicadas estátuas, atraindo ambiguamente a atenção e luzindo ao luar. Músicos tocavam sem serem vistos, com flautas, harpas e alaúdes. As mesas instaladas no pórtico estavam cobertas com toalhas carmesins, barradas de ouro e trabalhosamente bordadas com fios brilhantes. Os divãs que ficavam em derredor delas tinham a mesma decoração e aguardavam os convidados. Bem lá para baixo a cidade jazia vociferante, trêmula pelas lâmpadas, as tochas vermelhas batendo suas línguas e dela vinha um som distante e rosnado, como de floresta repleta de animais.

Os convidados começaram a sentar-se com muitos risos antecipatórios, e Lucano ficou de pé, incerto, junto de uma coluna brilhante. Olhava para as árvores que rodeavam os jardins como se esperassem alguém, os galhos com lâmpadas penduradas de feitios estranhos e fantásticos, e a luz passando através de vidros coloridos. Escravos, homens e mulheres, belos como jovens deuses e sereias, nus como estátuas, estavam à espera de que os convidados tomassem seus lugares, as mulheres em cadeiras de marfim e ébano incrustadas com metais preciosos, e os homens nos divãs. Lucano não sabia o que fazer, pois todos davam a impressão de conhecer os lugares que deviam ocupar. As vozes dos convidados tornaram-se veementes de excitação, de forma que o jardim e o pórtico ecoavam como se ali estivessem papagaios ou macacos libidinosos. A música era abafada pelo rumor; casualmente, fluindo com maior intensidade, era ouvida, num instante em que o clamor descia. Os rostos dos escravos mostravam-se impassíveis e belos. Um bando de menininhas vinha, agora, para ungir os pés dos convidados com bálsamo e havia inocência em sua nudez. Copeiros apareceram, trazendo grandes vasilhas de prata, cheias de neve, na qual estavam enterradas garrafas de vinho, que eles serviam em taças incrustadas de pedrarias, engrinaldadas com hera verde. O perfume do líquido, dourado ou vermelho, misturava-se ao odor das flores e da relva. Os convidados deixavam tombar um pouco de vinho, em libação, e Lucano recordou-se da oferta ao Deus Desconhecido, parecendo-lhe, então, que todo o seu corpo estremecia de sentimento e solidão.

Ainda estava ao lado da coluna. Embora os copeiros servissem vinho, nada havia nas mesas cobertas de seda a não ser flores e taças. Os convidados estavam aguardando. Conversavam sobre os últimos divórcios, os últimos investimentos, sobre as corridas e jogos, e olhavam para os gladiadores que se apresentavam cobertos com seus mantos fazendo comentários. Sua tagarelice animada, tão trivial, tão maliciosa, era tão estranha para os ouvidos de Lucano quanto a tagarelice de um bando de pássaros rouquenhos. Ouviu nomes famosos e antigos mesclados e escândalos da espécie mais debochada. Uma grande dama e aquilo era afirmado com grandes risos acabava de tomar seu décimo amante, mas desta vez tratava-se de uma escrava. Uma das moças contava veementemente que Cupido a visitara certa noite, e descrevia a visita com pormenores lascivos. Um senador começou a discutir com outro a propósito de seus investimentos na Terra de Israel e ele declarava que seus homens haviam descoberto as minas de Salomão.

O outro senador garantia-lhe que fora defraudado e que deveria trazer de volta os seus descobridores acorrentados. Um gladiador, bebendo seu excelente vinho, declarava poder estrangular um leão, com as mãos nuas. Imediatamente foram feitas apostas para os próximos jogos.

O ar tornava-se opressivo; os jardins tinham uma aparência secreta e lúbrica à luz do luar. Os convidados bebiam cada vez mais, tornavam-se inquietos e suas vozes aumentavam de volume. Algumas damas que estavam mais próximas de Lucano olhavam-no com súbito interesse. Todas as mulheres tinham, agora, posto de parte a estola clássica, e ali estavam, moldadas nas sedas mais delgadas, mais finas e coloridas, bem como em linhos, em brocados bordados com pedrarias que, embora lhes cobrissem os seios, revelavam cada curva deles, e os próprios bicos. Seus ombros macios brilhavam à luz das lâmpadas, e elas tinham as fontes úmidas, os lábios iam tornando-se mais cheios, mais lustrosos e vermelhos. Algumas curvavam-se em suas cadeiras, encostando os corpos contra os dos homens, provocando beijos no pescoço, nos ombros e na boca. Escravos colocaram grinaldas em todas as cabeças, e agora o perfume do jardim, da relva, das flores e dos bálsamos fluía através do pórtico. O tremeluzir das jóias magoava os olhos de Lucano e as lâmpadas pareciam aumentar de fulgor, fazendo mais intenso o colorido. Ele tinha fome e sentia-se embaraçado, em seu isolamento, ali perto da coluna. A música mesclava-se ao fragrante jorrar das fontes, quando podia ser ouvida por sobre o ruído das vozes. Lucano reparou que à cabeceira da mesa em forma de U havia um grande divã, coberto com a púrpura imperial e cheio de almofadas da Síria. Então, os convidados esperavam pela Augusta, Júlia. Ele não sabia ser costume dela permitir que os convidados se embriagassem bastante até o momento em que ela aparecesse, de forma que o fato de não ser mais jovem lhes passasse despercebido em seu estonteamento.

Os vasos de Alexandria, que estavam com flores sobre a mesa, começaram a faiscar aos olhos de Lucano com demasiado colorido. Sentia-se muito entediado. Diodoro falara das orgias e dos "deboches". Aquilo parecia excessivamente estúpido para o jovem grego. As vozes dos homens, fazendo-se roucas, o incomodavam, os tons guinchados e estridentes das mulheres pareciam unhas arranhando-lhe os tímpanos.

Uma mão respeitosa tocou-lhe no braço. Um dos vigilantes do vestíbulo, que estivera observando os copeiros para ver se cometiam algum erro, encontrava-se a seu lado.

- Senhor, ainda não encontraste teu lugar? Murmurou ele.

- Não disse Lucano, secamente. - Não sei se tenho um lugar. - Hesitou, depois disse: - Sou Lucano, filho de Diodoro Cirino, e nunca estive aqui.

O vigilante olhou-o, horrorizado. Curvou-se tão profundamente que a cabeça dele alcançou o nível do joelho de Lucano. Depois disse, com voz trêmula:

- Mas, senhor! Tu deves sentar-te no próprio divã da Augusta!

Sua voz tornou-se terrível, quando olhou para os outros vigilantes que vieram correndo:

- Aqui está o convidado de honra e ninguém o escoltou até o seu lugar! Haverá chicoteamento amanhã!

Os convidados que estavam mais próximos pararam de conversar para ver o que se passava. Lucano, corando, recuou, e seus pés meteram-se em um dos tapetes persas que cobriam o mármore branco do piso do pórtico.

- Não disse ele -, a culpa foi minha e não de terceiros.

- Não vieste escoltado até aqui, senhor? Perguntou o primeiro vigilante, enquanto os demais se reuniam em torno de Lucano, para seu maior enleio. Então Lucano recordou-se. Plócio dissera que o levaria até ali, mas Lucano esquecera de esperar. E acrescentou, rapidamente:

- Tinha uma pessoa para escoltar-me, sim, Plócio, dos pretorianos, mas não esperei por ele.

O vigilante gemeu, e seus companheiros fizeram-lhe eco.

Inclinaram-se como um só corpo. Um maior número de convidados foi se mostrando interessado. Os vigilantes rodeavam Lucano, como guarda-costas e, cerimoniosamente, conduziram-no ao divã recoberto de púrpura. Um profundo silêncio tombou entre os convidados, quando Lucano sentou-se e todos os olhos voltaram-se para ele. Uma grinalda foi-lhe colocada na cabeça, uma criança removeu-lhe as sandálias e ungiu-lhe os pés e vinho lhe foi servido. Tinha o rosto vermelho e suava. Não sabia para onde olhar mas, finalmente, relanceou os olhos para a outra extremidade do pórtico. Plócio ali estava, tentando franzir as sobrancelhas, mas conseguindo apenas revelar-se divertido.

Lucano tomou um grande gole de vinho. O silêncio do pórtico, os olhares, atrevidamente fixos nele eram enervantes. Agora, a música erguia-se, exuberantemente, acompanhada de muitas vozes suaves, e as fontes cantavam para o luar.

As nádegas de Lucano foram engolidas pela brandura do divã. Não podia reclinar-se, como os outros homens estavam reclinados.

Chegou a fincar um cotovelo numa das almofadas e intimamente amaldiçoava Plócio, os convidados, ele próprio, Júlia, e até Tibério. Via-se como um plebeu, naquela reunião, como um rústico recém-chegado do campo. E ficou de novo encolerizado.

Um certo alvoroço e um certo murmúrio, então, foram ouvidos entre os convidados, pronunciando seu nome. Foi como um vento turbulento que agitasse fileiras de flores, pois soberbas jóias e ricas tonalidades, e peles de tons morenos ou alabastrinos, alegres túnicas, olhos vibrantes, cabelos lustrosos mesclaram-se em séries de confusa exuberância e excitação, sob o oscilar das lâmpadas prismáticas. Os homens ergueram-se de seus divãs, as mulheres mostraram interesse e curiosidade, dentes brancos faiscando através dos lábios vermelhos, enquanto sorriam audaciosamente para Lucano. As mãos do rapaz firmaram-se sobre a taça incrustada de pedras preciosas e ele bebeu mais um gole.

- Lucano! Corria nos murmúrios e exclamações. - Lucano, filho de Diodoro!

Então todos explodiram em risos amistosos e taças foram levantadas para ele, os homens inclinando a cabeça, as mãos das mulheres erguendo-se acima dos cabelos bem-arranjados, nos quais faiscavam jóias, como gotas de chuva:

- Bem-vindo sejas! Cumprimentos! Exclamaram os convidados. - Bem-vindo sejas, nobre Lucano!

O jovem tentou sorrir, mas sentia-se extremamente desconfortável. Plócio, ele bem via, também estava a fazer-lhe uma reverência, ironicamente, e então, sem o querer, foi que ele riu. Um copeiro já estava de novo ao lado dele, enchendo-lhe a taça. O vinho era adoçado e capitoso. A lua fulgurava através da atmosfera límpida e as estrelas pestanejavam sobre o jardim, onde as lâmpadas oscilavam e as fontes luminosas atiravam luz sobre as estátuas que se erguiam dentro delas.

Subitamente, uma trombeta soou, uma só trombeta, e os convidados ergueram-se num rápido movimento sussurrante, à espera. Lucano teve alguma dificuldade para se erguer, pois o divã era demasiado macio e profundo, e ele estava começando a sentir os efeitos do vinho. Júlia, acompanhada por Jacinto e Óris, os atletas, aparecera no pórtico.

Estava vestida e isso Lucano observou com repulsa considerável no velho estilo cretense. Não era alta nem baixa. O corpo mostrava-se voluptuoso e a pele muito branca. O traje justo, copiado do das mulheres cretenses, fora trabalhado com fio de ouro e cobria-lhe todo o corpo, inclusive os braços, com exceção dos seios nus, cujos bicos estavam tingidos de escarlate. Das ancas para baixo o vestido descia em pregas bordadas com pedrarias e pintadas com plumas de pavão. Ela mostrava orgulho de seus seios, tão abertamente exibidos, pois tinham a alvura da neve e possuíam um polimento lustroso, mostrando curvas e erguimento impecáveis. O cabelo dela, de um colorido ruivo como o do vinho velho, fora penteado de forma complicada e alta e, para completar o traje cretense, neles Júlia colocara um pequenino chapéu, na forma de uma borboleta colorida, resplandecente de pedrarias, a descansar bem no alto de seus caracóis em cascata. O ouro de seu traje, moldado nas ancas como se tivesse sido colado nelas, a radiosidade de suas pedrarias, a coruscação de seu chapéu, tudo se mesclava para deslumbrar os olhos, para estontear pela magnificência. Todos os seus movimentos eram sensuais e calculados pelo vestido metálico e, pelo menos para Lucano, vulgares e lascivos.

Os convidados aplaudiram delirantemente aquela visão cintilante de luz. Ela parou por um momento, para receber a ovação, e Lucano viu-lhe o rosto, primeiro de perfil, depois de frente. O perfil, ele percebeu, tinha uma certa frieza remota, fazendo-lhe lembrar uma estátua de Palas Atenas[30], mas quando ela se voltou, o rosto era largo, imperioso e endurecido e um tanto mais do que áspero. Tinha pele excelente e as rugas finas foram habilmente disfarçadas sob camadas de pó rosado e pintura. Os olhos estranhos eram como lápis-lazúli entre as rígidas pestanas pretas, polvilhadas com ouro; a boca, com o lábio inferior cheio e saliente, reluzia como uma pintura oleosa. Tinha nariz curto, e de certa forma largo, de narinas desdenhosamente abertas.

Dava uma impressão ao mesmo tempo cruel e sentimental, orgulhosa e espalhafatosa, arrogante, e ainda assim demasiado familiar. Para Lucano, tinha uma espécie de bárbara altivez, e ele pensou no frio e afetadamente virtuoso Tibério, que era o marido dela, e no velho soldado, Augusto César, Gaio Otávio, que fora seu pai. Tentou não olhar para a libertina exibição de seus seios, que o embaraçavam.

Jacinto e Óris, segurando-a familiarmente pelos cotovelos, conduziram-na em direção ao divã imperial e, pela primeira vez, ela olhou para Lucano. Seus lábios entreabriram-se em um sorriso sedutor, arqueado, de boas-vindas, e foi um sorriso encantador, como o de uma menina. Lucano curvou-se diante dela e manteve a cabeça baixa enquanto Júlia se sentava, graciosamente, com um sussurro metálico.

Sentiu-se quase sufocado pelo perfume de almíscar que a mulher usava. Depois, ficou assustado ao ver que era desejo dela que Jacinto e Óris, que tinham fechado o rosto ao reconhecê-lo, se sentassem ao seu lado direito, enquanto Lucano sentava-se à sua esquerda.

- Cumprimentos, nobre Lucano disse ela ao jovem. Tinha voz velada, quase masculina, das mulheres do povo, apesar de ser de grande família.

- Cumprimentos, Augusta, respondeu ele, num murmúrio, deixando-se engolir de novo pelo divã, sem defesa, que estava. Os convidados sentaram-se com estardalhaço e a musica tornou-se mais alta e desvairada, com os cantores lançando um cântico de adulação para uma deusa. Júlia estava em boa disposição. Costumava sentir-se, com freqüência e perigosamente, entediada, mas naquela noite encontrava-se cheia de animação. Jacinto e Óris, de túnica cor-de-rosa presa com cinturões de ouro, pareciam amuados, e dirigiam olhares ferozes a Lucano, o que divertia a imperatriz. Os convidados, certos de que o jovem grego ia ser o novo favorito, tal como ele, sem o saber, verdadeiramente, o era, sorriam-lhe amável e entusiasticamente. Mas Júlia até então ignorara-o, a não ser pelo cumprimento inicial. Em compensação, atormentava Jacinto e Óris com sorrisos especiais, leves carícias no rosto e no pescoço, feitas com sua mão carregada de pedrarias acompanhada de murmúrios especiais.

Agora um bando de servos entrava no pórtico, trazendo pratos fumegantes e bandejas cheias de uvas, figos, azeitonas, e outras guloseimas. Pratos de ouro foram colocados diante dos convidados, e as taças encheram-se novamente. Junto de cada prato os servos colocavam facas de ouro, colheres de vários feitios e palitos, pequenas vasilhas de água tépida, perfumada, e guardanapos bordados.

A curiosidade dominou o constrangimento de Lucano. Observou o primeiro prato servido, momentaneamente surdo para as vozes clamorosas, para a música e para Júlia. Uma imensa bandeja de prata, com entalhes, estava cheia de minúsculos arganazes, cozidos em azeite e mel e polvilhados com sementes de papoulas. Outras bandejas traziam ovos temperados, rins ao molho de azeite, pequenos peixes defumados, fígado de ganso sobre o qual vinha um molho pungente, e cabeças cozidas de vitela. Os servos movimentavam-se em derredor dos convidados, oferecendo guardanapos limpos, depois dos dedos mergulhados nas vasilhas com água, a fim de se limparem do azeite e dos molhos, e tornando a encher taças de vinho adoçado com mel, distribuindo pão feito em fôrmas curiosas e muito quentes.

Lucano jamais vira tal profusão de comida. Ingenuamente, pensou que aquilo fosse o banquete completo. Estremeceu, olhando para os arganazes, comeu um pouco do fígado e um pedaço de queijo. O vinho começava a dar-lhe uma visão alterada da mesa, brilhante demais, colorida demais, demasiado intensa em sua iluminação. Seu desconforto por estar junto de Júlia, cujos seios iam se fazendo importunos, crescia. Em seus ouvidos ressoavam vozes, risos e música, e sua cabeça latejava. Para refrescar a boca febril comeu uma romã, algumas tâmaras, um punhado de uvas. As frutas não lhe abateram a febre, e ele se viu bebendo de novo o vinho que a neve gelara.

Houve uma pausa no banquete. Os servos removeram o vasilhame usado e a baixela, e substituíram novamente os guardanapos. Ninguém, até então, falara com Lucano. Os convidados esperavam que Júlia lhe dirigisse primeiro a palavra e, na voz dela, entenderiam a situação do favorito, e saberiam como se dirigir ao moço e tratar com ele. Júlia, porém, estava meio reclinada sobre o corpo de Jacinto. Também as outras mulheres, que tinham abandonado suas cadeiras retiradas habilmente pelos servos, reclinavam-se nos divãs mais próximos delas, seus corpos licenciosamente apertados contra a carne dos homens. Rostos enrubesciam, grinaldas escorregavam de cabeças e os risos elevavam-se para gritos roucos. Aqui e ali homens afastavam as túnicas dos ombros e seios de algumas mulheres jovens, e beijavam-nos ardentemente. Lucano, embora fosse médico, tornou a sentir-se desconfortável e embaraçado.

Assim, àquilo chegara a emancipação das mulheres, àqueles guinchos sem espírito, àquelas discussões de semi-embriagados, àquela vulgar e desavergonhada licenciosidade, àquele desprezível tagarelar sobre negócios, boatos e política, àquela impudência, àquela ruidosa lascívia! Pensou em Aurélia, e em sua mãe, Íris, habilidosas nos deveres domésticos, na delicadeza no trato das crianças, no carinho aos esposos. Podiam saber pouco sobre Virgílio ou Homero, não saberiam discutir campanhas militares ou processos legais importantes nos tribunais públicos, como aquelas mulheres tinham feito um pouco antes, mas sabiam levar ao lar alegria, paz e honra. E seus filhos e maridos reverenciavam-nas. Delas eram desconhecidos o divórcio e o adultério. Lucano ficou pensativo. A nação declinava e decaía quando as mulheres ganhavam predominância e quando não se fechavam para elas as portas da lei, dos negócios ou da política? Ou seria a dominação das mulheres apenas uma indicação de que a nação estava em decadência?

Lucano pensou na doce e jovem Rúbria, na tímida e adorável Sara bas Eleazar. Pareceu-lhe, subitamente, impossível que elas tivessem existido em tal época. De repente, teve saudades de Sara, com desesperada paixão, e esqueceu os seus votos. Tinha as mãos cruzadas nos joelhos, enquanto ouvia as mulheres que estavam à mesa. Embora o pórtico fosse aberto e os jardins iluminados se ligassem a ele, a atmosfera entre as colunas parecia poluída com os odores e o suor quente. De súbito, a coxa sibilante de Júlia moveu-se contra a dele furtivamente, embora ela fingisse estar absorvida na conversa com outros.

Lucano ficou rígido, com um novo acesso de intensa repulsa, ódio e vergonha. Aquela mulher era a Augusta, Júlia, a imperatriz do mundo, esposa de Tibério, e sua voz, seus gestos, seus movimentos provocadores, sob a estreita veste dourada, eram característicos de uma prostituta, de uma dissoluta mulher das ruas. A coxa apertava mais insistentemente a dele, e Lucano não se podia mover. Júlia estava reclinada, de meio perfil para o jovem; seus seios voluptuosos erguiam-se, as pontas escarlates retesadas, o tecido metálico da veste desenhando cada curva insolente, cada recorte de seu corpo, inclusive seu umbigo. O odor almiscarado que dela emanava tinha, para o jovem, um resquício de carne putrefata.

O ressoar dos címbalos anunciou novo serviço, e os escravos entraram triunfalmente, carregando bem alto uma grande bandeja de prata na qual estava um enorme peixe ainda vivo, irisado com escamas e debatendo-se desesperadamente na agonia final. Lucano, horrorizado, pôde ver seus olhos exorbitados que agora se enevoavam e o bater de sua cauda em arco-íris. Cerimoniosamente, o peixe foi levado entre os convidados, que aplaudiam e examinavam a pobre presa com exclamações de ébrios. Neste ínterim, outros servos instalaram um caldeirão de cobre fumegante, com água aromática, no centro da mesa em U, e o cozinheiro-chefe apareceu com uma pequena mesa de serviço coberta com uma toalha bordada, de fina musselina. Os que carregavam a bandeja trouxeram o peixe, que se debatia freneticamente, até o cozinheiro. Este o agarrou com suas vastas mãos e meteu-o no caldeirão. Imediatamente, a água fez um remoinho e o cheiro de especiaria e ervas mesclou-se a quantidade de vapor.

O cozinheiro, com o auxílio de dois servos que agiam de maneira cerimoniosa, finalmente retirou o peixe e colocou-o sobre um bloco de madeira, preparado sobre a mesa. O cheiro mesclava-se agora a todos os demais odores, e a carne mostrava-se rosada e suculenta. E foi servido num pequeno lago de molho picante, feito de vinhos, cravos, alhos e suco de limão. Lucano olhou para a porção que lhe serviram e não a pôde comer, pois sentiu-se imediatamente nauseado. Comeu mais um pedaço de queijo, um pouco de alface, cenouras e alho-poro, algumas azeitonas e uvas, um pedaço de pão, e bebeu mais uma taça de vinho.

Júlia, para saborear o peixe, ergueu-se apoiada num cotovelo e inclinou o corpo através do divã. Aquilo afastou-lhe a coxa da de Lucano, e pela primeira vez a mulher falou com ele em forma de conversação e com outro de seus sorrisos encantadores.

- Não gosta muito de peixe, Lucano? Perguntou ela e, no momento, por alguma razão peculiar, sua voz não desagradou tanto o jovem grego, cuja cabeça girava de uma forma curiosa.

O seio dela estava agora contra o ombro do rapaz, e os olhos dele não podiam fugir a contemplá-los. E Lucano pensou: Embora ela não seja moça, tem beleza considerável, se bem que não tenha vergonha. E murmurou:

- Venho de família austera e luxos são desconhecidos para mim.

Ela sorriu, e uma covinha profunda e rosada apareceu num canto de sua boca vermelha. Levantou as sobrancelhas, corrigidas com a pinça e polvilhadas de ouro, de uma forma indagadora:

- Temos de dar remédio a essa austeridade falou.

Tocou o rosto dele, de leve, com as costas das mãos macias, e a seguir beliscou-o. A notícia correu célere, mesmo entre aqueles convivas embriagados. Júlia tornara conhecidos seus favores. Daquele momento em diante o belo e jovem grego teria no palácio um poder formidável. Alguns senadores, menos embriagados do que os outros, pensaram rapidamente. Jacinto e Óris enrubesceram, trocaram olhares, depois dirigiram a Lucano uma olhada de profundo ódio, que o moço ignorou. Os dois atletas tornaram-se meditativos.

Talvez os músicos e cantores se tivessem aproximado das mesas um tanto mais, no fundo do cenário, pois Lucano podia agora ouvi-los com forte e súbita nitidez. Uma mulher, cuja voz era rica e eloqüente, começou a cantar:

 

Donzela, perguntas por que choro, em luto,

Digo-te por que se me queres ouvir,

Choro por um corpo ainda agora sepulto,

E pela luz que de uns olhos vi fugir,

Por uns lábios que amei, e já não amam...

Por tudo isso estou eu a carpir

 

É melhor para sempre amar em vão,

E almejar a beatitude ignorada...

Da dor eterna sofrer a escravidão,

Por uma alegria que jamais nos será dada,

Do que boceja, tendo o desejo satisfeito,

E fugir da carícia apresentada.

 

Os lábios de Júlia estavam novamente contra a orelha de Lucano, e ele evitava afastar-se dela, em parte por uma advertência de seu instinto e em parte porque não podia insultar nem mesmo aquela mulher depravada. Ela sussurrou:

- E almejar a beatitude ignorada!...

Agora Lucano percebia o que a mulher pretendia dele, ao olhar-lhe os olhos, estranhos e dilatados, ao ver a umidade de seus lábios e o arquejo de seus seios. Ficou apavorado e sua repulsa foi tão forte quanto a náusea em sua garganta. As carícias de Júlia não tinham sido apenas as leviandades amorosas de uma mulher desavergonhada, e que ela confere a qualquer homem. Eram um convite e uma ordem.

Uma cólera súbita apoderou-se dele, sentindo-se pessoalmente degradado. Júlia chegava-lhe aos lábios sua própria taça, e ele foi forçado a beber o vinho. Embora o rapaz se sentisse repleto de emoções tempestuosas, também estava estonteado. As mesas e seus ocupantes oscilavam delicadamente diante de seus olhos, como se navegassem numa embarcação. Lucano disse consigo mesmo, incapaz de mover a mão que agora estava em seu pescoço, acariciando-o: Não estou apenas enojado, assustado e cheio de repulsa; também estou bêbado e entorpecido. Os dedos de Júlia iam explorando-lhe o pescoço, de leve, delicadamente, e tão hábeis eram aqueles toques, tão conhecedores, que ele sentiu um calor de correspondência. Desejos e arrepios correram subitamente através de sua carne, e a sensação de vergonha que dele se apoderou só serviu para aumentá-los. Engoliu, então, um grande gole de vinho.

Júlia ria baixinho, compreensiva. Retirou a mão, pois os servos iam trazendo outra enorme bandeja na qual havia uma roda de pequeninos leitões, chafurdando num molho escuro, suculento, de cheiro forte, e rodeados de laranjas assadas e corações de alcachofras. Isso vinha acompanhado por outra bandeja contendo vitela assada e diversos acepipes. Os servos tornaram a lavar os dedos dos convidados e deram-lhes guardanapos limpos.

O ruído do pórtico tomou proporções formidáveis. Guinchos selvagens e risos estouravam entre as mulheres e gritos roucos vinham dos homens. O estalido de beijos e o estalido de palmadas em carnes macias ressoavam contra a música. Imitando Júlia, as mulheres se haviam despido até a cintura e seios brancos, róseos e ambarinos reluziam à luz das lâmpadas. Lucano olhava aquilo, avidamente; já não era o médico neutro, já não pensava naquela turbulência de seios despidos como simples exibição de órgãos mamários. As pernas retorcidas das mulheres fascinavam-no e comoviam-no. Esqueceu-se de abster-se de vinho, e sua taça tornou a se encher, sendo o líquido bebido sofregamente. Toda a cena de bacanal emergiu numa grande onda de cor, de nudez brilhante, de odores sensuais e deslumbrantes luzes multicoloridas. Parecia-lhe que as colunas do pórtico irradiavam luz lunar que lhes fosse própria, como que iluminadas internamente, que as estátuas da entrada das grutas tinham vida e faziam-lhe sinais, somente a ele, em gestos libertinos e obscenos.

Teve um sobressalto. Os lábios de Júlia estavam contra seu pescoço, e a mão dela errava-lhe pelo corpo. Uma poderosa urgência tomou conta do jovem. Ela parecia-lhe a mais bela e desejável das mulheres.

Estremeceu em êxtase vergonhoso. Os olhos dela, ardentes, riam-se para ele e, com um movimento de cabeça que denotava aprovação, Júlia levantou-se, afastando-se do moço, umedecendo a boca latejante.

Então devotou-se, caprichosa e zombeteiramente, aos seus antigos favoritos, que estiveram meditando o assassínio de Lucano. Mas os traços de seus dedos haviam deixado o moço ardente como fogo.

O tempo tornou-se infinito para Lucano, mas também de ardente iminência, estonteante, fervilhante de desejos estridentes, de confusão, de trevas momentâneas e silêncios repletos de arco-íris que se modificavam e de estupendos clamores. Pestanejava constantemente, para limpar os olhos das névoas rosadas, prateadas, azuis e escarlates.

Seus ouvidos trovejavam de vozes e música. Chegou a indagar de si próprio, acreditando ser aquela a pergunta mais séria e mais importante do mundo: Quem sou eu? Em sua língua havia gostos deliciosos; o vinho era enlouquecedor. Esbarrou contra a mesa e agarrou-se à borda do divã, receoso de cair, pois que o sentia balançar sob seu corpo. Estava certo de que seus pensamentos continham a sabedoria dos séculos, de que a ele tinham chegado segredos tremendos, jorrando nele, vindo das eternidades. A mão esquerda de Júlia, em sua coxa, parecia uma deliciosa pressão. Tenho perdido tanto, pensou solenemente e seus olhos encheram-se de lágrimas de autopiedade. Aquela companhia era deliciosa e todos os convidados perfeitos, como deuses e deusas, encantadores, maravilhosos em sua amizade, sofisticados e adoráveis. A lua era o escudo de Ártemis, e ele estudou-a, espetando que a radiante virgem-deusa surgisse por trás dela, prateada em sua beleza. As estátuas dançavam freneticamente nas grutas. A grinalda de botões de rosa escorregou da fronte de Lucano e ele, meticulosamente, e com gestos lentos e cuidadosos, recolocou-a na posição devida.

Havia uma razão qualquer que fazia aquilo parecer absolutamente necessário. Com certeza não estou bêbado, disse ele, consigo mesmo, severamente. E que jamais soube o que é viver. Havia lágrimas em seus olhos, novamente, e ele soluçava pelo seu eu antigo, despojado. Pés e mãos estavam dormentes, mas o corpo latejava. Não pensava em Rúbria nem em Sara. Mas a imagem difusa de ambas permanecia, como espectros destituídos de faces, aumentando sua presente e ofuscada animação. Seus membros espalharam-se.

Eternidade de tempo passou em pensamentos imensuráveis, em conversação. Lucano voltou a si, muito rapidamente, para descobrir que estava conversando bastante jubilosamente, em feliz entusiasmo, com uma dama a seu lado e, aparentemente, tal conversa já durava havia algum tempo. Mas o que dissera à mulher, em tão enceguecedor enlevo, não sabia. Sacudiu a cabeça, como que perplexo, e ela murmurou:

- Tu falas arrebatadoramente. Continua.

Lucano tornou a sacudir a cabeça e houve outro hiato brilhante.

Ainda assim, todos os seus sentidos pareciam iluminados, aumentados, e ele retirou-se consigo mesmo, durante algum tempo, para refletir jubilosamente sobre aquilo. Estava excessivamente bêbado.

Os escravos levaram para fora uma ampla plataforma de madeira e colocaram-na sobre o relvado, junto do pórtico. Atiraram pétalas de rosas sobre os convidados e vaporizaram o ar tépido com perfume. A lua pareceu aproximar-se, até dar a impressão de que poderia ser tocada com a mão; brisa estimulante levantou-se do jardim e os topos dos ciprestes coroaram-se como espigas de fogo prateado. Apareceram dançarinos, lutadores, cantores, atores, mas quase ninguém prestou atenção ao espetáculo oferecido por eles, pois a maioria dos convidados ou estava ressonando ruidosamente, ou distraída com um vizinho, ou pestanejando estupidamente. Lucano, porém, observava os atletas, tentando vê-los através de uma névoa. E disse para a dama que havia seduzido com sua conversação:

- Eles estão oferecendo uma demonstração pobre.

Óris adormecera, mas Jacinto, que ouvira as palavras de Lucano, exclamou:

- Eles não usam mágica! São homens honestos. - Seus olhos faiscavam de raiva e ciúme.

Lucano falou solenemente:

- Eu poderia vencê-los a todos. - E, após outro trago, assentiu com a cabeça e repetiu, com pesada ênfase: - Eu poderia vencê-los a todos.

Júlia voltou-se para ele, beijou-lhe o ombro e murmurou:

- Sim, eu sei, meu divino Apolo.

Houve um clangor áspero de cornetas e as lâmpadas coloridas brilharam com resplandecência maior sobre a plataforma. Escravos atiraram rosas sobre ela. Cinco jovens, as pernas e os pés cobertos de forma a se assemelharem aos pés e cascos caprinos de Pã[31], os lombos envolvidos em grinaldas de papoulas vermelhas, saltaram sobre a plataforma, com gritos altos e delirantes. Mantinham flautas junto dos lábios e, acompanhados por outros músicos, encheram o ar com delgados silvos, quase enlouquecedores. Seus olhos selvagens e vivos dardejavam para um e outro lado, como libélulas, enquanto eles dançavam, saltavam e corcoveavam no ar. As flautas assaltavam os ouvidos e mesmo os que ressonavam e dormitavam pesadamente acordaram e tornaram-se interessados. Os jardins escuros formavam um cenário de fundo perfeito para aqueles jovens em sua dança sensual; os cascos, armados de cravos, retiniam e sapateavam na plataforma, o suor corria deles e eles arquejavam, faziam círculos, empinavam-se, alteando os lombos rodeados de papoulas. Os gestos eram lascivos e tentadores, os rostos de risos selvagens excitavam as paixões. A música e o trilo das flautas tornaram-se mais loucos, mais rápidos, mais exigentes.

Um grupo de moças, vestidas como ninfas, em trajes flutuantes e transparentes e coroadas de lírios, saltou sobre a plataforma, os braços direitos erguidos e mantendo véus muito tênues diante dos rostos bonitos. Com fingida modéstia dançaram, os olhares tímidos e aparentemente inconscientes dos Pãs que saltavam em derredor. Fugiam às mãos ávidas, cantando baixinho para si próprias. Os Pãs se foram fazendo frenéticos e suas línguas vermelhas apareciam, lambendo o ar.

Os corpos rosados das moças luziam através das vestes, os seios jovens estremeciam, as coxas movimentavam-se com elegância. Os olhos brilhavam atrás dos véus, luzindo em preto, azul e castanho, e os longos cabelos turbilhonavam em torno delas. Os Pãs saltavam mais alto, desesperados e lascivos, perseguindo as ninfas enquanto elas faziam círculo e flutuavam cantando.

Lucano não soube em que momento exato se tornou sóbrio e frio, tanto na mente quanto no corpo. Olhou para os dançarinos com súbito nojo e repulsa. Desejava erguer-se e ir embora e as têmporas latejavam. Era como se algum horrível perigo o ameaçasse. Mas a carne não obedecia à sua ordem: manteve-se, flácida, sobre o divã. Teve consciência do hálito quente de Júlia em seu rosto; da mão dela acariciando-lhe o braço; da voz em murmúrio dizendo coisas vergonhosas. A náusea dominou-o e se odiou. Desejou saltar dentro de água fria e limpar não apenas o corpo, mas a boca pastosa e quente, e seu espírito. Olhou para os convidados, parte dos quais estava boquiaberta, lançando o hálito carregado de vinho aos borbotões; olhou para as mulheres com os seios nus e uma espécie de horror apoderou-se dele, detestando-os a todos e detestando-se. Seus olhos queimavam, secos, e seu estômago tinha engulhos.

As ninfas estavam agora gritando, num misto de deleite e simulado terror, pois os Pãs as haviam agarrado em seus braços ágeis. Os Pãs, então, com música mais selvagem e mais rápida, rasgaram os véus e os trajes das moças e envolveram-lhes os corpos nus com suas pernas peludas. Os convidados gritavam, enlouquecidos, e alguns ergueram-se a meio, aos berros. Os Pãs ergueram as moças nos braços, levantaram-nas sobre suas cabeças, como estátuas vivas, e levaram-nas para a escuridão, com relinchos animalescos de triunfo e desejo.

Como se aquilo fosse um sinal, todas as luzes do pórtico e dos jardins foram imediatamente apagadas, e apenas o luar cascateou sobre o relvado, sobre as árvores e as mesas em desordem e tresandantes.

Os convidados sentaram-se no silêncio que se seguiu, como que estupidificados, eles próprios silentes. Então, casal por casal, agarrados um ao outro, foram tropeçando para as grutas que esperavam e para os jardins distantes onde apenas a lua penetrava. Lucano viu-os partir, e uma intensa aversão renovou-se nele.

Então viu-se a sós com Júlia e os dois atletas. Óris ressonava, mergulhado no esquecimento, e a face de Jacinto manchava-se de lascívia.

Quando a imperatriz levantou-se, brilhante ao luar, Jacinto levantou-se com ela, mas Júlia voltou-lhe as costas. Sorriu a Lucano e tomou-lhe a mão, sussurrando, "Vem", e assim, colocou-o sobre os pés.

O corpo estava ainda dormente e entorpecido pelo vinho, seus joelhos tremiam, mas a sensação de terrível ameaça veio ter a ele mais fortemente. Agora, podia pensar em Tibério, no poderoso César. Olhou para Júlia com aversão e seus olhos azuis faiscaram à luz prateada. A mulher viu naquilo um sinal de animação e desejo, e atirou-se sobre o peito dele. Lucano cambaleou sob o impacto, pois Júlia não era leve e ele estava fraco.

Jacinto, bêbado e inflamado de vinho e ciúme, andava em torno de Lucano e Júlia, e então agarrou Lucano pelos ombros, rugindo ameaças e obscenidades. Lucano empurrou para longe de si a imperatriz, e a força voltou-lhe ao corpo. Agarrou Jacinto, fê-lo dar uma volta e atirou-o violentamente para os braços de Júlia. Caíram ambos sobre o divã, num monte de corpos com pernas e braços emaranhados.

Então Lucano correu. Correu toda a extensão do pórtico, desviando-se das mesas e das cadeiras. Correu para dentro do palácio.

Desceu, correndo, o piso silencioso e brilhante, sob as lâmpadas esparsas. Ouviu que alguém corria atrás dele, aproximando-se mais, e voltou-se, o punho fechado e erguido. Mas era apenas Plócio.

- Depressa! Disse o jovem pretoriano, agarrando-lhe o braço. - Por todas as Fúrias, sê rápido!

Fez Lucano voltar-se para um corredor de mármore, longo e estreito, e ambos correram por ali, como jovens Mercúrios.

- Estás doido? Exclamou Plócio, arquejante.

- Achas que devia deitar-me com ela? Exclamou Lucano, furioso.

- Não, mas há maneiras menos violentas de rejeitar uma dama disse Plócio. - Gemeu: - E eu estava nomeado pelo César como teu guarda-costas!

Fez Lucano parar, num movimento súbito, e seus olhos examinaram o corredor. Pretorianos, ainda inconscientes da presença dos dois, andavam na extremidade dele, as espadas desembainhadas. Plócio puxou Lucano para trás de uma coluna imensa, de mármore. Agora, sussurrava:

- Estás em perigo de morte. A Augusta não se esquecerá disto. Ela terá sua vida, se lhe for possível, pois que a humilhaste para além do que lhe seria possível suportar.

Gemeu baixinho, tirou o elmo, enxugou o rosto suado com seu braço moreno e forte.

- Ouve-me! Há uma porta de bronze a oito passos para a esquerda e só oficiais têm chave, pois leva para os nossos aposentos, que ficam lá para baixo. Eu irei até lá, fingiremos examinar a fechadura.

Então, começarei a conversar com os meus homens. Num momento propício, corre até a porta que eu deixarei sem a volta da chave, abre-a devagarzinho, entra no corredor que fica além dela, onde esperarás por mim. - Havia na voz dele uma áspera urgência.

Relanceou os olhos para o caminho que já tinham feito. Com um olhar furibundo para Lucano, que se estava sentindo violentamente nauseado, deixou o jovem médico. Desceu em passo militar até o vestíbulo, parou à porta, fingindo examiná-la. Depois, continuou, e foi ao encontro de seus homens, que pararam para saudá-lo.

Arquejante com a náusea e com eructações azedas a subir-lhe pela garganta, Lucano espiou cuidadosamente por trás da coluna. Esperou até que Plócio tivesse manobrado os pretorianos, de forma que ficassem de costas para ele. Ouviu-lhes os fortes risos jovens, enquanto Plócio contava-lhes gracejos. Depois, correu para a porta de bronze, abriu-a o mais caladamente possível, e entrou correndo para o corredor frio e escuro que ficava adiante dela, fechando a porta atrás de si.

Encostou-se na parede úmida de pedra, cruzou os braços com firmeza contra o ventre, e fechou os olhos para evitar a dor latejante de sua cabeça.

 

O corredor era tão estreito quanto úmido, pequenos riachos de água corriam entre as pedras escuras e o forro em arcos baixos era opressivo.

Na extremidade, uma lanterna frágil e amarela suspendia-se a um gancho, e mais adiante ficava outra passagem, correndo em ângulos retos.

Havia ali profundo e pesado silêncio, cortado apenas pelo delgado gotejar de água.

Depois de controlar sua náusea, Lucano olhou em torno dele mesmo e pensou. Parecia-lhe que esperava por Plócio havia muito tempo. Franziu as sobrancelhas. Nunca fora desconfiado ou cauteloso. Refletiu em que sua vida fora demasiadamente protegida, demasiadamente restrita, demasiadamente erudita, ligada ao lar, à família, aos estudos. Fora precipitado numa cena e numa experiência, naquela noite, que o haviam deixado apavorado. Ouvira falar daquelas orgias e vira uma ou duas versões menores em Alexandria, versões que não o impressionaram, pois não fora parte delas. Se eu me revolto com tanta violência, agora, como será quando estiver inteiramente integrado a um mundo bruto assim? Tornar-me-ei indefeso como uma criança, novamente?

Aborrecia-o recordar que considerara Tibério César apenas um como outro qualquer, poderoso, todo-poderoso, sim, mas apenas um homem como qualquer outro. Agora ele era o terror, o governador do mundo, marido de uma harpia, senhor de legiões, dono absoluto de todos os homens. Vingaria Júlia? Havia Plócio, devotado a César. Poderia ter confiança nele? Teria sido ele, Lucano, iludido para entrar naquele corredor estreito, a fim de que ali o matassem?

Estaria ele com Tibério, naquele momento, embora fosse quase o amanhecer, conversando sobre aqueles assuntos? O filho de Diodoro Cirino não podia ser executado em público, como um criminoso. Sua morte não devia ser vista por ninguém, testemunhada por ninguém, e aquele era o lugar perfeito e o momento perfeito. Seu corpo, então, seria atirado ao Tibre, e dir-se-ia que ele morrera misteriosamente, embora estivesse sob a proteção do próprio César.

Lucano não desejava morrer. Pensava na mãe, nos irmãos e na irmã. Pensava em todo o trabalho que devia fazer. Estava preparado para defender-se. Maldito fosse todo aquele vinho que ele bebera!

Afastou-se da parede e experimentou os próprios músculos. Tornou a pensar em Plócio, armado com a espada curta, e que depressa estaria vindo para aquele corredor. Somente ele e Jacinto tinham visto Lucano repelir Júlia com violência. Era possível que agora Plócio nem mesmo estivesse com César; sua fidelidade devia-se também a Júlia e ele podia estar a consultá-la sobre a melhor forma de acabar com o filho de antigos escravos da maneira mais discreta possível.

Ele é grande e forte, pensou Lucano, mas sou maior e mais forte. Sem a espada que usa, eu poderia estrangulá-lo ou pelo menos dominá-lo.

Entretanto, ele tem a espada. Lucano pensava, alerta. Seja como for, dominarei Plócio, disse consigo mesmo. Então, de alguma forma encontrarei o caminho de saída deste lugar abominável, não para voltar à minha família, o que lhe traria perigo, mas para sair de Roma.

Por que esperar pela volta de Plócio? Fugiria agora. Ouviu, então, o ranger da chave na fechadura, e percebeu que era tarde demais.

Correu de volta à porta e encostou-se à parede, numa posição que lhe permitia ficar escondido atrás dela, quando se abrisse, e assim saltar sobre Plócio antes que o capitão pudesse defender-se. Se Plócio entrasse com a espada desembainhada, teria de morrer. Lucano vacilou.

Mas é minha vida, a vida de minha família, todo o meu trabalho que eu tenho de proteger, pensou com a rapidez do relâmpago.

Recordou-se do Mandamento de que José ben Gamliel lhe falara: "Não matarás!" Mas não houve recomendação alguma dizendo que um homem não pode se defender.

A porta abriu-se rapidamente e o perfil de Plócio apareceu. Lucano viu que ele não tinha desembainhado a espada. Plócio, sem ver Lucano atrás da porta, blasfemou baixinho e chamou-o pelo nome, ansiosamente. Entrou para o corredor, fechou a porta atrás de si, correu o ferrolho, depois deu uma volta. Então viu Lucano, com seu rosto pálido e tenso e compreendeu. Sorriu amplamente:

- Então, estavas preparado, meu Hércules disse ele. - Não faças perguntas. Conversei com César. - Mostrava-se divertido.

- E que disse César? Perguntou Lucano, sem confiar nele.

- Ah! Estás aprendendo! Replicou Plócio, sacudindo a cabeça, com admiração. - Eu apenas contei a Tibério que eras inexperiente, e que, sem querer, tinhas ofendido a Augusta, que é conhecida por não suportar ofensas. Mas eu te disse que não me fizesses perguntas. Tua vida ainda está em perigo mortal. Segue-me.

Lucano, entretanto, hesitava. Recuou, afastando-se cautelosamente de Plócio.

- Não estou sob a proteção de César? Não sou um hóspede em seu palácio? Basta que ele diga uma palavra e nem mesmo a Augusta ousará erguer a mão contra mim.

Plócio suspirou, impaciente:

- Como sabes pouco, meu inocentezinho. Júlia não poderia dar ordens claras para tua morte, consideradas as circunstâncias em que aqui te encontras. Não, tua morte ocorreria de maneira mais furtiva e César não a poderia evitar. Há o veneno ou um acidente, compreendes, e então teu corpo seria tristemente levado à tua família, com um pergaminho escrito pela própria mão de César. Júlia tem muitos espiões e partidários no Palatino, mais do que o próprio César. Assim, tens de ser protegido. Amanhã, sob disfarce, deixarás a cidade num navio que estará à tua espera no porto. De forma alguma deves voltar a tua casa, pois para lá irias levar não só a tua morte como a daqueles que amas. Desde que estejas livre, Júlia será habilmente levada a crer que César encolerizou-se contigo e baniu-te.

Parou e fixou os olhos em Lucano, que ainda o estava observando.

- Foi uma sorte para mim que Júlia não soubesse que eu observei toda a cena da extremidade do pórtico disse ele. - Mas para Jacinto não foi sorte ter sido a única testemunha da sua humilhação.

Sem dúvida alguma ele estará morto antes que o sol se ponha, por haver rolado uma escadaria, por exemplo.

- Que César; que Augusta, que cidade! Exclamou Lucano.

Plócio ficou a olhá-lo, boquiaberto.

- Que inocente! Replicou, então.

- Eu não confio em ninguém disse Lucano.

- Excelente, meu bom amigo. Vou para meus aposentos e tu me seguirás. Tive de deixar-te aqui para me certificar de que os oficiais, meus camaradas, estavam dormindo ou de serviço. Mas dentro de alguns momentos haverá mudança de guarda, e devemos nos apressar.

Lucano ainda hesitava. Pouco sabia de Plócio, afinal, mas acabou por dizer:

- Seguirei. Mas, primeiro, deixa-me tirar tua espada.

Plócio olhou-o nos olhos, depois levantou os braços, sorrindo, e Lucano desarmou-o. O oficial foi descendo rápida e energicamente pelo corredor, voltando à direita e Lucano seguiu-o, agarrado à espada e relanceando os olhos em derredor, cautelosamente. Bem ao fim do corredor uma longa série de portas de carvalho tinha sido inserida, e atrás delas ouviam-se sons fracos de gente que ressonava. Ali era mais seco, e de um lugar qualquer, desconhecido, vinham o cheiro de relva e o sussurro claro da brisa. Plócio parou diante de uma porta, abriu-a, entrou, fazendo; silenciosamente, sinal a Lucano. Quando ele já estava dentro, Plócio rapidamente fechou a porta e correu-lhe o ferrolho. Sua voz era mais baixa, quando tornou a falar:

- Precisamos falar baixo. Ninguém deve saber que estás aqui, pois eu, como tu, não tenho confiança em ninguém.

Seu pequeno quarto de dormir, iluminado apenas por uma lâmpada que silvava, era nu e austero, com somente uma cadeira, uma cama tosca e uma mesa sobre a qual ficava a lâmpada. Das paredes de estuque pendiam espadas e dois escudos, e em vários nichos foram colocadas cabeças rústicas de deuses, que pareciam brinquedos. Em um nicho um tanto maior, uma pequena cabeça de mármore de Diodoro, habilmente executada, estava sozinha; sobre ela pendia a flâmula romana, e foi aquilo que Lucano viu. Embora ainda estonteado pelo vinho, sentiu que seus olhos enchiam-se de lágrimas.

Colocou a espada de Plócio sobre a mesa, olhou-o de frente e disse: Sei que posso confiar em ti e apontou para o busto. – Tu amaste meu pai.

- Sim disse Plócio. Chegou para junto do pequeno busto e tocou-o, reverentemente. - Como meu pai o amou, e como o amou meu tio, o senador, que foi morto por seus colegas por ter amado seu país e ser homem honrado. - Fez uma pausa e rematou: - Assim Tibério o amou.

Lucano sentou-se à beira da cama. Sua dor de cabeça estava cada vez mais forte e ele sentia-se desolado por não tornar a ver sua família talvez nunca mais. Segurou a cabeça entre as mãos e resmungou:

- Eu gostaria de um pouco de água, de água muito fria.

Plócio, rindo baixinho, ergueu um jarro do chão e levou-o à boca ressecada de Lucano, e o jovem bebeu com sofreguidão. Imediatamente, sentiu-se nauseado, e Plócio depressa puxou para o lado uma cortina de lã marrom e empurrou-o para um banheiro que ficava do outro lado.

Ali, teve náuseas até vomitar o vinho azedo, exaurindo-se pelo esforço.

Mas a dor de cabeça permanecia. Quando terminou de aliviar-se, voltou para o quarto de dormir, onde Plócio o esperava, ainda armado e com o elmo na cabeça. Acrescentara uma capa ao uniforme e bocejava como se tudo aquilo fosse a coisa mais comum deste mundo.

- Não devo deixar-te nem por um momento disse. Retirou o elmo e pousou-o sobre a mesa. - Ocuparás minha cama e eu dormirei encostado ao limiar da porta, enrolado em minha capa. Não protestes. Tua carne é mais delicada do que a minha. Sou um soldado e estou habituado a dormir no chão. Passei o ferrolho na porta, mas é possível, embora não provável, que alguém nos tenha visto quando fugíamos do banquete de Júlia.

- E nem mesmo César pode proteger-me! Disse Lucano, escarnecedor. - Nem mesmo contra uma mulher com maneiras de meretriz.

- A uma certa altura não parecias vê-la como tal disse Plócio, mostrando todos os seus dentes brancos num sorriso alegre. - Lembro-me do momento em que retribuíste ardentemente seus beijos e houve mesmo um instante em que lhe tiraste da cabeça seu chapéu cretense e o equilibraste gravemente na tua, para grande admiração dos convidados!

- Impossível! Disse Lucano, horrorizado.

- Foi assim, realmente. - Plócio se divertia. Ergueu a mão em juramento. Juro que foi assim. Também te ofereceste, em mais de uma ocasião, a Júlia, para dar uma demonstração de tuas proezas atléticas, e só não o fizeste porque nem Óris nem Jacinto estavam dispostos a tal. Declaraste, então, que, por ocasião dos Grandes Jogos, que se realizarão dentro de uma semana, desafiarias qualquer atleta para qualquer demonstração. Os convidados ficaram muito impressionados e Júlia sentiu-se muito orgulhosa.

Lucano recordou-se dos intervalos brilhantes que se tinham apresentado a seus olhos durante o banquete. Enquanto Plócio falava, recordou-se, de súbito, envergonhado, dos aplausos dos convidados e vagamente, como num sonho, viu-se a si mesmo erguendo-se e curvando-se, em cumprimento. Gemeu, apertando as têmporas nas mãos.

- Tu te gabaste disse Plócio, mais profundamente divertido um Bruno, que parecia um urso, e que te ensinou a luta, em Alexandria, e ao qual derrotaste finalmente. Falaste, também, que possuis uma taça de ouro que confirma seres o melhor dos jogos atléticos.

Lucano gemeu mais alto. Era verdade. Plócio não podia saber aquelas coisas sem as ter ouvido dele próprio.

- Quanto à dança declaraste eras, realmente, um conhecedor. Se Júlia não te detivesse, terias dado uma esplêndida exibição imediatamente.

Plócio suspirou:

- Eu gostaria de ter assistido a essa exibição. Era evidente, entretanto, que a Augusta desejava ver-te em espetáculo particular, tanto desse terreno como em vários outros. - Tornou a suspirar: - Tivesses, entretanto, teimado em mostrar tuas outras proezas, irias ferir tremendamente César por teres dormido com a esposa dele, pois apesar de ela ter dormido com muitos, ele te considerou como homem honrado. - Esticou os lábios, pensativo: - Ele compreendeu, quando lhe falei a pouco.

Lucano balançava a cabeça sobre as mãos, tiritando:

- Por que não se divorcia, por que não a manda embora? Ele é um homem ou um idiota?

- Júlia é filha do antigo Augusto e o povo amava-o. E o povo ama Tibério.

Lucano tornou a tiritar. Ainda estava nauseado e milhares de diabinhos davam-lhe murros no crânio. Também se sentia profundamente envergonhado. Levantou os olhos para Plócio e então, subitamente, os dois jovens estavam rindo, Plócio encostado à parede, sem forças, e Lucano esparramado na cama. Seus paroxismos eram mais violentos por serem obrigados a abafar o riso com as mãos e os braços.

Quando Plócio conseguiu controlar-se, disse, rouco de tanto rir:

- Juraste que se Júlia beijasse tua grinalda seria capaz de comer todas as rosas de que ela se compunha, inclusive os espinhos. Mas ela sussurrou algo em teus ouvidos que, aparentemente, mudou tua disposição. Eu adoraria saber o que foi que ela te disse.

- Pois eu não! - Lucano viu, então, que a uma certa altura pusera de parte a toga e estava apenas com sua túnica azul-clara: - Esperemos que ela me considere impotente, e pense que não lhe quis dar uma demonstração disso!

Tornaram a rir. Lucano bebeu, cautelosamente, um pouco mais de água. Plócio não permitiu que ele apagasse a lâmpada. Estendeu-se sobre o chão de pedra, envolvido em sua capa, e adormeceu imediatamente.

Lucano, porém, agora que ficara a sós consigo mesmo, não podia dormir. Depressa estaria longe de tudo quanto amava, no exílio. Mas não era isso o que tinha desejado? Virava-se na cama, agitado. De há muito a aurora surgira e ele ouvira muitos pés apressados de oficiais no corredor que ficava do outro lado da porta, antes de tombar numa sonolência febril.

Teve um sonho estranho e terrível. Viu Roma em chamas, ouviu o estrondo de dezenas de milhares de colunas esboroando-se no chão, ouviu o alarido lamentoso da multidão. Os céus negros avermelhavam-se para cima das cabeças, e um imenso odor de corrupção, como de carne putrefata e cozida, corria por sobre a cidade. Viu césares intumescidos de maldade, rostos estúpidos ou depravados, coroados com folhas de carvalho e louro. Pórticos lançavam chamas, templos estremeciam como se fossem feitos de papel e dissolviam-se. Arenas rugiam, cheias de animais, e leões saltavam de suas jaulas sobre a população que fugia. De algum lugar uma voz veio, alta e profunda: "Ai, ai de Roma!" E o clamor da trovoada encheu todo o universo e as estátuas de deuses, tingidas de vermelho e ouro, explodiram em fragmentos carmesins e tombaram com as colunas. Paredes brancas inclinavam-se como velas de embarcações e tombavam. As Sete Colinas fumegavam, como fogueiras, e a água do Tibre corria, semelhante a sangue.

Quando acordou, Lucano viu que a lâmpada tinha sido de novo provida de azeite e que estava silvando e ardendo com luz amarela.

Não podia saber que horas seriam, mas sentiu que já se fazia bastante tarde. Não havia janela alguma naquele aposento. Foi ao banheiro, onde havia alguns orifícios para a entrada do ar, feitos no alto, na pedra espessa. Subindo sobre a latrina e olhando por aqueles orifícios viu uma margem tufosa e verde e teve um relance de ciprestes, dos quais vinha um cheiro pungente, aquecido de sol. Calculou que devia passar de meio-dia. Voltou para o quarto de dormir e pela primeira vez         viu que uma refeição fora colocada ali para ele, vinho de soldados, queijo fresco, pão moreno e limpo e uma cesta de frutas. Com apetite surpreendente, comeu e bebeu. Aquela era comida que ele conhecia.

Compreendeu que teria de esperar. Sua segurança dependia das fontes que menos se poderia confiar, das mais equívocas. De uma feita experimentou a porta, e viu que ela fora fechada pelo lado de fora.

Cautelosamente, fechou o ferrolho interno. Caminhou pelo pequeno quarto, inquieto, pensativo. Se não fosse pela sua família, ele se regozijaria de deixar Roma e seus arredores imediatamente.

Por fim, uma chave rangeu na fechadura, e Lucano ficou diante da porta, silencioso. Então ouviu a voz abafada de Plócio:

- Sou eu. - Abriu o ferrolho e recuou vivamente. Plócio entrou com um sorriso de compreensão; trazia nos braços uma grande trouxa, que colocou sobre a cama. - Enquanto dormia como uma criancinha, meu bom Lucano, estive ocupado. Primeiro, por ordem de César, o prefeito dos pretorianos colocou avisos bem visíveis em todo o palácio, dizendo que foste banido logo pelo amanhecer. Isso foi para aliviar a cólera da Augusta. - O rosto dele transformou-se: - Eu não estava enganado. Jacinto foi encontrado morto há algumas horas, envenenado em sua própria cama. Seu amigo, Óris, está agora em Mamertine, acusado de assassínio.

- Mas ele não assassinou Jacinto.

Plócio espichou os lábios e olhou para o forro:

- Disseram-me que ele confessou... Sob tortura. Se Óris não estivesse bêbado ou adormecido, também teria sido envenenado. Ah! Bem! Todos os homens têm de morrer.

- Que acontecerá a Óris?

- Nada poderás fazer, meu amigo. Eu te disse que tinha estado ocupado. Fui à tua casa e ali, naquela grande trouxa, estão teu estojo médico, alguma roupa, algumas lembranças de tua mãe, de Keptah, e teus livros de medicina. Quê! Vais chorar? Tua mãe compreende e Keptah também. Há cartas deles. - Acrescentou: - Apesar do edital de banimento, é muito provável que a Augusta tenha espiões por aí, não só no palácio como nas portas da cidade, prontos para cair sobre ti e matar-te. Portanto, é necessário um disfarce.

Abriu a trouxa e retirou dela uma veste marrom muito rústica, usada, habitualmente, por escravos ou capatazes rurais, e uma cabeleira bem trabalhada, de caracóis pretos. Havia também um par de sandálias de sola de madeira e um cinturão feito de cordas trançadas.

- Irás até a Porta Esquilina, atrás da qual está a tua espera um modesto cavalinho. Terás de andar até a porta, entretanto. É um longo caminho. - Mais uma vez remexeu na trouxa e dela retirou dois sacos de dinheiro. Fez cascatear as tilintantes moedas de ouro sobre a cama.

- O menor é de tua mãe, o maior é de César, com seus cumprimentos. E aqui outro presente de Tibério, que realmente deve gostar de ti.

- Plócio desembrulhou, respeitosamente, um anel de incrível magnificência. Imenso, representava o arco e o escudo de Ártemis em diamantes fulgurantes, incrustados no coração de uma turquesa, e todo engastado em ouro polido. - Observarás disse Plócio, secamente que é um anel virginal.

- Não sou virgem, embora isso possa espantar-te disse Lucano, com um riso ligeiro. Colocou o anel no dedo, depois voltou-o para dentro, de forma que sua riqueza ficasse escondida na palma da mão. Estendeu essa mão para as cartas de sua mãe e de Keptah e sentou-se para lê-las rapidamente. Eram curtas, cheias de amor e confiança e, para não magoar, deixavam de expressar receio ou desgosto.

Sua mãe explicava que de vez em quando lhe enviaria dinheiro, segundo a recomendação de Diodoro, bastaria que ele escrevesse, e ela despacharia o dinheiro para a cidade onde se encontrasse.

Havia outra carta, em delicada caligrafia, e Lucano abriu-a. Era de Sara bas Eleazar, e também essa era curta, mas ardente e terna:

"Eu te amarei e te guardarei ternura sempre, meu querido Lucano. Como Ruth, gostaria de seguir-te para onde quer que fosses, e ficar a teu lado eternamente. Não te surpreendas quando me vires, pois saberei onde estás. Para mim não pode haver outro homem e minhas orações estão contigo. Sei que procuraras sempre meu irmãozinho, Arieh, e que um dia o encontrarás para mim, em nome de meu pai, que tu consolaste. Deus te abençoe e te proteja, e possa Ele seguir-te em tuas andanças e estar à tua mão direita, sempre cuidadoso de ti, e possam Seu bordão e Seu cajado confortar-te."

- Quê! Exclamou Plócio, Estas chorando? Deve ser uma carta muito comovente. De uma dama, sem dúvida.

- Cala-te. Pediu Lucano limpando as lágrimas.

Levantou-se, examinou seu estojo médico e, ao abri-lo, um objeto dourado caiu dele, com sua corrente, Era a cruz de Keptah. Hesitou, depois colocou-a ao pescoço. Os olhos enérgicos de Plócio alargaram-se, depois apertaram-se.

- Uma cruz! Disse ele. - E de ouro! Por quê?

- Não sei disse Lucano. - Keptah, porém, disse-me que se trata de um velho símbolo da Caldéia, chamada Babilônia pelos judeus, aquele grande império. É um símbolo que os egípcios também usaram, recebendo-o dos babilônios, e que colocaram em suas pirâmides. Um de seus faraós, que declarou existir apenas um Deus e assim incorreu no ódio dos sacerdotes, usou este símbolo em seu pescoço, e o mesmo faziam os que nele acreditavam. O nome do faraó era Amon, mas isso passou-se há muito tempo. Eu uso o símbolo, porque me foi dado por uma jovem que eu amava...

- Bem, seca tuas lágrimas disse o prático Plócio. Quando o crepúsculo chegar, tu deixarás este aposento e irás para a seção dos escravos, com uma vassoura que te espera aí fora. Então, ninguém reparará em ti. No entanto, terás de disfarçar essa tua pele de lírio com este óleo escuro. Sê discreto! Não fales com ninguém. Resmunga contigo mesmo, constantemente, como se fosses um simplório. Então sairás furtivamente do Palatino, ficarás mesclado às turbas da cidade, depois caminharás até a Porta Esquilina o mais depressa possível.

Deu a Lucano uma adaga curta e forte, que ele deveria esconder sob o vestuário.

- Nunca se sabe... Disse. Passou cuidadosamente o óleo sobre o rosto e o pescoço de Lucano, ajustou-lhe a cabeleira preta e ajudou-o a vestir as roupas rústicas. - Agora disse, com uma risada, afastando-se para admirar o trabalho de suas mãos nem mesmo Júlia olharia para ti.

Hesitou. Depois, subitamente, abraçou Lucano como um irmão, e beijou-lhe as faces, desajeitadamente.

- Que os deuses te protejam falou. - Não te digo adeus, pois acredito que nos tornaremos a encontrar.

 

 

[1] Nome dado às principais praças públicas das cidades da Grécia antiga, e, por extensão, aos grandes espaços abertos entre edifícios. (N. do T.)

[2] Um dos personagens que aparecem na Ilíada, filho de Príamo e Hécuba, sacerdote de Apolo, em Tróia, sufocado com seus filhos por duas serpentes monstruosas que saem do mar. (N. do T.)

[3] Níobe, rainha de Tebas, que por ter ousado zombar de Latona, mãe de Apolo e Diana, de seus sete Filhos e sete Filhas, viu-os todos mortos pela cólera da deusa. Transformada em rochedo, pelo sofrimento, dele correm constantemente as lágrimas daquela que, em literatura, simboliza a dor maternal. (N. do T.)

[4] O mais célebre filósofo da China, fundador de um sistema de moral muito elevada, o chamado Confucionismo (551-479 a.C.).

[5] matemático grego do sexto século a.C., a quem se atribui uma escola á qual se devem descobertas matemáticas, geométricas e astronômicas, a tábua de multiplicar, o sistema decimal e o quadrado da hipotenusa.

[6] O maior escultor da Grécia antiga, nascido em Atenas, 431 a.C. (Notas do Tradutor)

[7]Nome grego de Mercúrio. (N. do T)

[8] Estrela dupla da constelação do Boiciro. (N. do T)

[9] Nome antigo dado aos cidadãos romanos, depois de se unirem com os sabinos. (N do T.)

[10] Figura mitológica que, apaixonando-se pela sua própria imagem, refletida nas águas de uma fonte, precipitou-se nela. Foi transformado na flor que tem o seu nome.

[11] Deus egípcio que combinava os atributos de Osíris e Apis, grandemente cultuado na Grécia e em Roma. (Notas do Tradutor.)

[12] Membro da casta sacerdotal, a primeira das quatro castas da Índia (N. do T.)

[13] Segundo as religiões hindus, sujeição em que fica a alma a um encadeamento de causas, isto é, cada existência servindo de motivação para a seguinte (teoria da reencarnação), gerando bom ou mau carma, que deve ser contado como causa de processo espiritual, no primeiro caso, e justifica sofrimentos e lutas (lições) no segundo caso. Lei de ação e reação.

[14] Conforme a religião budista, um estágio no qual não há mais desejo - deixando, portanto, de haver sofrimento.

[15] Idade, ciclo, era, tempo de duração contínua. (Notas do Tradutor)

[16] Pintor grego, um dos mais ilustres artistas da Antiguidade (464-598 a.C.). (N do T)

[17] Substância negra com que as orientais pintam olhos e pálpebras. (N do T.)

[18] Um dos deuses do Egito antigo, protetor dos mortos, esposo de Íris, pai de Horo. (N. do T.)

[19] Referência ao Êxodo, isto é, à saída dos judeus das terras do Egito, conduzidos por Moisés. A cada ano se renova a alegria da libertação, nas festas da Páscoa judaica. (N. do T)

[20] Ao alcançar os treze anos de idade o rapazinho judeu, através de determinada cerimônia de caráter, religioso, passa à categoria de adulto, reunindo-se aos homens em suas orações especiais. É como que a Confirmação, entre os cristãos. (N. do T.)

[21] Uma das demonstrações de desgosto entre os judeus era cobrir a cabeça com cinzas. (N. do T.)

[22] Adeptos da doutrina filosófica de Zerda, cujo ideal é obedecer às circunstâncias exteriores, como sofrimento, fortuna, saúde etc. (N. do T.)

[23] Célebre escultor da Antiguidade que, tendo realizado obra perfeita com a estátua de Galatéia, obteve de Vênus que lhe desse vida, casando-se com ela, segundo a lenda (N. do T.)

[24] Centauro, Figura mitológica, metade cavalo, metade homem, filho de Saturno, muito versado na arte de curar, considerado, por isso, protetor dos médicos e íntimo dos deuses na medicina. (N. do T.)

[25] Estrela cujo brilho aumenta muitíssimo em pequeno período de tempo e, atingindo um máximo de resplandecência, vai diminuindo lentamente seu fulgor até voltar ao primitivo, ou mesmo chegar abaixo dele (N. do T.)

[26] Lucrécio, poeta latino (98-53 a.C., aproximadamente), autor do poema Da natureza das casas (Em latim, no original.) (N. do T)

[27] Cidade. No caso, a cidade por excelência, Roma. (N. do T)

[28] A língua latina falada pelo povo. Com maiúscula significa a versão latina da Bíblia, feita por Jerônimo. (N. do T)

[29] Historiador latino, pessimista, mas de extrema originalidade de estilo (55-120 d.C., aproximadamente). (N. do T.)

[30] Um dos nomes de Minerva, deusa da sabedoria, considerada em seu aspecto de deusa da guerra. (N. do T)

[31] Filho de Mercúrio, deus que presidia os rebanhos. Acompanhava suas danças com uma flauta que ele próprio inventara, tinha cornos e pés de cabra. Temia-se sua aparição, daí a expressão "terror-pânico", para significar um medo violento e súbito. Mais tarde passou a significar o Grande Todo, a Vida Universal. (N. do T)

 

                                                                                 CONTINUA  

 

                      

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