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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MEIA NOITE / Richard Zimler
MEIA NOITE / Richard Zimler

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

MEIA NOITE ou O PRINCÍPIO DO MUNDO

Primeira Parte

 

Um vento violento trazia a chuva do mar enquanto eu me dirigia para casa pelas calçadas íngremes e escorregadias da minha adorada cidade do Porto.

Estávamos em Maio de 1798, um mês depois do meu sétimo aniversário. Cuidadosamente arrumados dentro do meu cesto de verga, estavam dois rolos de musselina azul‑indigo que eu tinha concordado em ir buscar para a minha mãe ‑ mas apenas em troca de um favor, devo confessar. Se esta chuva salpicasse um fio que fosse do seu tecido, ela iria resmungar para consigo durante toda a noite e recusar‑se a fazer o meu doce preferido. Daí que, não tanto para continuar a proteger as mercadorias em si, mas tendo em consideração a minha gulodice, procurasse um abrigo.

Uma certa desconfiança herdada em relação a todas as coisas religiosas levou‑me a escolher a velha livraria do Senhor David, em vez da capela caiada na porta ao lado, para esperar que a tempestade acabasse. Quando entrei pela porta baixa, o Senhor David incitou‑me a deixar o cesto atrás da escrivaninha dele e a descalçar as botas encharcadas, que pendurou por cima da grade de ferro ao pé da lareira.

‑ Senhor David ‑ perguntei ‑, posso ir para as Ilhas Britânicas?

‑ Vai lá, rapaz! ‑ respondeu ele sorrindo.

Corri pelo soalho que rangia para a bafienta sala do fundo onde ele guardava o seu tesouro de livros ingleses, a que o meu pai e eu, desde que me consigo lembrar, chamávamos as Ilhas Britânicas.

Devo explicar que, embora eu tenha nascido no Porto, uma cidade provinciana com sessenta e cinco mil almas no Norte de Portugal, o meu pai tinha tido a honra ‑ como ele tantas vezes dizia ‑ de ter nascido escocês. Eu ainda não me tinha apercebido disso, mas, quando falava inglês, fazia‑o com uma pronúncia claramente escocesa.

Com estantes carregadas de livros, mofo e aranhas de patas fininhas, estas Ilhas Britânicas eram abençoadas pela abundância, mas, infelizmente, não se podiam gabar de ter uma janela decente, salvo a pequena clarabóia octogonal no tecto baixo e curvo.

A chuva fustigava o vidro amarelecido, provocando um tamborilar muito semelhante ao de ratos a correr de um lado para o outro.

Estava tão escuro que eu mal conseguia ver as minhas próprias mãos e estava precisamente a pensar pedir uma vela quando, repentinamente, o Sol espreitou por entre as nuvens, iluminando uma estante encostada à parede. Aproximando‑me, consegui ver que um dos títulos estava gravado em cintilantes letras douradas ‑ As Fábulas da Raposa. Como não havia nenhum nome do autor impresso na capa e, uma vez que eu era dado a voos de fantasia, imaginei que tinha sido uma raposa inteligente que as escrevera.

O Sol desapareceu e ficou tudo escuro outra vez. Enxotei o Hércules, o gato malhado que o Senhor David possuía para afugentar as ratazanas, sentei‑me na serradura do chão e abri o livro. Lá dentro, as espessas páginas amarelecidas tinham desenhos coloridos de cães, gatos, macacos, elefantes e muitos outros animais ‑ uma espécie de Arca de Noé. Fiquei tão excitado com a minha descoberta que só consegui ler as primeiras frases de cada história. Desejando perguntar o preço ao Senhor David, mas assustado com a perspectiva de uma soma acima das minhas posses, levantei‑me para pensar nas minhas opções. Foi nessa altura que uma folha de papel azulado, delicado como a asa de uma borboleta, caiu das páginas do livro, flutuando até pousar em cima do meu pé direito.

Apanhei‑o e olhei sub‑repticiamente em volta. O Senhor David estava sentado à secretária a fumar o seu cachimbo, esfregando distraidamente a cabeça careca com a mão enquanto estudava um mapa enorme. O Hércules tinha‑se enroscado no colo dele.

Meti‑me no canto mais escuro da sala e vi que segurava uma carta escrita numa letra elegante, dirigida a uma mulher chamada Lúcia. Começava Minha adorada, considerar‑me‑ias demasiado atrevido se dissesse que todas as noites caio nos braços do sono imaginando a tua mão sobre o meu coração?

A seguir, li sobre lábios húmidos, luar, desmaios e flores de laranjeira. Reconheci a palavra seios... Que emocionante aquilo parecia! Todavia, muitas outras palavras eram‑me desconhecidas. Precisaria de um dicionário para saber até que ponto aquela carta poderia ser arrojadamente chocante.

Estava assinada com um grande floreado por um homem chamado Joaquim. Ele até fazia a pintinha do i como um coraçãozinho minúsculo.

Perguntei para comigo se As Fábulas da Raposa teriam sido um presente de Joaquim para Lúcia. Se calhar, ela tinha ficado aborrecida e vendera o livro ao Senhor David, esquecendo‑se de que tinha escondido a carta do seu pretendente lá dentro.

Uma vez que não tinha data, os dois apaixonados podiam muito bem já ser avós agora. Embora também fosse possível que ainda fossem solteiros e estivessem naquele preciso momento a planear o próximo encontro secreto no cimo da Torre dos Clérigos, a trinta e muitas braças das ruas da cidade.

Meti a carta na algibeira dos calções, enfiei uma golfada de ar bafiento nos pulmões para ganhar coragem e avancei decididamente para o Senhor David. Entregando‑lhe o livro tão inocentemente quanto o meu coração aos saltos no peito permitia, larguei‑lhe na palma da mão enorme todas as moedas de cobre que tinha na minha posse naquele momento: exactamente quatro moedas de cinco réis. A julgar pelo seu nariz franzido, esta grande soma de vinte réis não andava sequer perto do necessário. Implorei‑lhe que me deixasse ir pagando o livro aos poucos todas as semanas, deitando‑lhe um olhar desamparado, como era meu hábito quando lidava com um adulto.

‑ É‑me completamente impossível, John ‑ disse ele, abanando a cabeça. ‑ Se eu fizesse negócios a crédito, não tardaria a ficar pobre.

‑ Por favor, por favor, por favor... eu pago‑lhe o resto num mês ‑choraminguei eu, sem fazer a menor ideia de como poderia cumprir aquela promessa, mas sem querer ver as fábulas tão lindamente ilustradas fugirem‑me.

Claro que podia ter‑me ido simplesmente embora com a carta na algibeira, mas não conseguia pensar em possuí‑la sem o livro. Isso teria sido roubo.

Sabendo que ele estava prestes a recusar de novo, recorri a todos os meus dotes teatrais e assumi a expressão de um órfão indigente. O Senhor David soltou uma gargalhada, visto que já estava à espera disso. No entanto, como recompensa pelo meu esforço, concordou com a minha oferta, dando‑me uma palmadinha na cabeça, enquanto me dizia, à laia de aviso:

‑ Se não fores capaz de cumprir o nosso acordo, fico contigo como pagamento e depois, não tenhas ilusões, mando a minha mulher cozinhar‑te para o jantar!

‑ Como sou quase só ossos e nariz, vou ter o sabor de uma gaivota ‑ saiu‑me como resposta, e esta por qualquer razão agradou tanto ao Senhor David, que ele voltou a rir‑se e, puxando um banco, aconselhou‑me a examinar a minha nova compra enquanto esperava que a tempestade passasse.

E foi assim que comecei a ler a primeira das fábulas, particularmente digna de ser recordada «O Rato, a Rã e a Águia», cuja moral é: Aquele que persegue o mal, persegue‑o até à sua própria morte.

Quando o Sol voltou, meia hora mais tarde, agradeci ao Senhor David, enfiei as botas e corri para casa. Depois de ter recebido grandes elogios da minha mãe por ter tomado tão bem conta do seu tecido, subi dois a dois os degraus da escada até ao meu quarto, onde eu e a carta podíamos estar sozinhos.

Paguei os meus tesouros um mês depois, tal como tinha prometido, com moedas ganhadas a ajudar o meu pai a limpar o seu escritório e a nossa arrecadação.

Dormi com o livro e a carta debaixo do colchão durante meses. Os dois objectos tornaram‑se tão inseparáveis na minha cabeça como os próprios Joaquim e Lúcia.

O mais provável era a minha mãe ter descoberto a carta enquanto arrumava o meu quarto, mas nunca o mencionou. Anos mais tarde, ofereci‑a à minha noiva ‑ juntamente com As Fábulas da Raposa ‑ como prenda de casamento.

Quando ela morreu, agarrei‑me a elas como se me pudessem salvar de um naufrágio.

Desde a compra de As Fábulas da Raposa, tenho estragado a vista com milhares de noites passadas a ler à lareira ou na cama à luz de uma vela. Uma longa familiaridade com a arte de contar histórias tornou‑me consciente de que um conto como o que estou prestes a contar deve ter um homem ou uma mulher generosos ou com um coração particularmente corajoso. E, no entanto, sinto que me falta tudo para esse papel. Além disso, não confio nos meus talentos para fazer um relato exacto dos acontecimentos que me trouxeram de Portugal para a América.

Por isso, sinto que a forma mais correcta e mais honesta de começar é com um rapaz de doze anos chamado Daniel, que tive a sorte de conhecer por acaso há cerca de vinte e quatro anos. Foi ele que pôs em movimento as ondas que mais tarde me iriam fazer atravessar o oceano Atlântico até à América. Se mereço o papel central nesta história, é, em parte, devido ao exemplo corajoso que ele me deu.

Enquanto me preparo para escrever sobre Daniel e muitas outras coisas mais, dou por mim a especular na mensagem secreta que pode flutuar das páginas deste meu conto e cair aos vossos pés. Só posso esperar que o que quer que chegue às vossas mãos encontre um coração aberto e uma alma livre de preconceitos.

 

Embora fosse uma criança de roupas esfarrapadas e sem maneiras, Daniel teve sempre um lugar especial no meu coração. Se a nossa vida em conjunto tivesse sido um romance de aventuras, ele teria continuado a praticar durante muitas horas, à luz da candeia, para se tornar, na última página, um grande e célebre escultor. Mas a vida, como o meu pai costumava dizer, é, na melhor das hipóteses, um jogo da Papisa Joana jogado numa mesa viciada, com o jogador que dá as cartas a esconder as melhores nos folhos da manga. E, por isso, o meu amigo foi impedido de conseguir realizar essas maravilhas.

Se a sorte lhe tivesse sorrido, ou, mais importante ainda, se eu, John Zarco Stewart, tivesse tido mais força nos braços, a minha própria vida também poderia ter lucrado com a proximidade. Afinal de contas, muitas vezes só compreendemos os efeitos que tivemos sobre as pessoas que amamos muitos anos depois.

Conheci Daniel em Junho de 1800, quando tinha nove anos. Já tinham passado mais de dois anos desde a minha descoberta de As Fábulas da Raposa nas Ilhas Britânicas. Saíra cedo, alimentado apenas com uma chávena de chá e uma côdea de pão de trigo que tinha barrado de mel e devorado ‑ para grande desagrado da minha mãe ‑ num instante.

O meu destino era um laguinho ‑ ou tarn(1), como o pai lhe chamava ‑ muito para lá das muralhas da nossa cidade, na zona interior coberta de árvores ao longo da estrada para Vila do Conde. Era um sítio magnífico para observar todos os tipos de aves, especialmente logo a seguir ao amanhecer. Naquele tempo, tal como ainda hoje, eu era um grande amante daquelas lindas criaturas de penas, ar e luz ‑ assim como um grande apreciador e imitador do canto das aves.

 

*1. Tarn ‑ termo escocês para pequeno lago. (N. da T.)

 

Nessa altura, se eu tivesse podido suplicar a Deus um bico e asas, de certeza que teria pensado em tornar‑me numa delas.

Já me estava a aproximar dos degraus de granito ao fundo da nossa rua que levam à zona ribeirinha, quando me chegaram uns gritos roucos vindos de um beco ali perto. Correndo para lá a toda a velocidade, descobri a Tia Beatriz, uma lavadeira viúva a quem entregávamos os nossos lençóis sujos todas as quartas‑feiras, estendida nas pedras da calçada em frente da porta de casa. Ganindo como um cão espancado, tinha os joelhos ossudos puxados para a barriga para se proteger. Um bruto de peruca e libré de cocheiro erguia‑se ameaçadoramente sobre ela, a cara contorcida de raiva.

‑ Sua cadela desleixada! ‑ gritava ele, praticamente a cuspir as palavras. ‑ Sua Marrana mentirosa e ladra!

Marrana era uma palavra nova para mim. Mais tarde, o meu professor informou‑me que significava duas coisas, porca e judia convertida, um epíteto que me tinha confundido uma vez que eu nunca tinha ouvido descrever a Tia Beatriz como outra coisa que não uma boa alma cristã. De facto, eu tinha apenas uma ideia muitíssimo vaga do que poderia ser um judeu, pois, embora a minha avó me tivesse falado deles em duas ou três ocasiões, eu não tinha aprendido nada mais do que algumas lendas em que feiticeiros judeus pareciam estar sempre a frustrar as acções de reis execráveis com as suas rezas mágicas.

Agora, o malvado cocheiro terminava a sua diatribe rosnando:

‑ Vou‑te vender para fazer cola, sua meretriz preguiçosa!

A seguir, depois de ter dado vários pontapés na Tia Beatriz, agarrou‑lhe os cabelos ralos, preparando‑se para lhe bater com a cabeça contra as pedras da calçada.

O coração pulsava‑me violentamente de encontro às costelas e estava a sentir‑me tonto. Perguntei para comigo se deveria soltar um grito e se este conseguiria voar por cima dos telhados que me separavam do meu pai e acordá‑lo. Naqueles tempos, eu estava completamente convencido de que ‑ com os seus oito palmos e meio de altura ‑ ele possuía o poder invencível de restabelecer a ordem no mundo inteiro.

Teria certamente dado voz a este grito de gelar o sangue se, vinda de nenhures, uma pedra não tivesse atingido o bruto na cara. Tinha sido atirada com tanta pontaria e com uma força tão certeira que o malfeitor cambaleou para trás com o choque. Caído sobre um joelho, pareceu desorientado com o que acontecera até dar com a pedra culpada caída inocentemente junto dos seus pés. Olhando em volta à procura do voluntarioso David que se atrevera a desafiá‑lo, depressa fixou em mim um olhar ultrajado. Com a minha camisa branca de folhos, calções pretos com riscas vermelhas e botas de fivelas, eu era um inimigo muito improvável. Naquele tempo, eu tinha mesmo canudos angelicais e aquilo a que o meu pai chamava «olhos de corça» cinzento‑azulados. Mesmo assim, recuei vários passos e comecei aos soluços ‑ uma reacção provocada pelos nervos que já tivera muitas vezes.

Tencionava fugir se ele me ameaçasse, mas, em vez disso, desviou o olhar para um rapazito no outro lado da rua. Este parecia ser mais velho do que eu uns bons três anos e vestia uma camisa rota e calções muito sujos. Os pés descalços estavam tão porcos que pareciam raízes arrancadas do solo. Tinha a cabeça rapada.

Estávamos no princípio do Verão de 1800 e, apesar da alvorada de um novo século, ainda era uma época em que as crianças nunca falavam aos adultos sem primeiro terem sido convidadas a fazê‑lo. Uma pedra atirada por um enjeitado miseravelmente vestido a um cocheiro de libré ao serviço de um homem rico equivalia a uma heresia.

O ferido levantou‑se com dificuldade, apalpando a cara com as pontas dos dedos. Olhando sem querer acreditar para o sangue que ficara na mão, atirou‑se para a frente.

‑ Seu filho‑da‑mãe! ‑ balbuciou.

Reunindo a sua força enfraquecida, atirou a pedra com um grunhido. O projéctil voou por cima e para lá do seu alvo, fazendo ricochete na fachada da casa que pertencia ao Tio Aurélio, o sapateiro. Aquele foi o último acto que o nosso malfeitor ia tentar nesse dia. Os olhos reviraram‑se‑lhe nas órbitas e ele caiu desamparado, a cabeça batendo no chão com um ruído surdo que não augurava nada de bom.

Eu tremia de medo e excitação. Nunca me tinha sentido tão vivo. Imaginem ‑ uma pedra atirada por um gaiato sujo derrubar um brutamontes horrendo a menos de duzentos passos da minha casa!

A Tia Beatriz estava a levantar‑se, os braços apertados à volta da barriga como se estivessem a proteger uma criança por nascer. Sacudia a cabeça, muito confusa, claramente a tentar perceber o que tinha acontecido. O sangue escorria‑lhe do lábio superior até ao queixo; um dos olhos estava inchado e fechado e, mais tarde, iria infectar. Tornou‑se um berlinde leitoso com um centro cinzento enevoado até ao resto dos seus dias.

Daniel correu para ela, mas ela abanou uma mão trémula para o fazer parar.

‑ Vai para casa ‑ disse ela, limpando a boca. ‑ Falamos mais tarde. Vai‑te embora daqui antes que haja mais sarilhos. Por favor.

Ele abanou a cabeça.

‑ Não vou. Pelo menos, enquanto aquele pedaço de merda não for varrido para um monte de estrume ‑ disse ele apontando o vilão.

A pronúncia de Daniel identificava‑o como um morador da zona ribeirinha. Senti inveja da forma como ele parecia feito para o Porto, uma cidade que tinha a sua quota‑parte de clubes de cavalheiros e jardins formais, mas que tinha, no seu coração, um labirinto de vielas escuras frequentadas por bufarinheiros, catraios e ladrões de pouca monta.

‑ Daniel, ouve o que te digo ‑ replicou a Tia Beatriz, respirando com dificuldade. ‑ Tens de sair da cidade. Daqui a dois dias, encontra‑mo‑nos em tua casa. Por favor, antes que haja sarilho...

A mulher teria continuado a suplicar, mas os vizinhos começavam a juntar‑se. Pouco depois, um grupo de homens ‑ uns ainda com as roupas de dormir, outros com o peito nu ‑ tinham formado um círculo em redor do cocheiro caído.

‑ Está morto? ‑ perguntou o Mestre Tomás, o carpinteiro, ao cunhado Tiago, o pedreiro, que tinha colocado as costas da mão em cima do nariz do homem para ver se sentia alguma respiração.

Várias vizinhas corriam agora a ajudar a Tia Beatriz, levantando‑a e fazendo perguntas sobre o homem e o que o fizera ficar tão furioso. Aproximei‑me do grupo dos homens.

‑ Não, ainda está vivo ‑ respondeu Tiago desapontado. Um começo perfeito para um dia de coscuvilhice teria exigido um assassinato, evidentemente.

A Tia Maria Mendes, que tinha a compleição física de um touro, abriu caminho por entre os homens e cuspiu na cara do vilão sem sentidos.

‑ Porco! ‑ gritou ela.

‑ E tu aí, filho! ‑ gritou Tiago, o pedreiro, para Daniel. ‑ Por amor de Deus, o que é que pensas que estás a fazer a atirar pedras às pessoas?

‑ Espera aí! ‑ interveio o Tio Paulo, o latoeiro, em defesa do rapaz. ‑ Ele só estava a ajudar a Tia Beatriz.

‑ Mas com uma pedra do tamanho de uma laranja! ‑ exclamou o Tio Alberto.

‑ Se eu tivesse uma faca, tinha cortado a garganta do cocheiro! ‑ exclamou um homem que eu não conseguia ver.

‑ Tinha‑lhe arrancado os olhos! ‑ declarou outro.

Os homens alardearam a sua coragem dizendo o que teriam feito ao brutamontes se eles tivessem chegado a tempo. As mulheres escarneceram da pouca utilidade de qualquer um deles em alturas em que eram realmente precisos. Ai de mim! nada disto servia para ajudar quer a Tia Beatriz quer Daniel, que olhavam um para o outro como se fossem as duas únicas pessoas na rua. Ela estava a ser levada a coxear para casa, claramente mais preocupada com o rapaz do que consigo mesma. Isto impressionou‑me e interroguei‑me há quanto tempo eles se conheceriam.

Os homens começaram a exigir que Daniel saísse do bairro.

‑ Vais acabar por ser chicoteado se não te puseres a andar daqui para fora antes de eu contar até cinco! ‑ gritou Tiago, o pedreiro. ‑ Não pertences aqui, rapaz!

Isto pareceu‑me muito injusto. Com nove anos de idade, eu não sabia que Daniel podia estar a correr um perigo sério. Naqueles tempos, até um rapazinho podia ficar com a cabeça empalada num poste de madeira de carvalho se o maldito cocheiro morresse e se o testemunho da Tia Beatriz não fosse suficiente para justificar o acto dele. Eu também não sabia que um conde, cujos calções de damasco azul não tinham sido lavados, esfregados, engomados e perfumados a tempo, cujo gibão de brocado manchado de vinho ainda estava pendurado como um morcego encharcado pela chuva numa corda no quintal das traseiras da Tia Beatriz, tinha o direito de mandar o cocheiro bater na lavadeira faltosa até a deixar quase sem sentidos. Qualquer pessoa que não estivesse satisfeita com este tipo de justiça podia enviar o seu protesto escrito ao Bispo, à nossa louca rainha Maria ou até mesmo ao papa Pio VII, que, ainda que se compadecesse, estaria demasiado ocupado a evitar ser capturado por Napoleão para abrir quaisquer communiqués do estrangeiro. Em resumo, uma pessoa podia mandar uma carta a quem muito bem entendesse, porque não teria o menor efeito.

Não, eu não sabia estas coisas e, por isso, quando vi o pedreiro Tiago confrontar Daniel, fiquei indignado.

O garoto olhava para os pés, confuso. Tal como eu, tinha estado à espera de elogios.

‑ Meu Deus, eu só queria ajudar ‑ acabou por dizer. ‑ Tive de o fazer. Caso contrário, ela estaria mais morta que um tambor.

O Daniel tapou os olhos com a mão, não querendo chorar à frente dos homens, depois esfregou as têmporas com os polegares, como se quisesse banir pensamentos indesejados ‑ era um gesto de angústia que eu viria a conhecer muito bem nos anos seguintes. Com uma maturidade que achei extraordinária, disse então:

‑ Acho que me vou embora. Bom dia a todos. Antes de se afastar, foi buscar a pedra.

‑ Deixa ficar isso, rapaz ‑ aconselhou Tiago, esticando o dedo num aviso. ‑ Já causaste estragos suficientes por um dia.

Mesmo assim, Daniel agarrou na pedra, dando origem a mais censuras da parte de Tiago e dos outros. O que deu mais força à minha solidariedade para com ele naquele momento foi o couro cabeludo rapado, numa clara tentativa de lhe libertar a cabeça de piolhos. O corte de cabelo era infeliz, pois fazia‑o parecer doente e pobre, levando estes homens a agirem mais duramente do que seria justificado. Se ele tivesse canudos louros a caírem‑lhe na gola vermelha de um casaco de seda caro, o caso podia ter acabado com palmadinhas nas costas.

Corri para eles.

‑ Mestre Tiago ‑ gritei. ‑ Mestre Tiago, a Tia Beatriz estava a ser espancada. O malvado estava a dar‑lhe pontapés!

‑ John, vai já para casa ‑ disse ele, franzindo as sobrancelhas, desagradado.

‑ Ela estava ferida ‑ gritei eu ‑ e tinha o olho quase fechado. Estava grande e inchado. Não viram? Foi uma maldade fazer‑lhe isso. O homem, era... era um bloody poltroon.

Disse as últimas palavras em inglês; era o termo do meu pai para um miserável cobarde e não consegui lembrar‑me de nada em português que se lhe comparasse.

Sentindo pelo olhar de Mestre Tiago que ele não me compreendera, tentei freneticamente encontrar uma tradução correcta. Mas ele tinha outros planos e agarrou‑me pelo braço.

‑ Anda, filho, vou levar‑te à tua mãe ‑ disse ele, os olhos a cintilarem de rectidão.

‑ Se não me largar...! ‑ gritei‑lhe.

‑ O que é que acontece? ‑ perguntou ele, rindo.

Pensei em dar‑lhe um pontapé no sítio em que o tecido das calças puídas se espetava sugestivamente para a frente, mas percebi que isso ainda me meteria em mais sarilhos.

‑ Faça troça de mim, se lhe apetecer ‑ declarei, a tremer, tentando imitar a voz do meu pai ‑, mas se não deixar este rapaz em paz...

Pequeno como era, não conseguia encontrar uma conclusão apropriada para aquele prometedor começo de ameaça. E ainda não tinha conseguido libertar o braço da mão peluda de Mestre Tiago.

Contudo, Daniel tornou desnecessário o remate à minha frase ameaçadora. Tomando balanço, atirou a pedra à cara tirânica de Mestre Tiago, mas a meia velocidade, por assim dizer, o que lhe deu tempo para se desviar.

O pedreiro atirou‑se ao chão, desistindo de me manter agarrado.

‑ Mexe‑te! ‑ gritou‑me Daniel, abanando furiosamente os braços. ‑ Mexe o rabo e corre, estás livre!

 

Por VEZES, penso que a esperança não pertence unicamente a cada um, que existe como um éter que se infiltra dentro de nós no momento do nascimento. Ultimamente, cheguei mesmo à conclusão improvável de que a natureza nos concede mãos e pés, olhos e ouvidos, para que possamos trabalhar como servos leais desta ilimitada neblina de esperança, realizando, quando somos capazes, a alquimia delicada de a transformar em realidade tangível ‑ dando‑lhe forma e importância, por assim dizer. Por isso, quando me vi livre do aperto de Mestre Tiago, servi a esperança tão bem quanto o meu jovem coração sabia e disparei pela rua acima, cheio de uma alegria selvagem, sem prestar atenção às ordens gritadas atrás de mim, desejando apenas tornar‑me amigo do rapaz rebelde que me ajudara.

Apanhei Daniel fora das portas da cidade.

‑ Para que é que me estás a seguir, carago? ‑ gritou‑me.

Sem saber o que dizer, arrastei‑me tristemente atrás dele. Finalmente, num tom estridente, disse que queria agradecer‑lhe por me ter libertado de Tiago, o construtor de telhados.

‑ És uma toupeirinha esquisita ‑ disse ele.

‑ Não, não sou ‑ repliquei eu, magoado, porque ainda não sabia que ele tinha razão.

Num tom de voz monótono, cantarolou: Esquisito e pequenito, corajoso e faladoso...

Era uma rima para me descrever, tinha a certeza, e a última palavra, faladoso, era claramente uma invenção dele.

Naquele momento, comecei a acreditar que ele era capaz de ser esperto. Dirigiu‑me um sorriso matreiro e deitou‑me a língua de fora. Faltava‑lhe um dos caninos, o que lhe dava um ar um bocado cómico. Naquela altura, eu não conhecia nada de Shakespeare, mas agora posso facilmente imaginar que Puck foi escrito a pensar num actor com o temperamento de Daniel.

Depois falou‑me do pai pescador, que estava na Terra Nova. O rapaz ia juntar‑se‑lhe dali a dois anos, quando fizesse catorze anos. Disse‑me que a mãe era costureira numa modista na Rua dos Ingleses, uma das nossas ruas mais elegantes.

‑ Ela faz coisas para todas as esposas dos comerciantes mais ricos ‑ vangloriou‑se ele.

Apercebendo‑se da minha suspeita de que isto era um exagero, dado o estado da sua roupa, acrescentou com grande confiança:

‑ Uma vez, a minha mãe fez um vestido para a rainha Dona Maria. Comprido e cor de púrpura, com rendas por toda a parte. Nunca se viu tanto tecido. Merda, até se podiam vestir duas ou três vacas com ele.

Eu teria gostado de saber mais sobre as semelhanças entre vestir a rainha Dona Maria e uma pequena manada de gado, mas ele adiou as minhas perguntas ao apontar para a sua casa logo ali à frente ‑ uma choça coberta de musgo, numa rua estreita e escura ao pé do rio. Um emaranhado de madressilva serpenteava pela fachada acima e amontoava‑se no cimo do telhado e as abelhas zumbiam pelo meio das flores perfumadas. Daniel tirou uma chave da algibeira. Entrámos numa divisão minúscula, que não era maior do que cinco passos de um homem de um lado ao outro. O tecto vergava ao meio e estava coberto de um bolor preto e penugento que deitava um cheiro rançoso. Tive medo de ser soterrado vivo, mas ele empurrou‑me para dentro.

Um tapete com motivos florais desbotados estendia‑se em cima do chão de tijolos rachados até à chaminé na parede do fundo. Na água de uma escudela de madeira colocada à frente dela, flutuavam umas folhas de couve castanhas e desfeitas. Um crucifixo de granito por cima da lareira despertou‑me a atenção. O rosto do Salvador tinha sido pintado por cima com uma variedade de cores horríveis. Nunca perguntei a Daniel quem tinha feito aquilo, mas, agora, creio que ele era o culpado mais provável. Nós não tínhamos nem cruz nem rosário em nossa casa, pois o meu pai rejeitava todo e qualquer objecto do Cristianismo por os considerar símbolos de superstição.

Levantando as sobrancelhas maldosamente, Daniel levou‑me para uma divisão ligeiramente maior, onde uma janela aberta na parede do fundo deixava passar uma luz sombria. Havia dois colchões grosseiros colocados um em cada um dos cantos exteriores. Daniel saltitou, com pequenos saltos hábeis pelo meio da porcaria espalhada pelo chão, e conseguiu chegar a uma arca feita de tábuas. Abrindo‑a, tirou para fora uma máscara de madeira, toscamente esculpida, com um focinho bulboso e buracos no lugar dos olhos. Dois paus em forma de V tinham sido espetados na testa proeminente, figurando hastes pontiagudas. A boca era uma fenda sombria.

Ele pô‑la na cara e ficou transformado numa criatura da floresta. O coração caiu‑me aos pés.

‑ Tens de ter cuidado. Transformarmo‑nos em animais pode ser perigoso ‑ disse‑lhe.

‑ É só uma máscara, palerma ‑ respondeu, oferecendo‑ma. Agarrei nela e espreitei pelos olhos. Daniel disse‑me que tinha sido

ele que a fizera. Quando lhe perguntei como, tirou da arca um cinzel de ferro, duas facas curtas e macetes de vários tamanhos.

‑ Onde é que arranjaste isso tudo?

‑ Comprei umas coisas com o que ganho a recolher roupa para a Tia Beatriz lavar. Pedi outras a um tanoeiro que conheço. Ele dá‑me as coisas de que não precisa.

‑ Trabalhas para a Tia Beatriz?

‑ Trabalho.

Icei‑me para chegar à borda da arca. Uma vintena de máscaras estavam aninhadas no meio das roupas velhas. Umas tinham hastes, outras chifres. Umas quantas tinham bocas dentadas, como os dentes de um lobo, e uma tinha o focinho comprido de um mosquito.

Resolvemos levar connosco as máscaras de uma rã e de um veado para o meu laguinho à saída do Porto. Daniel tirou também de debaixo da almofada de palha uma minúscula bolsinha de lona que abria e fechava puxando um fio. Pô‑la ao pescoço.

‑ Tem um talismã lá dentro ‑ explicou‑me. ‑ Foi um monge que o escreveu para a minha mãe me dar. Ela diz que tenho de o usar para me proteger quando saio da cidade, porque há muitas bruxas escondidas no campo. Ela diz que elas têm cabelos como as crinas dos cavalos e cheiram como os alhos‑porros.

Daniel abriu a bolsa e tirou um pedaço de papel castanho e velho, dobrado em quatro.

‑ Não sei ler... lê‑mo ‑ disse‑me ele, abrindo‑o.

O talismã estava escrito numas garatujas mal feitas e dizia:

Divino Filho da Virgem Maria, que nasceu em Belém, um Nazareno, e que foi crucificado para que nós pudéssemos viver, suplico‑te, ó Senhor, que o meu corpo não possa ser apanhado nem morto pelas mãos do destino. Se algum mal me seguir para me levar ou roubar, que os seus olhos não me vejam, que a sua boca não me fale, que os seus ouvidos não me ouçam, que as suas mãos não me agarrem, que os seus pés não me alcancem. Que eu esteja armado com a espada de São Jorge, coberto com o manto de Abraão e navegue na arca de Noé.

Fiquei muitíssimo impressionado e voltei a lê‑lo enquanto ele enfiava os sapatos de couro manchado e agarrava numa manta puída para o caso de ficar frio no bosque, pois pensava passar lá a noite.

O caminho que seguimos para sair da cidade fez‑nos passar pelo mercado de aves junto ao Convento de São Bento. Eram tão comoventes os pios de tristeza que vinham das cotovias e dos tordos engaiolados na fila de barracas de madeira a cair, que as minhas mãos se cerraram em punhos.

‑ Gostava de dar cabo disto! ‑ declarei.

Daniel chamou‑me com um palavrão e eu pensei, erradamente, que ele não tinha reparado na minha cólera. Ao pé do cercado do gado, vimos um homem de cabelo comprido, magro e bem constituído, que vestia uma capa coçada, um vestuário muito pouco prático no calor de Junho. Virando um cesto de verga, o homem subiu lá para cima. A pele das mãos e da cara era branca como um lençol. Agachando‑se como se estivesse a lutar com um dragão, começou a gritar que o corpo de Cristo era o único caminho para a redenção. Parámos para escutar e ouvimo‑lo anunciar que todos os judeus, protestantes e pagãos seriam expulsos do Porto. Nós, aqueles que ficássemos, iríamos acabar por viver numa Cidade de Deus depois de termos bebido o Sangue do Salvador.

‑ Lixo, vermes, excrementos do diabo! ‑ gritou ele. ‑ Temos de atirar todos os Marranos para o esterco e acabar com eles de uma vez por todas!

Lá estava outra vez aquela palavra ‑ marranos. Exasperava‑me não saber o seu significado. E tinha‑a ouvido duas vezes no mesmo dia.

Daniel abanou a cabeça quando lhe perguntei o que é que aquilo podia querer dizer e puxou‑me para longe dali. Nesse preciso momento, o pregador parou com o seu discurso inflamado. Sentindo curiosidade por causa do súbito silêncio, voltei‑me para trás e dei com ele a olhar directamente para mim. Arreganhando os dentes num sorriso, fez‑me sinal para me aproximar para mais perto dele ‑ ou, pelo menos, foi o que me pareceu naquela altura. O meu coração batia com toda a força, a avisar‑me.

Um homem atarracado com uma pena no chapéu levou uma cabra presa por uma corda, um laço corrediço no pescoço, até ao pregador.

‑ Sob a aparência de uma cabra vem o diabo! ‑ disse o pregador à multidão. ‑ E sob a aparência do diabo vem o Judeu!

Tirando uma faca enegrecida do casaco, saltou de cima do cesto. Quando a espetou no flanco da pobre criatura, esta guinchou e estremeceu e depois caiu de joelhos. O sangue jorrou da ferida como a água de um odre. Levando as mãos a esta fonte viva, o pregador lambuzou a cara e o cabelo com o sangue, levantou os braços e invocou o Senhor para que presenciasse este sacrifício. Gritos de terror perfuraram o ar enquanto os espectadores dispersavam em todas as direcções.

Reparando no meu medo, Daniel disse‑me:

‑ John, qualquer velho safado com uma faca enferrujada consegue matar uma cabra. Anda! Vamos embora.

‑ Mas ele conhece‑me. Olhou para mim.

Daniel soltou um suspiro teatral e respondeu que eu devia ter‑me enganado. Iriam passar vários anos até que eu visse a ligação entre este vendedor de ódio e o espancamento da Tia Beatriz.

Na minha juventude, pensava que não podia haver maior dom do que ser capaz de falar com os animais. Por isso, mal chegámos ao nosso lago, parei e imitei o chamamento de um guarda‑rios que lobriguei no alto de um carvalho. Quando parei de chamar, a minha amiga ave contemplou a água a uma distância de poucos passos. Então, sem qualquer aviso, lançou‑se para baixo como uma seta com asas, mergulhando na água e desaparecendo.

‑ O que é que lhe aconteceu? ‑ exclamou Daniel.

‑ Já vais ver.

Emergindo segundos depois, nada afectada pelo mergulho, a ave voltou a voar para a sua árvore, um peixinho prateado a contorcer‑se preso no bico. Quando me voltei para partilhar a minha alegria com Daniel, estava à espera de ver o seu sorriso matreiro, mas ele estava a soluçar.

Observei‑o sem dizer uma palavra, com as mãos a taparem‑lhe os olhos, uma vez que tinha a certeza de que ele não quereria que eu chamasse a atenção para esta demonstração de emoção. Quando, finalmente, me atrevi a interrogá‑lo, deitou‑me um olhar feroz. Resolvi ir fazer uma curta expedição pelo bosque para observar as aves. Quando voltei, ele fez‑me jurar guardar segredo e depois contou‑me que a Tia Beatriz era avó dele.

‑ A filha abandonou‑me quando eu era bebé. Deixou‑me na roda. As freiras deram‑me aos meus pais adoptivos.

‑ Por que é que ela te abandonou? ‑ perguntei.

Daniel limpou o nariz com a mão, apanhou um ramo do chão e começou a fazer‑lhe cortes violentos com um canivete.

‑ Não sei. Ela morreu... as febres levaram‑na um ano depois de ela me ter dado às freiras. Só tinha dezanove anos. Devia ser demasiado pobre para me criar. ‑ Desviou o olhar para longe. ‑ Só soube dela porque um dia a Tia Beatriz estava a entregar a roupa a uma vizinha nossa e viu‑me na rua. Apanhou um grande susto e ficou muito branca. Como se tivesse visto um fantasma. Bobo de merda, sem cabeceira, vá‑te-embora, vá agora. Esta era outra das rimas que eu depressa iria associar a Daniel. ‑ Estás a ver, eu era igualzinho à filha morta dela... mas só descobri isso mais tarde.

Fez dois buraquinhos no pau com a ponta da faca e depois riscou mais umas linhas curvas.

‑ Sem ela dar por isso, segui a Tia Beatriz até à casa dela e depois passei a ir lá todos os dias. Ela parecia ficar sempre triste e depois fechava as portadas.

Torci a cabeça para ver melhor o trabalho dele, mas Daniel afastou‑o e disse que me dava um tabefe se voltasse a espreitar.

‑ John, podes ter a certeza que tenho uma cabeça cheia de merda porque o que fiz a seguir foi contar à minha mãe adoptiva da Tia Beatriz. Ela agora nunca está em casa ‑ a minha mãe, quero dizer. Já não a vejo há um ano. Da última vez que a vi, a estúpida da velha agarrou‑me com toda a força ‑ os olhos do rapaz brilharam de raiva ‑ e deu‑me uma bofetada na cara. Disse‑me para eu pedir perdão por ter nascido. Tudo na vida dela se tinha estragado quando me tinha recolhido. Foi nessa altura que eu descobri que tinha sido abandonado.

Segurando na faca como se fosse uma caneta, fez uma incisão circular no desenho.

‑ Depois, um dia, a Tia Beatriz veio à nossa casa ‑ talvez para aí há uns dois anos. Convidei‑a a entrar, mas ela não quis. Começou a chorar logo na soleira da porta. Aproximei‑me dela, mas ela disse‑me para me afastar. Disse que precisava de um rapaz para ir buscar a roupa suja e coisas assim. E pagava‑me.

‑ O que é que disseste?

‑ O que é que achas que eu disse? Nunca teria podido comprar as minhas ferramentas para esculpir sem o dinheiro dela. É assim que eu consigo as minhas coisas, John.

Bem, há uns seis meses, eu estava em casa dela e ela sentou‑se e deu‑me umas guloseimas. Mostrou‑me uma pinturazinha da cara de uma mulher. Não era maior do que a palma da minha mão. E a cara da mulher era parecida comigo. Ela disse que foi por isso que tinha apanhado um susto da primeira vez que me vira, porque eu era tão parecido com ela.

‑ A mulher do quadro era a tua mãe? Assentiu com a cabeça.

‑ Chamava‑se Teresa. A Tia Beatriz contou‑me que ela tinha abandonado um bebé que tinha tido de um homem que fugira. Nunca tinham casado. A Tia Beatriz estava muito zangada com ele por ele a ter abandonado. Era um comerciante de tecidos de Lisboa que tinha arruinado a vida da filha dela com as suas sedas e as suas promessas. Não que tenha dito que o bebé era eu, claro. Ela pensa que eu ainda não percebi. Não contei a ninguém, a não seres tu, por isso tens de guardar segredo.

‑ Por que é que não dizes à Tia Beatriz que já sabes? É a tua avó!

‑ Se ela quisesse que eu soubesse ‑ respondeu zangado ‑, dizia‑me. Ela vai ter de me contar. Caso contrário, não vou dizer nada. E tu também não! Estás a ouvir?

‑ Não vou dizer nada a ninguém ‑ concordei, mas não percebia o raciocínio dele.

Agora sei que ele mostrava uma sensibilidade pelos sentimentos dela muito para além da sua idade. E uma capacidade exemplar para negar os seus próprios desejos.

Daniel mostrou‑me a sua escultura. Era uma cara com uns olhos interrogativos, uma boca aberta de espanto e cabelo despenteado. Parecia um gato assustado.

‑ O que é que isso pretende ser? ‑ perguntei‑lhe eu.

‑ É sua excelência escocesa em pessoa... és tu. ‑Eu?!!

Estendi a mão para a agarrar, mas ele levantou‑se, puxou o braço atrás e atirou‑a para o lago. Dei um salto.

‑ Por que é que fizeste isso? Eu queria ficar com ela. Deitou‑me um olhar desafiador.

‑ Porque sou mau. Bobo de merda, sem cabeceira, vá‑te‑embora, vá agora!

‑ Pelo menos, devias ter‑me deixado ver bem. Não foi justo!

A cara de Daniel franziu‑se como se eu lhe tivesse dado uma bofetada. Quando estendi a mão para lhe tocar, esquivou‑se e disse:

‑ Não me toques, estou sujo!

Quando deixou de chorar, nadei no laguinho gelado enquanto ele esperava na margem. Fez‑me várias perguntas a respeito do mercado de aves que tínhamos visto antes e que se realizava todas as terças feiras e sábados na Praça Nova.

‑ Ouve ‑ disse‑me ele. ‑ Vamos lá na terça‑feira. Ao fim da tarde. Quero seguir o vendedor que tem mais pássaros quando ele se for embora para casa. Além disso, também quero que arranjes tintas... e pincéis.

‑ Daniel, o que é que estás a planear? Os meus pais avisaram‑me...

‑ Santo Deus, John, ainda não pensei em tudo. Tem paciência.

O que ele não me deixara dizer era que os meus pais me tinham proibido de ir ao mercado das aves. Isto era porque uma vez, quando eu tinha quatro anos, desmaiara repentinamente ao ver um pintassilgo numa gaiola de arame que não era maior do que o punho de um homem. Agora que eu já era mais velho, eles receavam talvez que eu decidisse vingar‑me e fazer qualquer coisa impulsiva pela qual acabasse por também ser metido numa gaiola.

E tinham toda a razão, como se veio a ver. Embora eu suponha que podia, ainda hoje, pôr as culpas de tudo no Daniel.

 

No Domingo a SEGUIR à Tia Beatriz ter sido sovada, o meu pai contou‑me uma história escocesa que aconselhava a ser prudente. Nesta história, uma bruxa transformou o meu pai num sapo borbulhento e prendeu‑o com uma corrente a um poste na sua torre de granito. Para meu deleite, Porritch ‑ o cão que ele tivera quando era pequeno ‑ salvou‑o ao aproximar‑se sorrateiramente da bruxa malvada, apanhando‑a a dormir, e cravando‑lhe as mandíbulas no pescoço. Digo deleite porque sempre tinha desejado ter um cão, embora a minha mãe me tivesse obrigado a esperar até ser um bocadinho mais velho e mais «responsável», como ela dizia.

‑ Quando uma bruxa é morta ‑ explicou‑me o meu pai nessa ocasião ‑, todos os feitiços maléficos que ela tenha proferido ficam desfeitos naquele mesmo instante.

Recordo‑me de que ele me impressionou muito nesse dia, quando me explicou que a corrente de ouro do seu relógio de algibeira era a mesma que a bruxa tinha usado para o atar ao poste.

‑ Agora está arranjada, John, mas o fecho estava partido quando a encontrei. Estás a ver, quando a feiticeira malvada morreu, eu passei de sapo a rapaz num instante. O meu crescimento rebentou o fecho.

Deixou‑me pegar no relógio e acrescentou:

‑ Dar‑to‑ei no dia em que comemorares o teu vigésimo primeiro aniversário.

E depois perguntou:

‑ Sabes por que é que te contei esta história em particular, John? Quando abanei a cabeça, ele disse:

‑ Tem a ver com o que aconteceu à Tia Beatriz e com certos outros perigos relacionados com isso que existem na cidade neste momento. Filho, ainda és pequenino e, embora sejas corajoso e de pés ligeiros, e já um kelpie rebelde, não podes fazer tudo sozinho.

Kelpie queria dizer monstro dos lagos em escocês, mas o meu pai usava‑o como um termo carinhoso.

‑ De vez em quando, todos nós precisamos de ser salvos ‑ de todos os tipos de ciladas. Por isso, tens de correr para casa se alguma vez voltares a ver uma coisa como essa ‑ uma mulher, um homem ou uma criança a serem atacados. Estás a perceber onde quero chegar, meu rapaz?

‑ Compreendo.

Nesta altura, a preocupação do meu pai, e a sua referência vaga a certos outros perigos relacionados com isso, pareciam não ter nada a ver com o pregador que eu tinha ouvido na Praça Nova. Mas agora, quando escrevo estas memórias, é por demais óbvio que, nessa época, os meus pais já tinham ouvido um grande número de relatos assustadores sobre as suas odiosas actividades.

Para arranjar as tintas e os pincéis que Daniel pedira, na segunda‑feira de manhã, muito cedo, fui visitar Luna e Graça Oliveira, umas vizinhas simpáticas a quem tratávamos por irmãs Oliveira. Elas iam já a caminho da sexta década. Todavia, se me perguntassem, teria jurado que deveriam ter mais de setenta anos, uma vez que o cabelo grisalho e os rostos enrugados indicavam aos meus jovens olhos uma decrepitude muito grande.

Luna e Graça eram famosas na cidade pela beleza realista dos frutos de cera que moldavam. De facto, eram tão semelhantes à realidade que se dizia que a nossa louca rainha Dona Maria, numa visita ao Porto antes de eu nascer, tinha dado uma dentada imprudente num dos seus pêssegos da cor do sol poente. Como sei de fonte segura que os dentes castanhos da Rainha eram tão precários na boca dela como botões de tartaruga no colete de um trapeiro, isto deve ter significado um final definitivo para alguns deles.

Parado à frente da porta das irmãs Oliveira, bati com o batente em forma de cabeça de leão de contra a porta. Não tinha pensado na hora imprópria ‑ não passava mais de meia hora da alvorada. E, pior ainda, desobedecera aos meus pais ao esgueirar‑me sorrateiramente de casa, pois estava proibido de sair quando eles ainda estivessem a dormir. Mas eu estava optimista, convicto de que conseguiria cumprir a minha missão sem eles descobrirem ‑ um indicador de quanto a amizade de Daniel já me tinha desviado do bom caminho.

Luna espreitou para baixo de uma das janelas do andar de cima, a cabeça coroada com uma touca de dormir escarlate com uma borla de lã. Tomando‑me por um produto imaginário da névoa matinal, piscou os olhos cinzentos.

‑John? És tu, rapaz?

Confirmei que era eu e ela gritou:

‑ Santo Deus! O que é que estás a fazer aqui a uma hora destas? Aconteceu alguma coisa?

Comecei a explicar‑me, mas a excitação em que me encontrava prendeu‑me a língua.

‑ Vou descer, John. Não te mexas daí, senão dou cabo de ti! ‑ disse‑me ela apontando‑me um dedo severo.

Eu era demasiado traquinas para obedecer ao seu pedido e, passados poucos segundos, voltei a bater, ainda com mais força. Encostando o ouvido à porta, ouvia‑a dizer:

‑ Este estuporzinho não faz a menor ideia das dores neste corpo velho. Não me ofendi; Luna era conhecida por falar como um estivador.

Abriu a porta de sobrolho franzido.

‑ És um diabinho muito impaciente! ‑ disse.

‑ Desculpe, Dona Luna, mas... mas eu preciso da sua ajuda.

O espesso cabelo grisalho de Luna estava cortado curto e usava vários fios de ouro fininhos e brincos com estrelas de seis pontas em filigrana, o que a tornava, pensei eu, linda.

‑John ‑ disse‑me ela num sussurro grave ‑, passa‑se alguma coisa... a tua mãe está doente, ou o teu pai?

Ela estava convencida de que só uma tragédia me podia ter levado ali tão cedo.

‑ Preciso de tintas ‑ repliquei eu.

Ela virou‑se e olhou para trás como se eu pudesse estar a falar com outra pessoa.

‑ Acordaste‑me a esta hora por causa de tintas? Estás doido, menino? ‑ guinchou ela.

‑ Prometi ao Daniel que arranjava as tintas.

‑ Quem, em nome de Deus, é o Daniel?

Antes que eu tivesse tempo para responder, inspirou fundo e disse:

‑ Ora, deixa lá, rapaz.

Agarrando‑me pelo braço, arrastou‑me até à sala de estar como se eu fosse um peixe num anzol. Embora pequenina, era forte, com mãos grandes e nodosas de camponês.

Já a tinha visto uma vez esmagar uma noz nas palmas das mãos ‑ a seguir, tinha‑me explicado que todos os artistas precisam de ter dedos fortes para poderem estrangular as suas próprias dúvidas.

Bamboleou‑se até ao fundo das escadas, os pés chatos como os dos patos. Sem qualquer aviso, chamou a irmã com um grito ensurdecedor.

‑ Gracinha! Mexe‑me esses ossos, Irmã! Voltaram a deixar uma surpresa no degrau da nossa porta.

‑ Desta vez és tu que limpas, Irmãzinha ‑ gritou Graça em resposta.

‑ Tarde de mais... já está dentro de casa. Temos um espectáculo horrível aqui no nosso tapete ‑ disse Luna, sorrindo com a própria piada.

‑ Doce nome de Deus, de que é que estás a falar, Irmãzinha? Passado uns instantes, Graça apareceu no cimo das escadas, os pés ossudos enfiados nuns tamancos. Era a mais alta das duas, cerca de dois dedos mais, embora geralmente se descrevesse como «uma mão completa mais perto de Deus» para irritar Luna. Sorria com mais facilidade do que a irmã mais nova e, agora, depois de me ter visto, dirigiu‑me um sorriso de fada, dizendo:

‑ E que linda surpresazinha!

Mal desceu as escadas, Graça dobrou‑se para me beijar as faces. As duas irmãs tresandavam a alho. Uma vez, Luna disse‑me que dormia com um colar de alhos à volta do pescoço para afastar os mosquitos, moscas e padres metediços.

Perante a insistência de ambas, sentei‑me no cadeirão de veludo vermelho que adorava desde pequeno. Instalaram‑se à minha frente numa chaise longue com almofadas bordadas. Tinham a mobília mais bonita da nossa rua.

‑ Fala, menino ‑ ordenou Luna ‑, ou vou ser obrigada a ir buscar os nossos instrumentos de tortura.

E foi assim que eu expliquei quem era Daniel e o plano secreto que ele tinha concebido e que tinha qualquer coisa a ver com o mercado das aves.

Graça voltou‑se para a irmã e sorriu melancolicamente.

‑ Crianças ‑ disse ela soltando um suspiro, como se eu e todos os da minha idade fôssemos um eterno mistério.

Não me parece que Luna alguma vez tenha lamentado o seu estado de solteira e sem filhos, mas Graça pode tê‑lo feito. Quanto ao motivo pelo qual elas nunca casaram, não o sei.

As irmãs olharam uma para a outra, trocando encolheres de ombros, suspiros e frases codificadas. Por fim, concordaram em aceder ao meu pedido e desapareceram nas divisões inferiores da casa, onde tinham as salas de trabalho. Sozinho e ansioso, agarrei num aquecimento de cama de latão com um cabo comprido e comecei a armar cavaleiros os móveis. Enquanto dava as minhas voltas, descobri um azulejo de um verde e um azul cristalinos, com cerca de quatro polegadas de lado, com a figura de um tritão. Eu nunca tinha visto nada tão lindo.

Naquele momento, as irmãs Oliveira voltaram apressadamente para a sala, transportando boiões de cerâmica que continham tinta vermelha, azul, amarela e branca. Quando compreenderam que eu não sabia como se misturavam as cores, Luna comentou desdenhosamente:

‑ É uma vergonha que o teu professor não te ensine nada de arte. Vou falar com a tua mãe para teres umas lições como deve ser.

Graça explicou‑me que com as três cores primárias e o branco eu podia fazer todas as outras. Enquanto eu ouvia, Luna foi‑me buscar pincéis e um tabuleiro de papier‑machê com tulipas pintadas, para eu poder levar tudo para casa.

‑ E enfio‑te até ao nariz em cera se fizeres porcaria ‑ avisou‑me ela.

Quando me dirigia para a porta, perguntei onde é que tinham comprado o azulejo com o tritão. Graça disse‑me que tinha sido feito pelo amigo delas, o Senhor Gilberto, o ceramista.

Graça olhou para Luna que franziu os lábios. Como é que esta expressão foi interpretada como autorização, não sei dizer, mas Graça fez‑me uma festa na cabeça e disse‑me:

‑ Pois bem, agora é teu. ‑Meu?

Deu‑me um beijo na testa e colocou cuidadosamente o azulejo no meu tabuleiro.

‑ Rodeia‑te sempre de coisas bonitas, John, e tudo correrá bem.

Equilibrei o tabuleiro numa mão, abri a porta da frente da nossa casa e entrei em bicos de pés. A minha mãe estava de pé, em frente do espelho, a escovar as madeixas castanhas que lhe caíam numa cortina luxuriante à frente da cara, como fazia todas as manhãs. Vestia o vestido azul de trazer por casa, cortado por baixo do peito e caindo a direito até ao chão, escondendo‑lhe a cintura estreita. Estava descalça. Por um breve instante, acreditei que ainda tinha possibilidade de passar por ela sem que me visse. Se tivesse muito cuidado, poderia recuar e desaparecer atrás dela pelas escadas acima. Mas, ao dividir o cabelo à frente, entreviu‑me e a minha coragem foi‑se.

‑ Bom dia, John ‑ disse ela. Isto era o en garde antes da nossa batalha.

‑ Fui só um bocadinho lá fora, para confirmar que vamos ter sol. Lançou‑me um olhar desconfiado.

‑ Também estive com as irmãs Oliveira ‑ apressei‑me a confessar.

‑ Elas convidaram‑me para tomar chá e emprestaram‑me umas coisas.

‑ A Luna e a Graça convidaram‑te para tomar chá às sete da manhã?

‑ perguntou cepticamente. ‑John, tu deves pensar que eu não sou boa da cabeça, ou que não me interesso pelo teu bem. E estás outra vez a dar‑me cabo da paciência. Agora, importas‑te de me dizer o que é que trazes aí?

‑ Tintas. O Daniel e eu vamos pintar umas coisas.

‑ Que coisas?

‑ Umas máscaras que ele fez ‑ menti.

‑ Pois sim.

Aproximou‑se e agarrou num dos boiões. Espreitando lá para dentro, cheirou o conteúdo. Satisfeita por ver que eu estava a falar verdade, disse‑me:

‑ Agora ouve: não vais pôr nada disto na boca. Tenho a certeza que é venenoso.

Deitei‑lhe um olhar irritado, porque nunca me teria passado pela cabeça ingerir uma pasta daquelas.

‑ Promete‑me ‑ disse ela, agitando o dedo.

‑ Mãe, acha que eu sou completamente idiota? Ao que ela replicou sem pestanejar:

‑ Não, claro que não, querido, longe disso. Todos sabemos como és inteligente. Mas devo dizer que imitas brilhantemente muitas coisas e, se posso fazer uma pequena crítica, às vezes até imitas muito bem um idiota!

Nessa tarde, a minha mãe e eu despedimo‑nos do meu pai à nossa porta, uma vez que ele ia subir o rio numa das suas estadas de duas semanas para inspeccionar as terras da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro. Tentando animar‑me, ele disse:

‑ Filho, havemos de ter a nossa própria vinha no Douro e já não precisarei de me separar de ti.

Baixando‑se para me murmurar ao ouvido, acrescentou que tinha voltado a falar com a minha mãe sobre arranjarmos um cão e que ela estava a começar a ceder. Além disso, a ausência dele iria, sem dúvida, mexer com as emoções dela e torná‑la mais receptiva aos nossos desejos. Abracei‑o com toda a força. Teria gostado de enfiar o meu ser pequenino completamente dentro dele.

A mãe e eu dissemos‑lhe adeus enquanto ele descia a rua, a mão dela a tremer à volta da minha. Limpou as lágrimas do rosto e murmurou para consigo uma coisa que me surpreendeu e gelou:

‑ Esta vida está a matar‑me.

 

Em 1800, o mercado das aves não estava tão bem organizado como está hoje. Consistia apenas numa única fila de bancas de madeira, dispostas ao acaso, onze ao todo na terça‑feira da minha visita na companhia de Daniel. Cada banca tinha entre dez e trinta gaiolas, umas no chão, outras em cima de bancas. As gaiolas eram feitas de vime, verga, ferro enferrujado, arame e, num caso ‑ para um faisão dourado ‑, vidro e lata dourada. O número de aves por gaiola ia de apenas uma, no caso da maioria dos falcões, mochos, corvos e pequenas garças brancas, até a umas boas quinze ou mais para as alvéolas, carriças e outras aves pequenas. Nesse dia, contei dezassete pintassilgos aprisionados num único túnel de desespero, tão comprido como o meu braço, mas que não era mais alto nem mais largo do que a largura da mão de um homem.

E, pior ainda, algumas das aves estavam expostas ao sol, com pouca ou nenhuma água. Um papagaio pequeno, de penas verde‑esmeralda, tinha estado claramente encarcerado nestas condições durante demasiado tempo e estava deitado, totalmente esgotado, no fundo da gaiola, as moscas zumbindo‑lhe ruidosamente à volta dos olhos.

Suponho que era uma bênção que estas criaturas não pudessem compreender as especulações dos frequentadores do mercado sobre o efeito que certas penas vermelhas, cor‑de‑rosa e amarelas teriam quando cosidas num chapéu.

No interior da banca maior, um pica‑pau estava deitado de barriga para cima no fundo de uma gaiola de rede, a cabeça, com o seu toucado escarlate, virada para o lado, piando desesperadamente. Tinha uma asa tombada; muito provavelmente, tinha‑a partido ao tentar voar. Agachei‑me ao pé dele e Daniel juntou‑se a mim.

O dono, um homem careca, de pele macilenta e dentes podres, gritava para os espectadores:

‑ Venham ver estas minhas belezas! Os pássaros mais belos de Portugal. Aproximem‑se para os verem de perto!

Quando ele fez uma pausa para beber da caneca, supliquei‑lhe que me deixasse libertar o pica‑pau, ou que me deixasse levá‑lo a alguém que cuidasse de animais.

Ele rebentou a rir, salpicando‑me de vinho.

‑ Esse está pronto para o esterco, filho!

‑ Tu é que devias estar no esterco, meu canalha! ‑ gritou Daniel. O homem agarrou na vassoura e tentou bater com ela na cabeça de

Daniel, mas ele saltou para fora do seu alcance, voltando a insultá‑lo.

Enquanto eles trocavam insultos, o pica‑pau começou a sufocar e uma lagarta rosada e fininha, que parecia um cordel, saiu‑lhe pela boca. Saltei para trás, pisando o pé de uma senhora. Ela gritou que eu era um catraio mal‑educado e descreveu‑me num murmúrio à senhora sua amiga como um rafeiro inútil. Eu não sabia por que é que ela tinha usado aquela expressão em particular, mas, mesmo nessa altura, as palavras dela colaram‑se a mim como carraças. Quando era pequeno, não fazia ideia de quantos residentes da nossa pequena cidade sabiam que o meu pai era estrangeiro.

Aquela minhoca na garganta do pica‑pau é o que está a pô‑lo doente, raciocinei eu, encostando a cara à gaiola, desejando ser capaz de extrair aquela coisa hedionda.

O proprietário desistira de tentar bater na cabeça de Daniel e estava a explicar as vantagens dos tordos em relação às cotovias a um velho com marcas de bexigas na cara. Puxei a manga de Daniel para fazer com que ele olhasse mais de perto para o pássaro e disse‑lhe:

‑ Estás a ver o que é que estava dentro dele?

Enquanto olhávamos por entre a rede, a minhoca pareceu tornar‑se sólida ‑ transformar‑se numa lasca de madeira. Durante todo este tempo, eu não tinha reparado na respiração hesitante do animal, mas, quando ela parou, apercebi‑me sem a menor dificuldade da sua ausência. Os olhos do pica‑pau continuavam abertos, mas já não estavam a ver o nosso mundo. Chamei‑o, depois bati na gaiola.

‑ Ei! Pára imediatamente com isso! ‑ ordenou o dono.

Daniel começou a aconselhar‑me a ir‑me embora. Só nesse instante percebi que a minhoca era, na realidade, a língua do pobre pássaro.

Antes de nos irmos embora, Daniel voltou a perguntar se podíamos ficar com ele, agora que estava morto.

O proprietário disse‑nos que se nos fôssemos embora para nunca mais voltarmos, Daniel podia abrir o trinco e tirá‑lo.

Quando tirou o pica‑pau para fora, Daniel disse‑lhe na sua voz mais bem educada:

‑ Espero poder contar com a sua presença aqui na véspera de São João. Nessa altura, terei dinheiro para comprar uma ave saudável.

‑ Vou estar cá, embora duvide de que catraios como vocês alguma vez consigam poupar moedas que cheguem para uma das minhas beldades. Agora desapareçam daqui para fora!

Metemos o pica‑pau numa saquinha que pedimos na banca de um sapateiro. Eu queria enterrar o infeliz animal, mas Daniel disse que precisava dele para fazer a nossa pintura como devia ser. À série de perguntas que lhe fiz de seguida, tudo o que ele respondeu foi:

‑ Cala‑te, John, preciso de pensar.

Sentámo‑nos durante um bocado nas escadas do convento de São Bento, onde ele podia magicar nos pormenores do seu plano enquanto estudava o mercado.

‑ O que vamos fazer é o seguinte, John ‑ anunciou finalmente. ‑ Vamos esperar aqui até que esse canalha se vá embora e, depois, seguimo‑lo.

Quando lhe perguntei porquê, ele inclinou‑se ameaçadoramente para mim e recitou‑me uma das suas rimas favoritas: Raptado, embrulhado e entregado...

Não percebi se ele estava a referir‑se a mim ou ao vendedor de pássaros, mas, antes que pudesse perguntar, uma mão apertou‑me o ombro como uma turquês. Olhei para cima e, para meu horror, dei com o pregador que tinha visto uns dias antes.

Debatendo‑me para me soltar da mão dele, rolei pelas escadas abaixo, batendo com o cotovelo no granito. Os olhos escuros do vilão cintilavam de regozijo. Daniel pôs‑se à minha frente, como se fosse o meu guarda. ‑ Que raio é que vossemecê quer? ‑ perguntou‑lhe. O homem fixou o olhar em mim por cima do ombro do meu amigo. A sua aparência era tão diferente da última vez em que eu o tinha visto que, durante uns momentos de confusão, julguei que me tinha enganado na sua identificação. Em vez da capa coçada, vestia agora uma elegante casaca escarlate com pequenas pérolas cosidas nas lapelas largas. Na cabeça, tinha um chapéu de veludo preto e o cabelo, muito bem penteado, caía‑lhe numa cascata de ondas até aos ombros. Trazia uma bengala de castão de prata debaixo do braço.

‑ Deus te abençoe, meu filho ‑ disse‑me ele com grande simpatia. Tirou uma pitada de rapé de uma caixa de prata e inalou profundamente com as duas narinas.

‑ Vá‑se embora, seu filho da mãe! ‑ mandou Daniel.

‑ Embora nunca nos tenhamos encontrado ‑ disse ele, piscando‑me o olho ‑, sou um teu admirador.

Tirando o chapéu, mostrou‑nos o seu interior, depois enfiou a mão lá dentro e extraiu uma pena comprida, azul‑indigo. Inclinando‑se para a frente, ofereceu‑ma.

‑ Tenho andado a observar‑te já há bastante tempo, pequeno. Por isso, aceita esta oferta de sincera estima. Eu também gosto muito dessas criaturinhas aladas de Deus.

Abanei a cabeça, recusando.

‑ Ah, mas que pena ‑ disse ele com tristeza.

Voltou a colocar a pena no chapéu e afastou o cabelo da testa. A mão era comprida e fina. Nunca soubera o que era trabalho.

‑ Deixa‑me explicar, pequeno. De vez em quando, aparece um rosto na multidão que representa todas aquelas almas que gostaríamos de alcançar ‑ um rosto belo que é um símbolo de toda a criação divina. Estás a compreender o que te estou a dizer?

Comecei aos soluços, o que o fez rir‑se.

‑ És o filho de James Stewart e Maria Pereira Zarco, se não estou enganado.

‑ Como... como é que conhece os meus pais? ‑ perguntei eu.

‑ Conheço todos os judeus. É uma das minhas obrigações.

‑ Ele não é judeu! ‑ rosnou Daniel. ‑ Agora deixe‑nos em paz! Como se estivesse a confiar‑me um segredo, ele murmurou:

‑ O que eu desejo é a tua alma perversa, pequeno. Não me contento com menos.

Daniel já estava farto. Tirou uma faca da algibeira e brandiu‑a como se fosse uma espada.

O pregador pôs o chapéu na cabeça e fez um barulho como um ronronar profundo e depois miou.

‑ Vou dizer apenas mais uma coisa ‑ disse com um sorriso ‑, e depois deixo‑te. Nunca pensaste em voltar com o teu pai para a Escócia, meu querido John? Não? Bem, então faz o favor de dizer aos teus pais, da minha parte, que deve ser esse o teu destino. Eles que façam planos agora, antes de nos voltarmos a encontrar. Como nos disse o Apóstolo Mateus: A porta que leva à vida épequena e a estrada é estreita.

‑ Mas eu sempre aqui vivi. Sou português. Nasci no Porto. Não disse nada, apenas se benzeu e, depois, virou‑se desenhando um círculo vagaroso e bateu duas vezes com a bengala no chão. Ficou de costas viradas durante alguns segundos. Voltando‑se para nós, abriu a boca. Um desorientado tentilhão amarelo espreitou para o mundo, contorcendo‑se para sair. O vilão segurava o pescoço do pássaro com os dentes, como se fossem um torno, pronto para dar uma dentada. ‑ Por favor, não faça isso! ‑ implorei a chorar. ‑ Por favor... Naquele preciso instante comecei a considerá‑lo como um necromante, a palavra que o meu pai usava para um feiticeiro mau.

Tinha a certeza de que ele estava prestes a cometer um acto horrível. Mas ele queria provar algo de diferente. Abrindo a boca toda, permitiu que o pássaro voasse para longe. Daniel deu um passo atrás.

‑ Estás a ver o que é que o teu amigo Lourenço consegue fazer, pequeno? Seria insensato duvidar de mim. Embora o prazer sagrado de vos queimar nas praças de Portugal já não seja uma opção, não aceitarei a nódoa da vossa presença entre nós por mais tempo. ‑ Inspirou fundo, para acalmar a cólera. ‑ Nunca te esqueças, o fumo emanado do teu corpo é incenso para todos os de fé pura.

Tirou uma vela acesa de dentro da mão. Fazendo‑a girar no ar, transformou‑a numa moeda de tostão em prata. Levantou‑a à frente dos nossos olhos e depois atirou‑a para os meus pés. Deixei‑a retinir nos degraus e depois apanhei‑a. Ia devolver‑lha, pois acreditava que assim poderia cair‑lhe nas suas boas graças, mas ele disse‑me para ficar com ela. ‑ Estão a ver ‑ disse, apontando primeiro para mim e depois para Daniel ‑, os Judeus no meio de nós podem ser sempre descobertos se deixarmos uma simples moeda à vista!

A multidão que se tinha juntado à nossa volta uivou, deliciada. Uma velha aproximou‑se e atirou‑me com o caroço de uma maçã e vários homens começaram a gritar contra nós. Não sei durante quanto tempo é que eles tinham considerado apropriado assistir a este encontro cruel num silêncio enlevado, mas, quando me voltei para trás, o necromante estava a afastar‑se com grandes passadas. Daniel tirou‑me a moeda e sussurrou‑me:

‑ Não ligues, John... Um dia, ainda vamos ver esse patife pendurado na forca.

 

Quando era eu pequeno, não sabia nada sobre a prática religiosa cristã, tendo sido firmemente proibido pelo meu pai, ateu, de assistir à missa semanal com a minha mãe e a minha avó e tendo presenciado uma cerimónia formal apenas numa ocasião. Dessa única visita à Igreja da Misericórdia no ano de 1791, confesso não ter qualquer lembrança. Esta profunda ignorância deve‑se não a um acto de esquecimento deliberado da minha parte, mas à minha extrema juventude. Pois a ocasião tão importante não foi outra senão a do meu baptismo, extremamente rápido.

O meu pai opusera‑se veementemente a esta cerimónia e recusara‑se a assistir, preferindo amuar dentro de uma nuvem de fumo de cachimbo no seu estúdio. Era, contudo, um preceito religioso em que a minha mãe insistira, fixando o seu olhar mais determinado no meu pai durante dias seguidos até que este, sentindo que as suas tropas estavam em desvantagem perante este devastador ataque de Medusa, hasteou a bandeira branca da paz. A lógica por detrás da ofensiva dela era a seguinte: queria poupar‑me o destino infeliz de uma rapariga alemã com pais humanistas de quem tinha sido amiga quando era jovem e que, durante muitos anos, tinha sido tratada por «a infiel» ou «a selvagem» por muitas crianças e adultos pelo facto de o seu pecado original não ter sido lavado com água benta.

Segundo as versões de um e de outro, ela tinha dito ao meu pai: «Nunca te perdoarei se o impedires» (a versão da minha mãe) ou: «Fá‑lo‑ei em segredo e tu não saberás de nada até estar tudo terminado» (a versão do meu pai).

Acontece que eu não era apenas quase completamente ignorante em relação à fé cristã, também o era em relação às crenças e história judias. Tudo o que eu sabia de fonte segura era que Moisés era um profeta que tinha chifres na cabeça. Devia esta interessante informação às irmãs Oliveira que me tinham mostrado ‑ quando tinha cinco anos ‑ uma imagem sua com dois espigões a saírem‑lhe da testa. Graça tinha‑me dito que todos os judeus tinham tido estas protuberâncias há milhares de anos atrás, mas que tinham caído por falta de uso. Luna jurou que alguns membros antigos desta raça tinham mesmo possuído caudas peludas.

Pouco depois, fiquei a saber que não havia judeus em Portugal. Descobri isto quando perguntei ao Professor Raimundo, o meu professor particular, se ele me podia indicar uma pessoa judia que eu pudesse seguir, uma vez que estava ansioso por ver um sinal de chifres ou cauda.

‑ Felizmente, já não podemos observar essa raça tinhosa ‑ respondera‑me ele, escarafunchando a orelha com a unha comprida e curva do dedo mindinho. ‑Já não há judeus em Portugal, pois os sábios da nossa Igreja tiveram a previdência de limpar o reino de tais pagãos há já muito tempo.

Em resposta às minhas perguntas seguintes, contou‑me que, em 1497, os Judeus tinham‑se convertido ao serem ameaçados de morte, tornando‑se nos chamados Cristãos‑Novos. A partir de 1536, os Cristãos‑Novos que continuavam a praticar em segredo a sua antiga religião eram presos e metidos em masmorras pelos Inquisidores, promotores públicos sancionados pela Igreja e pelo Rei.

O Professor Raimundo tinha ficado claramente perturbado com as minhas perguntas e recorrera a frequentes pitadas de rapé para acalmar os nervos. Espirrando, acrescentara que a Inquisição tinha ‑ infelizmente ‑ sido despojada de muito do seu poder uns quinze anos antes de eu ter nascido. Mesmo assim, os Judeus continuavam proibidos de fundar uma comunidade em Portugal. Quanto ao que a prática do Judaísmo podia implicar, pousou as mãos em cima da ampla pança, fez uma careta de desagrado e replicou:

‑ Eles recusam‑se teimosamente a acreditar na divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, as orações que rezam nos seus templos não passam de blasfémias contra o Filho de Deus e a Virgem.

Na minha inocência, isto pareceu‑me uma explicação razoável. Os Judeus eram, claramente, um povo desagradável.

Sendo um rapazinho tremendamente insistente, perguntei então se não haveria nem que fosse apenas um último membro desta tribo no Porto que eu pudesse estudar em segredo. Inalando outra pitada de rapé, o Professor Raimundo retorquiu secamente:

‑ Que eu saiba, não há, mas farias bem em perguntar à tua mãe.

Achei que era um comentário estranho, mas, uma vez que ele se recusou a proferir mais uma palavra sobre o assunto, resolvi fazer o que me tinha sugerido.

Quando lhe perguntei, ela respondeu calmamente:

‑ Não, John, não há nem Judeus nem Cristãos‑Novos a residir no Porto hoje em dia.

Calculava que Raimundo era capaz de julgar, erradamente, que ela estava familiarizada com estes assuntos visto que a casa onde vivíamos, e que estava na posse da família da sua mãe há gerações, era o centro daquilo que outrora tinha sido um bairro judeu, antes da Inquisição. O meu pai esteve presente durante esta explicação, dando fumaças no cachimbo, sem dizer uma palavra.

Foi nestas calúnias e imagens fantasiosas que a acusação do necromante de que eu era judeu encontrou um fundamento incómodo. Cedendo aos meus piores receios, implorei a Daniel que examinasse a minha cabeça e as minhas partes baixas à procura de indícios de excrescências disformes denunciadoras de qualquer destas coisas. Ele desempenhou esta tarefa com uma solenidade admirável. Devíamos ser um belo espectáculo, eu com os calções para baixo e ele de cócoras a olhar para o meu traseiro. Para meu profundo alívio, ele depressa desfez os meus medos.

Nessa tarde, enquanto andava na companhia de Daniel à procura de garrafas e outras bagatelas abandonadas na margem do rio, comecei a pensar que a vida sem amigos íntimos não era uma inevitabilidade para mim. Lembro‑me de ser literalmente sacudido pela consciência deste facto quando ele me agarrou inesperadamente na mão e disse:

‑ Encontrei uma coisa, John!

Lançou‑se à minha frente, gritando que tinha lobrigado o tampo de uma mesa a sair da lama, e que era perfeito para esculpir.

‑ Anda lá! Mais depressa!

Os olhos verdes cintilavam com o prazer de me fazer partilhar a sua descoberta.

Ficou tão excitado quando desenterrámos o seu tesouro, que começou a sacudir as mãos como se estivesse a afastar abelhas. Mais ou menos um ano mais tarde, iria oferecer o tampo da mesa, intrincadamente esculpido com as caras traquinas de crianças escondidas atrás de árvores, a uma jovem chamada Violeta. Iria colocar‑me mesmo no centro, dotado de um nariz pontiagudo e de uma boca escancarada.

Agora compreendo que Daniel, mais do que qualquer outra pessoa que eu tenha conhecido, via através da superfície dos objectos aquilo que estava escondido por baixo. Seria um exagero dizer que ele também foi capaz de ver o potencial que existia em mim, e que o amei por isso?

Recordo‑me que, quando nessa tarde desenterrámos da lama o tampo da mesa, ele começou a pisar o chão com toda a força, como se quisesse deixar umas pegadas tão profundas que nunca pudessem ser apagadas pelo rio. Talvez o que ele mais desejasse com as suas esculturas fosse oferecer ao mundo uma marca permanente de si próprio.

Éramos demasiado jovens para saber que ele já tinha ‑ em apenas alguns dias ‑ criado marcas profundas e duradouras em mim. E mesmo que o tivéssemos sabido, não creio que alguma vez tivéssemos falado nisso.

Ao bater das quatro, regressámos à Praça Nova, para seguirmos o passarinheiro careca até casa. Já tinha passado quase uma hora, quando ele e a mulher carregaram as gaiolas para a parte de trás da carroça fechada e partiram. Ao passarem a Porta dos Carvalhos, viraram na direcção da vila de Valongo e não demoraram muito a parar na Estalagem do Douro, um estabelecimento de aspecto sombrio. Quando retomaram a viagem, meia hora mais tarde, continuámos no encalço deles. Mas nessa altura o passarinheiro chicoteou as éguas, fazendo‑as galopar, e depressa ficámos para trás, protegendo os olhos da poeira que levantavam atrás de si. Daniel transformou esta situação desanimadora numa vantagem para nós, regressando à Estalagem do Douro para fazer perguntas ao estalajadeiro, que nos disse que o passarinheiro e a mulher tinham por hábito parar ali para beberem um copo de vinho todas as terças‑feiras e sábados, antes de irem para o mercado e, por vezes, no regresso. O rapaz fez questão de perguntar em relação à véspera de São João, e fomos informados de que nesse dia geralmente apareciam na estalagem de manhã muito cedo. Lá fora, Daniel passou‑me o braço em volta dos ombros e murmurou conspirativamente:

‑ Raptados, embrulhados e entregados... agora ouve, John. Vamos ter de voltar cá ao nascer do Sol, no dia vinte e três. O que quer dizer que temos só... ‑ contou, batendo com os dedos no cimo da minha cabeça ‑ cinco dias. Por isso, a partir de amanhã, pintamos.

Descobri mais tarde que Daniel, ao voltar para casa, colocou o pica‑pau morto em cima da cama, sentou‑se no chão ao lado dela, e começou a trabalhar com as suas ferramentas e a madeira de pinho.

O seu objectivo era criar pelo menos dez esculturas até à véspera de São João, o que, segundo os seus cálculos, o iria ocupar do nascer ao pôr do Sol durante os cinco dias seguintes.

Nessa tarde, a Tia Beatriz interrompeu‑lhe o trabalho febril batendo à porta. O olho magoado estava inchado, azul e amarelo, e quase fechado. Coxeava ao andar. Tinha duas costelas partidas e também respirava com dores evidentes. Ficando à porta, agradeceu a Daniel por ter vindo em seu socorro. Daniel recebeu os agradecimentos dela com o olhar baixo, preocupado com a possibilidade de o seu conhecimento do parentesco que os unia o poder dominar, se a olhasse nos olhos.

Mais tarde, dir‑me‑ia:

‑ O meu coração estava a bater com tanta força que mal conseguia ouvir o que quer que fosse. Mas ter‑te‑ias sentido orgulhoso de mim, John, não soltei nem um pio. E não lhe pedi nada. De qualquer maneira, de que é que teria servido pedir‑lhe? As coisas vão ser sempre como são agora.

Quando a Tia Beatriz se foi embora, ele recomeçou a esculpir, usando a faca com tanta força que abriu uma ranhura funda na cauda do pica‑pau.

Em casa, deparei com a minha mãe e a minha avó a bordar na sala de estar. A Avó Rosa asfixiou‑me contra o peito perfumado e depois começou a fazer‑me perguntas sobre o pai do meu novo amigo, numa tentativa evidente de avaliar a sua posição social. A Mamã deitou‑me um olhar de esguelha para me dizer deixa‑me tratar disto. Pedi‑lhe licença para sair da sala e corri para o meu quarto.

A partir de muitas experiências durante a minha infância, compreendi que a minha mãe queria manter‑me afastado da mãe dela. Além disso, eu quase nunca via os seus dois irmãos mais velhos, embora estes vivessem apenas a dez léguas de distância, em Aveiro.

Quando a mãe me veio dar o beijo de boas‑noites, pedi‑lhe para ficar um bocadinho e fechar a porta.

‑ A Avó ainda cá está e ela tem um ouvido perfeito ‑ sussurrei.

A mãe tapou a boca para sufocar uma gargalhada. Depois de ter fechado a porta, sentou‑se ao meu lado e pousou uma mão no meu peito.

A minha agitação afastava qualquer possibilidade de mostrar algum tacto:

‑ Somos judeus, Mamã?

‑ Deus do Céu! De onde é que veio essa tolice?

‑ Aconteceu uma coisa hoje.

‑ O quê? Conta‑me, John.

‑ Um homem estava a pregar na Praça Nova. Veio falar comigo e com o Daniel. E disse que... que nós éramos judeus.

‑ Tu e o Daniel? Ele disse que tu e o Daniel eram judeus? Que estranho!

‑ Não, tu, o Papá e eu. Mamã, ele sabe os nossos nomes. Ela arquejou.

‑ Quem era? Descobriste como é que ele se chamava?

‑ Lourenço. Não me disse o apelido. Já o tinha visto uma vez. Nessa altura, tinha cabelo comprido e oleoso e vestia uma capa horrenda. Mas desta vez estava diferente. Trazia roupas caras. E tinha o cabelo escovado. Acho que é um mágico. Ou um necromante. Fez truques.

‑ John, ele não te fez mal nem a ti nem ao Daniel, pois não? ‑ perguntou ela ansiosamente.

‑ Não, mas disse que me devíeis levar daqui para fora... para a Escócia.

‑ Mas que estranho. E o que é que tu lhe disseste?

‑ Disse‑lhe que era Português... e que tinha nascido aqui.

‑ Bem dito. E depois? Sentei‑me na cama.

‑ E depois o Daniel mandou‑o embora, mas ele não queria ir. Disse que havíamos de ser queimados. Até nos mostrou uma vela acesa.

Ela levantou‑se de um salto e levou as mãos à cara, fechando os olhos.

‑ Meu Deus! Oh, meu Deus!

‑ E, Mamã, ele meteu um tentilhão pequenino na boca. Ia‑lhe arrancar a cabeça com uma dentada.

Puxando do seu lenço de seda, a Mamã apoiou‑se à parede e depois limpou a testa com umas pancadinhas delicadas. Corri para ela e conduzi‑a de novo para a minha cama. Passado um momento, recuperou a compostura e fez‑me uma festa no cabelo.

‑ Mamã, não vamos ser queimados, pois não?

‑ Não, claro que não. ‑ Franziu a testa e abanou a cabeça. ‑ Era um bobo. Estava a tentar assustar‑vos. Há homens que gostam de assustar as crianças. Não são bons da cabeça. ‑ Agarrou‑me na mão. ‑ Então, o que foi isso de ter um pássaro na boca?

‑ Deve tê‑lo comprado no mercado. E meteu‑o na boca quando nós não estávamos a olhar. Ia arrancar‑lhe a cabeça, mas depois deixou‑o fugir.

‑ Pois, isso só prova que esse tipo de homem é capaz de tudo para assustar uma criança. Por favor, John, não penses mais nisso. Deixa‑me preocupar‑me por nós dois. E, se o voltares a ver, tens de correr para casa imediatamente, tal como o teu pai te disse. Não percas tempo, nem te deixes ficar quieto, por nada deste mundo. Agora, vá, volta a meter‑te dentro da roupa.

‑ Somos judeus? ‑ voltei eu a perguntar. Ela estava a ajeitar‑me a almofada.

‑ Já respondi a essa pergunta, John.

O seu tom abrupto fez‑me amuar. Dando‑me um beijo na testa, pediu desculpa.

‑ John, se fosses judeu, não achas que o saberias? Não seria óbvio que eras diferente das outras pessoas?

‑ Examinei‑me todo e o Daniel também me examinou, mas não conseguimos encontrar nenhumas cicatrizes nem nada do género.

‑ Cicatrizes? Que cicatrizes?

‑ Dos meus chifres. E da minha cauda. Deu um murro no colchão.

‑ Oh, por favor, não te ponhas com tolices. Não podes ter pensado seriamente que...

‑ Mas tu sabes que as pessoas me acham estranho... até o Daniel acha.

‑ John, tu não és nada estranho. És igual a todas as outras pessoas. Tal como eu sou e o teu pai também. Agora acaba com essa conversa sem sentido. ‑ Deu um beijo na palma da minha mão e fechou‑a como um punho. ‑ Guarda‑o sempre contigo. ‑ Sorriu docemente. ‑ És o amor da minha vida, John. Sabes isso?

Depois de eu ter assentido com a cabeça, ela disse:

‑ Sim, é verdade. Tu não és como as outras crianças. Mas não tens chifres e nunca há‑de chegar o dia em que eu ligue ao que quer que seja que as pessoas possam pensar de ti! ‑ Deu‑me um beijo nos lábios. ‑ Agora, vai dormir. Quando o teu pai voltar do Douro, vai tratar desse Lourenço com o cabelo oleoso e canários a sair da boca.

Estas eram as palavras de que eu tinha estado à espera; tal como disse antes, tinha a firme convicção de que o meu pai podia resolver todos os problemas.

Mais tarde, quase a dormir, ouvi claramente a Avó Rosa gritar:

‑ Ele disse o quê à criança?

Aproximei‑me silenciosamente da porta e, para ouvir melhor, abri‑a uma nesga.

‑ É o Napoleão ‑ continuou ela numa voz enraivecida. ‑ As vitórias dele estão a espalhar a loucura por toda a Europa. A Igreja não sabe muito bem como encontrar o seu caminho no meio dos planos dele.

Depois disso, só consegui ouvir murmúrios frenéticos. Então, a Avó Rosa gritou:

‑Judeus, Judeus, Judeus!

Nessa altura, acreditei que aquilo era o final de uma comprida praga que ela devia ter rogado a essa estranha raça.

Na tarde seguinte, a convite da minha mãe, Daniel veio à nossa casa pela primeira vez. Encontrou‑se comigo na rua, carregado com um saco de farinha esfarrapado com qualquer coisa a chocalhar lá dentro. Quando lhe perguntei o que era, deitou‑me o seu olhar matreiro e meteu a mão lá dentro, tirando uma cópia do pica‑pau que tinha morrido no dia anterior. Estava esculpido toscamente e apenas grosseiramente polido, evidentemente, e, se me perguntassem, poderia ter enumerado uma longa lista das suas imperfeições: asas demasiado atarracadas, um bico demasiado rombo... Também havia uma ranhura na cauda, que era claramente um deslize; no entanto, achei que era uma coisa prodigiosa.

A mãe serviu‑nos, ao Daniel e a mim, chá e pão‑de‑ló no seu serviço azul e branco com o desenho de moinhos da Fábrica de Massarelos, do Porto. Daniel nunca tinha bebido chá antes, nem sequer usara uma chávena, segundo tudo indicava. Agarrava na dele com tanta força que receei ser atingido pelos estilhaços. Inclinou a boca para o líquido fumegante, mas apenas molhou os lábios.

A minha mãe levantou a chávena com o dedo mindinho aristocraticamente curvado. Eu estava a tentar descobrir nos olhos dela se já teria ouvido alguns boatos sobre o parentesco entre Daniel e a Tia Beatriz, mas ela não deixava transparecer nada.

‑ Estou tão contente por teres podido estar connosco hoje ‑ começou a Mamã. ‑ O John disse‑me que vives no bairro de Miragaia... não é verdade?

‑ Sim.

Daniel deitou‑me um olhar de soslaio. Apercebeu‑se do subterfúgio e parecia ansioso por fugir.

‑ O teu pai, segundo creio, é pescador.

‑ Sim.

‑ E a tua mãe, costureira, não é assim?

O rapaz assentiu com a cabeça e depois respondeu às perguntas seguintes com igual volubilidade. A Mamã ficou impávida. Gostava de tomar chá comigo em qualquer ocasião, por isso, isto era um prazer para ela, por muito fraca que fosse a conversa.

Sempre que ela olhava para baixo ou para outro lado, Daniel abria tanto a boca que os tendões do pescoço se retesavam, fazendo‑o parecer‑se com uma tartaruga.

Quando a Mamã me estendeu o meu bolo, resolvi acrescentar um pouco de substância à conversa.

‑ O Daniel tem a melhor pontaria do mundo, Mamã. Devia ter visto o vilão depois de ter sido atingido com a pedra dele. O sangue escorria até...

Ela levantou a mão.

‑ Não precisas de entrar em mais pormenores, John. ‑ Voltou‑se para Daniel e continuou: ‑ Gostava de te dizer que aquilo que fizeste foi muito corajoso. Nunca o esquecerei. E quero dizer‑te isto: se és um amigo fiel e verdadeiro do meu filho, serás sempre bem‑vindo a esta casa.

A voz da minha mãe tremeu. Bebeu um grande gole de chá para se recompor.

‑ Peço desculpa se te embaracei ‑ disse docemente. ‑ Vamos comer o nosso bolo. Espero que seja do teu agrado.

O rapaz segurava o garfo com a mão toda fechada enquanto serrava com a faca, numa concentração feroz. A Mamã abanou rapidamente a cabeça quando olhei para ela, um sinal para eu ficar calado em relação às dificuldades dele.

‑ E os teus avós, Daniel? Vivem no Porto? ‑ perguntou ela. O rapaz levantou a cabeça.

‑ Os meus avós?

‑ Sim. Vê‑los muitas vezes?

‑ Não, não muitas vezes.

‑ Vivem perto de ti?

‑ Não.

A minha mãe deixou‑o voltar à difícil tarefa de serrar o bolo. Os seus olhares furtivos disseram‑me que ela sabia a verdade. Ou tinha sido a própria Tia Beatriz a contar‑lhe, ou tinha juntado os boatos num padrão reconhecível. Teria apostado que ela estava a perguntar para consigo se eu saberia.

Daniel, frustrado com o garfo e a faca, usou a mão para levar à boca um pedaço gigantesco de bolo, deixando pingar o recheio em cima da mesa. Eu estava prestes a distrair a atenção da Mamã com uma rajada de perguntas sobre variedades de bolos, mas ela devia ter pensado que eu ia criticá‑lo. Chamou‑me a atenção batendo com os dedos na mesa, avisando‑me com os seus olhos severos que não o devia embaraçar. Contudo, ele reparou nos nossos olhares em código e, envergonhado, mordeu os lábios e voltou a pousar o bolo no prato. Então, pela primeira vez na vida, a minha mãe agarrou num bocado de bolo com os dedos e meteu‑o na boca. Para meu profundo espanto, começou a lamber os dedos.

‑ Hummm... ‑ disse ela. ‑ Meu Deus, isto é bom, não é, Daniel? Podes comer mais quando acabares essa fatia. Come, vá!

Ele sorriu e depois fez a sua cara de tartaruga, o que fez com que a mãe se risse.

Sugeri que eram horas de começarmos a pintar.

‑ Com essas roupas, nem pensar ‑ avisou a Mamã, abanando o dedo. ‑ Tu, meu filho, vais vestir o teu bibe velho. E eu vou buscar qualquer coisa para o Daniel à Torre de Vigia.

‑ À Torre de Vigia? Tem a certeza que quer aventurar‑se a subir até lá acima?

Era o nosso quarto de arrumações, no cimo das escadas em espiral de ferro forjado que davam para o corredor do segundo andar. Tinha uma enorme clarabóia octogonal de vidro vermelho e amarelo, através da qual se tinha uma vista gloriosa dos telhados do Porto, mas vários vidros deixavam entrar água. Eu descobrira, recentemente, um lagarto morto numa poça.

A mãe cruzou os braços e deitou‑me um olhar furioso.

‑ Sabes, John, deves pensar que sou uma flor de estufa. Fica sabendo que, quando era da tua idade, estava muitas vezes tão suja como tu.

E deitou‑me a língua de fora!

Devia ter‑me sentido satisfeito por ela se sentir tão à vontade connosco, mas as crianças têm tendência a sentirem‑se envergonhadas com as singularidades dos pais. Quando eu e o Daniel ficámos sozinhos, pedi desculpa por ela. Ele deu‑me uma palmada na barriga e respondeu:

‑ A tua mãe é fantástica, meu palerma!

 

A MÃE OBSERVOU‑NOS durante um momento da porta das traseiras enquanto pintávamos os nossos pássaros esculpidos no pátio. Felizmente ignorante do plano de Daniel, ficou aliviada por não estarmos a fazer nenhum disparate. Felizmente, eu também não sabia nada da estratégia dele ou ter‑me‑ia sentido tentado a confessar a travessura que nos propúnhamos levar a cabo.

Até então, nunca tinha acreditado que fosse capaz de fazer alguma coisa bela com as minhas mãos, mas, passadas algumas horas, tínhamos criado cópias espantosas de um falcão, dois pintassilgos e uma carriça.

Aplicámo‑nos com grande alegria a esta tarefa todas as tardes até à véspera do dia vinte e dois de Junho, a noite antes do nosso encontro secreto com o passarinheiro careca na Estalagem do Douro, altura em que tínhamos doze cópias. A mãe veio ao jardim inspeccionar as nossas criações quando estavam quase prontas. Sorriu maravilhada, levando as mãos à boca, e não fez nem uma referência às manchas de tinta que nos cobriam as mãos e as batas.

‑ Sois os rapazes mais habilidosos que já conheci ‑ disse ela, cheia de orgulho.

‑ Só há um problema, Senhora Stewart ‑ observou Daniel. ‑ Eles têm de ser capazes de se manterem no poleiro.

A mãe sugeriu que pregássemos dois pregos pequeninos em cada uma das barrigas para servirem de pés e depois atar‑lhes um gancho feito de arame. Depois de termos concordado, apressou‑se a sair para nos comprar esses materiais.

Quando acabámos, experimentámos um gaio no dedo indicador dela. Agarrava‑se perfeitamente. Demos‑lho de presente, reduzindo o nosso lote para onze. Deu‑me um beijo e depois outro a Daniel. Pela hesitação momentânea, senti que a cara e as unhas sujas do rapaz a perturbavam.

Nem por um instante me passou pela cabeça que a presença dele a pudesse ter feito recordar um desgosto do seu passado. De qualquer maneira, era demasiado tarde para se retrair, pois já gostava muito dele.

Na manhã seguinte, pouco passava da alvorada, escapuli‑me para o escritório do meu pai, tirei para fora o tinteiro e a pena dele e escrevi uma curta missiva informando a minha mãe que precisava de sair cedo para ir ao meu laguinho e dizendo‑lhe para não se preocupar. Escrita da forma mais adulta de que na altura era capaz, cheia de elegantes curvas e laçadas, eu estava evidentemente à espera que, pelo menos, me dessem crédito por uma boa caligrafia. As coisas que fiz quando tinha nove anos para pôr à prova a paciência da minha mãe! Basta dizer que ela poderia, de certeza, ter apresentado argumentos imbatíveis para me acorrentar permanentemente a uma barra de metal no seu quarto, tal como a bruxa tinha feito ao meu pai depois de o ter transformado num sapo.

Deixei a mensagem em cima da mesa do chá e saí a correr para me encontrar com Daniel na Estalagem do Douro. Dez minutos depois da minha chegada, vi‑o a subir a rua vagarosamente, carregando às costas a nossa saca de farinha cheia de pássaros pintados.

‑ Viva! Já cá estás! ‑ gritou‑me quando me viu.

Senti‑me inundado de alegria e, embora ele me tivesse feito sinal para ficar quieto, não consegui impedir‑me de correr para junto dele. Deu‑me uma palmada brincalhona na cabeça e, quando eu gritei de entusiasmo, gritou também.

Irradiava dele um forte cheiro a cebola; por vezes, como pequeno‑almoço, comia uma, cozida e cortada às fatias com um bocado de pão seco. Insisti para que comesse uma maçã que eu tinha surripiado da fruteira, mas recusou, abanando a cabeça.

‑ O meu estômago está a resmungar ‑ disse, com o sobrolho franzido.

Fazendo um círculo com a boca, soprou‑me o hálito a cebola para a cara. Enquanto eu apertava o nariz, começou a explicar‑me o seu plano em voz baixa. Tive imediatamente sérias dúvidas, uma vez que estava convencido de que os meus pais iriam ficar furiosos, mas não disse nada. Não queria estragar as coisas. Depois, quando eu estava de vigia, apareceu a carroça coberta do passarinheiro. Com um grito, fez os cavalos estacarem ao pé da estalagem e ele e a mulher entraram.

‑ Agora! ‑ murmurou Daniel.

Corremos para a parte de trás da carroça, onde desapertámos os nós da aba de lona e saltámos para dentro. As gaiolas estavam empilhadas umas em cima das outras. Voaram penas quando os pássaros começaram a bater as asas e a chilrear, assustados com a interrupção. Tive medo que os periquitos e outras espécies exóticas pudessem morrer se levássemos a cabo o nosso plano, mas Daniel declarou:

‑ É melhor morrer no bosque do que viver enjaulado. Abrimos as portas das gaiolas uma a uma e incitámos suavemente

os pássaros a libertarem‑se. Muitos estavam reticentes e outros visivelmente assustados. Foi preciso muito jeito, mas depressa cinquenta e sete pássaros, segundo as nossas contas, tinham voado para as suas novas vidas. Durante todo aquele tempo, a expressão de Daniel foi de uma firme determinação. Trabalhou com os movimentos rápidos e seguros que se podem esperar de um escultor de madeira. Só quando todos os pássaros tinham sido libertados se permitiu sorrir e levantar um punho em triunfo.

‑ Bom trabalho, John ‑ sussurrou‑me.

Coberto de penas, sentindo o peso dourado da liberdade nas minhas mãos, retribuí‑lhe o sorriso. Todavia, sentia um pulsar preocupado na nuca. Se fôssemos apanhados, o passarinheiro iria dar‑nos com a bengala até cairmos no chão e a minha mãe nunca conseguiria esquecer a vergonha. Já conseguia ouvir a prelecção que o meu pai me iria fazer quando regressasse: Julgava que um filho meu teria mais juízo... Muito provavelmente, nunca seria autorizado a ter um cão.

O que era espantoso era que, na verdade, não me ralava nada. Não lamentava o meu comportamento imprudente, mesmo que isso significasse a minha morte.

Embora os pássaros já estivessem livres, não nos fomos embora, pois ainda havia a última parte do nosso plano a ser posta em prática. Daniel entregou‑me cinco das nossas aves pintadas e ficou com seis. Começámos a colocá‑las dentro das gaiolas, torcendo os pés de arame de cada uma das aves de madeira em volta do poleiro para que ficassem pousadas numa posição parecida com a que teriam se estivessem vivas.

A maioria das pessoas teria considerado uma perda de tempo esculpir e pintar os nossos pássaros só para os dar, mas dar prendas era a motivação não expressa por palavras de Daniel; ele queria não só reparar uma maldade terrível, mas também criar para o mundo algo de belo.

Quando ele estava a colocar a última escultura, ouvimos o passarinheiro e a mulher a voltarem.

‑ Depressa! ‑ disse eu.

Com a aflição, Daniel deixou cair o pica‑pau. Caiu com um baque surdo no fundo de uma gaiola de vime.

‑ Merda!

‑ Vai ser um bom dia para a venda ‑ disse a mulher. ‑ Não há nevoeiro esta manhã.

Quando Daniel tinha conseguido prender o pássaro, estavam a subir para os seus lugares na parte da frente da carroça. O passarinheiro gritou uma obscenidade aos cavalos e estalou o chicote. Caí de encontro à armação de madeira da carroça e agarrei‑me à lona para me equilibrar. Daniel fazia gestos agitados e incompreensíveis com as mãos.

‑ O que é que fazemos? ‑ articulei com a boca, sem falar.

‑ Depenados e prontos para a panela! ‑ replicou‑me ele silenciosamente. Se eu estivesse a pensar com clareza, teria, muito simplesmente,

saltado da carroça naquele momento, pois esta ainda não tinha ganho grande velocidade. Quanto a Daniel, não estava disposto a acabar já esta sua aventura; afinal, ele florescia com o perigo.

E lá seguimos a chocalhar, agora a galope. Daniel fez‑me sinal para rastejar tão silenciosamente quanto podia para as traseiras da carroça. Fiz como ele mandava e, juntos, chegámos à borda. Passados uns instantes, ele levantou a lona e espreitou para fora.

‑ O que é que estás a fazer? ‑ murmurei.

‑ Temos de saltar.

‑ Saltar?

As pedras da estrada corriam por baixo de nós como a torrente de um rio de pedra. Abanei a cabeça numa negativa veemente. Havia uma carruagem atrás de nós, a cerca de quinze metros, que nos esmagaria indubitavelmente sob as suas rodas.

‑ Salta! ‑Não!

Daniel agarrou‑me pelo braço.

‑ Agora!

Aterrámos com toda a força. Guinei para a esquerda e rebolei, esfolando seriamente os joelhos e batendo com a cabeça. Recuperei a presença de espírito a tempo de ver a carroça do passarinheiro careca a rolar pela estrada abaixo.

Ouvi um grito. Um cavalo com uma mancha branca no focinho estava a bufar, depois de ser claramente obrigado a parar.

Um cocheiro com uma libré vermelha e azul, apertando as rédeas com os punhos fechados, gritava‑me:

‑ Ei, tu aí, cabeça de alho chocho, o que é que pensas que estás a fazer? Podias ter morrido!

‑ Desculpe ‑ guinchei eu, correndo para a beira da estrada.

Girando de um lado para o outro à procura de Daniel, avistei‑o sentado ao pé de uma fonte de pedra do outro lado da estrada. Embora tivesse torcido o pé, sorria como um tolo.

‑ Isto foi uma loucura ‑ disse eu, limpando a sujidade e o sangue dos joelhos.

Daniel cuspiu na mão e esfregou‑me a ferida. Acompanhando‑me numa careta de dor, perguntou:

‑ Dói muito?

‑ Não, não dói muito.

‑ És mais corajoso do que pareces ‑ disse ele sorrindo.

E depois fez uma coisa estranha: agarrou‑me pelos ombros e deu‑me um beijo na cara como se tivesse acabado de me receber como uma prenda, quase como se eu fosse o seu irmãozinho.

Não consegui falar depois disso.

Daniel e eu coxeámos até às bancas do mercado das aves. O passarinheiro, com um chapéu com penas verdes e um colete vistoso de veludo cor‑de‑rosa, estava parado ao lado da carroça, indignado, rodeado de uma multidão que ia engrossando. A mulher estava ao lado dele, a chorar, enquanto ele levantava gaiola atrás de gaiola, exibindo as provas do nosso roubo.

‑ Como é que eu posso acreditar nisto? ‑ perguntava a mulher dele com a voz a tremer para outra mulher no meio da multidão. ‑ Todas as nossas belezas se transformaram em madeira.

‑ Mulher, estás completamente doida! ‑ gritou o marido, atirando violentamente uma gaiola ao chão. ‑ São esculpidos e pintados. Toda a gente que tenha olhos consegue ver isso!

‑ Este gaio aqui ‑ replicou ela, levantando uma escultura que segurava na mão nodosa ‑, este gaio transformou‑se em madeira quando lhe toquei. Explica isso se fores capaz!

Daniel deitou‑me um olhar cheio de regozijo; uma prova de intervenção sobrenatural era ainda melhor do que aquilo que podíamos ter esperado.

‑ É um milagre de São João! ‑ gritou uma rapariguinha magra no meio da multidão. ‑ Um milagre!

Daniel olhou para ela espantado e deu um passo na sua direcção, como se estivesse a ser puxado por uma corda invisível. Mas ela cruzou os braços no peito defensivamente e ergueu as sobrancelhas, como se o estivesse a desafiar a contradizê‑la e ele recuou imediatamente.

Um homem alto, com uma orelha mutilada, ergueu acima da cabeça uma gaiola com um periquito de madeira empoleirado lá dentro e dirigiu‑se à multidão:

‑ A rapariga fala verdade! São João transformou as penas em madeira! Era indecente deixar continuar esta conversa, mas não tive coragem para confessar o nosso embuste.

O passarinheiro cuspiu para o chão.

‑ A tua cabeça é que foi transformada em madeira, meu amigo. Alguém me ludibriou ‑ ergueu as duas mãos como garras ameaçadoras ‑, mas vou descobrir quem foi e depois estrangulo‑o. Estas beldades eram a minha riqueza. Fiquei sem nada!

A mulher dele lambeu os lábios e disse num sussurro vingativo:

‑ Cuidado com o que dizes, estúpido! É bruxaria. ‑ Virou‑se, desenhando um círculo vagaroso, como se tentasse descobrir o autor. ‑ Devemos ter um inimigo muito poderoso em qualquer sítio e tu ‑ voltou‑se outra vez para o marido ‑, tu não devias provocá‑lo com as tuas ameaças.

‑ Está calada, mulher! Tu é que estás a provocar. ‑ Levantou a mão calosa como se lhe fosse bater. ‑ Alguém vai pagar por isto e, se queres ser tu, só tens de continuar a desafiar‑me!

Daniel correu para a frente. Na minha inocência, acreditei que afinal ele estava prestes a confessar tudo. Em vez disso, gritou na sua voz mais bem educada:

‑ Por favor, senhor, deixe‑nos ver o milagre... mostre‑nos os pássaros todos!

‑ Tu... Tu só queres ver como é que fizeram pouco de mim ‑ disse o passarinheiro, os olhos escuros a cintilarem de fúria. ‑ Estais todos contra mim!

‑ Mostre‑nos o que São João fez! ‑ implorou Daniel. ‑ Por favor, não deixe que o seu orgulho nos impeça de ver o milagre!

Outras pessoas na multidão secundaram este nobre pedido até que o homem, indignado, se viu ultrapassado pela representação de Daniel. Tirando o melhor partido possível da situação, o pobre homem descarregou da carroça o resto das gaiolas contendo as nossas esculturas, atirando cada uma delas para as pedras da calçada. Uma anã, embrulhada num xaile preto, gritou‑lhe:

‑ Foste escolhido pelo próprio São João!

O vendedor de aves não conseguiu controlar mais a sua fúria e pontapeou uma das gaiolas de rede na direcção dela. Acertou no tornozelo de um comerciante corpulento com uma casaca azul de gola levantada, que ameaçou bater com a bengala no miserável por semelhante afronta.

Nesta altura, uma centena de espectadores, apontavam, de boca aberta e até mesmo a rezar de joelhos, comovidos por esta união do céu e da terra, a ideia da bruxaria aparentemente abandonada em favor de uma intervenção religiosa.

‑ John, vem comigo ‑ disse Daniel, puxando‑me. Agachámo‑nos atrás de um cabriole a uns trinta passos da multidão palradora.

‑ Espera aí debaixo ‑ disse‑me o Daniel.

‑ Para quê?

‑ Para te esconderes.

‑ Mas por que hei‑de eu esconder‑me?

‑ Não tenho tempo, John ‑ resmungou‑me ele. ‑ Faz o que te digo. Deus me perdoe, acocorei‑me debaixo do cabriole. Ele afastou‑se a

correr para voltar, instantes depois, sem fôlego.

‑ Faz o piar de um melro.

‑ O quê?

‑ Ouviste o que eu te disse, fica escondido e imita um melro. A mulher do vendedor acabou de agarrar num. Imita alto, mas só uma vez.

Tolo como era, aclarei a garganta, franzi os lábios e soltei um trinado.

‑ Mais alto! ‑ incitou Daniel.

Sob o seu olhar vigilante, consegui melhor da segunda vez.

Naquele momento, deparei com a mesma rapariga escanzelada que primeiro tinha chamado um milagre à nossa partida. Estava agachada ali perto e estava a olhar atentamente para mim.

‑ Outra vez ‑ disse Daniel. ‑ Mas mais alto.

A rapariga tinha uns olhos tão grandes e tão bonitos que pareciam fazer com que o tempo parasse. Olhando para ela, lembrei‑me de uma das carriças que tínhamos libertado. Tivera tanto medo de mim que voara desesperadamente em volta da gaiola. Todavia, depois de eu a ter aninhado na minha mão, acalmara, parecendo compreender os meus motivos. Durante um longo momento, tínhamos estado sozinhos no mundo.

Agora a rapariga sorria, mas não estava a criticar‑me. Sorri‑lhe agradecendo‑lhe e executei a minha imitação mais uma vez.

‑ Agora sai ‑ disse Daniel.

Inclinou‑se para me ajudar e corremos outra vez para junto da multidão, onde encontrámos a mulher do passarinheiro estendida no chão, com uma mão na testa, desmaiada. Mas o marido não acreditava em milagres. Estava de pé ao lado dela a abanar exasperadamente a cabeça, enquanto duas mulheres envergando o preto das viúvas a assistiam.

‑ O que é que aconteceu? ‑ perguntou Daniel a um soldado.

‑ O pássaro de madeira cantou ‑ respondeu este num tom reverente. O rapaz soltou uma gargalhada silenciosa enquanto eu rezava por

um segundo milagre, este muito pessoal: ser engolido pela terra e arrastado até Espanha.

Daniel voltou a afastar‑me. Quando hesitei em voltar a meter‑me debaixo do cabriole, empurrou‑me para baixo e mandou‑me fingir que era uma cotovia; o homem alto com a orelha mutilada tinha uma na mão.

A rapariga ainda estava a observar e os seus olhos cor de jade pareciam estar a ver as minhas dúvidas mais profundas.

‑ Estamos a ser observados ‑ murmurei a Daniel, apontando para ela. Daniel fez‑lhe sinal para se aproximar. Veio ter connosco sem a

menor hesitação, com as mãos atrás das costas.

‑ Como é que te chamas? ‑ perguntou‑lhe ameaçadoramente.

‑ Violeta.

Ela inspirou fundo e puxou o comprido cabelo castanho, que lhe chegava à cintura, de forma a tapar a fronte. Lambendo os lábios, acrescentou:

‑ Podia perguntar como te chamas, meu rapaz, mas a tua má educação torna‑te indigno da minha pergunta.

‑ Violeta, vai‑te embora! ‑ gritou‑lhe ele, acreditando que a podia expulsar com uma ordem.

A rapariga deitou‑lhe um olhar de desafio.

‑ Vi o que vocês fizeram.

Cruzou os braços no peito e manteve‑se firme.

Sentindo que só eu podia fazer as pazes entre os dois, dei um passo em frente.

‑ O que nós fizemos foi errado. Não vou fazer mais imitações. Naquele preciso instante, dei por mim a ser levantado ao ar, impelido por uma força que me apertava o pescoço.

‑ Apanhei‑te!

Fui invadido por um terror gelado; tinha a certeza de que estava nas garras do necromante. Esbracejei e pontapeei para me libertar, pendurado a meio metro do chão.

‑ Larga‑o! ‑ gritou Daniel.

O passarinheiro tinha as duas mãos carnudas enroladas à volta do meu pescoço. Não estava a apertar‑me com força suficiente para me sufocar, mas era evidente que podia torcer‑me o pescoço a qualquer instante. Ignorando Daniel, sacudiu‑me violentamente, dizendo:

‑ Tu és o malandro que queria o pica‑pau morto! Foram vocês os dois que fizeram isto tudo!

‑ Larga o rapaz! ‑ ordenou Violeta.

Eu estava a lutar com todas as minhas forças para me soltar das mãos do malvado. Daniel deu‑lhe um pontapé na canela, mas não conseguiu nada. Nessa altura, a rapariga fez uma coisa muito inteligente: cuspiu na cara do homem. E continuou a cuspir.

Largando‑me no chão, o vendedor manteve a minha gola firmemente presa enquanto limpava a cara com a manga.

Esforçando‑me por conseguir respirar e a tossir, senti‑me agoniado.

‑ Socorro! Ajudem‑nos! ‑ lamuriou Violeta.

O comerciante robusto, cujo tornozelo tinha sido atingido pela gaiola, bateu com a bengala nos ombros do passarinheiro.

‑ Já estou farto de ti ‑ disse o comerciante. ‑ Solta o rapaz!

Mas o vendedor de aves não estava disposto a soltar‑me sem mais luta. Por isso, o comerciante descarregou a bengala nas costas dele com um barulho surdo que fazia antever ossos partidos.

O passarinheiro caiu desamparado e evitou bater com a cara no empedrado atirando com as duas mãos para a frente. Eu estava livre. E a primeira coisa que fiz foi avançar uns passos cambaleantes, dobrar‑me e vomitar.

‑ Volta para a tua carroça e deixa o rapaz em paz ‑ aconselhou o comerciante ao passarinheiro.

‑ Mas foi este malandro que imitou um melro para pensarmos que tinha havido um milagre ‑ defendeu‑se ele. ‑ Eu mesmo o vi. Quase de certeza foi ele que roubou todas as minhas beldades.

‑ É verdade? ‑ perguntou‑me o comerciante.

Enquanto o passarinheiro se levantava, Violeta correu em meu socorro.

‑ Senhor, estou com ele há uma hora ou mais e ele não soltou um único pio.

Com estas palavras, ganhou a minha lealdade eterna.

‑ Ela está a mentir para me proteger ‑ confessei, limpando a boca com a manga. ‑ Sou culpado daquilo de que me acusam.

Depois inspirei fundo e imitei um melro.

‑ Extraordinário ‑ disse o comerciante. ‑ Canta outra vez, rapaz. E foi o que eu fiz.

‑ Mais! ‑ exclamou uma mulher.

E assim, durante os minutos que se seguiram, criei imitações vibrantes e gorgeantes de pintassilgos, gaios, canários, gaviões e gaivotas, culminando numa imitação animada de dois maçaricos num diálogo amigável.

‑ Espantoso! ‑ comentou o comerciante sorrindo.

Não é para me gabar, mas ele parecia, de facto, estar a falar por toda a gente na multidão. Agora penso que se me tivessem encorajado mais nesta direcção, poderia ter acabado como artista de circo ou em digressões de espectáculos de monstros, daqueles que apresentam mulheres barbudas e cabras com duas cabeças.

Depois de eu ter terminado, o passarinheiro disse:

‑ Isso é tudo muito bonito, rapaz, mas roubaste‑me toda a minha criação.

‑ Estende a mão ‑ ordenou o comerciante ao passarinheiro. Mas este receava apanhar uma palmada e recusou‑se a fazê‑lo.

‑ Por favor, não vou voltar a bater‑te, bom homem. E acredito que estas ‑ meteu a mão no bolso do colete e tirou duas grandes moedas de prata de cem réis ‑ te compensarão pela tua perda. Só te peço que me dês os pássaros de madeira em troca, para ser um negócio justo.

Atirou as moedas de prata brilhante ao passarinheiro que, com a sua riqueza recém‑adquirida bem apertada no punho, se afastou para ir completar a transacção. O comerciante inalou uma pitada de rapé e sugeriu, entre espirros, que eu imitasse um rouxinol.

Enquanto eu exibia os meus talentos, juntou‑se uma multidão ainda maior ‑ mais de duas centenas de pessoas, segundo os cálculos de Violeta, que se iria tornar a nossa maior amiga. Hoje, quando a imagino tal como estava nesse dia, de pé na fila da frente, alternadamente a morder o lábio com a preocupação de eu poder falhar e a soltar risadinhas de admiração, não consigo deixar de me rir juntamente com ela. Daniel estava de pé ao lado dela, claro, o punho levantado a pontuar a cadência dos meus chílreios, observando‑me com um prazer tão desmedido e generoso que eu senti que, de certa maneira, as minhas imitações eram na verdade só para ele e Violeta. Quanto aos pássaros de madeira, foram todos, com excepção de um, dados ao comerciante; quanto ao gaio que a mulher do vendedor de aves afirmava que se tinha transformado em madeira nas suas mãos, ela insistiu em conservá‑lo, como prova da intervenção de São João nos nossos assuntos terrenos.

É a ela, mais do que a qualquer outra pessoa, que devemos a crença continuada de que se dera um milagre naquela particular manhã de vinte e três de Junho de 1800. De facto, toda esta história foi posteriormente registada nas crónicas de Joaquim Rodrigues, um conselheiro da cidade, sob o título: «A Transfiguração dos Pássaros do Porto». Neste relato, sou erroneamente referido como João Stewart Zarco, os meus dois apelidos na ordem errada. O nome de Daniel não aparece, mas está descrito como um cúmplice um pouco mais velho do jovem Zarco. Também é referido que uma linda e pia rapariga chamada Violeta foi a primeira a abordar o assunto do domínio sagrado sobre os pássaros.

A crença no milagre persiste até hoje no Porto e eu aprendi a manter os meus lábios selados quando esse assunto aparece ocasionalmente nas conversas. Que os destinos de Daniel, Violeta e o meu tenham ficado eternamente ligados no espaço de uma única manhã parece‑me um milagre verdadeiro e muito maior.

Se algo de simbólico e duradouro foi alcançado nesse dia, como por vezes gosto de pensar, então a minha dívida é, evidentemente, para com Daniel. Mesmo hoje, décadas depois, quando sonho com ele, é frequente ele estar a segurar um dos nossos pássaros pintados e consigo perceber, pelos seus olhos joviais, que está a congeminar qualquer nova façanha que irá seguramente meter‑nos em sarilhos, mas também fazer‑nos cair nas boas graças de alguém. Por vezes também nos vejo, a mim e a ele, sentados lado a lado no lanço das escadas da minha casa no Porto, e sinto‑me rodeado de uma sensação de calor que irradia da rua, das casas, do próprio dia...

Uma pessoa que não aparece no relato do incidente feito por Joaquim Rodrigues é a Avó Rosa. Todavia, também ela desempenhou o seu papel, uma vez que continuei a fazer o meu teatro até a ter visto avançar, bamboleando‑se pelo meio da multidão, com uma expressão de horror na cara. Quando parou à minha frente, com chispas nos olhos como uma rainha enraivecida, tornou‑se muito claro que estava tudo perdido.

Dei‑lhe a mão e avancei, como um Moisés em miniatura, por um mar de felicitações e palmadinhas na cabeça que se ia abrindo à minha frente. Ofereceram‑me várias moedas que a minha avó, severamente, me obrigou a recusar.

Quando chegámos a casa, deparei com a mãe louca de aflição.

‑John! ‑ exclamou, apertando‑me nos braços. ‑ Graças a Deus, estás são e salvo!

A Avó mandou‑me para o quarto, dizendo à minha mãe:

‑ Espera até te contar as patifarias que ele andou a fazer enquanto tu dormias.

A mãe apertou‑me os ombros com força.

‑ Não te aconteceu nada? Abanei a cabeça.

‑ Graças a Deus. Nunca mais me voltes a fazer isto, John. ‑ Limpou os olhos. ‑Já vou ter contigo. Agora vai mudar essa roupa imunda.

Subi as escadas enquanto a Avó Rosa enumerava uma lista das minhas travessuras nos últimos meses, acabando com aquilo a que ela chamou «um espectáculo de circo para toda a ralé madrugadora». Despi‑me e sentei‑me na cama e depois caí num sono profundo.

Quando acordei, a mãe estava sentada aos pés da minha cama, com um sorriso melancólico. Estivera outra vez a chorar.

‑John, tenho estado a pensar no que te devia dizer.

Sentei‑me e comecei a desculpar‑me, mas ela fez‑me calar com uma mão pousada suavemente no meu peito.

‑ Só quero que me ouças. Quero que saibas que me puseste louca de preocupação. John, tu és como o fogo‑de‑artifício: volátil, brilhante e disperso. Não consigo controlar‑te. Nem sequer o pai é capaz. Eu sei isso. Assim, temos de chegar a um acordo. Caso contrário, vou morrer de preocupação. Nunca podes sair de casa antes de eu ou o teu pai te termos dado licença ‑ só quando fores muito mais velho. As ruas não são tão amistosas como julgas. Nunca mais sais de casa sem eu saber onde estás... nunca mais.

‑ Mas eu só fui...

‑ Não há mas nem meio mas, John. Ou fazemos este acordo ou terei de te amarrar à noite, tal como a Avó gostaria. Estamos combinados?

Assenti com a cabeça.

‑ John, isto é muito sério. Promete‑me.

‑ Prometo. ‑ A mãe inspirou fundo e encaminhou‑se para a janela.

‑ Discutiu com a Avó? ‑ perguntei eu.

‑ É verdade, discuti.

A mãe contou‑me então as censuras da mãe dela e como esta tinha terminado dizendo:

‑ Não faço ideia de como é que o meu neto se lembrou de dar um espectáculo tão vergonhoso na rua ‑ na verdade, nem quero saber. Só espero que nunca mais se repita.

Ao que a mãe tinha dado uma resposta surpreendente:

‑ Pelo contrário, o meu John fará uso de todos os seus dons e explorá‑los‑á até aos seus limites.

Tinha a voz tensa de determinação quando me repetiu estas palavras. Aparentemente, depois disso, ela e a mãe tinham discutido como só uma mãe e uma filha são capazes. Mas o resultado foi favorável: a Avó Rosa tinha‑se ido embora. Na realidade, estava a castigar‑nos recusando‑se a jantar connosco!

Depois do nosso jantar especial de São João, sardinhas assadas, batatas cozidas e pimentos assados, a Mamã escutou pacientemente as minhas desculpas por ter perpetrado aquilo que só podia ser descrito correctamente como um furto.

‑ Envolveres‑te numa travessura tão ridícula foi uma tolice ‑ comentou ela. ‑ E roubar a propriedade alheia...

‑ Mas as aves são coisas vivas. Estavam metidas em gaiolas. Estavam a sofrer.

‑ Eu sei, e é por isso que não te castigo. O que eu não compreendo, John, é porque é que tu e o Daniel pintaram os pássaros com tanto cuidado, sabendo que os iam dar.

‑ O Daniel às vezes tem ideias esquisitas. Suponho que estava à espera que o vendedor de aves conseguisse ver nos nossos substitutos a maldade do seu negócio.

Nessa altura, a Mamã sorriu‑me como o fizera quando tinha ido ao meu tarn pela primeira vez, muito comovida por eu lhe ter permitido conhecer intimamente o meu mundo. Agarrando‑me na mão, levou as pontas dos meus dedos aos lábios.

‑ Sabes, John, penso que o Daniel queria mostrar aos vendedores de aves como as suas gaiolas roubam a dignidade a todas as pessoas envolvidas ‑ e não apenas às aves.

‑ É isso mesmo! É exactamente isso, Mamã! ‑ exclamei.

Mas, um momento depois, compreendi a profundidade do meu fracasso, pois o mercado das aves iria estar montado e florescente na terça‑feira seguinte, como se nada tivesse acontecido.

‑ O que se passa, filho? ‑ perguntou‑me ela. Quando lhe expliquei, disse‑me:

‑ Nada tão de mau pode acabar tão depressa. Mas tu vais ter as tuas vitórias. ‑ Abanou o dedo. ‑ E sem roubos, John... com palavras.

‑ Com que palavras?

‑ Vais convencê‑los de que têm o dever moral de libertar as aves... e não vai ser apenas isso, mas muitas outras coisas mais.

‑ Como é que sabe isso, Mamã? Ela apertou‑me a mão com força.

‑ Conheço‑te. E sei o que consegues fazer quando te dispões a isso.

A seguir à sobremesa, a mãe e eu passeámos pela cidade até depois da meia‑noite. A noite estava fresca e a Mamã enrolou o xaile dela à volta dos meus ombros. Nessa noite, por várias vezes, estranhos apontaram para mim sussurrando:

‑ Ali está ele, é a criança que é parte pássaro...

O orgulho cintilava nos olhos da mãe quando olhava para mim. Um homem velho, com uma mão deformada, chegou mesmo a fazer‑me uma festa na cabeça, murmurando para a mulher:

‑ Dizem que este rapaz fez hoje um milagre.

Ao ouvir aquilo, a mãe afastou‑me dali e caiu num silêncio meditativo. Quando chegámos a casa nessa noite, ela baixou‑se até à minha altura, do lado de fora da nossa porta da frente e sussurrou‑me:

‑ Nunca deves exibir‑te. É perigoso. Tens de ter muito cuidado com as pessoas a quem mostras os teus dons. ‑ Apertou‑me com força. ‑ Não te esqueças de guardar qualquer coisa para ti. Não precisas de ser sempre tão confiante. Quando tiveres dúvidas, espera.

Sem me dar oportunidade de responder, disse‑me para não me preocupar com a sua conversa tonta; estava apenas com saudades do meu pai.

‑ Devo estar maluca para falar assim contigo.

Soltou uma gargalhada. Rodando a chave na fechadura, suspirou de felicidade ao encontrar a nossa casa tal como a tínhamos deixado.

No primeiro andar, a mãe sentou‑se na minha cama e eu pousei a cabeça no seu regaço. Penteou‑me o cabelo com os dedos suaves e cantou‑me «Barbara Allen»: Na Cidade Escarlate, onde eu nasci...

Quando bateu a uma hora, aconchegou‑me a roupa. Adormeci com ela a embalar‑me nos braços de Mozart no seu pianoforte. Na verdade, deve ter tocado durante muito tempo, pois quando acordei de manhãzinha, encontrei‑a com a cabeça apoiada no tampo do piano, ainda com a roupa da noite anterior.

Um papel dobrado tinha caído ao chão. Apanhei‑o e descobri dois versos do «Adeus», de Robert Burns, na caligrafia do meu pai:

Com o coração enternecido e lágrimas nos olhos,

Lembrar‑te‑ei sempre, ainda que longe.

 

A MINHA afeição juvenil pelos Estados Unidos foi‑me incutida por Violeta, cujo falecido pai, um relojoeiro, tinha nascido em Boston de pais portugueses. Com treze anos, era a primeira da família a acordar e, frequentemente, a última a conseguir adormecer. Comia mais depressa do que qualquer pessoa que eu conhecesse, corria mais depressa do que todos os seus irmãos e falava em rajadas rápidas. A mãe dela dizia que só ouvi‑la chegava para a enlouquecer. A perda do pai, três anos antes, enfraquecera o seu já frágil apetite, o tom moreno da pele empalidecera e deixara‑a sem forças para lidar com os pesadelos persistentes de estar a cair para uma fogueira. Temia‑se que se consumisse como uma vela e nunca viesse a ver a aurora do seu vigésimo ano.

O objectivo em que concentrava as suas esperanças era alcançar a América. O pai tinha‑lhe contado que lá o céu nocturno era um manto radioso de estrelas que se estendia por uma escuridão tão negra que fazia doer os olhos e perturbava o espírito. Violeta adorava as estrelas e a escuridão.

Foi Daniel quem primeiro se tornou seu amigo. De facto, enquanto eu era levado pela minha avó, ele convenceu a rapariga que o deixasse acompanhá‑la até casa da prima, na Rua do Almada, onde ela ia buscar umas cebolas. Daniel contou‑me que ela se agachou e cavou a terra da horta sem se preocupar com o destino dos seus lindos sapatos. O facto de ela não se dar ares impressionou‑o favoravelmente e deu por si com‑pletamente enfeitiçado. Quanto aos seus olhos de jade, embora ele não fosse capaz de exprimir os seus sentimentos por palavras e eu esteja a traduzir por ele, a sua profundidade despertou nele especulações sobre quem ela era e quem ele podia ser, agora que se tinham conhecido.

Daniel estava tão encantado com a visão de Violeta a cavar a terra que começou a ficar agitado, cheio de energia reprimida. Quando começou a saltar de um lado para o outro, ela voltou‑se para lhe perguntar que tontice estava ele a fazer.

‑ A enxotar moscas ‑ replicou ele solenemente.

‑ Estás a dizer, rapaz, que as moscas são atraídas por mim?

‑ Não, não... são atraídas por... por... por... ‑ gaguejou ele. Nunca acrescentou a palavra mim porque Violeta lhe tocou com a

ponta do dedo nos lábios para o calar.

Enquanto Daniel fazia a corte a Violeta, o meu pai regressou. Na sua primeira tarde em casa, enquanto eu estava sentado a tremer de medo no cimo das escadas, a minha mãe explicava‑lhe as minhas actividades no mercado das aves, suavizando os aspectos moralmente duvidosos da minha conduta. Em vez de roubar as aves, eu tinha permitido que elas escolhessem um lar para si próprias. Aplaudi a esperteza dela, embora soubesse que o meu pai iria ver as coisas de maneira diferente.

Todavia, para meu espanto, ela concentrou o seu relato dos últimos quinze dias no aparecimento do necromante. Ficou de tal forma perturbada que o pai lhe pediu que se sentasse e bebesse uns golinhos de brandy. Fiquei surpreendido com todo aquele espalhafato, porque tanto a mãe como eu tínhamos ouvido que o patife tinha saído do Porto e fora para Lisboa. Eu já quase esquecera as suas ameaças contra mim e contra a minha família.

Mais tarde, nesse mesmo dia, o meu pai deu‑me apenas uma leve reprimenda. Esperava que eu tivesse aprendido a lição, ao que eu, respeitosamente, respondi que tinha, embora secretamente soubesse que voltaria a repetir tudo se me dessem oportunidade.

Nessa noite, depois de uma visita de Luna e Graça Oliveira, os meus pais ‑ para minha grande alegria ‑ deram‑me autorização para ter lições de arte com elas às sextas‑feiras à tarde. A meu pedido, Daniel também era bem‑vindo.

A seguir a uma das nossas primeiras lições, o meu pai acompanhou‑nos, a mim e ao Daniel, até casa do rapaz, onde enfiou o nariz em todos os cantos. No dia seguinte, apareceu uma mulher robusta para a esfregar e limpar do mofo e da porcaria. Enquanto ela trabalhava, vieram dois pintores que deram a todas as paredes, interiores e exteriores, uma camada fresca de cal. Nessa tarde, foi entregue um magnífico colchão para a cama de Daniel e a minha mãe comprou‑lhe uma camisa nova e uns calções.

O meu amigo estava pálido de embaraço quando entrou em nossa casa com as roupas novas. O pai despenteou‑lhe o cabelo preto, que estava livre de piolhos e a crescer esplendorosamente, e apertou‑o contra o peito.

Com o olhar, mandou‑me não fazer comentários sobre as fungadelas de gratidão do rapaz.

Posso afirmar que Daniel e Violeta se apaixonaram nesse Verão de 1800, não que isso me tivesse agradado naquela altura ‑ muito pelo contrário. Tinha inveja das caras tolas que faziam um ao outro quando julgavam que eu não estava a ver. Odiava a cumplicidade fácil entre eles, a afinidade de propósitos secretos que me excluía. Afinal, também eu tinha acabado de conhecer Daniel. E já ambicionava ser o cavaleiro andante de Violeta, uma vez que a achava a rapariga mais bonita que tinha visto. Antes de me resignar ao meu papel secundário, falei‑lhe algumas vezes rispidamente e fi‑la chorar. Ela parecia não se aperceber do receio que me inspirava, de quanto a sua presença me perturbava.

No final de Julho, um mês depois de nos termos começado a encontrar todos os dias para as nossas aventuras, ela veio até à minha janela uma manhã, muito antes do nascer do Sol, e ficou na rua a atirar‑lhe pedrinhas. De olhos ainda ensonados, abri as redes contra os mosquitos e as persianas.

‑ Vem cá abaixo, John ‑ gritou ela implorativamente.

Anos depois, ri‑me muitas vezes do meu ridículo Romeu de nove anos para a sua Julieta na rua lá em baixo. Contudo, não posso negar que o facto de ela ter vindo procurar‑me me agradou imensamente. Perguntei a mim próprio se Daniel saberia onde ela estava e se consideraria a nossa entrevista uma traição. Uma parte maldosa de mim esperava que sim.

‑ Por favor, John, vem comigo ‑ disse ela baixinho quando abri a porta da frente. ‑ Vamos para longe das casas para podermos conversar.

Sei que é ridículo, mas eu acreditava de verdade que ela iria pedir‑me perdão por se ter metido entre mim e Daniel. Pensei mesmo que poderia confessar‑me que só suportava a companhia dele pela oportunidade de estar ao pé de mim.

Depressa chegámos ao fundo da rua e parámos no cimo das Escadas da Sinagoga, que descem sinuosamente em direcção à zona ribeirinha.

‑ Olha para cima ‑ disse‑me ela.

Um manto de luzes desdobrava‑se no céu, muito acima da Sé, empoleirada numa colina a leste.

‑ É a Via Láctea ‑ explicou‑me ela. ‑ Milhares de estrelas todas chegadinhas umas às outras. E olha para ali ‑ acrescentou, apontando para uma muito brilhante. ‑ É a Estrela do Norte. É o centro do céu.

Explicou‑me como este corpo celeste está tão perfeitamente aninhado no céu que permanece no mesmo sítio enquanto a Terra gira sobre o seu eixo. Depois explicou‑me algumas coisas sobre as constelações e os planetas. As estrelas, descobri eu, eram um assunto muito sério para Violeta. Não falou de Daniel até termos voltado para minha casa.

‑ Quero contar‑te um segredo ‑ disse ela. ‑ Mas não o podes revelar a ninguém, nem sequer ao Daniel.

Ao jurar que guardaria silêncio eterno, senti que estávamos prestes a atravessar juntos uma ponte. Sabia que faria tudo por ela.

‑ Quero seguir as estrelas até à América ‑ declarou. ‑ Irei viver na terra de George Washington e Thomas Jefferson.

‑ Mas por que é que o Daniel não pode saber isso?

‑ Porque eu vou mesmo. E ninguém, nem mesmo ele, me impedirá!

‑ Ficaremos com o coração despedaçado se te fores embora sem nós, bem sabes.

Ela olhou para o céu e inspirou fundo. Sentámo‑nos no degrau da minha casa e ela pediu‑me para lhe coçar a cabeça. Hesitei, desconfiando que Daniel me bateria se eu concordasse.

A suavidade do cabelo dela nas minhas mãos fez‑me tremer. Não dissemos nada um ao outro durante muito tempo, deixando que as vozes da noite falassem connosco da nossa intimidade recém‑descoberta. Depois, ela deu‑me um beijo na cara.

‑ Por seres meu amigo ‑ disse.

‑ Quando fores para a América, também vou ‑ prometi.

E, embora naquele momento, estivesse a ser completamente sincero, iria esquecer a minha promessa nos anos que se seguiram. Como a maioria das crianças, eu vivia com os pés firmemente assentes no tempo presente e tinha a tendência para deixar que mesmo as conversas mais importantes se desvanecessem no passado. Talvez isso fosse uma bênção.

Durante as três semanas seguintes descobri a grande alegria de passear todos os sábados com Daniel e Violeta até ao meu laguinho. Uma vez, quando a rapariga e eu estávamos a brincar na água, tocou‑me nas minhas partes privadas e não conseguiu esconder um riso matreiro. Fiquei muito desorientado. Por esta e outras razões mais banais, ficava tão nervoso às sextas‑feiras que mal podia dormir.

No primeiro sábado de Outubro, Daniel desapareceu. Violeta e eu entrámos em pânico porque ele nunca se tinha atrasado para um dos nossos passeios de fim‑de‑semana ao laguinho. Corremos para casa dele, mas encontrámo‑la vazia. Resolvemos esperar em minha casa.

Cerca de meia hora depois, Daniel bateu à porta, sem fôlego.

‑ Onde é que estiveste? ‑ exclamou a minha mãe. ‑ Estávamos preocupados.

‑ Com a Tia Beatriz.

O rapaz saltava de alegria, tão excitado que não conseguia suportar que lhe tocássemos. Tentámos, em vão, fazer com que se sentasse e explicasse calmamente o que tinha acontecido. Segundo parecia, a Tia Beatriz tinha ido lá a casa no dia anterior para lhe dizer que havia um quarto à espera dele em sua casa.

Resplandecia de alegria ao contar‑nos que a sua nova cama tinha sido feita com lençóis lavados.

‑ Macios como musgo ‑ declarou ele, enquanto dançava de alegria à volta da cozinha.

‑ Daniel, estou tão contente por ti! ‑ disse a mãe. ‑ Tenho a certeza de que vão ser muito felizes juntos.

Lembro‑me de pensar É melhor não apressarmos as coisas... pois eu conseguia facilmente imaginar a sua impetuosidade a criar o caos na nova casa.

Nessa noite, a minha mãe confessou‑me que tinha ajudado a quebrar a resistência da Tia Beatriz, e, embora eu gostasse de dizer que ficara imediatamente provado que ela tinha tido razão e que o novo lar de Daniel se tornara um refúgio de calma e alegria, a verdade é que ele achava que viver sob o tecto da avó o limitava bastante. Passou os primeiros meses sempre a inventar novas maneiras de a provocar. Recordo‑me especialmente de uma vez em que pegou fogo a um carrinho de mão cheio de flores secas na Praça Nova.

Então, um dia de Dezembro, cerca de dois meses depois de ter ido morar com ela, chegado a casa todo sujo depois de uma aventura comigo no rio, espezinhou a casa toda, enchendo‑a de lama. De propósito, tenho a certeza. A Tia Beatriz também teve a certeza disso e, pela primeira vez, levantou a mão para lhe bater. Mas foi incapaz de o fazer. Em vez disso, deixou‑se cair em cima da cama a soluçar.

Daniel nunca tinha visto uma mulher a chorar como se todo o seu sangue estivesse a fluir‑lhe do corpo. Jurou em voz alta ser bom para ela, acariciando‑lhe o cabelo enquanto ela chorava. E, honra lhe seja feita, cumpriu a promessa. Continuou a ter as suas aventuras loucas, evidentemente, mas nunca mais fez nada propositadamente para a envergonhar ou magoar.

De facto, só a fez chorar mais uma vez. E, nessa altura, não estava na sua mão evitá‑lo.

 

Fanny, a minha collie escocesa, chegou num dia de Dezembro, num barco vindo de Glasgow. Depressa descobri que era um animal bom e nobre, excepto quando se entregava ao sério assunto de comer. Se a incomodavam quando estava com a sua tigela, Fanny ladrava. Se a continuassem a perturbar, arreganhava os dentes e mostrava os terríveis incisivos, rosnando baixinho. A terceira vez que a incomodassem, mordia.

No final de Abril de 1801, Fanny, Daniel, Violeta e eu éramos os melhores amigos. A cadela gostava particularmente de Violeta e teria tido, julgo eu, grande dificuldade em escolher a quem deveria ser leal, a mim ou a ela, se alguma vez fosse necessário tomar tão difícil decisão.

Nas nossas excursões ao laguinho, era raro que Violeta nos acompanhasse; em vez disso, juntava‑se a nós por volta do meio‑dia, visto que a mãe tinha um jeito inigualável para inventar intermináveis recados matinais. A rapariga acabava sempre as suas obrigações o mais depressa que conseguia e nunca deixou de se juntar a nós até ao segundo sábado de Junho de 1801, quando já éramos amigos há quase um ano. Às três da tarde, ainda não tinha chegado. Daniel e eu iniciámos o caminho de regresso a casa, tristes, seguindo pelo trilho num silêncio preocupado. Quando estávamos a um terço do caminho para a cidade, à beira de uma mata cerrada, Fanny levantou as orelhas e parou, farejando o ar com as narinas muito abertas. Rastejando para dentro de um emaranhado de árvores, avançou a farejar pelo meio dos fetos e das ervas daninhas.

‑ Linda menina ‑ gritei‑lhe, enquanto seguia no seu encalço. ‑Continua a procurar.

Quando a alcancei, vi um caçador de certa idade a uns cem passos de distância.

‑ Desculpe incomodá‑lo, senhor ‑ disse‑lhe eu, enquanto me aproximava. ‑ Mas estamos à procura de uma amiga ‑ uma rapariguinha.

‑ Não vi ninguém.

Fanny farejou alegremente os sapatos do homem. Ele fez‑lhe uma festa na cabeça e depois apontou com a arma para uma clareira ao longe.

‑ Pode não servir de nada, mas vi um chinelo para aqueles lados. Ao pé de um pinheiro grande, logo a seguir a um velho muro de pedra.

Agradecemos‑lhe e corremos para lá. E, na verdade, encontrámos um dos sapatos de fitas de Violeta junto de umas pedras caídas de um muro. ‑ Ele ter‑lhe‑á feito mal? ‑ perguntei.

Daniel mordeu os lábios e não respondeu. Ao pé da estrada, encontrei o vestido de linho bege de Violeta, no chão, todo enrodilhado, mosqueado pelos raios de sol que se infiltravam pela copa de uma árvore muito alta. Um arrepio percorreu‑me o corpo, como uma enorme sombra. Não, murmurei para comigo. Por favor, não...

Fanny afastou‑se a correr e começou a ganir ao fundo de um pequeno declive. Encontrámos a rapariga lá, inconsciente, deitada de lado, as pernas escondidas pelos fetos. Vestia apenas a saia interior, que estava rasgada na costura do lado. O seu lindo cabelo era uma confusão emaranhada. Terra e folhas colavam‑se‑lhe à testa, faces, cotovelos e pernas, e tinha uma crosta de sangue na boca.

Eu tremia. Acreditava que a morte dela seria também a minha morte. Os olhos inundaram‑se‑me de lágrimas enquanto caía de joelhos.

‑ Violeta, por favor, levanta‑te, estás a assustar‑me. Ajoelhando‑se ao seu lado, Daniel levantou‑lhe a cabeça com todo o cuidado e disse o nome dela, mas ela não acordou. As lágrimas escorriam‑lhe pela cara abaixo.

‑ O que é que fazemos, John?! O que é que fazemos? ‑ gritou ele. Talvez tenham sido as súplicas de Daniel ou até mesmo o resfolegar enlouquecido de Fanny na cara dela, mas a Violeta começou a acordar. Daniel inclinou‑se para ela com uma expressão de gratidão tão profunda e tão intensa que eu a iria recordar durante toda a minha vida. A meiguice do seu sorriso naquele momento ‑ destinada a mostrar a Violeta que tudo iria ficar bem porque estavam juntos ‑ tem simbolizado para mim a grande verdade do amor. Acariciando‑lhe a nuca, Daniel perguntou:

‑ Violeta, o que é que te aconteceu? O que é que te aconteceu? Ela não respondeu.

‑ Não adormeças outra vez... por favor, diz qualquer coisa, estamos preocupados ‑ disse eu.

Fui buscar o vestido de Violeta e tapei‑a. Naquele momento, pareceu‑me tão frágil e tão bela que fiz um pacto solene comigo mesmo: Se ela se restabelecesse, nunca mais me queixaria do meu papel secundário na vida deles.

Ela estendeu‑me a mão aberta. Segurava um molar ensanguentado.

Aceitei a sua oferta.

‑ O que é que aconteceu? ‑ perguntou Daniel.

Ela esfregou a cara com a mão e fez uma careta de dor.

‑ Temos de arranjar um médico ‑ observou Daniel precipitadamente, como se a necessidade de ajuda só agora lhe tivesse ocorrido.

‑ Violeta, vais ter de ser vista por alguém.

‑ Eu vou ao Porto a correr ‑ disse eu.

‑ Não, fica quieto ‑ pediu ela.

Voltou‑se e pôs os braços à volta de Fanny, parecendo dormitar de febre durante um momento. Depois, inesperadamente, inspirou fundo e estendeu‑me a mão.

‑ John, devolve‑me o meu dente. ‑ Quando lho entreguei, apertou‑o com força no punho fechado.

‑ Quem é que fez isto? ‑ perguntou Daniel, a cara contraída de raiva. ‑ Foi um caçador com um casaco esfarrapado? Nós vimo‑lo. Sabemos quem é. E sabemos o que é que ele fez.

‑ Não, dois bandidos atacaram‑me para me roubarem as jóias ‑ respondeu ela com naturalidade. ‑ Comecei a correr e caí. Foi só isso que aconteceu.

‑ Bandidos que não levaram nem a tua pulseira nem os teus brincos ou são cegos ou estúpidos ‑ afirmei eu.

‑ No entanto, John, foi exactamente isso que aconteceu ‑ respondeu ela, claramente irritada.

‑ Não acreditamos! ‑ gritou Daniel. ‑ Violeta, quem... quem é que te violou?

Franzindo o sobrolho, ela abanou o dente na mão fechada para o ouvir chocalhar de encontro aos anéis. Abrindo a mão, murmurou uma oração e atirou‑o fora.

‑ Ei! ‑ gritou Daniel. ‑ Para que é que fizeste isso?

‑ Deixem‑no ficar para os ratos. Eles não me podem fazer bruxedos.

‑ Estremeceu. ‑ Agora, afastem‑se. Quero vestir o vestido.

‑ Anda, Fanny ‑ disse eu à cadela, que olhou para mim indecisa.

‑ Não, deixa‑a ficar comigo ‑ pediu Violeta.

Daniel e eu afastámo‑nos. O rapaz dava pontapés no chão e murmurava pragas a si próprio.

‑ Eles, eles violaram‑na mesmo? ‑ sussurrei eu.

Riu‑se desdenhosamente, considerando claramente que a minha pergunta era uma afronta à sua inteligência.

‑ Não fizemos nada para o impedir. Nada!

A sua dor e raiva fizeram‑me sentir imensamente inútil e nem sequer conseguia perceber como é que ele podia ter a certeza do que se tinha passado. Provavelmente, descobrira um sinal revelador nos olhos dela que eu não tinha detectado. Ou uma marca, com um significado escondido, no seu corpo. Eu não sabia o que procurar, uma vez que não tinha uma ideia muito clara do que significava ser violada. Só sabia que era algo de abominável que acontecia às mulheres e às raparigas, uma maldade que só podia ser mencionada num murmúrio envergonhado.

Depois de se ter vestido, Violeta permitiu que nos voltássemos a aproximar. Evitando os olhos de Daniel, pediu‑me para a meter às escondidas em minha casa pois não podia ser vista naquele estado pela minha mãe. Haveria demasiadas perguntas.

‑ Olha para mim! Também aqui estou! ‑ rosnou Daniel, ameaçando‑a com o punho fechado.

A rapariga olhou para o chão, a testa franzida de preocupação. Com uma meiguice renovada, ele perguntou‑lhe:

‑ Agora odeias‑me?

As lágrimas vidraram‑lhe os olhos quando se forçou a ver a dor espelhada na cara dele.

‑ Não, Daniel, mas estou assustada. Não consigo suportar as tuas emoções nem as minhas. Não sou assim tão forte. Agora não sou. Não esperes nada de mim.

Não quis explicar mais nada e Daniel cedeu e parou de a interrogar depois de ela o ter deixado pegar‑lhe na mão, que levou aos lábios, fazendo com que ela a retirasse bruscamente. Caminhámos um de cada lado dela durante todo o percurso até minha casa. Eu tinha levado comigo uma romeira de linho e cobrimo‑la com ela para que ninguém, nas ruas da cidade, reparasse no seu desalinho.

Entrei sozinho em casa. Graças a Deus, a minha mãe e o meu pai não estavam. Por trás da porta fechada do meu quarto, Violeta limpou‑se com a minha toalha e escovou o cabelo. Empalideceu ao ver o seu reflexo no meu espelho. Nas profundezas negras e frias do olhar atento de Daniel, senti que ele planeava uma vingança.

‑ Agora tenho de me ir embora ‑ disse ela.

Daniel suplicou‑lhe que o deixasse acompanhá‑la, mas ela recusou, embora quisesse ficar com a Fanny durante uns dias.

Lá fora, pus‑me de cócoras para ficar ao nível da Fanny. Dando‑lhe um beijo no focinho, disse‑lhe que Violeta só precisava de mimo daqueles que a rodeavam. Não podia haver rosnadelas, patadas disparatadas, lambidelas malucas ou choques suicidas contra os móveis. Senti‑me levado a dizer estas coisas não tanto para a cadela, mas sim para comunicar a minha preocupação com Violeta naquele momento. Contudo, ela não se mostrou particularmente interessada na minha preocupação. Chamando Fanny, correu pela rua abaixo como se fosse a fugir de uma tempestade. Ao meu lado, Daniel atirou ao ar uma grande pedra e apanhou‑a no punho fechado.

A mãe de Violeta recusou‑se a abrir‑nos a porta, a mim e ao Daniel, nos dias seguintes. Só voltei a ver a nossa amiga cinco dias mais tarde, quando veio devolver Fanny. A mãe estava ocupada a cortar pão e, por isso, fui eu que fui abrir a porta quando ela bateu. Fanny saltou‑me imediatamente para os braços, a cauda a abanar furiosamente. Violeta ficou petrificada na entrada. Quase me faltou o ar quando finalmente olhei para ela, porque as suas tranças, de um castanho‑avermelhado, tinham sido cortadas à altura dos ombros numa linha irregular.

‑ Mas, Violeta, o que é que fizeram ao...

Ela voltou‑me as costas a meio da frase e fugiu a correr.

Só a voltei a ver uma semana depois, quando acordei a meio da noite com o barulho de pedrinhas a bater na minha janela. Havia luar e consegui ver que ela trazia uma touca com folhos, o que era alarmante, porque ela se tinha sempre recusado a esconder o cabelo.

Esgueirando‑me sorrateiramente de casa, corri para ela.

‑ Desculpa ter‑te acordado ‑ disse ela a soluçar. ‑ Peço muita desculpa por tudo. Tenho sido muito má. Perdoa‑me, John.

‑ Porquê? Não percebo. Violeta, o que é que aconteceu?

Ela tirou a touca. Alguém devia ter voltado a usar uma tesoura de poda no seu cabelo, que estava agora cortado logo abaixo das orelhas, numa confusão horrível. Tinha o pescoço cheio de cortes e arranhões.

‑ Violeta, quem é que te anda a cortar o cabelo?

Ela abanou a cabeça e afastou‑se sem responder. Deixei‑a afastar uns trinta passos e depois comecei a correr atrás dela, gritando o seu nome.

Quando começou a correr, Violeta mostrou que era demasiado rápida para mim, mas tropeçou ao pé da cadeia, no fim da rua. Quando a agarrei, gritou e, levantando a mão, deu‑me um murro certeiro na boca que fez espirrar o sangue.

Ficámos os dois tão atordoados que nos limitámos a olhar um para o outro. Sentindo sal na boca, cuspi para o chão. Ela abraçou‑me enquanto se desculpava e eu consegui sentir a fragilidade dos seus ossos finos. Sentámo‑nos na rua, sem nos preocuparmos com o lixo.

‑ Ele costumava vir ter comigo às vezes ‑ contou‑me ela ‑ e... e tocava‑me... só me tocava. Mas fez‑me mais naquele dia no bosque.

Tinha‑me seguido. Estava bêbado. E desde aí Ele disse que se eu contasse a alguém me matava. Prometi que não contava. Mas contei. Fui má.

‑ Quem foi... quem é que te magoou?

‑ Não posso dizer.

‑ Violeta, tens de vir comigo aos meus pais. Tens de lhes dizer.

‑ Não.

Levantei‑me e tentei, em vão, levantá‑la.

‑ Confias em mim? ‑ perguntei‑lhe.

‑ Oh, John, não posso confiar em ninguém.

‑ Estás a mentir. Confias em mim, caso contrário não tinhas vindo ter comigo.

‑ Tu não compreendes. És muito pequeno. A vida... a minha vida tornou‑se num quarto fechado. Só queria que me ouvisses. ‑ Levantou‑se de um salto. ‑ Desculpa ter‑te magoado ‑ disse ela começando a afastar‑se de cabeça baixa.

‑ Tem de haver uma saída para isso ‑ gritei‑lhe.

Embora ela não tivesse respondido, eu acreditava nas minhas palavras; ainda não tinha aprendido que não recebemos sempre as chaves dos quartos que herdamos.

Nessa noite, enquanto tentava adormecer, decidi, levianamente, encarregar‑me do assunto.

Na tarde da sexta‑feira seguinte, depois das lições com as irmãs Oliveira, fui a casa de Violeta e chamei‑a à janela. Finalmente, para se ver livre de mim, ela concordou em encontrar‑se comigo no lago no dia seguinte. Informei‑a de que Daniel não podia ir connosco. Ela ficou contente com isso, disse‑me, porque não conseguia enfrentá‑lo agora que estava tão feia. Fez‑me prometer que não lhe contaria nada do que me revelara durante a nossa conversa nocturna.

‑ Só iria causar problemas ‑ disse ela. ‑ Para ele, para mim, para toda a gente.

Para me assegurar de que ele estaria ausente, fui a casa da Tia Beatriz e disse‑lhe que nem eu nem Violeta podíamos ir ao lago no dia seguinte. Decidira segui‑la sozinho e em segredo. A minha esperança era que quem quer que a tivesse magoado tentasse outra vez. A minha presença ‑ e o meu desejo de revelar a identidade dele a toda a gente ‑ seria o suficiente para afugentar o patife para sempre.

Sim, fui de facto muito irresponsável em relação ao bem‑estar dela.

Quanto à razão por que Violeta concordara em me acompanhar, estou convencido de que ela desejava que as nossas vidas pudessem voltar a ser como dantes. Como tive ampla oportunidade de descobrir na minha vida, o desejo de regressar a um passado mais feliz pode dar‑nos uma coragem cega.

Violeta vivia na Rua das Ventainhas, uma estrada aos altos e baixos no extremo oriental da cidade, que descia em direcção ao rio. Na manhã seguinte, eu e Fanny escondemo‑nos atrás da parede de pedra de um celeiro próximo. Pouco depois do bater das dez, ela saiu da porta de casa e largou a correr por um caminho que eu não tinha previsto. Estava a agir com prudência, esperando enganar qualquer perseguidor com esta mudança no seu caminho habitual.

Fanny e eu seguimo‑la a uma distância de duzentos passos. Estava completamente seguro de que mais ninguém a seguia. Mas o que nenhum de nós tinha antecipado era que o inimigo tinha saído da cidade antes dela. Só havia um caminho possível durante a última meia légua que levava ao nosso destino e era ali que ele estava à nossa espera.

Como o sábado seguinte foi abençoado pelo sol, eu e Midnight saímos de madrugada. Passadas duas horas, estávamos a andar pelo meio de uma floresta espessa e húmida, de fetos, pinheiros e carvalhos, várias milhas para leste da cidade. Despimos as camisas que enfiámos na mochila de Midnight, que pendurámos num ramo. Ele também tirou os calções, meias e sapatos. Eu tinha demasiada vergonha da minha estrutura escanzelada para fazer um gesto tão corajoso.

Depressa aprendi que ele seguia a pista dos animais de três maneiras diferentes: através do cheiro deles, das pegadas e dos excrementos. Era tão exímio que, ao examinar uma única pegada levemente marcada no chão, conseguia dizer há quanto tempo o animal tinha passado por ali e qual tinha sido a sua forma geral.

Uma única baforada era suficiente para o pôr a andar em bicos de pés, suaves como seda. Rastejava e agachava‑se com o cuidado meticuloso do seu adorado Louva‑a‑deus ‑ o silêncio tinha finalidade e direcção.

Era tão ágil com o arco e a flecha, que parecia que eles faziam parte do seu corpo. Nessa manhã, vi‑o furar o coração de uma lebre encoberta por mato espesso a cinquenta passos de distância. A seta cortou o ar, voando para a criatura desprevenida como se fosse guiada por uma força eléctrica. Com a sua arma, o nosso Midnight de bom coração transformava‑se em destino mortal.

E, o que era mais espantoso de tudo, o boximane conseguia disparar uma flecha enquanto corria e foi assim que o vi atingir um veado a uma distância de setenta passos quando ele saltava por entre as árvores. O animal ferido não caiu, em vez disso, começou a correr com a cabeça da seta enfiada no flanco.

‑ Corre. John! ‑ gritou‑me ele, fazendo‑me sinal para avançar. Corri para junto dele e, juntos, fomos atrás do veado, com Midnight a correr a uma velocidade moderada para permitir que eu ficasse sempre à vista dele. Perseguimos o animal durante quase uma meia légua. Morreu aos pés de um pinheiro, os olhos abertos, mas já sem verem nada no nosso mundo. Eu nunca tinha estado tão perto de um veado. Teria preferido que estivesse vivo, é verdade, mas mesmo morto era lindo. ‑ Olá ‑ disse‑lhe eu.

Estava a ofegar e sentia‑me confuso com tudo o que tinha experimentado. O africano estava coberto de suor, os contornos musculosos da pele cor de bronze cintilavam. Fez‑me uma festa na cabeça e disse que iríamos pedir desculpa ao veado mais tarde.

Quando arrancou a seta do corpo do animal, explicou‑me que fazia as suas setas de modo a que as cabeças levassem um veneno que ele tinha preparado com beladona, acónito e outras plantas perigosas que ele cultivava atrás de uma vedação de arame no nosso quintal. Também me disse que punha uma parte minúscula de si próprio na ponta para entrar na morte da sua presa.

A partir desta experiência, compreendi que impedir que Midnight caçasse ‑ como o Sr. Reynolds fizera em África ‑ era o equivalente a exilá‑lo da sua razão de ser.

A sua necessidade de reconstruir a história central da nossa existência enquanto criaturas mortais pode ter sido a razão mais importante que o levou a fugir da escravidão. Ele não podia continuar a viver sem se recordar ‑ nos pés, nas mãos, no arco, no coração ‑ a raiz do seu ser. África é memória, disse‑nos Midnight uma vez e, embora eu nunca lá tivesse estado, creio que ele deve ter razão.

Midnight pôs o lindo veado ao ombro e carregou com ele todo o caminho da floresta de regresso à cidade. Eu fiquei responsável pelas três lebres que ele também tinha matado.

No caminho de regresso a casa, parámos ao pé de um grande pedregulho de granito, quase tão alto como a nossa casa, onde ele desenhara os animais que tinha matado na última caçada. Era isto que ele queria dizer quando falava em pedir desculpa.

Usando pedras avermelhadas que apanhou ao pé do pedregulho, o africano fez um esboço do veado que tinha derrubado, usando linhas destramente executadas para capturar a sua natureza ágil. Eu fiz o melhor que pude para desenhar as nossas três lebres, com menos êxito.

Nesse dia, antes de sairmos da floresta, Midnight levou‑me a recolher mel, uma habilidade que eu nunca consegui aprender com ele, embora ele tivesse tentado ensinar‑me por várias vezes. Nesse dia, disse‑me que era mais fácil em África, onde vivia um pássaro muito inteligente, chamado Guia do Mel, que levava as pessoas até às colmeias. Não sei se ele estava ou não a fazer pouco de mim, mas prometeu‑me que um dia me levaria à sua terra natal para eu ver esse pássaro com os meus próprios olhos.

 

Um velho moinho em ruínas, coberto de silvas, erguia‑se ao lado do trilho que percorríamos todos os sábados. Quando este ponto de referência ficou à vista, apareceu um homem com um casaco comprido e escuro que ficou uns instantes parado na estrada e depois atravessou para o outro lado, desaparecendo dentro de um pinhal.

Reconheci o tio dela, Tomás Gonçalves. Era careca e com um peito em forma de barril e caminhava inclinado para a frente como se tivesse um peso invisível atado ao pescoço.

Agora poderá parecer disparatado, mas, naquele momento, acreditei que partilhávamos a mesma preocupação de vigiarmos Violeta de longe. Senti‑me infinitamente contente por um adulto, e um adulto grande e forte, ter tido a mesma ideia do que eu.

Violeta, fora da minha vista por uma curva da estrada, estava agora a aproximar‑se do sítio onde tinha sido atacada duas semanas antes. Apressei‑me e, quando a voltei a ver, estava a entrar, quase em bicos de pés, numa espessa mata de tojo. Devia ter ouvido um barulho, pois ajoelhou‑se ao lado de um arbusto para se esconder.

Depois, levantou‑se de um salto e começou a correr. Tomás Gonçalves atacou‑a de lado, agarrando‑lhe os braços logo abaixo dos ombros e sacudindo‑a com violência.

Quando ela gritou, Fanny desatou a correr, a ladrar. Eu segui atrás dela, a gritar o nome de Violeta.

Naquela altura, o meliante já lhe tinha arrancado o chapéu e, agarrando no que lhe restava de cabelo, puxava‑lhe a cabeça para trás com tal força que receei que o pescoço se pudesse partir. Para a calar, pois agora ela estava a gritar o nome de Daniel, levantou a outra mão e atingiu‑a violentamente na cara.

Ao ver Fanny a dirigir‑se para ele, atirou Violeta para o chão. Quando a cadela chegou ao pé deles, pôs‑se atrás da rapariga, a uns três passos de Tomás, fazendo uma barulheira tremenda. Violeta, com a boca a sangrar, tinha conseguido sentar‑se. Olhámos um para o outro, atordoados. Tinha corrido tudo mal e nós os dois sabíamo‑lo.

‑ Foge, John! Corre! ‑ gritou ela de repente, apercebendo‑se de que o tio estava disposto a tentar dar cabo de mim, apesar da ameaça dos dentes da minha colie.

A última coisa de que me lembro é de ele a carregar sobre mim enquanto enrolava um lenço à volta do punho. E também de um estrondo muito forte.

Acordei para os olhos húmidos da minha mãe. Não fazia a mínima ideia de onde estava. Tinha a cabeça a latejar e a boca seca, como se tivesse engolido areia.

‑ Água ‑ pedi numa voz rouca e áspera. A mãe levou‑me uma chávena aos lábios.

Dizem‑me que voltei a adormecer imediatamente, o meu último gole de água a escorrer‑me pela cara até à almofada. Quando voltei a acordar, lembrava‑me de ter estado no bosque, mas a razão para isso escapava‑me. A mãe, que estava de vigia no meu quarto, explicou‑me que o tio de Violeta me tinha agredido na nuca. Eu tinha caído e perdido os sentidos. Tudo isto acontecera no dia anterior. O meu primeiro despertar tinha sido doze horas antes.

A minha mãe tinha pouca fé nos homens da medicina, mas tinha autorizado que o Dr. Silva me sangrasse duas vezes nas têmporas com sanguessugas para impedir a acumulação de fluidos tóxicos no meu cérebro.

‑ E Violeta? ‑ perguntei.

‑ Está a salvo, John. Não te preocupes.

A mãe agarrou‑me na mão. Levou‑a aos lábios e beijou‑a, depois dobrou‑a num punho e devolveu‑ma dizendo:

‑ Guarda isto contigo para sempre. O pai entrou no quarto e sorriu‑me.

‑ Como está o meu homenzinho?

‑ Sinto‑me como se tivesse a cabeça toda partida.

Sentou‑se na minha cama, inclinou‑se e beijou‑me nos lábios. Depois, agarrou numa ametista que trouxera da sua viagem rio acima, na semana anterior, e pousou‑a no meu peito.

‑ És um maroto corajoso. Um kelpie cheio de valor. Mas voltaste a desobedecer‑me. A tua obrigação era teres vindo procurar‑me se te visses metido em sarilhos.

‑ Violeta obrigou‑me a prometer que não contava a ninguém ‑expliquei.

Tocou‑me com os dedos nos lábios para me calar e disse:

‑ Não estou zangado contigo, mas isto podia ter acabado tragicamente para todos. Tivemos muita sorte.

‑ O que é que aconteceu ao tio dela?

O pai disse que o barulho que eu ouvira tinha sido um tiro. O mesmo caçador com que eu e Daniel tínhamos falado no dia em que Violeta fora atacada pela primeira vez tinha ouvido o ladrar de Fanny e viera a correr. Quando Tomás me agarrou e agrediu, o caçador disparou um tiro por cima das nossas cabeças. Depois, enquanto Tomás olhava em volta para descobrir a origem do disparo, Fanny tinha‑se atirado a ele. Os seus dentes rasgaram‑lhe os calções e arrancaram‑lhe um grande naco de carne da coxa.

O caçador ainda estava muito longe. Disparou outra vez, desta vez a valer, e a bala passou a alguns dedos da cabeça de Tomás. Receando pela vida, este amaldiçoou Violeta e fugiu.

‑ O caçador trouxe‑te para casa ‑ continuou o meu pai. ‑ Temos uma grande dívida de gratidão para com ele.

Acrescentou que se não tivesse sido aquele estranho, eu podia estar à espera de ser enterrado naquele preciso instante. Eu não conseguia compreender aquilo. Tentei imaginar o que seria estar morto. Parei de respirar e tentei que a minha cara ficasse sem expressão.

‑ O que é que estás a fazer, John? ‑ perguntou o meu pai.

‑ Estou só a pensar numas coisas. Onde é que está Violeta agora?

‑ Está com a mãe dela, a descansar.

‑ E o Daniel sabe o que aconteceu?

‑ Sabe sim. Fui a casa dele contar‑lhe.

‑ E onde está Tomás Gonçalves?

‑ Ele já deixou de ser um perigo ‑ respondeu o meu pai, e recusou‑se a continuar a falar no assunto.

Violeta foi visitar‑me na tarde seguinte, a cara pálida emoldurada por uma horrorosa touca preta, apertada debaixo do queixo, que se recusou a tirar, apesar da minha insistência. A minha mãe ficou sem respiração quando a viu e depois caiu num silêncio perturbado, claramente receosa de tudo o que lhe poderia sair se começasse a expressar os seus sentimentos. Serviu‑nos chá e sentou‑se connosco, agarrando a mão de Violeta.

Passado algum tempo, levantou‑se, deu um beijo na face da jovem e deixou‑nos sozinhos. Quando perguntei a Violeta que castigo tinha sido dado ao seu tio Tomás, informou‑me que não sabia. Tinha desaparecido de casa e a mãe dela recusava‑se a falar dele.

Daniel devia ter estado escondido na nossa rua, à espera que Violeta me viesse visitar, pois bateu à porta da frente pouco tempo depois e a minha mãe levou‑o ao meu quarto. Era a primeira vez que ele via a rapariga desde o dia em que ela fora atacada. Tinha os olhos vermelhos por falta de sono e a voz enfraquecida. Faltando‑lhe um vocabulário que traduzisse as suas emoções, começou a ficar irritado consigo mesmo e impaciente com Violeta. Demasiado perturbada e fragilizada para compreender que a rispidez dele era apenas o resultado da sua frustração, ela, por sua vez, fechou‑se na sua tristeza. A mãe juntou‑se‑nos passado um momento e a sua presença impediu que eles tentassem dar voz aos seus sentimentos.

Enquanto servia o chá a Violeta, a mãe perguntou‑lhe se podia tentar cortar‑lhe o cabelo para lhe dar um aspecto mais agradável.

‑ Sou o barbeiro do meu marido desde que nos casámos ‑ acrescentou, sorrindo.

Violeta desapertou a touca. O cabelo tinha sido cortado rente ao couro cabeludo, que estava coberto de crostas, fazendo com que os seus olhos parecessem salientes.

‑ Nem o barbeiro mais talentoso me poderia ajudar agora ‑ disse ela, cheia de tristeza.

Eu estava tão esmagado que não conseguia falar. Olhei para a mãe para que ela compusesse as coisas. A mãe tinha pousado a chávena em cima da mesa e levado a mão trémula ao peito. Lutando para conseguir respirar, disse:

‑ Mesmo assim, vou tentar ajudar‑te, minha querida.

Daniel, incapaz de se conter, exigiu saber quem é que lhe tinha feito aquilo. Numa voz entrecortada, a rapariga explicou que a mãe se recusava a acreditar que o tio a tivesse atacado. Tinha mandado os filhos mais velhos prenderem os braços de Violeta atrás das costas e a segurarem‑na deitada na cama enquanto ela própria lhe cortava o cabelo.

‑ Lutei e esperneei, mas não serviu de nada. Nunca serve.

De olhos baixos, sussurrou que, se a mãe a apanhasse em mais uma «mentira», lhe rapariam a cabeça todas as semanas e não a deixariam usar touca. Toda a gente da cidade do Porto veria que ela era uma mentirosa incorrigível.

‑ A minha mãe disse que da próxima vez me cortaria uma coisa que nunca mais voltaria a crescer.

‑ Quem me dera matar a tua mãe! ‑ exclamou Daniel.

‑ O que é que ela cortaria? ‑ perguntei eu.

‑ Cala‑te, John! ‑ ralhou a mãe. ‑ Não quero ouvir‑te dizer nem mais uma palavra. ‑ Havia fogo nos seus olhos. ‑ Escuta‑me, Violeta, não deves nunca, nem por um momento, pensar que eles têm razão. Tens de te lembrar que estás inocente. Agachou‑se ao pé da rapariga e deu‑lhe um beijo na testa. ‑ E continuas linda. Eles nunca te poderão tirar isso. Nunca!

‑ Hoje vou contigo para casa ‑ declarou Daniel. ‑ E dormirei aos pés da tua cama.

‑ Partiremos para a América assim que pudermos! ‑ exclamei eu.

‑ Calai‑vos, os dois! ‑ mandou a mãe. ‑ Se a tua mãe não está disposta a acreditar em ti, Violeta, então, valha‑nos Deus, como é que ela pensa que ficaste ferida nessas duas ocasiões?

‑ Ela diz que eu estou sempre a cair porque sou uma desastrada... que as minhas inclinações ruins me fazem desequilibrar. E que o meu tio casaria comigo se eu não fosse tão desajeitada.

‑ Tu irias casar com um patife que te... que te fez essas coisas? ‑ rosnou Daniel. Deu um passo para ela e sacudiu o punho fechado. ‑ Ouve‑me, não vais casar com ninguém!

‑ Há muita coisa que tu não compreendes ‑ disse Violeta em tom suplicante.

‑ Querida filha... ‑ disse a minha mãe, acariciando‑lhe o rosto. Violeta afastou‑lhe a mão.

‑ Tenho de me ir embora. Já me demorei de mais ‑ disse ela levantando‑se.

‑ Não podes ir! ‑ gritei eu. ‑ Não te vou deixar voltar para casa! Mamã, diga‑lhe que ela pode ficar connosco! Diga‑lhe! Diga‑lhe já!

A mãe fez os possíveis para me acalmar, dizendo que discutiria o assunto com o meu pai nessa noite, mas tudo aquilo era demasiado para mim. Gritei como uma banshee(1) e amaldiçoei‑a enquanto ela acompanhava os meus amigos à porta. Depois dirigi‑me aos tropeções para a janela e abri as persianas de supetão, desesperado com a minha impotência. Chamei por Violeta e Daniel, mas isso só fez com que ela fugisse a correr, deixando o rapaz muito para trás.

Mais tarde, nesse dia, o meu pai contou‑me o que fizera ao tio de Violeta, Tomás Gonçalves. Duas noites atrás, depois de eu ter sido levado para casa pelo caçador, tinha incumbido dois pequenos meliantes de destruir todos os relógios da loja de Tomás. A seguir, o pai tinha‑o seguido até à taberna do Salgueiro, um estabelecimento imundo por detrás da Igreja de São Francisco. Descobriu o patife sentado a uma mesa feita de um barril, tentando esquecer a sua desgraça com uma garrafa de gim meio vazia e na conversa com dois companheiros que riam alarvemente.

O pai avançou para o grupo e apresentou‑se como «Mr. Burns».

‑ Senhor, soube do seu infortúnio e gostaria de lhe fazer uma proposta ‑ disse ele.

Explicou aos homens que tinha adquirido uma relojoaria em Lisboa e que andava à procura de um homem com experiência para tomar conta dela. Sugeriu que um passeio até à rua poderia permitir que ele e Gonçalves continuassem a conversa de forma mais privada. Como não valia a pena deixar uma garrafa de gim meio cheia, comprou‑a para ambos.

O tio de Violeta coxeou pelas ruas, graças ao pedaço de carne que, em boa hora, Fanny lhe tinha arrancado da coxa. O meu pai caminhava de braço dado com ele, encorajando‑o a manter a boca molhada com a bebida. Uma vez acabada a garrafa de gim, conduziu o homem para uma viela escura, onde lhe deu com a garrafa em cheio na cabeça.

Gonçalves caiu nas pedras, mas não perdeu a consciência. Gemeu tristemente:

‑ Foi‑se tudo, foi‑se tudo ‑ e começou a chorar.

O meu pai informou o homem da sua verdadeira identidade, explicando que tinha mandado destruir‑lhe a loja por ele me ter feito mal, a mim e a Violeta.

‑ E mando‑te reduzir a cinzas também se não te fores embora para Lisboa para nunca mais voltares. É a tua única escolha!

Gonçalves estava a amparar a cabeça, tentando levantar‑se. O meu pai agachou‑se ao lado do miserável coxo e levou os bicos da garrafa partida à cara dele.

‑ Meto‑te na próxima diligência para Lisboa e até te dou dinheiro. Mas, se alguma vez voltares ao Porto, agarro numa garrafa exactamente igual a esta e esfrego‑ta no nariz até não teres nem narinas, nem boca nem olhos.

Às sete e vinte e um em ponto, pelo relógio do meu pai, ele tinha‑se ido embora para sempre da nossa cidade.

Sem Gonçalves e o rendimento da sua loja, a família de Violeta ficou na miséria em poucas semanas e todas as crianças foram obrigadas a ir trabalhar. Violeta tornou‑se cortadora de pavios numa oficina logo a seguir à Rua dos Ingleses. Trabalhava do nascer ao pôr do Sol no interior daquela fábrica cavernosa e todo o seu salário era entregue directamente à mãe, de modo que não tinha nem um real seu.

Os sábados e os domingos deveriam ser os seus dias de liberdade e luz, mas, como castigo pelas suas «mentiras», que tinham feito a família perder o seu protector, a mãe mantinha‑a fechada em casa. Por vezes, chegava a acorrentar‑lhe o tornozelo à cama, contou‑me a Mamã, que tinha presenciado esta indignidade. Nestas ocasiões, era obrigada a bordar orações em toalhas que depois eram vendidas no mercado.

Talvez devido à responsabilidade parcial que o meu pai tivera na pobreza deles, a Mamã nunca deixou, nessas difíceis primeiras semanas, de levar todos os sábados cenouras, batatas e outros vegetais a casa de Violeta. Assim, dizia ela, podiam, pelo menos, partilhar uma sopa quente e saudável. Era ela quem nos mantinha, ao Papá e a mim, informados do que se passava com a rapariga. E foi ela que me disse, assim como a Daniel, que estávamos proibidos de fazer visitas a casa de Violeta, pois a mãe dela continuava a insistir que tínhamos tido uma influência nefasta na vida da filha. Mesmo assim, vim mais tarde a descobrir, Daniel passou várias noites debaixo da janela dela, tentando, em vão, conseguir que aparecesse à janela. Acabou com esta prática quando o irmão mais novo de Violeta lhe disse que a mãe lhe batia sempre que o viam na rua deles.

Cerca de dez semanas depois do desaparecimento do tio, em Setembro de 1801, a mãe de Violeta chegou mesmo ao extremo de nos chamar uns vis patifes que tinham dado cabo da inocência da filha. A discussão provocada por esta afirmação iria marcar o fim das visitas da minha mãe.

Depois de me ter informado desta conversa, a mãe acrescentou que lhe tinham dito, antes da explosão de raiva, que Violeta iria começar noutro trabalho adicional. Todos os sábados iria vender ‑ numa banca na Praça Nova ‑ os artigos que ela e a mãe andavam a bordar.

A mãe dava graças aos céus por isto, pois achava que era a nossa oportunidade para ajudar a rapariga. Encorajou‑nos, a mim e ao Daniel, a visitá‑la lá e a oferecer‑lhe o nosso conforto. Todavia, se alguém da família dela estivesse presente, nós não podíamos ‑ em circunstância alguma ‑ deixar que nos vissem.

‑ Se voltarem a arriscar a segurança de Violeta, nunca vos perdoarei ‑ avisou‑nos.

Daniel e eu tentámos, em numerosas ocasiões durante as semanas seguintes, falar com Violeta na sua banca, mas sempre que ela nos via aproximar, parecia sufocar como se tivesse engolido veneno. Recusava‑se a revelar‑nos fosse o que fosse do que ia no seu coração e era óbvio que teria preferido fazer um buraco no chão e enterrar‑se nele do que falar‑nos da sua vida.

À medida que o tempo passava, ia ficando cada vez mais pálida e magra. Os piolhos passeavam‑se à vontade pela sua touca e, uma vez, vi‑lhe no pulso uma bolha vermelha que deitava pus. Numa outra ocasião, vi o que parecia ser uma queimadura na palma da sua mão.

Os efeitos em Daniel do estado brutalizado em que Violeta vivia foram uma surpresa para mim, provavelmente, devido à minha juventude. Em vez de conceber um plano para a raptar ou fazer chantagem com a mãe dela, como eu teria esperado, começou a fazer mal a si próprio e aos outros, acabando frequentemente por se envolver em sangrentas lutas com outros rapazes e até comigo. Uma vez, bateu‑me com tanta força ‑ eu estava a tentar arrastá‑lo para longe de um jovem padre com quem ele tinha começado uma discussão ‑ que, quando acordei, deparei com ele a soluçar inclinado sobre mim e a pedir‑me perdão.

‑ Olha o que te fiz! ‑ exclamou a chorar.

Levou‑me ao colo todo o caminho até minha casa. Aninhado nos seus braços, senti que a sua força me envolvia, como tinha acontecido antes dos nossos problemas terem começado. Nunca contei aos meus pais o que ele fizera. Expliquei à mãe que tinha caído do muro da Sé enquanto imitava um ganso.

Não tardou muito que Daniel começasse a frequentar as tabernas da Ribeira para beber gim, rum e cachaça. Quando estava bêbado, era frequente dizer que era indigno de Violeta. Por vezes também praguejava contra ela, chamando‑lhe odiosa e egoísta. Isto deixava‑me perplexo, mas agora percebo que este comportamento, nascido do desespero, tinha como finalidade confirmar a sua depravação aos seus próprios olhos e aos dos outros. No entanto, os seus actos só fizeram com que eu ficasse mais ligado a ele do que nunca.

Então, numa noite sem luar, pouco antes do nascer do Sol, a rapariga escapuliu‑se de casa e atirou as suas pedrinhas à minha janela. Recebeu‑me lá fora com um abraço que foi mais apertado do que aquilo que eu tinha qualquer direito de esperar. Quando se riu do meu medo dela, soube que tinha voltado para mim.

Tirou a touca e deixou‑me acariciar‑lhe o cabelo, que estava rijo com o crescimento. Falámos pouco nessa primeira visita. Sentados no nosso lanço de escadas, apontou para o céu e fez‑me identificar as constelações como se me estivesse a preparar para um exame.

Começou a visitar‑me de quinze em quinze dias. Sugeri‑lhe muitas vezes que nos escapulíssemos e fôssemos visitar Daniel, mas ela não queria ouvir falar nisso.

‑ Ele iria pedir‑me para fugir com ele. E eu não posso.

‑ Mas por que é que não podes? ‑ atrevi‑me a perguntar‑lhe. Abanou a cabeça.

‑ És demasiado novo para poderes compreender, John. Não posso fugir e pronto. A minha família precisa do meu salário. É por minha culpa que o meu tio já não nos sustenta.

Quando lhe disse que isso não era verdade, ela replicou:

‑ John, receio que haja pessoas cujo destino é serem infelizes para sempre. Talvez a maldade faça com que alguns de nós não sejamos dignos de uma vida melhor.

‑ Mas, e a América? ‑ perguntei. ‑ Disseste‑me que querias mesmo ir para lá e que ninguém te poderia impedir. Por que não agora?

Mandando‑me calar, disse‑me que só poderíamos continuar amigos se eu nunca falasse do seu infortúnio. Não percebi por que é que ela havia de querer isto, mas, perante a sua insistência, jurei que não o faria.

Violeta, Daniel e eu continuámos a viver as nossas vidas praticamente separados uns dos outros durante aquele Outono de 1801. O rapaz quase nunca estava em casa e eu cansei‑me de tentar afastá‑lo das tabernas. Mesmo aos sábados, ele preferia frequentemente embebedar‑se a vir comigo à banca de Violeta. Também abandonou as nossas aulas de arte, embora eu continuasse a adorar os meus estudos com as irmãs Oliveira todas as sextas‑feiras à tarde.

Este período infeliz chegou ao auge depois do regresso do pai adoptivo de Daniel, em Fevereiro de 1802, um mês horrivelmente frio e chuvoso. Eu tinha agora quase onze anos, tinha medo das violentas alterações de humor de Daniel e estava desencantado com o canto dos pássaros e com quase tudo o resto.

Quanto às ocasionais visitas nocturnas de Violeta, só serviam para me deixar nervoso, pois ela recusava‑se a falar da sua difícil situação.

O pai de Daniel voltara para o Porto porque a sua relação na Terra Nova com uma mulher de sangue francês e índio de Otava tinha dado demasiados frutos. A solução que ele encontrou foi fácil: arranjara trabalho no primeiro barco de regresso a Portugal e partira sem sequer dizer adeus. Era da opinião que crianças não desejadas dispensavam explicações.

Daniel já o sabia, evidentemente.

O Senhor Carlos ‑ pois era este o nome do homem ‑ insistiu que Daniel voltasse para casa dele. E, apesar de todas as súplicas e subornos da Tia Beatriz, recusou‑se a renunciar ao direito paternal que lhe tinha sido dado quando ele e a mulher adoptaram o bebé abandonado pela filha da Tia Beatriz. Chegou mesmo a ameaçá‑la de recorrer a um juiz se ela continuasse a manter o rapaz afastado dele, insinuando que o seu sangue judeu dificilmente pesaria a seu favor. Além disso, estava decidido a levar Daniel com ele da próxima vez que se metesse ao mar.

Lembro‑me de a Tia Beatriz ter vindo a nossa casa ‑ trazendo o quadrozinho da filha ‑ no dia em que Daniel a deixou para sempre. Quando a mãe me deixou sozinho com ela para ir fazer chá forte, tocou com o dedo hesitante a imagem da filha adorada e sussurrou:

‑ Voltámos a perdê‑lo, Teresa, perdemos o nosso Daniel. Olhou para mim como se estivesse a pedir perdão e estremeceu.

‑ Que tola eu sou, John. Julgava que tinha mudado o destino... redimido a traição que tínhamos feito ao rapaz. Mas as mulheres são impotentes perante a crueldade quando esta reclama a vida de uma criança.

Uma vez, pouco depois de Daniel ter mudado as suas coisas para a sua antiga casa, vi‑o fingir que espetava uma faca nas costas do pai.

‑ Seria capaz de o fazer, mas nem sequer a morte dele me libertaria ‑ disse‑me.

Em vez de o atacar naquele momento, agarrou numa placa de madeira que tinha andado a esculpir com os focinhos de lobos, raposas e outros animais da floresta. Depois de ter trabalhado sem parar durante um bocado, mostrou‑ma. Nenhum dos animais tinha olhos. Era arrepiante. Quando lhe pedi para me deixar ver mais de perto, saiu e atirou‑a ao rio. Erguendo as sobrancelhas com um ar maroto, fingiu um sorriso. Queria que eu pensasse que era apenas um jogo, mas eu sabia que não era verdade. Disse‑lhe:

‑ Pelo menos, devias tê‑la acabado. Agora eles nunca poderão ver. Abanou a cabeça.

‑ Não há nada para eu acabar. Tudo o que eu conheci está agora terminado.

O pai de Daniel não queria conservar a casa durante uma ausência que podia vir a ser de anos, por isso, dois meses depois da sua chegada, vendeu‑a a um ferreiro de Vila do Conde que se mudaria para lá no princípio de Maio. Com o dinheiro da venda, o Senhor Carlos comprou a Daniel uma mala de viagem de couro, uma faca de aço inglês, luvas de pele de carneiro, um par de botas forradas de pele e uma capa de lã com capuz.

‑ A Terra Nova fica completamente gelada logo em Outubro ‑ explicou ele.

Isto dificilmente era uma perspectiva apetecível para um jovem que nunca, na sua curta vida, tinha sequer usado um casaco grosso, embora Daniel afirmasse estar louco de alegria por, finalmente, poder ganhar um salário digno de um homem. Escarnecia da própria ideia de permanecer no Porto depois da partida do pai. Falava da avó como sendo um fardo e de Violeta como uma perda de tempo. Qualquer pessoa que não estivesse familiarizada com os seus talentos teatrais podia ter ficado convencida de que ele estava grato por esta oportunidade de viajar.

Agora, estou convencido de que a sua representação tinha como finalidade impedir‑nos de descobrir que não restava nada na nascente do seu espírito. Quantas vezes, nos anos que se seguiram, desejei ter‑lhe atirado uma corda, porque o poderia ter feito. Eu era bom com as palavras e podia muito bem tê‑lo convencido a desafiar o pai adoptivo. Mas eu estava cego para os meus próprios dons e para muitas coisas à minha volta ‑não era muito diferente daqueles animais que ele tinha esculpido.

O último dia de Daniel no Porto aproximava‑se rapidamente. A vinte e sete de Abril, quatro dias antes da data da partida, eu e ele metemo‑nos sombriamente a caminho do mercado na Praça Nova para pedir a Violeta um último encontro. Encontrámo‑la transformada num esqueleto; os olhos, outrora lindos, cheios de sofrimento.

‑ Tenho... tenho de me despedir em breve ‑ disse Daniel.

Os seus olhos estavam tão pesados de emoção não dita que receei que fosse desmaiar.

‑ Então despede‑te já ‑ respondeu ela com dureza, limpando o nariz à manga.

‑ Vai a minha casa hoje, depois da Midnight, por favor, Violeta ‑ disse eu. ‑ Comeremos bolo que eu guardei para ti da minha festa de anos. Por favor, nós temos tantas saudades tuas.

Ela olhou para mim cheia de desprezo e disse:

‑ Vai para casa, para os teus pais. Não quero voltar a ver nenhum de vós.

Ficámos sem fala com o desespero. Passado um momento, Daniel perguntou:

‑ O mundo pode pesar assim tanto, Violeta? Às vezes pergunto isso a mim próprio. E não poderemos ajudar‑nos um ao outro, tu e eu? Não será isso que devemos fazer?

Sorria docemente como se estivesse a pedir desculpa pela seriedade das suas palavras.

Violeta apertou a testa com a mão, exausta e arrasada pela dor dele.

‑ Vai, Daniel. Tu tens a tua vida. Não esperes por mim.

‑ Estás a mandar‑me embora?

Estendeu a mão para lhe tocar, mas ela voltou‑lhe as costas.

‑ Não me toques! ‑ ordenou. Depois a voz suavizou‑se: ‑ Por favor, não o poderia suportar.

Baixou os olhos. Eu senti que o tempo e os últimos vestígios da nossa inocência se acabavam para nós os três. Daniel empalideceu com o choque. Ele e eu ficámos um momento à espera, na esperança de que ela olhasse para cima. Quando não o fez, fomo‑nos embora. A cara de Daniel estava encovada e deprimida quando nos afastámos rapidamente. Provavelmente, estava a pensar na sua vida estéril, a imaginar o que nunca iria ser. Por entre as minhas lágrimas solitárias, implorei‑lhe que falasse comigo, supliquei‑lhe que não abandonássemos Violeta. Ao ouvir aquilo, resolveu arranjar uma discussão azeda comigo, desafiando‑me a acompanhá‑lo a uma taberna sórdida na Ribeira com o sugestivo nome de Taberna do Pepino, um sórdido antro de marinheiros, bandidos e canalhas.

Quando entrámos na taberna, vários homens de aspecto grosseiro saudaram‑no ruidosamente e rebentaram às gargalhadas depois de me terem perguntado o nome e a idade, ameaçando denunciar‑me à minha mãe. Sentámo‑nos a uma mesa a um canto da sala. Daniel tirou uma moeda da algibeira e pediu um rum para ele e um copo de vinho barato para mim. Decidido a destruir‑se, emborcou a sua bebida em duas goladas e incitou‑me a fazer o mesmo com o meu vinho.

Embora eu só tivesse bebido uns modestos goles, já começara a ansiar pela minha almofada de penas. Daniel não parava de falar animadamente da sua ida para o mar com o pai. Aquele seu falso entusiasmo irritou‑me. Sentia‑me confuso com tudo o que tinha acontecido e enraivecido com toda a gente ‑ com Daniel, com Violeta e comigo mesmo, e com todos os adultos na minha vida, tão impotentes para nos ajudarem. Para acabar com aquela tagarelice absurda, fiz o imperdoável: contei‑lhe que Violeta me tinha visitado mais do que uma vez, a altas horas da noite, e, ainda por cima, me dissera que queria partir para a América sem ele.

‑ Isso é só uma fantasia ‑ escarneceu ele. ‑ Ela contou‑me toda aquela história de como o pai adorava a noite lá.

‑ Não, ela está a falar a sério ‑ insisti eu. ‑ Obrigou‑me a prometer que não te dizia. Mas quando tiveres partido para o mar, ela vai deixar o Porto para sempre.

Os olhos encheram‑se‑lhe de lágrimas. Arrependi‑me imediatamente da minha confissão impetuosa e apressei‑me a emendar a situação.

‑ Daniel, neste momento, a Violeta está demasiado perturbada para saber o que quer. Não acredito que ela alguma vez se fosse embora sem nós. Uma rapariga tão nova nunca poderia ir‑se embora sozinha, pois não? A sua cara ficou sem qualquer expressão com o desespero e o rum. Devíamos simplesmente ter‑nos ido embora para casa e falado com os meus pais. Estava prestes a propor‑lho ‑ e também a pedir desculpa por fingir que sabia que Violeta sempre planeara ir‑se embora sem ele ‑, mas um comerciante corpulento, com cabelo preto e brilhante, aproximou‑se vagarosamente da nossa mesa e desafiou Daniel a fazer o pino e a andar, com as mãos no chão, de uma ponta à outra da sala. O cavalheiro ofereceu‑lhe uma moeda de prata pela façanha, a que Daniel deitou logo a mão com um grunhido. Não tardou que os homens se juntassem à nossa volta e fizessem as suas apostas. Estava em jogo uma soma avultada ‑demasiado avultada até mesmo para os braços jovens do meu ágil amigo. Eu sabia que os sarilhos tinham vindo ao nosso encontro naquele local escondido. Devia ter falado, mas não disse nada.

Daniel era um acrobata dotado e conseguia executar todo o tipo de cambalhotas, flips e saltos mortais, mas o rum tinha‑lhe embotado o sentido do equilíbrio. Começou bastante bem, a deslocar‑se como um caranguejo, as pernas arqueadas por cima da cabeça, a cara a ficar vermelha como se estivesse queimada pelo sol. Pus‑me ao lado dele e acompanhei‑o, incitando‑o a avançar.

Mas a mão esquerda do rapaz depressa escorregou e a perna direita pendeu‑lhe demasiado por cima das costas. E estatelou‑se com um estrondo surdo. Os homens que tinham perdido as suas apostas zombaram dele, chamando‑lhe burro. O comerciante que tinha pago a Daniel inclinou‑se por cima dele, pigarreou ruidosamente e cuspiu‑lhe um escarro enorme para a cara. O meu amigo limpou‑a e rebolou, ficando de barriga para baixo com o braço a tapar‑lhe os olhos. Agachei‑me ao lado dele e supliquei‑lhe que se fosse embora. Sentia a intensa vergonha dele como se fosse minha e só desejava que nunca ali tivéssemos entrado.

Foi o proprietário que conseguiu erguer Daniel, dando‑lhe um pontapé no rabo e levantando‑o a seguir pelo braço. Empurrou o rapaz em direcção à porta. Uma vez lá fora, Daniel afastou‑se de mim a correr. Corria com um passo inesperadamente desajeitado, como um animal ferido. Antes de chegar ao cais, voltou‑se para mim. Abanando a cabeça, sorriu matreiramente antes de atravessar a correr a entrada de pedra.

Lancei‑me atrás dele e encontrei‑o parado à borda de água, nos blocos de granito cobertos de musgo, a olhar para a água, protegendo os olhos com as costas da mão.

O meu amigo levantou a mão com a palma virada para fora e disse:

‑ Fica onde estás, John.

Eu teria esperado ver derrota ou desespero nos seus olhos, ou mesmo raiva. Contudo, o que lá havia era amor. Por mim, pensava eu na altura. Mas se assim era, sei agora que era apenas porque eu representava tudo o que ele alguma vez fizera e desejara ‑ e também tudo o que ele poderia ter esculpido com as suas mãos. Alguma vez houve um rapaz que amasse tanto as possibilidades escondidas no nosso mundo como ele?

Baixou a mão num movimento rápido como se estivesse a desenhar uma linha entre nós. Depois recitou a sua rima preferida: «Raptado, embrulhado e entregado...»

Meteu a mão na algibeira e atirou‑me a moeda que o grosseirão de cabelo negro como um corvo lhe tinha oferecido na taberna para ele andar em cima das mãos.

‑ És o dono de tudo o que é meu, incluindo as minhas máscaras ‑ disse ele.

Supus que queria dizer que eu herdaria as suas coisas quando ele fosse para o mar com o pai. Queria implorar‑lhe que viesse comigo. Os meus pais e eu iríamos arranjar maneira de o ajudar. Mas, inesperadamente, ele levou a mão ao peito como se tivesse sido trespassado por uma bala.

‑ Deram‑me um tiro ‑ disse.

Ao princípio fiquei aturdido, os sentidos embotados pelo vinho. Depois, percebi que ele estava a representar, fingindo que fora ferido em combate.

Daniel coxeou pela borda de pedras escorregadias, as mãos apertadas sobre o coração. Depois, cambaleou, inclinando‑se para o lado contrário da terra. Apertando os olhos com força, como se se tivesse resignado ao inevitável, caiu na água lamacenta.

Em que estaria a pensar quando caiu? Não sei dizer ao certo. Só sei que, quando me imagino no seu lugar, por vezes, sinto a corrente contínua de libertação que flui por mim quando entro na água.

Fiquei à espera, convencido de que ele ia voltar à superfície com um sorriso exuberante. Lembrei‑me do guarda‑rios que tínhamos visto no nosso primeiro dia no lago, que desaparecia debaixo de água para voltar a emergir com as asas a bater, um peixe minúsculo preso no bico. Chamei‑o e depois corri para o sítio onde ele tinha caído. Julguei ver as suas mãos estenderem‑se para mim e depois recuarem e desaparecerem por completo, como um sonho que se retirava para além do alcance da memória. Dois marinheiros parados ali perto apontavam para a água, para o sítio onde ele tinha caído.

‑ Socorro! ‑ gritei‑lhes. ‑ Ajudem‑me!

Eles não se mexeram nem me responderam; por isso, descalcei‑me e mergulhei atrás de Daniel.

Era um bom nadador. O meu pai tinha cuidado disso. Cortei a água com a seta das minhas mãos e nadei para o fundo. A água estava gelada e os peixes empurravam‑se à minha volta, batendo‑me na cara. Contudo, a única coisa em que conseguia pensar era em encontrar Daniel e trazê‑lo para a superfície. Tinha de lhe pedir desculpa ‑ dizer‑lhe que a única coisa que sabia com toda a certeza em relação a Violeta era que ela o amava.

A água era surpreendentemente pouco funda ‑ não mais que duas braças. Quando cheguei perto do fundo, comecei a mover‑me em círculo. Consegui distinguir uma coisa que parecia uma roda de ferro espetada no leito do rio. A água estava carregada de lama trazida pelo rio e a corrente era feroz. Estava a puxar‑me para longe. Já devia ter arrastado Daniel rio abaixo uma boa distância.

Voltei à superfície para respirar e ouvi uma voz de homem gritar:

‑ Ei! O que é que julgas que estás a fazer?

Mas não lhe dei atenção. Outras pessoas gritaram‑me, mas uma vez que nenhuma delas tinha a voz de Daniel, nadei vinte braçadas para oeste, depois virei as pernas para cima e mergulhei, avançando com as mãos e puxando a água para trás de mim com as braçadas mais fortes que alguma vez conseguira. Então vi‑o, os cabelos a rodopiarem‑lhe por cima da cabeça, como se fossem algas, os braços a flutuarem molemente. Disparei na sua direcção e agarrei um braço. Puxei uma vez, mas ele parecia estar a puxar no sentido contrário. Voltei a puxar e senti o peso da sua resistência. Estava vivo! Contudo, os olhos, abertos, não estavam a olhar para mim nem para nada. Eu estava completamente sem ar e fui forçado a subir à superfície. Inspirei duas vezes muito depressa e depois enfiei uma terceira golfada funda nos pulmões, convicto de que o conseguiria salvar. Desta vez, lancei os braços à roda da cintura dele e prendi as minhas duas mãos uma à outra atrás das suas costas. Apetecia‑me gritar‑lhe: Ajuda‑me, raios te partam! Bati com os pés e puxei com toda a minha força. Mas ele não queria ‑ ou não podia ‑ ajudar‑me.

Não faço ideia quanto tempo permaneci debaixo de água a tentar trazer Daniel para cima, mas jurei não voltar à superfície enquanto não tivesse a cabeça dele acima da linha de água. Fechei os olhos e bati loucamente com os pés, mas, que Daniel, a Tia Beatriz e Violeta me perdoem, depressa fiquei tonto. A cerca de quatro palmos da superfície, os meus braços cederam. Ele caiu, afastando‑se de mim, completamente engolido pelo rio voraz. Naquele momento, vi‑me forçado a lutar pela minha própria vida. A água estava muito escura e eu já não conseguia saber dizer para que lado era para cima ou para baixo.

Então ouvi a voz do meu pai a gritar o meu nome. Voltei a fechar os olhos para o ouvir melhor. Mas ele não voltou a falar. Senti que estava a ser puxado para baixo pelo leito do rio.

Depois de alguns momentos da mais completa escuridão, senti qualquer coisa roçar‑me a mão. Um instante mais tarde, a luz inundou‑me os olhos. Estava fora de água. Ouvi vozes estridentes como moedas a espalharem‑se no chão.

‑ Bom rapaz! ‑ gritou um homem.

Eu tinha uma corda nas mãos e estava a engolir ar às golfadas. Um homem deitou‑me a mão e tirou‑me da água.

Não conseguia controlar a respiração. O meu peito parecia ter sido raspado com metal enferrujado.

‑ Ele está lá em baixo ‑ disse eu entre arquejos. ‑ O meu amigo Daniel! Por favor, ajudem‑no. Pode ainda não ser tarde.

Um marinheiro agarrou numa corda e mergulhou do patamar das escadas. Ficou lá em baixo uns curtos momentos e depois voltou à superfície.

‑ Puxem! ‑ gritou ele.

Daniel, com a corda atada à volta da cintura, depressa foi puxado para a superfície.

‑ Ajudem‑no! ‑ implorei.

Os homens deitaram‑no de costas. O marinheiro que tinha resgatado Daniel, e cuja cara escura e alarmada nunca esquecerei, carregou com as mãos no peito do meu amigo a pequenos intervalos. Em seguida, encostou o ouvido para ouvir o bater do coração do rapaz. Depois de mais algumas tentativas, o marinheiro abanou a cabeça. Bondosamente, estendeu a mão para agarrar a minha, mas, nessa altura, eu já estava incapaz de sentir o toque fosse do que fosse neste mundo. Embora estivesse a tremer, não tinha frio. Estava a ouvir o latejar nos meus ouvidos e estava a dizer a mim próprio que o impossível tinha acontecido e que eu era, em parte, responsável ‑ que agora teria de avançar às apalpadelas para um futuro que nunca devia ter existido.

Nessa tarde, antes de saber a notícia da morte de Daniel, Violeta arrastou‑se penosamente para casa vinda do mercado e descobriu ‑ encostado à sua casa, exactamente por baixo da sua janela ‑ o tampo da mesa que ele tinha esculpido com as caras das crianças. Embora eu estivesse colocado no centro, a espreitar por trás de uma grande fronde de feto, era a própria rapariga que tinha a única cara executada com todos os pormenores. De facto, os seus olhos estavam tão perfeitamente reproduzidos que Violeta se apercebeu, quando se ajoelhou para tocar pela primeira vez na oferta dele, que Daniel tinha conseguido captar o seu íntimo muito mais profundamente do que ela imaginara. Tinha compreendido a sua solidão como nunca mais ninguém iria ser capaz.

 

Imaginem a ingenuidade de um rapaz nascido no interior do labirinto escurecido pela fuligem das ruas em ruínas do Porto, que ainda acreditava que iria percorrer um caminho em linha recta até à felicidade. Mas, depois dos acontecimentos do dia vinte e sete de Maio de 1802, o conhecimento de que a vida nunca seria justa floresceu soturnamente dentro de mim.

No primeiro dia, recusei‑me a sair do quarto, demasiado exausto e desorientado para chorar mais. Parecia que me tinham feito andar à roda durante dias. Às vezes, fechava os olhos e tentava encontrar consolo no sono. Quando consegui falar sobre o que acontecera a Daniel, o pai apertou‑me nos seus braços vigorosos. Contei‑lhe a história desde o princípio, incluindo até a parte de ter estado a emborcar vinho na Taberna do Pepino, para nunca mais ter de a voltar a contar a ninguém.

Quando acabei, ele disse‑me:

‑ Meu Deus, John, tu és apenas um rapazinho. Não carregues com a responsabilidade do mundo.

Um conselho sensato, mas, naqueles primeiros dias, fiquei na escuridão do meu quarto com as cortinas corridas pois não conseguia correr o risco de ver nem o pai do rapaz nem a Tia Beatriz ‑ para não falar de Violeta.

Acreditava que veria acusações à minha fraqueza nos olhos de toda a gente. Todos sabíamos que Daniel não se conseguia manter afastado do perigo. Eu tinha estado de guarda nesse dia e não tinha cumprido o meu dever. Pior ainda, ao contar‑lhe aquilo sobre Violeta, não o teria empurrado para a morte?

Mais de duas décadas passadas, já não penso todos os dias na injustiça da sua morte e na minha culpa. Mesmo assim, é‑me quase impossível aceitar que tenho trinta e três anos de idade e que ele terá apenas catorze para todo o sempre.

Às vezes, conforta‑me pensar que, além das suas máscaras, herdei dele qualquer coisa do seu atrevimento e da sua coragem. Calculo que, ao princípio, imitei estas qualidades e, ao fazê‑lo, consegui incorporar uma pequena porção delas no meu ser.

O funeral realizou‑se três dias depois da sua morte. Os meus pais foram à curta cerimónia, mas eu gritei e esbracejei quando me sugeriram que fosse. Por fim, a Avó Rosa ficou comigo. Quando eu estava deitado na cama, ela disse‑me uma coisa que nunca esquecerei:

‑ É capaz de ter sido uma coisa boa, sabes, a morte deste rapaz. A mãe adoptiva dele não passava de uma prostituta barata, sabes? É por isso que ele nunca a via. Esse desgraçado estava a exercer uma influência deplorável em ti, meu filho.

As palavras dela enfureceram‑me de tal maneira que fiquei com febre. Quando os meus pais chegaram a casa, tinha a testa a escaldar e o pulso aceleradíssimo.

Quando ficámos sozinhos, contei à mãe aquilo que a mãe dela tinha dito. A mãe nunca mais me voltou a deixar sozinho com a Avó Rosa.

As alucinações começaram alguns dias depois, estava eu deitado de barriga para baixo na cama e ouvi nitidamente Daniel a chamar‑me da rua. Corri para a janela e julguei vê‑lo correndo rua abaixo, ao pé da cadeia. Chamei‑o, mas tinha desaparecido.

No sábado seguinte, reuni tudo o que me restava de coragem e aproximei‑me de Violeta no mercado.

‑ Desculpa ‑ comecei. ‑ Desculpa. Não quis deixá‑lo morrer. Tentei... tentei muito. Mas fui... fui demasiado fraco. Peço‑te desculpa, Violeta.

Ela agarrou‑me na mão. O meu coração deu um salto e solucei de gratidão. Mas ainda tinha demasiada vergonha para confessar que tinha dito a Daniel que ela iria para a América sem ele. Em vez disso, voltei a falar na fraqueza dos meus braços.

‑John, por favor, não te culpes.

‑ Então não me desprezas? ‑ perguntei roucamente, a minha voz pouco mais do que um sussurro.

‑ Claro que não ‑ respondeu ela dando‑me um beijo na testa.

‑ Não consigo acreditar que ele esteja mesmo morto ‑ disse eu. As lágrimas deslizaram‑lhe pela cara abaixo. Era tão frágil.

Quando se acalmou, disse‑lhe:

‑ Ainda vais continuar a vir ter comigo à noite? Estou muito preocupado contigo.

‑ Sim... sim, gostaria de o fazer. ‑Juras?

‑ Dou‑te a minha palavra.

Apesar da sua promessa, Violeta nunca mais voltou a atirar pedrinhas à minha janela. De vez em quando, eu passava pela banca dela e acenava‑lhe, mas ela voltava‑me as costas como se eu fosse lixo. Por fim, desisti de a procurar, convencido de que ela tinha reconsiderado e agora me achava desprezível.

Eu tinha assassinado Daniel e não podia haver remissão.

Violeta desapareceu quase um ano depois. Ninguém sabia para onde tinha ido. Uma vez, o Tio Salomão, o talhante, disse‑me que o tio dela tinha voltado uma noite, em segredo, e a tinha matado. Mas, nesta altura, eu já sabia um bocadinho mais do mundo e tinha a certeza que ela escapara ao seu destino da única maneira que uma rapariga sem um tostão a que pudesse chamar seu podia fazer ‑ saindo da cidade, sem nunca olhar para trás, e ganhando um salário de qualquer maneira que conseguisse. Tal como tinha a certeza de que nunca mais nos voltaríamos a encontrar.

 

A EXAUSTÃO TINHA‑SE APODERADO tanto do meu corpo como do meu espírito, visto que passara a sofrer de insónias todas as noites desde a morte de Daniel. Uma manhã, a mãe descobriu que eu estava cheio de febre. Durante os dias que se seguiram, sofri dores de cabeça violentas que faziam com que me fosse demasiado doloroso abrir sequer os olhos. Tinha piolhos e sofria de arrepios intermitentes.

Continuava a acreditar que, de vez em quando, ouvia Daniel a chamar‑me. Da minha janela, por duas vezes, tive um vislumbre dele a trepar pelos telhados do outro lado da rua.

A minha mãe agarrou‑me no braço quando lhe contei isto.

‑ Não quero voltar a ouvir nem mais uma palavra sobre esse rapaz! ‑ gritou ela. ‑ Estás a ouvir‑me, John? Nunca mais!

Quando o pai a levou para longe de mim, rebentou em lágrimas.

A teoria da minha mãe era que a alma de Daniel não fora capaz de deixar o nosso reino terreno devido à natureza violenta da sua morte e à sua ligação a mim.

‑ É mais provável que seja um feitiço ‑ foi a opinião discordante da Tia Beatriz, que me atou um rebento de rosmaninho à parte de trás do cabelo.

Também me pôs à volta do pescoço o talismã que pertencera a Daniel. Eu escondi‑o debaixo da camisa de noite.

Quando ela já se tinha ido embora, o Papá aproximou‑se da cabeceira da minha cama e deu um piparote no meu rabicho de rosmaninho.

‑ Toda esta superstição não passa de disparate ‑ soltou um suspiro, dando uma fumaça no cachimbo. ‑ Mas mal não te pode fazer, e se faz com que a Senhora Beatriz se sinta feliz... Tudo o que precisas ‑ declarou, expirando uma baforada de fumo docemente perfumado ‑, é de umas semanas de repouso absoluto e dos cuidados da mãe para te voltares a sentir bem.

Na tarde seguinte, um médico chamado Dr. Manuel veio ver‑me. O Papá explicou que ele tinha estudado uma coisa qualquer chamada frenologia na longínqua cidade de Viena ‑ o que queria dizer, explicou‑me a mãe, que ele conseguia diagnosticar doenças e prescrever curativos baseando‑se no estudo do crânio.

Quando ele agarrou na minha cabeça dorida com as mãos carnudas, quase saltei, pois elas apertaram‑me como um torno. Massajou‑me o crânio com os dedos e depois disse:

‑ És um rapazinho esperto, mas descuidado.

‑ Lá isso é verdade ‑ confirmou a minha mãe.

Ao fim de vários minutos de apertões, pancadinhas com as pontas e os nós dos dedos, ele localizou uma curiosidade reveladora na parte de trás da minha cabeça.

‑ Ah, sim ‑ disse ele no seu português esquisito. ‑ Muito inchado e fluidaceous.

‑ Santo nome de Deus, o que é que ele está a dizer? ‑ perguntou o meu pai à minha mãe.

‑ Senhor e Senhora Stewart, o vosso filho tem um córtex visual muito translocalizado ‑ causado pela sua condição pletórica. Tem um perigoso excesso de sangue na cabeça que faz com que esteja demasiado ligado a memórias visuais.

‑ Sim, isso parece correcto ‑ voltou a mãe a concordar.

‑ Recomendo a aplicação de sanguessugas ‑ declarou o frenologista, batendo no meu crânio no sítio que devia ser sugado pelas pequenas gárgulas. ‑ Depois veremos.

‑ Leecbes ‑ disse em inglês, em atenção ao meu pai.

Tirou um recipiente de cerâmica de cor creme do estojo médico de cabedal, de onde retirou um pequeno tubo perfurado. Naquela altura, eu já estava tão nervoso que, quando vi a primeira a balançar na mão enluvada do médico, gritei por socorro. Apesar da minha presumida ligação às memórias visuais, não me lembro nada do que aconteceu depois, exceptuando a sensação desagradável de me terem imobilizado por completo. Tenho todos os motivos para acreditar que as minhas mãos foram atadas com uma ligadura, uma vez que foi o que aconteceu durante os meus tratamentos posteriores.

Quando acordei de manhã, descobri a minha mãe e o meu pai a dormirem no meu quarto, completamente vestidos, exceptuando os pés descalços, abraçados, num sofá que tinham trazido do quarto deles. O pai ressonava com um cómico rat‑tat‑tat, com a boca aberta e o braço direito em cima do ombro da mãe, e esta estava enroscada como uma gata, com a cabeça no colo dele. Fanny tinha sido autorizada a entrar e estava estendida de costas, aos pés da minha cama, as patas no ar, as narinas a abrirem‑se e a fecharem‑se, como se estivesse a sonhar que flutuava.

Hoje, quando penso nos meus pais e em Fanny, gosto de recordar este momento; não podia ter‑me sentido mais protegido. Supus que a parte pior do meu tratamento já tinha terminado.

No entanto, o êxito num caso médico é determinado pelo médico e nunca pelo doente, cuja opinião é demasiado subjectiva para se poder levar em conta. No caso presente, que infelizmente era o meu, o tratamento inicial do Dr. Manuel foi considerado uma tremenda vitória sobre a acumulação pútrida da minha bílis, que ele descobriu ser responsável por aquilo a que chamava as minhas «transmigrações pletóricas do crânio». Muitos anos depois, um médico inglês deu‑me uma explicação muitíssimo mais simples: tifo. Este causa frequentemente o delírio, as alucinações, as dores de cabeça e a temperatura elevada de que sofri intermitentemente durante semanas e é provocado pelos piolhos.

Embora, felizmente, tenha esquecido a maior parte dos pormenores, sei que durante os três dias seguintes me foram aplicadas mais sanguessugas na nuca e que também fui purgado duas vezes por dia pela minha mãe. No final do terceiro dia de tratamento, o Dr. Manuel declarou‑me curado, com o que ele devia ter querido dizer que eu já tinha perdido sangue suficiente e absorvido veneno suficiente para morrer lentamente por vontade própria. De qualquer maneira, ele não viria torturar‑me na manhã seguinte. Estava salvo.

Dormi profundamente nessa noite, mexendo‑me apenas de madrugada, com a barriga a protestar da mistura de substâncias metálicas e minerais que me tinham sido enfiadas à força pela garganta. Ansiava por comer qualquer coisa substancial e só imaginava um banquete de pão‑de‑ló, arroz‑doce e rabanadas. Em bicos de pés, comecei a dirigir‑me para a cozinha para fazer uma razia nos doces, mas uma discussão no quarto dos meus pais distraiu‑me.

‑ Se insistires em partir ‑ gritava a minha mãe ‑, nesse caso, eu e o John não estaremos cá quando voltares!

‑ May, tenta compreender que estou a fazer isto por nós os três ‑ replicou o pai, chamando a mãe pelo nome que ele preferia.

‑ Se ao menos pudesses...

‑ Por nós os três! Como é que podes pensar em ir‑te embora com o teu filho no estado em que está?

‑ Já adiei a partida duas vezes. O barco parte depois de amanhã. Tenho de seguir nele.

‑ E como é que vais dizer isto ao John?

‑ Vou dizer‑lhe a verdade, como faço sempre.

‑ E a verdade vai tomar conta dele enquanto estiveres fora? A verdade vai impedi‑lo de enlouquecer?

O meu pulso começou a acelerar quando compreendi que o pai era capaz de se ir embora por se sentir desapontado comigo. Dei a volta à maçaneta da porta.

‑ John? ‑ exclamou a mãe.

Estava de pé, de camisa de noite, segurando um castiçal de estanho com uma vela acesa.

O pai estava nu, só com o barrete de dormir na cabeça, sentado na cama. Se me sentisse no meu estado normal, de certeza que teria soltado uma bela gargalhada.

‑ Entra, rapaz ‑ disse ele, fazendo‑me sinal para avançar. Quando me estendeu os braços, corri para ele a chorar. Pegou‑me ao colo e apertou‑me com força. Escondi a cara no ombro dele.

A mãe veio ter connosco e deu‑me um beijo no sítio onde as sanguessugas me tinham sugado o sangue. Nunca esquecerei como ela continuava a repetir:

‑ Tudo está a correr mal... tudo...

O meu pai informou‑me que ia partir para uma longa viagem.

‑ É... é por minha causa? Odeia‑me, Papá?

‑ Claro que não, John. Nunca te poderia odiar. Tem a ver connosco... com a família. Dá‑me um minuto que já te explico.

Enfiou o roupão e depois foi buscar o cachimbo à cómoda e começou a enchê‑lo com tabaco da sua bolsa.

‑ Também se vai embora? ‑ perguntei à mãe.

‑ Não, John, ficarei aqui contigo. ‑ Sentou‑se ao meu lado, deu‑me um beijo na palma da mão e fechou‑ma para o guardar. ‑ Estarei sempre contigo.

Depois de ter enchido e acendido o cachimbo, o Papá anunciou‑me no meio de uma grande nuvem de fumo:

‑ Vou fazer uma viagem até ao Sul de África, John. Por favor, não te aflijas, mas vou estar fora muito tempo.

‑ O que é que há em África?

‑ Terra para a nossa vinha.

‑ Mas já temos terra lá para cima do rio.

Apesar do braço da mãe à volta dos meus ombros, eu ainda estava a tremer. O Papá bateu as palmas.

‑ Anda, mete‑te dentro da roupa. Estás gelado.

‑ Vá, para dentro ‑ disse a Mamã, puxando o lençol e o cobertor por cima de mim e sorrindo com renovada coragem.

O pai sentou‑se ao meu lado e alisou o cobertor vermelho de lã inglesa em cima do meu peito e das minhas pernas. A mãe meteu‑se dentro da roupa, pôs o braço por baixo da minha cabeça e fez‑me cócegas na orelha.

Desenhando um movimento no ar com o cachimbo, o meu pai disse:

‑ Vou de barco até à Costa do Ouro, passo por Angola e vou mesmo até à pontinha de África. ‑ Assinalou o seu destino com um golpe. ‑Os Britânicos apossaram‑se do Cabo. Em breve, haverá milhares de homens a cultivar essa terra rica.

‑ Mas nós temos sete varas quadradas para cima do rio. Foi o Papá que me disse.

‑ Sim, filho, é verdade. Mas no Cabo, há terrenos do tamanho do Porto que o Governo britânico está a vender por uma bagatela. Imagina, John, daqui a alguns anos terei o suficiente para poder comprar cem jeiras. Até mesmo duzentas, meu rapaz. Aqui, em Portugal, isso nunca estaria dentro das minhas posses.

‑ Quer dizer... quer dizer que somos capazes de ir viver para África? ‑ perguntei.

‑ Sim, mas não é para já, filho. Daqui a alguns anos ‑ se eu descobrir o sítio certo. É por isso que tenho de partir agora. Compreendes?

Disse que sim, mas sentia‑me confuso.

‑ Vai tudo correr bem. Agora, vai dormir com um bom sono kelpie pequenino ‑ disse ele dando‑me um beijo na face.

‑ Mas estou esfomeado ‑ exclamei. ‑ Acho que tenho um buraco na barriga!

‑ Às quatro da manhã? ‑ perguntou a mãe.

‑ Quero uma coisa doce. Estou todo dorido por dentro.

O Papá soltou uma gargalhada, depois abanou a cabeça e disse com o seu sotaque escocês mais forte:

‑ Queridíssima May, não podes discutir com um rapaz que precisa de meter umas papas de aveia na barriga.

A Mamã fez‑me rabanadas. Observaram‑me a comer com grande prazer, o meu pai a tirar disfarçadamente bocadinhos de côdea com o garfo e a roubar aquilo que eu deixava. A Mamã estava tão feliz que nos tocou o Primeiro Prelúdio do «Cravo Bem Temperado» de Bach, uma peça que, para mim, sempre significou alegria. A seguir fui convidado a ir outra vez para a cama deles. Adormeci no meio dos dois, encostado ao flanco do meu adorado pai, que me segurava na mão por baixo da roupa e a quem eu queria implorar que ficasse connosco e nunca se fosse embora.

Dois dias depois, pouco passava das oito da manhã, ele estava a dizer‑nos adeus no cais. Vestindo um casaco de viagem de sarja azul, a rebentar de excitação, beijou‑me primeiro a mim e depois a minha mãe. Depois de me ter voltado a levantar ao ar para uma pirueta final, tirou‑nos o chapéu e voltou a dizer‑nos para não nos preocuparmos.

Embarcando no navio inglês de mastros altos, ia para Lisboa e depois para África. Gostaria de dizer que ele me tinha dito umas últimas palavras para me aconselhar, mas lembro‑me de que tudo quanto nos disse foi:

‑ Não me julguem com demasiada severidade. Só quero fazer bem. Isso é tudo o que sempre desejei.

E foi assim que eu e a minha mãe fomos deixados sozinhos durante cerca de dois meses e meio, até meados de Agosto. Gostaria de dizer que prosperámos juntos, mas através de um processo de alquimia conhecido apenas por aqueles que foram deixados para trás pelos seus amados, transformámos tudo que poderia ter brilhado como ouro em chumbo do mais inferior.

Não posso dizer se, na verdade, me queria matar, nem posso dizer por que é que escolhi o cimo do nosso telhado. Só sei que, alguns dias depois da partida do meu pai, numa noite de insónia, voltei a arder em febre. Daniel apareceu‑me à cabeceira. Com uma máscara com um focinho comprido e hastes de veado, disse‑me que a minha morte lhe permitiria juntar‑se a Deus no Céu. Não tinha nenhuma razão para não acreditar nele.

O Sol estava quase a nascer. Subi até à Torre de Vigia, trepei para o telhado pela janela saliente, caminhei solenemente até à borda, fechei os olhos e saltei. Quando acordei, não me encontrei no céu com o meu velho amigo como tinha esperado. Em vez disso, estava deitado nas pedras frias da calçada e um homem barbudo, que eu nunca tinha visto, estava a olhar para mim de uma distância assustadoramente curta.

Tinha sido encontrado por um vendedor ambulante de fruta que, depois de se ter assegurado de que eu ainda respirava, bateu com toda a força na nossa porta da frente até acordar a minha mãe. Ao ver‑me imóvel e de olhos fechados, ela teve a certeza de que o seu único filho lhe tinha sido tirado para sempre.

O Dr. Silva, o médico do nosso bairro, descobriu depois que eu fracturara a perna direita logo abaixo do joelho, magoara a anca esquerda e tinha sofrido algumas lacerações na testa e nas mãos. Depois de me terem cosido, untado com unguentos e ligado, a Mamã explicou ao médico e à Tia Beatriz, e a todas as pessoas que perguntaram, que eu tinha tido a fantasia momentânea de que era capaz de voar.

Sempre que me perguntaram, neguei veementemente ter visto Daniel.

Nos dias seguintes, a minha mãe manteve‑se de vigília no meu quarto enquanto eu recuperava dos meus ferimentos. Ficou tão preocupada comigo que nem sequer conseguia tocar piano. Era frequente pôr‑se a puxar nervosamente pelo lindo bordado de flores que cosera na gola do vestido. Podíamos ter continuado a percorrer esta estrada de ansiedade se a minha mãe não tivesse descoberto que, administrando‑me meia colher de chá de um líquido com um cheiro adocicado que vinha num pequeno frasco com o rótulo Tr. Opii, me conseguia manter calmo e livre de alucinações durante todo o dia.

O ópio mantinha de facto Daniel no seu túmulo, mas o preço era o de me tornar apático, fraco de corpo e insuportavelmente sequioso. Durante as semanas que se seguiram, a minha vida foi um meio sonho e fui ficando cada vez mais fraco até só conseguir falar num murmúrio e não desejar mais nada a não ser estar deitado na cama, com as portadas das janelas fechadas. Tinha a sensação de que o meu centro era feito de lã escura e macia.

Ao fim de um mês de convalescença severa, a minha perna estava suficientemente forte para aguentar o meu peso, mas continuando a flutuar no meu estado drogado, recusava‑me a largar as muletas. Uma vez, a minha mãe, referindo‑se a este período, disse que eu todos os dias ia entrando mais pelos Portões da Morte. Contudo, ela tinha demasiado medo de parar de me dar o ópio. Assustada e sozinha, sofrendo também de insónias, não conseguia pensar com clareza.

Durante vários anos achei que ela tinha exagerado a minha proximidade da morte, pois eu não estava consciente do meu estado deplorável. Mas quando falei com Luna Oliveira sobre esse período, ela disse que também ela estivera convencida de que eu não tardaria muito a juntar‑me a Daniel. Disse‑me que tê‑lo perdido a ele e a Violeta tinha despedaçado o meu coração jovem.

Enquanto eu lutava para permanecer no nosso mundo, o meu pai anunciou‑nos o seu regresso. Já tinha chegado a Lisboa e decidira passar ali três noites para tratar de uns assuntos para a Companhia do Douro, fazer a barba e libertar‑se do cheiro da viagem de mar. Mas a carta levou dois dias a chegar. Era exactamente no dia seguinte, vinte e nove de Agosto, que ele ia atracar no Porto, por volta do meio‑dia.

A mãe e eu receávamos falhar miseravelmente na tentativa de causar boa impressão e, por isso, na manhã do grande dia, às onze horas em ponto, ela deu‑me uma dose e meia do seu extracto de ópio. Fiquei tão desorientado durante algum tempo que, para ficar com um ar saudável, corri no último minuto para o andar de cima, piquei o dedo com um alfinete e esfreguei o sangue nas minhas faces pálidas.

O barco estava atrasado e já passava bastante da uma hora quando o vimos a subir o Douro. Quando o Somerset lançou a âncora, a minha mãe pôs‑se em bicos de pés para conseguir ver o Papá. Quando ele apareceu no convés, ela apertou‑me a mão com tanta força que estremeci com a dor.

Ele não viera sozinho. Com ele estava um homenzinho de pele escura, que não tinha mais de metro e meio de altura. Meses mais tarde, descobri qual era o seu nome original, que era Tsamma, a palavra na sua língua para um melão especial do deserto do Kalahari. Este fruto tinha uma importância muito grande para o seu povo e, na realidade, para todas as criaturas da África Austral, pois o seu líquido sustentava todos durante os períodos de seca. Mas foi‑me apresentado como Midnight(1).

 

*1. Midnight ‑ Meia‑noite. (N. da T.)

 

Nessa tarde, NO cais, a primeira coisa em que reparei em relação a Midnight foi na sua cor, que não era puro negro ‑ como o seu nome poderia sugerir ‑ mas bronze. A segunda foi a sua estatura diminuta, pois era apenas ligeiramente mais alto do que a minha mãe. Este era o tamanho que se podia esperar de um rapaz que ainda estivesse a crescer, mas não havia dúvida de que ele era um homem de uns vinte e cinco, ou até mesmo trinta anos de idade.

Depressa vim a descobrir que ele também não estava seguro da idade que tinha, uma vez que o seu povo datava os nascimentos ligando‑os a acontecimentos naturais do mundo. Quando falámos disso, deu‑me uma resposta que me deixou atónito:

‑ Posso ser da idade das flores silvestres que floriram no ano da tempestade de granizo no vale de Gemsbok. O vale estava todo muito, muito verde, estás a ver. ‑ Desenhou um círculo no ar com as mãos, depois juntou‑as e abriu‑as num remoinho de flores. ‑ Tão brilhantes e tão coloridas com um oásis de flores no deserto. Não sabia dizer mais do que isso.

Midnight sorriu‑me abertamente enquanto se encaminhava para terra num passo vivo, como se gostasse tanto do simples acto de andar como de um excitante jogo de bola. Os seus olhos ‑ escuros e ligeiramente oblíquos à maneira oriental ‑ pareciam albergar um divertimento secreto de que só ele tinha conhecimento. Apreensivo como estava, interpretei erradamente isto como uma indicação de que ele me achava cómico por qualquer razão, o que me irritou. Embora sonolento e frágil como um boneco de papel, mantive os olhos bem abertos e uma postura rígida. Midnight continuou a sorrir‑me enquanto ele e o meu pai se aproximavam e lembro‑me de pensar: Ele épavorosamente feio e não gosto dele. Espero que não tente tocar‑me.

Olhei para a minha mãe, que estava com uma expressão horrorizada.

Desviando os olhos dela, reparei que as orelhas de Midnight, coladas à cabeça e estreitando‑se para cima, eram iguais às que eu tinha visto em casa das irmãs Oliveira em imagens de Pã. O cabelo, preto, estava enrolado em caracóis apertados que pareciam pequenas bolas de lã.

O meu pai, depois de me beijar a mim e à minha mãe e de dizer que tinha tido imensas saudades nossas, apresentou‑nos o seu visitante africano. Disse que era sua intenção, se concordássemos, que Midnight ficasse connosco durante «umas curtas semanas». Muda de espanto, a minha mãe não deu resposta.

Midnight levantou‑lhe a mão para a apertar, um pouco mais vigorosamente do que poderia ser considerado apropriado, e disse:

‑ Bom dia, Senhora Stewart. Vimo‑la de longe e estamos a morrer de fome.

Não havia nenhum traço de humor na sua voz; pelo contrário, falava com veneração, como se estivesse na presença da realeza. O meu pai explicou que aquilo era a saudação tradicional do povo de Midnight.

A minha mãe replicou:

‑ Tenho muito prazer em conhecê‑lo, senhor ‑ omitindo qualquer referência à sua permanência em nossa casa.

Recusei‑me a apertar‑lhe a mão e não respondi quando me disse que estava muito feliz por me conhecer depois de o meu pai lhe ter falado tanto de mim. Mantive as mãos atrás das costas e a boca cerrada num silêncio maldoso.

O meu pai deitou‑me um olhar furioso. Foi então que Midnight pareceu ver uma nódoa ou uma migalha na minha cara. Só mais tarde percebi que ele tinha reparado na cicatriz em forma de L que eu tinha feito ao cair do telhado. Com uma expressão preocupada, baixou‑se para mim. Levantei rapidamente a mão direita para impedir que os seus dedos me tocassem, mas não fui suficientemente rápido. Segurou‑me o queixo com a mão, cujos dedos estavam frios. Olhou‑me fixamente. Os olhos dele pareciam luas.

‑ O rapaz está de facto muitíssimo doente ‑ disse Midnight, olhando preocupado para o meu pai.

O Papá ajoelhou‑se à minha frente, fazendo uma careta de medo.

‑ Até que ponto é que as coisas têm estado mal com o John? ‑ perguntou à minha mãe.

‑ Conto‑te em casa.

‑ Conta‑me agora.

Ela ignorou‑o e perguntou se o senhor Midnight nos iria acompanhar até casa.

‑ Sim ‑ respondeu o meu pai, batendo com o chapéu na anca, de zangado que estava. ‑ Acabei de te dizer que era essa a minha intenção.

‑ Então vamos ‑ respondeu ela secamente.

Foi uma caminhada tensa desde a beira‑rio até nossa casa. A Mamã, que tinha andado a planear atirar‑se para os braços do Papá e entregar‑lhe todas as suas ralações, abandonou rapidamente esse curso de acção. Só falava quando lhe dirigiam a palavra e, mesmo assim, só por monossílabos. O Papá agarrava‑lhe a mão como se tivesse medo que ela desaparecesse se ele a largasse. Disfarçadamente, deitava‑me olhares preocupados e parecia cada vez mais sorumbático, convencido, sem dúvida, de que as nossas vidas tinham ficado mais desesperadas do que alguma vez temera. Eu estava dolorosamente envergonhado e tentava não olhar para Meia‑noite, que saltitava ao meu lado.

Mal chegámos a casa, a mãe mandou‑me levar o nosso convidado para o jardim, num tom tão frio que não me atrevi a protestar. Quando saímos, Midnight disse‑me:

‑ O teu pai disse‑me que tens andado a ver um amigo que morreu. Furioso, recusei‑me a responder, porque, na minha opinião, partilhar

este segredo com estranhos não fazia parte dos direitos do meu pai.

Fanny correu para nós, com a cauda a abanar. Apesar do meu severo olhar de aviso, ela gostou imediatamente do nosso convidado e não tardou a começar a lamber‑lhe as mãos e a cara. Ele ria‑se e falava‑lhe usando uns estalidos.

‑ Deixa‑a em paz. Ela só percebe os meus assobios. Ele levantou‑se.

‑ Ela faz muitas habilidades, não?

‑ Só uma. Morde nos estranhos! ‑ retorqui rudemente.

Ele riu‑se ao ouvir aquilo, os ombros largos a estremecerem. Drogado ao ponto de estar em transe, perfumado como uma princesa, furioso como um touro e enfeitado com uma fita vermelha ao pescoço, eu devia ser uma visão verdadeiramente desgraçada e risível. Naturalmente, acreditei que era por isso que Midnight continuava a olhar furtivamente para mim enquanto se enfiava pela confusão emaranhada que era nessa altura o nosso jardim, seguido por uma Fanny muito curiosa.

Eu voltei rapidamente para dentro para ouvir, às escondidas, a conversa dos meus pais. A mãe estava a falar, num murmúrio, da minha queda do telhado. Deu a entender delicadamente que podia não ter sido um acidente.

Depois prosseguiu referindo que, em consequência disso, tinha passado a administrar‑me uma colher de extracto de ópio todas as manhãs. Nesse momento, a tampa saltou e o Papá acusou‑a de me estar a tentar envenenar.

‑ Estás a drogar o rapaz, mulher imprudente!

‑ Estou a lutar por ele da única maneira que sei! ‑ gritou a Mamã. ‑ Para ti é fácil criticares‑me, mas o que é que sugeres que eu deveria ter feito?

Quase de imediato, o meu pai pediu desculpa e dirigiram‑se os dois para o quarto. Não ouvindo mais nenhuma discussão nem conversa, parti do princípio que o meu pai não tinha conseguido resistir ao sono provocado pela viagem. Resmungando comigo mesmo por me terem negligenciado assim, voltei para o jardim, onde descobri o Africano sentado nos calcanhares no meio de uma profusão de ervas daninhas que lhe chegavam à altura dos ombros, os olhos fechados, respirando suavemente.

Em voz alta, para que ele pudesse ouvir e ofender‑se, comentei:

‑ Aquilo deve ser a maneira de os Africanos dormirem. Nem sequer têm juízo suficiente para se deitarem.

Os olhos permaneceram fechados, embora eu visse um sorriso perpassar‑lhe pelos lábios. Passaram‑me pela cabeça várias ideias para um assassinato.

Arrastando‑me para dentro de casa, deixei‑me cair no tapete persa da nossa sala de estar, apoiei a cabeça numa das almofadas que a minha mãe bordara recentemente com tulipas e passei pelas brasas. Nos meus sonhos, havia portas a abrir e a fechar. Ratos a fugir. O tecto inchava e parecia esmagar‑me o peito.

Acordei passado um bocado com uma dor surda na barriga. E a minha cabeça... um duende diabólico apertava um sarilho enferrujado em volta do meu pescoço.

O Papá não tardou a descer as escadas excitadamente, muito alegre.

‑ Ora viva, John, como vais meu rapaz? Sentei‑me e espreguicei‑me.

‑ Óptimo, Papá. Cansado.

Não estava tão doido de alegria por o ver como tinha imaginado que iria estar, pois ele parecia‑me muitíssimo mudado. Os olhos pareciam‑me demasiado azuis, o cabelo comprido demasiado apertado atrás. Sendo novo, não sabia que depois de uma longa ausência é muitas vezes necessário um período de reajustamento. Parecia‑me muito provável que nunca mais o viesse a amar como amava dantes.

‑ Então o que é que pensas do nosso Midnight? ‑ perguntou‑me ele.

‑ É muito escuro ‑ respondi eu. O meu pai soltou uma gargalhada.

‑ Pois, sim, suponho que é. Bastante negro, comparado com um escocês pálido como tu.

A Mamã desceu as escadas, a prender o cabelo com os ganchos. Sorriu para o Papá, que lhe piscou o olho. Ele tirou um dos seus cachimbos de um suporte em cima da lareira, uma beleza de sepiolite com uma cabeça de morcego esculpida, que tinha sido comprado em Glasgow muitos anos antes pelo seu pai. Tirando a bolsa de tabaco da algibeira do colete, suspirou:

‑ É bom estar em casa.

A Mamã anunciou que nos ia fazer chá. ‑ Para vos dar algum tempo a sós ‑ disse ela com um sorriso radioso, e saiu para o jardim a fim de tirar água com a bomba e encher a chaleira.

O Papá convidou‑me simpaticamente a sentar‑me ao lado dele na poltrona de brocado azul e verde geralmente reservada para a Mamã.

‑ Calculo que Midnight ainda esteja no jardim ‑ disse ele inclinando‑se para mim e enchendo o fornilho do cachimbo com uma pequena quantidade de tabaco. ‑ Tenho muita pena que tenhas sido um kelpie triste. Vou tentar compensar‑te agora que estou em casa.

‑ Tenho estado muito bem ‑ repliquei.

‑ Pois, eu estou a ver o bem que tens estado. E sei que remédio a tua mãe te tem estado a dar. ‑ Sacudiu uns farrapos de tabaco que lhe tinham caído nos calções. ‑ Não penses que não sei quantos cabelos tens na cabeça. Mais tarde, vou contá‑los para ter a certeza de que não caiu nenhum enquanto estive fora! ‑ Sorriu gentilmente.

Fiz os possíveis para partilhar a sua alegria, mas o sarilho enferrujado continuava a apertar‑me o pescoço...

‑ Ao que sei, também perdeste o apetite. Não estou nada satisfeito com isso, John. Ora bem, o que é que dirias se deixássemos de te dar o remédio? Achas que podes voltar a sofrer esse... esse teu problema especial?

A possibilidade de deixar de ter acesso à minha colher de ópio encheu‑me de preocupação.

‑ Então? ‑ incitou‑me ele.

‑ Vou tentar com todas as forças não ver nem ouvir Daniel ‑ respondi‑lhe, relutante em estragar‑lhe o regresso a casa.

‑ Midnight é capaz de te poder ajudar, sabes? Que opinião tens dele até agora?

‑ Não tenho opinião, Papá.

‑ Mas claro que tens ‑ apontou o bucal do cachimbo na minha direcção. ‑ Vamos lá, rapaz, deita‑a cá para fora.

Uma vez que ser mandado para a cama era, provavelmente, o pior que me podia acontecer e uma vez que não me teria importado de ir dormir, respondi:

‑ Não gosto dele. Acho que ele é feio.

‑ Mas porquê, meu rapaz?

‑ Não consigo perceber por que é que ele está cá ‑ respondi. ‑ O senhor tem de admitir que ele é estranho.

O Papá deu umas fumaças pensativamente e depois disse:

‑ A um dos teus passarinhos, de certeza que ele não ia parecer muito diferente de ti ou de mim.

Eu não tinha assim tanta certeza.

A Mamã voltou para colocar as suas chávenas e pires com o desenho dos moinhos na nossa mesa redonda de madeira.

‑ Só estou à espera que a água ferva ‑ disse ela. ‑ Têm estado a ter uma conversa agradável?

Assenti com a cabeça e o Papá beijou‑lhe a mão. Depois, voltou‑se para mim:

‑ Filho, se ele é meu amigo, isso não te chega?

A Mamã mordeu o lábio enquanto pensava se devia dar a sua opinião em voz alta.

Eu estava prestes a mentir para evitar uma crise quando ela disse: ‑James, por favor, sê razoável. John e eu ainda não o conhecemos.

‑ Se ele fosse um amigo de Londres, May, estarias tão reticente?

‑ Não sei. ‑ Abanou a mão num gesto desdenhoso. ‑ Não vale a pena discutir, James, porque John tem razão. Ele é demasiado escuro para ser inglês e os vizinhos podem não ser tão... generosos como tu e eu.

Senti que ela tinha cometido um erro ao mencionar a parcialidade dos nossos vizinhos. O Papá não se interessava nem um bocadinho pela opinião deles em relação aos convidados da nossa casa, nem em relação a nada.

Inalou demasiado fumo, o que o fez tossir. Depois de ter aclarado a garganta várias vezes, procurou calá‑la dizendo:

‑ May, gostaria que soubesses que Midnight era um súbdito da Coroa Britânica na Colónia do Cabo.

A Mamã sentou‑se numa das suas cadeiras Windsor, colocando‑a ao meu lado como se quisesse mostrar uma defesa comum do nosso lar.

‑ Isso, querido marido, não faz dele um britânico.

‑ Bem, então que se danem os Britânicos e os vizinhos! E tu, também May, por seres tão inteligente.

O Papá deu umas fumaças furiosas no cachimbo e quase nos sufocou na sua nuvem de fumo zangada. Mas quando falou, foi com uma ternura renovada.

‑ Aprendi que ele é um homem muito bom. Por isso, farei um contrato convosco. Se, daqui a três semanas, continuardes a achá‑lo desagradável, eu pago‑lhe a viagem de regresso ao Cabo e nunca mais o vereis.

‑ É só que ele não podia ter vindo em pior altura ‑ observou a Mamã, sentindo que tinha sido mais ofensiva do que aquilo que pretendera. ‑ Caso contrário, eu sentir‑me‑ia feliz em o receber aqui em casa.

‑ Pelo contrário, May, seria difícil encontrar uma altura melhor, como te estive a dizer.

‑ Sim ‑ ela apertou as mãos com força ao colo. ‑ Espero que tenhas razão.

‑ Três semanas é tudo o que peço. É demasiado para dar a um marido que esteve longe tempo demasiado e que teve tantas saudades da mulher e do filho?

Estas palavras enfraqueceram a determinação da minha mãe e a minha também. Concordámos com o pedido dele.

O Papá fez‑me uma festa no cabelo.

‑ Não tenhas medo, John ‑ disse ele, fazendo‑me festas na cabeça ‑, porque eu agora estou em casa e tu vais ficar melhor. Vou conseguir isso nem que seja a última coisa que faça.

Estas palavras gelaram‑me, uma vez que davam a entender que podia ser necessária uma longa guerra para que a saúde me fosse restituída. Mesmo assim, fiquei satisfeito por ele encher o cachimbo pela segunda vez e continuar a acariciar‑me o cabelo, pois o seu cheiro e carícias calmantes fizeram com que, finalmente, sentisse que ele tinha voltado para casa e para mim. Engoli o chá e encostei a chávena quente às têmporas para acalmar o pulsar. Rezei para que Daniel ficasse longe de mim.

Por volta das cinco da tarde, o meu pai saiu de casa com Midnight atrás dele. Explicou que tinha um compromisso na Companhia do Douro a que não podia faltar.

Mal a porta da frente se tinha acabado de fechar, a minha mãe voltou‑se para mim, dizendo:

‑ Volto já. Não ‑ repito! ‑, não te atrevas a sair ou a fazer tolices.

E, então, também ela saiu.

Sentei‑me no jardim, a atirar a bola de couro da Fanny para as ervas para que ela a fosse buscar, lutando contra a náusea no estômago. Quando a minha mãe voltou, meia hora depois, perguntei‑lhe se a estada de Midnight em nossa casa tinha alguma coisa a ver comigo. Ela replicou que o Africano estava ali para ajudar o meu pai, embora confessasse que não fazia a mínima ideia do que é que isso queria dizer. Também me contou que fora interrogada na rua por várias mulheres sobre a estranha «criatura» de pele escura que tinham visto a sair da nossa casa.

‑ Durante as próximas três semanas, John, vamos ouvir muitos comentários ‑ acrescentou, levantando um dedo num aviso. ‑ E não tenciono deitar mais nenhuma acha para esta fogueira.

Voltámos a ver o Papá e o nosso hóspede africano antes do jantar. Midnight não era grande apreciador de sapatos e deixou os dele, juntamente com as meias, à nossa porta. Tinha pés pequenos e muito arqueados, como os de um duende.

À mesa do jantar, debiquei as minhas sardinhas e consegui, por pura força de vontade, comer uma inteira, assim como várias batatas cozidas, embora não tivesse apetite nenhum.

Midnight tirou uma roca com apito do bolso do colete antes de vir para a mesa, exactamente aquela que eu tivera quando era bebé. Tinha várias bolinhas pequeninas de metal presas com correntes a um tubo central. Ele fazia‑a girar nas mãos, dando origem a um tilintar que lhe dava grande prazer. Era capaz de estar à espera que nos juntássemos a ele no apreço por esta bugiganga, mas a única pessoa que lhe sorriu foi o meu pai.

O Africano pousou o brinquedo ao lado do prato e sentou‑se à nossa mesa, muito direito e com uns modos muito dignos. Depois de ter recebido autorização do Papá, começou a comer. A Mamã e eu observávamo‑lo atentamente, esperando que ele não tivesse quaisquer maneiras.

Tinha mãos pequenas, mas delicadas, como as de um tecelão, pensei eu. Embora usasse a faca e o garfo com certa elegância, utilizou, por várias vezes, a ponta do dedo para espetar um bocado de batata nos dentes do garfo. A minha mãe ergueu as sobrancelhas ao ver estes gestos, guardando cada faux pas como munições. Mas o que de facto a aborrecia era ele nunca dizer obrigado ‑ nem quando foi convidado a sentar‑se, nem quando lhe passavam a manteiga, nem mesmo quando lhe enchiam o copo de vinho.

Perante estes gestos, limitava‑se a sorrir.

A minha mãe estava a franzir os olhos, um sinal seguro de que se estava a preparar para o interrogar longamente num futuro próximo. Eu estava decididamente pronto a apoiá‑la em qualquer discussão, visto que os meus pais insistiam sempre que eu dissesse obrigado à menor oportunidade.

‑ O meu marido diz‑me, senhor, que é da África Austral ‑ disse a minha mãe.

‑ Isso é correcto‑correcto, minha senhora ‑ respondeu Midnight com um sorriso.

‑ É o quê?

O pai agarrou na mão da mãe, ao mesmo tempo que dizia:

‑ Midnight usa frequentemente duas palavras para dar ênfase.

‑ Ah, sim? Bem, então diga‑me exactamente de onde‑onde é.

O pai soltou uma gargalhada com esta graça, mas refreou a boa disposição quando ela lhe franziu o sobrolho.

‑ Nasci perto da Colina do Céu.

‑ A Colina do Céu? ‑ repetiu ela desdenhosamente, espetando um bocado de batata com o garfo. ‑ E que lugar é esse?

‑ Esse lugar é uma montanha grande‑grande que cintila azul ao pôr do Sol.

‑ Azul? Como é que é azul ao pôr do Sol, senhor?

‑ É muito, muito azul ‑ disse ele, assentindo ansiosamente com a cabeça. ‑ O mais azul que há.

A minha mãe voltou a estreitar os olhos e passou a língua pelos lábios como se se estivesse a preparar para comer o nosso convidado como jantar.

‑ «Muito, muito azul» ‑ ecoou sarcasticamente. ‑ «O mais azul que há.» Sim, deve ter sido isso mesmo.

Percebi que a táctica dela era fazer sobressair a peculiaridade das respostas dele repetindo‑as. Era uma estratégia inteligente que teve o efeito contrário em mim, uma vez que ouvir as expressões dele uma segunda vez só me convencia de que ele tinha uma mente ágil e criativa.

‑ E que idade é que tem, senhor? ‑ continuou ela.

Foi nessa altura que ele nos disse que era da idade das flores silvestres que floresceram no ano da tempestade de granizo por cima do vale de Gemsbok. Sem se mostrar receptiva ao óbvio talento dele para a descrição, principalmente tendo em conta que o inglês não era a sua língua nativa, a minha mãe insistiu numa resposta mais clara.

‑ Mas em anos, que idade tem? ‑ insistiu, pousando o garfo violentamente, com a irritação.

Midnight sorriu e abanou a cabeça num pedido de desculpa. O meu pai engoliu meia batata a ferver. Abanando com a mão o calor da boca agora aberta, disse:

‑ É difícil de dizer, minha querida. O povo dele são os Boximanes. Não contam as idades em anos.

Engoliu o vinho de uma vez e soltou um suspiro de alívio.

‑ Isso é absurdo ‑ replicou a minha mãe.

O meu pai limpou a boca com o guardanapo.

‑ Posso perguntar‑te quantos passos precisas para ires daqui até casa da tua mãe?

‑ Claro que podes. E não faço ideia.

‑ Isso é porque medes a distância pelos minutos que levas a percorrê‑la. Um boximane mede a idade de maneira diferente da nossa, mas para ele faz todo o sentido do mundo.

‑ Que disparate! ‑ exclamou ela.

‑ Pode ser ridículo, May, mas está perfeitamente de acordo com a vida dele.

Entreolharam‑se, carrancudos, e não disseram mais nada.

‑ O que é um boximane? ‑ perguntei eu, pois nunca tinha ouvido aquele nome.

O meu pai serviu‑se de mais vinho.

‑ Os Boximanes foram o primeiro povo que habitou a África Austral. São nómadas e caçadores e, para acompanharem as grandes chuvas, deslocam‑se centenas de léguas através do deserto, da savana e da selva. Asseguro‑te, tendo‑os visto em acção, que não há caçador mais rápido e mais preciso à superfície da terra. Mas, ultimamente, têm vindo a ser mortos às centenas e obrigados a dispersar pelos Holandeses e pelos Ingleses ‑ e até mesmo por outros africanos.

Olhou afectuosamente para o nosso hóspede, que estava a olhar tristemente para o prato.

‑ Midnight não passava de um rapazinho quando foi roubado do seu povo. Os pais foram mortos num ataque violento por um comandante holandês chamado Neal, um bruto terrível que matou milhares de pessoas do povo de Midnight. O rapaz foi levado para as fazendas de um dos oficiais de Neal, onde passou a ser moço de recados. Depois disso, foi abandonado e teve de se desenvencilhar sozinho. Usando a sua perícia em seguir pistas, descobriu o caminho de regresso para o seu povo. Anos mais tarde, noutro ataque, os seus novos parentes foram também mortos. Nessa altura, já era um jovem e voltou a ser vendido, desta vez a um homem do Yorkshire chamado Reynolds, que tinha uma vinha nas redondezas.

Foi aí que o conheci. Por isso, estás a ver, há boas razões para ele não saber a idade por processos que nós possamos entender.

‑ Se eles são todos assim tão bons caçadores, Papá, por que é que os pais dele foram mortos?

Nessa altura, sentia‑me satisfeito por poder estar a provocá‑lo com esta pergunta indiscreta.

O meu pai colocou uma seta imaginária num arco invisível, apontou para a janela do jardim e deixou‑a voar.

‑ O arco de pouco serve contra um mosquete, John. Até tu sabes isso. ‑ Piscou‑me o olho ao dizer aquilo e eu percebi que ele tinha usado a palavra até para me castigar. ‑ Não são comparáveis. Mas asseguro‑te, meu rapazinho ‑ e aqui acentuou a seriedade do seu argumento cerrando o punho e apontando‑me ‑, que se os boximanes lutassem com os Ingleses em pé de igualdade, Midnight e os seus sairiam sempre vitoriosos. Tal como os Escoceses. ‑ Disse isto num tom de orgulho, reclinando‑se para trás na cadeira. ‑ Ainda recentemente vi um dos do seu povo matar uma gazela a cem passos de distância, com uma seta direita ao coração. Não, ninguém que dê valor à sua própria vida quereria incomodar Midnight ou a sua gente.

O nosso convidado continuava com a cabeça baixa, claramente perturbado. Linhas minúsculas, como os raios de uma roda, espalhavam‑se‑lhe pela cara a partir dos olhos em forma de amêndoa.

‑ Então, senhor, o que é que nos pode contar de África? ‑ perguntou a minha mãe.

Midnight nunca tinha viajado para além das fronteiras de África, por isso, pedir‑lhe para falar do seu continente era a mesma coisa que pedir‑lhe para falar do próprio mundo, e foi por isso, estou convencido, que ele apontou na direcção do nosso tecto e disse:

‑ Nos céus estão as estrelas que são os grandes e poderosos caçadores. Elas dançam para trazerem o sol de volta, tal como os boximanes dançam para trazerem a lua de volta. ‑ Abrindo as mãos na direcção da minha mãe, como se lhe estivesse a oferecer uma prenda preciosa, acrescentou: ‑ E depois há o Louva‑a‑deus, que desce do céu para o deserto.

A minha mãe estava visivelmente desconcertada com a beleza das palavras dele, ao ponto de, estou convencido, ele a ter conquistado. Mas aclarou a garganta e replicou secamente:

‑ Sim, bem, isso é tudo muito bonito, não tenho dúvida, mas não vejo o que é que tem a ver com África.

‑ A África é onde estas coisas são sabidas. A África é memória.

Foi como se uma trombeta tivesse tocado numa cena de uma grande batalha, indicando a todos os soldados que pousassem as armas. Nenhum de nós disse nada. Estou convencido de que cada um de nós tinha uma razão diferente para se refugiar no silêncio. Para mim, Midnight não fazia nenhum sentido, mas as suas palavras pareciam magia, como as de um feiticeiro. Era evidente que a minha mãe tinha chegado à conclusão que o Africano estava para além da salvação, um pagão que devia ter permanecido na sua repugnante terra natal. Quanto ao meu pai, os olhos cintilavam de orgulho, como se estivesse a receber em sua casa Robert Burns em pessoa.

Depois de uma sobremesa de pêras cozidas em vinho e gengibre, o doce preferido do meu pai, ele acendeu a lareira e convidou‑nos a todos a sentarmo‑nos na sua companhia.

Midnight declinou o convite e pediu licença para subir à Torre de Vigia para ver a cidade. Para não ser mal‑educado, o pai retirou‑se com o nosso convidado durante alguns minutos. Quando regressou, contou‑nos que o Africano estava a olhar através dos painéis de vidro vermelhos e amarelos da clarabóia como se fossem uma entrada para um mundo futuro. Anteriormente, nesse mesmo dia, quando fizera uma visita guiada à nossa casa, tinha ficado fascinado pela sua transparência e dissera que nós tínhamos conseguido roubar um bocado do filho do Louva‑a‑deus, que era o Arco‑íris, e o tínhamos colocado ao nosso alcance. O Louva‑a‑deus, como viríamos a saber, era o deus mais importante do panteão boximane.

As palavras de Midnight tinham dado origem a um murmúrio encantado da parte do meu pai e a um tut‑tut‑tut de desaprovação da minha mãe.

‑ Acho que ele é capaz de ficar sentado ali durante toda a noite ‑ disse o meu pai.

Agarrou na bolsa de tabaco, na pederneira e no cachimbo e reclinou‑se na sua poltrona. Eu lutei para me manter acordado, mas estava a bocejar vergonhosamente. Sorria sempre que o pai ou a mãe olhavam para mim, uma vez que não queria ser desmancha‑prazeres e estragar‑lhes o reencontro, confessando como me estava a sentir mal.

E, todavia, depressa sucumbi a um paroxismo de soluços, vomitando simultaneamente todo o jantar no nosso tapete persa.

‑ É a excitação de te ter de novo em casa ‑ disse a mãe ao pai, indo buscar um copo de água.

O pai verificou o meu pulso. Estava fraco e perigosamente rápido.

‑ Estiveste doente o dia todo ‑ disse ele irritadamente. ‑ És corajoso, mas tonto por não nos teres dito.

Levou‑me imediatamente para o quarto.

Enquanto eu me deitava, a minha mãe agarrou no braço do meu pai e virou‑me as costas. A minha audição sempre tinha sido de primeira classe e ouvi‑a murmurar:

‑ Deus me ajude, sei que ele pode estar prestes a deixar‑nos. E até é capaz de ser o que ele deseja.

Midnight juntou‑se a eles no corredor. Depois de ter recebido autorização do meu pai, sentou‑se na minha cama e colocou‑me uma toalha húmida na testa. A Mamã estava de pé atrás dele, as mãos a apertarem o lenço com toda a força, pronta para o atacar se ele tentasse fazer‑me mal.

Passei os três dias seguintes a delirar com a febre. Enquanto flutuava sobre ondas de luz e sombra, tive um vislumbre de um cavalo a arder a galopar pela nossa rua acima. De vez em quando, sentia o sabor do ópio na língua. Sabia à lua, mas não sei dizer porquê.

Tinha a sensação de que Midnight estava sempre comigo. Durante os períodos de lucidez, raciocinei que devia ter estado com alucinações. Contudo, mais tarde, descobri que ele de facto passou três dias inteiros ao meu lado, dormindo no sofá que ele e o meu pai colocaram aos pés da minha cama. Falou comigo numa mistura de inglês e da sua própria língua, cheia de estalidos, não muito diferente do canto de algumas aves, até eu quase acreditar que conseguia compreender o que ele estava a dizer.

Em quatro ocasiões diferentes, segundo o meu pai, quando eu era acometido de arrepios de frio, Midnight enroscou‑se atrás de mim para me aquecer com o calor do seu corpo. Lembro‑me perfeitamente de uma dessas vezes e estou firmemente convencido que ele me deu algo de si próprio, também, embora não saiba como. Só sei que qualquer coisa que não é facilmente explicável foi trocada entre nós, porque mesmo agora, décadas depois, há uma parte dele que reside em mim. Se não tivesse sido por esta sua dádiva, estou certo que teria sucumbido à morte gelada que me reclamava.

Várias vezes acordei dos meus sonhos de estar enterrado vivo para o descobrir a colocar a boca quente directamente em cima do meu nariz. Mais tarde, a minha mãe confessou que ficara horrorizada ao presenciar isto pela primeira vez, mas compreendera que Midnight estava simplesmente a sugar os fluidos venenosos que saíam de mim a fim de limpar as passagens bloqueadas da minha respiração. Sempre que ele completava um tratamento destes, contou ela, eu deixava de ofegar e voltava a adormecer.

Uma vez, quando eu ainda estava muito congestionado, o boximane puxou com toda a força no seu minúsculo cachimbo de barro e soprou o fumo para dentro dos meus ouvidos, fazendo‑os estalar como gelo a derreter.

A minha mãe estava tão impressionada com a sua lealdade e cuidados que, uma vez, lhe agarrou na mão, levou‑a aos lábios e beijou‑a, perante o que ele lhe sorriu dizendo:

‑ A Hiena não vai roubar o seu filho, Senhora Stewart.

A minha mãe estava demasiado assustada para tentar compreender o que ele queria dizer. Só lhe importava que a sua vontade de me curar fosse firme.

Para saberem como a gratidão pode ser forte como o ferro, perguntem a qualquer mãe cujo filho tenha sido salvo por outra pessoa. Ao longo destes três dias de cuidados preciosos, a Mamã ficou eternamente grata a Midnight.

Na terceira noite, Midnight sentou‑me na cama, acendeu o pequeno cachimbo de barro e voltou a soprar fumo com um cheiro adocicado para dentro dos meus ouvidos. Isto fez com que tivesse a sensação de que uns portões de ferro se estavam a abrir nas minhas têmporas. Depois, fez‑me abrir a boca. Franzindo os lábios, dirigiu uma baforada de fumo lá para dentro, repetiu aquilo por diversas vezes, dizendo‑me sempre para inalar profundamente.

Desta vez, o fumo não era de tabaco ‑ ou não era só de tabaco. Não sei que erva, folha, flor ou resina, ou que combinação delas, estava no fornilho em brasa. Anos mais tarde, falei com um homem em Londres, que tinha vivido dez anos na África Austral, que me disse que o haxixe é usado em alguns rituais dos boximanes. Não posso garantir a veracidade desta afirmação, mas tenho a certeza que o fumo de Midnight teve o efeito de, primeiro, ter tornado mais profundo o bater do meu coração e, depois, de me embalar num sono suave. Quando os sinos da Igreja de São Bento deram as duas da manhã, acordei e vi o focinho de um animal a espreitar‑me na escuridão do corredor. Ao princípio, pensei que fosse a Fanny, mas, quando dei um passo na sua direcção, percebi que era Daniel com uma das suas máscaras com chifres.

O meu coração sobressaltou‑se com medo. Daniel recuou rapidamente para as sombras, mas as pontas dos chifres ficaram visíveis como dois pontos de luz violeta.

‑ É a Hiena? ‑ perguntou‑me Midnight num sussurro, do sofá. Devia estar a observar‑me há algum tempo. Aproximou‑se de mim, nu. Senti o seu calor irradiar para mim.

‑ Tu aí! ‑ gritou para Daniel. ‑ Nós sabemos quem és. Sabemos o teu nome e és a Hiena!

A aparição mascarada fugiu de nós pelo corredor e correu pelas escadas acima.

‑ Onde é que ele está agora? ‑ perguntei a Midnight.

‑ Acho que foi para a Torre de Vigia.

O Africano agarrou‑me na mão e ajudou‑me a levantar. O meu corpo parecia‑me pesado e estranho. Apesar de ele ter tomado conta de mim durante aqueles últimos dias, eu não tinha a certeza de poder confiar nele. Na escuridão incerta, parecia uma criatura das sombras.

‑ O Tempo da Hiena está em ti ‑ disse ele. ‑ Ela é um animal esperto e poderoso que temos em África. Está a enganar‑te, porque o Daniel morreu e não o podes trazer de volta, faças o que fizeres. Mas a Hiena é tão boa a fazer imitações como tu. Estás a ser enganado.

Não respondi; estava confuso.

Dando‑me uma palmadinha nas costas, Midnight disse‑me:

‑ O Louva‑a‑deus vai ajudar‑nos.

Mal acabou de falar, ergueu a roca de bebé que tinha consigo e abanou‑a.

‑ Quem é o Louva‑a‑deus?

‑ O Louva‑a‑deus é um insecto e é muito, muito pequeno, mas tem um poder muito, muito grande. Vou precisar da sua ajuda para assustar a Hiena e fazer com que ela nunca mais volte.

Midnight dirigiu‑se à janela e abriu as portadas e as redes para os mosquitos. A Lua estava quase cheia. Crescentes de luz batiam‑lhe nas costas e nas pernas. Era perturbador vê‑lo nu, pois o único homem que eu tinha visto assim fora o meu pai.

Reparei em quatro linhas de cicatrizes nas costas de Midnight. Quando o interroguei a esse respeito, contou‑me que uma vez fora atacado por um animal selvagem, mas que tinha escapado com vida.

‑ Sabes o que é um leão? ‑ perguntou‑me.

‑ Sim ‑ respondi eu, porque uma vez tinha visto um painel de azulejos onde estava retratado um desses animais no claustro da Sé do Porto.

‑ Os leões matam hienas. São muito, muito fortes. Ora bem, tu vais ser forte e subir as escadas comigo para lutar contra a Hiena?

Ofereci‑lhe a minha mão. O aperto dele era forte; não lhe poderia ter escapado mesmo que o tivesse querido fazer. Voltou a acender o cachimbo de barro e soprou o fumo doce para as minhas orelhas e a minha boca, como fizera anteriormente. Aqueceu‑me até às pontas dos dedos das mãos e dos pés. Conseguia sentir o bater do meu coração a controlar‑me. A minha respiração saía como vento a soprar por entre pedras.

Afastando‑se de mim, inalou os fumos bem para dentro do peito numa corrente contínua e única que desapareceu algures nas suas entranhas. Imaginei‑a a formar uma névoa que redemoinhava dentro dele.

‑ Agora vamos procurar a Hiena ‑ disse ele, pousando o cachimbo na mesa ao lado da cabeceira da minha cama.

‑ Tenho de ir?

‑ Eu não te abandonarei, John. O teu amigo Midnight lutará sempre ao teu lado. ‑ Sorriu. ‑ Anda. Vamos descobrir a Hiena e dizer‑lhe que tem de ir‑se embora.

Levou‑me até à porta à luz de uma candeia e subimos as escadas juntos. A porta que dava para a Torre de Vigia estava fechada. Fechei os olhos, tentando acalmar‑me.

‑ Temos de entrar? ‑ perguntei‑lhe.

‑ Sim. Eu vim hoje cá acima para preparar a sala para a nossa caçada. Tem de ser agora. Temos de a enfrentar como verdadeiros boxímanes e dizer‑lhe que sabemos quem ela é e que é uma impostora. Temos de lhe mostrar que somos leões e que a vamos devorar se ela ficar. E a altura é agora ‑ foi por isso que ela te apareceu. Quando entrarmos, tudo quanto tens de lhe dizer é: «Sei quem tu és. És a Hiena.» Nada mais. Nada! Ela faz muitos truques. É esperta‑esperta. Vai descobrir as tuas fraquezas se disseres mais alguma coisa. Estás a compreender, John?

‑ Acho que sim.

Midnight estendeu a mão para a maçaneta da porta.

‑ Espera! ‑ gritei eu, mas já era demasiado tarde.

A porta abriu‑se. Daniel estava à nossa frente, com a sua máscara de chifres.

‑ Vimos‑te de longe e estamos a morrer de fome ‑ disse Midnight a Daniel.

O Africano fechou suavemente a porta atrás de nós. Pousou a candeia no chão e depois sacudiu a roca na direcção do rapaz, dizendo:

‑ Sabemos quem tu és. És a Hiena.

Midnight abriu muito os olhos. Começou a ouvir‑se um ruído baixo nas suas entranhas, que foi aumentando de volume até se tornar num rufar de tambor tão alto que as paredes estremeceram.

Daniel tirou a máscara. Pálido e inchado, a pele parecia prestes a cair aos bocados. Implorou‑me que parasse com o batuque do boximane.

‑ Por que é que me voltaste a trair? ‑ gemeu ele.

Estava tentado a pedir‑lhe perdão, mas, quando Midnight me apertou a mão com toda a força, falei como me fora ensinado:

‑ Sei quem tu és. És a Hiena.

Midnight entregou‑me a roca, dizendo‑me para a atirar ao peito de Daniel, mas eu hesitei. Quando o rapaz deu um passo na minha direcção, o Africano gritou‑me:

‑ Atira‑lhe com ela! Atira‑a agora, John!

Atirei‑a. Bateu‑lhe no ombro e caiu no chão. Mas, enquanto caía, foi mudando de forma tornando‑se um louva‑a‑deus escuro, de cabeça orgulhosamente erguida, os braços levantados no ar como se estivesse a postos para atacar.

Lentamente, começou a rastejar na direcção de Daniel. Assustado, Daniel estendeu‑me a mão.

‑ Não lhe toques! ‑ avisou‑me Midnight. Repeti:

‑ Sei quem tu és. És a Hiena.

Daniel lançou‑se para a frente e eu dei um salto para trás. Midnight meteu‑se entre nós, de costas para Daniel. Eu já não conseguia ver o rapaz, mas conseguia ouvi‑lo a bater com os punhos nas costas do Africano.

Um enorme nó, do tamanho do meu punho, começou a formar‑se a meio da barriga de Midnight ‑ no seu centro, por assim dizer. Pulsando para fora e para dentro, tornou‑se o ponto fulcral do seu batuque interior. O boximane ergueu os dois braços no ar e começou a bater com os pés. Rodopiando para ficar virado para Daniel, cessou com o barulho. A Torre de Vigia estava sozinha no centro do mundo.

O Africano inclinou‑se para trás e inalou rapidamente. Um rugido baixo emanou do seu peito, crescendo de intensidade até parecer que o próprio ar vibrava. O fumo que ele tinha armazenado na barriga saiu em espiral pela boca e subiu para a clarabóia numa fita rodopiante. ‑ Ruge! ‑ ordenou‑me ele.

Fiz o que ele me mandou. As nossas duas vozes fizeram‑me ficar estacado no mesmo sítio. Segundos depois, Midnight rugiu com uma tal violência e ferocidade animal que podia ter partido a sala em duas.

Não me ocorreu que Midnight devia ter acordado toda a vizinhança até o meu pai irromper pelo quarto com uma expressão aterrorizada.

O meu pai olhou para Midnight e para mim com um ar muito espantado, visto que estávamos os dois tão nus como no dia em que tínhamos vindo ao mundo. Exigiu saber o que, em nome de Robert Bruce, estávamos a fazer na Torre de Vigia a uma hora tão imprópria, ainda por cima sem um único pano a cobrir a nossa virilidade.

‑ Espero que tenham uma boa explicação ‑ avisou ele, a voz carregada de ameaça.

‑ Nós estamos muito, muito melhor agora ‑ declarou o Africano. ‑ Expulsámos a Hiena. A Hiena tem sempre medo do Leão. ‑ Sacudiu a roca. ‑ E o pequeno Louva‑a‑deus disse‑lhe para nunca mais voltar para nós. Ela nunca mais vai voltar a incomodar o seu filho.

‑ O bogle foi‑se embora ‑ disse eu ao meu pai. Bogle era a palavra escocesa para fantasma.

‑ Quase me matavas de susto! ‑ exclamou ele, quando a minha mãe apareceu à porta, empunhando um atiçador.

A Mamã ficou sem respiração quando viu a nossa nudez, depois olhou‑me nos olhos muito séria e longamente. Tive a certeza que ia ser castigado, mas, em vez disso, a minha mãe largou a rir como se eu e Midnight fôssemos as coisas mais engraçadas que já tinha visto. Depois, através de um processo de transformação conhecido apenas do seu coração, começou a chorar.

‑ Então, então, May ‑ disse o Papá, beijando‑a na testa. ‑ Agora está tudo bem.

Finalmente, ela limpou os olhos.

‑ Peço muita desculpa. Deve estar a pensar que sou uma tonta. Todos lhe assegurámos o contrário, com o Papá a acrescentar, de

forma encantadora, que ficaria eternamente casado com uma tal tonta na maior das felicidades. Embora tivesse o cabelo todo despenteado e os olhos vermelhos, achei que a Mamã tinha uma beleza incomparável naquele momento.

Quando se acalmou, pediu‑me para vestir qualquer coisa.

‑ Podes vir para a nossa cama esta noite, se quiseres ‑ acrescentou.

‑ Não, Mamã, gostava de voltar para o meu quarto, se não se importa.

‑ Preferes? ‑ perguntou o meu pai, claramente surpreendido.

‑ Sim, se Midnight puder ficar comigo.

‑ Claro que pode ‑ respondeu a Mamã, sorrindo para o nosso hóspede, que sorria contagiosamente de orelha a orelha.

E foi então que ela me surpreendeu ao agarrar na mão de Midnight dizendo:

‑ Espero sinceramente que fique connosco durante bastante tempo. Se quiser um sítio na nossa casa, arranjaremos a Torre de Vigia para que a possa utilizar. Isto é, se me perdoar a minha indelicadeza anterior.

Os olhos de Midnight encheram‑se de lágrimas.

‑ Sim, isso seria muito, muito bom, de facto. Encostando a mão dele à sua face, a minha mãe acrescentou:

‑ Obrigada por me ter devolvido o John. Nunca esquecerei a sua bondade. Poderá sempre contar comigo como se eu fizesse parte do seu povo.

O Papá também agradeceu a Midnight e beijou a Mamã repetidas vezes. Depois, pôs‑me ao ombro e levou‑me pelas escadas abaixo, fazendo‑me cócegas e fingindo que tinha apanhado um monstrozinho do lago, um kelpie. Eu berrava‑lhe para ele parar, mas ele era implacável no seu carinho. Atrás de nós, a Mamã conversava em voz baixa com Midnight, como se fossem amigos íntimos há longos anos.

Depois de me ter atirado para a cama, o meu pai revolveu‑me o cabelo dizendo:

‑ Agora dorme. Já chega de excitação. ‑ Ergueu os punhos fechados. ‑ Acabaram‑se os leões, as hienas, os louva‑a‑deus, ou seja o que for.

‑ Está bem ‑ concordei eu.

‑ Boa‑noite, Midnight ‑ disse o Papá ao nosso convidado. ‑ E obrigado.

‑ Boa‑noite, Senhor Stewart ‑ respondeu o Africano com um aceno. Quando os meus pais já se tinham ido embora e muito tempo depois

de Midnight ter adormecido, continuei acordado, a olhar para a sua cabeça escura, acreditando que conseguia ouvir um tamborilar quase imperceptível que provinha de uma estranha paisagem dentro dele.

 

Acordei de manhã e descobri ‑ para grande decepção minha ‑ que Midnight já tinha saído com o meu pai. A seguir ao pequeno‑almoço, levei Fanny a dar um passeio, depois de a ter negligenciado durante semanas. Nesse dia, no molhe, descobri que o afogamento de Daniel me tinha tirado todo o desejo de nadar no rio. Estava completamente petrificado com a ideia de não ser capaz de ver através da água lamacenta e, embora julgasse que depressa venceria esse medo, estava enganado; nunca mais voltaria a entrar voluntariamente na água. Nem mesmo Midnight me conseguiu curar disso.

O Africano e o meu pai voltaram nessa tarde, pouco antes do jantar. Ao ver‑me, Midnight fez‑me um sorriso caloroso que eu retribui na mesma moeda, mas estava a sentir‑me perturbado por tudo o que me acontecera na presença dele. Comecei a sentir o poder enorme que ele tinha sobre mim. Uma palavra de censura da sua parte teria acabado com a minha boa disposição.

Conversámos durante um bocado, principalmente sobre o Porto. Ele achava a cidade muito divertida, especialmente os seus habitantes. Na sua opinião, os Portugueses falavam mais alto do que as pessoas que ele conhecia.

Passei toda a noite a olhar para ele e mal falei. Perguntava para comigo se nas histórias do rei Artur que o meu pai me tinha contado, Merlin poderia ter tido pele cor de bronze e ter sido minúsculo. Tentei imaginar o boximane na sua pátria africana, uma varinha cintilante na mão.

Enquanto devorava uma quantidade descomunal de maçãs assadas, fiz um comentário sobre o facto de Midnight ter tirado os sapatos à nossa porta. Mas em vez de dizer que achava isto uma prática primitiva ‑ como os meus pais esperavam ‑, declarei que era o cúmulo do comportamento civilizado, visto que, ao fazê‑lo, evitava trazer para dentro de casa todo o tipo de porcarias. O pai ficou a olhar para mim atónito. A mãe, contudo, conhecendo muito bem a minha predilecção pela imitação, replicou:

‑ John, não podes andar descalço nesta casa. Vais continuar a usar os teus sapatos.

‑ Mas a porcaria!

‑ A porcaria fica! E os teus sapatos também. Midnight é Midnight e tu és tu.

‑ Isso é muito, muito verdade ‑ concordou o Africano rindo.

‑ Pois é ‑ secundou‑o o Papá. ‑ Ela ganhou‑te, rapaz.

Olhei para Midnight à espera de qualquer demonstração de apoio, mas ele mostrou‑me uma expressão de impotência perante o desacordo da minha família.

Apesar da reprovação firme dos meus pais, comecei a tirar também os sapatos à porta, uma prática que tenho mantido até hoje. Também peço o mesmo à minha família e a todas as visitas, para exasperação de muitos, mas para grande benefício da minha casa.

Lembro‑me de, nessa noite, ter acrescentado, como protesto final contra os desejos dos meus pais:

‑ Mas com os nossos sapatos dentro de casa devemos parecer‑lhe uns bárbaros!

Esta minha afirmação, aparentemente inocente, é algo que tenho recordado muitas vezes, porque acredito que acertei em cheio no cerne da verdade. Midnight deve ter‑nos considerado a todos ‑ a minha família incluída ‑, como pessoas que viviam em casas de bonecas, levando vidas de porcelana e seda.

Como é que ele poderia não ter sentido isto, quando, como soube mais tarde, a sua própria vida tinha sido vivida em caçadas de dois a três dias a animais gigantes chamados gungas; em longas caminhadas pelas areias do deserto à procura de comida, transportando a água dentro de ovos de avestruz; escapando por um triz aos mosquetes dos Holandeses, às baionetas dos Ingleses e às lanças dos Zulus? O nosso palco português, em comparação, devia ter‑lhe parecido de facto minúsculo, um drama do Antigo Testamento africano reduzido ao tamanho de um espectáculo de marionetas europeu.

Não que eu tivesse desejado a vida que ele tivera. Nem ele alguma vez me deu qualquer indicação de desdenhar a nossa, demonstrando quase sempre uma curiosidade divertida quando se via perante coisas que não compreendia.

Não quero dizer que ele fosse perfeito, mas creio que a maneira como nos aceitou, sem reservas, exprime eloquentemente o seu espírito tolerante e a sua fé nas boas intenções de toda a gente. Nenhum de nós, estou certo, poderia ter‑se adaptado à África dele de forma tão generosa e tão feliz.

Durante aquelas primeiras semanas, andava atrás dele como um patinho recém‑nascido, deliciado com o seu andar saltitante, o seu sorriso de duende e as espirais lanzudas do cabelo. Adorava encher‑lhe o cachimbo, ajudá‑lo a apertar os sapatos e a conduzi‑lo pela cidade, de mão dada. Sentado aos seus pés, ouvia maravilhado as suas histórias sobre o deserto africano. Tinha a sensação de ter descoberto um tesouro vivo. Não teria trocado conhecê‑lo pelo resgate em ouro de um rei.

Durante aqueles primeiros meses com Midnight, a quem chamávamos agora Meia‑Noite, a minha mãe, o meu pai e eu pusemos à prova a sua paciência quase infinita ao embarcarmos em projectos separados com ele ‑ com vários graus de êxito.

O projecto da minha mãe era familiarizá‑lo com as boas maneiras, embora tivesse tornado muito claro que, em virtude de me ter salvo a vida, tinha ganho o direito eterno de se comportar como muito bem lhe apetecesse em nossa casa. Ela mostrava‑se muito encorajadora e aberta com ele, de uma maneira que eu nunca tinha visto com mais ninguém, sem nunca lhe levantar a voz por estar zangada ‑ coisa que eu gostaria de dizer a meu respeito. Estas lições de etiqueta eram apenas para as ocasiões em que saíamos em público com ele. Eram tanto para benefício dele como para nosso, uma vez que a Mamã era da opinião que quanto mais depressa ele se pudesse misturar, no mesmo pé de igualdade, com os europeus, mais fácil lhe seria a vida.

Meia‑Noite tinha aprendido muito sobre as maneiras dos europeus enquanto trabalhara como criado na Colónia do Cabo, mas ainda havia regras que ele tinha de aprender para se preparar para esta nova vida numa cidade muito maior do que qualquer uma na África Austral. Entre as mais essenciais contavam‑se: aprender a passear dando o braço à minha mãe, apertar uma gravata sem se asfixiar, referir‑se apenas em código às funções corporais e fazer uma vénia às senhoras quando lhes era apresentado.

Estas lições eram dadas em inglês, visto que Meia‑Noite nunca conseguiu aprender português com alguma profundidade.

No entanto, desenvencilhava‑se bem com as poucas expressões sociais de que necessitava. Na minha opinião, estas frases feitas eram pavorosas, e a preferida era particularmente horrível: Minha Senhora, nem mesmo a lua cheia num horizonte escuro poderia estar mais radiosa do que estais esta noite...

Por fim, o boximane dominou todas as graças sociais da minha mãe, com excepção de duas: usar uma gravata, o que para ele era uma verdadeira tortura e uma prática de que desistiu ao fim do primeiro ano de esforços, e dizer obrigado. O próprio conceito desta delicadeza comum deixava‑o perplexo e nunca conseguia concluir com segurança quando devia ou não dizer obrigado.

Na esperança de conseguir evitar quaisquer situações desagradáveis que poderiam resultar desta confusão, a Mamã escreveu umas linhas de orientação que nos leu em voz alta uma noite, com Meia‑Noite e o meu pai sentados à lareira com os respectivos cachimbos:

Ponto 1: Meia‑Noite nunca deveria ser forçado a expressar a sua gratidão em casa. Toda a gente tomaria os seus agradecimentos como ponto assente.

Ponto 2: Quando em público com um de nós, Meia‑Noite receberia um sinal no momento em que devesse agradecer a uma pessoa que não pertencesse à família.

Ponto 3: Quando estivesse sozinho em público, Meia‑Noite deveria dizer obrigado sempre que alguém lhe dissesse umas quantas palavras ou fizesse qualquer coisa na sua presença, mesmo que lhe parecesse que era altamente improvável que tal acto merecesse a sua gratidão.

Por vezes, esta última instrução deu origem a situações cómicas como quando Meia‑Noite se esquecia das regras e agradecia ao Papá por ter fechado à chave a porta da frente ou à Mamã por ter evitado uma cagadela de cão na rua. Lamentavelmente, esta dificuldade também provocou algumas situações desagradáveis. Aquela que eu mais gostaria de esquecer aconteceu passado apenas um mês de ele ter vindo viver connosco. Eu e Meia‑Noite tínhamos acabado de comprar pastéis de nata polvilhados de canela na nossa confeitaria preferida na Rua da Cedofeita, quando a menos de quatro passos de nós, uma mulher enorme, num vestido vermelho cheio de folhos, tropeçou numa pedra solta da calçada. Ela praticamente voou, guinchando como Lilith, como a minha Avó Rosa costumava dizer, e teria caído de cara no chão se Meia‑Noite ‑ com os seus reflexos de lebre ‑ não se tivesse lançado para a frente, servindo de barreira humana. Foi um triunfo completamente inesperado, uma vez que ela pesava bem mais uns quarenta ou cinquenta arráteis do que o Africano. Infelizmente, ao chocar contra Meia‑Noite, a mulher, desequilibrada, esmagou‑lhe o pastel de nata no peito, deixando uma mancha amarela de creme no lindo colete de brocado azul que o meu pai lhe comprara. Impávido, Meia‑Noite segurou a mulher, que soltou um suspiro de alívio na melhor tradição operática e deu umas pancadinhas na testa com um lenço que tirou do peito. Antes que eu o pudesse impedir, Meia‑Noite exclamou: «Muito obrigado!» Isto foi dito com toda a sinceridade, visto que ele nunca recorria ao sarcasmo, mas a nossa matrona julgou que estava a ser ridicularizada.

‑ Solte‑me, senhor! ‑ exclamou.

Enquanto ela olhava cheia de desprezo para Meia‑Noite, eu tentei remediar a situação:

‑ Ele está a agradecer‑lhe pela honra de ter podido ajudá‑la a equilibrar‑se e a vê‑la seguir o seu caminho em segurança.

Ela olhou para nós como se a tivéssemos insultado de novo. E eu nunca esquecerei o que ela disse:

‑ Tira as tuas feias patas pretas de cima de mim, macaco!

Era evidente que ela estava enraivecida, mas não estava tão furiosa como eu, pois, embora já tivesse ouvido os vizinhos a coscuvilhar sobre Meia‑Noite, ninguém ainda tinha falado dele com indelicadeza na minha presença. Antes que eu pudesse esborrachar o resto do meu pastel de nata no peito dela, Meia‑Noite recitou uma das frases elogiosas que tinha aprendido com a minha mãe:

‑ Esse vestido, embora muitíssimo bonito, é apenas uma pálida sombra da sua beleza, minha senhora.

Agora é que estamos mesmo fritos!, pensei eu. Contudo não esperava que ela rebentasse em lágrimas, talvez devido ao português quase perfeito de Meia‑Noite, que a deixou completamente pasmada. Os soluços dela serviram para atrair uma multidão, visto que as pessoas do meu país natal ‑ tal como os Ingleses ‑ se juntam em volta da desgraça como abutres em volta de um cordeiro moribundo. Não tardou muito que Meia‑Noite e eu ficássemos rodeados de caras boquiabertas.

‑ Já tinha visto esse macaco ‑ disse um homem, apontando para o boximane. ‑ Pertence a Stewart, o Escocês.

‑ Devia estar metido numa jaula! ‑ gritou outro. Esta última opinião despertou o escocês que há em mim e soltei um chorrilho de epítetos que Daniel me tinha ensinado, o melhor dos quais foi que a mulher em questão tinha claramente os miolos de um camelo, visto que até um simples de espírito sabia que os macacos têm mãos e não patas. Desenvolvi o tema dizendo que era óbvio que ela tinha chocado de cabeça contra o meu amigo como uma carruagem sem cocheiro, fazendo com que ele sujasse o colete, como qualquer pessoa que não estivesse cega de estupidez podia ver, uma vez que o antebraço ofensivo dela, do tamanho de um capão recheado, estava todo besuntado com as denunciadoras manchas amarelas.

Comparar a mulher soluçante a um camelo ou a uma carruagem ou a um capão podia ter sido aceitável, mas dizer as três de rajada numa única frase serviu não para despertar admiração em relação a mim, como uma criança de vocabulário desenvolvido, como podia ter acontecido, mas, pelo contrário, para me considerarem um fedelho atrevido e mal‑educado. Um homem com um avental de tosquiador, cheio de nódoas pretas de gordura, chegou mesmo a atrever‑se a agarrar‑me pelo braço.

‑ Grande malcriado! ‑ disse ele. ‑ Devia dar‑te uns açoites no rabo aqui mesmo, no meio da rua!

Esta afronta sacudiu Meia‑Noite do seu estado de confusão e ansiedade. Avançando para o homem, disse:

‑ Se faz favor, senhor, largue o rapaz.

O sangue brilhava na brancura lunar dos olhos do Africano. Foi uma sorte para o nosso tosquiador que o boximane não tivesse nenhuma faca; pois podia ter morto o homem naquele dia com a mesma rapidez com que teria morto um chacal que lhe ameaçasse um filho.

As poucas palavras de Meia‑Noite acalmaram a multidão, provavelmente, porque ele as disse em inglês, o que tende a intimidar os Portugueses. Ou, possivelmente, porque ninguém esperava que ele soubesse falar qualquer língua ‑ ou que se atrevesse a desafiar um homem português.

O tosquiador largou‑me, mas só para poder confrontar Meia‑Noite. Todavia, quando avançou, o Africano ‑ para grande surpresa minha ‑ içou‑me para cima do ombro. Não sei se ele tencionava que isto fosse o golpe brilhante que foi. Provavelmente, só queria proteger‑me. Fosse como fosse, o tosquiador não estava disposto a lutar com um homem que carregava um rapazinho.

O boximane avançou comigo por entre a multidão, que se afastou para lhe dar passagem, sem uma palavra. Depois de ter virado a esquina, pôs‑me no chão.

‑ O gemsbok não se deixa perturbar por formigas, tartarugas e ouriços‑cacheiros ‑ disse‑me ele.

‑ O que é um gemsbok?

‑ Um animal nobre, uma espécie de antílope. Tem um chifre em forma de crescente na cabeça. ‑ Segurou‑me o queixo com a mão. ‑John, isto pode ser uma surpresa para ti, mas tu não és um crocodilo.

‑ O quê?

‑ Não te deves deixar provocar tão, tão facilmente. Meia‑Noite abriu as mãos em leque por cima da cabeça e agachou‑se numa posição de expectativa, como se fosse um animal a escutar um chamamento distante. As narinas fremiram e os dedos agitaram‑se. Farejou o ar, sentindo qualquer coisa no vento.

Isto era, então, um gemsbok. Estava a imitá‑lo. Ou, como me diria mais tarde, a habitá‑lo.

‑ É assim que te deves comportar ‑ disse ele. ‑ Acabou‑se a gritaria com estranhos.

A crítica dele envergonhou‑me.

‑ Mas aquela mulher foi mal‑educada contigo! Disse coisas horríveis. Ele não fez qualquer esforço para me responder ou confortar, o que

me pareceu cruel. A frustração fez com que as lágrimas me corressem pela cara. Nem assim ele se comoveu. Por fim, desisti e imitei‑o, colocando as minhas mãos em leque por cima da cabeça e fingindo também que era um gemsbok.

‑ Muito bem ‑ disse ele sorrindo. Agarrou‑me na mão e encostou‑a ao coração. ‑ Chega de lágrimas. É muito mais importante que me ensines uma canção. Tenho andado a pensar em pedir‑to.

O humor das crianças muda tão rapidamente.

‑ Qual? ‑ perguntei entusiasmado.

‑ Uma das canções do teu pai. Qualquer uma. Gostaria muito, muito de aprender uma.

E logo ali, no meio da rua, cantei o primeiro verso de The Foggy, Foggy Dew: «Oh, sou um solteirão, vivo sozinho e trabalho como tecelão...»

Esta foi a primeira de muitas canções que iria ensinar a Meia‑Noite. Em troca, ele ajudava‑me a aprender várias canções que pertenciam ao seu povo. Até consegui aprender uma secreta sobre a chuva que dava vida a um deserto estéril. Ainda sou capaz de a cantar. E estou certo que sou o único europeu que o sabe fazer.

Descobri o meu projecto com Meia‑Noite quando estava a ler em voz alta para os meus pais, uma prática que dava grande prazer a ambos e cuja finalidade era aperfeiçoar a minha dicção. Para além de Robert Burns e de uns quantos poetas menores de que ninguém a sul da Muralha de Adriano tinha ouvido falar, o meu pai era um grande aficionado dos clássicos gregos e latinos. Mas lia‑os em inglês, uma vez que não era um erudito, trazendo‑os da biblioteca do Clube Britânico perto da margem do rio. Uma certa noite, comecei a ler a obra Sobre a Caça de Xenofonte, que o Papá tinha trazido nessa noite para casa, julgando que iria entreter o nosso hóspede. Eu achei‑o extremamente entediante e a Mamã achou‑o horrível. Ela era da opinião que «perseguir as pobres criaturas de Deus pelo meio da floresta para as matar de forma crudelíssima» era depravado.

‑ A primeira actividade a que um rapaz que acabe de entrar na adolescência se deve dedicar é a caça ‑ li. ‑ E depois pode dedicar‑se a outros ramos da educação, desde que tenha meios para isso.

‑ Que tolice! ‑ troçou a minha mãe.

‑ Continua ‑ disse o meu pai severamente.

Como texto era um imenso bocejo, mas, quando olhei para Meia‑Noite, descobri que tinha a cabeça levantada numa expectativa ávida, como se este ensaio fosse a resposta para um enigma que andava a tentar resolver há muito tempo; por isso, convidei‑o a ler ele mesmo o livro.

‑ Não posso ‑ replicou ele.

Quando perguntei porquê, respondeu‑me:

‑ Porque... porque não sei ler nem escrever.

‑ Mas tenta ‑ disse eu, estendendo‑lhe o livro encadernado a couro. ‑John, se fazes favor, não aborreças o Meia‑Noite ‑ disse a Mamã

muito depressa, pousando o bordado no colo. ‑ Estavas a ir esplendidamente e teríamos muito prazer em ouvir mais. Não é verdade, querido?

‑ Sim, a tua voz melhorou muito ultimamente ‑ concordou o meu pai, empurrando o castiçal em cima da mesa do chá para mais perto de mim para que eu tivesse mais luz.

‑ Não, deixem o Meia‑Noite ler ‑ repliquei amuado.

‑ Mas é impossível ‑ repetiu o boximane.

Quando ele sorriu desculpando‑se, o coração caiu‑me aos pés, pois percebi que era verdade; nunca ninguém se dera ao trabalho de o ensinar a ler e a escrever, o que me pareceu uma injustiça monstruosa. Continuei a ler em voz alta, mas os meus pensamentos já estavam concentrados em recordar onde teria deixado a minha Greenwood's English Grammar. Nessa noite, encontrei‑a no fundo da minha arca.

De manhã, fui encontrar Meia‑Noite nu na nossa Torre de Vigia a olhar para os telhados da cidade.

‑ Vou ensinar‑te a ler e a escrever ‑ disse‑lhe eu, mostrando‑lhe a minha cartilha.

Ele riu‑se ao ouvir esta minha declaração peremptória e depois, percebendo que eu estava a falar a sério, apertou as fontes com os dedos como se a cabeça já lhe estivesse a doer só com a ideia.

‑ Não, vai ser fácil ‑ disse eu. ‑ Vais ver.

Depois de ele se ter vestido, peguei‑lhe na mão e levei‑o para o nosso jardim para que ele pudesse aprender a desenhar as letras à luz do Sol.

Os progressos foram lentos. Nas primeiras lições, só consegui que ele desenhasse as letras A, B, C, D e E, e mesmo essas, de forma muito deficiente. Ele preferia transformar as letras em animais, o A, por exemplo, transformava‑se nas pernas de uma girafa e o B nos olhos de um crocodilo vistos de cima.

Durante as semanas seguintes, trabalhei com Meia‑Noite todas as manhãs, a seguir ao pequeno‑almoço. Depressa ele aprendeu a desenhar as vinte e seis letras sem acrescentar focinhos, chifres, carapaças ou caudas. Depois, arranjei um processo que nos garantia um progresso lento mas seguro. De pé, como se estivesse num palco iluminado, gesticulando loucamente, lia em voz alta a Meia‑Noite um parágrafo de um volume clássico, o que lhe agradava sempre imenso e por vezes o fazia rir. Depois sentávamo‑nos ao lado um do outro e voltávamos a ler o mesmo excerto, com o boximane a apontar com o dedo para as palavras e a dizê‑las em voz alta.

E, desta maneira, lemos parágrafos importantes de drama militar de Heródoto, Ovídio e Josefo uma dúzia de vezes, pelo menos, cada um. O preferido de Meia‑Noite era de longe o relato feito por Estrabão da derrota do general romano Pompeu às mãos do rei Mitridates de Ponto. Calculando que lemos este uma vez por semana, pelo menos, durante dois anos, diria que revivemos esta batalha invulgar mais do que cem vezes, ao ponto de sermos capazes de a recitar de cor. Meia‑Noite nunca deixava de se deliciar com o facto de as forças superiores de Pompeu terem sido derrotadas por nada mais que mel. Pois quando estavam acampados na costa turca do mar Negro, num local chamado Trebizonda, as suas tropas empanturraram‑se de favos de mel de abelhas que tinham recolhido o pólen venenoso das flores de rododendro. Os que tinham apenas comido um bocadinho tinham ficado com o andar cambaleante e o discurso arrastado dos homens que beberam uns copos a mais. Os que comeram até se fartarem, ficaram doidos ou insensíveis. Nesse estado debilitado, foram chacinados pelas forças de Mitridates.

Meia‑Noite e eu chamávamos‑lhe a Batalha do Mel Maluco. Isto divertia‑o imenso porque para o seu povo o mel era a coisa mais deliciosa do mundo; um símbolo de saúde, boa sorte e alegria. Quando era jovem, costumava afastar as abelhas das colmeias com fumo para roubar o seu tesouro. O mel também era o alimento preferido do louva‑a‑deus. Era sabedoria ‑ e luz do Sol ‑ materializadas. Imaginar que ele podia ser capaz de mudar o curso da história numa batalha militar... Isto era tão inesperado que ele nunca deixava de ficar atónito e deliciado.

Os planos do meu pai para Meia‑Noite eram responsáveis pela sua longa viagem de África para a Europa. O Papá tinha conhecido o boximane por ocasião de uma visita detalhada a uma vinha recentemente plantada que pertencia a um austero homem de Yorkshire chamado Reynolds e que ficava a um dia de viagem da Cidade do Cabo. Meia‑Noite era designado como criado na casa desse homem, mas não havia um pingo de liberdade nos termos do seu contrato de trabalho.

Logo após a chegada do meu pai, um holandês gravemente doente de uma propriedade vizinha apareceu na vinha à procura de ajuda médica. Nos três dias seguintes, o meu pai observara Meia‑Noite a curar o homem de uma pleurisia avançada com a aplicação no peito de emplastros de ervas esmagadas e a administração de infusões de aroma adocicado. No quarto dia, o holandês estava suficientemente bem para poder voltar para casa.

Vários dias mais tarde, através de um ritual de fumo e dança, Meia‑Noite tinha curado ‑ na presença do meu pai ‑ uma jovem zulu que estava possuída por um espírito mau. O meu pai não teria apostado um centimo no seu restabelecimento, mas ela tinha‑se restabelecido mesmo.

Com pouca fé nos benefícios da medicina europeia, tendo acabado de ver os seus métodos bárbaros aplicados em mim, o Papá compreendeu que este era o homem indicado para ajudar o filho doente ‑ isto, claro, se o conseguisse convencer a voltar com ele para Portugal. Foi uma tarefa que se mostrou surpreendentemente fácil:

Meia‑Noite queria encontrar‑se com homens da Medicina na Europa que o pudessem ajudar a descobrir que plantas podiam ser utilizadas para combater a doença dos arrepios e bolhas que já tinha matado milhares de pessoas do seu povo, visto que nada que ele ou quaisquer outros curandeiros locais tivessem tentado dera resultado. Depois de mais algumas perguntas, o meu pai descobrira que esta doença era a varíola.

A fundamentação lógica que levara Meia‑Noite a procurar ajuda na Europa baseava‑se no facto de a doença ter sido trazida para África pelos holandeses e ingleses. Ele achava que os extractos de plantas necessários para a combater seriam encontrados no seu local de origem. Quando e se ele encontrasse as plantas medicinais de que andava à procura em Portugal, voltaria para África com elas.

O Papá propôs a Meia‑Noite que plantasse no nosso quintal das traseiras todos os especimenes que pudessem ser úteis para as suas pesquisas. Também deu a entender que, com toda a certeza, a Mamã iria apreciar muito se Meia‑Noite conseguisse, ao mesmo tempo, devolver uma parte do nosso rectângulo de terra aos seus dias de glória antes do meu nascimento. Nessa altura, o avô João tinha conseguido com grandes cuidados tirar do solo todos os tipos de flores coloridas, incluindo umas rosas da Turquia muito raras.

A última parte do plano do meu pai, que ele ainda não tinha mencionado a Meia‑Noite, era que desejava que o Africano servisse de companhia à minha mãe e a mim durante os períodos em que iria estar ausente, uma vez que continuava a ser preciso que ele subisse o rio para examinar as terras todas as seis ou oito semanas.

Só continuava a existir um obstáculo para que Meia‑Noite pudesse deixar África na companhia de meu pai: ele era um escravo que pertencia a Reynolds, e o inglês não queria deixá‑lo ir por preço algum. Não só tinha grande apreço pelas consideráveis capacidades médicas do boximane, como também dava grande valor ao seu talento como intérprete. A Senhora Reynolds, uma mulher frágil de origem suíça de Genebra, que receava todo o tipo de doenças locais, não permitia sequer que se falasse na possibilidade de vender Meia‑Noite. Por isso, o meu pai e o boximane viram‑se forçados a planear uma fuga.

Depois de dar a Reynolds uma data falsa para a sua viagem de regresso à Europa, o meu pai, sozinho, foi a cavalo para a Cidade do Cabo na data marcada, precisamente três dias antes de Reynolds e Meia‑Noite fazerem a visita mensal à cidade para comprar mantimentos.

O meu pai registou‑se sob um nome falso na Black Horse Tavern, onde, cada vez mais ansioso e mal‑humorado à medida que os dias passavam, esperou por Meia‑Noite.

Era costume o boximane ter uma noite completamente livre para passar como quisesse enquanto o seu patrão inglês se aliviava das restrições religiosas impostas pela esposa calvinista num bordel famoso. Só que nesse mês ‑ cheirando‑lhe a uma armadilha escocesa ‑, Reynolds não foi à Cidade do Cabo e proibiu Meia‑Noite de sair da propriedade. E assim, a noite em que o meu pai e o boximane tinham combinado encontrar‑se chegou e passou. A noite seguinte também. Nessa altura, o meu pai, muito desiludido, tratou de tudo para partir dois dias depois num barco holandês.

Contudo, nesse mesmo dia, ao pôr do Sol, quando o meu pai estava a beber um gim no Black Horse, apareceu Meia‑Noite, a arfar, nu da cintura para cima e descalço. Trazia um saco pequeno, que continha plantas medicinais, uma aljava com setas, um arco e um ovo de avestruz que tinha sido recentemente esvaziado da sua última gota de água. Seguiu‑se um grande tumulto porque os Kaffirs, como os europeus expatriados chamavam aos povos indígenas, não tinham autorização para entrar num estabelecimento daqueles. O meu pai, sabendo que não iria alterar uma lei tão absurda, levou Meia‑Noite para a rua, onde este imediatamente bebeu tanta água de um poço público que a barriga lhe inchou quase ao ponto de rebentar. Depois, explicou muito calmamente que tinha vindo a pé todo o caminho, desde a quinta até à cidade, umas boas seis léguas, segundo os cálculos do meu pai. Isso já podia ser considerado extraordinário, mas ele tinha realizado esta proeza em pouco mais de três horas, a julgar pelo ângulo do Sol à partida e à chegada, tendo corrido durante a maior parte do caminho.

O Papá percebeu que Reynolds podia já ter‑se lançado numa perseguição furiosa a Meia‑Noite; por isso, partiram de imediato no primeiro barco disponível, uma escuna que os levou não para a Europa, mas para um entreposto próximo, onde eram descarregadas as cargas de trigo, cevada e tecidos. Ficaram na única estalagem que existia, dando nomes falsos, embora Meia‑Noite, por ser negro, fosse obrigado a dormir no chão do estábulo. Alguns dias depois, conseguiram arranjar passagens num outro barco holandês que seguia para a Holanda.

Depois de o meu pai me ter contado tudo isto, perguntei‑lhe se tinha encontrado alguma terra apropriada em África, visto não se ter referido a isso desde que regressara.

‑ Receio bem que não, John ‑ replicou ele. ‑ A terra é boa, mas presentemente não há estabilidade política e não vai haver pelos tempos mais próximos. Se fosse comprar terreno lá, daqui a dois anos esse mesmo terreno era capaz de pertencer a um chefe zulu ou a um holandês. Mas não tenhas medo, havemos de ter a nossa vinha aqui, mais cedo ou mais tarde. Prometo‑te.

Depois fiz‑lhe a pergunta mais complicada: Se Meia‑Noite era de facto propriedade do Senhor Reynolds, estava certo que o meu pai o tivesse ajudado a fugir?

‑ Isso não é uma espécie de roubo?

‑ Sim, fiz‑me essa pergunta mais do que uma vez, filho. ‑ Agarrou‑me na mão. ‑ Mas antes de te responder, quero fazer‑te eu uma pergunta. Está certo que um homem seja dono de outro?

Eu não sabia bem como responder.

‑ O mercado dos pássaros do Porto não te enfurece, rapaz? ‑ continuou ele. ‑ Não será uma infâmia muito maior quando homens e mulheres são comprados, quando condições tão miseráveis são impostas a seres racionais?

O meu ódio pelo negócio das aves era tanto que não foi necessário acrescentar nem mais uma palavra ao assunto. A partir desse momento, soube qual era a minha posição.

 

Violeta ainda não tinha então desaparecido do Porto e, num sábado à tarde, eu e Meia‑Noite escondemo‑nos numa esquina para a observar enquanto ela vendia as suas orações bordadas na Praça Nova. O boximane ficou encantado quando soube que uma rapariga tão nova conhecia quase todas as constelações do céu. Quando lhe contei o terrível destino que se tinha abatido sobre ela, disse‑me:

‑ Provavelmente, ela está a ser perseguida pela Hiena, tal como tu estavas, John.

Implorei‑lhe que não tentasse visitá‑la, explicando‑lhe que ela apanharia uma sova se fosse encontrada a falar com ele. Vendo a minha agitação, ele concordou e, olhando para o céu, falou por uns momentos nos estalidos rápidos da sua língua.

‑ O que é que estás a dizer? ‑ perguntei‑lhe.

‑ Vão ter de ser os caçadores do céu a defender Violeta e eu pedi‑lhes ajuda.

Levei‑o até perto do sítio no rio onde Daniel se tinha afogado. Contei‑lhe tudo o que acontecera no último dia em que tínhamos estado juntos, confessando que podia ter sido eu a empurrar o rapaz para a morte ao dizer‑lhe que Violeta iria partir para a América sem ele. Meia‑Noite agarrou‑me no queixo, mas não disse nada. Em vez disso, fez‑me olhar para o meu reflexo na água, as mãos fortes em cima dos meus ombros.

‑ John, nós somos seres pequenos. E tu não és tão poderoso como por vezes julgas. O Louva‑a‑deus abandonou Daniel. Isso é que fez com que ele se afogasse.

Meia‑Noite apercebeu‑se das minhas dúvidas e segurou‑me a nuca enquanto nos afastávamos, talvez na esperança de me guiar em direcção à certeza. Nessa noite, ouviu‑me chorar e entrou em bicos de pés no meu quarto.

Mais uma vez, soprou fumo azul do seu cachimbo para dentro da minha boca até o meu quarto ficar completamente às escuras e eu não conseguir ver nada. Depois, acendendo a minha vela, fechou a porta e pediu‑me para pôr a pala da mão por cima da chama durante o tempo que conseguisse aguentar. Aterrorizado, repliquei que não acreditava que fosse capaz de o fazer. Ele estendeu os braços e agitou‑os no meio do fumo, depois juntou‑os devagarinho por cima da cabeça, explicando que a queimadura iria atrair para mim uma borboleta muito especial e que ela iria pedir desculpa a Daniel por mim.

‑ É ela que faz as reparações no outro mundo ‑ explicou. Agarrou na minha mão direita e começou a esfregá‑la entre as dele,

tão energicamente que a fricção pareceu criar uma camada húmida de calor no interior da minha palma. Hoje, suspeito que ele cobriu a minha pele com uma camada protectora qualquer; naquela altura, eu estava demasiado assustado para reparar, mas consigo lembrar‑me de um cheiro azedo nos meus dedos.

‑ Não podes gritar ‑ avisou‑me Meia‑Noite. ‑ Para não assustares a Borboleta.

Inspirei fundo uma última vez e enfiei a mão no centro da chama. A dor foi excruciante e abafei um grito. Aguentei enquanto consegui, de certeza que não mais do que um segundo, e tirei rapidamente a mão. Meia‑Noite disse‑me que me tinha portado muito bem.

‑ Como um guerreiro boximane ‑ disse ele, os olhos a cintilar de admiração.

Soprando a vela, disse‑me para levantar a mão com a queimadura voltada para cima.

Quando o fiz, toda a minha respiração e a minha vida se concentraram naquela dor latejante. O meu espírito pareceu abrir‑se e fechar‑se, como um punho, à procura de perdão. Por fim, Meia‑Noite acocorou‑se ao meu lado e sussurrou:

‑ Ali está ela!

‑ Quem?

‑ A Borboleta. Pousou na tua mão e está a curar a queimadura. Está a lamber.

‑ De que cor é que ela é?

‑ Sssshhh... fala baixo. Tem o cor‑de‑rosa, o azul e o preto da mãe, o Vento do Deserto. ‑ Fez‑me uma festa nas costas. Senti que o bater do meu coração me fazia oscilar. ‑ Ela está quase a acabar, John. Quando eu voltar a tocar‑te, levanta a mão muito devagarinho‑devagarinho e diz: «Mando a Borboleta para a floresta da noite.»

Quando falei, o sopro do ar contra a minha mão levantada, sobressaltou‑me.

‑ Acho que a senti ‑ sussurrei.

A seguir, Meia‑Noite cobriu‑me a queimadura com ervas que foi buscar à Torre de Vigia e que mastigou até as transformar numa pasta.

‑ Isto vai selar a cura da Borboleta dentro de ti.

‑ A Borboleta sabe sempre onde encontrar os mortos? ‑ perguntei‑lhe.

‑ Sempre. ‑ Tocou no nariz e fungou. ‑ Ela consegue localizar cada flor que alguma vez nasceu.

O meu pai tentou familiarizar Meia‑Noite com as técnicas de elaboração de mapas topográficos, uma actividade para a qual estava convencido que o boximane era capaz de ter alguma aptidão. Mas quando descobriu que, nas suas costas, os colegas riam como perdidos do que chamavam «o macaco de Stewart», nunca mais pediu a Meia‑Noite que o acompanhasse até ao escritório. Com estoicismo escocês, continuou com o que se propunha fazer, comprando pás, enxadas, ancinhos e sacholas de vários feitios e tamanhos para o laboratório hortícola e o paraíso verdejante que ia ser o nosso jardim.

Eu, Meia‑Noite e Fanny fomos recrutados para esta recuperação, mas quase todo o trabalho importante foi feito pelo nosso robusto africano. Para nossa grande surpresa e prazer, depressa descobrimos que os caules petrificados das roseiras que se espalhavam num imponente emaranhado pela nossa propriedade não estavam todos mortos. Foram precisas semanas de trabalho diário para limpar uma área de bom tamanho para a plantação de Meia‑Noite e para estimular as roseiras há tanto tempo sofredoras fazendo‑as recuperar a saúde, e nessa altura já estávamos quase no final de Outubro. Todavia, foi um Outono suave e uma das roseiras deu três botões amarelos no princípio de Janeiro. Oferecemo‑los à minha mãe, que meteu os caules delicados na sua jarra de porcelana azul e branca. Ela ainda tem um esboço grosseiro que eu fiz deste arranjo nesse mesmo dia.

Meia‑Noite recolheu ideias sobre que plantas medicinais deveria plantar numa visita que fizemos à Quinta dos Arcos, um jardim botânico, nos arredores da cidade. Benjamim Seixas, o nosso boticário e um grande amigo da família, ofereceu ao Africano sementes de hissopo, arnica, dedaleira, pata‑de‑cavalo e de outras espécies que eram benéficas para os Europeus já há muito tempo, assim como estacas de alfazema, salva, verbena e outras plantas úteis.

A nossa amizade por Meia‑Noite não nos impedia de termos dúvidas sobre a sua permanência connosco e, de vez em quando, eu ouvia os meus pais discutirem, atrás da porta fechada do quarto, se deviam sujeitá‑lo ao ridículo das pessoas da cidade. E havia ocasiões em que ele era antipático e até grosseiro. No entanto, acabava quase sempre por haver um motivo razoável para este comportamento. Por vezes, a nossa incompreensão dos seus motivos piorava uma situação já de si desagradável, como quando ele adoeceu pela primeira vez, ficando com o corpo todo cheio de borbulhas que faziam muita comichão. Durante um ou dois dias, ficámos preocupados com receio de que pudesse ser uma doença grave, mas depressa se tornou claro para a minha mãe que era apenas varicela, o que era extraordinário, uma vez que nunca se tinha ouvido falar de adultos que a tivessem. Contudo, o que foi muito vexatório, foi ele ter‑se fechado na Torre de Vigia, recusando‑se a aparecer.

Ao fim de um dia e uma noite deste comportamento, o meu pai fartou‑se. Subiu, pisando com violência as escadas de caracol com a Mamã e eu atrás e bateu com toda a força na porta, acabando por convencer o Africano a abri‑la uma nesga. Quando o Papá entrou, Meia‑Noite correu para o fundo do quarto.

‑ E então, senhor, o que é que se passa?

‑ Por favor! ‑ gritou o Africano. ‑ Gostaria que se fossem embora muito, muito imediatamente!

Abanava loucamente as mãos à frente do peito como se estivesse a afastar um animal selvagem.

‑ Mas estás doente!

‑ Não discutam comigo. Vão‑se embora. Estou a dar‑lhes uma ordem!

Apercebendo‑se da razão do medo de Meia‑Noite, a minha mãe disse‑lhe:

‑ Ouve‑me, Meia‑Noite. Nós os três já tivemos varicela. Não vamos apanhá‑la outra vez.

‑ O teu comportamento é o de uma criança ‑ ralhou o meu pai, fazendo com que os olhos de Meia‑Noite se enchessem de lágrimas.

Nenhum de nós sabia como sair daquele impasse. Por fim, a mãe disse:

‑ Pelo menos, deixa a porta aberta e deixa‑nos trazer‑te comida. Quando ele concordou com grande relutância, a minha mãe fez um caldo verde e mandou‑me levar‑lho num tabuleiro. Deixei a tigela fumegante à porta e recuei para que ele pudesse aproximar‑se, como se estivesse a alimentar um animal ferido.

Nessa noite, entrei em bicos de pés no quarto de Meia‑Noite muito depois de ele ter adormecido. Sentei‑me aos pés da cama, sem saber o que fazer. Estava tremendamente cansado; por isso, quando ele se virou para um lado, meti‑me muito simplesmente debaixo da roupa com ele.

Quando acordei, quase de madrugada, encontrei‑o agachado num canto, a bater os dentes.

‑ O que é que estás a fazer aí? ‑ perguntei, sentando‑me e bocejando.

‑ Desobedeceste‑me ‑ disse ele escandalizado. ‑ És muito mau. Vai‑te embora!

‑ Só vou se me disseres o que é que te está a perturbar. Quando ele se recusou a falar, acrescentei:

‑ Vou ter rugas como a Avó Rosa antes de sair deste quarto.

‑ Tu... tu não podes ter a certeza que seja varicela. O teu pai disse‑me que os médicos europeus são de compreensão muito, muito lenta.

Soltei uma gargalhada.

‑ Houve alguma coisa do que dissemos que te tenha entrado nessa tua cabeça teimosa? A minha mãe sabe o que é que tens. Ela não comete erros quando se trata destas coisas porque se preocupa mais com elas do que qualquer outra pessoa no mundo!

Ele abanou a cabeça e levantou‑se.

‑ Mas, John, ela pode estar enganada. Posso ter qualquer coisa incurável que tenha vindo comigo de África. Podes apanhá‑la pela proximidade. A Senhora Reynolds estava sempre a dizer que as nossas doenças iam ser a morte dos Europeus. ‑ Esfregou o cabelo com a mão e gemeu. ‑ Não te ajudei a afugentar a Hiena para te matar agora.

A sua explicação foi tão comovedora que me considerei um cretino por não ter compreendido mais cedo a profundidade do seu medo.

‑ Meia‑Noite ‑ disse‑lhe gentilmente. ‑ Passei a maior parte da noite na tua cama e não estou doente. Não há perigo. Começou a chorar.

‑ Tens de te ir embora. Por favor!

Ao vê‑lo debulhado em lágrimas, com a cabeça entre as mãos, não me consegui conter. Corri direito a ele e abracei‑me à sua barriga. Ele tentou empurrar‑me, mas eu continuei a abraçá‑lo e a respirar o cheiro húmido e quente dele até que me deu um beijo no topo da cabeça.

‑ Ouve com atenção ‑ disse‑lhe eu. ‑ Os meus pais e eu já enfrentámos esta mesma fera e matámo‑la. Já não nos pode fazer mal outra vez.

Então, com a minha garantia absoluta de que a minha mãe e o meu pai iriam ser cuidadosos e não lhe iriam tocar, deixou‑me levá‑lo pelas escadas abaixo. O Papá sentou‑o ao pé da lareira e elogiou‑o pela sua coragem. A Mamã aqueceu sopa e observou‑o com toda a atenção para ter a certeza de que ele a comia toda.

Nos dias seguintes, ele deixou que, de tantas em tantas horas, a minha mãe lhe aplicasse nas borbulhas uma solução de óxido de zinco, o que fazia com que ele ficasse com manchas cor‑de‑rosa. Quando se viu ao espelho, arreganhou os dentes como se fosse um leopardo e uivou de alegria.

Nesse primeiro ano, Meia‑Noite esteve muitas vezes doente. Nós estávamos sempre a culpar o nevoeiro que se misturava com o fumo de quinze mil chaminés até não se conseguir ver praticamente nada a cinquenta passos de distância. Mas a verdade é que o pobre homem também adoecia quando o Sol estava no máximo do seu esplendor. Teve crises de garrotilho, furúnculos, amigdalites, dispepsia, diarreia e uma terrível hidropisia das extremidades em que os pés incharam para quase o dobro do tamanho natural. Uma vez, uma erupção avermelhada com o feitio de um caranguejo com três garras apanhou‑lhe a face direita e desceu pela garganta, tendo sido acompanhada de arrepios de frio. Depois começou a tossir e a expectorar sangue. Podia ter sido escarlatina, mas como isso também é uma doença infantil, não pudemos ter a certeza. Embora estivéssemos frequentemente desesperados de aflição, nem os meus pais nem Meia‑Noite estiveram dispostos a permitir a entrada de um médico em nossa casa. E, por isso, foi o Senhor Benjamim, o boticário que tinha fornecido as sementes e as estacas a Meia‑Noite, que nos salvou.

Eu sempre considerara o Senhor Benjamim algo ameaçador e, de um modo geral, sem nenhuma característica especial que o distinguisse. Este erro de julgamento deveu‑se, julgo eu, à pequenez da sua estatura, que ‑ antes de eu conhecer Meia‑Noite ‑ era para mim sinónimo de insignificância, e aos seus inteligentes olhos castanhos. Enquadrados por uns óculos ovais, eram muito mais vigilantes do que qualquer rapaz com o meu carácter podia gostar.

Todavia, agora, com Meia‑Noite doente com o que provavelmente era escarlatina, ele mostrou ser generoso, meticuloso e infatigável. Estou convicto de que teria pesado cada um dos grãos da areia da praia se isso significasse descobrir aquele que podia ajudar o nosso hóspede.

Quando a febre e a erupção cutânea do Africano desapareceram e ele foi considerado bom outra vez, o Senhor Benjamim tinha‑se tornado um amigo da família em quem todos confiávamos. Viúvo, com cinquenta e sete anos, passou a jantar connosco todas as noites de sexta‑feira e o meu pai encontrou nele o grande amigo de que tinha andado à procura em todos estes anos.

Meia‑Noite beneficiou muito com este relacionamento; não só ganhou um enfermeiro e guardião pessoais, como também ganhou a possibilidade de fazer a sua aprendizagem. Devido ao enfraquecimento da vista, Benjamim precisava de um assistente, por isso, quem melhor do que Meia‑Noite? Não foi assinado qualquer contrato; um simples aperto de mão entre os dois homens foi considerado suficiente. O Africano iria trabalhar com o boticário durante três anos, quatro meios dias por semana, uma vez que ele não acreditava que fosse capaz de estar dentro de casa mais tempo do que isso. Em troca, receberia um salário pequeno, mas justo. Ao fim dos três anos, se ele assim quisesse e ambas as partes estivessem de acordo, o boximane entraria como sócio de Benjamim, mediante uma quantia que seria determinada mais tarde e que o meu pai aceitou pagar. Se Meia‑Noite quisesse voltar para África, não lhe seriam postos quaisquer entraves.

O boximane ficou louco de alegria com este acordo e eu dancei com a Fanny em volta da sala quando ouvi a novidade, uma vez que isso queria dizer que o nosso amigo iria ficar connosco mais três anos, pelo menos. Dado o meu egoísmo em questões do coração, não deve ser uma surpresa que eu tivesse rezado para que ele descobrisse uma cura para a varíola que pudesse ser enviada por barco para África sem que ele tivesse de nos deixar por um dia que fosse.

 

No PRINCÍPIO DO mundo, uma abelha‑fêmea salvou o Louva‑a‑deus das águas do Grande Dilúvio agarrando nele e voando para longe. No terceiro dia de viagem por cima do mar infindável, exausta, voando cada vez com mais dificuldade, viu uma gigantesca flor branca. Estava meio aberta e erguia‑se de dentro da água como se estivesse a chamar o Sol que ainda estava escondido atrás das zangadas nuvens cinzentas das chuvas diluvianas. Antes de renunciar à vida, depositou o Louva‑a‑deus no centro da flor. E nele, plantou a semente dos primeiros homens e das primeiras mulheres.

Era assim que Meia‑Noite descrevia os primórdios dos boximanes e das outras tribos e nacionalidades do mundo ‑ até dos escoceses, embora a imagem de um escocês de kilt sentado no meio de um nenúfar possa ser considerada disparatada por alguns.

Não sou capaz de descrever o deleite com que escutava este conto e muitos outros. Meia‑Noite tinha uma voz cativante e uma pronúncia inglesa delicada e musical. De vez em quando, dizia frases completas no idioma boximane, e eu tinha a sensação de estar a ouvir a primeira língua do mundo. Penso sempre em Adão e Eva como sendo do povo de Meia‑Noite.

Ele contou‑me este conto em particular quando estava sentado num pedregulho junto do rio, a alguns quilómetros para leste do Porto. Quase nunca falava destas coisas dentro dos muros da cidade, pois dizia que era praticamente impossível dar‑se completa atenção a uma história com tantas pessoas a andar de um lado para o outro e a fazer barulho.

Quando lhe perguntei como é que uma semente de uma abelha se tinha transformado num homem, respondeu‑me que todas as sementes eram essencialmente uma. Quando lhe pedi para se explicar melhor, tudo quanto disse foi que estas histórias tinham acontecido durante a Idade das Primeiras Pessoas, quando havia uma menor diferenciação entre as coisas. Não havia nem passado nem futuro. Era sempre agora..

Algumas das histórias de Meia‑Noite falavam da necessidade de se seguir as chuvas no deserto e a primeira vez que ele próprio desapareceu numa dessas viagens foi no princípio de Dezembro, no primeiro ano da sua estada connosco, imediatamente antes de começar a trabalhar com o Senhor Benjamim. Tinha estado uma manhã enevoada, sem vento, e esperávamos que o Sol aparecesse por volta do meio‑dia. Contudo, Meia‑Noite deve ter cheirado remoinhos de vapores distantes; passou todo o pequeno‑almoço a correr escada abaixo, escada acima, incapaz de comer ou de estar sentado. Por fim, não conseguiu continuar mais tempo dentro de casa. Agarrou no seu tubo de pele de gunga e no arco, juntamente com a mochila de couro que tinha vindo no seu baú de África, e saiu de casa.

‑ Por amor de Deus, onde é que pensas que vais? ‑ perguntou a minha mãe.

‑ Depressa... vai atrás dele, John! ‑ ordenou‑me o meu pai.

Saltei da mesa, ainda de camisa de noite, enfiei as botas que estavam à porta, agarrei no casaco que a mãe me entregou e corri atrás do nosso hóspede. Encontrei‑o logo a seguir à entrada norte da nossa rua, ao pé da cadeia municipal. Deste ponto alto, conseguia ver por cima da paisagem dos telhados do Porto até aos montes distantes no horizonte a oriente. Estava a cantar uma melodia ‑ a melodia secreta que mais tarde me iria ensinar.

Quando acabou a canção, apontou para sudeste, onde consegui ver o funil de uma nuvem azul a soltar uma fita cinzenta de tempestade. Pôs o braço em cima dos meus ombros enquanto observávamos os céus distantes a escurecerem. Ao primeiro relâmpago, uma vibração profunda começou‑lhe nas entranhas e o estrondo subsequente do trovão fê‑lo gemer. Uma rajada de vento gelado levantou algumas folhas caídas e veio depositá‑las aos nossos pés e ele anunciou:

‑ Vou estar fora durante uns dias. Mas vou estar muito, muito bem. Não te deves preocupar comigo.

E afastou‑se.

‑ Onde é que vais? ‑ gritei‑lhe.

Senti um forte impulso para o seguir, mas sabia que estaria metido em sarilhos se não voltasse para casa. Quando corri para lá para pedir licença, cruzei‑me com o meu pai, que saía de casa a caminho do escritório.

‑ Onde é que estiveste, meu filho? Encontraste‑o?

‑ Ele disse que se ia embora por uns dias. Disse‑me para não me preocupar. Mas estou preocupado. Acho que ele quer ir ao encontro da tempestade. Posso ir com ele?

‑ Viste as chuvas a aproximarem‑se? ‑Vi.

O Papá sorriu.

‑ É assim, filho: o povo dele anda durante dias atrás da chuva num deserto, a água é vida. Por isso, se a tempestade não vier, há grandes privações. Ele vai estar fora durante vários dias, calculo eu, mas sabe o que está a fazer.

‑ Havia relâmpagos, Papá. Ele pode ferir‑se.

‑ Não, não lhe vai acontecer nada. O povo dele usa os relâmpagos como bússola.

Vendo que eu não estava convencido, deu‑me uma palmadinha no ombro.

‑ Não tenhas medo por causa de Meia‑Noite.

‑ Não tenhas medo!? Mas ele está sozinho. E não conhece Portugal. E... e...

‑ John, Meia‑Noite disse‑me uma vez que o deserto espera pelo relâmpago como uma noiva espera pelo noivo. E, quando ele vem, rapaz, o deserto une‑se com o relâmpago. Tudo o que lá vive ‑ todos os animais, grandes e pequenos, e todos os homens, mulheres e crianças abandonam o que estavam a fazer e põem‑se em marcha. Para eles, o relâmpago é um chamamento dos céus. Têm de o seguir ou perdem a sua razão de ser. Agora, John, ouve com atenção... Meia‑Noite contou ‑me que estava proibido de seguir a chuva na propriedade do Senhor Reynolds. Tinha ordens para nunca sair da propriedade. Mas aqui ele é senhor de si próprio e eu nunca o impedirei de fazer o que quiser. Tu não ias querer que ele vivesse sem um objectivo, pois não?

Eu sabia qual era a resposta que o meu pai queria, mas estava a sentir‑me demasiado perturbado para a dar. Ele deu‑a por mim.

‑ Não, não ias. E ele não se vai magoar. E voltará para nós.

‑ Mas o Porto não é um deserto.

‑ Mesmo assim, Meia‑Noite seguirá a chuva e os relâmpagos, tal como nós seguiremos o caminho que a vida nos dá. Podes estar certo disso, rapazinho.

Durante a ausência de Meia‑Noite, os diques do céu abriram‑se durante quatro dias e quatro noites, criando rios de lama que corriam pelas nossas ruas. Esperávamos que Meia‑Noite estivesse coberto de lama da cabeça aos pés e a espirrar como um druida quando voltasse para casa, mas as expectativas contavam sempre pouco quando se tratava do nosso amigo boximane. Quando regressou, cinco dias depois, os calções de lã castanho‑claros, a camisa branca e o colete azul estavam impecavelmente limpos. É certo que os pés descalços estavam cheios de terra, mas isso, juntamente com o cheiro a humidade da lã molhada, eram os únicos sinais de quase uma semana passada debaixo de chuva, nuvens e estrelas. ‑ Bom dia ‑ disse ele, o seu sorriso divertido a iluminar‑lhe o rosto. ‑ Vimo‑vos de longe e estamos a morrer de fome.

Depois das nossas exclamações de alegria, a minha mãe foi a primeira a reparar num corte na testa dele. Aproximou‑se e tocou suavemente com a ponta do dedo na ferida, no sítio onde o sangue tinha feito uma crosta. Meia‑Noite riu‑se, dizendo que não era nada e depois agarrou‑lhe na mão e levou‑a aos lábios com toda a correcção, como lhe tinha sido ensinado.

‑ Vou já ligá‑la ‑ disse a minha mãe.

‑ Sim, mas primeiro deixai‑me olhar outra vez para a família Stewart. Meia‑Noite estava visivelmente contente por estar em casa. Quando viu a minha expressão de felicidade, piscou‑me o olho, como se tivesse muitas coisas para me contar em privado. Corri para ele para o abraçar e inalar o seu cheiro reconfortante.

O meu pai ajudou‑o a arrumar a mochila, a aljava e o arco e depois sentou‑o à nossa mesa, onde a minha mãe lhe tratou a ferida. Eu já não conseguia sufocar a pergunta que estava desesperado por fazer e gritei:

‑ Mas como é que conseguiste manter o raio da tua roupa tão limpa?

‑ John! ‑ exclamou a minha mãe. ‑ Um cavalheiro nunca diz essas palavras, mesmo quando está zangado.

Ao que eu respondi com toda a naturalidade:

‑ Mas eu ainda não sou um cavalheiro.

Não estava a brincar, uma vez que tinha decidido que não me devia ser exigido que me comportasse como um cavalheiro até ter pelo menos dezasseis anos.

‑ Nunca disseste nada de mais verdadeiro ‑ replicou a Mamã, não sem humor. ‑ Mas hei‑de transformar‑te num, nem que seja a última coisa que faça.

‑ Mas afinal, como é que ficaste tão elegantemente vestido? ‑ perguntou o meu pai.

‑ Mal me vi a salvo no campo, sem casas por perto, tirei as roupas, dobrei‑as com todo o cuidado e meti‑as na mochila e, depois, atei‑a bem no cimo de um carvalho. Ficaram muito, muito molhadas ‑ Riu‑se. ‑ Mas hoje secaram no caminho para casa. Excepto os calções.

‑ Como é que te lembraste onde estava o carvalho? ‑ perguntei‑lhe. Ficou atónito.

‑ John, não sejas pateta... Nunca poderia perder uma árvore tão importante.

‑ Já chega desta conversa ‑ ralhou a minha mãe. ‑ Vai vestir qualquer coisa seca imediatamente. Não te quero outra vez doente antes do Natal. O meu coração não ia aguentar. E como vais começar a tua aprendizagem dentro em breve, não te podes apresentar com febre à porta do Senhor Benjamim. Se não podes...

A minha mãe teria continuado com isto até de madrugada se o Papá não se tivesse arriscado a incorrer na sua fúria, interrompendo‑a.

‑ Tens de fazer o que ela diz, Meia‑Noite, ou não teremos paz. Peço‑te que vás para o teu quarto com o John e mudes de roupa. Depois desce para jantares connosco.

Meia‑Noite e eu corremos pelas escadas acima até ao quarto dele. Enquanto mudava de roupa, Meia‑Noite começou a falar das suas aventuras. Eu sentia quase sempre um ardor de privilégio a aquecer‑me bem fundo dentro de mim quando o ouvia. Uma vez, quando lhe descrevi esta sensação, ele disse‑me que, quando eu tinha estado a delirar com febre, ele me tinha feito engolir um pirilampo para acabar com os arrepios. O pirilampo ainda estava dentro de mim. Ele também abrigava um no seu interior e, quando os dois se encontravam, piscavam as luzes em sinal de reconhecimento.

Abotoando a camisa, Meia‑Noite contou‑me como, depois de ter saído do Porto, tinha procurado o coração da tempestade, abrindo caminho por quintas e bosques em direcção ao céu que ia sempre escurecendo. Quando lhe perguntei se tinha encontrado outras pessoas no caminho, respondeu‑me:

‑ Ninguém. Mantive‑me longe da vista. Eu sou esperto‑esperto a esconder‑me quando quero.

Contou‑me que a chuva o tinha apanhado quando subia uma colina coroada de pinheiros. Tinha dançado lá durante horas.

‑ Para chamar mais chuva? ‑ perguntei‑lhe eu.

Encolheu os ombros e depois deu um estalido com a língua. Quando insisti para que me respondesse em inglês, limitou‑se a sorrir. Esta já não era a primeira vez que Meia‑Noite me tinha deixado com um estalido em vez de uma explicação, mas acabei por perceber que o seu silêncio não significava traição ou sequer uma recusa em partilhar um segredo, como chegara a pensar. Muito simplesmente, não conseguia dar‑me uma resposta adequada.

Lá em baixo, voltou a contar ‑ para os meus pais ansiosos ‑ aquilo que eu pensava ser apenas o prelúdio de uma história épica de perigosa aventura. Mas ele terminou rapidamente, explicando que, depois de ter acabado a dança, tinha passado os quatro dias seguintes a caçar. Sem se aperceber da minha expectativa de ter pelo menos uma hora de encantamento, pegou na colher e começou a enfiar sopa de cenoura na sua boca esfomeada.

‑ Mataste... mataste muitas coisas? ‑ perguntei.

A minha mãe achou que isto era um assunto impróprio para um garoto da minha idade e mandou‑me calar, mas o meu pai disse:

‑ Não, May, vamos ouvir um pouco dos despojos da guerra.

‑ Matei uma grande gazela. Um lindo animal. ‑ Os olhos cintilaram. ‑ Também a desenhei numa rocha.

‑ Como é que conseguiste tirar‑lhe a vida? ‑ perguntou a Mamã, abanando a cabeça. ‑ Eu teria ficado com o coração partido se visse tal coisa.

‑ Sou um boximane, tal como ela era uma gazela. Tenho de comer ou morrer.

‑ Por que é que a desenhaste? ‑ perguntei eu.

‑ Tenho de marcar o sítio onde ela morreu. Para o Louva‑a‑deus saber.

‑ E como é que fizeste esse corte na testa? ‑ perguntou o meu pai.

‑ A minha seta espetou a gazela aqui ‑ respondeu ele, apontando para as suas costelas. ‑ Ela correu depressa. Persegui‑a pelo meio da floresta. Um ramo veio contra mim...

Fez um gesto rápido com a mão e riu‑se da sua falta de cuidado.

‑ Que mais é que comeste? ‑ perguntei eu.

‑ Duas lebres. Uma grande quantidade de formigas.

‑ Formigas?

A minha mãe fez um barulho como se estivesse engasgada e depois não conseguiu parar de tossir.

Com a sua malícia apenas visível no brilho dos olhos, Meia‑Noite acrescentou num tom muito sério:

‑ As vossas formigas portuguesas são muito menos saborosas que as nossas em África.

‑ Vou tomar nota disso ‑ disse o meu pai, fingindo que escrevia esta delícia num caderno de apontamentos.

A boca da minha mãe abriu‑se de espanto. Batendo com o punho na mesa, disse:

‑ Não quero ouvir mais conversas sobre vermes! Tu! ‑ disse ela, voltando‑se para Meia‑Noite. ‑ Come a sopa antes que fique fria. E tu ‑ acrescentou, virando‑se para o meu pai ‑, tu vais acabar com as piadas. E tu ‑ continuou ela, olhando para mim ‑, tu... fica aí sentado a ouvir!

‑ Era o que eu estava a fazer.

‑ E não fales comigo nesse tom de voz!

‑ Como quiser, Mamã.

Enquanto Meia‑Noite comia a sopa, dei‑lhe uma cotovelada no braço e perguntei‑lhe:

‑ Um dia levas‑me à caça?

Antes que ele pudesse responder, a minha mãe disse bruscamente:

‑ Esta conversa é completamente impossível. John, proíbo‑te de ires à caça!

‑ Não está a perceber o que eu quero dizer, Mamã. Não é por quatro dias. Só um ‑ levantei um dedo e depois virei‑me para Meia‑Noite.

‑ Podíamos ir só por um dia, não podíamos? Quando houver sol. Quero dizer, assim podíamos não ter de ficar na floresta durante a tempestade e esconder as nossas roupas nas árvores ou comer formigas, não era? Podíamos caçar de uma maneira menos... menos...

Receando uma discussão, o meu pai interrompeu o meu gaguejar, dizendo:

‑John, se fazes favor, agradeceria muito se deixasses que a tua mãe e eu discutíssemos este assunto mais tarde.

A minha mãe franziu o sobrolho e disse:

‑ James, não vai haver discussão nenhuma a respeito de caça nesta casa.

Resolvi amuar, mas nenhum deles pareceu dar por isso, o que me enfureceu ainda mais.

Depois do jantar, quis ir para o meu quarto, mas o Papá deitou‑me um olhar de sério aviso e disse que não me tinham dado licença para me retirar. Meia‑Noite teve pena de mim e disse:

‑ Sabes, John, enquanto estive fora, vi um pássaro muito invulgar.

‑ Que tipo de pássaro é que era? ‑ perguntei em tom imperioso. É um testemunho do carinho que a minha família tinha por mim terem sido capazes de resistir a rirem‑se à minha custa.

‑ Um dia ‑ começou ele ‑, quando eu era um rapaz não mais velho do que tu, parei num lago pequeno para beber. Foi ao pé do Vale Gemsbok, onde nasci. Na água, no reflexo, vi uma ave grande, grande. ‑ Abriu os braços o mais que conseguiu, com os dedos muito abertos. ‑ Era toda branca ‑ o marfim mais puro esculpido em asas e uma cauda comprida. Mas, quando me voltei para olhar para ela, desapareceu por cima da copa das árvores da Floresta da Noite e, a partir desse momento, fiquei consumido por um desejo imenso de a conseguir ver bem.

Inalou profundamente o seu cachimbo, mas, quando voltou a falar, só saíram uns farrapinhos minúsculos, o que fez com que eu imaginasse que a maior parte do fumo tinha sido transformado em palavras dentro dele.

‑ Era como o amor, John, este meu sentimento. Por isso, abandonei a minha família por algum tempo para encontrar a ave. Mas não consegui. E ninguém, das pessoas que eu conhecia, lhe tinha posto os olhos em cima. ‑ Deu‑me um toquezinho na perna com o pé. ‑ Nunca mais a voltei a ver, nem de relance, até há dois dias.

Reclinou‑se para trás e ficou sentado a fumar como se tivesse dito tudo o que queria dizer sobre o assunto. A minha mãe pegou numas cartas que recebera recentemente.

‑ Então, o que é que aconteceu há dois dias? O que é que viste? ‑ perguntei eu, já com outra disposição e ansioso por ouvir mais.

‑ Foi muito, muito estranho. Estás a ver, John, eu estava a beber num lago e vi outra vez o reflexo da ave branca‑branca na água ‑ tal como da primeira vez.

Inclinou‑se para a frente, expectante, e apontou o cachimbo na minha direcção, o que teve o efeito de me fazer pôr de joelhos na cadeira.

‑ Desta vez, John, ouvi um grito agudo quando me voltei.

E Meia‑Noite soltou um guincho agudo.

A minha mãe levantou os olhos, franziu as sobrancelhas como se estivesse pronta a repreender Meia‑Noite, mas soltou um profundo suspiro dizendo:

‑ Estou a ver que é inútil tentar concentrar‑me noutra coisa qualquer que não seja a tua história.

Meia‑Noite sorriu e continuou:

‑ Segui os guinchos até ao cimo de uma colina ali perto. Mas a minha adorada ave não se deixava ver em lado nenhum, por isso dancei a Dança da Avestruz.

O boximane prendeu o cachimbo na boca e, sem se levantar, agitou as mãos e espetou a cabeça para a frente até todos conseguirmos ver a ave que não voa a correr à nossa frente.

‑ E o que é que aconteceu então?

Uma voz falou comigo: «Olha para ali! Olha para ali!» e, quando me voltei, vi uma grande pena branca que descia a flutuar do poente dourado.

Meia‑Noite esticou‑se o mais que pôde e fechou a mão em volta da pluma imaginária.

‑ Passados tantos anos, eu tinha uma pena dela. Conseguia senti‑la pulsar dentro da minha mão, como se estivesse viva. E sabes, senti uma paz maior do que alguma vez sentira. Toda a minha fome desapareceu. Era como se eu tivesse alcançado a minha família ao fim de muitos anos no deserto.

Nesta altura, eu tremia de curiosidade.

‑ Então como era a ave? De que género era?

‑ Do género que nunca se deixa ver por ninguém. Nunca ninguém a conseguiu ver bem. Nem ninguém sabe o seu nome. Mas uma pena dela é o suficiente para tornar um homem feliz para toda a vida. E uma pena colocada na cabeça de um chefe pode trazer felicidade para todos.

‑ Meia‑Noite, estás a inventar! ‑ declarei eu.

‑ Achas que estou? Então vai buscar a minha mochila, se fazes favor.

Levantei‑me de um salto, corri para a porta do jardim, tirei a mochila do cabide e levei‑lha. Enfiando a mão lá dentro, tirou uma pena branca esguia, com cerca de dois palmos de comprimento. Esfregou‑a debaixo do queixo e depois inalou a sua fragrância como se fosse perfume.

Eu estava de boca aberta. Nunca tinha visto uma pena tão grande e tão bonita.

‑ Onde é que a arranjaste? ‑ perguntei‑lhe.

‑ Não me estavas a ouvir? Caiu do céu.

‑ Da ave sem nome? Assentiu.

‑ Da grande ave branca sem nome?

‑ Sim. ‑ Sorriu e estendeu‑ma. ‑ É para ti, John. Quando a agarrei, também eu a senti pulsar na minha mão.

‑ Por que é que ma estás a dar? ‑ perguntei‑lhe.

‑ Quem mais a poderia apreciar tanto como tu?

Durante vários dias, escolhi momentos estratégicos para lisonjear a minha mãe e conseguir que ela me desse licença para acompanhar Meia‑Noite numa das suas caçadas. Como as minhas primeiras tentativas de lisonja só tiveram como resultado uns resmungos descrentes, tornei‑me mais poético. Um dia disse‑lhe que ela era mais leve e mais ágil do que todas as estrelas de Pégaso. Achava que era uma observação elogiosa, mas a Mamã desatou a rir e riu‑se tanto que as lágrimas lhe rolaram pela cara. Como explicação, disse‑me:

‑ Desculpa‑me, John, mas não sou frequentemente comparada de forma favorável com um cavalo.

Embora tudo parecesse perdido para mim, o meu pai tinha aprendido certas técnicas na última década para vencer a oposição dela e, na tranquilidade do quarto deles, depressa conseguiu obter a tão desejada autorização, desde que eu me abstivesse de comer formigas ou de ferir qualquer animal. Esta era uma promessa fácil de fazer, visto que eu não tinha a menor intenção de comer fosse o que fosse que tivesse seis patas e antenas e que nunca tinha empunhado nenhum tipo de arma, quanto mais uma tão difícil de dominar como o arco e a flecha.

Como o sábado seguinte foi abençoado pelo sol, eu e Meia‑Noite saímos de madrugada. Passadas duas horas, estávamos a andar pelo meio de um bosque espesso e húmido, de fetos, pinheiros e carvalhos, duas léguas para leste da cidade. Despimos as camisas, que metemos na mochila de Meia‑Noite, que por sua vez pendurámos num ramo. Ele também tirou os calções, meias e sapatos. Eu tinha demasiada vergonha da minha estrutura escanzelada para fazer um gesto tão corajoso. Depressa aprendi que ele seguia a pista dos animais de três maneiras diferentes: através do cheiro deles, das pegadas e dos excrementos. Era tão exímio que, ao examinar uma única pegada levemente marcada no chão, conseguia dizer há quanto tempo o animal tinha passado por ali e qual tinha sido a sua forma geral.

Um único sopro era suficiente para o pôr a andar em bicos de pés, suaves como seda. Rastejava e agachava‑se com o cuidado meticuloso do seu adorado Louva‑a‑deus ‑ o silêncio tinha objectivo e direcção.

Era tão ágil com o arco e a flecha que parecia que estes faziam parte do seu corpo. Nessa manhã, vi‑o furar o coração de uma lebre encoberta por mato espesso a cinquenta passos de distância. A seta cortou o ar, voando para a criatura desprevenida como se fosse guiada por uma força eléctrica. Com a sua arma, o nosso Meia‑Noite de bom coração transformava‑se em destino mortífero.

E, o que era mais espantoso de tudo, o boximane conseguia disparar uma flecha enquanto corria e foi assim que o vi atingir um veado a uma distância de setenta passos quando ele saltava por entre as árvores. O animal ferido não caiu, em vez disso começou a correr com a ponta da seta enfiada no flanco.

‑ Corre, John! ‑ gritou‑me ele, fazendo‑me sinal para avançar. Corri para ele e, juntos, fomos atrás do veado, com Meia‑Noite a correr a uma velocidade moderada para permitir que eu nunca o perdesse de vista. Perseguimos o animal durante quase meia légua. Morreu junto de um pinheiro, os olhos abertos, mas já sem verem nada do nosso mundo. Eu nunca tinha estado tão perto de um veado. Teria preferido que estivesse vivo, é verdade, mas mesmo morto era lindo.

‑ Olá ‑ disse‑lhe eu.

Estava a ofegar e sentia‑me confuso com tudo o que tinha experimentado. O Africano estava coberto de suor, os contornos musculosos da pele cor de bronze cintilavam. Fez‑me uma festa na cabeça e disse que iríamos pedir desculpa ao veado mais tarde.

Quando arrancou a seta do corpo do animal, explicou‑me que fazia as suas setas de modo que as pontas levassem um veneno que tinha preparado com beladona, acónito e outras plantas perigosas que cultivava atrás de uma vedação de arame no nosso quintal. Também me disse que punha uma parte minúscula de si próprio na ponta para entrar na morte da sua presa.

A partir desta experiência, compreendi que impedir que Meia‑Noite caçasse ‑ como o Senhor Reynolds fizera em África ‑ era o mesmo que exilá‑lo da sua razão de ser. A sua necessidade de reconstruir a história central da nossa existência enquanto criaturas mortais pode ter sido a razão mais importante que o levou a fugir da escravidão. Não podia continuar a viver sem recordar ‑ nos pés, nas mãos, no arco, no coração ‑a raiz do seu ser. África é memória, disse‑nos Meia‑Noite uma vez e, embora eu nunca tivesse lá estado, creio que deve ter razão.

Meia‑Noite pôs o lindo veado ao ombro e carregou com ele de regresso à cidade. Eu fiquei responsável pelas três lebres que ele também tinha matado.

No caminho para casa, parámos ao pé de um grande pedregulho de granito, quase tão alto como a nossa casa, onde ele desenhara os animais que tinha morto na última caçada. Era isto que ele queria dizer quando falava em pedir desculpa.

Usando pedras avermelhadas que apanhou ao pé do pedregulho, o Africano fez um esboço do veado que tinha derrubado, usando linhas destramente executadas para capturar a sua natureza ágil. Eu fiz o melhor que pude para desenhar as nossas três lebres, com menos êxito.

Nesse dia, antes de sairmos do bosque, Meia‑Noite levou‑me a recolher mel, uma habilidade que eu nunca consegui aprender com ele, embora tivesse tentado ensinar‑me por várias vezes. Nesse dia, disse‑me que era mais fácil em África, onde vivia um pássaro muito inteligente, chamado Guia do Mel, que levava as pessoas até às colmeias. Não sei se ele estava ou não a troçar de mim, mas prometeu‑me que um dia me levaria à sua terra natal para eu ver esse pássaro com os meus olhos.

 

Muito pouco tempo depois do nosso dia de caça, Meia‑Noite e a minha família entraram numa rotina diária agradável. Esta geralmente garantia que eu e ele estávamos sozinhos das duas às cinco da tarde, sendo sexta‑feira a única excepção, quando, das três às cinco, eu tinha as minhas lições de arte com as irmãs Oliveira.

O meu amigo e eu preenchíamos as nossas tardes como nos apetecia ‑ com lições de leitura, a arrancar ervas daninhas ou em preguiçosos passeios pelo campo. E foi assim que chegámos à tarde da véspera de S. João, em 1804. Tinha acabado de fazer treze anos e tinha agora seis palmos de altura, ainda, infelizmente, alguns dedos mais baixo do que a Mamã e Meia‑Noite. Mas a crescer...

O nosso visitante africano já vivia connosco há quase dois anos. Eu sabia pouco sobre o seu trabalho com o Senhor Benjamim, mas ele parecia satisfeito com os progressos que fazia na aprendizagem da plantas medicinais europeias.

Nessa altura, tínhamos descoberto que Violeta desaparecera sem deixar rasto. Foi a minha mãe que confirmou este rumor, interrogando secretamente o irmão mais novo da rapariga, uma noite já bastante tarde. Incomodada, tinha vindo logo para casa para me acordar.

‑ Deus queira que a pobre menina esteja a salvo ‑ sussurrou‑me, engolindo as lágrimas.

Na escuridão atrás dela, imaginei os olhos verde‑jade de Violeta a faiscarem desafiadoramente, como no dia em que a conhecera.

‑ A salvo e escondida num navio a caminho da América ‑ repliquei eu.

O acontecimento na boca de toda a gente era a proclamação de Napoleão como imperador de França no dia dezoito de Maio. A tensão política na Europa fazia Portugal navegar por um mar de apreensão em

relação à sua independência futura, pois era claro para todos que o Imperador tinha planos para o nosso pequeno e pitoresco posto fronteiriço na beira da Europa, especialmente por o nosso parceiro comercial mais importante ser a Inglaterra, a sua grande inimiga. Não havia cidade na Ibéria cujo destino estivesse mais ligado à Grã‑Bretanha do que o Porto, uma vez que noventa por cento das nossas exportações ‑ incluindo mil barris de vinho, do tamanho de um homem, por semana ‑ seguia directamente para Londres.

Por esta razão, muitos, incluindo o meu pai, estavam convencidos de que Napoleão não levaria muito a lançar um ataque à nossa cidade. Faltando‑lhe, inclusivamente, armazéns para o pão, que chegava ao Porto todas as terças, quintas e sábados, das terras vizinhas, um bloqueio e um cerco franceses fariam com que tivéssemos de enfrentar a fome ao fim de poucos dias.

Eu e Meia‑Noite estávamos em casa das irmãs Oliveira quando começaram os problemas. Passava pouco das três horas no relógio em cima da prateleira da lareira, quando ouvimos o barulho de uma multidão a descer a nossa rua. Subitamente, um grito agudo cortou o ar:

‑ Não penseis que venho para trazer a paz na terra. Não venho para trazer a paz, mas uma espada. Todos os estrangeiros devem ser removidos da nação portuguesa. Se queremos ter uma Cidade de Deus, então as cabeças dos protestantes, dos pagãos e dos judeus têm de rolar pelas nossas ruas!

Reconheci a voz do orador e corri para a janela. ‑ Não! ‑ gritou‑me Graça.

Mas era demasiado tarde, pois eu já tinha afastado a cortina e espreitava lá para baixo.

O necromante que me ameaçara anos atrás, Lourenço Reis, estava parado à porta da loja do Senhor Benjamim, que ficava apenas a trinta passos de distância. Felizmente, não me via.

Com toda a certeza ele tinha escolhido o dia de hoje para regressar ao Porto, pois a Véspera de São João era, no fundo, uma celebração pagã do solstício de Verão.

‑ Se juntásseis todos os judeus em Portugal, o que teríeis? ‑ perguntou aos seus seguidores.

Um homem gritou: «dez mil bestas»; outro, «uma vara de porcos».

‑ John, sai já daí ou dou‑te uma palmada! ‑ ordenou Luna. Estava tão fascinado, que recusei mexer‑me.

‑ Se juntásseis todos os judeus ‑ continuou o necromante ‑, teríeis madeira suficiente para uma fogueira que chegaria até Deus!

Meia‑Noite tocou‑me no ombro:

‑ O que é que ele está a dizer? ‑ perguntou‑me.

‑ John, sua peste! Sai já daí! ‑ suplicou Luna.

Ela e a irmã estavam a olhar para mim, furiosas. Deixei cair a cortina, mas continuei à janela.

‑ Ele ameaçou‑me uma vez ‑ murmurei para Meia‑Noite. ‑ Não gosta de estrangeiros, especialmente de...

Eu estava prestes a dizer «Judeus», mas o necromante soltou um gemido como se tivesse sido apunhalado na barriga.

‑ Chamo‑me Benjamim Seixas...

Voltei a puxar a cortina para o lado. Ele tinha levantado as mãos para invocar Deus.

‑ ... o demónio judeu que reside nesta casa amaldiçoada, para se vir confessar. Acuso‑o de traição contra a nação portuguesa, de traficar com o diabo. E a sua sentença é a morte!

Luna arrastou‑me para longe da janela.

‑ Faz o que te digo, John!

Voltei‑me para Graça, geralmente a menos emotiva das duas, que tinha começado a chorar. Correu para Luna e abraçou‑a. Depois de uma troca de palavras sussurradas entre as duas, Luna agarrou‑me gentilmente na mão.

‑ Isto é muito grave ‑ murmurou‑me ela. ‑ Agora, faz o que te digo... estamos todos em perigo. Fica muito calado.

Fez‑me repetir esta ordem a Meia‑Noite.

Quando o barulho lá fora diminuiu, julgámos que o necromante estava a levar a multidão para longe. Que tontos fomos!

‑ Graça e Luna Oliveira! ‑ guinchou ele. ‑ Ordeno que venhais até mim para confessar os vossos pecados! Acuso‑vos de traição. Tendes de morrer para que Cristo possa viver!

Graça tapou a boca com a mão para não soltar um grito de terror.

‑ Ordeno às prostitutas judias que saiam e venham confessar os seus pecados. Ordeno‑lhes que abram os seus ventres a Cristo e Lhe permitam entrar antes de morrerem. Ordeno‑lhes que se preparem para a fogueira.

As ameaças dele pareciam atravessar como punhais a madeira da porta, de tal forma que julguei que bastaria a voz dele para abrir o ferrolho, deixando que a populaça nos apanhasse.

Luna perguntou num murmúrio: ‑ O que é que fazemos se ele arrombar a porta? Graça estava a murmurar freneticamente para si própria numa mistura de português e outra língua que eu não compreendia. Apanhei a palavra Adonai.

Na barriga de Meia‑Noite começou a ouvir‑se um batuque que crescia de intensidade.

‑John, diz‑me com muita, muita exactidão o que é que aquela hiena lá fora está a dizer ‑ murmurou‑me ele.

A utilização da palavra hiena mostrava que, mesmo sem perceber as palavras, Meia‑Noite tinha compreendido que Lourenço Reis era mau. Antes que eu tivesse tempo para responder, o patife bateu com toda a força na nossa porta e girou a maçaneta. Com o susto, Graça molhou‑se toda.

‑ Continua a rezar, irmã ‑ sussurrou‑lhe Luna. Meia‑Noite levantou‑se, descalçou os sapatos e agarrou no atiçador que estava ao lado da lareira. Colocando‑o ao ombro, como se fosse uma lança, precipitou‑se para a porta.

‑ Não saias! ‑ implorei‑lhe.

Fez‑me um gesto de assentimento e agachou‑se, com os olhos presos na maçaneta que girava.

Lourenço Reis disse através da porta:

‑ Graça e Luna Oliveira, tendes de aprender o que é o pecado. Tendes de morrer para que Cristo possa viver. Tendes de perecer no coração ardente do Filho do Homem!

Da multidão saiu um grito, como os guinchos das gaivotas. Depois, passado um momento, ouvimo‑los afastarem‑se. Meia‑Noite veio ter comigo e, juntos, ajudámos as irmãs Oliveira a sentarem‑se nas suas cadeiras e insistimos que bebessem o chá frio. Graça engasgou‑se e depois correu para o andar de cima. Quis ir atrás dela, mas Luna disse‑me: ‑ Ela fica envergonhada. Fica aqui.

A pedido de Meia‑Noite, comecei a traduzir as palavras carregadas de ódio do necromante. Ele não tinha possibilidade de compreender o seu significado e eu não conseguia descobrir uma maneira de explicar aquilo que também eu mal entendia.

‑ John, ouve‑me com atenção ‑ disse‑me Luna. ‑ Sei que tudo isto te deve parecer muito esquisito, mas...

Parou a meio da frase, quando Reis começou a gritar pelo Tio Policarpo, o homem que fazia e arranjava rodas, dizendo‑lhe para sair e enfrentar o julgamento, acompanhado da mulher e dos filhos. Eu estava espantadíssimo por ele os conhecer pelo nome. Já deve andar a vigiar‑nos há muito tempo.

Meia‑Noite agarrou na mão de Luna enquanto escutávamos uma litania de pragas contra o Tio Policarpo e a sua família. Depois ouvimos um único grito, que se elevou como se perfurasse o céu.

O necromante estava agora quase na minha casa. Tirei a chave da porta da algibeira e apertei‑a na mão cerrada. Embora tivesse a certeza que tinha fechado a porta à chave, o meu coração batia de pavor; Fanny estava no jardim.

‑ Temos de ir para casa ‑ declarei a Meia‑Noite.

‑ Não, John, não podes deixar que te provoquem.

‑ Mas a Fanny... De certeza que vai começar a ladrar e eles podem fazer‑lhe mal.

‑ Não, proíbo‑te de sair. A Fanny vai ter de tomar conta de si própria.

Do fundo da rua, conseguia ouvir o pregador a gritar:

‑ Maria Zarco Stewart, James Stewart e John Zarco Stewart, chamo‑vos para virdes para a rua pelos vossos crimes contra a nação portuguesa. Ordeno‑vos que tragais o pagão africano...

Corri para a porta, mas Meia‑Noite agarrou‑me rudemente pelo braço e mandou‑me ficar quieto.

‑ Vou explicar‑te por que é que não podes sair, John ‑ disse‑me Luna. ‑ Senta‑te.

‑Não!

‑ Senta‑te imediatamente!

Sentei‑me, mas antes que ela pudesse voltar a falar, a gritaria do necromante recomeçou:

‑ John Zarco Stewart, não deixaste o Porto como te pedi. Por isso, agora, vais aprender o que é morrer por amor. Serás purificado pelo fogo e eu devolver‑te‑ei a Deus tão inocente como no dia em que nasceste!

A seguir, exigiu a morte do meu pai e da minha mãe. Esperámos em silêncio pelo resto da tirada, mas não ouvimos mais nada. Ele e a populaça deviam ter virado uma esquina.

‑John, presta atenção ‑ disse‑me Luna. ‑ Em circunstâncias normais, deixaria que fosse a tua mãe a contar‑te, ou o teu pai, mas agora que isto aconteceu...

Levantou‑se, bebeu um gole de chá e alisou um caracol grisalho atrás da orelha.

‑ Sabes o que é um judeu?

‑ Moisés era judeu.

‑ É verdade.

‑ E tinha um corno. E uma cauda. ‑ Adivinhando o que estava para vir, gritei: ‑ E eu não tenho nem corno nem cauda; por isso, não posso de maneira nenhuma ser judeu!

‑ Não levantes a voz, se fazes favor.

‑ Não posso ser judeu! ‑ gritei outra vez, ainda mais alto.

‑ John, deixámos‑te acreditar nessas coisas sobre Moisés. Lamento muito. Se calhar foi um erro, mas não podíamos fazer outra coisa. Não queríamos que tivesses adivinhado mais cedo. Agora, ouve: não há nenhuma diferença física, excepto uma, entre um judeu e um cristão. Nos rapazes que receberam a aliança divina, uma pequena... uma pequena... Não sei como dizer isto. O que eu quero dizer é...

‑ O que é a aliança divina?

‑ Estás a atrapalhar‑me.

‑ Óptimo! Não quero falar destas coisas.

Eu queria desesperadamente que tudo fosse como tinha sido. Queria que Daniel estivesse vivo e que Violeta fosse feliz. Queria imitar pássaros no nosso laguinho. Queria correr para junto da Fanny.

‑ Tens de ouvir ‑ implorou‑me Luna, apertando‑me a mão entre as dela. ‑ Nos rapazes, há um bocadinho da pele que é tirada do... de entre as pernas, na ponta...

‑ Que bocadinho de pele?

‑ Um pequeno capuz. É tirado aos bebés judeus quando eles têm oito dias.

‑ Mas nunca me tiraram nada. Nunca tive um capuz ou outra coisa qualquer.

‑ Talvez não, mas isso não altera o que eu estou a dizer.

‑ E que é o quê? Não está a fazer sentido nenhum!

‑ John, se voltares a levantar a voz... ‑ olhou para Meia‑Noite e disse num português muito bem articulado: ‑ Receio que isto seja muito difícil.

Meia‑Noite replicou:

‑John é esperto. Mas muito, muito...

Sacudiu os punhos fechados e fez uma cara muito feia, a imitar‑me quando tinha birras. Estava bastante parecida e eu não fiquei nada satisfeito.

‑ Muito excitável ‑ concluiu ele.

‑ Não sou nada! ‑ gritei.

‑ Pára de bulhar com todos nós! ‑ ralhou Luna. ‑ E não te enganes, meu jovem, dou‑te uma tareia que te porá a dormir até à próxima semana, se for preciso!

A zanga dela desapareceu quase de imediato e não demorei muito a ver‑lhe nos olhos que também ela gostaria de voltar à forma como tudo sempre fora dantes. Mas toda a esperança que isso acontecesse desapareceu quando ela disse:

‑ John, tu és de facto judeu.

‑ Não acredito em si.

‑ A tua mãe é judia e, no Judaísmo, a herança passa através dela apenas e não através do teu pai.

Quando a acusei de estar a mentir, acrescentou:

‑John, a tua avó também é judia. E o teu Avô João também ‑ que Deus abençoe a sua memória. Era um judeu português, mas de Constantinopla. Voltou para cá antes de tu nasceres.

Naquele momento, Graça desceu as escadas, pálida, apertando um lenço contra a boca. Pediu desculpa por nos ter deixado.

‑ Estava precisamente a explicar a John a sua herança ‑ disse Luna à irmã.

Graça baixou a cabeça e soltou um suspiro, como se sempre tivesse estado à espera de que, um dia, esta verdade viesse ensombrar as nossas vidas.

‑ Tenho de me ir embora ‑ insisti eu. Graça ajoelhou‑se ao meu lado.

‑ Sabes, John, o teu avô era um homem encantador. Inteligente e bondoso. Com muito jeito para a jardinagem, tal como Meia‑Noite. Sabes por que é que ele e a família viviam em Constantinopla? E por que é que eles falavam português lá, ao contrário dos Turcos?

Abanei a cabeça. Ela acariciou‑me o cabelo e sorriu‑me.

‑ No século dezasseis, os antepassados do teu avô viviam em Lisboa. Tinham sido convertidos à força ao Cristianismo. Mesmo assim, eles e os amigos continuavam a ser perseguidos porque... bem, a Igreja e a Coroa tinham medo que eles mantivessem os costumes judaicos, o que alguns faziam mesmo. Milhares foram presos e metidos em masmorras e muitos foram queimados em autos‑de‑fé. Por isso, um dia, os teus antepassados apanharam um barco de Lisboa para Constantinopla.

Para fugirem. Queriam praticar o Judaísmo às claras. E viver sem medo. Estás a compreender‑me?

‑ Sim ‑ respondi eu, mas não me parecia que estivesse.

‑ Eles queriam viver como lhes apetecia sem terem de se preocupar com a possibilidade de acabarem transformados em cinzas. O Sultão da Turquia recebeu‑os muito bem. Recebeu milhares de judeus portugueses. Até que um dia...

‑ Mas isto é uma loucura, Dona Graça. Para começar, como é que eles se tornaram judeus? Ora diga‑me lá, já que é tão inteligente.

‑ Eles... eles sempre foram judeus, suponho eu ‑ gaguejou ela.

‑ Isso é impossível ‑ declarei eu, julgando ter descoberto a falha fatal na lógica dela. ‑ Eles devem ter começado como cristãos; por isso, por que é que eles primeiro se converteram ao Judaísmo e depois precisaram de se voltar a converter? Não faz sentido. Não... não é verdade.

Eu não sabia muito bem o que é que significava ser judeu, mas receava que isso fosse mudar tudo na minha vida ‑ que fosse distanciar os meus pais e Meia‑Noite de mim e que eles deixassem de gostar de mim em todos os aspectos. Luna soltou um suspiro.

‑ Tem sido um dia horrível. Levantei‑me.

‑ Tenho de ir‑me embora.

‑ Volta a sentar‑te, John Stewart ‑ mandou Graça num tom muito firme ‑, ou eu nunca mais te dou lições de arte!

Agarrou‑me as duas mãos para me obrigar a continuar sentado. As dela estavam geladas.

‑ Fosse como fosse ‑ continuou ela ‑, a verdade é que os teus avós maternos eram judeus e os seus antepassados foram exilados de Portugal há centenas de anos. Eles conservaram a sua língua e os seus costumes, ainda que vivessem num país muçulmano. Depois, quando acabaram os piores abusos da Inquisição... sabes o que era a Inquisição?

‑ Sim ‑ repliquei eu, mas a verdade é que só tinha uma noção muito vaga.

‑ Então, provavelmente também sabes que perdeu os seus poderes há uns vinte e cinco anos, embora ainda não esteja completamente desmantelada. Desde essa altura, temos podido praticar a nossa religião... mais abertamente.

‑ Embora não quiséssemos chamar a atenção das outras pessoas ‑ acrescentou Luna.

‑ Não, isso seria um disparate ‑ concordou Graça. ‑ É muito melhor para toda a gente que continuemos escondidos. Agora, o que é importante para ti, John, é que, segundo a nossa lei sagrada, o filho de uma judia continua a ser judeu. É por isso que tu és aquilo que és. Já estás a perceber?

‑ Quer dizer que o meu pai é judeu? ‑ perguntei. Quando as vi abanar a cabeça, continuei:

‑ Ora aí está, estão a ver? Não faz sentido. Se eu fosse judeu, ele também seria. Não posso ser o que o meu pai não é.

‑ Para o bem ou para o mal, não é assim que as coisas se passam ‑ disse Luna. ‑ É exactamente isso que estamos a tentar dizer‑te.

‑ Então, por que é que eu não saberia? Por que é que o meu pai não me havia de dizer?

‑ Os teus pais estão à espera que sejas um bocadinho mais velho. Faz parte da nossa tradição. As crianças só são informadas quando se tem a certeza absoluta que já têm idade para guardar um segredo tão importante. A não ser que haja circunstâncias que... que compliquem as coisas e façam com que esse conhecimento passe a ser essencial, como aquilo que aconteceu hoje.

‑ E por que é que temos de guardar segredo?

‑ Olha, John ‑ replicou Graça ‑, a Inquisição pode voltar e é por isso que esse pregador, Lourenço Reis, veio cá hoje. Antigamente, ele trabalhava para o Santo Ofício, para a Igreja, como um perseguidor, digamos assim. Prendeu judeus e mandou‑os para a fogueira. Podes ter a certeza de que ele tem imensa pena que lhe tenham tirado esse poder e nós já não estejamos completamente à sua mercê. Ele gostaria muito que os velhos tempos regressassem.

‑ Então, as senhoras também são judias.

‑ Sim, John, muitos de nós somos judeus. Pelo menos em segredo.

‑ Quem?

‑ Acho que é melhor falares com a tua mãe acerca disso. Ela pode não ficar muito satisfeita connosco por já te termos contado isto.

‑ Mas o que é que vou fazer agora?

‑ O que é que queres dizer?

‑ Eu sou judeu e o meu pai não é. Já que sabe tudo, diga‑me o que devo fazer.

Desci vagarosamente a rua em direcção a casa. Meia‑Noite tentou falar comigo, mas eu estava demasiado zangado para lhe responder. Estava a perguntar para comigo mesmo quem era eu.

De repente, vimos o Tio Policarpo estendido nas pedras da calçada em frente da sua casa. A mulher, Josefina, estava inclinada sobre ele, a soluçar e coberta com o seu sangue. Os ossos da cara dele tinham sido esmagados. Já havia moscas a alimentarem‑se dos olhos e da boca.

A Tia Josefina olhou aterrorizada para nós e começou a gemer.

‑ John, vai para casa ‑ disse‑me Meia‑Noite. ‑ Entra em casa.

‑ E tu?

‑ Vou já. Vai para casa e não te esqueças de trancar a porta.

Afastei‑me a correr. Antes de fechar a porta atrás de mim, vi‑o agarrar no pulso do Tio Policarpo. Abanou a cabeça e agarrou na mão da Tia Josefina.

Para meu grande alívio, encontrei Fanny viva e de perfeita saúde, com o nariz enfiado num arbusto de verbena do jardim.

‑ O Tio Policarpo está morto e eu sou judeu ‑ disse‑lhe, o que só fez com que ela largasse a correr para ir buscar a bola de couro que me veio entregar na mão.

Atirei a bola para o meio das roseiras, o que foi uma coisa muito cruel. Enquanto ela se contorcia para passar por entre os espinhos sem se arranhar, fui para o meu quarto e chorei. Depois espreitei para o espelho à procura de uma marca no couro cabeludo onde os meus cornos pudessem ter estado, mas, mais uma vez, não consegui detectar nada. Também não descobri nada de invulgar na ponta do meu pénis.

A Mamã chegou a casa mais ou menos uma hora depois.

‑ John? ‑ chamou ela numa voz preocupada. ‑John, estás no teu quarto?

Precipitei‑me pelas escadas abaixo e corri para os braços dela.

‑ Graças a Deus, estás bem ‑ disse ela. Abraçou‑me durante muito tempo e eu senti‑a a tremer. Queria perguntar‑lhe se ela e eu éramos judeus, mas pensei que isto

iria ser sempre um insulto para ela. Pois, se fosse verdade, eu estaria a chamar a atenção para um defeito da família e, se não fosse, como eu ainda tinha esperança, então ela podia ofender‑se por eu pensar tão mal dela.

‑ Sei que te aconteceu uma coisa muito preocupante hoje ‑ disse ela o mais calmamente que lhe foi possível. ‑ Não ficaste ferido?

‑ Não, Mamã.

‑ Ninguém te tocou?

‑ Não.

‑ Tens a certeza?

‑ Sim.

‑ Deves ter ficado muito assustado.

Quando eu abanei a cabeça, ela olhou em volta.

‑ Meia‑Noite está cá?

‑ Deve estar na Torre de Vigia ou no jardim.

‑ Graças a Deus. ‑ Olhou para baixo, pesando as suas opções e depois acrescentou: ‑ És capaz de me encher uma panela de água, John? Vou fazer o jantar. Sim, é exactamente isso que vou fazer. Do que nós precisamos é de comida quente.

Inspirei fundo e disse:

‑ O Tio Policarpo morreu.

‑ Eu sei, John, já vi a Josefina. Falaremos mais tarde do que é que tudo isto significa para nós.

‑ Mamã, se eu... se eu fosse judeu...

Não sabia como continuar; por isso, não disse mais nada.

A minha mãe levantou a mão para me indicar que esperasse um instante e depois tirou o xaile preto. Pô‑lo em cima do braço de uma cadeira e voltou‑se para mim. Segurou‑me a cabeça com as duas mãos e comprimiu os lábios contra a minha testa.

‑ Sim, John, se fosses judeu... O que é que queres saber?

Ela parecia‑me estranhamente calma e apercebi‑me de que tinha estado à espera que ficasse histérica. Em vez disso, sorriu‑me encorajadoramente.

‑ Se eu fosse judeu, saberia?

‑ Isso é uma pergunta muito boa, John, e eu vou responder. Mas, primeiro, não me queres contar tudo o que te aconteceu hoje? Preciso de saber.

‑ Não; primeiro, responda à minha pergunta.

Ela soltou um suspiro, resignada com a minha natureza inquiridora. Eu não fazia a menor ideia do extraordinário alívio que ia ser para ela contar‑me finalmente a verdade.

Estou convencido de que muitas das suas manias ‑ em particular, a sua preocupação constante com a opinião dos outros e a sua insistência severa em que houvesse decoro ‑ eram o resultado directo da necessidade de manter o segredo tanto fora de casa como dentro. O facto de se ter visto obrigada pelas circunstâncias a mentir ao seu único filho deve ter‑lhe parecido, por vezes, um destino cruel, dado a ternura que tinha por mim.

‑ Anda, John, vem sentar‑te ao pé de mim e eu respondo‑te a todas as tuas perguntas ‑ disse a minha mãe carinhosamente.

Por insistência dela, sentei‑me na cadeira do meu pai.

‑ Já estás tão grande que se te tentasse sentar no meu colo, ficava esborrachada ‑ disse ela, soltando uma gargalhada.

Olhou para mim como se sentisse um alívio imenso por eu estar vivo. ‑John, nós estávamos... nós estávamos à espera para te dizermos. Até seres um bocadinho mais crescido.

‑ Então, sou mesmo judeu?

Rezei para que ainda houvesse uma resposta mais razoável.

‑ Não é assim tão simples. Há... como é que hei‑de dizer? Há pessoas que não são nem uma coisa nem outra.

‑ Nem cristãos nem judeus?

‑ Exactamente. Talvez... talvez seja melhor eu começar com um bocadinho de História. Há muito tempo, antes de teres nascido...

‑ O Avô João veio de Constantinopla ‑ interrompi eu. ‑ Os antepassados dele eram judeus. Fugiram à Inquisição. Andavam a queimar pessoas. Sei isso tudo.

‑ Quem é que te contou?

‑ Luna e Graça. Estava com elas quando o necromante apareceu.

‑ Sim, eu sei. Elas foram ter comigo ao mercado.

‑ Se sabe o que elas disseram, por que é que me pergunta?

‑ Pelo contrário, John, elas só me contaram um bocadinho do que aconteceu. Disseram que tinhas sido muito corajoso e te tinham revelado certos segredos.

‑ Eles tiraram‑me alguma coisa? ‑ perguntei.

‑ Quem?

‑ Os judeus?

‑ Que judeus? Encolhi os ombros.

‑ Não faço ideia. Mas sabe o que estou a tentar dizer.

‑ A verdade é que não sei mesmo.

Eu queria abordar, da maneira mais delicada possível, a possibilidade de o meu pénis ter sido desfigurado.

‑ Não sei o que é que eles tiraram. Talvez um corno.

‑ Um corno?

‑ De um sítio qualquer... da minha cabeça. Tiraram‑no.

‑ Por favor, John, não é a altura indicada para uma das histórias de Meia‑Noite. Tu não és um bode. Embora tenha havido muitas vezes em que cheiraste como um.

Sorriu com a própria graça, o que me irritou imenso.

‑ Desculpa, John ‑ disse ela. ‑ Sei que estou a ser tonta, mas queria pôr‑te à vontade.

‑ Talvez tenham tirado outra coisa?

‑ Como por exemplo?

‑ Bem, da minha ponta ‑ respondi, torcendo‑me de vergonha.

‑ Ah, agora já estou a ver onde é que esta conversa vai levar. Sim, quando tinhas oito dias, veio cá um cirurgião que te tirou um bocadinho pequenino e sem importância nenhuma do teu... da tua ponta, como tu disseste tão gentilmente.

Ela disse aquilo como se fosse uma insignificância, mas eu devo ter ficado com cara de agoniado, visto que ela acrescentou tranquilizadoramente:

‑ Um bocadinho muito pequenino. Nada de essencial, garanto‑te. Estás perfeitamente intacto nessa área.

‑ Por que é que tiraram um bocado de pele?

‑ É a nossa tradição. Vem um cirurgião e o bebé fica ao colo do avô enquanto o cirurgião corta um bocadinho de pele que serve para esconder coisas. Chama‑se prepúcio.

‑Dói?

Encolheu os ombros.

‑ Deve ter doído. Tu choraste. Lamento. Pusemos‑te brandy nas gengivas para acalmar a dor.

‑ Brandy na minha boca para cortarem a ponta do meu pénis? Bateu com as mãos no colo.

‑ Foi só um bocadinho minúsculo e inútil de pele.

‑ O pai ainda a tem?

‑ Sim.

‑ Mas por que é que não lha cortaram?

‑ John, o teu pai é um assunto diferente. Se calhar, devíamos falar de um assunto de cada vez.

‑ A Mamã disse que eu podia perguntar o que quisesse. Suspirou.

‑ John, ouve. Lamento, mas a verdade é que o teu pai não é judeu. Desviou os olhos como se a entristecesse admitir aquilo.

Longe de me perturbar, senti um grande alívio.

‑ Então isso quer dizer que sou só parcialmente judeu.

‑ Num certo sentido.

‑ Meio‑escocês e meio judeu.

‑ Acho que seria mais correcto dizer meio‑escocês e meio‑português. Assim como meio‑cristão e meio judeu.

‑ Mamã, não posso ser quatro metades. Assim seria duas pessoas.

‑ De facto, John, tenho julgado muitas vezes que és várias crianças, cada uma mais difícil do que a outra. A sério, é como tentar conversar com um abelhão. ‑ Abanou a cabeça. ‑ Olha, tu és português e judeu ao mesmo tempo. Como eu. Tal como és cristão e escocês ao mesmo tempo. Como o teu pai. ‑ Inclinou‑se para mim. ‑ Mas aqui é que as coisas se tornam complicadas ‑ os Judeus acreditam que a religião é herdada através da mãe. Por isso, segundo as nossas leis, tu és completamente judeu e os cristãos concordam. Uma gota de sangue hebreu faz‑te completamente judeu, dizem eles.

‑ Hebreu?

‑ É assim que os Judeus são chamados na Bíblia.

‑ Então que coisas é que eu herdei?

‑ O Judaísmo, digamos assim.

Agora sentia que a conversa estava a tomar o rumo para onde eu tentava dirigi‑la há algum tempo.

‑ Mas o que é o Judaísmo?

A minha mãe soltou um suspiro profundo:

‑ Meu Deus, como eu gostaria que o meu pai ainda estivesse connosco. Tenho a certeza absoluta de que ele conseguiria explicar tudo isto muito melhor do que eu. John, querido, os Judeus acreditam em certas coisas em que os cristãos não acreditam. É isso que quer dizer ser judeu.

‑ Por exemplo?

‑ Por exemplo, que Jesus não era o Messias. Sabes quem é o Messias? Abanei a cabeça.

‑ Bem, é uma espécie de Salvador. Ora, os Cristãos acreditam que Jesus era o Messias. Mas nós dizemos que o Messias ainda não veio.

‑ O Papá não acredita que Jesus seja o Messias, mas a mãe acabou de dizer que ele era cristão.

‑ Ele nasceu cristão, mas, por convicção, é um ateu. Os Judeus e os ateus não acreditam que Jesus fosse o Messias.

Este último ponto pareceu melhorar ainda mais a minha situação.

‑ Então as pessoas podem mudar? Eu podia decidir que não sou meio judeu e tornar‑me um quarto de judeu... ou... ainda menos?

‑ Receio que não seja exactamente assim que as coisas funcionem. O teu pai continua a ser cristão por tradição, ainda que não por crença.

Tal como tu continuarás um judeu por tradição, mas não por crença, se for isso que decidas.

‑ Que tradição?

‑ Bem, ora, é aqui que as coisas se tornam difíceis, John. Sou tão ignorante em relação a muitas coisas ‑ demasiadas. Só sei o que o meu pai me disse. Estás a ver, eu fui educada aqui, em Portugal, onde coisas como o Judaísmo permanecem em grande parte secretas. Há muitas coisas que eu não aprendi, mas vou dizer‑te aquilo que sei.

A minha mãe iniciou então uma explicação muito pormenorizada de assuntos tão misteriosos como Deus, a alma, a vida para além da morte, a possessão, as esferas demoníacas, os anjos e o inferno. Utilizou frases tão complicadas e viu‑se forçada a fazer tantas repetições entrelaçadas que, passados quarenta e cinco minutos de todo aquele trabalho, quando, finalmente, deu a si própria um descanso bem merecido e me perguntou se eu já estava a compreender, foi a minha vez de confessar que estava completamente baralhado.

Tanto quanto eu conseguia perceber, os Judeus acreditam que um único Deus havia de os fazer reviver em corpo e alma quando o Messias chegasse e que eles se ergueriam do Monte das Oliveiras em Jerusalém e viveriam no paraíso. Quanto ao facto de a minha mãe ir quase todos os domingos à missa e me ter baptizado, ela explicou‑me que isso eram formalidades destinadas a calar as línguas viperinas daqueles que nos espiavam.

‑ Em Portugal, meu filho, toda a gente está sempre a observar com os olhos bem abertos. Há pessoas com quem nunca falaste ‑ como esse pregador assassino ‑ que sabem quando nasceste e os nomes dos teus avós.

Depois de uma pausa, acrescentou:

‑ Acho que vou ter de pedir ao Senhor Benjamim que te fale destes assuntos.

‑ Porquê ele?

‑ Ele compreende as nossas crenças e conhece as nossas cerimónias. A única coisa que eu sei é como acender as velas antes da ceia da noite de sexta‑feira.

‑ Quer dizer que o Senhor Benjamim é judeu?

‑ Exactamente.

‑ Quem mais?

A cara da minha mãe assumiu uma expressão muito solene.

‑ John, isto é muito importante. ‑ Levantou‑se e começou a andar de um lado para o outro. ‑ Há muita gente no Porto cujos antepassados

são judeus. Muitas esqueceram tudo, excepto umas quantas palavras das orações, pois não fomos autorizados a praticar a nossa religião abertamente durante muitos séculos. Se eu te disser os nomes de algumas das pessoas que partilham a nossa fé, tu nunca poderás falar delas a ninguém.

‑ Fixou‑me com uma expressão sombria. ‑John, essas pessoas podem ser mortas. Tens de me jurar que nunca revelarás nenhum dos nomes ‑ nem mesmo que a Igreja te atire para a masmorra mais escura. Caso contrário, não te posso dizer.

Eu estava todo excitado com a necessidade de guardar um segredo perigoso. Afinal, ser judeu era capaz de não ser uma maldição assim tão grande.

‑ Juro ‑ disse eu.

‑ Muito bem. Até é capaz de ser bom que saibas. No caso de... no caso de acontecer qualquer coisa ao Papá ou a mim, estas são as pessoas a quem deves ir pedir ajuda. Nunca te esqueças.

Baixando a voz, num tom conspirativo, disse: ‑Já referi o Senhor Benjamim. Depois, há a Tia Beatriz. E... E continuou a nomear uma série de pessoas que eu conhecia, quer como amigos da família, quer como vizinhos, artífices locais e lojistas. Seria uma imprudência referi‑los aqui, mesmo agora, visto que Portugal é um país de grandes alterações políticas. Na verdade, tomei a liberdade de mudar os nomes do Senhor Benjamim, da tia Beatriz e de várias outras pessoas na minha história para as proteger, assim como aos filhos.

Enquanto a Mamã me ia confiando estas informações, apercebi‑me de que me estava a ser concedida a entrada num clã muito antigo e secreto. E, o que era mais, Daniel também lhe tinha pertencido, uma vez que a Tia Beatriz, a avó dele, tinha sido mencionada.

Só mais tarde compreendi que a agressão que a Tia Beatriz tinha sofrido anos antes, durante a qual o seu assaltante lhe tinha chamado Marrana, tinha sido inspirada nas pregações odiosas de Lourenço Reis. Mal acabou a sua lista, a Mamã disse‑me:

‑ John, se tiveres mais perguntas, vai perguntar ao Senhor Benjamim. Podes ir visitá‑lo esta noite com o teu pai.

Depois de ela me ter voltado a abraçar, corri para o meu quarto para meditar no facto de ser meio judeu. Quanto mais reflectia nestas metades e nestes todos, menos sentido faziam. Para além de umas crenças religiosas bastante confusas que a minha mãe me tinha referido, e de um pedaço de pele que me tinha sido roubado à ponta da navalha quando eu era demasiado jovem para me poder defender, não era nada claro onde é que residia a natureza do Judaísmo, ou mesmo se tal coisa existia.

Decidi esforçar‑me por continuar o meu raciocínio utilizando a lógica. Fiz uma lista das características da minha mãe que estavam completamente ausentes nas mulheres da vizinhança que não tinham sido mencionadas e que, por isso, muito provavelmente, deviam ser totalmente cristãs. Estas características, deduzi eu, deveriam ser os atributos principais do Judaísmo.

Conhecendo bem tão poucas mulheres, só consegui encontrar sete características: repugnância intransigente para com a porcaria na nossa casa e na sua pessoa; enorme deleite em ouvir ler em voz alta; interesse e aptidão para a música; desprezo por todas as formas de caça; tendência marcada para ficar agitada na presença da própria mãe; timidez em público; e medo avassalador de dar nas vistas. Eu tinha uma atitude de completa indiferença em relação à porcaria; por isso, concluí que isso, provavelmente, se devia ao facto de ser apenas meio judeu. A mesma explicação também era verdadeira para a minha falta de interesse em tocar piano, a minha alegria em ver Meia‑Noite caçar, os meus repentes ocasionais de arrojo e o meu à‑vontade na presença dela. Subtraindo estas à minha lista original das características, concluí que o meu judaísmo residia no meu prazer na leitura e na minha natureza nervosa. Concluí que podia, por isso, fazer todos os esforços para ocultar estas características aos olhos dos outros.

Depois, analisei as qualidades escocesas do meu pai. Comparando‑o com os homens portugueses, decidi que se centravam na sua altura excepcional, na sua grande capacidade de trabalho, no seu exaltado sentido da honra, na sua galantaria, na sua disposição para fazer troça de si próprio, na sua antipatia pelos Ingleses, na sua predilecção pelo whisky e pelo chá, nas suas histórias de duendes, bruxas e monstros dos lagos e na sua estranha pronúncia portuguesa.

Sendo apenas meio‑escocês, não era de esperar que eu fosse alto, que gostasse de fazer troça de mim próprio, que não gostasse dos Ingleses ou que apreciasse whisky, que já tinha experimentado várias vezes e de que não gostava. Nascera no Porto; por isso, era completamente ilógico supor que pudesse ter uma pronúncia incorrecta da minha língua nativa. Deduzi que a minha metade escocesa residia na minha capacidade de trabalho, no meu agressivo sentido de honra e no meu grande gosto por histórias assustadoras.

Este raciocínio pareceu‑me correcto. No entanto, depressa comecei a ver que as minhas conclusões eram pouco exactas, pois o meu pai tocava rabeca com grande habilidade e tinha um amor ainda maior pela poesia do que a minha mãe. E a minha mãe era extremamente diligente, utilizando todo o seu tempo livre para bordar toalhas, cortinas e lençóis para todas as pessoas que lhe pagassem um preço justo.

E foi assim que as minhas reflexões chegaram a um beco sem saída e eu resolvi ir procurar Meia‑Noite para discutir as minhas dúvidas com ele. Encontrei‑o a arrancar ervas daninhas no jardim com uma expressão extremamente perturbada.

‑ O que é que se passa? ‑ perguntei‑lhe.

Ele ignorou‑me e continuou a arrancar as ervas.

‑ Não me queres responder?

‑John, não tenho a certeza de que tu e eu devamos ser amigos ‑ replicou ele.

O meu coração parou.

‑ O que é que queres dizer com isso?

‑ Há tanta coisa que eu não compreendo. Tanta coisa em que não te posso ajudar. Às vezes penso que não devia ter vindo para cá.

A ideia de ele se ir embora era‑me insuportável.

‑ Não te podes ir embora! Não to permito! Limpou a terra das mãos aos calções.

‑ Então, se queres que eu fique, tens de me ajudar. Tens de me explicar o significado daquilo que aconteceu hoje.

Apercebi‑me de que tinha negligenciado a sua preocupação com a segurança da família. Que ele tivesse visto pregadores como Lourenço Reis na sua terra natal ‑ incitando os Europeus a assassinarem o seu povo ‑ nunca me tinha ocorrido.

Sentámo‑nos ao lado um do outro e eu repeti o que a mãe me tinha dito acerca de eu ser judeu, acrescentando que gostaria imenso que ele fosse connosco quando eu e o meu pai fôssemos à procura de respostas mais satisfatórias por parte do Senhor Benjamim.

Ele ficou muito aliviado com o meu convite. Eu teria gostado de lhe perguntar onde é que ele achava que o espírito da vida do Tio Policarpo residia agora. E de lhe mostrar as minhas partes íntimas e pedir uma avaliação do que lhe tinha sido cortado. Todavia, faltou‑me a coragem de todas as vezes que pensei em abordar cada um destes temas.

 

O Papá chegou a CASA, vindo do trabalho, parecendo zangado e preocupado. Já tinha sido informado do assassínio do Tio Policarpo; por isso, não perguntou nada nem à Mamã nem a mim. Em vez disso, levantou‑me no ar e abraçou‑me, depois foi direito a Meia‑Noite e abraçou‑o também. A seguir, ele e a Mamã retiraram‑se para o quarto.

Quando voltou a descer, pediu‑nos para nos sentarmos com ele.

‑ Não te preocupes, querida May ‑ disse ele à Mamã, dando‑lhe um beijo na face. ‑ O mundo está a avançar a passos firmes para uma época melhor e esse pregador odioso nunca conseguirá arrastar‑nos de volta para o passado. ‑ Voltando‑se para mim, acrescentou: ‑ Para dizer a verdade, rapazinho, gostaria de te ter contado a tua herança judia quando ainda eras pequeno. E digo‑te isto sem a menor hesitação: acho que tens muita sorte por seres uma liga de metais diferentes. Quem me dera ter a tua herança, meu filho.

Isto alegrou‑me imenso, mas continuava a querer fazer umas quantas perguntas ao Senhor Benjamim. Quando disse isso, o Papá engoliu o resto do vinho e apontou para a porta:

‑ Então não percamos tempo, rapaz. Ainda é noite de São João e temos muito divertimento já planeado para adiarmos a conversa. Não vou permitir que nenhum pregador arruine as nossas festas!

O meu pai levou‑nos, a mim e a Meia‑Noite, pela rua abaixo até casa do boticário, que nos mandou entrar com grande cerimónia. O Papá estava prestes a abordar o assunto quando o Senhor Benjamim se levantou de um salto exclamando:

‑ Mas onde é que estão as minhas boas maneiras?

E saiu para ir buscar brandy para os seus visitantes. Parecia muito mais animado do que era costume, um sintoma da sua maneira de ser diferente quando estava em casa. Atrás da porta fechada, tirava a máscara.

Ofereceu‑me um copo de vinho como algo de especial. Era doce e eu senti‑me muito lisonjeado por o Senhor Benjamim achar que eu já era suficientemente crescido para o apreciar. Para minha surpresa, os três beberam à minha saúde, o que me fez perguntar para comigo se a minha mãe não teria já procurado o boticário para lhe explicar os motivos da nossa visita.

‑ Pois é, James ‑ começou o boticário, dirigindo‑se ao meu pai e pousando o copo em cima da mesa ‑, parece evidente que Reis voltou para o Porto com mais alguma intenção do que espalhar calúnias.

‑ Sim ‑ replicou o meu pai. ‑ Diga‑me, Benjamim, chegou a altura?

‑ De facto, chegou, James. Os seus apoiantes decidiram que a campanha iria começar a sério agora.

‑ Qual campanha? ‑ perguntei eu.

‑ Para restabelecer a Inquisição ‑ respondeu o Papá.

‑ Da primeira vez que ele cá apareceu, era demasiado cedo, John ‑ explicou Benjamim. ‑ Até mesmo a Igreja precisa de algum tempo para reunir as suas forças.

Olhou‑me fixamente por cima dos óculos ovais e depois tirou‑os. Balançando‑os à minha frente, agitou as mãos como se me fosse atirar com eles. Sobressaltei‑me, mas, em vez de se dirigirem para mim, desapareceram sem deixar traço.

‑ A Igreja fez Lourenço Reis desaparecer durante algum tempo ‑ continuou ele.

Benjamim levantou‑se e levou a mão atrás da minha cabeça. Os óculos reapareceram e ele voltou a pô‑los.

‑ E foi exactamente assim que a Igreja o voltou a chamar.

‑ Como é que fez isso? ‑ perguntei eu.

‑ Fiz‑te olhar para onde os óculos não iriam estar. É fácil aprender uns truques mágicos, John. Qualquer pessoa o pode fazer. Até um homem cujo maior prazer é assustar rapazinhos.

‑ E quem é que voltou a chamar o necromante? ‑ perguntei eu.

‑ O quê? ‑ perguntou Benjamim.

‑ É o que o John chama a Lourenço Reis ‑ explicou o meu pai. Benjamim soltou uma gargalhada.

‑ É um bom nome para ele. Embora não tenha quaisquer poderes especiais, garanto‑te. E fizeste uma boa pergunta, meu caro rapaz. Infelizmente, não sei dizer ao certo quem são os responsáveis pela coreografia deste espectáculo.

‑ Sejam eles quem forem, não há dúvida de que querem ter o seu aparelho de terror montado antes de Napoleão decidir avançar sobre Portugal ‑ observou o meu pai.

‑ É verdade, James. Estou convencido que eles poriam com todo o gosto o país nas mãos do Imperador se ele lhes permitisse fazerem o que querem. ‑ Voltou‑se de novo para mim. ‑ Ora bem, segundo compreendi, meu rapaz, disseram‑te que eras meio judeu.

A sua abordagem directa acobardou‑me. Reparando no meu desconforto, disse‑me:

‑ Desculpa‑me, meu caro rapaz. Tenho a mania de falar sem rodeios em minha casa.

Sorrindo, inclinou‑se para a frente e deu‑me umas palmadinhas no ombro, o que só serviu para que o meu nervoso se transformasse quase em pânico.

‑ Temos muito que conversar, John ‑ disse Benjamim gentilmente ‑, e eu gostaria de te poder falar destas coisas com calma. O que proponho é que, durante algum tempo, me procures uma vez por semana. Estás de acordo? ‑ Olhando para Meia‑Noite, acrescentou com um sorriso: ‑ Também te podes juntar a nós, se quiseres, meu amigo.

‑ Gostaria muito, muito ‑ replicou ele. ‑ Se o John concordar, claro está.

‑ Sim, isso seria perfeito ‑ disse eu.

‑ Garanto‑te, John, que não tenho más intenções e que sou um amigo verdadeiro. Bem, alguém me fez crer que eras capaz de ter umas coisas para me perguntares.

Senti‑me tão atrapalhado que, para minha grande vergonha, comecei aos soluços.

‑ É uma coisa que lhe costuma acontecer ‑ desculpou‑se o meu pai. Enquanto eu sustinha a respiração para fazer com que os soluços se fossem embora, Meia‑Noite disse:

‑ Posso estar enganado, pois o meu português é muito, muito fraco, mas creio que as irmãs Oliveira se referiram a uma diferença nas partes íntimas do rapaz.

Ao ouvir isto, o meu couro cabeludo começou a arrepiar‑se como se estivesse a ser percorrido por um milhar de piolhos. Fiquei furioso com ele.

‑ Sim, estou a ver ‑ disse Benjamim e esvaziou o seu copo. ‑ É muito simples.

E no mesmo instante, aquele cavalheiro de respeitabilidade intocável levantou‑se e começou a desabotoar os calções.

‑ Se não se importar, James, creio que mostrar‑lhe tornará as coisas mais simples.

O meu pai limitou‑se a beber o seu brandy, dizendo:

‑ Se acha mesmo que isso vai esclarecer o assunto, Benjamim. Os olhos de Meia‑Noite brilharam, divertidos.

O boticário segurou o símbolo da sua virilidade com uma mão e deu‑me uma curta lição de anatomia, mas mesmo as suas explicações meticulosas e a minha familiaridade com a nudez do meu pai foram insuficientes para responder à minha pergunta mais embaraçosa. Por isso, o meu pai levantou‑se e mostrou‑nos a todos a forma exacta do capuz que me tinha sido removido, tal como a Benjamim. Eu gostaria de ter continuado com o meu, mas o Papá garantiu‑me que, na maior parte das vezes, era uma maçada e sem dúvida nenhuma malcheiroso quando não estava lavado.

O meu pai tirou partido do seu presente de semi‑embriaguez para me explicar o ABC da procriação. Pareceu‑me que tudo fazia muito sentido excepto a parte do processo ser agradável, visto que a sua descrição foi muito complexa. De facto, imaginei‑o mais como uma operação intrincada em que a paciente ‑ a mulher ‑ podia muito bem vir a pagar com a vida, uma vez que, como ele teve o cuidado de referir, a morte era sempre uma possibilidade quando havia uma gravidez.

Mal a minha língua se soltou devido ao vinho e à nossa boa disposição, decidi fazer mais umas perguntas ao Senhor Benjamim.

‑ O meu pai e Meia‑Noite serão autorizados a viver com a minha mãe e comigo no... uh... céu, ou serão banidos? E o Tio Policarpo, está lá agora?

‑ Somos todos feitos à imagem de Deus e, entre outras coisas, John, isso significa que os teus pais e Meia‑Noite estarão contigo no Monte das Oliveiras. Quanto a Policarpo, ele agora está a salvo. Foi juntar‑se ao Senhor. E ‑ sorriu ‑, se eu não tiver arruinado as minhas hipóteses com todas as minhas intromissões aqui, nas Esferas Inferiores, é bem possível que me seja permitido juntar‑me a ele e a vós quando chegar a minha hora.

‑ Tenho uma alma?‑ perguntei‑lhe.

‑ Todos temos, meu rapaz.

Quando lhe perguntei como é que ela era, respondeu‑me:

‑ É‑me completamente impossível dizer. Nunca vi nenhuma.

‑ Então como é que sabe que todos temos uma?

‑ Como é que sabemos que há uma China? E uma Itália?

‑ Porque outras pessoas já estiveram nesses sítios. E escreveram sobre as suas viagens. Já li um bocado de Marco Polo.

‑ Exactamente.

O nosso anfitrião deixou‑nos por uns instantes, regressando quase de imediato segurando um grosso livro encadernado a couro. Entregando‑mo, disse:

‑ Um homem que viu Deus escreveu este livro. Com permissão do teu pai, recomendo‑te que o leias. Podemos conversar sobre ele depois.

‑ O que é? ‑ perguntei eu.

‑ É a Tora ‑ respondeu‑me. ‑ É o nome judeu para o Antigo Testamento. Houve uma vez um sábio que disse que há dois sítios onde podemos sempre encontrar a verdade ‑ na Tora e no nosso coração.

Com um sorriso provocador para o meu pai, Benjamim acrescentou:

‑ Se quiser acompanhar‑nos na leitura, James, eu ficaria muito feliz.

‑ Receio que desse um judeu tão mau como sou cristão. Tudo o que preciso de saber da religião é que estarei com a minha mulher, o meu filho, o senhor e Meia‑Noite no Monte das Oliveiras.

Nessa noite, o jantar da Mamã foi soberbo, mas eu limitei‑me a debicar a comida, porque não conseguia deixar de ver a cara coberta de sangue do Tio Policarpo. Enquanto ela estava a servir ameixas em calda, as irmãs Oliveira vieram trazer os dois lençóis que Graça tinha estado a coser nessa tarde. Ela tinha cortado ‑ a meu pedido ‑ um buraco com pouco mais de um palmo de diâmetro no centro da costura. Eu esquecera por completo esta vestimenta que planeava usar no nosso desfile da Noite de São João. Recebi‑a das mãos delas agradecendo profusamente.

‑ Espero sinceramente ‑ disse a Mamã ‑, que não estejas a pensar passeares‑te pela cidade enrolado nesses lençóis velhos e rasgados. Palavra, John, as coisas que consegues que as irmãs Oliveira te façam. É criminoso!

‑ Mamã, por favor, espere até ter tido oportunidade de nos ver!

‑ Nos? Quais nos? Não vestirei esse lençol horrendo por nada...

‑ May, querida ‑ interrompeu o meu pai ‑, tenho quase a certeza que o John se está a referir ao Meia‑Noite.

Disse‑lhe que tinha toda a razão e ele deixou‑nos levantar da mesa.

Um dos truques que eu tinha ensinado a Fanny era agarrar‑se aos meus ombros com as patas traseiras e à minha cabeça com as dianteiras, de forma que a cabeça dela se erguia bastante acima da minha. Desta

forma, parecia uma deusa na proa de um barco à vela, exceptuando a cauda a abanar que me batia nas costas. Ela conseguia ficar assim durante cinco minutos sem o menor desconforto.

Também tinha descoberto que Meia‑Noite era suficientemente forte para andar comigo em cima dos ombros.

No nosso jardim, a combinação destes dois truques produziu um efeito espectacular; cobertos com os lençóis, parecíamos uma esfinge com mais de dois metros de altura, com os pés de um homem e a cabeça de um colie. Tinha treinado com Fanny de forma a que, se nos desequilibrássemos, ela fosse capaz de saltar para o lado e aterrar em segurança. Chamámos os outros para irem lá fora ver‑nos. A Mamã ficou de boca aberta a olhar para nós no umbral da porta, enquanto o Papá abanava a cabeça e ria.

‑ Tu és louco, John Zarco Stewart! ‑ declarou a Mamã. ‑ Vais cair. E vais partir o pescoço!

‑ Deixa‑os divertirem‑se ‑ disse o meu pai, puxando‑a para si. ‑ Ele só vai ser novo uma vez. E não podemos deixar que a desgraça de hoje nos arruine a noite.

‑ Isto é uma loucura ‑ gemeu ela. ‑ Uma completa loucura, digo‑te eu.

‑ Lá isso é ‑ concordou o meu pai, mas os olhos estavam radiantes de alegria.

Através dos buracos para os olhos, eu e Meia‑Noite só conseguíamos ver em frente; por isso, o Papá guiou‑nos em volta da imundície na rua. Os elogios gritados pelos vizinhos animaram‑nos imenso e as crianças correram atrás de nós gritando de alegria. Ao fim de uma centena de passos, Meia‑Noite cansou‑se e pôs‑me no chão. A Tia Beatriz beijou‑me e sussurrou‑me que Daniel teria ficado louco de contente por ver uma representação tão boa. As lágrimas não derramadas tornavam‑lhe líquidos os olhos cor de avelã e eu vi nos seus movimentos pouco seguros como ela tinha enfraquecido naquele último ano, mirrando sob o peso do desgosto. Provavelmente, estávamos ambos a pensar como o meu truque teria sido bem melhor com Daniel a descer a rua a fazer o pino para anunciar a nossa chegada.

A Mamã insistiu em dar‑me a mão para que eu não pudesse inventar mais «milagres caprichosos», como ela chamava à minha travessura. E assim, como uma família, dirigimo‑nos para a Rua de Cedofeita, onde se tinham reunido os músicos de rua para as festividades. Depressa descobrimos que Lourenço Reis estava em cima de um estrado de madeira a pregar para a multidão.

‑ Ali está ele ‑ disse o meu pai ao Senhor Benjamim. A Mamã agarrou‑me na mão com mais força.

‑ Anda, continuemos.

‑ Por que é que ele não foi preso? ‑ perguntei.

‑ Nós vamos fazer melhor do que isso ‑ disse‑me o Papá. ‑ Dá‑nos só uns dias, filho.

Apressámo‑nos a sair dali, mas antes de termos percorrido cinquenta passos, ele apareceu à nossa frente. Cortando‑nos o caminho, apenas a uma curta distância de Benjamim, declarou:

‑ Venho não para trazer a paz, mas a espada!

Benjamim, benza‑o Deus, replicou:

‑ O senhor não é Jesus de Nazaré e pode enfiar a sua espada no cu, onde ela pertence!

‑ Maldito marrano! ‑ cuspiu ele, furioso.

O meu pai agarrou no braço de Benjamim e olhou ferozmente para Lourenço Reis.

‑ Senhor, sei quem é e o que é que fez neste dia e ordeno‑lhe que nos deixe continuar o nosso caminho sem mais problemas ou arrepender‑se‑á para sempre!

‑ Vamos expulsar‑vos a todos vós, estrangeiros, de Portugal! ‑ berrou o abominável pregador. ‑ Não tereis esta cidade ‑ nunca, enquanto eu respirar.

Dado o temperamento ansioso da minha mãe, não estava à espera que ela falasse, mas, numa voz tensa e trémula, disse:

‑ Pode gritar tudo o que quiser, senhor, mas somos residentes desta cidade há muito tempo, todos nós. E o senhor não vai ganhar esta batalha. Não enquanto eu respirar!

Reis apontou‑lhe o bastão.

‑ Judia pecadora! A tua presença já é uma ofensa para todos nós. Tens de morrer para que Cristo possa viver!

Ela arquejou perante esta afronta. O pai segurou‑a e gritou:

‑ Seu cobarde miserável! Estou quase decidido a dar cabo de si aqui mesmo!

‑ Não ligue, James ‑ disse Benjamim. ‑ Por favor, voltemos para casa. Meia‑Noite, chega aqui e ajuda‑me.

‑ Não tenhais ilusões, vamos queimar‑vos a todos na fogueira! ‑ gritou o necromante. ‑ Vamos queimá‑los por Cristo, não vamos? E vamos mandar o fumo deles até Ele nesta noite santa!

Com o coração a bater tão alto que pouco conseguia ouvir sem ser o meu medo, gritei:

‑ Tu é que és o estrangeiro aqui! E és tu que vais morrer! Apontando‑me um dedo acusador, exclamou:

‑ Tu és o demónio! Não me vais tentar! Não vais ter uma vitória nesta Cidade de Deus! Vou ver‑te arder na cruz!

Isto já era mais do que o meu pai conseguia aguentar. Levantou a bengala acima da cabeça e estava pronto a descarregá‑la sobre ele. Muito mais forte do que Lourenço Reis, acredito que o teria feito cair sem sentidos se não fosse agarrado por Benjamim e Meia‑Noite.

‑ Vou matar‑te! ‑ gritava o meu pai.

‑ Não, James ‑ disse Benjamim com firmeza. ‑ Agora não. Eu tratarei dele no momento certo. E quando o tiver agarrado, mando‑o direito para os infernos! Dou‑lhe a minha palavra.

Mas o Papá não se deixava convencer.

‑ Vou matar‑te, cobarde! ‑ gritou.

O necromante sorriu e depois, levantando o bastão acima da cabeça, gritou:

‑ Vamos queimá‑los agora! Vamos mandar o fumo deles a Deus!

Com a ajuda de Meia‑Noite, Benjamim encaminhou o meu pai para a nossa rua. Tinha acontecido algo de terrível e ninguém conseguia encontrar as palavras que pudessem enquadrar aquele encontro. A Mamã ficara branca como a cal e tinha emudecido. Achámos melhor voltar para casa.

Ali, preocupados como estavam com a Mamã, o meu pai e Benjamim não se aperceberam que Meia‑Noite se escapulia de casa com a sua aljava e um cesto, mas eu apercebi‑me. Meia‑Noite levou um dedo aos lábios enquanto se esgueirava lá para fora.

A Mamã apoiou‑se no Papá e ele levou‑a para o quarto e meteu‑a na cama. Benjamim acendeu a lareira e contou‑me que, quando tinha mais ou menos a minha idade, assistira a um auto‑de‑fé em Lisboa em que mais de cinquenta marranos, amarrados com correntes, tinham sido forçados a marchar em volta de uma praça com a multidão a insultá‑los. Três deles tinham sido queimados na fogueira.

‑ E eu não tenho a menor intenção de voltar a sentir o cheiro de carne judia queimada ‑ disse, quase só para si.

Nessa noite, ouvi o meu pai e Benjamim falarem em sussurros sobre a forma de conseguirem que Lourenço Reis fosse expulso da cidade pelas autoridades civis. Era muito claro que esta não era a primeira conversa deste género. Foi então que, pela primeira vez, comecei a pensar que Meia‑Noite podia não estar a agir por sua iniciativa quando se escapulira de casa e que ele e o meu pai podiam estar envolvidos numa conspiração que Benjamim começara a tecer dias, ou mesmo semanas, antes.

Meia‑Noite contou‑me as suas actividades clandestinas no dia seguinte quando, ao nascer do Sol, o ouvi subir silenciosamente para a Torre de Vigia. Bocejando à entrada da porta do quarto dele, com os olhos ainda pesados de sono, perguntei‑lhe onde é que tinha estado. Levou‑me outra vez para a cama. Sentando‑se ao meu lado, disse‑me:

‑ O Louva‑a‑deus falou‑me há umas semanas atrás, num sonho. Disse‑me que uma fera iria beber toda a água do Porto e criar uma seca terrível. Muitos de nós iríamos morrer. Quando vi o pregador, compreendi. Por isso, fui buscar a minha aljava e as minhas setas e escondi‑as num cesto.

O boximane contou‑me que tinha observado Lourenço Reis a fazer discursos inflamados a uma multidão cada vez maior até que, ao bater da Meia‑Noite, o homem mau tinha descido do seu palco, encaminhando‑se para a Praça Nova.

Meia‑Noite seguiu‑o pela cidade, iluminada pelas lanternas. Em cada um de três locais festivos em volta da cidade, Reis conseguiu que as pessoas gritassem furiosamente contra os Marranos. Pouco depois das três da manhã, deu a demagogia por terminada e encaminhou‑se, sozinho, para o rio. Depois de ter batido à porta de uma grande mansão de pedra, fizeram‑no entrar muito rapidamente. Pela descrição de Meia‑Noite, pude identificar este edifício como sendo o mosteiro dominicano.

‑ Presumivelmente, ainda lá está agora ‑ disse Meia‑Noite.

‑ Então, o que é que vais fazer?

‑ Tenho um favor a pedir‑te, John. Tens de dizer a Benjamim que hoje não vou trabalhar. Diz‑lhe que o Louva‑a‑deus me pediu para lhe fazer um recado.

‑ Vais seguir o necromante.

Meia‑Noite assentiu com a cabeça.

‑ Vais matá‑lo? ‑ perguntei‑lhe.

Tapou‑me a boca com o cobertor para me fazer calar e depois deu‑me uma palmadinha no peito.

‑ Volta a dormir, meu pequeno gemsbok. Não precisas de te preocupar. Não vou correr perigo.

Sentei‑me.

‑ Mas podes precisar da minha ajuda.

‑ Não, o Louva‑a‑deus disse‑me que tu deves ficar aqui. Nós, os boximanes, cobrimo‑nos com um cheiro que a Hiena não consegue suportar. Estamos completamente a salvo. Mas um gemsbok ‑ aqui ele rosnou e arreganhou os dentes ‑, um gemsbok seria devorado.

E depois dirigiu‑me o seu sorriso contagioso.

Meia‑Noite saiu de casa um quarto de hora depois. Enervado, vesti‑me rapidamente e fui para o jardim brincar com Fanny. Passado algum tempo, o meu pai perguntou‑me por Meia‑Noite. Menti, dizendo que tinha ido à procura da chuva.

Durante o pequeno‑almoço, enquanto me estendia o meu segundo prato de ovos, o meu pai pigarreou para aclarar a garganta e disse:

‑ John, a tua mãe e eu tencionamos mandar‑te estudar em Inglaterra. Achamos que serás mais feliz lá.

‑ Em Inglaterra?

‑ Sim, num colégio interno. É uma grande instituição que trará muitos benefícios para a tua educação. ‑ Esforçou‑se por sorrir. ‑ Os rapazes passeiam pelos jardins dando nomes latinos aos pássaros e... a ler Shakespeare. É um sítio muito bom para ti.

‑ Não ‑ repliquei eu.

A minha mãe estendeu‑me outra chávena de chá.

‑ Muitos rapazes teriam inveja da tua sorte por poderes estudar num sítio desses.

‑ Óptimo, então que sejam eles a ir.

O meu pai deitou‑me um olhar zangado.

‑ Agradeço‑te que não uses esse tom de voz com a tua mãe.

‑ E não usarei se ela parar de me dizer como tenho sorte por deixar tudo aquilo que conheço.

O meu pai só me tinha batido uma vez em toda a minha vida, mas se voltei a sentir o meu traseiro a arder.

‑ Até tu deves ser capaz de ver que não tens querer nisto. É uma decisão que tomámos. Vais seguir viagem para casa da minha irmã, em Inglaterra, com uma carta minha, e ela vai matricular‑te numa escola como deve ser. Já tenho algumas sugestões excelentes do cônsul inglês aqui no Porto, e ele conhece todas as melhores escolas.

Embora eu soubesse que o meu pai explodiria, estava decidido a nunca deixar Portugal.

‑ Veremos ‑ disse eu, estendendo a mão para pegar no saleiro no outro lado da mesa, indicando que a conversa tinha chegado ao fim.

A minha mãe agarrou‑me no pulso dizendo:

‑ Aqui não estás em segurança. Sabes que não te mandaríamos para longe se não fosse isso. Ter de me separar de ti...

Incapaz de acabar a frase, tirou a mão e baixou os olhos para esconder as lágrimas.

‑ A Fanny vai poder ir comigo? ‑ perguntei.

‑ Não ‑ respondeu o meu pai. ‑ Mas ela vai ficar muito bem. Trataremos dela como se fosse uma rainha e vais poder vê‑la nas férias.

‑ Quer dizer que posso voltar?

A determinação do meu pai sucumbiu à tristeza, que era precisamente aquilo de que eu estava à espera. Queria puni‑lo por se ter lembrado de uma tal conspiração contra mim.

‑ Meu Deus, rapaz, achas que somos uns monstros?

‑ E Meia‑Noite... Também vou ter de o deixar? ‑ perguntei, ignorando propositadamente a pergunta dele.

‑ Sim ‑ replicou o Papá.

‑ Quanto tempo tenho antes de começar a cumprir essa pena?

‑ Três semanas, acho eu ‑ respondeu‑me ele. ‑ Seis, no máximo. A Mamã, a soluçar, fugiu para o pianoforte. O meu pai deitou‑me

um olhar sombrio e disse:

‑ John, às vezes podias tentar que as coisas desagradáveis da vida fossem um bocadinho mais fáceis.

Depois foi ter com ela.

Ouvi o sussurro das vozes deles, sentado à mesa, nada arrependido e furioso com a crítica do meu pai.

‑ Não consigo ‑ murmurou a Mamã ao Papá.

‑ Tens de conseguir. Pelo menos, por algum tempo.

‑ Um ano, mais não. Se for mais, James, eu morro!

Meia‑Noite não voltou para casa durante os dois dias seguintes e eu estava muitíssimo preocupado com a sua segurança. Quando perguntei ao meu pai se o tinha visto, a única coisa que ele me disse foi:

‑ Não te preocupes, rapaz. Ele sabe tomar conta de si. Tenho a certeza que está bem.

Benjamim veio ver‑nos na noite seguinte. Do cimo das escadas, ouvi‑o explicar que não lhe tinha sido concedida uma audiência com o bispo, mas que tinha falado durante bastante tempo com um dos assessores. Tinha‑lhe sido dito, em termos muito claros, que nada iria ser feito ‑ ou, melhor, podia ser feito ‑ para silenciar o necromante, uma vez que as suas actividades estavam fora da jurisdição da diocese do Porto, o que era, no mínimo, uma desculpa muito fraca. Ele desconfiava que o bispo tinha resolvido fingir que não via.

Benjamim achava que o levantamento dos residentes do Porto contra os Marranos era muito útil para a Igreja naquele preciso momento, pois o seu poder estava a diminuir. A hierarquia eclesiástica queria ter uma mão forte para jogar na mesa de Napoleão, caso este viesse a tornar‑se governante de Portugal.

‑ Quer dizer que estamos entregues a nós próprios ‑ disse o meu pai calmamente.

Meia‑Noite voltou na madrugada do dia seguinte. Veio ao meu quarto e ajoelhou‑se ao lado da minha cama. Tinha a manga da camisa rasgada e estava lavado em suor.

‑ Descobriste a pista do necromante? Mataste‑o? Sorriu.

‑ Se me levarem, meu pequeno gemsbok, não fiques muito triste. O importante é que agora estás a salvo.

O meu pai devia tê‑lo ouvido subir as escadas, pois apareceu à porta do meu quarto, visivelmente surpreendido.

‑ Meia‑Noite! Estávamos preocupados.

Reparando no arco ao lado da minha cama, acrescentou:

‑ Foste à caça?

O Africano levantou‑se e virou‑se para ele.

‑ Lamento tê‑lo preocupado, Senhor Stewart. Sim, andei a caçar, temos de conversar.

Nessa altura, apareceu a minha mãe.

‑ O que é que aconteceu? ‑ perguntou ela.

‑ Um momento, Senhora Stewart ‑ respondeu o Africano. Dirigiu‑se à janela e espreitou para fora, depois fechou as portadas. ‑ Podem ter‑me seguido até aqui ‑ explicou.

Reparei que tinha o cabelo cheio de pequenos galhos e manchas de

terra nos calções.

‑ Quem é que quereria seguir‑te? ‑ perguntei‑lhe.

‑ Os homens que estavam com Lourenço Reis.

 

Meia‑Noite lembrava‑se do fogo dos mosquetes e dos canhões a explodirem à sua volta da primeira vez que tinha sido capturado pelos Europeus. Mas, mais do que tudo, recordava‑se dos cavalos.

‑ Rapidez e força feitas vida ‑ disse‑me ele. ‑ Até o Louva‑a‑deus os observava reverente e maravilhado.

Escuras e pesadas bolas de metal lançadas de canhões explodiam em tempestades de fogo. O sangue derramava‑se dos homens feridos da sua tribo; todos, com excepção de três crianças pequenas, foram deixados a apodrecer ao sol africano. Meia‑Noite nunca soube o que acontecera aos dois parentes que sobreviveram.

Os uivos das hienas a empanturrarem‑se podiam ser ouvidos na sua nova casa, a propriedade de um holandês de cara redonda, de quem foi criado durante uns curtos meses. Mas, embora conseguisse acartar água, alimentar as galinhas e o gado e matar cobras só com um pau, Meia‑Noite tinha um apetite enorme e comia mais do que aquilo que conseguia render.

Em vez de lhe cortar a garganta, como o holandês lhe mandara, um criado zulu, a coberto da escuridão, levou Meia‑Noite, fazendo‑o caminhar uma hora para dentro do mato, e entregou‑o ao arbítrio do deserto. A terra e o céu mostraram‑se generosos nessa noite; à luz do luar, descobriu o caminho para uma família de boximanes que seguia as chuvas para as Shaggy Hills, dez léguas para leste. Ofereceram‑lhe água de uma casca de ovo de avestruz e carne seca. Tornaram‑se na sua nova família. Catorze anos mais tarde, segundo os cálculos do meu pai, os militares bóeres voltaram, soldados diferentes, de um sítio diferente, mas igualmente montados a cavalo. Nessa altura, já sabiam que até os boximanes adultos podiam ser «domesticados» com um regime de punições e recompensas.

Por isso, quando Meia‑Noite foi ferido num braço com uma bala, foi autorizado a ser visto por um médico. Pouparam‑lhe a vida e um soldado vendeu‑o a Reynolds, o homem de Yorkshire a quem, mais tarde, o meu pai o viria a roubar.

Quando lhe perguntaram como se chamava, respondeu que era Meia‑Noite, pois tinha sido este o nome que o Louva‑a‑deus lhe tinha dito para usar entre os Europeus.

‑ Ajudar‑te‑á a permanecer no teu próprio centro ‑ dissera‑lhe o insecto.

Foi um pastor protestante galês, chamado Dee, com olhos como carvões ardentes, que informou Meia‑Noite que os seus parentes tinham sido mortos, não por homens, mas por Deus. Além disso, disse ele, o Senhor já não estava disposto a permitir pagãos na África civilizada que os Europeus estavam a forjar a partir do caos primitivo, escuro e pestilento que outrora tinha sido. Tendo tido a infelicidade de nascer boximane, também Meia‑Noite seria impedido de entrar no céu a não ser ‑ aqui o ministro tirou um Novo Testamento da sua pequena sacola de couro ‑ que recebesse Cristo no coração.

Dee visitou todas as fazendas inglesas no Cabo. Envergando um chapéu forrado de veludo púrpura e um manto de peles de coelho, disse a todos os criados reunidos na varanda que as suas danças, o seu animismo e ‑ no caso dos boximanes ‑ o seu estilo de vida nómada eram afrontas a Cristo. A única cura, tanto para a doença como para a ignorância, era o baptismo.

Ao contrário de outros criados africanos da roça, Meia‑Noite recusou a cura do ministro. Chicoteado até ficar com a pele em pedaços, foi levado para o alojamento dos criados. Aí, o Chacal apareceu‑lhe num sonho a urinar em cima do Louva‑a‑deus. Mas o insecto permaneceu imperturbável. De facto, até se estava a rir.

No dia seguinte, a Senhora Reynolds levou a carruagem para a cidade, para comprar umas cordas de que o marido precisava. O candidato seguinte ao baptismo era um xossa chamado John, considerado preguiçoso e dispensável. Não teve tanta sorte como Meia‑Noite. Embora tivesse concordado com a cerimónia, foi transformado em exemplo.

Com todos os escravos a assistir, John foi atado à balaustrada da varanda e chicoteado até a pele das costas ter sido toda arrancada e ele não conseguir voltar a gritar. Com os olhos brilhantes ainda abertos, mas já sem vida, o pastor Dee desatou‑o e declarou que ele estava salvo.

Foi por isto que Meia‑Noite permitiu que lhe borrifassem a cabeça com água. Mas o Tempo da Hiena tinha‑se apossado dele e já não conseguia rir como o Louva‑a‑deus. De facto, não falou durante muitos meses.

Os meus pais e eu escutávamos num silêncio extasiado enquanto Meia‑Noite nos contava estes seus tempos de África. Ao princípio, não compreendemos a relação entre o seu passado e o que ele podia ou não ter feito a Lourenço Reis ‑ até que ele nos disse que, depois de ter visto o pregador na Noite de São João, se tinha lembrado do pastor Dee e do jovem xossa, chamado John, que tinha sido chicoteado até à morte. Meia‑Noite achava que a coincidência dos nomes não era acidental.

‑ Compreendi que o Louva‑a‑deus me estava a dizer que o nosso John morreria se Reis continuasse a viver.

‑ Só porque ele tem o mesmo nome que esse rapaz xossa? ‑ perguntou o meu pai.

‑ Estou convencido de que coincidências destas indicam ligações entre destinos que nem sempre conseguimos ver.

Meia‑Noite contou‑nos que, nas noites anteriores, tinha seguido Reis de um bairro da cidade para outro, onde multidões cada vez maiores o recebiam com grandes vivas.

‑ Logo a seguir às onze da noite de ontem ‑ contou o Africano ‑, Reis encaminhou‑se muito, muito energicamente para o cais. Enquanto ele conversava com um barqueiro, subi a colina a correr e escondi‑me nos arbustos.

‑ O que é que aconteceu a seguir? ‑ perguntou o meu pai.

‑ A seguir... a seguir disparei contra ele... contra Reis.

‑ A tua seta acertou‑lhe da encosta da colina? ‑ perguntou o Papá.

‑ Sim, conseguia vê‑lo claramente à luz da lanterna. A minha primeira seta acertou‑lhe na omoplata. Tinha uma ponta com um veneno poderoso. Não havia necessidade de outra. A esta hora, já está morto.

Antes que Meia‑Noite pudesse acrescentar mais alguma coisa, a minha mãe correu para ele a chorar.

‑ Não estou preocupada por mim, mas tu salvaste o meu John do Faraó ‑ disse ela solenemente. ‑ Voltaste a salvá‑lo. Obrigada pelo teu sacrifício. Ficar‑te‑ei eternamente grata.

Beijando as mãos do Africano, encostou a cabeça no peito dele. Eu estava mudo de espanto e o mesmo acontecia com o meu pai. Nenhum de nós se tinha dado conta da extensão do seu medo durante aqueles últimos dias e do esforço supremo que fizera para esconder as suas emoções.

Mais tarde, a Mamã disse‑me que, no seu coração, sabia que a Inquisição teria recomeçado de novo se o boximane não tivesse assassinado Lourenço Reis.

‑ Nunca houve a menor dúvida no meu espírito. Um homem iria transformar‑nos a todos em fumo e cinza. Estás a compreender? Basta um.

‑ Ele era louco ‑ respondi‑lhe.

‑ Não, não. Era completamente são de juízo. Sabia exactamente o que estava a fazer. Eles sabem sempre.

Devo confessar que a história que Meia‑Noite nos contou pode não ter sido completamente verdadeira. Soube pelas irmãs Oliveira que Reis tinha sido visto a entrar em casa do Senhor Benjamim na noite em que morreu ‑ um facto que o boticário confirmou mais tarde. Benjamim viria também a admitir que um recado seu a pedir um encontro com o necromante tinha sido entregue a Reis, embora nunca divulgasse a identidade do mensageiro.

Com a vantagem de poder agora olhar para o passado, suspeito que Reis foi atraído para casa de Benjamim por Meia‑Noite, que tinha andado a segui‑lo e teria ampla oportunidade de lhe entregar um recado. Depois de lá chegar, deve‑lhe ter sido dada uma hábil poção num copo de vinho ou de água, que só daria efeito várias horas depois. Ou, então, a poção podia ter sido introduzida no seu rapé.

O barqueiro que voltou a trazer Reis para terra no seu barco a remos disse‑me que o pregador não tinha sido ferido por nenhuma seta. Em vez disso, depois de ter enfiado duas pitadas de rapé no nariz e ter inalado, queixara‑se de fortes dores no peito e caíra quase imediatamente numa paralisia rígida. Morreu em poucos minutos.

Na altura, não me apercebi das discrepâncias na história do Africano porque não discutimos a situação com ninguém que não pertencesse à nossa família ‑ por razões óbvias.

Acabei por chegar à conclusão que a morte de Reis fora planeada por Benjamim, que convenceu Meia‑Noite a mentir‑nos para que só pudéssemos revelar uma versão falsa dos acontecimentos se alguma vez fôssemos interrogados pelas autoridades eclesiásticas ou civis. Desta forma, não podíamos nem implicar o boticário nem ser acusados de ter tomado parte na conspiração. Tenho a certeza que Meia‑Noite podia ter sido convencido a mentir‑nos se estivesse convencido de que estava a proteger a nossa família. Tenho‑me perguntado muitas vezes se o meu pai também teria sido um dos criadores do plano.

Pode‑se supor que Benjamim estava a colocar Meia‑Noite em perigo ao convencê‑lo a mentir‑nos dizendo que tinha matado Reis. Mas o boximane nunca teria corrido perigo verdadeiro, uma vez que a sua história, mesmo que tivesse sido contada aos representantes da Coroa ou da Igreja, poderia ser facilmente refutada. O corpo de Reis não tinha qualquer ferida de seta, como o barqueiro e outras pessoas podiam testemunhar.

Nos vinte anos que entretanto se passaram, li tudo o que consegui encontrar sobre Reis, que é mencionado por duas vezes na Crónica do Porto de Artur Moura Carneiro nos anos anteriores às guerras napoleónicas. Está lá escrito que ele regressou ao Porto vindo de Goa, onde tentara restabelecer o poder da Inquisição na índia portuguesa. Por que razão escolheu a nossa cidade para reiniciar a sua carreira em Portugal continental permanece um mistério, mas, provavelmente, pensava que a maior parte do comércio na nossa cidade estava controlada pelos Britânicos e pelos judeus cristianizados, o que nada tinha de verdadeiro, mas o seu ódio por nós cegava‑o para a realidade da nossa situação.

Outra possibilidade intrigante é a de que o seu verdadeiro alvo não tivessem sido realmente os Marranos, mas sim os Mações, um clã quase invisível de que eu não sabia nada naquela época, mas que, aparentemente, estavam bem colocados na hierarquia da cidade. Talvez ele quisesse tirar partido da desconfiança tradicional dos cristãos em relação aos judeus como forma de restabelecer a Inquisição, tencionando, mais tarde, voltar os seus poderes persecutórios contra estes mações.

Fosse qual fosse a verdade deste episódio, achámos que seria prudente que Meia‑Noite saísse do Porto durante algum tempo. O meu pai, que tinha de ir subir o rio para avaliar terrenos, decidiu levar‑nos a todos com ele.

Passámos uma quinzena calma numa casa senhorial de pedra na margem norte do rio Douro. O meu pai, que já lá estivera muitas vezes, alcunhava‑a de Castelo de Macbeth, onde a noite escura estrangula a luz viajante, mas como estávamos todos juntos, como uma família, não podíamos ter‑nos sentido mais felizes.

 

Como o perigo imediato para a nossa comunidade secreta tinha passado, o meu pai, a minha mãe e eu nunca mais voltámos a falar de um colégio interno em Inglaterra. E Meia‑Noite e eu começámos as nossas discussões semanais da Tora com o Senhor Benjamim. O boximane ficou fascinado logo de início, muitíssimo agradado pelo facto de o Senhor dos Hebreus poder ser colérico e até mesmo astuto, assim como, por vezes, hesitante.

E, assim, as nossas vidas voltaram a uma rotina feliz e continuámos praticamente sem incidentes até Outubro de 1806.

Eu estava agora com quinze anos e meio e, para minha grande alegria, o meu lábio superior picava com um leve bigode. Também já estava quase uma mão travessa mais alto do que Meia‑Noite e a minha mãe, cinco pés e meio bem medidos, embora ainda muito longe do grande salto de crescimento que me levaria quase a oito palmos e meio de altura. Como não era de estranhar, as jovens tinham um lugar preponderante nos meus pensamentos nessa época.

Meia‑Noite andava mais ocupado do que nunca com o seu trabalho e os seus estudos com Benjamim. Na realidade, a cave do boticário tinha sido transformada numa espécie de laboratório de alquimia, alojando uma combinação entontecedora de cheiros estranhos que muitas vezes se filtravam para a nossa rua.

O meu pai tinha adquirido mais sete varas quadradas de terra na parte de cima do rio, o que nos dava um total de catorze varas quadradas. Segundo os seus cálculos, em apenas mais dois anos poderíamos começar a plantar vinhas para a nossa própria produção. Embora o meu pai me tivesse levado várias vezes nas suas viagens rio acima para me dar lições sobre o cultivo das vinhas e de eu me ter mostrado completamente incapaz, todos concordávamos que o nome Stewart & Son soava muito bem.

A minha mãe tinha renegado o seu juramento de fidelidade a Mozart, pelo menos por uns tempos, e tinha‑se entregue de corpo e alma a Beethoven. Aprendia tudo o que fosse dele e que conseguia mandar vir de Londres. Mas as partituras novas demoravam a chegar devido às perturbações causadas nos serviços postais pelas guerras napoleónicas, que na altura se estendiam por quase toda a Europa, embora ainda não tivessem chegado a Portugal.

Quanto a Fanny, tinha dado à luz quatro cachorrinhos rechonchudos de que não estávamos à espera. Quando estava com o cio fugira ao meu olhar vigilante, voando como Pégaso pela janela da sala. Correndo pela nossa rua acima, entregara a sua virgindade ao primeiro pretendente que passou ‑ um rafeiro castanho‑claro criado nos esgotos do Porto a julgar pelo pêlo emaranhado e o cheiro pestilento. Conseguimos arranjar donos adequados para três dos quatro cachorros, e guardámos a mais fraquinha da ninhada para nós. Meia‑Noite deu‑lhe o nome de Zebra por causa da risca branca que começava na ponta do focinho e atravessava as costas castanhas e pretas. Era a cria de que Fanny mais gostava, de tal forma que receei que o seu coração se partisse se a déssemos.

No mundo para lá dos confins da nossa pátria, Napoleão tinha conseguido a sua maior vitória em Austerlitz, deixando quinze mil russos e austríacos a apodrecerem ao sol da Morávia. Em terra, tinha provado que era o mais forte e havia muita gente que acreditava que em breve ele seria o dono de toda a Europa. Exceptuando os Britânicos. E nunca se o Imperador fosse suficientemente tolo para voltar a atacar por mar. Ao largo da costa do cabo Trafalgar, no Sudoeste da Espanha, Lord Nelson e a sua armada tinham conseguido uma vitória decisiva precisamente um ano antes, no dia vinte e um de Outubro de 1805. As forças britânicas tinham‑se multiplicado em poderio desde essa altura e Napoleão não se atrevera a mandar a sua marinha outra vez para a guerra.

Embora estivéssemos nervosos com a perspectiva de Portugal se ver envolvido na guerra, não nos faltava optimismo. Havia a convicção firme de que os Britânicos ‑ os nossos mais importantes parceiros de negócios ‑ nunca permitiriam que o Porto caísse nas mãos dos Franceses.

No que dizia respeito ao coração, eu andava completamente fascinado com uma rapariga que vivia na Rua das Taipas. Chamava‑se Maria Angélica e tinha dezassete anos.

Tenho tendência para achar que Violeta foi a responsável por me instilar o gosto por raparigas mais velhas com olhos sabedores e esta jovem senhora tinha os mais espantosos olhos verdes que eu já vira.

Tinha uma pele muito branca, mas, no entanto, o cabelo era tão preto e espesso que num dos meus poemas secretos escrevi entusiasticamente que era feito de uma noite sem estrelas. Os seus seios também me interessavam muito e não conseguia afastar deles os meus olhos cobiçosos.

Naqueles tempos, esperava‑se que nos comportássemos como dignos cavalheiros e senhoras; por isso, eu nem sequer me atrevia a falar com Maria Angélica, embora a observasse de longe, completamente enfeitiçado pelos seus movimentos delicados. Para conseguir vislumbrá‑la, chegava a passar pela janela da sala de estar da casa dela uma dúzia de vezes por dia. Inventava desculpas infinitas para parar por uns instantes, como apertar as fivelas dos sapatos ou os botões dos calções, até que os vizinhos, torcendo‑se de riso, começaram a fazer o barulho de beijos ruidosos de cada vez que eu me aproximava.

Uma tarde, tive a boa sorte de passar por baixo da janela no preciso momento em que ela a estava a abrir.

‑ Bom dia, senhor ‑ disse ela inclinando‑se para fora.

Antes que eu pudesse começar a tirar ilações deste começo promissor das nossas relações, a mãe dela puxou‑a para dentro e fechou as portadas com toda a força. Todavia, mantive‑me audaz na minha paixão. E foi por isso que, quando ouvi falar pela primeira vez na projectada viagem do meu pai a Londres, acompanhado por Meia‑Noite, na noite em que comemorávamos a vitória de Lord Nelson, não insisti em ser convidado para os acompanhar. Iam estar fora seis semanas.

‑ Também vou? ‑ perguntei ao meu pai, desejando ansiosamente que ele respondesse que não.

‑ Não, filho, lamento, mas não.

‑ Por que é que vão?

‑ Bem, John, deves lembrar‑te que uma das razões para Meia‑Noite ter vindo comigo para a Europa era tentar encontrar uma cura para a varíola. Há poucos anos, ouvi falar de um médico chamado Jenner que tem estado a trabalhar em Londres e das suas teorias sobre o efeito inoculativo da varíola bovina. E, por isso...

Eu devia ter feito uma cara de quem estava confuso, porque ele passou a explicar:

‑ John, a única coisa que eu sei é que milhares de pessoas foram já inoculadas, com êxito, contra esta doença. O bom homem fornece gratuitamente este serviço aos pobres ‑ chegam a ser trezentas pessoas por dia. Por isso, escrevi para a Royal Jennerian Society, pedindo autorização para testemunhar este método e eles, generosamente, acederam.

‑ Se essa cura for boa, quer dizer que Meia‑Noite vai voltar para África?

‑ Sim, é possível que sim, filho. Só o saberemos depois de irmos a Inglaterra.

A possibilidade de ele nos deixar encheu‑me de pavor.

‑ Nesse caso ‑ disse eu ‑, gostaria de vos acompanhar.

‑ Não, desta vez não, rapaz. Eu e tu iremos em breve a Londres, mas agora não.

‑ Mas seria bom para mim...

‑ Não ‑ interrompeu ele. ‑ Lamento muito, mas é completamente impossível.

Não voltei a falar no assunto até à tarde do dia seguinte, quando estava a passear com Meia‑Noite pelas docas secas ao longo do rio.

‑ O Papá diz que vais partir em breve para Inglaterra para descobrires uma cura para a varíola.

Ele deu‑me uma palmadinha nas costas.

‑ Sim John, estou muito, muito satisfeito. Não podes saber o que isto significa para mim. Morreram tantas pessoas do meu povo. E também tantos zulus e tantos xossas.

‑ Se encontrares um remédio bom, vais partir imediatamente para a tua terra?

‑ Não, vou voltar para fazer experiências com Benjamim. Tenho de ser capaz de repetir todos os procedimentos, ou não servirá de nada. Se tudo correr bem, então voltarei realmente para África.

Vendo a minha tristeza, acrescentou:

‑ No entanto, tenho uma proposta interessante para te fazer. Fiz‑lhe uma cara zangada porque queria que ele se sentisse pessimamente de me deixar sozinho.

‑ Nem sequer me vais perguntar qual poderá ser a minha proposta? ‑ piscou‑me o olho. ‑ Vou ficar zangado contigo se não perguntares.

‑ Não ‑ ladrei‑lhe, o que fez com que se risse.

‑ Que possas sempre cavalgar entre os dedos das patas do Gunga - disse ele.

‑ E o que é que isso quer dizer?

‑ Que possas ser sempre tu. E que possas andar sempre devagar.

‑ Porquê devagar?

‑ Porque no deserto africano uma pessoa tem de andar sempre com cuidado para não correr o risco de pisar qualquer coisa que possa morder ou picar.

Enfiou o braço no meu, coisa que tinha começado a fazer desde que eu o tinha ultrapassado em altura.

‑ John, quando eu voltar para África, gostaria que fosses comigo. É esta a minha proposta.

‑ Eu... em África? ‑ perguntei incredulamente.

‑ Sim, gostaria muito que ficasses uns tempos comigo. Lá temos pássaros que são lindos, lindos, e eles estão há já muitos anos à tua espera para que os imites. Não gostaria que tivessem de esperar para todo o sempre.

‑ Já sugeriste ao Papá e à Mamã? ‑ perguntei muito excitado.

‑ Ainda não. Primeiro temos de ver o que acontece em Inglaterra, depois falaremos com os teus pais.

‑ A minha mãe não me vai deixar ficar muito tempo. Provavelmente, nem sequer me deixará ir.

‑ Irás visitar‑me a África durante uns meses todos os anos ou de dois em dois anos. E eu também virei de visita ao Porto.

‑ Mas a África Austral fica muito longe.

‑ Não, não é muito longe ‑ disse ele soltando uma gargalhada.

‑ É só metade da volta ao mundo!

‑ E é perigosa.

‑ Menos perigosa do que a Europa. Não vai tardar muito que os Franceses atravessem as montanhas e entrem em Portugal.

‑ Achas?

‑ Napoleão é uma hiena que julga ser um leão. Tentará devorar Portugal. Eu, pela minha parte, preferiria estar noutro sítio qualquer quando ele chegasse. Vai haver muito sofrimento e morte. Talvez eu também acabe por propor aos teus pais que vão para África. Afinal, o teu pai sempre lá podia fazer uma vinha.

Fez‑me sinal para me sentar ao lado dele num grande tronco ao pé do rio. Mal nos sentámos, começou a contar:

‑ Houve um ano, John, em que a seca caiu sobre a terra. Foi um tempo muito, muito mau. ‑ Puxou do seu cachimbozinho de barro.

‑ O Louva‑a‑deus estava longe, num deserto longínquo, pois de tempos a tempos ele ficava doente por viver entre os homens e as mulheres e precisava do néctar doce das flores brancas que lá nasciam para restabelecer o seu espírito. Mas quando a Abelha voou até ele para lhe contar da boa gente que estava a morrer em todos os sítios na sua terra natal, ele arriscou a vida e não hesitou em subir para as asas da sua amiga.

Descobrindo que muitos já tinham morrido de fome, o Louva‑a‑deus tentou persuadir a Avestruz a dar‑lhes uma parte do seu mel ou, pelo menos, a guiá‑los até às suas colmeias. Mas a grande ave recusou‑se a fazê‑lo. O Louva‑a‑deus repreendeu‑a, evidentemente, mas ela limitou‑se a encrespar as penas da cauda. ‑ Meia‑Noite chegou‑se a mim. ‑ E depois aquela ave tonta enfiou todo o seu mel debaixo da asa e voou para longe. Por isso, o Louva‑a‑deus começou a pensar na forma como poderia roubá‑lo ‑ para que o Povo Primitivo pudesse sobreviver. Mas sem o seu néctar, ele ia enfraquecendo a cada dia que passava.

Meia‑Noite inclinou‑se para mim e deu‑me uma palmadinha na perna.

‑ Um dia, arrastou‑se lentamente até à Avestruz e disse‑lhe na sua voz muito fraca: «Descobri uma árvore com as ameixas mais deliciosas que há. Tu irias gostar muito, muito delas.»

A ave, ingénua, pediu para ser levada à árvore da fruta muito, muito depressa. Por isso, o Louva‑a‑deus levou‑a até a uma árvore carregada de ameixas amarelas. A Avestruz começou a debicar os ramos de baixo muito contente, pois a fruta era deliciosa. Mas o Louva‑a‑deus disse‑lhe: «As lá de cima ainda são melhores. Se as cobrires com o teu mel, iguaria alguma as igualará.» E, por isso, a ave esticou o pescoço para chegar mais acima.

«Sua tonta», disse‑lhe o insecto. «Não é aí‑ mesmo no cimo!» ‑ Meia‑Noite apontou com o cachimbo para o céu e franziu os olhos. ‑«Aquela grande ali, mesmo lá no alto, é a mais doce de todas.»

Naquela altura, o meu amigo levantou‑se, moldando um bico guloso com o polegar e o indicador.

‑ A ave esticou o pescoço o mais que conseguiu. E, no preciso instante em que ela agarrava na ameixa mais alta ‑ aqui, Meia‑Noite fechou os dedos com um estalido ‑, o Louva‑a‑deus utilizou as suas últimas forças para chegar debaixo da asa e roubar todos os favos de mel, excepto um. Desde esse dia, John, a Avestruz nunca mais voltou a voar com medo de perder o seu último favo de mel. Quanto aos homens e às mulheres, como sabes, temos a sabedoria do mel para nos sustentar através de todo o tipo de infortúnios.

‑ Mas o que é que aconteceu ao Louva‑a‑deus quando utilizou toda a força que lhe restava? Morreu?

Os olhos do Africano brilhavam de prazer.

‑ Não, John, não morreu, pois a Lua, chorando, derramou sobre ele lágrimas de luz suave e, quando ele as lambeu dos lábios, recuperou. Tendo dentro dele uma parte da eternidade da Lua, nunca mais adoeceu.

Meia‑Noite piscou‑me o olho para indicar que tinha acabado a sua história e fumou o seu cachimbo, muito satisfeito.

‑ Mas o que é que isso quer dizer? ‑ perguntei. Deu‑me um beijo na testa.

‑ Não há nada que o Louva‑a‑deus e eu possamos alguma vez estar a fazer no deserto que nos impeça de vir ter contigo e de roubar um tesouro para ti se alguma vez precisares de um.

Três dias antes de o meu pai e Meia‑Noite deverem partir para Inglaterra, acordei ao amanhecer com um barulho estranho. A princípio, pensei que era Fanny a ganir. Enrolando o cobertor em volta dos ombros, segui o barulho até à nossa sala de estar. Ali, ao pé da lareira apagada, encontrei o meu pai dobrado sobre si próprio na sua poltrona, soluçando convulsivamente. Tinha começado a recuar para não o envergonhar, quando ele chamou pelo meu nome.

A luz de uma vela iluminava‑lhe os olhos. Estavam tão cheios de dor, que eu pensei que devia ter recebido uma notícia terrível. Se calhar, a Tia Fiona tinha morrido.

Desejoso de sentir o meu contacto, estendeu‑me a mão trémula e eu corri para os seus braços. O seu desgosto era arrasador.

‑ Papá, o que é que aconteceu? ‑ perguntei‑lhe.

‑ Um sonho ‑ sussurrou ele. ‑ Estava completamente sozinho numa casa vazia. Sem calor. Sem luz. A tua mãe estava morta e tu tinhas partido. .. não sabia para onde. Estava completamente só na escuridão. E iria ficar sozinho para sempre.

‑ Estou aqui ‑ disse‑lhe eu, abraçando‑o ‑ e nunca o deixarei. Limpando os olhos com a mão, ele disse‑me:

‑ És generoso. E eu vou ficar bem num instante. Foi apenas um sonho estúpido. Volta para a cama. Desculpa ter‑te assustado.

‑ Vou levá‑lo ao seu quarto. Venha, deixe‑me levá‑lo. Como o pai costumava fazer quando eu era um rapazinho.

‑ Não, não. Deixa‑me ficar aqui. Não quero acordar a tua mãe.

‑ Então fico consigo.

‑ Sim, senta‑te aqui comigo. Vai fazer‑me bem sentir que estás ao pé de mim.

Fechou os olhos e começou a respirar mais facilmente. Durante algum tempo, fez‑me festas no cabelo e começou a contar‑me num murmúrio a história de um duende que se apaixonou por uma sereia, mas não a chegou a acabar porque adormeceu passado pouco tempo. Tremendo no ar frio, esperei até ter a certeza de que ele não ia tornar a acordar e depois voltei a subir as escadas, cada degrau parecendo um passo para um mundo estranho onde o meu pai estava sozinho para sempre e a chorar. Nunca mais voltámos a falar do pesadelo dele.

No dia da partida, acompanhei o meu pai e Meia‑Noite ao cais. A minha mãe ficou no quarto, demasiado emocionada para nos acompanhar. O Sol resplandecia no céu azul, fazendo cintilar a ponte nova que tinha sido construída sobre o rio, ligando o Porto, na margem norte, a Vila Nova de Gaia, na margem sul.

‑ A cidade está a crescer ‑ disse o meu pai. ‑ Tal como o meu filho.

Sorriu‑me afectuosamente e abraçámo‑nos, pela última vez, creio eu, em verdadeira e total amizade. Disse‑me para obedecer à minha mãe em tudo, uma vez que, embora eu já fosse mais alto do que ela, ainda não a igualava em bom senso e intuição.

Prometeu‑me que estaria de volta a casa no Natal. Depois abracei furiosamente Meia‑Noite, o que o fez sorrir. Disse‑me que quando regressasse me iria contar a história de como o Louva‑a‑deus casou o Gemsbok com o Guia‑do‑mel, o que julgo ter sido a sua maneira de me dar a entender que reparara no meu recém‑descoberto interesse pelas raparigas.

‑ Vai devagar ‑ avisou‑me ele, e beijámo‑nos nas duas faces.

‑ Vai devagar também ‑ repliquei‑lhe eu.

Continuámos a acenar uns aos outros até eles chegarem à coberta. Eu e Meia‑Noite gritámos parvoíces sobre a Fanny durante algum tempo, simplesmente para controlarmos as emoções mais fortes. Depois, enquanto o navio levantava âncora, cantámos a nossa canção preferida: «The Foggy, Foggy Dew»:

 

«Oh, sou um solteirão, vivo sozinho

E trabalho como tecelão. E a única coisa, a única

Que alguma vez fiz de mal

Foi cortejar uma linda donzela.

Cortejei‑a no Verão

E no Inverno também.

E muitas, muitas vezes

Apertei‑a nos meus braços

Só para a proteger do orvalho nevoento, nevoento.»

 

Cantar esta canção com Meia‑Noite no cais... Nunca mais a voltei a cantar até as minhas filhas nascerem. Mesmo nessa altura, ouvi sempre a voz do Africano a acompanhar a minha.

Durante a estada deles em Inglaterra, tentei conduzir a minha amizade com Maria Angélica para territórios mais íntimos, mas estava cons‑tantemente a ser impedido pela vigilância dos olhos diabolicamente astutos da mãe dela. Uma vez, vendo‑me por baixo da varanda, gritou‑me:

‑ Não julgues que alguma vez permitirei que a minha filha seja acompanhada por lixo da tua laia.

O choque deixou‑me mudo. Completamente desencorajado, achei melhor não arriscar outra abordagem até ao regresso do meu pai, para lhe poder pedir conselho sobre a melhor forma de proceder.

Recebemos duas cartas dele durante esta viagem. Depois de as ler sozinha, a minha mãe partilhou‑as comigo. A primeira descrevia algumas das maravilhas de Londres e, muito particularmente, um passeio pelos jardins do Palácio Real em Kensington, que, desde a mudança da corte para Richmond, tinham sido abertos ao público aos domingos. Para grande alegria do meu pai, Fiona, a sua irmã mais velha, tinha vindo de Maidenhead passar uma semana em Londres, onde estava alojada na mesma estalagem do que ele e Meia‑Noite, e estava de muito boa saúde.

Na segunda carta, o Papá contava que tinham sido recebidos no St. Thomas'Hospital pelo Dr. Jenner, que ele tinha achado simpático e muito inteligente. Tinha‑lhes sido feita uma demonstração do processo da inoculação. O Papá ficou tão impressionado com este processo que pagou para que o inoculassem, bem como a Meia‑Noite. O Dr. Jenner concedeu ao meu pai e a Meia‑Noite uma hora do seu valioso tempo e respondeu amavelmente a todas as perguntas do Africano, embora a sua pronúncia de Gloucestershire tivesse obrigado os ouvidos de ambos a um grande esforço.

O meu pai dizia‑nos que já tinha marcado passagem de Portsmouth para o Porto num barco que zarparia a catorze de Dezembro. Dependendo dos ventos, devíamos esperá‑lo a partir da manhã do dia dezanove.

Num pós‑escrito separado, na parte de trás da última folha, escreveu‑me: Espero que estejas a ser bom para a tua mãe, pois ela é a única pessoa no mundo que te ama tanto como eu. O teu afectuoso pai, James Stewart.

Meia‑Noite também tinha acrescentado umas frases, informando‑me que o seu encontro com Jenner se revelara muito, muito frutuoso e que, embora Londres fosse um sítio magnífico, era demasiado populoso para o seu gosto.

Anseio por estar com vós ambos no nosso querido Porto, escreveu ele, assinando Meia‑Noite com um floreado elegante no M.

Eu fiquei muito bem impressionado com a forma como a caligrafia dele tinha melhorado desde aquelas primeiras semanas de estudo em que ele insistira em acrescentar asas, focinhos e hastes às suas letras.

Sem conseguir dormir desde o nascer do Sol do dia dezanove, fui brincar lá para fora com Fanny e Zebra até que a minha mãe abriu as portadas e ameaçou esganar‑me se elas voltassem a ladrar uma só vez. O barco do meu pai foi avistado cerca das dez horas. Para minha grande fúria, a minha mãe recusou‑se a deixar‑me faltar à lição das sextas‑feiras de manhã com o meu professor particular, o Professor Raimundo, para a acompanhar ao porto. E foi assim que aguentei mais uma das suas prelecções sobre a glória das funções trigonométricas. Os minutos iam passando como se estivessem a ganhar ferrugem. Não conseguia perceber o que é que estaria a demorar os meus pais e depressa comecei a temer que o meu pai e Meia‑Noite tivessem perdido o barco. O Professor Raimundo foi‑se embora ao meio‑dia. Enfiando o meu casaco de lã, saí para o frio de enregelar os ossos. Pensei em ir a casa do Senhor Benjamim pedir‑lhe para ele me acompanhar ao cais, pois estava convencido de que tinha acontecido alguma coisa. Mas nessa altura vi‑os a subir a rua, o braço do meu pai em volta da cintura da minha mãe. O meu coração deu um pulo de alívio e corri para eles. Todavia, quando me aproximei, vi que a minha mãe tinha estado a chorar. Quando cheguei ao pé dela, olhou‑me com uns olhos tão magoados de dor que receei que tivesse sido fisicamente espancada.

‑ Papá, o que é que aconteceu? O que é que se passa com a Mamã?

‑ John, deixa‑me levá‑la para casa. Depois conversamos.

‑ Onde é que está Meia‑Noite? Vou buscá‑lo?

Nenhum deles respondeu. O meu pai tinha os maxilares cerrados.

‑ Aconteceu‑lhe alguma coisa? Ficou em Inglaterra? O meu pai não respondeu.

‑ O que é que aconteceu em Inglaterra? ‑ gritei. ‑ Ele ainda lá está? Não está ferido ou... ou...

‑ Acalma‑te, John, por favor.

Girei a maçaneta da porta e deixei o meu pai levar a minha mãe para dentro. Enquanto ele a acompanhava até às escadas, disse‑me para eu esperar por ele na sala. Andei de um lado para o outro, consumido por pensamentos terríveis.

O meu pai desceu e serviu‑se de brandy, preparando outro copo mais pequeno para mim.

‑ Bebe ‑ disse‑me ele.

‑ Diga‑me o que é que aconteceu.

‑ Faz o que te digo, filho.

Percebendo que tinha falado de forma demasiado ríspida, acrescentou gentilmente:

‑ Por favor, John, faz o que eu te digo.

Bebi um golo de brandy que me queimou a garganta.

‑ Senta‑te ‑ disse‑me o meu pai, apontando para a cadeira da minha mãe.

Continuei de pé.

‑ Diga‑me para onde foi Meia‑Noite. Pousou o copo na prateleira da lareira.

‑ Meia‑Noite... Meia‑Noite... morreu, meu filho. Tenho muita pena.

‑ Não, não... não é possível. Papá, é...

Estendeu uma mão para mim, mas eu recuei um passo.

‑ Está a mentir! Onde é que ele está?

‑ Meia‑Noite deixou‑nos para sempre. Abanei a cabeça.

‑ Não, não quero ouvir isto. Não... não...

Sentia‑me tonto, como se estivesse a cair na escuridão mais negra, já não me conseguia lembrar onde é que o meu pai e Meia‑Noite tinham ido, nem sequer porquê. A boca do meu pai estava a mexer‑se, mas eu não conseguia ouvir nada...

Acordei deitado no tapete persa em frente do sofá, com um cobertor a tapar‑me. Luna Oliveira estava a olhar para mim, o que me pareceu muito estranho.

‑ Desmaiaste, John ‑ disse ela. ‑ Estás em tua casa. A tua mãe está lá em cima.

Graça juntou‑se‑lhe e sorriu‑me. Eu sentia‑me como se estivesse dentro de uma redoma de vidro. E depois voltou‑me tudo à memória.

‑ Meia‑Noite morreu? ‑ perguntei.

‑ Espera, John ‑ respondeu ela, e afastou‑se.

De algures atrás de mim, o meu pai disse que ia já ter connosco. Passado um momento, ajoelhou‑se ao meu lado e ajudou‑me a sentar. Levando‑me uma chávena aos lábios, rogou‑me que bebesse. Fiz o que me pediu. Estava demasiado quente e demasiado doce.

‑ Meia‑Noite morreu? ‑ voltei a perguntar. O meu pai bebeu um gole da minha chávena.

‑ Eu próprio o sepultei antes de voltar para o Porto ‑ disse‑me sombriamente. ‑ Tenho muita pena, filho.

Luna e Graça disseram‑me que voltariam a visitar‑me mais tarde. Depois de as acompanhar à porta, o meu pai ajudou‑me a sentar numa cadeira e sentou‑se à minha frente. Encostando‑se para trás e inspirando profundamente para ganhar coragem, começou a contar a história do que tinha acontecido.

‑ A seguir à nossa visita ao Dr. Jenner, resolvemos que Meia‑Noite devia ver qualquer coisa do campo. Estás a ver, ele achava a balbúrdia de Londres tão... tão desorientadora. Arranjámos uma carruagem e fomos para uma pequena estalagem na cidade de Swanage, na praia ‑ um sítio tranquilo onde eu tinha estado uma vez.

Havia uma expressão nervosa e retorcida nos lábios do meu pai que eu nunca lhe tinha visto.

‑ Na nossa terceira e última tarde, o ar húmido começou a formigar de electricidade e, nessa noite, houve uma fanfarra de trovões e relâmpagos. A chuva veio, caindo em lençóis de um céu cor de chumbo tão baixo... tão baixo, John, que parecia prestes a desabar sobre a terra. Era uma visão assustadora. Mas Meia‑Noite estava fora de si com a excitação. De manhã, descobri que já tinha partido para ir atrás das chuvas.

Eu escutei tudo isto sem fazer comentários, sentindo‑me separado de todas as coisas.

‑ Ora, na manhã seguinte ‑ continuou o meu pai ‑, o Sol voltou a aparecer a seguir ao pequeno‑almoço. Por volta das dez horas, um jovem vestido rusticamente abordou‑me dizendo que tinha sido enviado pelo seu amo para me levar ao local de um acidente muito infeliz.

A vítima deste acidente tinha sido encontrada com uma folha de papel de carta com o timbre da nossa estalagem no bolso. O rapaz descreveu este infeliz ao estalajadeiro e fora informado de que ele tinha estado na minha companhia.

O meu pai pegou no cachimbo que estava em cima de uma mesinha de apoio.

‑ Corri para a carruagem do jovem, claro. Passado meia hora, chegámos a um grande portão de ferro, atrás do qual se erguia uma casa palaciana.

Limpando os olhos, continuou:

‑ Depois do guarda‑portão nos ter deixado entrar, um velho de peruca veio ter connosco. Numa voz constrangida, apresentou‑se como Lord Lewis Pakenham. Pediu‑me perdão por me ter mandado buscar à estalagem sem aviso e depois levou‑me para uma pequena capela de pedra ao lado da casa principal. Ali... ali...

O meu pai deixou cair a cabeça e aclarou a garganta.

‑ Ali, John ‑ continuou ele ‑, descobri um cobertor manchado de sangue que cobria um corpo deitado num colchão de palha.

Limpou a boca com as costas da mão.

‑ Quando tiraram o cobertor, vi o buraco enorme no peito de Meia‑Noite que tinha sido feito por uma bala de mosquete. A cor dele tinha passado a cinzenta e a expressão no seu rosto não era nenhuma das que tinha tido em vida.

O pai voltou‑se para a parede e continuou a falar numa voz desolada:

‑ Pakenham disse‑me que o seu guarda da caça tinha descoberto o «rapaz preto» ‑ foi assim que ele se referiu a Meia‑Noite ‑ a caçar furtivamente na sua propriedade e disparara três tiros contra ele. Foi o último que o matou.

O Papá voltou‑se para mim, furioso.

‑ Aquele miserável inglês de peruca ofereceu‑me uma pitada de rapé da sua caixa de prata, como se isso me pudesse compensar pela minha perda...

‑ Não desejando que aquilo a que ele chamava «este contratempo» me incomodasse de qualquer maneira ‑ continuou o meu pai ‑, Pakenham ofereceu‑me então um criado para o resto da minha estada em Inglaterra. Recusei, evidentemente. Pouco mais há para te contar, filho. Apenas que a camisa e o casaco do boximane tinham sido encontrados aí perto, pendurados num ramo de árvore muito alto, onde apenas um gato poderia ter chegado. No bolso do casaco, entre outras insignificâncias, como sementes e bardanas, tinham encontrado uma folha de papel de carta da Estalagem de Swanage.

O meu pai tirou a referida folha e desdobrou‑a. ‑ Lê isto, John ‑ disse ele entregando‑ma.

Quando lhe peguei, o meu pai acariciou‑me carinhosamente a face. Comecei a ler as últimas palavras de Meia‑Noite:

Não foi um pirilampo que engoliste, mas um raio. Sei‑o agora. E vou dizer‑te um segredo. Só muito, muito raramente o Louva‑a‑deus escolhe alguém que não seja boximane para o transportar. Fica a saber que ele cavalga agora entre os teus dedos. E lembra‑te sempre que o transportas contigo para onde quer que vás.

Depois de ler isto, pensamentos gélidos e confusos infiltraram‑se‑me na cabeça como uma névoa. Parecia‑me que estava a léguas e a anos de distância e não percebia para quem é que Meia‑Noite tinha escrito aquelas palavras.

Quando exprimi a minha confusão, o meu pai deu‑me uma palmadinha na perna e disse: ‑ Para ti, claro.

 

Na primeira semana depois de ter sabido da morte de Meia‑Noite, não saí de casa nem me vesti. O meu pai tomava o pequeno‑almoço comigo no meu quarto. Quase nem falávamos nem comíamos, mas a sua presença era reconfortante. Eu não sabia o que é que a minha mãe andava a fazer nessa altura, pois ela permanecia atrás da porta trancada do seu quarto durante a maior parte do dia. Muito raramente, no final da tarde, eu descia e encontrava‑a a bordar. A voz dela era a voz das folhas caídas e das flores murchas. Recusava‑se a falar de Meia‑Noite.

Sentado ao lado dela, a olhar para os seus olhos vermelhos e perdidos, acabei lentamente por compreender que agora vivíamos numa casa de silêncio. Meia‑Noite estava morto e eu estava vivo... e isso parecia‑me um grande mistério.

À hora a que o meu pai regressava do escritório, ao princípio da noite, a minha mãe já se voltara a trancar no quarto. Ele e eu comíamos pão e queijo à lareira, ou, por vezes, no meu quarto. A minha cama tornou‑se um mar de migalhas. Às vezes, ele também fazia sopa de funcho ‑ a sua única especialidade culinária.

O meu pai ganhou o hábito de deixar o jantar da minha mãe do lado de fora da porta do quarto e de voltar a descer as escadas e, nessa altura, ouvíamos o estalido da porta a abrir e a comida a ser levada para dentro. Por duas ou três vezes, coloquei no tabuleiro umas dálias amarelas do jardim de Meia‑Noite, que tinham florescido tardiamente, esperando que isto, de alguma maneira, a consolasse, mas ela nunca se lhes referiu.

O meu pai dizia‑me muitas vezes:

‑ Tens de ter paciência, meu filho. A tua mãe... ela não é mulher a quem se possa dar pressa. Vive segundo os seus próprios ritmos.

O meu pai estava sempre a dizer‑me que o tempo acabaria por curar o meu sofrimento, mas eu não acreditava nele.

Citava‑me Robert Burns sempre que não conseguia encontrar as palavras apropriadas, e recordo‑me destes versos em especial, porque me faziam lembrar que um dia iria encontrar‑me com Meia‑Noite no Monte das Oliveiras:

 

Hope springs exulting on triumphant wing, That thus they all shall meet in future days...(1)

 

Por vezes, ele tentava transmitir‑me esperança, dizendo‑me que eu era um rapaz tão simpático que depressa encontraria mais companheiros leais. Ambos sabíamos que era mentira, uma vez que já era óbvio que eu não tinha qualquer jeito para travar amizade com rapazes da minha idade, mas fingíamos que acreditávamos.

Passado algum tempo, mudei muitos dos haveres de Meia‑Noite para o meu quarto. Dormia com uma das suas camisas de dormir porque o tecido tinha captado o seu cheiro ‑ ou, pelo menos, eu imaginava que tinha. Até cheguei a levar um dia a aljava, o arco e as flechas para o bosque, mas não consegui acertar nem numa lebre.

Na verdade, eu não queria fazer mal a nada, excepto a mim próprio.

Nunca perguntei ao meu pai como é que poderia conquistar a mão de Maria Angélica.

Quando me senti mais forte, ele e eu levávamos Fanny e Zebra a passear para fora da cidade. Ele falou‑me do grande interesse do Dr. Jenner pelos meus dotes ornitológicos e sugeriu que eu poderia até pensar em ir estudar durante um período de tempo com ele. Propôs que dali a um ou dois anos eu passasse, pelo menos, alguns meses em Londres, acrescentando que uma experiência dessas iria de certeza ajudar‑me a decidir o que queria fazer com a minha vida.

Também me prometeu que nesse Verão iríamos viajar em família até Amesterdão, uma cidade que eu ansiava conhecer por causa da sua florescente comunidade judaico‑portuguesa. Lembro‑me de ter rebentado em lágrimas sem qualquer razão especial quando ele me disse isso. Era frequente eu chorar sem qualquer motivo. Ou por motivos que estavam escondidos bem no fundo do túmulo de Meia‑Noite.

 

*1. Versão livre:

A esperança salta exultante em asa triunfante,

E assim se encontrarão todos em dias futuros... (N. da T.)

 

Impedido de entrar no quarto pela minha mãe, o meu pai foi obrigado a dormir no sofá da sala. Deixámos de convidar pessoas para casa e chegámos mesmo a confessar a Benjamim que seria melhor que ele deixasse de se nos juntar para o jantar das sextas‑feiras, pelo menos durante algum tempo.

Era frequente a minha mãe observar‑me da janela do quarto quando eu brincava com as cadelas no jardim. Todavia, se eu lhe dizia adeus ou a chamava, ela fechava as cortinas.

Então, uma terça‑feira de manhã, a meio de Janeiro, entrou na cozinha vestindo o elegante vestido de seda azul que normalmente usava para os jantares de festa. Apertando com os dedos o colar de pérolas, anunciou que ia ao mercado. Eu estava à espera que o meu pai se sentisse tão curioso como eu com esta mudança na sua disposição, já para não mencionar a estranha escolha do vestuário, mas ele ficou tão aliviado que não fez perguntas. Levantando‑se de um salto, correu para ela e beijou‑a como se lhe estivesse a dar as boas‑vindas a casa depois de uma viagem perigosa.

Nessa noite, ela voltou a deixar que o meu pai entrasse no seu quarto.

Eu tinha esperança que ela tivesse recuperado do choque e da dor iniciais, mas, durante a semana seguinte, pareceu uma criatura frágil preparando‑se para um longo Inverno. Corria pela casa, de tarefa em tarefa, como se uma pausa para descansar pudesse provar a sua incapacidade. Uma vez, por engano, fez chá com orégãos e de outra deixou bocados de casca no nosso jantar de bacalhau com batatas e ovos. Para mim, tudo aquilo era uma indicação de que o seu espírito andava numa grande viagem, algures. Talvez tivesse partido para Inglaterra para pôr rosas do nosso jardim na campa de Meia‑Noite. Sei que era frequente eu sonhar acordado que estava a fazer exactamente isso e não consigo acreditar que os nossos pensamentos fossem muito diferentes. Éramos tão parecidos em tantas coisas.

Uma tarde, no final de Janeiro, quando voltei para casa depois de ter ido buscar a nossa roupa de cama, lavada e passada, à Tia Beatriz, encontrei a Mamã a soluçar sentada ao seu pianoforte. Estava agarrada com toda a força à parte de cima do piano como se estivesse em perigo de cair numa escuridão interior tão profunda de que nunca mais conseguisse regressar. Soltei‑lhe os dedos do piano e abracei‑a. Encostou‑se ao meu peito e gemeu, tremendo violentamente. Era tão pequena e delicada; parecia que eu me tinha transformado no seu pai.

Beijá‑la no cimo da cabeça e inalar o cheiro quente do seu cabelo fez‑me chorar. Foi um momento terrível, embora estranhamente reconfortante, porque era uma expressão da nossa solidariedade.

‑ Tenho de pedir perdão por tantas coisas ‑ disse‑me ela depois, limpando as lágrimas. ‑ És capaz de me perdoar?

‑ Perdoar‑lhe porquê, Mamã?

Esperava que ela respondesse por me ter ignorado durante estas últimas semanas, uma vez que não me tinha tentado dar qualquer conforto. Em vez disso, replicou:

‑ Pela morte de Meia‑Noite.

‑ Mas a Mamã não teve nada a ver com isso.

‑ Não, não, infelizmente, isso não é verdade. Nunca devia ter permitido que o teu pai e Meia‑Noite recebessem aquela vacina para a varíola das vacas. Devia ter tornado isso perfeitamente claro antes de eles se terem ido embora.

‑ De que é que está a falar?

‑ Não vês? Eles deviam estar febris. Afinal, aquilo deve ter‑lhes feito qualquer coisa. Por que outro motivo havia Meia‑Noite de fugir durante a tempestade? E como é que o teu pai não conseguiu protegê‑lo? Não, John, nenhum deles devia estar no seu perfeito juízo.

Isto pareceu‑me completamente disparatado, porque o meu pai nunca mencionara qualquer delírio nem sequer uma leve indisposição. E a minha mãe sabia muito bem que era frequente Meia‑Noite seguir as tempestades. Alarmado com a lógica dela, sugeri‑lhe que fosse descansar.

Mais tarde, estava à porta das traseiras a ver Fanny e Zebra a roerem o mesmo ramo, quando a Mamã gritou. Tinha entornado quase uma canada de água a ferver por cima da parte da frente do vestido. Do peito, subia vapor. Quando lhe arranquei a chaleira da mão, descobri que estava quase vazia, o que não podia ter sido acidental.

A minha mãe olhava para mim aterrorizada, percebendo agora que se tinha queimado gravemente. Os olhos reviraram‑se e desmaiou. Com um salto, consegui impedir que caísse desamparada no chão.

Deitei‑a no sofá da sala, meti‑lhe uma almofada por baixo da cabeça e corri a chamar as irmãs Oliveira, que a fizeram recuperar os sentidos com um frasco de sais. Enquanto as ouvia falar‑lhe em sussurros, compreendi que a raiva dela se tinha revelado da única maneira que lhe tinha sido possível: primeiro em pequenos actos loucos de hostilidade contra mim e o meu pai, como deitar cascas de ovos no nosso jantar, e agora ferindo‑se a si própria.

Quando a Mamã acordou, pediu‑me que saísse da sala. Foi nesse preciso momento que eu comecei a acreditar que ela tinha deixado de me amar.

Durante a semana seguinte, voltou a fechar‑se no quarto, proibindo o meu pai e eu de entrarmos.

Penso que a minha mãe deixou de facto de gostar de mim durante alguns anos, embora seja uma coisa terrível de afirmar. Talvez seja melhor dizer que o seu amor por mim foi metido num caixão, juntamente com o seu casamento e o corpo de Meia‑Noite, e a tampa firmemente fechada.

Suponho que é possível que o seu amor por mim fosse demasiado profundo e soubesse que eu era a única pessoa capaz de penetrar na sua carapaça. Se se tivesse permitido mostrar esse sentimento por mim, se tivesse procurado e aceite a minha afeição, teria gritado durante dias sem fim a perda de tudo a que dera valor na sua vida ‑ sobretudo o seu casamento. Qualquer pessoa que olhasse bem para a sua cara pálida e emagrecida via que o suicídio era uma probabilidade real para ela.

Evidentemente, é irónico pensar que podia ter continuado a amar‑me se tivesse querido arriscar‑se a perder a sanidade. Talvez não seja possível pedir isso a uma pessoa.

Tendo ouvido a minha mãe exprimir dúvidas até então silenciadas sobre o meu pai, depressa me atrevi a acusá‑lo de ter falhado no seu dever de proteger Meia‑Noite. Pediu‑me perdão, mas eu continuei a insurgir‑me contra ele mesmo quando tentava argumentar racionalmente comigo. Finalmente, envergonhado pelas lágrimas dele, permiti que me explicasse que nunca se perdoaria por ter deixado que Meia‑Noite se afastasse dele.

Infelizmente, o facto de o meu pai ter admitido os seus remorsos pouco fez para atenuar as minhas emoções e fui rude para com ele em numerosas ocasiões, chegando mesmo uma vez a dizer‑lhe que não queria que ele voltasse a acompanhar‑me nos meus passeios com Fanny e Zebra. Sabia que me estava a portar abominavelmente, mas, simplesmente, não me conseguia controlar. A dor gravada no seu rosto parecia‑me uma contrapartida digna da minha frustração e do meu sofrimento.

Mas ele nunca me castigou ou fez mais do que repreender‑me suavemente, dizendo‑me que um dia tudo sararia.

‑ Sim, até a tua fúria contra mim, meu filho. Comecei a esconder‑me no meu quarto durante o pior período da minha depressão, saindo apenas quando ele já se tinha ido embora de casa. Passava os meus dias em completa solidão, lendo e desenhando. Nunca ia visitar as irmãs Oliveira, o Senhor Benjamim ou qualquer outra pessoa. Uma tarde, a meio de Fevereiro, o Papá entrou em bicos de pés no meu quarto quando eu estava quase a dormir e sentou‑se aos pés da cama. Não abri os olhos, embora o ouvisse chorar baixinho. Continuava a recusar perdoar‑lhe.

Por fim, ele foi‑se embora arrastando os pés.

O que é terrível é que o meu pai nunca mais veio ter comigo à procura de ajuda. Perdi a oportunidade nesse dia. E o arrependimento que sinto por lhe ter negado o meu amor cobre‑me, ainda hoje, das vestes de um bobo mesquinho.

Sete anos mais tarde, antes de casar, contei à minha noiva, Maria Francisca, tudo sobre este período para a avisar de que estava a receber por marido uma mercadoria danificada. Para minha grande surpresa, ela deduziu que eu tinha recusado consolo ao meu pai naquele momento‑chave, não tanto para o punir, mas por medo de o perder para a morte.

Naquela altura pensei que ela estava apenas a tentar aliviar a minha culpa, mas agora consigo ver que tinha razão; secretamente, eu receava de facto que a morte me estivesse a levar tudo. É mesmo possível que tenha pensado que Daniel e Meia‑Noite tinham morrido por causa da minha grande afeição por eles, o que queria dizer que eu, de alguma maneira, fora o causador da desgraça deles. A morte vingava‑se de mim através deles. De quê, não tinha a certeza. Talvez muito simplesmente por ter sido feliz ‑ mas, o que era muito mais provável, por ter magoado Daniel quando ele mais precisava da minha ajuda.

No final de Fevereiro, a minha mãe adoeceu com terríveis dores de estômago e foi para casa da Avó Rosa durante quatro dias. Durante a sua ausência, o meu pai recusou‑se, finalmente, a continuar a tolerar a minha atitude durante mais tempo.

‑ Isto já foi longe de mais ‑ disse‑me ele uma manhã, abrindo de supetão a porta e entrando com grandes passadas no meu quarto, os olhos a faiscarem.

‑ Estava à espera de tristeza e até de raiva, mas não desta recusa teimosa em regressar ao mundo. Apertando o nariz, continuou:

‑ Meu Deus, John! Isto parece uma pocilga! Não sentes o cheiro? Abriu as portas e as redes contra os mosquitos.

‑ Isto é uma vergonha! ‑ gritou ele, levantando o meu bacio que estava ao lado da cama cheio até à borda.

Levando‑o com todo o cuidado até à janela, atirou fora o seu conteúdo fétido enquanto gritava com a sua pronúncia escocesa: sujidade!

‑ John, estou muitíssimo desgostoso contigo!

‑ Feche a porta quando sair ‑ disse eu cheio de desdém, puxando a roupa para cima da cabeça.

Isto enfureceu‑o de tal maneira que se aproximou de mim, arrancou‑me os cobertores e agarrou‑me pela camisa com os punhos fechados como se fosse bater‑me. Eu queria desesperadamente que ele fizesse exactamente isso, para eu lhe poder bater também. E, no entanto, sabia que o único acto que teria de facto satisfeito a minha raiva era que ele, como Orfeu, tivesse descido aos infernos para trazer Meia‑Noite de volta para casa.

‑ Odeio‑o! ‑ gritei‑lhe. Derrotado, soltou‑me.

‑ Desculpa. Sei que isto é duro para ti. Ainda és muito novo. Um dia recuperarás, tal como aconteceu depois da morte de Daniel.

‑ Não quero recuperar ‑ repliquei eu, pois naquela altura imaginava que renunciar à minha dor queria dizer desistir do meu último laço com Meia‑Noite; as minhas lágrimas eram tudo o que nos unia através da barreira entre a vida e a morte. ‑ E quanto ao Daniel, nunca o esqueci. E nunca o esquecerei.

‑ Não, e nunca esquecerás Meia‑Noite. Não é isso que eu estou a tentar... Oh, John! Achas que Meia‑Noite teria querido que ficasses para aqui deitado como se não houvesse Sol no céu? Ele teria gostado que dançasses ‑ que dançasses a sua morte se tivesses de o fazer, mas que te levantasses e continuasses a fazer a tua vida à mesma.

Soube que tinha subestimado o meu pai; ele compreendia melhor a minha afinidade com Meia‑Noite do que eu esperara. Senti uma semente de afeição por ele crescer de novo dentro de mim.

‑ Papá, não tem saudades dele?

‑ Sinto a falta dele todos os dias, John. Mas a vida... não é sempre como nós desejamos. Perdemos aqueles que amamos uns a seguir aos outros. Perdi os meus pais e agora perdi Meia‑Noite. E a tua tristeza, meu filho... E muito difícil para o teu velho pai suportá‑la. Não pareço infeliz porque não posso ceder às minhas emoções. Tenho uma família a sustentar. Tenho trabalho a fazer, John. Tenho de continuar penosamente, sem me dar ao luxo de desesperar.

Chorei ao ver como tinha interpretado mal os seus actos.

‑ Desculpe ter dito que o odiava... e também por o acusar. Nunca o poderei odiar.

Esfregou os olhos.

‑ John, também acabei por me desprezar. Mais profundamente do que alguma vez poderia ter imaginado. Talvez até ainda mais profundamente do que tu.

Prometi então que iria voltar a desempenhar as minhas obrigações, mas não consigo lembrar‑me do que ele disse; aquela sua confissão de se odiar foi tão inesperada e tão incaracterística que não consegui pensar praticamente em mais nada durante toda a tarde.

Ao longo daquele Inverno e Primavera, tantas coisas no casamento dos meus pais se mostraram tão desconcertantes que comecei a suspeitar que o meu pai e a minha mãe não me tinham contado tudo sobre a morte de Meia‑Noite.

Não querendo pôr em perigo o frágil estado de espírito da minha mãe, só interroguei o meu pai. Em várias ocasiões foi‑me assegurado que as minhas suspeitas eram totalmente infundadas.

Como prova da resistência humana, depressa consegui descascar batatas, tirar água do poço, fazer compras no mercado e desempenhar todas as outras tarefas que me competiam. A minha mãe também voltou a emergir, desta vez definitivamente. Ter sido capaz de desempenhar todos os deveres que se esperam de uma esposa e de uma mãe é uma prova da fortaleza do seu espírito.

Mas tenho a certeza de que ela só imitava a mulher espirituosa que fora outrora ‑ essa pessoa tinha deixado de existir.

‑ É o nosso destino nesta vida continuar a andar para frente, aconteça o que acontecer ‑ disse‑me ela.

Nem sequer a minha força renovada conseguiu ser uma ponte sobre o abismo que se abriu entre nós os três. O meu pai nunca mais me contou histórias escocesas de bruxas e duendes, nem se aproximou sorrateiramente por trás da Mamã para a surpreender com um beijo, e as suas viagens rio acima deixaram de ser consideradas como obstáculos à nossa felicidade. A Mamã nunca mais tentou fazer o meu pai rir‑se, nem me repreendeu por subir dois a dois os degraus da escada, e eu nunca pedi conselho a nenhum deles sobre a escolha de uma profissão.

Para mim, é agora claro que, mal o meu pai voltou para casa sozinho, a nossa destruição era inevitável. Tivemos oportunidades para alterar o curso do nosso destino, mas só se tivéssemos actuado muito mais cedo ‑ se, por exemplo, eu tivesse feito aquela fatídica viagem a Inglaterra com o meu pai e Meia‑Noite. Se eu tivesse ido, tenho a certeza de que poderia ter evitado esta tragédia. Esse é o meu maior desgosto. Ainda hoje consigo ver o sangue nos meus dedos.

A pedido do meu pai, o Professor Raimundo e eu recomeçámos as nossas lições três meses depois da morte de Meia‑Noite. Todavia, depressa descobri que já não tinha paciência para a pomposidade dele.

Em meados de Abril, arranjei coragem para abordar o assunto com a minha mãe durante o jantar.

‑ Já não consigo suportar mais o Professor Raimundo, Mamã. Gostaria de tentar estudar sozinho.

Tendo adoptado a estratégia de mudar de assunto sempre que era preciso tomar uma decisão, ela replicou:

‑ Come a sopa.

‑ Acho‑o tão enfadonho que, às vezes, até tenho vontade de chorar. Tenho a certeza que ele está a impedir‑me de fazer progressos.

‑ John, já és praticamente um homem e podes fazer o que quiseres ‑ respondeu‑me ela prosaicamente.

Foi então que eu disse pela primeira vez em muitas semanas:

‑ Tenho saudades de Meia‑Noite. Sinto a falta dele todos os dias. A minha mãe não olhou para mim.

‑ Não tem muitas saudades dele? ‑ perguntei, inclinando‑me para ela no meu ardor. ‑ Lembra‑se daquele primeiro jantar com ele? Quando ele nos disse que África era memória? Lembra‑se de como a mãe e eu o julgámos completamente louco?

Sem uma palavra, pousou a colher, levantou‑se e subiu as escadas. Gritei‑lhe, pedindo‑lhe perdão, mas ela recusou‑se a dar meia volta.

Não voltaria a falar de Meia‑Noite nem ao meu pai nem à minha mãe durante um ano.

Confesso que não conseguia compreender por que é que ela se recusava a falar dele comigo, nem que fosse apenas em segredo, por alguns minutos. Não conseguia entender como é que tínhamos chegado a isto. Parecera absurdo, mas sempre que nos referíamos àquela hora da noite em que, num relógio, o ponteiro dos minutos e o das horas apontam direitos ao céu, nunca mais voltámos a dizer Meia‑Noite mas apenas vinte e quatro horas.

 

Eu IA FAZER DEZASSEIS ANOS no final de Abril e, tendo dispensado o meu professor, depressa me instalei numa nova e solitária rotina de estudo. Não fazia quase nada que exigisse esforço de concentração, sendo as únicas excepções as minhas lições com as irmãs Oliveira às sextas‑feiras e o meu estudo da Tora com Benjamim, aos domingos à tarde.

No entanto, acontecimentos exteriores depressa alteraram dramaticamente as nossas vidas. Era Napoleão que violava a independência calma da nossa cidade, tal como fazia com todas as cidades da Europa.

Os únicos aliados que restavam à Grã‑Bretanha eram a Rússia e Portugal e, por isso, era para a nossa infeliz fronteira que o Imperador francês voltava agora a sua atenção.

Em Agosto de 1807, os embaixadores francês e espanhol exigiram ao príncipe D. João, o nosso Regente, que declarasse guerra à Inglaterra, autorizasse as forças francesas a usarem a sua armada, confiscasse as mercadorias dos navios ingleses e prendesse os súbditos ingleses residentes no seu reino. Enquanto as negociações se arrastavam, foi dado aos cidadãos britânicos em Portugal um tempo valioso para prepararem a sua partida.

O meu pai disse‑nos, à minha mãe e a mim, que não fugiríamos de Portugal. Enquanto súbditos da Coroa portuguesa, ela e eu estaríamos a salvo sob ocupação francesa e ele nunca tivera qualquer relação comercial directa com o governo de Sua Majestade nem com nenhuma firma britânica. Estava convencido que o facto de estar empregado na Companhia do Douro, a empresa mercantil mais importante do Porto, lhe garantia um certo grau de segurança.

Argumentámos contra esta lógica, mas ele recusou‑se a ceder.

Na verdade, parecia não haver nada para onde ele pudesse voltar na Grã‑Bretanha. Tinha obviamente decidido que viveria ou morreria, suportaria um casamento desfeito ou reconstruí‑lo‑ia, em Portugal.

Foi então que a vinte de Outubro a guilhotina caiu sobre a mais antiga das alianças europeias: o príncipe D. João declarou guerra à Grã‑Bretanha. Mas a surpresa iria ser dele ‑ Napoleão e os seus lacaios espanhóis tinham feito planos para traírem o seu tratado com Portugal e dividir o país entre si. Um exército misto de franceses e espanhóis, composto de dezoito mil homens e comandado pelo general Junot atravessou a nossa fronteira no final de Outubro.

Um comboio de barcos foi enviado de Inglaterra para recolher os britânicos que quisessem fugir do Porto, onde muitas das suas famílias viviam há gerações. William Warre, o cônsul britânico, foi o último a embarcar. Quando o navio partiu, ele levantou o punho a todos aqueles de nós que tinham ficado em terra, mas a minha mãe limitou‑se a franzir o sobrolho quando lhe contei aquele gesto de desafio.

‑ É fácil para um homem pregar a coragem quando não corre qualquer perigo ‑ comentou.

Depois disse ao meu pai e a mim que tínhamos de enterrar todos os nossos valores no jardim.

Nunca tendo conhecido uma ocupação estrangeira e tendo ouvido o Professor Raimundo elogiar os Franceses como pessoas honradas, isto pareceu‑me uma precaução ridícula. Todavia, não querendo arriscar‑me a irritá‑la, fiz o que me pediu. Ela e eu envolvemos os seus poucos anéis e colares em toalhas de linho, juntamente com as nossas pratas, incluindo a sua adorada menorah. Depositámos tudo em túneis que eu e o meu pai escavámos por baixo do roseiral.

Depois cavámos outros buracos mais ao acaso, enterrando ninharias de pouco ou nenhum valor. A nossa ideia era que os Franceses descobririam estes rapidamente e retirariam os seus conteúdos quase sem valor, deixando intactos os esconderijos mais importantes.

‑ E o pianoforte? ‑ perguntei eu. ‑ Como é que o vamos esconder? A Mamã gemeu.

‑ Não te preocupes, May, eu encarregar‑me‑ei disso.

O meu pai estendeu a mão para a acalmar, mas ela sacudiu o braço. Acabámos por transportá‑lo para o escritório dele, virámo‑lo ao contrário e cobrimo‑lo de livros e papéis.

Mais tarde, quando nenhum dos meus pais estava em casa, também eu tive a precaução de enterrar os pertences de Meia‑Noite, juntamente com as máscaras de Daniel, o seu talismã, o gaio que tínhamos esculpido e dado à Mamã e o azulejo com um tritão que as irmãs Oliveira me tinham oferecido quando eu tinha apenas nove anos. Fiz isto em segredo porque receava que os meus pais me dissessem que estas lembranças não eram suficientemente valiosas para tantas precauções.

A vinte e nove de Novembro, quando as tropas francesas e espanholas estavam apenas a um dia de distância de Lisboa, o príncipe D. João e a restante família real, juntamente com os nossos ministros e grande parte da nossa aristocracia, fugiram para o Brasil. Depressa chegou ao Porto a notícia de que carregavam a bordo dos seus barcos mais de metade da moeda do país. O milagre nesse dia foi que nenhum dos navios, carregados daquela maneira, mergulhou directamente para o fundo do porto de Lisboa.

Devíamos, pelo menos, ter podido abençoar as horríveis estradas do campo português por atrasarem o progresso do inimigo que marchava sobre Lisboa. Contudo, não podíamos. Os oficiais franceses e o seu exército misto ficaram tão infelizes com este avanço tortuoso que se compensaram com pilhagens e assassinatos.

Mal os soldados chegaram ao seu destino final e passaram os portões da capital portuguesa a treze de Novembro, multidões extasiadas de Jacobinos e francófilos rodearam‑nos, chegando mesmo as mulheres a atirar‑lhes rosas das varandas. Depois de os terem saudado nas tabernas e nas ruas, eles dormitaram nas praças e jardins, sonhando, muito provavelmente, com os seus entes queridos na terra natal. A dormirem ou não, estes invasores esgotados e homicidas, longe dos seus, eram os nossos novos governantes.

 

Durante OS sete meses de ocupação que se seguiram, tudo esteve razoavelmente calmo no Porto. O nosso comércio de vinho com a Inglaterra, embora proibido, continuava a processar‑se e garantia à cidade alguma segurança financeira. Os nossos navios dirigiam‑se primeiro para portos do Norte, como Roterdão, onde a sua carga era transportada para outros barcos que seguiam para Portsmouth e Southampton. No entanto, o correio vindo da Grã‑Bretanha não chegava até nós e, por isso, não recebíamos notícias directas dos nossos compatriotas que tinham partido meses antes.

Os meus pais andavam demasiado absorvidos na sua silenciosa guerra pessoal para se preocuparem com isso. Quase nunca se viam, uma vez que o meu pai passava a maior parte do tempo a trabalhar. Dos dois, era quem mais tinha mudado desde a morte de Meia‑Noite. Agora tinha o cabelo cortado curto, grisalho dos lados e a rarear no cimo. As faces estavam escalavradas e os olhos azuis, tão radiosos quando eu era pequeno, estavam claramente frios e distantes.

Falei seriamente com eles sobre o que acontecera à nossa família apenas uma vez. Era o meu décimo sétimo aniversário e acordei de mau humor, decidido a dificultar a vida a toda a gente. Três semanas antes, o meu pai tinha‑me dito que, no momento em que lhe fosse dada autorização para voltar a viajar para montante do rio, eu começaria a aprender a avaliar terras, testar solos e plantar vinhas. Tinha decidido que eu iria ganhar a vida no comércio do vinho. Embora eu tencionasse opor‑me, reconhecia que era melhor escolher rapidamente uma profissão. Mas não fazia a menor ideia de como utilizar de forma proveitosa o meu amor pela arte e pelos livros.

Como era dia de aniversário, a minha mãe tinha feito rabanadas para o pequeno‑almoço. O meu pai deu‑me uma gravata de seda azul que tinha pertencido ao pai dele. Depois, como era costume, fugira para o escritório.

Mal ele tinha saído a porta, perguntei à minha mãe:

‑ Diga‑me a verdade: odeia o Papá? Ela franziu a testa, desagradada.

‑ Odiar o teu pai? Às vezes tens umas ideias tão estranhas, John.

‑ Mamã, a senhora nunca fala com ele. Costumava tocar música para ele. Costumava sorrir‑lhe disfarçadamente quando pensava que ninguém estava a ver. Já se esqueceu?

‑ John, as pessoas mudam. Já não somos tão novos como éramos.

‑ Isso não tem nada a ver.

‑ Ouve, todos nós cometemos erros. Eu cometi... o teu pai também. Mas não o odeio.

‑ Que erros é que a senhora cometeu?

Ela olhou para mim como se eu tivesse falado numa língua estrangeira.

‑ John, pode ser o teu dia de anos, mas ainda és muito novo e não admito que me fales assim.

‑ Como é que eu estava a falar?

‑ Como um acusador. Não estou a ser julgada, tanto quanto sei.

‑ Se calhar, devia estar. Talvez um julgamento vos fizesse bem.

‑ Já chega!

Ela estava a tremer e, embora estivesse terrivelmente envergonhado comigo mesmo, não consegui controlar a minha raiva. Imaginei o piano‑forte da minha mãe, que, naquele momento, parecia uma extensão do seu ser mais privado. Queria feri‑la, onde mais lhe doesse. Agarrei num prato. Imaginei subir as escadas e parti‑lo contra a madeira de ébano, fazendo lanhos fundos que nunca mais poderiam ser reparados.

Secretamente, desejava que o ódio dela também me deixasse cicatrizes e, provavelmente, foi por isso que levantei o prato acima da cabeça e bati com toda a força no crânio. Como já tinha tido ampla oportunidade de aprender, as pessoas infelizes fazem coisas desesperadas.

Felizmente, o prato não causou estragos graves. Apalpei a cabeça à procura de sangue e olhei para a minha mão: nada. A mãe voltou‑se e viu os bocados de porcelana partidos espalhados pelo chão. A agitação devia tê‑la feito ficar espantosamente pouco observadora e não se apercebeu dos bocados de louça ainda no meu cabelo, tendo sido por isso que começou a fazer‑me um sermão sobre a minha falta de cuidado.

Interrompi‑a .

‑ Raios, mãe! Não é capaz de lhe perdoar?

‑ Não me levantes a voz, John Zarco Stewart!

‑ Não é capaz de perdoar ao pai? Responda‑me ou eu parto toda a louça desta casa! Todos os malditos moinhos em todos os pratos! Garanto‑lhe que o faço.

‑ Tu... tu estás a confundir‑me... como sempre. Não percebo de que é que estás a falar.

‑ Mamã, nós os dois sabemos que ele devia ter protegido Meia‑Noite. Mas não o fez. E Meia‑Noite está morto. O Papá está vivo. Não lhe podemos perdoar? Eu tentarei fazê‑lo se a senhora o quiser fazer.

‑ John ‑ franziu a testa e abanou a cabeça ‑, há tanta coisa que tu não sabes.

Fechou os olhos.

‑ Mamã, diga‑me o que é que está a pensar. Prometo não interromper.

Pegou‑me na mão.

‑ Tiveste sempre uns dedos tão bonitos. Já em bebé. ‑ Sorriu pensativamente. ‑ Quando eras muito pequenino, a tua mão não era maior do que uma ameixa. E os teus dedos... ‑ olhou‑me ternamente e acariciou‑me as faces, o que já não fazia havia meses. ‑ Todos eles eram tão delicados, tão bem feitos... tão perfeitos...

‑ Não há nada que me possa dizer sobre o Papá? Não lhe pode perdoar? ‑ voltei a perguntar.

Soltou um suspiro exausto.

‑ Não é uma questão de perdoar. As pessoas envelhecem. Não podes esperar que sintamos um pelo outro a mesma coisa do que quando eras pequeno. ‑ Largou‑me a mão e olhou fixa e tristemente em frente. ‑ Não, ele não é o mesmo homem com quem casei e eu, de certeza absoluta, não sou a mesma mulher que ele cortejou. As pessoas mudam.

‑ O que a senhora está a dizer, Mamã, é que já não o ama. Ficou chocada.

‑John, o que é que tu sabes do amor?

‑ Tanto como a Mamã.

Riu‑se escarninhamente, como se eu estivesse a ser absurdo. Fiquei furioso. Dei um murro na mesa e gritei:

‑ Eu amava Meia‑Noite e a Mamã amava Meia‑Noite. Eu amava o pai e a Mamã amava o pai. Não da mesma maneira, eu sei. Mas somos assim tão diferentes um do outro?

‑ John, temos mesmo de falar destas coisas? ‑ perguntou numa súplica exasperada.

‑ Sim. Não falo de Meia‑Noite há demasiado tempo. Até parece que ele nunca existiu.

‑ Talvez tivesse sido melhor que nunca tivesse existido. Ou que tivesse continuado em África.

‑ Não está a falar a sério.

‑ Bem, de certeza que teria sido melhor para ele, não te parece? Fiquei sem palavras. Foi a última vez que falei dele com qualquer dos meus pais durante muitos anos.

O mês de Maio chegou com uma série de proclamações do general francês Junot, informando‑nos do amigo leal de Portugal que ele era e do maravilhoso que iria ser o seu reinado. Foi então que Napoleão cometeu um erro fatal. Prendeu a família real espanhola e entregou a Coroa ao seu irmão Joseph. O corajoso povo de Madrid revoltou‑se e obrigou o exército ocupante a fugir para as montanhas. A notícia desta vitória tremenda depressa chegou a outras cidades e vilas, dando origem a um levantamento por toda a Espanha que depressa dizimou os Franceses e os deixou a pensar se uma retirada rápida para Paris não seria o mais indicado para os seus batalhões.

Isto veio a revelar‑se benéfico para nós, visto que um governo provisório na cidade galega da Corunha depressa ordenou às tropas espanholas que abandonassem o Porto. E não foi apenas isso, numa demonstração gloriosa de solidariedade, também fizeram com que os soldados franceses se fossem igualmente embora.

Depressa foi criado no Porto um governo provisório chefiado pelo nosso idoso bispo, D. António de Castro. Os Britânicos, que tinham estado à espera de poder abordar uma autoridade local amiga, enviaram‑nos setenta navios, com uma tripulação de dez mil homens, incluindo mil soldados portugueses previamente arregimentados em Inglaterra. Comandados por Sir Arthur Wellesley, que mais tarde recebeu o título de duque de Wellington, os primeiros destes barcos libertaram o banco de areia que guardava a foz do nosso rio na manhã do dia vinte e quatro de Julho. Wellesley, em pessoa, chegou no H.M.S. Crocodile(1), um nome que me fez pensar em Meia‑Noite e nas suas histórias. Como ele teria ficado excitado ao ver uma frota de navios de mastros altos com a bandeira da Grã‑Bretanha desfraldada,

 

*1. H. M. S. Crocodile ‑ Navio de Sua Majestade, Crocodilo. (N. da T.)

 

a subirem o rio em direcção ao nosso porto!

Quando as tropas britânicas e portuguesas desembarcaram, foram recebidas com grandes aplausos. Eu próprio vi Wellesley de relance nesse dia, montado num enorme cavalo de batalha branco na Praça da Ribeira. Contudo, no dia seguinte, a maior parte destes soldados britânicos seguia para a Figueira da Foz, a meio do caminho para Lisboa, onde planeavam iniciar a expulsão da praga gaulesa de Portugal.

Nesta altura, a guardar a cidade do Porto, ficou uma milícia de voluntários armados pelos ingleses. Eu treinei com esta força de reserva e aprendi a disparar um mosquete, descobrindo, com grande surpresa, que gostava bastante de ser soldado. Através de muito treino, tornei‑me tão bom atirador como qualquer dos outros recrutas e fui elogiado pelo nosso sargento pela minha rapidez a carregar e a disparar a arma. No entanto, felizmente, não fui chamado a combater.

Na sua campanha para expulsar os Franceses, a frota de Wellesley chegou à Figueira da Foz no dia um de Agosto e depois marchou sobre Lisboa ao longo da costa atlântica. As suas tropas depressa derrotaram o inimigo na Roliça e no Vimeiro ‑ com tal rapidez, de facto, e com tantas centenas de baixas, que, em vez de continuarem a ser humilhados, os Franceses se apressaram a assinar a Convenção de Sintra, em que concordavam em abandonar Portugal.

A partir daí, o combate deslocou‑se para Espanha, onde as forças conjuntas dos Britânicos e dos Espanhóis esperavam empurrar os Franceses para o seu próprio território e encurralá‑los aí. O único problema era um problema numérico; Napoleão em pessoa entrou em Espanha nesse mês de Novembro, chefiando nada menos que duzentos mil homens. O seu objectivo era lançar todo o seu poder contra estes insurrectos ibéricos e subjugá‑los de uma vez por todas. Embora nós, em Portugal, estivéssemos livres da guerra naquela altura, sabíamos que o pior ainda estava para vir.

 

De Agosto a Dezembro de 1808, subi o rio com o meu pai todos os meses durante pelo menos uma semana de cada vez, para aprender a sua profissão. Todavia, passado algum tempo, o meu pai começou a concentrar as suas instruções no levantamento topográfico e na elaboração de mapas. Era sua firme intenção que eu desse bom uso às minhas lições de desenho tornando‑me desenhador.

Ao longo de Outubro e Novembro, fiz bons progressos e, no princípio de Dezembro, o meu pai disse‑me que estava convencido de que eu poderia encontrar emprego como desenhador ou mesmo assistente de agrimensor para a Companhia do Douro. Quando não estávamos envolvidos nas nossas lições, o pai mantinha‑se reservado. Às vezes, ouvia‑o sair do Castelo de Macbeth às duas ou três da manhã, na nossa carruagem, para visitar, calculava eu, um bordel nas imediações. Isto incomodava‑me, mas não tanto como eu julguei que iria acontecer. Embora o seu adultério acabasse com as minhas esperanças de uma reconciliação com a minha mãe, achei que, se ele já não a amava, então bem podia arranjar algum consolo noutro lado qualquer.

Quando não estávamos a trabalhar, o meu pai estava geralmente taciturno. Eu teria gostado de lhe pedir que jogasse às cartas comigo ou me contasse uma história passada na Escócia da sua juventude. Ansiava por construir uma ponte até ele que o impedisse de mergulhar cada vez mais profundamente na sua infelicidade. De facto, enganei‑me a mim próprio durante meses, tentando convencer‑me de que conseguiria estabelecer esta ponte pela nossa nova relação de mestre e aprendiz. Tentei brilhar enquanto seu aluno para que ele se pudesse lembrar de que eu era seu filho.

Todavia, o meu pai tentou de facto aproximar‑se de mim na semana antes do Natal, na nossa última noite no Castelo de Macbeth.

‑ Vou dar‑te o teu presente agora, se não te importares ‑ disse‑me ele dando‑me uma palmadinha na coxa. ‑ Em vez de no Porto.

Depois de ter ido buscar um pequeno estojo de madeira e uma bolsa de tecido ao seu quarto, entregou‑mos.

‑ Por todo o teu árduo trabalho.

Dentro da caixa, encontrei uma navalha de barba com um cabo de osso e um lindo pincel de pêlo de texugo. O meu pai tinha‑me dito muitas vezes que ensinar um rapaz a fazer a barba era uma necessidade, pois assim ele nunca teria de entregar a cara aos dedos sujos de um barbeiro nem arriscar‑se a ficar desfigurado pelo deslize bêbado de uma mão. Piscando‑me o olho, acrescentou:

‑ As raparigas vão achar‑te mais bonito quando te tiveres barbeado como deve ser. Sabes, John, estou profundamente orgulhoso de ti. Não creio que diga isso com a frequência que devia. ‑ A voz embargou‑se‑lhe na garganta. ‑ Nem sequer tenho a certeza que o queiras ouvir. Mas estou realmente muito orgulhoso.

Fiquei profundamente comovido e disse‑lhe que estava grato para todo o sempre por ele ser meu pai.

Na bolsa de tecido, estava o meu primeiro par de calças a sério, que só recentemente tinham ficado na moda em Portugal.

‑ Papá, são maravilhosas! ‑ assegurei‑lhe, e ele sorriu de uma maneira que eu já não via há uma eternidade.

‑ A vida anda depressa, filho. Dou‑me conta disso agora. O dia seguinte chega ainda antes de termos olhado bem para o dia de hoje. Por isso, o importante é pensar bem nas consequências daquilo que fazemos. Pensar nelas com antecedência. É por isso que temos estado a trabalhar tão intensamente nesta tua nova profissão. Para termos a certeza de que estás preparado para o teu futuro.

Ele tinha começado a encher o cachimbo e eu perguntei‑lhe se lho podia preparar. Há anos que não lho pedia. Ele ficou muito surpreendido, mas, mesmo assim, estendeu‑me a bolsa com bom humor. Desempenhei a minha tarefa com um afecto e um respeito renovados, depois entalei o bocal do cachimbo entre os dentes, imitando a técnica dele, envolvi o fornilho com a mão e acendi‑o com uma brasa da lareira. Nunca tinha dado uma fumaça a sério e quase sufoquei.

Em vez de me agradecer ou até de se rir com a minha falta de jeito, o meu pai pareceu perturbado. Tentando disfarçar a sua infelicidade, disse‑me que eu precisava de me treinar a fumar, mas que era um hábito a que não me devia dedicar ainda durante um ou dois anos.

Eu não consegui perceber o que é que tinha feito de errado até que, deitado na cama nessa noite, me lembrei de que muitas vezes Meia‑Noite costumava partilhar com ele uma cachimbada à lareira.

Nessa noite, o meu pai entrou no meu quarto e acordou‑me.

‑ O que é que aconteceu? ‑ perguntei, sentando‑me na cama.

Sentou‑se ao meu lado. A vela que trazia fazia‑lhe depressões profundas de luz e sombra na cara. Imaginei que tivera outra vez o pesadelo de estar sozinho em nossa casa, connosco mortos.

‑ Quase me esquecia, John ‑ disse‑me ele. Segurei‑lhe o braço.

‑ Esquecia o quê, Papá?

Quando ele se inclinou para mim, senti o cheiro do brandy. Senti‑me dominado pelo pânico e comecei a falar rapidamente, mas ele interrompeu‑me.

‑ Não esperes nada de ninguém, filho. Assim nunca te sentirás desapontado.

‑ Papá? Papá, o que é que se passa?

‑ Ouve‑me com atenção, filho. Não esperes nada. Pois embora possas, se tiveres sorte, conseguir alguma ajuda na tua vida, ela não virá das pessoas de quem mais esperavas. Elas desapontar‑te‑ão quase sempre. Dou‑te um conselho: nunca te esqueças de que as pessoas são uns pequenos biltres, filho. Tanto na Grã‑Bretanha como em Portugal. ‑ Apertou‑me o pé por cima dos cobertores. ‑ Ouve‑me bem, rapaz! Faz sempre aquilo que precisares de fazer. Trabalha sempre muito. Sê egoísta se o tiveres de ser. E não contes com ninguém. Ninguém!

E dizendo isto, levantou‑se e saiu do quarto arrastando os pés descalços.

De manhã, o meu pai levou‑me para o quarto dele, pôs‑me em frente do espelho e ensinou‑me a fazer a barba. Estava calmo e firme e não fez qualquer referência ao seu discurso da noite anterior.

Quando me lembro dele neste período das nossas vidas, às vezes penso no «Colosso» de Goya. Sozinho, sentado sob uma lua em quarto crescente, de costas para quem olha para ele, o outrora poderoso gigante volta‑se para trás com uma expressão esperançosa, querendo encontrar um ente amado ali à espera, a quem ele pudesse dizer um último adeus.

A nossa última viagem rio acima foi na primeira semana de Janeiro de 1809 ‑ Fomos forçados a parar depois dessa data porque a guerra contra Napoleão em Espanha estava a correr muito mal e os fogos azuis de aviso tinham sido acendidos em todas as nossas fronteiras.

O princípio do mês de Março trouxe a entrada dos vinte e cinco mil soldados franceses do general Soult em Portugal pela nossa fronteira montanhosa do Nordeste. Depois de tomada a cidade de Chaves, os refugiados começaram a encaminhar‑se para o Porto. Os desgraçados traziam as suas vidas inteiras em carrinhos de mão de madeira.

Benjamim e eu distribuíamos pão e mel a estes infelizes, agora forçados a dormirem nas nossas praças e praias. Vê‑los enchia‑o de um temor respeitoso porque, como ele dizia, eram o Velho Testamento tornado presente. Quando lhe perguntei o que é que ele queria dizer, respondeu‑me:

‑ Eles são os israelitas no exílio e estiveram todos presentes no Monte Sinai para a entrega dos Dez Mandamentos. Não te lembras? Tu também lá estiveste!

Chamando‑me para perto dele, murmurou‑me ao ouvido:

‑ Os ensinamentos de Moisés são para todos os minutos da existência, John. Cada vez que vemos como a Tora se reflecte nas nossas vidas, estamos novamente no sopé do Monte Sinai.

A vinte e dois de Março, recebemos a confirmação de que Braga, a uns cinquenta quilómetros para nordeste, tinha sido tomada. Ao fim da manhã desse mesmo dia, o meu pai anunciou que tinha preparado tudo para sairmos da cidade. Três carruagens que pertenciam à Companhia do Douro partiriam secretamente às três da manhã de um porto minúsculo na parte oriental da cidade, mesmo por baixo do Seminário. A mãe e eu deixaríamos a cidade, mas o pai ficaria.

‑ Chegou a altura de eu combater ‑ disse ele. ‑ Se o Porto cair, juntar‑me‑ei a vós logo que puder. Não se preocupem, os Franceses não me apanharão.

‑ Papá, isso é uma completa loucura! Tem de vir connosco. Não permitirei que fique.

‑ Olha quem é que está a dar ordens! ‑ brincou ele.

Apesar do seu repentino bom humor, parecia exausto e tresandava a brandy. Eu não confiava nele para tomar conta de si próprio no estado em que estava.

‑ Papá ‑ disse eu ‑, se se recusa a vir connosco, então eu fico também, para combater a seu lado.

‑ John, isto não é um pedido. Vais subir o rio e esperar por mim com a tua mãe. Não te criei durante estes dezoito anos para te ver tombar com uma bala francesa.

A minha mãe concordou com ele e o pai abraçou‑me. Tentei empurrá‑lo, mas ele apertou‑me com força e deu‑me um beijo na face.

‑ Meu Deus, homem, devias fazer a barba mais rente ‑ gemeu ele.

‑ Ainda está áspera. As raparigas não vão gostar.

Antes de me soltar, olhou‑me longa e intensamente, talvez a imaginar como é que eu seria quando fosse um homem feito.

‑ Por favor, filho, tem paciência. Só vamos estar separados por pouco tempo ‑ disse em tom de desculpa.

Meteu a mão no bolso do colete e tirou o relógio de ouro com o mostrador de madrepérola. A corrente era a que tinha sido utilizada pela bruxa para o prender quando ele era um sapo.

‑ Guarda‑mo, filho ‑ disse ele, entregando‑mo. ‑ Vou querê‑lo de volta muito em breve.

Depois, como se estivesse envergonhado com este gesto de carinho, ficou de pé, com as mãos atrás das costas, a olhar pela janela.

Aceitei a sua oferta com gratidão, mas fiquei preocupado. Olhei para a minha mãe à procura de apoio para continuar a convencê‑lo a partir connosco, mas ela estava tão absorta com os seus próprios pensamentos que não disse nada.

Passei o resto do dia num estado de profunda melancolia. Depois do jantar, fui despedir‑me das irmãs Oliveira, que iam ficar na cidade uma vez que se recusavam a deixar a sua colecção de arte sem protecção.

‑ Se não voltares depressa, John, nunca mais te deixaremos olhar para outro Goya! ‑ avisou‑me Luna.

Também fui fazer uma visita a Benjamim na companhia do meu pai. Os seus dois filhos já tinham saído da cidade, mas ele tinha decidido ficar.

‑ Um boticário é sempre preciso a seguir a uma batalha ‑ disse ele.

‑ Por isso, tenho a certeza que os Franceses não me farão grande mal.

A mãe foi a casa da Avó Rosa para lhe dizer que o pai lhe tinha reservado um lugar na nossa carruagem, mas as janelas de casa dela estavam todas entaipadas. Os vizinhos disseram‑lhe que ela já tinha partido para Aveiro, para junto dos filhos.

Nessa noite, o pai, a mãe e eu fomos para a cama, mas quase não dormimos uma vez que tínhamos que acordar às duas da manhã. Quando o Papá enfiou a cabeça no meu quarto para me acordar, disse‑lhe:

‑ Tem a certeza que não vem connosco? Estou tão preocupado..‑Não consigo pensar em mais nada!

‑ Não, já não posso continuar a deixar que os outros lutem por mim. Agora, Portugal é o meu país. Estou demasiado velho para voltar para Inglaterra ou para a Escócia.

‑ Não está muito velho, Papá.

‑ Tenho cinquenta anos, John. ‑ Abanou a cabeça. ‑ Não fazes ideia de como estou cansado.

‑ Estamos todos cansados, Papá. O senhor trabalha demasiado e está permanentemente preocupado. Podíamos ir para Inglaterra e ficar uns tempos com a Tia Fiona. Eu posso arranjar trabalho lá e o senhor poderá ficar sentado à lareira a ler. Eu me encarregarei de nos sustentar a todos.

‑ Isso é uma oferta muito generosa, filho, e, se os tempos fossem diferentes, eu até talvez pudesse aceitar, mas estou demasiado velho para mudar. Irás compreender quando chegares à minha idade.

‑ Mas promete que vai ter connosco?

‑ John, a vida é imprevisível. Isso é uma promessa que não posso fazer, mesmo que quisesse.

‑ Não me irei embora, a não ser que o senhor jure que vai ter connosco.

‑ Muito bem, prometo ir ter contigo e com a tua mãe lá acima.

Falou de uma maneira demasiado despreocupada para que eu pudesse acreditar. Mas antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, ele apertou apaixonadamente os lábios contra os meus, como se fôssemos amantes que se despediam. Depois bateu as palmas, dizendo:

‑ Agora levanta‑te e veste‑te! Saímos daqui a um quarto de hora. Vai haver comida na carruagem, até mesmo chá. Eu disse‑lhes que se não houvesse chá, o meu filho transformar‑se‑ia num monstro dos lagos ‑ um kelpie irado!

Despedi‑me de Fanny e Zebra, que iam ficar, com o pai, pois não eram autorizadas a andar nas carruagens. Abracei ambas e disse‑lhes para tomarem conta dele. Fanny deu um salto e pôs‑se de pé em cima dos meus ombros tal como tinha feito naquela noite de São João, tantos anos antes. No meio das lágrimas, disse‑lhes que não ladrassem nem uma única vez se ouvissem soldados. Em resposta, limitaram‑se a lamber‑me, senti que estava a deixar o meu coração com elas.

A mãe, o pai e eu saímos rapidamente de casa para a escuridão fria e ventosa. Eu levava o meu mosquete e o pai a sua pistola. Ele começou a cantar baixinho «Barbara Allen». Juntei‑me a ele e seguimos de mãos dadas.

A minha mãe não disse nada, embora olhasse furtivamente para o meu pai ‑ com uma admiração contrariada, penso eu. Ela devia ter reparado que eu e ele tínhamos feito um esforço para nos reconciliarmos durante aquelas últimas semanas. Estava convencido que ela aprovava isso no que me dizia respeito, ainda que não sentisse o mesmo quanto a ela.

Depois o Papá cantarolou uma canção que eu não conhecia. Sendo bom em melodias, mais tarde consegui anotá‑la e mandar a sua transcrição para a Healey's Music Shop, em Londres. Recebi uma resposta identificando a canção como «Now O Now I Needs Must» do compositor isabelino, John Dowland. Atrever‑me‑ia a supor que a minha mãe também conhecia esta melodia e que o Papá a cantou para ela, como uma última tentativa para conseguir o seu perdão. A letra devia espelhar os seus sentimentos e esperanças para o futuro naquela ocasião:

 

     Now o now I needs must part,

     Parting thougb I absent mourn.

     Absence can no joy impart,

     Joy once fled cannot return.

     Dear when I am from thee gone,

     Gone are all my joys at once,

     I love thee and thee alone,

     In whose love I joyed once.

     And although your sight I leave,

     Sight wherein my joys do lie,

     Till that death do sense bereave,

     Never shall affection die.(1)

 

     Versão livre:

     Agora Ó agora tenho que partir,

     Mas partindo choro a ausência.

     A ausência não pode dar nenhuma alegria,

     A alegria, uma vez fugida, não pode voltar.

     Querida quando eu me encontro longe de ti,

     Logo todas as minhas alegrias se vão,

     Amo‑te a ti e só a ti,

     Em cujo amor outrora me alegrei.

     E embora dos teus olhos eu parta,

     Olhos onde as minhas alegrias estão,

     Até que essa morte arrebate a razão,

     Nunca o afecto morrerá. (N. da T.)

 

A minha mãe manteve os olhos fixos no chão enquanto ele oferecia esta canção à noite. A sua distância gelada silenciou‑lhe claramente qualquer última esperança que ele ainda tivesse, pois quando acabou a canção, não tentou mais nenhuma.

Ao fim de vários quilómetros, chegámos a uma clareira rodeada por carvalhos gigantescos que escondiam três grandes carruagens. Já estavam nove pessoas a bordo. O pai trocou umas palavras com o cocheiro enquanto nós travávamos conhecimento com os outros passageiros.

Quando os sinos da cidade deram as três horas, a mãe e o pai beijaram‑se na cara e ele ajudou‑a a subir para o seu lugar. Abracei o meu pai durante muito tempo. O meu coração batia com toda a força, avisando‑me de que nunca mais o voltaria a ver nesta vida.

Inalei o seu agradável cheiro e entreguei‑me ao seu calor. Por fim, ele afastou‑me, sorriu para esconder a angústia e entregou‑me o cachimbo e a bolsa do tabaco.

‑ Fica com isto, meu querido John ‑ disse‑me, dando‑me um beijo na testa.

‑ Mas Papá...

‑ Pega nisto e sobe. E pensa frequentemente no teu pai que só sente amor por ti. Fica bem, meu filho.

Os meus passos ao entrar na carruagem foram os mais pesados de toda a minha vida.

‑ E May ‑ disse o meu pai à minha mãe pela janela da carruagem ‑, eu carregarei para sempre o fardo da culpa; por isso, não é necessário que tu também o faças. Só um de nós precisa de ser condenado. Liberto‑te.

O meu pai recuou vários passos e gritou ao cocheiro que podia seguir caminho. Partimos e eu não consegui conter a minha mágoa. Enquanto o meu pai me dizia adeus, vi que as lágrimas também lhe corriam livremente pela cara. Inclinando‑me para fora da janela, gritei‑lhe:

‑ Vamos voltar para junto de si, Papá, e vai ficar tudo bem! Como gostava de lhe ter conseguido dizer algo de mais importante ‑ palavras que o pudessem ter feito mudar de opinião. Quando olhei para a minha mãe, ela estava a olhar para os raios do luar que brincavam como se fossem peixes de prata na superfície da água, com medo de olhar para mim.

Dois dias mais tarde, estávamos alojados numa pequena casa húmida na margem norte do Douro, a poucas léguas da Régua. A minha mãe

estava de muito mau humor devido à sujidade e à fuligem, e a primeira coisa que fez assim que chegámos foi lançar‑se num frenesim de limpeza.

Durante quatro semanas, sobrevivemos com nabos, batatas e couve‑lombarda, fazendo tudo o que nos era possível para nos mantermos secos e de boa saúde, uma vez que o tempo se tinha tornado húmido e ventoso. Mas estávamos em segurança e isso é que era importante.

Enquanto estávamos lá em cima, os Franceses desceram sobre o Porto, fazendo soar as trombetas como se estivessem prontos para se divertirem. Tanto quanto posso concluir, o meu pai tinha passado os primeiros dias depois da nossa partida a preparar‑se para combater, praticando com a pistola no jardim, armazenando pão, bebendo whisky e cuidando de Fanny e Zebra, a quem deixava dormir na sua cama.

O Senhor Benjamim tinha entaipado a loja e mudara‑se para a cave. Não sabia usar uma arma de fogo, mas tinha sempre consigo uma velha espada enferrujada que estava na família há muitas gerações. Tinha um punho de prata, claro, exactamente o indicado para um alquimista judeu, uma vez que a finalidade do trabalho deles não é criar ouro, mas sim descobrir a essência da prata em todas as criações de Deus.

As irmãs Oliveira continuaram a desenhar e a moldar os seus frutos todos os dias. À noite, dormiam na mesma cama, muito abraçadas uma à outra. Uma vez que eram judias, perguntavam‑se se iriam ser queimadas vivas, visto que os soldados franceses tinham fama de serem violentamente anti‑semitas. Resolveram que, se isso acontecesse, pediriam para serem atadas juntas.

Em resposta a um chamamento às armas naquela fatídica manhã, o meu pai juntou‑se a um grupo de tropas portuguesas já posicionadas na Porta do Olival, muito perto de nossa casa. No entanto, pouco depois de o combate ter começado, os bombardeamentos da artilharia pesada francesa e a superioridade do poder dos seus mosquetes foram demasiado para os defensores da cidade. Os homens caíam aos montes, húmidas rosas vermelhas florindo‑lhes no peito.

A batalha na Porta do Olival ficou perdida em poucos minutos. Milagrosamente, o meu pai só tinha apanhado um tiro de raspão numa perna. Arrancando um mosquete da mão de um camarada morto, correu com vários outros homens para as defesas orientais, perto da Igreja do Bonfim, onde naquela altura se tinha começado a combater. Travou‑se ali uma batalha terrível durante perto de quatro horas e, durante esse período, cerca de dez mil residentes da cidade tiveram tempo para fugir pelos portões do Porto. O Papá depressa chegou à conclusão de que seria mais útil a ajudar a cuidar dos feridos do que como um fraco atirador e foi nessa condição que serviu durante quase todo o combate. Quando pouco passava das onze horas, tornou‑se claro para todos que a causa estava perdida. Cerca de duzentos homens, entre os quais o meu pai, retiraram para o Paço Episcopal.

Centenas de soldados de cavalaria franceses levaram então a maior parte da infantaria para dentro do Porto. Alguns valentes residentes continuaram a disparar as suas pistolas dos pátios e das janelas, mas depressa foram silenciados. O meu pai e os outros soldados que tinham chegado ao Paço estavam perfeitamente conscientes de que a sua causa estava perdida, mas esperavam conseguir deter as forças francesas enquanto pudessem a fim de darem oportunidade às pessoas do Porto para fugirem. As tropas francesas depressa arrastaram os canhões para a praça em frente do Paço, onde dispararam sem dó nem piedade.

A ponte de barcas que atravessava o Douro era a única forma de escapar, e milhares de pessoas fugiram nessa direcção. Ao som do rugido ensurdecedor dos tambores, a cavalaria francesa carregou desde a parte de cima da cidade até ao rio, disparando indiscriminadamente e abrindo caminho com as espadas pelo meio da multidão aterrorizada. À vista do inimigo, a artilharia portuguesa estacionada no Convento da Serra do Pilar, no cimo da colina da margem oposta, abriu fogo. Foi nessa altura que a ponte cedeu sob o peso das pessoas aterrorizadas que teve de suportar. Com um gemido de mau agoiro, partiu‑se, atirando duzentas ou trezentas pessoas para o rio. Não havia qualquer esperança para eles, mesmo para os bons nadadores. Encontraram a morte nos braços ávidos do rio, tal como acontecera a Daniel sete anos antes.

Quantos se afogaram nesse dia, ninguém sabe dizer com exactidão. Eu só sei, por informações de boa fonte, que muitos corpos foram arrastados para a margem a jusante do rio, atraindo uma nuvem de gaivotas como nunca se tinha visto antes. Entre os mortos estavam o Mestre Tiago, o pedreiro, e a mulher do Tio Policarpo, Josefina, juntamente com os seus dois filhos. Corpos inchados e de olhos glaucos estavam ainda a ser tirados do rio três dias depois e, durante vários anos, os pescadores queixaram‑se que as linhas estavam constantemente a enrolar em botas, perucas e mesmo crânios.

Os três dias de violência que se seguiram foram tão horrendos que não creio que algum habitante do Porto venha alguma vez a ser capaz de pensar nos Franceses sem desejar vingança. As irmãs Oliveira, como muitas outras mulheres, foram cruelmente violadas por bandos de soldados. Graça teve uma hemorragia na noite de vinte e nove, entrou em coma e morreu nos braços da irmã no dia seguinte. Diria que o espírito de Luna se quebrou exactamente ao meio. Nunca perdoarei o que lhes fizeram.

Quanto a Benjamim, logo após os Franceses terem entrado pela Porta do Olival, ouviu uma pessoa na sala de visitas. Enganado por um grito de socorro lançado em português através da porta trancada da cave, precipitou‑se pelas escadas acima, transportando a espada enferrujada, e viu‑se confrontado com um jovem soldado francês. O sorriso triunfante deste despertou o guerreiro que havia em Benjamim e, quando o francês apertou o gatilho da arma, falhando o tiro, o boticário atacou violentamente, ferindo mortalmente o inimigo no pescoço. Benjamim correu então para a margem do rio. Como isto aconteceu antes do colapso da ponte das barcas, conseguiu atravessar para a outra margem. Continuou para sul e escondeu‑se nas matas ao longo da estrada que levava a Espinho, só tendo regressado à cidade depois de andar escondido durante cinco dias. Por duas vezes durante a sua fuga, um regimento de soldados gauleses esteve a cem passos dele e, por duas vezes, ele se deitou ao comprido com a cara colada ao chão, recitando silenciosamente orações hebraicas pela alma do jovem que tinha morto.

As minhas adoradas Fanny e Zebra não foram tão afortunadas. Nunca mais voltei a vê‑las.

Apostaria que na manhã da grande batalha o meu pai as fez sair para o jardim, pois encontrei aí um prato de ossos, muito provavelmente de alguma galinha que ele tinha surripiado. Quando os soldados franceses rebentaram as dobradiças da porta da frente da nossa casa, as duas cadelas deviam ter cuspido fogo como dragões escoceses ‑ e foram sumariamente executadas, não tenho a mínima dúvida.

Mas não encontrei nenhum sangue. Possivelmente, tinha‑se infiltrado na terra do jardim. Os corpos delas devem ter sido lançados para os montes de lixo com o resto dos mortos e queimados. Só espero que não as tenham feito sofrer.

A minha mãe e eu deixámos o nosso refúgio rural e voltámos para o Porto no dia três de Abril, quando nos chegaram as notícias do saque da cidade. Como não havia barcaças para nos levar rio abaixo, fomos a pé. Nunca teria acreditado que a minha mãe conseguisse andar uma tal distância ‑ umas vinte léguas, pelo menos ‑, mas era impelida a avançar pelo terror, como se um metrónomo a arder batesse dentro dela. Todos os dias caminhávamos desde o cantar do galo até ao meio‑dia, altura em que, com o sol a pino, descansávamos na beira da estrada à sombra primaveril dos pinheiros. Depois continuávamos até ao pôr do Sol, arranjando abrigo em casas de quintas ou em celeiros.

Os camponeses que encontrámos eram bondosos, dispensando‑nos a generosidade que muitas vezes encontramos por acaso. Uma velha sentou‑se num campo a mascar couve crua e a observar o céu nocturno na minha companhia. Disse‑me que as estrelas não eram caçadores, como Meia‑Noite dissera, mas sim sementes espalhadas por Deus. A própria terra era uma dessas sementes.

Olhando para a Via Láctea, perguntei para comigo onde estaria Violeta. Esperava ardentemente que tivesse fugido de Portugal para a América.

Onze dias depois de termos iniciado a nossa caminhada, avistámos a Torre dos Clérigos de uma clareira a várias léguas de distância da cidade. A minha mãe e eu debulhámo‑nos em lágrimas.

A nossa casa tinha sido saqueada e toda a porcelana da minha mãe fora quebrada. A clarabóia da Torre de Vigia tinha sido estilhaçada e a chuva tinha entrado, encharcando todo o andar de cima da casa.

Não tivemos coragem para cavar por baixo das roseiras, por isso não sabíamos se as nossas pratas e jóias estavam a salvo. O pianoforte estava intacto, ainda soterrado debaixo dos livros.

A casa da Avó Rosa continuava entaipada e o senhor Benjamim, que já tinha voltado para casa nessa altura, disse‑nos que tinha ouvido dizer que ela continuava em Aveiro e que estava tudo bem.

O meu pai desaparecera. A minha mãe e eu procurámos desesperadamente alguém que o pudesse ter visto ou falado com ele e, finalmente, encontrámos um vizinho do fundo da rua que o tinha visto sair de nossa casa na madrugada do dia vinte e nove. Ninguém voltara a vê‑lo desde então.

Dois dias depois, soube qual tinha sido o seu destino através de um jovem sargento dos Lusitanos Leais, um dos poucos que tiveram a sorte de sobreviver ao fogo dos canhões no Paço Episcopal. Chamava‑se Augusto Duarte Cunha e encontrei‑o numa das enfermarias a abarrotar de gente do Hospital de Santo António, onde recuperava de uma ferida de bala no peito.

Com a sua pronúncia e ar estrangeiros, o meu pai fora uma figura memorável, e o sargento sabia exactamente a quem é que eu me referia mal o comecei a descrever.

‑ Lembro‑me muito bem dele ‑ disse Cunha, convidando‑me a puxar uma cadeira para junto do seu catre.

Cheio de esperança, perguntei:

‑ Sargento, sabe se... se o meu pai sobreviveu ao ataque francês?

‑ Não, lamento muito, meu filho ‑ respondeu gravemente. ‑ Eu estava com ele quando chegou o fim.

‑ O... senhor viu‑o morrer?

‑ Sim, estava mesmo ao lado dele.

Lutei para não chorar, mas, por fim, acabei por correr para o corredor, onde escondi a cara contra a parede. Quando voltei para a enfermaria, o Sargento deu‑me um aperto de mão dizendo:

‑ Tu gostavas muito do teu pai, John. Era um valente. Tenho muita pena.

‑ Por favor... por favor, conte‑me tudo o que puder sobre as últimas horas dele.

‑ Vou contar‑te aquilo que sei, mas tens de compreender, os ataques franceses sucediam‑se, uns atrás dos outros, e nós estávamos em grande inferioridade numérica. O tempo para conversar era escasso.

‑ O meu pai lutou ao seu lado?

‑ Sim, ele tinha uma pistola ‑ uma antiguidade qualquer. Não era muito boa, lamento dizer. Mas isso não o impediu de tentar. O teu pai era um bom atirador, mas estava destreinado.

O sargento descreveu‑me então a batalha na Porta do Olival, e como o meu pai tinha apanhado uma bala na perna.

‑ Pouco tempo depois ‑ disse ele ‑, quando a batalha se deslocou para perto da Igreja do Bonfim, o teu pai pousou o mosquete que tinha tirado a um soldado morto e ajudou a tratar dos homens feridos. Para os rapazes novos, ter um homem velho a cuidar deles era tranquilizador.

‑ Isso foi tudo no dia vinte e nove?

‑ Exactamente, John.

‑ E quando conseguia conversar com ele, de que é que falavam?

‑ Lembro‑me de que a primeira coisa que lhe perguntei foi o que o tinha feito decidir viver em Portugal.

‑ E o que é que ele respondeu?

‑ O amor e o vinho. ‑ O sargento soltou uma gargalhada. ‑ A princípio não acreditei, mas depois ele garantiu‑me que era pura verdade. O teu pai disse‑me que os seus deuses eram Vénus e Baco.

‑ Ele trabalhava para a Companhia do Douro, mas queria ter a sua própria vinha... e queria que eu me associasse a ele. Casou com a minha mãe muito pouco tempo depois de ter chegado a Portugal. Estavam muito apaixonados.

‑ Ele falou‑me dela, John.

‑ O que... o que é que ele lhe contou? ‑ perguntei, receoso.

‑ O teu pai disse‑me que tinha um bom amigo que estava sempre a tentar transformar chumbo em prata. «Sargento», disse‑me ele, «eu fiz exactamente o oposto com o meu casamento.» Perguntei‑lhe o que é que queria dizer e ele disse‑me que tinha estragado tudo com a tua mãe. John, acho que ele me confessou isso porque todos nós sabíamos que muito possivelmente não iríamos viver para ver outro dia. Obrigou‑me a prometer que amaria a minha mulher e os meus filhos acima de todas as coisas.

‑ Que mais é que ele lhe disse?

‑ Mais tarde, depois de termos retirado para o Paço Episcopal, voltámos a conversar. O teu pai disse‑me uma coisa estranha: «Afinal, talvez eu tenha conseguido passar no teste.»

‑ Qual teste?

O sargento Cunha meditou na minha pergunta.

‑ Ele não me quis dizer, meu filho. Só disse que quando tu voltasses lá de cima, te levaria a Amesterdão como te tinha prometido. Também estava a pensar levar‑te a Constantinopla. Disse que tinhas um avô que era de lá e antepassados desde há muitos séculos. Deu‑me a entender que estava a planear uma grande viagem pela Europa. «Quando tivermos acabado, iremos todos à Escócia», disse‑me ele. Ele queria levar‑te às muralhas do castelo de Edimburgo para veres a cidade toda. «Quero subir com a minha família o mais alto que conseguirmos e mostrar ao meu filho de onde é que viemos.»

‑ Disse mais alguma coisa?

‑ Repetiu que precisava de te tirar de Portugal. Tu precisavas de sair da «gaiola» que ele tinha feito para ti, como ele dizia, o que eu achei bastante estranho, mas ele explicou‑me que queria que tu visses coisas diferentes do mundo, que soubesses o que era a vida para além do Porto. Disse que tinha falhado em não to ter mostrado, mas que te iria compensar. Falava com grande determinação e esperança, digo‑te.

‑ E depois?

‑ Alguns minutos depois, apanhou uma bala na têmpora direita. Agradece a Deus por ele não ter durado muito.

‑ Morreu instantaneamente?

‑ Sim.

O sargento tinha boas intenções ao contar‑me isto, tenho a certeza, mas não me deu qualquer conforto. Depois contou‑me que os corpos dos homens que tinham combatido no Paço Episcopal, incluindo o do meu pai, tinham sido atirados para um monte em frente da Sé e queimados pelos Franceses.

‑ Pensa bem do teu pai. Morreu como um valente.

‑ Sim, mas ao morrer... ao morrer, falhou no teste.

‑ Falhou? Acho que não, John. Nunca estiveste numa guerra, mas deixa que te diga uma coisa ‑ todos os soldados experientes sabem que é uma questão de sorte. Não passas ou reprovas num teste que te é posto pela sorte, filho. Não, o teste, se é que era isso, era fazer o que se esperava dele: combater. E a esse respeito posso garantir‑te que ele pode não ter sido o melhor dos atiradores, nem mesmo o auxiliar mais capaz, mas arriscou a vida muitas vezes nesse dia, por vezes imprudentemente, para dar a centenas de pessoas no Porto tempo para fugirem pela ponte ‑ e para confortar os seus camaradas feridos e moribundos. Consideras mesmo que isso foi um fracasso?

Como exprimir os meus sentimentos nesta altura? O meu pai estava morto e a Mamã num desespero total depois de ter sabido qual tinha sido o seu fim. Fanny e Zebra tinham sido mortas. Tínhamos muito pouco dinheiro e eu não tinha nenhum meio de ganhar a vida. Não havia quase nada para comprar nos mercados e os vizinhos andavam a comer couro cozido para não morrerem de fome. Eu já não tinha a certeza de nada, nem sequer da minha identidade.

Uma vez que o corpo do meu pai não tinha sido sepultado, Benjamim e eu rezámos orações para garantir que a sua alma não iria vaguear pela terra.

Uma vez sonhei que ele não tinha morrido, mas sim fugido da infelicidade da nossa família para uma vida nova, atravessando a ponte. Depois disso, descobri que tinha muita pena de o não ter visto morto; sentia uma necessidade premente de confirmar com os meus olhos que ele tinha desaparecido ‑ e que nunca mais voltaria a contar‑me uma história de bruxas e monstros, nem a trazer‑me pedras das suas viagens rio acima, nem a pedir‑me para lhe ler...

Quanto à minha mãe, o cheiro dele na cama enlouquecia‑a. Nas raras ocasiões em que saía do quarto, era evidente que mal tinha dormido. Uma vez, depois de ter chorado nos meus braços, disse:

‑ Agora, o James está a ter a sua vingança.

Descobri que o que mais desejava agora era perdoar à minha mãe e ser perdoado por ela. Não tinha coragem para continuar a viver se isso significasse lutar contra ela. Ela devia ter sentido o mesmo, pois veio ter comigo uma manhã e prometeu amar‑me como me amara dantes.

Nunca mais levantámos as vozes ou dissemos qualquer coisa cruel. A nossa paz foi uma boa coisa; senti que tinha resgatado o pouco que ainda restava do meu coração.

Contei‑lhe o que o Papá tinha dito sobre levar‑nos à Escócia.

‑ Não sei, John ‑ replicou‑me ela. ‑ Não tenho a certeza que mesmo estarmos de pé no topo do mundo nos tivesse ajudado a mim e ao teu pai. Era capaz de só nos ter feito ver mais claramente os erros que cometemos. A perspectiva pode ser perigosa.

‑ Mas podíamos ter começado de novo na Escócia ‑ insisti eu. ‑ E a Mamã disse sempre que queria viver na Grã‑Bretanha.

‑ Isso é verdade, John. Mesmo agora é capaz de ser o melhor para nós. Embora confesse que assusta pensar nisso. ‑ Olhando lenta e pensativamente em volta da sala, continuou: ‑ Pelo menos, aqui tudo nos é familiar.

Vendo a minha decepção, acrescentou:

‑ John, não posso afirmar que sei como é que duas pessoas que se perderam na vida conseguem descobrir o caminho de regresso a casa. Talvez o teu pai soubesse. Talvez ter pegado em armas lhe tivesse ensinado o que é que precisava para lutar pelo nosso casamento. Pode ter visto as coisas de forma mais clara do que eu consegui. Receio já não te poder dar certezas e tenho muita pena por isso. Sei que mereces mais da tua mãe. Gostava que as coisas fossem diferentes.

‑ Mas a Mamã teria ido com ele se ele tivesse pedido?

Era vital para mim saber que teríamos feito o que ele pedira e, pelo menos, tentado começar de novo num sítio diferente.

‑ Não sei, John. Acho que teria sido melhor que só tu e o teu pai fossem. Eu teria arruinado tudo entre vocês os dois. ‑ Faltou‑lhe a voz. ‑ Como... como arruinei tantas coisas mais.

Desviou os olhos dos meus durante um momento e depois voltou a pegar no bordado, mas tinha as mãos a tremer. Agarrei‑as e sentei‑me ao lado dela. Era bom sentir a proximidade e o carinho que ainda conseguíamos sentir juntos ‑ parecia um sonho que eu julgava nunca mais voltar a ter.

De repente, uma revelação surpreendente fez com que me levantasse de um salto.

‑ Mamã, não está a ver? Se o Papá estava a fazer planos para nos levar a todos para a Escócia, então isso queria dizer que ele estava disposto a desistir da ideia de ter a sua própria vinha!

‑ Sim, suponho que sim, John.

Era evidente que ela não estava a compreender o significado mais profundo disto.

‑ Ele estava disposto a desistir até disso para voltar a conquistar o seu amor, Mamã! ‑ declarei eu. Ele nunca mais voltaria a subir o rio e a deixá‑la sozinha. Ele ia desistir de tudo para estar connosco e conseguir outra oportunidade.

A cara da Mamã ficou cinzenta. Gemeu quando lhe toquei; depois, sem forças, apoiou‑se em mim.

‑ Chega, John ‑ implorou. ‑ Por favor, não consigo continuar a ouvir falar do que poderia ter sido.

Passámos aquelas primeiras semanas pesadas de desgosto a reparar a nossa casa. Incapazes de pedir mais do que alguns nabos e feijões e umas quantas couves podres, passávamos a maior parte do tempo a morrer de fome. A Mamã apelou aos colegas que tinham trabalhado com o meu pai na Companhia do Douro, onde tínhamos investido todas as nossas poupanças, mas fomos informados que era impossível aceder às contas dele. Não podíamos desenterrar as nossas pratas para as vender, mesmo que clandestinamente, pois não nos podíamos arriscar a que os Franceses soubessem das nossas reservas.

Os Franceses condenaram‑nos a uma vida de miséria e continuaram a ser nossos hóspedes não desejados até três semanas depois do meu décimo oitavo aniversário, em doze de Maio de 1809‑ Nessa data sagrada da história da nossa cidade, as forças portuguesas e inglesas, sob o comando de Arthur Wellesley, o futuro duque de Wellington, expulsaram‑nos pela segunda e derradeira vez do Porto. A nossa cidade estava livre.

Mal se sentiu com coragem para sair de casa, a Mamã voltou a reunir‑se com os directores da Companhia do Douro para discutir os investimentos do meu pai. Nós sabíamos que vender os títulos da nossa terra na parte de cima do rio podia ser rentável e os antigos patrões do meu pai eram os compradores óbvios. A minha mãe fez‑lhes uma proposta para toda a nossa propriedade, mas a contraproposta deles era muito inferior ao que o meu pai tinha pago originariamente. Isto pareceu‑nos uma grande traição, mas a surpresa mais amarga ainda estava para vir. Quando ela lhes perguntou em que condições é que eu poderia ser contratado para trabalhar para a Companhia do Douro, como tinha sido o desejo do seu falecido marido, foi‑lhe dito em termos muito claros que eu nunca seria contratado, mesmo que tivesse as qualificações ideais!

E foi assim que a minha mãe ficou a saber o nível da animosidade que os colegas do meu pai tinham albergado contra ele por causa do seu desejo de ter a sua própria vinha. Também nunca lhe tinham perdoado por ter levado para os escritórios aquilo a que chamavam um «macaco gigante».

A nossa humilhação fez‑me recordar o aviso do meu pai para não contar com a ajuda de ninguém. Com toda a certeza, ele tinha sabido do ressentimento sentido por alguns dos colegas. Acabei finalmente por compreender por que razão ele queria tanto ter a sua própria terra e ser senhor do seu próprio destino.

No princípio de Julho, a Mamã leu‑me uma carta da Tia Fiona em que nos convidava a partilhar a pequena casa em Londres que comprara recentemente. Quando acabou de ler, dobrou a carta.

‑ Bem, John ‑ disse‑me então. ‑ Sabes que sempre esperei ter oportunidade de viver em Londres. Agora que o pior aconteceu, isso tornou‑se uma possibilidade real para nós. A tua Tia Fiona é uma mulher ponderada e não nos convidaria a irmos para Inglaterra se não nos quisesse lá. Ao princípio, eu não estava muito segura, mas agora ela e eu estamos convencidas que seria o melhor.

‑ Mamã, a senhora ficou convencida depois de ter sabido quais tinham sido os últimos desejos do Papá?

‑ Não sei, John. Já não tenho a certeza de saber o que penso.

A ironia amarga de podermos ir para Inglaterra agora que o meu pai tinha morrido fez‑me doer com o desejo de o ver.

‑ John, por favor ‑ implorou‑me ela ‑, peço‑te que não penses naquilo que o teu pai queria. Uma vez, há muito tempo, andaste obcecado com Daniel e com aquilo que pensavas que ele queria. Acabaste por saltar do cimo do telhado da nossa casa. Por favor, não cometas outra vez o mesmo erro.

Não deves ouvir tão atentamente os mortos. Não penses naquilo que o Papá queria. Já agora, nem sequer no que eu quero. Pensa só no que será melhor para ti.

‑ Não sei o que haverá para mim em Inglaterra ‑ disse‑lhe eu. ‑ O que é que farei em Londres?

‑ Para já, continuares a estudar.

‑ Como? Não temos dinheiro para isso.

‑ Descobriremos uma maneira. Confia em mim.

Mal ela me pediu isso, percebi que era exactamente o que eu já não conseguia fazer. Até me ocorreu que o meu pai também se estava a referir à minha mãe quando me dissera para não confiar em ninguém.

Os meus sentimentos resumiam‑se a isto: Não só o casamento dela tinha falhado, como ela também me tinha retirado o seu amor durante anos, por razões que eu não conseguia compreender. Até eu saber a verdade, podia perdoar‑lhe e amá‑la como sempre tinha feito, mas não podia confiar profundamente nela.

‑ Preferia ficar ‑ respondi‑lhe, em grande parte para a mortificar.

‑ Veremos ‑ disse ela, levantando‑se e dirigindo‑se para a escada. ‑ Vamos os dois pensar no que queremos e depois voltaremos a conversar.

Eram palavras de conciliação, mas percebi pelo seu tom que ela já tinha decidido.

 

A SÉRIE DE ACONTECIMENTOS aparentemente insignificantes que iria ter grande influência na minha decisão de ficar em Portugal e na escolha que fiz da minha profissão começou quando Mestre Gilberto, um oleiro local, fez uma visita a Luna Oliveira em meados de Julho, umas oito semanas depois de os Franceses terem sido expulsos do Porto. No momento em que ele bateu à porta, ela tinha acabado de descobrir uns desenhos de esfinges e outros animais mitológicos que eu tinha feito quando tinha onze anos. No canto inferior direito do primeiro, a irmã dela, Graça, tinha escrito afectuosamente:

‑Janeiro de 1802. À altura do potencial que reconhecemos nele. Mas precisa de disciplina.

‑ Que ilustraçõezinhas tão interessantes ‑ disse Gilberto a Luna, depois de as ter examinado com atenção. ‑ Quem é que as fez?

‑John Stewart. Um rapaz da nossa rua. Aquele a quem oferecemos o seu pequeno tritão há uns anos. Rindo, Gilberto disse:

‑ Tem bom gosto, esse rapaz!

‑ É verdade, excepto na admiração que tem pelo seu trabalho, mostrou sempre muito bom senso.

‑ Ai! ‑ Fingiu que tinha apanhado uma seta no coração e que a arrancava e depois voltou a soltar uma gargalhada. ‑ Ainda aqui está, no Porto?

‑ Sim, mas o pai foi morto pelos Franceses. E precisa de emprego, pobre rapaz.

Nessa mesma tarde, vieram os dois a minha casa. Eu fiquei muito aliviado por ver Luna outra vez, porque ela ainda andava vestida de preto e não voltara a dar um passo fora de casa depois do funeral de Graça. Beijámo‑nos carinhosamente, pois tinha‑se desenvolvido entre nós um laço ainda maior de afecto desde a morte da sua irmã.

Depois de ela me ter apresentado Gilberto, cumprimentei‑o pelo seu trabalho e disse‑lhe que o seu azulejo ainda estava enterrado em segurança debaixo das ervas daninhas do nosso jardim.

Quando estávamos todos confortavelmente sentados no nosso pátio, Gilberto apresentou a sua proposta: Tendo visto os meus desenhos e reconhecido um certo talento, estava disposto a empregar‑me como aprendiz durante um período de três anos. Durante esse tempo, eu ganharia um pequeno salário e teria o direito de cozer a quantidade de peças que quisesse para meu uso. Far‑me‑ia trabalhar duramente, mas ensinar‑me‑ia técnicas preciosas e eu nunca teria falta de trabalho na vida. Se tudo corresse bem, ou ele me faria seu sócio no dia em que eu fizesse vinte e um anos ou conceder‑me‑ia um empréstimo para me estabelecer por conta própria, desde que eu concordasse em instalar o meu negócio a uma distância não inferior a duas léguas de carruagem da sua própria loja.

‑ É uma perspectiva muito entusiasmante ‑ disse a minha mãe ‑, mas tenho algumas dúvidas sobre a sua praticabilidade. Ultimamente, temos estado a pensar em mudarmo‑nos para Inglaterra, para vivermos com a irmã mais velha do meu falecido marido.

Eu não sentia nenhuma das dúvidas da minha mãe; tão forte era o meu desejo de permanecer em Portugal e aprender uma profissão sólida que soube imediatamente que iria aceitar a oferta generosa de Gilberto.

‑ Terei licença para trabalhar com os meus próprios desenhos? ‑ perguntei.

‑ Parece impossível! ‑ exclamou Luna. ‑ Que é feito das tuas boas maneiras, rapaz?

Gilberto pousou uma mão no braço dela para a acalmar.

‑ Ao princípio não, John. Não me parece que seja sensato começares demasiado depressa. Mas ao fim de seis meses, mais coisa menos coisa, poderás começar a acrescentar os teus próprios toques ‑ não vejo por que não.

‑ Mestre Gilberto, antes de fazermos qualquer acordo, quero dizer‑lhe algumas coisas sobre mim... para evitar futuros mal‑entendidos, está a compreender? Eu não gostaria que o carinho que a querida Luna tem por mim o cegasse para os meus defeitos. Para começar, sou muito teimoso. E, apesar dos rogos da minha mãe e do seu magnífico exemplo, as minhas maneiras estão longe de ser perfeitas. Além disso, ao contrário de muitos portugueses, não desgosto dos Espanhóis. Gosto particularmente de Velázquez, Ribera e Goya. Odeio mentalidades tacanhas e sou meio judeu.

Gilberto agarrou‑me no braço.

‑ Goya, dizes tu? Vi os quadros dele em casa de Luna e os dotes dele são tão grandes que por vezes me assustam.

Depois, declarou:

‑ Gostaria de seguir o exemplo sensato de John e dizer algumas palavras sobre mim.

Aqui, o bom do oleiro informou que era intratável de manhã, por vezes era descuidado com a sua limpeza pessoal e anormalmente orgulhoso das coisas bonitas que era capaz de fazer com as suas próprias mãos. Rematou afirmando, para que ficasse registado:

‑ Faço um esforço especial para cantar desafinadamente quando estou com pessoas de quem não gosto e que me estão a fazer perder tempo.

Inclinando‑se para o lado como se fosse soltar um traque, acrescentou:

‑ E por vezes tenho hemorróidas que me fazem berrar quando uso o bacio.

Ri‑me pela primeira vez em muito tempo. Até a Mamã ficou conquistada com os esforços dele para nos fazer rir. Eu já gostava tanto dele que teria começado a minha aprendizagem logo no dia seguinte, mas a minha mãe explicou que precisávamos de discutir a ida para Inglaterra e que lhe daria a resposta dentro de uma semana.

Eu e ela falámos longamente desta oferta por várias vezes e estou convencido de que a minha decisão de ficar foi para ela, em certos aspectos, um alívio. Não que ela me quisesse deixar, mas precisava de começar uma vida nova numa casa que não estivesse carregada de recordações e dor ‑ e pelas minhas expectativas. Estávamos a aprender a amar‑nos outra vez, mas precisávamos de seguir caminhos separados. Hoje compreendo isso com clareza. A nossa casa estava muito simplesmente demasiado cheia de recordações do pai e de Meia‑Noite para ela conseguir suportar.

No princípio de Novembro, a minha mãe sentia‑se suficientemente confiante para marcar uma passagem para Inglaterra. Também despachou por barco o seu pianoforte.

Na véspera da sua partida, pediu‑me para ir buscar a sua menorab, que eu tinha desenterrado do nosso jardim havia pouco tempo. Agarrando‑a com força, desenroscou a base redonda e recortada.

‑ Não sabia que se podia fazer isso ‑ comentei, espantado.

‑ O teu pai e eu éramos as únicas pessoas que sabiam. Metendo a mão dentro do pé oco do candelabro, tirou um rolo de pergaminho que, depois de desenrolado, se revelou uma iluminura colorida.

No centro havia um quadrado em folha de ouro contendo quatro linhas muito bem escritas em hebraico, rodeado de grinaldas de flores carmim e cor‑de‑rosa. No cimo, estava um pavão cuja cauda, exuberante, se abria em leque apanhando toda a parte superior da página.

Eu nunca tinha visto um desenho tão espantoso.

Dando‑me licença para lhe pegar, a minha mãe disse‑me:

‑ Foi feito por um antepassado nosso. Chamava‑se Berequias Zarco. Era um artista de uma família de iluminadores que nasceu em Lisboa há muitos séculos e que depois se mudou para Constantinopla. Berequias era um homem muito instruído, mas o meu pai só me pôde dizer isto sobre ele. Esta iluminura foi passando de geração em geração na nossa família. Creio que era a capa de um livro sobre a geografia da Europa. Pelo menos, foi isso que os pais do teu avô lhe disseram.

‑ Foi o Avô João que lhe deu isto?

‑ Sim, e agora ‑ disse ela sorrindo ‑ sou eu que to dou.

‑ É para mim? Porquê?

‑ Sempre te esteve destinada. Eu devia ter‑ta dado quando fizeste treze anos, mas com todos os nossos problemas... para o bem e para o mal, achei que era melhor esperar. Também estava preocupada com receio que ainda estivesses aborrecido por seres meio judeu e que isto só fosse aumentar a tua sensação de exclusão. Como agora tenho de te deixar, não quero atrasar mais a minha dádiva. Não preciso de te dizer como deve ser valiosa, nem que a tens de guardar em segredo, visto que a posse de escrita hebraica, tanto quanto sei, pode ainda ser crime em Portugal.

‑ Posso mostrá‑la a Benjamim? Ele sabe ler hebraico. Meditou um momento no pedido.

‑ Podes, John, mas só com a condição de ele nunca revelar a sua existência enquanto permanecer em Portugal a um membro da nossa família.

‑ Sinto que te devia dar alguns conselhos ‑ continuou ela ‑, mas não tenho nenhum para te dar. Por isso, dir‑te‑ei apenas que tenho muito orgulho em ti e que te amo muito. Conto que te saias melhor na tua vida do que eu. Tenho a certeza de que o teu pai desejaria a mesma coisa se aqui estivesse.

Eu estava tão triste e tão nervoso que mal conseguia falar.

‑ John, estou a falar a sério ‑ disse ela num tom quase ameaçador. ‑ Penso que a maior parte dos pais esperam que os filhos cresçam copiando as suas vidas, mas isso é a última coisa que eu quero. Gostaria muito que me esquecesses.

‑ Nunca a poderia esquecer, Mamã... por isso, não tenho a certeza...

‑ John, não é isso que eu estou a tentar dizer ‑ interrompeu‑me ela. ‑ Não quero que me esqueças... só quero que ignores todas as expectativas que julgues que eu tenho.

‑ Tentarei ‑ respondi.

‑ Óptimo.

‑ Mas, e a Mamã? Vai sentir‑se bem sozinha em Londres?

‑ A verdade, John, é que não tenho utilidade para ninguém nesta altura. Ambos sabemos que não sou a mulher que era, por isso penso que é melhor ‑ e de certo modo, certo ‑ estar algum tempo sozinha. Se me deres uns anos sozinha, acho que poderei voltar muito mais forte do que estou agora. Por favor, tem paciência comigo. Acho que é a única coisa que tenho o direito de pedir. Embora, se calhar, devido ao meu comportamento, até esse direito tenha perdido.

Na manhã seguinte, às onze horas, despedi‑me da minha mãe no cais. A última coisa que ela fez foi beijar as minhas duas mãos e cerrar‑me os punhos.

‑ Tens contigo para sempre o meu mais profundo amor, meu filho.

Ao embarcar, a sua postura era curvada e receei que fosse desmaiar. Dissemos adeus até ela se ter afastado rio abaixo o suficiente para eu ter a certeza de que já não me conseguia ver ‑ o que, para dizer a verdade, não era uma grande distância porque ela se recusava a usar os óculos em público.

Vários dias depois, sentindo‑me cheio de pena de mim mesmo, levei a iluminura de Berequias Zarco a Benjamim. À luz de uma única vela na sua sala de estar, ele decifrou a inscrição que tinha sido feita naquilo que ele chamava escrita sefardita ‑ o estilo característico de Portugal e Espanha. Ele estava convencido de que estávamos a olhar para a primeira página de um manuscrito. Segundo a sua tradução, dizia: O Espelho Que Sangra: Sobre a Necessidade dos Judeus e dos seus Irmãos Convertidos de Expulsarem a Europa Cristã dos Seus Corações e Fugirem para Terras Muçulmanas. Aparentemente, não era um livro de geografia, mas sim uma argumentação a favor de um êxodo dos judeus da Europa para terras sob domínio dos muçulmanos. Quanto à expressão Espelho Que Sangra, Benjamim achava que podia ser uma metáfora para os Dez Mandamentos, que reflectem a vontade de Deus ou os olhos de prata de Moisés.

Estava assinado na parte de trás por Berequias Zarco. Em letras minúsculas, também tinham sido escritos a data e o local: O Sétimo de Av, 5290 ‑ Constantinopla.

Benjamim disse‑me que o mês de Av era o sexto do calendário lunar hebraico e coincidia mais ou menos com parte de Julho e Agosto. O ano de 5290 para os judeus equivalia ao de 1530, para os cristãos. Por isso, esta primeira página de rosto tinha quase trezentos anos.

Nessa noite, dormi com a folha debaixo da almofada, ao lado de As Fábulas da Raposa. A iluminura teve o efeito de reforçar, e muito, a minha decisão de me tornar artista e aprendiz de Gilberto, pois agora imaginava‑me a continuar uma tradição familiar de há séculos.

Sobrevivi sozinho durante os anos seguintes agarrando‑me a uma rotina de trabalho com Gilberto. Achava‑o um patrão mais severo do que imaginara ao princípio, mas também afectuoso e de uma honestidade sem falhas. Durante a minha aprendizagem com ele, tenho a certeza de que teve muitas vezes vontade de me estrangular, mas nas suas críticas aos meus desenhos nunca tentou rebaixar‑me. De facto, não lamento um único dia do nosso trabalho em conjunto. Mesmo depois de dez horas na companhia um do outro, muitas vezes ainda tínhamos prazer em passear ao longo do rio ou em beber um brandy numa taberna próxima. Ele era, e ainda é, um bom homem.

A minha mãe escreveu‑me assiduamente durante aqueles primeiros anos de separação, enviando‑me notícias todas as semanas. Na Primavera de 1819, juntou‑se a uma pequena congregação de judeus cujos antepassados tinham fugido de Espanha e de Portugal. Como nunca tinha assistido a nenhuma cerimónia formal numa sinagoga, achou‑a muitíssimo confusa. Para mais, considerava‑se totalmente inferior aos outros, não conhecendo praticamente nada do ritual judaico. Ficou particularmente chocada quando descobriu que ela e as outras mulheres eram obrigadas a sentarem‑se separadas dos homens. Na sua própria família, a mãe não só acendera as velas do Sabbath como recitara muitas das orações.

Uma nota muito positiva era a de que tinha muito mais fácil acesso a música para o seu piano e tinha conseguido cativar seis jovens alunos, dois dos quais considerava verdadeiramente dotados. Juntamente com a sua habilidade para os bordados, que eram muito apreciados, estas lições davam‑lhe um rendimento certo.

Eu era muito menos diligente a escrever cartas e, por vezes, deixava passar quinze dias sem lhe enviar uma única palavra. Por estranho que pareça, estou convencido de que ficámos mais unidos através da nossa correspondência do que tínhamos sido desde os meus nove ou dez anos. A sua renovada devoção por mim emergia na sua alegria com os progressos que eu estava a fazer na minha aprendizagem e no seu grande interesse pelas minhas histórias da vida da nossa pacata terra. Comecei até a reparar que a paixão no seu coração, adormecida durante tantos anos, estava de novo a florescer. Era frequente garatujar‑me os temas de uma nova obra musical de Beethoven que acabara de comprar, descrevendo‑me as emoções que lhe tinha inspirado.

É um paradoxo, mas penso que voltei de novo para casa num país estrangeiro, escreveu‑me uma vez. Estou a descobrir o que quero fazer com a minha vida ‑ e a aprender em quem é que uma rapariguinha judia do Porto se transformou. Cerca de um ano depois da sua chegada a Inglaterra, fez uma visita a Swanage para colocar um seixo dos terrenos circundantes no túmulo de Meia‑Noite, segundo o costume judeu. Todavia, o ministro da igreja da paróquia só estava na cidade havia dois anos e não sabia nada sobre um africano que tinha morrido naquela vizinhança. Provavelmente, o corpo tinha sido posto numa campa não identificada. Isto entristeceu‑a muito, mas acabou por compreender que Meia‑Noite estava a salvo onde quer que estivesse e que ele não se teria importado, visto que para ele toda a terra era o seu lar. Escreveu‑me que seguramente ambos nos iríamos encontrar com ele no Monte das Oliveiras e que ele viria vestido com um elegante colete escarlate e calções, mas descalço. Transportando a sua aljava e o ovo de avestruz oco, ficaria muito, muito contente por nos ver. Era isso que importava agora.

No meu trabalho, devorei tudo o que Mestre Gilberto me conseguia ensinar sobre olaria e confecção de azulejos. Quando ele me autorizou a começar a fazer os meus próprios desenhos, o meu primeiro projecto foi um painel de azulejos ilustrando um esquisso cómico de Goya ‑ um macaco a pintar o retrato de um burro. Ao longo dos dois anos seguintes, transferi muitas das suas obras para azulejos e cheguei mesmo a pintar algumas das suas figuras em jarras e bules de chá. Depois comecei a executar obras da minha inspiração, baseadas nas histórias que Meia‑Noite me contara. Gilberto comprou o meu primeiro painel de azulejos ‑ nove quadrados que ilustravam uma grande pena branca a cair na mão estendida do boximane.

Durante os três primeiros anos em Inglaterra, a minha mãe apresentou‑me todo o tipo de desculpas para não poder voltar a casa numa visita prolongada, até que eu compreendi o que devia ter sido óbvio desde o princípio: a ausência não estava a aumentar o seu amor pelo Porto e ela não voltaria para casa nos tempos mais próximos. Li entre linhas que ela tinha medo das emoções que poderiam despertar nela ver a nossa casa e a Avó Rosa.

Por isso, em Outubro de 1812, perguntei‑lhe se ela gostaria que eu lhe fizesse uma visita e ela respondeu‑me que tinha saudades minhas todos os dias e que a minha ida a Londres seria uma bênção. Como a ideia de passar um inverno a lutar com a frígida chuva inglesa me era completamente inaceitável, pedi autorização a Gilberto para a ir visitar durante dois meses na Primavera. Faltava‑me agora menos de dois dedos para os oito palmos e meio de altura e usava o cabelo comprido e atado atrás com uma fita de veludo preto, o que considerava tremendamente ousado.

No mundo para lá das minhas imediações mais restritas, o sonho de Napoleão de conquistar a Europa tinha morrido em Novembro de 1812, quando, a morrer de fome e geladas, as suas tropas bateram em retirada de um ataque mal planeado a Moscovo. Passados dezoito meses, o seu trono em Paris seria entregue a Luís XVIII. Em consequência disso, outra invasão do Porto era impossível ‑ pelo menos nos tempos mais próximos. No entanto, abstive‑me de desenterrar as recordações de Meia‑Noite e Daniel. Tal como a minha mãe, não tinha vontade nenhuma de me confrontar com aqueles vestígios do meu passado.

Parti para Londres a tempo de festejar com a minha mãe o meu vigésimo segundo aniversário. Estava muito excitado, principalmente graças a uma magnífica complicação que me acontecera mesmo antes de me ir embora.

Tinha saído para dar um passeio quando atraí a atenção de uma rapariga de pé numa varanda do primeiro andar. Tinha tranças compridas e olhos escuros e brilhantes. Por brincadeira, levantou a ponta da mantilha azul‑escura e tapou a boca com ela como se fosse um véu. Ter‑me‑ia sido fácil acreditar que era uma feiticeira da floresta, nascida durante a Idade das Primeiras Pessoas de Meia‑Noite.

Antes que eu tivesse tempo para a chamar e perguntar‑lhe o nome, cruzou os braços sobre o peito e, fazendo uma pirueta, desapareceu dentro de casa. Esperei durante duas horas, mas ela não voltou a aparecer.

Na tarde seguinte, ao pôr do Sol, encontrei‑a na rua, sentada num banco, debaixo da varanda, a vender plantas e bolbos de flores. Não me viu, visto estar a pintar um vaso de um laranja flamejante. Tinha o cabelo preso num rolo no cimo da cabeça, exceptuando uns caracóis delicados ao pé das orelhas.

‑ Boa tarde ‑ disse eu com galantaria. Sobressaltando‑se, deixou cair o pincel na saia.

‑ Merda! Olhe o que me fez fazer!

Fiquei encantado por ela ter usado um palavrão.

‑ Peço perdão de todo o coração, jovem senhora ‑ disse eu, oferecendo‑lhe o meu lenço com o que esperava ser um sorriso cativante.

‑ Mas vou estragá‑lo ‑ disse ela, considerando‑me claramente um idiota só por o ter sugerido.

A minha resposta seguinte teria dado a Luna Oliveira e à minha mãe pretexto para hilariantes ataques de riso por muitos anos. Repeti a minha oferta com redobrada sinceridade, dizendo:

‑ Não me importaria que me pintasse todo de cor de laranja se isso significasse ser tocado por si em todo o lado.

Santo nome de Deus, não sei como consegui dizer uma coisa tão ridícula. Furiosa, os seus olhos escuros faiscaram ameaçadoramente. Recusou rudemente o meu lenço e limpou os dedos no avental.

Humilhado e tentado a fugir, fiz os possíveis para desviar a conversa para um tópico mais seguro.

‑ Está um lindo pôr do Sol... Todo aquele cor‑de‑rosa e dourado...

Recebendo apenas silêncio em resposta, aclarei a garganta e desloquei o meu peso para a outra perna, esperando que fosse um gesto cavalheiresco.

‑ Está a tirar‑me a luz ‑ disse ela, sem sequer se dignar olhar para mim.

Como o Sol estava por trás dela e a minha sombra caía na direcção oposta, presumi que estava a brincar. Encorajado, soltei uma pequena gargalhada e lancei‑lhe outra rajada frívola. Olhando para as plantas, disse:

‑ Gostava de saber se se pode comer um bolbo de tulipa. Há pessoas que lhes chamam batatinhas, sabia? Acha que são venenosos? Talvez se fossem cozinhados...

‑ Senhor ‑ declarou ela ‑, se eu soubesse que eram venenosos, pode ter a certeza que lhe ofereceria um neste preciso instante.

Os meus olhos encheram‑se de lágrimas com as suas palavras duras.

‑ Oh, senhor! O que é que eu fiz? ‑ exclamou ela. Ardendo de vergonha, afastei‑me a correr.

Barriquei‑me no meu quarto e amaldiçoei todas as mulheres chamando‑lhes filhas de Lilith, rainha dos demónios. Depois despi a roupa e examinei‑me cuidadosamente no antigo espelho de corpo inteiro da minha mãe. Era demasiado alto e pálido. Perguntei para comigo se um bigode poderia melhorar as coisas.

Obriguei‑me a ficar em casa nessa noite, mas o dia seguinte assistiu a um regresso da minha coragem cega e arrisquei‑me a voltar a aproximar‑me dela. Ao pôr do Sol, dei por mim a ir levar‑lhe um xaile de damasco vermelho que tinha comprado por uma pequena fortuna na Rua das Flores. Quando ela apareceu à varanda, olhou para mim e, desta vez, foram os seus olhos que se encheram de lágrimas.

Dei dois nós no xaile e atirei‑lho. Ela agarrou‑o avidamente e depois atirou‑me a mantilha preta.

Pôs o meu xaile em volta dos ombros e agitou‑o como se fossem asas. Depois correu para dentro de casa.

Na manhã seguinte, eu já não conseguia aguentar mais insónias. Pedindo a Gilberto para ter paciência comigo, dirigi‑me novamente a casa da minha atormentadora, esperei até que dessem as nove horas e bati à porta. Tinha preparado durante toda a noite um discurso eloquente para os pais dela, incluindo referências impressionantes à filosofia e à arte, mas, quando um homem baixo, de barba grisalha e cabelo cinzento que lhe chegava até aos ombros, apareceu a bocejar, gaguejei o meu cumprimento.

‑ Fala, filho! ‑ disse o homem bruscamente.

‑ Há uma jovem senhora... uma jovem... rapariga que aparece na sua varanda à tarde. Também vende flores na rua.

‑ A minha filha, Maria Francisca.

‑ Sim, sim, deve ser ela. Mas... mas talvez se eu recomeçasse do princípio... Chamo‑me John Stewart. Peço desculpa de o incomodar aparecendo tão cedo à sua porta.

‑ Não, não, estou encantado. ‑ Sorriu. ‑ E começar por dizer como se chama é sempre uma boa ideia. Mas antes que avancemos, gostaria de saber exactamente que interesse é que tem na minha filha.

‑ Bem, senhor, eu... eu tenciono casar com ela.

Não consigo explicar como me atrevi a dar esta resposta, exceptuando o facto de estar a ser sincero.

O pai de Francisca soltou uma gargalhada.

‑ Não és o primeiro a sugerir isso ‑ disse ele. ‑ Mas é muito mais importante ‑ aqui agarrou‑me pelo braço e puxou‑me para dentro ‑ ser o último.

Apresentou‑se como Egídio Castro da Silva Martins. Tinha apenas três ou quatro dentes, mas os olhos eram amistosos e a boca, franzida, tinha uma expressão doce. Disse‑me que vendia flores e que a sua loja ficava junto do Hospital de Santo António.

Por cima da lareira, estava pendurado um quadro da mãe de Francisca. Apercebi‑me que a filha tinha herdado dela os espessos cabelos pretos e os olhos misteriosos. Ambas tinham o ar de mulheres que sabiam guardar segredos ‑ e também como os criar. O Senhor Egídio disse‑me que ela o tinha deixado dez anos antes, quando Francisca tinha onze anos.

Estendeu um punho fechado para o retrato.

‑ Trataste‑me injustamente, mulher cruel! ‑ bramou ele. Quando comentei a parecença com a filha, ficou com um ar pensativo e disse‑me:

‑ Como podes ver, percebo muito bem o teu dilema, filho.

Quanto ao futuro da filha, foi muito claro ao informar que lhe daria plena liberdade para escolher o marido. Eu expliquei que a queria convidar para dar um passeio comigo ao longo da margem do rio.

‑ Apresentar‑lhe‑ei essa proposta esta tarde, meu jovem e, se quiseres voltar às oito horas desta noite, terás a tua resposta.

Agradeci‑lhe a ajuda e confessei‑lhe que tinha que partir dali a quatro dias para Inglaterra, onde iria ficar dois meses.

‑ Talvez isso seja uma coisa boa ‑ sossegou‑me ele. ‑ Terão oportunidade de se conhecerem durante estas próximas noites, se Francisca concordar. E se entre os dois se desenvolver um sentimento de afeição verdadeira, um sentimento que não seja destruído por semanas de separação, poderemos inclinar‑nos a acreditar que os espera um futuro promissor.

‑ Mais uma coisa, senhor...

‑ Não sejas envergonhado, filho ‑ disse‑me ele, dando‑me uma palmada nas costas.

‑ Gostaria de acrescentar que o meu pai era escocês e que a minha mãe, embora portuguesa, é de origem cristã‑nova. Sou, em resumo, meio judeu e meio escocês. Quero tornar isto claro já de início. Compreenderei se considerar que é um obstáculo, mas posso garantir‑lhe que...

O senhor Egídio levantou a mão com um sorriso.

‑ Filho, a única coisa que é importante entre os jovens é o verdadeiro amor. O resto não passa de decoração.

Cumprindo a sua palavra, durante as três noites seguintes, eu e Francisca tivemos licença para passear pela cidade. Ela usava uma mantilha diferente todas as noites e eu comprei lanternas coloridas para ela levar.

Fiquei atónito ao descobrir como ela era tímida. Recusava‑se a olhar para os meus olhos por um instante que fosse. Meses mais tarde, disse‑me que eu era o primeiro homem por quem se tinha sentido atraída e que isso a fazia ter arrepios que a percorriam da cabeça aos pés.

Na nossa segunda noite, quando estávamos parados ao pé do rio, falei‑lhe de Daniel.

‑ Nunca conseguirei restabelecer‑me da sua morte ‑ observei.

‑ Mas nem sequer o irias querer. Se conseguisses, então o que é que a vida dele teria de facto significado para ti?

Roçou‑me a mão pelo braço enquanto falava. Tinha umas mãos esguias e bonitas.

‑ Sim ‑ repliquei eu ‑, ele era um rapaz bonito e selvagem. ‑ Lembrando‑me da minha traição, acrescentei: ‑ E muito leal comigo.

Continuando com a minha política de revelar todas as falhas do meu carácter logo do princípio, disse‑lhe então:

‑ As muitas mortes que conheci deixaram‑me de coração desfeito e sozinho. Se vieres a sentir afeição por mim, o que eu espero, Francisca, estarás a dar o teu coração a um homem que fez muitas coisas erradas e que pode ser um inadaptado caprichoso. Agora reconheço a verdade disto e o pior é que não estou totalmente arrependido.

Enquanto nos encaminhávamos para casa dela no meio do impasse de silêncio que eu criara, senti‑me desesperado pois presumi que a tinha afugentado com a minha franqueza. À porta, pedi‑lhe desculpa por ter falado de forma inapropriada.

‑ John, por favor, não digas mais nada, não fizeste nada de mal ‑ disse ela, pousando a mão na minha boca por uns breves instantes. O toque dela fez‑me sobressaltar. ‑ Compreendo‑te melhor do que pensas. Eu e o meu pai... não passa um dia em que não sintamos saudades da minha mãe. ‑ Sorriu tristemente. ‑ Se fazes favor, entra e senta‑te um bocadinho connosco. Não há razão para seres reservado. Nós somos pessoas que compreendemos a perda. ‑ Agarrou‑me na mão e olhou‑me nos olhos. ‑ Por favor, sou tua amiga ‑ asseverou‑me.

Cinco palavrinhas, mas a maneira como ela as disse ‑ com o cuidado de alguém a pôr flores delicadas numa jarra simples ‑ convenceu‑me que ela compreendia que o que eu procurava nela não era apenas uma diversão momentânea. Voltei a levar a sua mão aos meus lábios. A possibilidade de a minha solidão estar a chegar ao fim... sorri‑lhe e voltei a beijá‑la, fechando os olhos para respirar o seu perfume.

Encontrámos o Senhor Egídio a acender a lareira. Fiquei sensibilizado com o afecto intenso que ele demonstrava por Francisca e impressionado pela atmosfera informal que criava à sua volta. Ofereceu‑me um copo de vinho.

‑ Gostaria de te mostrar uma coisa, John ‑ disse‑me ele, coçando as suíças, e os seus olhos cintilaram, travessos. ‑ Volto já. E Francisca, se te puseres a falar de mim quando eu sair, eu vou saber!

E com isto, desapareceu escada acima.

‑ Ele nunca está quieto. Sou filha da lançadeira de um tecelão ‑sussurrou‑me Francisca.

Egídio voltou a entrar na sala transportando um monte de mantilhas. Quando Francisca as viu penduradas no braço dele, tapou a cara com as mãos e gemeu.

‑ O que é que aconteceu? ‑ perguntei‑lhe.

‑ A linda menina está envergonhada porque foi ela que as fez ‑ disse o pai.

Segurou‑as nos braços para eu as examinar como se cada uma delas fosse um bebé. Tinha mãos grandes e grosseiras, com bocadinhos de terra nas unhas, mas a sua gentileza extrema com todas as coisas que envolvessem a filha comoveu‑me ‑ e confirmou‑me também que eu estava exactamente onde devia estar.

Francisca retraiu‑se enquanto comentávamos as suas obras e recusou‑se a vir para junto de nós.

‑ Não, não, não ‑ disse ela, mandando‑nos embora na brincadeira. Numa mantilha vermelho‑escura tinha incorporado um desenho cor de fogo de folhas de outono. Noutra, castanha, tinha criado um sol amarelo e branco resplandecente. Eu nunca tinha visto nada igual, pois no Porto não se usavam xailes com mais de uma cor. Mas o que mais me impressionou foi a sua imaginação.

Quando consegui que olhasse para mim e lhe sorri, ela soltou um suspiro.

‑ O pai vive para torturar os seus filhos.

‑ A isso chama‑se orgulho, filha ‑ corrigiu‑a ele, piscando o olho. Francisca continuou a depreciar o seu trabalho enquanto eu lhe fazia

perguntas sobre técnicas e métodos de tricotar.

‑ Com tudo o que se passa no mundo, quem é que se poderia interessar por aquilo que eu faço? ‑ perguntou‑me ela.

Recusei‑me a aceitar a sua modéstia.

‑ Se ‑ disse eu, adoptando a pose de um elegante cavalheiro britânico ‑, se, minha jovem senhora, lhe encomendasse um colete com o sol ‑ ou com qualquer outro desenho que lhe apetecesse incorporar na tecedura ‑, acreditaria finalmente que a minha admiração é sincera?

Como ela continuasse a pensar que eu estava apenas a ser bem‑educado, deitei‑lhe um olhar severo e atirei‑lhe uma moeda de cem réis, que ela agarrou com as duas mãos. Sacudiu a cabeça perante um tal absurdo e depois sorriu. Compreendi que, embora pudesse não ter conquistado o seu coração, tinha de facto ganho a sua confiança.

Na noite seguinte, ela pôs a mantilha que eu lhe oferecera. Voltámos a passear pela margem do rio e ela sugeriu que apanhássemos o barco para a outra margem. Inesperadamente, deitou‑me um olhar de desafio, levantou a orla do vestido e desatou a correr para o barco, rindo durante todo o caminho.

Não tentei apanhá‑la. Aquilo era tão pouco próprio de uma senhora que eu não conseguia despegar dela os meus olhos carregados de admiração.

Mal nos encontrámos no barco, não consegui pensar em mais nada senão em beijá‑la e o melhor que se pode dizer da minha conversa é que era desconexa. Resolvi arriscar tudo colando os meus lábios aos dela, sentindo‑me quase a desmaiar.

Depois, mal conseguíamos olhar um para o outro. Tenho a certeza de que ambos sentíamos que estávamos a explorar um território ainda virgem.

Mais tarde, nessa noite, desafiando todas as convenções, atrevemo‑nos a entrar em minha casa. Estávamos tão nervosos que não conseguíamos falar. O meu coração parecia estar a bater‑me fora do corpo.

Depois de nos termos voltado a beijar durante um bocado, enfiei os dedos por baixo dos folhos do vestido dela. Ela estremeceu quando eu o fiz e eu pedi‑lhe perdão pela minha impetuosidade. Mas ela apertou‑me a mão e disse:

‑ Tens os dedos frios, John, é só isso.

Depois perguntou‑me onde era o meu quarto.

Por isso, foi na minha velha cama que fizemos amor pela primeira vez, criando uma jangada com os nossos corpos entrelaçados e deixando‑nos levar para o mar. Depois, senti‑me doido de alegria. Cabriolei pelo quarto, completamente nu, a cantar «Rantini Robin» de Robert Burns numa voz histriónica.

Na noite seguinte, perguntei‑lhe se queria ser minha mulher e ela disse que sim.

Como presente de despedida, dei a Francisca a carta de Joaquim para Lúcia que tinha caído das Fábulas da Raposa quando eu tinha sete anos e que me tinha ensinado tanta coisa sobre a linguagem do amor. Ela sentou‑se com as pernas cruzadas em cima da minha cama como se fosse uma criança e leu‑a à luz de uma vela. Enquanto ela lia, dirigi‑me para a janela e, olhando para as estrelas, murmurei uma oração para que Violeta estivesse em segurança. Penso que foi a minha maneira de me despedir dela para sempre.

Depois de eu e Francisca termos voltado sorrateiramente para casa dela como se fôssemos criminosos, ela foi buscar o meu presente de despedida. Era um colete tricotado em lã preta com a lua nas suas diversas teses. Pareceu‑me que era a prenda mais promissora possível, especialmente porque, segundo o que Meia‑Noite me dissera, fora a Lua que informara os homens e as mulheres sobre as suas vidas eternas.

E foi assim que parti para Londres já noivo e, embora a minha estada de dois meses na companhia da minha mãe e da Tia Fiona tivesse sido muito gratificante e a majestade e loucura de Londres me tivessem feito abrir a boca de espanto em muitas ocasiões, não houve um só instante em que não desejasse estar em casa, no Porto.

Claro que a minha mãe ficou doida de alegria ao saber do meu casamento próximo. Ela tinha‑se tornado tão curiosa e tão aberta comigo como quando eu era pequeno e nada lhe dava maior prazer do que sentar‑se na minha companhia. Fez‑me descrever tudo que se passara nas minhas noites com Francisca e, embora eu tivesse o cuidado de omitir os pormenores mais íntimos, ela depressa adivinhou a verdade.

‑ Tu sempre mostraste ter grande paciência para muitas coisas, John, principalmente comigo. Mas nunca quiseste esperar pelo amor ‑disse ela rindo. ‑ Embora me pareça que isso é bom. Por que é que um amor tão profundo como o que tu encontraste havia de ter de esperar?

Francisca e eu trocávamos cartas duas vezes por semana, o que serviu para aprofundar a nossa intimidade. Uma vez, escreveu‑me que tinha acordado a meio da noite para me ouvir a imitar um pássaro.

Depois, falaste comigo e disseste‑me: «Voa, Francisca, para qualquer sítio que queiras. Eu tentarei não ter ciúmes.» Não é estranho?

Sonho ou não, respondi‑lhe eu, iremos esforçar‑nos para que seja verdade. Embora te suplique que não subas tão alto que eu te perca de vista. E tens de prometer que voltas sempre para mim.

Dou‑te a minha palavra, concordou ela.

Ela assinava sempre as suas cartas A tua amiga, Francisca. E isso, para mim, significava tudo.

Casámo‑nos três meses depois de eu ter regressado, a catorze de Setembro de 1817, altura em que Francisca já não tinha tido o período três vezes seguidas.

Eu queria muito que a minha mãe assistisse à cerimónia, principalmente depois de termos redescoberto tanto do nosso afecto durante a minha permanência em Inglaterra, mas ela hesitava em considerar‑se preparada para voltar ao Porto. Por fim, resolvemos que era melhor não esperar por ela. Assegurei‑lhe que estaria connosco em espírito e que a sua bênção era a única coisa que importava.

Casámos na Igreja de São Bento, onde fiz um compromisso com Francisca e concordei em pronunciar os votos cristãos ‑ como tantos milhares de judeus portugueses antes de mim. Luna, Benjamim, Gilberto, a Tia Beatriz e a Avó Rosa estiveram todos presentes. Tendo soluçado durante toda a cerimónia, a minha avó disse‑me depois que eu era um patife por não lhe ter levado Francisca a fim de ela dar a sua autorização. Eu resolvi que era um gemsbok e que não me deixaria provocar. A nossa primeira filha nasceu a vinte e oito de Fevereiro de 1814. Foi um parto difícil e Francisca ficou muito fraca durante várias semanas. Chamámos‑lhe Graça em honra de Graça Oliveira.

Deitado com a minha mulher e o nosso novo bebé na cama dos meus pais, apercebi‑me, pela primeira vez, de que desejava desaparecer na minha mulher e na minha filha. Este, descobri, é um dos grandes mistérios do nosso medo da morte, pois se morrer queria dizer fundir‑me num ser amado ‑ numa das minhas filhas, por exemplo ‑, eu não me importaria nada. No entanto, deixar de existir da forma como fazemos, sem esta união com outro ser a quem estamos presos pelo amor, sempre me pareceu tremendamente injusto.

Esther nasceu um ano depois, a sete de Março de 1815. Este parto foi ainda mais complicado e deixou sequelas em Francisca, que passou a sofrer de acessos de fúria e de melancolia. Durante quase dois meses, não quis saber se Esther...

                                                                               CONTINUA 

 

                      

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