Capítulo 14
Era muito estranho estar outra vez no complexo, mas, para Rio, o mais surreal era entrar novamente em seus aposentos dentro da sede subterrânea da Ordem, localizada no subúrbio de Boston.
Dante e Chase tinham ido para o laboratório de alta tecnologia logo que chegaram, deixando Rio a sós com Dylan. O guerreiro espanhol imaginou que os outros companheiros queriam lhe dar a oportunidade de ele se reencontrar com sua antiga vida – a vida que Eva havia lhe roubado um ano atrás com aquela maldita traição.
Rio não colocava os pés no complexo havia muito tempo, mas o lugar estava exatamente como ele se lembrava. Exatamente como ele tinha deixado antes da explosão no armazém que o mandara para a enfermaria do complexo por vários meses para enfrentar uma difícil recuperação – uma recuperação que não tinha sido, de modo algum, completa.
Aqueles aposentos, que uma vez Rio dividira com Eva, eram como uma espécie de cápsula do tempo. Tudo estava congelado em seu lugar desde aquela noite infernal quando Rio e seus companheiros tinham saído para acabar com um bando de Renegados sem imaginarem que estavam indo diretamente para uma emboscada mortal – uma emboscada orquestrada pela mulher que era uma Companheira de Raça... sua companheira.
E também fora ali, naquele mesmo lugar que, depois de ter sua traição descoberta e denunciada, Eva tinha cortado a própria garganta.
Ela se suicidou sobre a cama de Rio na enfermaria, mas era ali, em seu quarto, que Rio sentia mais a sua presença: o toque de Eva estava por todas as partes, desde as obras de arte extravagantes que ele tinha, a contragosto, permitido pendurar nas paredes antes vazias, até os inúmeros espelhos espalhados por todo o quarto, perto do closet e aos pés da enorme cama.
Rio conduziu Dylan pela elegante sala de estar, atravessando as portas cobertas por cortinas que levavam à suíte do dormitório. Ele se viu refletido no espelho enquanto, com todo o cuidado, deixava a delicada mulher sobre cama de dossel coberta por lençóis cor ameixa escura. Recuou diante do rosto moreno e arruinado do desconhecido que lhe devolvia o olhar. Mesmo vestido com as roupas elegantes que Reichen havia lhe dado, ele ainda parecia um monstro e a sensação apenas aumentava quando comparada à beleza adormecida em seus braços e totalmente à sua mercê.
Ele era um monstro e não podia jogar a culpa daquilo somente em Eva. Afinal, ele tinha nascido uma besta, um assassino, e agora simplesmente também se parecia um pouco mais com aquilo. Dylan se moveu um pouco assim que ele a colocou no colchão e ajeitou um dos macios travesseiros sob sua cabeça.
– Acorde agora – ele disse, roçando a mão brandamente na testa da mulher. – Você já descansou o suficiente, Dylan. Está na hora de despertar.
Ele não precisava acariciar o rosto dela para tirá-la do transe. Ele não precisava deslizar as pontas de seus dedos másculos sobre aquela pele aveludada e decorada com pequenas e encantadoras sardas. Ele não precisava demorar seu toque ao longo da delicada linha de sua mandíbula... Rio, todavia, não conseguiu deixar de aproveitar ao máximo aquela oportunidade única de fazer tudo isso.
As pálpebras de Dylan se abriram, seus cílios castanhos se levantaram e, de repente, Rio se viu capturado pela luz verde-dourada daquele olhar. Ele imediatamente afastou a mão do rosto de Dylan, mas não pôde deixar de notar que ela tinha se dado conta da liberdade que ele tomara. Ela, todavia, não demonstrou alteração alguma, simplesmente soltou um suave sopro de ar por seus lábios entreabertos.
– Estou com medo – ela sussurrou com uma voz baixa por causa do longo sono em que ele a tinha colocado. Dylan não tinha consciência do transe ou da viagem. Para sua mente humana, ela ainda estava no Refúgio de Reichen, uma vez que sua mente tinha sido colocada em suspensão momentos antes da partida para Boston. – Estou com medo do lugar para onde você está me levando...
– Já estamos aqui – disse Rio. – Acabamos de chegar.
O pânico tomou conta do olhar de Dylan.
– Onde...
– Eu a trouxe para a sede da Ordem. Você está segura aqui.
Dylan lançou um olhar ao seu redor, tentando entender onde estava.
– É aqui que você mora? – perguntou.
– É aqui que eu costumava morar. – Rio se levantou e se afastou da cama. – Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, basta pedir.
– Que tal uma carona até minha casa em Nova York? – ela disse. Sua consciência estava obviamente voltando ao normal. – Ou talvez um GPS mostrando onde estamos agora... Pode deixar que eu me viro para encontrar o caminho para casa.
Rio cruzou os braços sobre o peito enorme e musculoso.
– Esta é sua casa agora, Dylan. Como você é uma Companheira de Raça, será tratada com todo o respeito e reverência. Terá comida, conforto e tudo mais o que precisar. Você não vai ser trancada nesse quarto, mas eu posso lhe garantir que não há para onde você correr, caso isso venha a passar por sua cabeça. O complexo é inteiramente seguro. Meus companheiros e eu não vamos machucá-la, mas se você tentar deixar esses aposentos, nós saberemos antes de você dar o primeiro passo no corredor. Se você tentar fugir, vou encontrá-la, Dylan.
Ela ficou em silêncio por um longo momento enquanto ouvia aquele enorme homem falar e media cada uma de suas palavras.
– E então, o que vocês vão fazer comigo? Me segurar e morder minha garganta?
Jesus Cristo!
Rio sentiu todo o seu sangue drenar de sua cabeça ao simples pensamento daquilo. Ele sabia que para ela aquilo deveria ser um ato de extrema violência, mas, para ele, a imagem de segurar Dylan sob seu corpo enquanto ele perfurava delicadamente a pele macia de seu pescoço com suas presas era um ato inteiramente sensual.
O desejo percorreu seu corpo em uma espiral ardente e se concentrou imediatamente no meio de suas pernas. Ele ainda podia sentir a pele sedosa de Dylan em seus dedos e agora era outra parte de seu corpo que desejava imensamente, incontrolavelmente, conhecer o toque da pele daquela mulher em sua frente. Rio se virou, irritado com a rápida reação a Dylan que seu corpo esboçava.
– Quando eu estava em Jicín, ouvi uma história sobre um homem que foi atacado por um demônio. Um velho fazendeiro que testemunhou tudo disse que o tal demônio descia da montanha para se alimentar. Para beber sangue humano.
Rio ficou ali, encarando a porta em sua frente enquanto Dylan falava. Ele sabia a qual noite ela estava se referindo, ele se lembrava dela claramente, pois aquela tinha sido a última vez que ele tinha se alimentado. Fazia mais de duas semanas que ele não se alimentava quando foi até aquela humilde fazenda perto da floresta, na base da montanha.
Ele estava faminto e aquilo o deixou descontrolado. Um homem idoso apareceu, viu o ataque, viu Rio com os dentes cravados no pescoço de outro homem. Aquele foi um deslize, uma imprudência, e aquela interrupção tinha sido a única coisa responsável por salvar a vida da caça de Rio de sua fome incontrolável. Se aquele velho homem não tivesse aparecido, certamente o outro teria morrido. Rio tinha deixado de caçar naquela noite, aterrorizado com o que tinha se tornado.
– Foi um exagero, não é mesmo? – A voz de Dylan tornou-se lentamente mais calma durante o silêncio que Rio lhe deu como resposta. – Você não fez aquilo, fez, Rio?
– Fique à vontade – ele grunhiu, enquanto saía. Antes, porém, ele pegou a bolsa em que estavam o laptop e a câmera digital de Dylan. – Há algumas coisas que preciso fazer.
Rio não esperou que Dylan protestasse ou dissesse uma palavra mais, apenas sabia que precisava sair dali. Agora. Uns poucos passos o levariam para as portas abertas e à luxuosa sala de estar que atravessara minutos antes carregando Dylan em seus braços.
– Rosario...?
Ele parou ao som da voz dela em suas costas. Franziu a sobrancelha, virou a cabeça e voltou o olhar para a mulher, que agora tinha se levantado da cama e estava apoiada em seus cotovelos.
Madre de Dios, ela estava deliciosamente atraente, um tanto quanto despenteada, um tanto quanto sonolenta. Não demorou muito para Rio imaginar que talvez fosse daquela forma que Dylan deveria parecer depois de uma noite de sexo ardente. O fato de ela estar deitada sobre aqueles lençóis de seda de cor ameixa da cama de Rio apenas deixava a imagem ainda mais erótica.
– O quê? – a voz do homem enorme era um chiado que mal passava por sua garganta masculina.
– Seu nome – ela disse, como se ele devesse saber do que ela estava falando. A mulher, então, inclinou a cabeça enquanto estudava atenciosamente o quarto. – Você me disse que Rio é apenas parte de seu nome, então eu imaginei que talvez pudesse ser um apelido para Rosario.
– Não.
– Então qual é? – Quando ele não respondeu imediatamente, suas sobrancelhas castanho-claras juntaram-se, obviamente impacientes pela resposta. – Depois de tudo o que você me contou nos últimos dias, que problema teria em me dizer seu nome?
Ele escarnecia interiormente enquanto se lembrava de todos os nomes pelos quais tinha sido chamado desde que nascera. Nenhum deles era gentil, para dizer o mínimo.
– Por que isso é tão importante?
Ela sacudiu a cabeça, erguendo levemente os ombros magros.
– Não é importante. Suponho que simplesmente tenho curiosidade de saber mais sobre você. Para saber quem você realmente é.
– Você já sabe o suficiente – ele disse. Um leve xingamento escapou por sua boca. – Confie em mim, Dylan. Você não vai querer saber nada mais sobre mim além do que já sabe.
Mas Rio estava equivocado, pensou Dylan, enquanto observava o enorme corpo daquele homem afastar-se e atravessar a porta da ampla suíte. Ele fechou a porta e deixou a mulher sozinha na suave iluminação dos aposentos.
Ela virou o corpo na enorme cama, suas pernas estavam trêmulas como se fizesse muito tempo que não as usava, como se ela tivesse ficado ao relento durante boa parte de uma noite de inverno. Se o que ele disse era verdade – que eles tinham deixado Berlim e estavam agora nos Estados Unidos – então, ela pensou, faltava-lhe pelo menos nove horas de memória consciente.
Seria aquilo realmente possível?
Será que ele realmente a havia colocado em uma espécie de transe por todo aquele tempo?
Ela tinha ficado surpresa ao sentir os dedos de Rio acariciando seu rosto quando despertou. Aquele contato parecia tão suave, tão protetor e tão quente. Mas também tinha sido muito fugaz, tinha sido interrompido tão logo ele se dera conta de que ela estava acordando, tão logo notara que ela estava percebendo o que acontecia. Será que ele também percebeu que ela estava gostando?
Não, Dylan não queria sentir o calor de Rio, tampouco queria demonstrar algum calor para ele, mas ela não conseguia negar que havia algo de eletrizante na maneira como ele a olhava. Havia algo inegavelmente sedutor na maneira como ele a tocava. Ela queria saber mais sobre aquele homem – ela precisava saber mais sobre aquele homem. Afinal de contas, como sua prisioneira, seria de seu maior interesse saber qualquer coisa que pudesse a respeito do homem que a mantinha como refém. Como jornalista em busca – ou à espera – de uma grande matéria, era obrigação dela juntar até os mais insignificantes fatos e perseguir a verdade até o fim. Entretanto, era seu interesse como mulher o que mais incomodava Dylan.
Era aquele desejo mais íntimo e pessoal de saber mais sobre o tipo de homem que Rio era que fazia com que ela vagasse de um lado para o outro naqueles aposentos chiques. A decoração era exuberante e sensual, uma explosão de cores brilhantes que iam desde a roupa de cama de seda, da cor de ameixas maduras, até o tom dourado da pintura que cobria as paredes. Uma coleção de pinturas abstratas, tão brilhantes e gritantes que chegavam a fazer os olhos de Dylan doer, cobriam uma parede inteira da suíte luxuosa. Outra parede ostentava um espelho com uma moldura exuberante e obviamente caríssima. E o objeto estava colocado estrategicamente de modo a refletir os quatro lados da cama de dossel e tudo o que, por ventura, pudesse estar acontecendo em cima daqueles lençóis. Excitante.
– Sutil... – murmurou Dylan, girando os olhos enquanto se aproximava de um par de portas duplas que havia do outro lado do quarto. Ela as abriu e ficou de boca aberta quando percebeu que se tratava do closet... Um closet que tinha mais metros quadrados do que todo o seu apartamento no Brooklin.
– Santo Deus!
Ela entrou e imediatamente se deu conta de que havia mais espelhos ali dentro – e por que você não iria querer admirar-se em todos os ângulos possíveis quando tinha metade da Chanel à sua disposição?
Dylan ficou tentada a perscrutar aquele lugar que deveria ter milhares de dólares em roupas e sapatos assinados por estilistas famosos, mas um pensamento triste logo tomou conta de sua mente: apenas um quarto do armário tinha roupas masculinas. O resto todo pertencia a uma mulher. Uma mulher pequena, delicada, cujo gosto era, obviamente, muito caro. Aqueles aposentos poderiam ser de Rio, mas certamente ele não vivia ali sozinho.
Mas que merda! Será que ele era casado?!
Dylan deu meia-volta e saiu do closet, fechando bruscamente a porta e intimamente desejando nunca ter entrado ali. Dirigiu-se para a sala, observando atentamente cada detalhe e inegavelmente percebendo que havia um toque feminino em todos os cantos para os quais olhava. Nada se parecia nem de longe com seu estilo, mas, afinal, o que Dylan sabia sobre design de interiores mesmo? Não muito. Sua melhor peça de mobília era um sofá-cama que ela comprara de segunda mão.
Dylan deixou a mão percorrer o encosto de uma nogueira esculpida como uma cadeira enquanto observava a mobília declaradamente elegante do lugar. Ela se aproximou de um sofá de veludo dourado e parou enquanto seu olhar capturava uma pequena coleção de fotografias emolduradas minuciosamente expostas na mesa que havia atrás do sofá.
A primeira coisa que viu foi uma fotografia de Rio. Ele estava sentado no banco do passageiro de um clássico Thunderbird conversível que tinha sido estacionado sob a luz da lua em alguma praia deserta. Ele vestia uma camisa de seda preta – desabotoada, obviamente – e uma calça da mesma cor; suas coxas estavam ligeiramente separadas em um “V” casual e os dedos de seus pés descalços estavam inocentemente enterrados na areia branca enquanto seu olhar topázio escuro brilhava com uma espécie de sabedoria oculta e privada, e seu sorriso nebuloso o tornava igualmente perigoso e atraente.
Jesus Cristo, ele era lindo.
Para dizer a verdade, ele era muito mais do que lindo.
A foto não parecia antiga. Não havia cicatrizes no lado esquerdo do rosto dele, de modo que a lesão que ele sofrera devia ser bastante recente. Seja lá o que tenha roubado sua aparência clássica e incrivelmente atraente, a maior tragédia parecia ser a fúria que Rio havia dentro de si. Dylan olhou para a fotografia de Rio em dias felizes, e se perguntou como ele poderia ter mudado tanto desde aquela época.
Ela então olhou para outra fotografia, essa sim, antiga. Era uma imagem profissional em tons de sépia de uma mulher com os cabelos negros vestindo um bufante vestido vitoriano de gola alta. Dylan se inclinou para poder ter uma visão melhor enquanto se perguntava se aquela beleza exótica com sorriso tímido poderia ser, de repente, a avó de Rio. Os olhos escuros da modelo encaravam direta e fixamente a lente da câmera, lançando um olhar de pura sedução. Ela era bela, a mulher da fotografia, apesar da moda recatada de sua época.
E seu rosto... seu rosto parecia extremamente familiar.
– Ah, meu Deus!
A incredulidade, assim como o absoluto deslumbramento, inundou Dylan conforme ela deslizava o olhar para outra fotografia que havia na mesa. Esta, uma imagem colorida, obviamente tirada na última década ou menos... e na qual a mesma mulher da foto antiga também era modelo. Essa última imagem, tirada durante a noite, mostrava uma mulher de pé em uma ponte de pedra no meio de um parque, rindo enquanto seus belos e longos cabelos negros balançavam em sua cabeça. Ela parecia feliz, mas Dylan viu uma tristeza em seus olhos escuros – dolorosos segredos profundamente escondidos em seu olhar castanho-escuro que estava fixo em quem quer que estivesse tirando a foto.
E Dylan reconhecia aquele rosto, ela tinha certeza de que sim... Sim, ela percebia agora, e não era apenas da série de fotografias espalhadas naquela mesa e que a jornalista acabara de ver... Não, aquele rosto era familiar. Dylan já o tinha visto, sim, ela o reconhecia agora porque já o tinha visto na montanha, em Jicín. Aquele era, definitivamente, o rosto da mulher morta. A bela – e morta – mulher que a havia conduzido à caverna onde ela encontrara Rio – Dylan se dava conta disso agora – era esposa dele.
Capítulo 15
Era quase como se ele nunca tivesse deixado aquele local.
Rio estava no laboratório de alta tecnologia do complexo, cercado por Lucan, Gideon e Tegan, que o tinham saudado e oferecido um aperto de mão – sinal da amizade e da confiança verdadeiras.
O aperto de mão de Tegan se prolongou por mais tempo. Rio sabia que o forte guerreiro com cabelos acobreados e olhos esmeraldas era capaz de ler sua culpa e suas incertezas por meio da ligação entre suas mãos. Esse era o dom de Tegan, adivinhar as verdadeiras emoções com apenas um toque.
Ele deu um aceno quase imperceptível com a cabeça.
– Coisas ruins acontecem, meu amigo. E Deus sabe que todos nós temos nossos demônios tentando nos passar a perna. Então, ninguém está aqui para julgá-lo. Entendeu?
Rio assentiu com a cabeça enquanto Tegan soltava sua mão. Ao entregar a bolsa de Dylan a Gideon, o vampiro recém-chegado observou a parte posterior do laboratório, onde Dante e Chase limpavam suas armas para usá-las durante a noite. Dante ofereceu uma pequena saudação com o queixo, mas o olhar de aço de Chase deixava claro que ele não sabia o que pensar quando o assunto era Rio. Um homem inteligente. Rio imaginou que a reação do ex-agente fosse, provavelmente, a sua própria reação caso a situação fosse inversa e fosse Chase quem estivesse voando naquele jato em busca de resgate.
– Quanto a mulher sabe a nosso respeito? – perguntou Lucan.
Com novecentos anos de idade e fazendo parte da Primeira Geração da Raça, o fundador da Ordem e líder formidável poderia controlar toda uma sala com apenas um movimento de suas sobrancelhas negras. Rio o considerava um amigo – todos os guerreiros eram tão próximos que pareciam até mesmo familiares uns dos outros – e Rio odiava com todas as suas forças a possibilidade de tê-lo decepcionado.
– Só dei a ela as informações básicas – respondeu Rio. – Não acredito que ela esteja completamente convencida.
Lucan grunhiu, assentindo pensativamente.
– Realmente, são muitas informações para ela processar. Ela entende o propósito da cripta na montanha?
– Na verdade, não. Ela me ouviu chamando aquilo de câmara de hibernação quando Gideon e eu estávamos conversando, mas não sabe nada além disso. Pode ter certeza de que não pretendo dar mais nenhuma pista a ela. O fato de ela ter visto aquilo já é ruim demais. – Rio exalou um suspiro duro. – Ela é inteligente, Lucan. Não acredito que vá levar muito tempo para juntar as peças do quebra-cabeça.
– Então será melhor agirmos logo. Quanto menos detalhes tivermos que esclarecer posteriormente, melhor – explicou Lucan. Ele lançou um olhar a Gideon, que tinha aberto o laptop de Dylan no console ao seu lado. – Quão difícil acredita que será hackear e acabar com as fotos que ela enviou por e-mail?
– Apagar os arquivos da câmera e do computador é fácil. Demora apenas alguns segundos.
– E quanto a apagar as fotos da caixa de entrada daqueles que as receberam?
Gideon franziu o rosto como se estivesse calculando a raiz quadrada da renda líquida de Bill Gates.
– Algo como dez minutos para enviar uma bomba e estourar o disco rígido de todos os computadores da lista de contatos dela. Treze minutos se você quiser algo mais sutil.
– Eu não estou nem aí com o fator sutileza. – Lucan deixou claro. – Faça o que for necessário para destruir as fotos e destruir qualquer referência escrita ao que ela encontrou na montanha.
– Pode contar comigo – respondeu Gideon, que já se encontrava fazendo sua magia em ambos os dispositivos.
– Podemos destruir os arquivos eletrônicos, mas ainda teremos de tratar com as pessoas com quem ela manteve contato sobre a caverna – esclareceu Rio. – Além do chefe dela, há três mulheres com quem ela estava viajando. E também a mãe dela.
– Vou deixar isso para você – disse Lucan. – Não me importa como você vai fazer isso. Faça-a negar a história, acabe com a credibilidade dela ou saia para encontrar as pessoas com quem ela conversou e apague a memória de cada uma delas. A decisão é sua, Rio. Simplesmente dê um jeito na situação, como sei que você vai fazer.
Rio assentiu.
– Eu lhe dou minha palavra, Lucan. Vou consertar a situação.
A expressão do vampiro da Primeira Geração era tão sombria quanto segura.
– Não duvido de você. Nunca duvidei e nunca duvidarei.
A confiança de Lucan era inesperada, e um presente que Rio não tinha intenção de desperdiçar, independentemente de quão destruído ele soubesse estar. Durante muitos anos, a Ordem e os guerreiros que a serviam eram seu principal propósito na vida – inclusive acima de seu amor por Eva, o que acabou gerando um ressentimento silencioso, porém colérico, nela. Rio estava comprometido com até o último destes homens – como se eles fossem seus parentes de sangue –, comprometido a lutar por eles e, inclusive, a morrer por eles. Ele olhou em volta, sentindo-se humilde pelos rostos sombrios e corajosos dos cinco homens da Raça que ele sabia, sem dúvida alguma, que também dariam suas vidas por ele.
Rio limpou a garganta, sentindo-se desconfortável com as boas vidas praticamente unânimes de seus irmãos. Do outro lado do laboratório, as portas de vidro se abriram quando Nikolai, Brock e Kade chegaram, vindos do corredor. Os três conversavam com empolgação, trazendo um ar de camaradagem quando entraram no laboratório.
– Oi! – disse Niko, lançando a saudação para ninguém em particular. Seus olhos azuis como o gelo pararam em Rio por um segundo antes de ele finalmente olhar para Lucan e começar a detalhar a patrulha da noite. – Acabamos com um Renegado perto do rio há mais ou menos uma hora. O filho da mãe estava escondido em um contêiner de lixo quando o encontramos.
– Você acha que é um dos cachorros de Marek? – perguntou Lucan, referindo-se ao exército de Renegados que seu próprio irmão vinha criando até a Ordem finalmente intervir. Marek tinha morrido pelas mãos da Ordem, mas os vermes de seu exército ainda precisavam ser exterminados.
Nikolai ofereceu um aceno com a cabeça.
– O desgraçado não era um soldado, mas apenas um viciado tentando satisfazer sua sede de sangue. Imagino que só tenha passado algumas poucas noites fora do Refúgio Secreto. E nós o liquidamos facilmente. – O vampiro russo olhou atrás de Rio e lançou um sorriso desajeitado para Dante e Chase. – Alguma ação no lado Sul?
– Não, nada – murmurou Chase. – Estávamos muito ocupados buscando alguém no aeroporto.
Nikolai grunhiu, compreendendo o comentário e lançando um olhar em direção a Rio.
– Faz tempo, hein cara?! É bom ver que você continua inteiro.
Rio conhecia aquele cara muito bem para pensar que o comentário era amistoso. De todos os guerreiros da Ordem, Rio esperava que fosse Nikolai o primeiro na fila para defendê-lo – mesmo se Rio fosse ou não digno de defesa. Niko era o irmão que Rio nunca tivera. Os dois tinham nascido no século anterior e entrado para a Ordem em Boston na mesma época.
Era estranho Niko estar ausente durante a chegada de Rio ao complexo. No entanto, conhecendo o vampiro e seu amor pelo combate, ele provavelmente estava irritado com o fato de sua equipe de patrulha ter sido reduzida algumas horas antes do amanhecer.
Antes que Rio pudesse dizer qualquer coisa a seu velho amigo, a atenção de Nikolai voltou a Lucan.
– O Renegado que encontramos esta noite era jovem, mas a matança que ele tinha deixado para trás parecia ser trabalho de mais de um vampiro. Eu gostaria de retornar lá amanhã e verificar as redondezas. Talvez encontremos mais alguma coisa.
Lucan assentiu:
– Parece uma boa ideia.
Depois de resolver isso, Niko dirigiu sua atenção para Kade e Brock:
– Temos tempo suficiente antes do amanhecer para caçar um pouco. Alguém aí se sentiu com sede de repente?
Os olhos de Kade brilharam como mercúrio.
– Há um lugar em North End que deve ser bem interessante. Lá há um monte de jovens no ponto certo.
– Pode contar comigo – disse Chase com palavras arrastadas, saindo de sua cadeira ao lado de Dante para unir-se aos outros três vampiros não comprometidos conforme eles começavam a caminhar na direção da saída do laboratório.
Por um instante, Rio os observou partir. Entretanto, quando viu Nikolai sair junto aos outros, xingou em voz baixa e, logo depois, correu atrás dele.
– Niko, espere.
O guerreiro seguiu seu caminho, como se não tivesse ouvido nada.
– Espere, cara. Caramba, Nikolai. Que diabos está acontecendo com você?
Quando Chase, Brock e Kade pararam para olhar atrás, Niko acenou para que eles continuassem. Os três seguiram seu caminho, virando no canto do corredor e desaparecendo de vista. Depois de uns poucos segundos, finalmente, Niko deu meia-volta.
O rosto que olhava para Rio no túnel branco era duro e incompreensível.
– Sim. Estou aqui. O que você quer?
Rio não sabia como responder àquilo. A hostilidade saiu da boca de seu velho amigo como um vento frio de inverno.
– Fiz algo que o incomodou?
O som da risada de Nikolai raspava contra as paredes de mármore.
– Vá se ferrar, cara.
Nikolai deu meia-volta e começou a se afastar novamente.
Rio o alcançou em um piscar de olhos. Estava a ponto de agarrar o ombro do guerreiro e obrigá-lo a parar, mas Niko se movimentou com mais agilidade. O vampiro russo virou-se e golpeou Rio, acertando-o no esterno, fazendo-o bater a coluna contra a sólida parede no outro lado do corredor.
– Você quer morrer, seu filho da mãe? – Niko estava com os ombros entreabertos, a cor âmbar acesa como resultado de toda aquela ira. – Se você quer se matar, é problema seu. Só não peça a minha ajuda, está bem?
Os músculos de Rio estavam retesados e prontos para uma briga. Seus instintos de combate se tornaram mais aguçados, apesar de ele estar enfrentando um aliado de longa data. No entanto, enquanto Nikolai falava, a fúria que cresceu em Rio rapidamente se reduziu. De repente, a cólera que Niko sentia contra ele fez sentido. Afinal, Nikolai sabia que Rio tinha ficado naquela montanha da Boêmia com intenções de acabar com a própria vida. Se Niko não tinha se dado conta disso cinco meses atrás, agora ele tinha certeza.
– Você mentiu para mim – esbravejou Niko. – Você me olhou diretamente nos olhos e mentiu para mim, cara. Você nunca ia voltar para a Espanha. O que pretendia fazer com o C-4 que eu dei para você? Você pretendia detonar aquela droga presa ao seu corpo, como se fosse um camicase se divertindo. Ou talvez você só estivesse planejando se prender no interior daquela maldita caverna e ficar lá, esquecido por toda a eternidade. O que você ia fazer, amigo? Como você pretendia acabar com a própria vida?
Rio não respondeu. Não era necessário. De todos os guerreiros da Ordem, Nikolai era o que melhor o conhecia. Nikolai tinha visto Rio como o covarde e fraco que ele realmente era. Só ele sabia o quão próximo Rio tinha estado de dar um fim a tudo – antes mesmo de ele chegar àquela montanha tcheca.
Tinha sido Niko quem se negara a deixar Rio mergulhar no ódio que sentia de si. E, então, evitar que entrasse naquela espiral de negatividade tinha se tornado sua missão pessoal. Niko, que ajudou Rio a subir na montanha nas semanas que se seguiram, caçando para o amigo que estava fraco demais para cuidar dele mesmo. Nikolai, o irmão que Rio nunca tivera.
– Sim – disse Niko, fechando uma carranca. – Como disse. Vá se ferrar.
Ele tirou o braço do peito de Rio e se afastou, ainda rangendo alguns xingamentos. Rio o viu se distanciar. Os sapatos de Niko pareciam mastigar o piso de mármore polido quando ele se apressou para juntar-se aos outros guerreiros que já estavam a caminho do piso superior.
– Que droga! – murmurou Rio, correndo a mão pelos cabelos.
O choque com Nikolai era só mais uma evidência de que ele não devia ter retornado a Boston – mesmo que isso significasse jogar o problema Dylan Alexander nas mãos de outra pessoa. Rio já não se encaixava ali. Agora ele era um estranho, um elo fraco em meio a uma cadeia de aço, formada pelos corajosos guerreiros da Raça.
Ainda agora ele conseguia sentir suas têmporas latejarem por conta da descarga de adrenalina que tinha ocorrido alguns minutos atrás, quando parecia que Niko queria cortá-lo em pedaços. Sua visão começou a tremer enquanto ele estava parado ali. Se não se movesse e encontrasse um local privado para aguentar a crise mental que estava por vir, Rio sabia que seria questão de minutos antes que acordasse caído sobre o mármore que revestia o chão do corredor. E, francamente, ver Lucan e aos outros saírem do laboratório para olhá-lo fixamente como se ele fosse um moribundo era algo que não queria experimentar.
Ele forçou suas pernas a se movimentarem e, com uma dificuldade acentuada, conseguiu encontrar o caminho de volta até seus aposentos. Entrou, cambaleando, e fechou a porta. Em seguida, entregou-se a uma nova sensação de náusea que o invadiu.
– Você está bem?
A voz feminina vinha de algum ponto distante naquele cômodo. A princípio, não a reconheceu. Seu cérebro estava lutando para realizar as tarefas básicas. Aquela voz brilhante e cristalina não parecia pertencer àquele lugar cheio de lembranças antigas e empoeiradas.
Rio se distanciou da porta e se arrastou pela sala, em direção ao quarto. Seu cérebro transmitia a impressão de que se despedaçaria a qualquer momento.
Água quente. Escuridão. Tranquilidade. Ele precisava dessas três coisas. Imediatamente.
Rio tirou a camisa e a deixou cair no ridículo sofá de veludo de Eva. Ele realmente tinha que queimar todos seus pertences. E era uma pena que ele não tinha como jogar aquela maldita traidora na fogueira junto com todo o resto.
Rio se agarrou à sua fúria pela traição de Eva, um leve castigo, mas aquilo era tudo o que tinha no momento. Abriu as portas do quarto e ouviu um leve suspiro vindo lá de dentro.
– Meu Deus! Rio, você está bem?
Dylan.
O nome dela atravessava como um bálsamo a névoa que envolvia a mente de Rio. Ele levantou o olhar na direção de sua convidada indesejada, que agora estava sentada no canto da cama com algo plano e retangular apoiado em seu colo. Ela deixou o objeto de lado, no criado-mudo, e se aproximou antes que os joelhos dele cedessem.
– Banho – ele conseguiu grunhir.
– Você mal consegue parar em pé – Dylan o ajudou a alcançar a cama, onde ele rapidamente deixou o corpo cair. – Parece que você precisa de um médico. Há alguém aqui que possa ajudá-lo?
– Não – ele respondeu com uma voz rouca. – Uma ducha...
Rio estava fraco demais para usar sua habilidade mental da Raça e abrir o registro da água, mas ele não precisou sequer tentar. Dylan já estava se apressando na direção do banheiro ao lado. Ouviu o forte estalar da água batendo contra o chão e, em seguida, os suaves passos de Dylan no carpete enquanto ela retornava para onde estava caído, com o corpo virado na direção dos pés da cama.
Rio percebeu vagamente a desaceleração dos passos da mulher conforme ela se aproximava. Apenas escutou a respiração rápida logo acima de seu corpo. Mas era impossível confundir quem estava ali quando ela soltou, com a respiração trêmula, alguns palavrões. Um silêncio pesado e demorado se seguiu ao xingamento sussurrado. Em seguida:
– Rio... Meu Deus! Por que tipo de inferno você passou?
Lançando mão até mesmo da última gota de força que tinha, ele conseguiu abrir os olhos. Um erro enorme. O horror que ele viu nos olhos de Dylan era inegável. Ela estava olhando o lado esquerdo de seu corpo... O peito e o torso, que tinham sido destruídos por uma granada que quase esfolou seus ossos com as chamas da explosão que por pouco não lhe tirara a vida.
– Ela... – suave voz de Dylan foi se tornando cada vez mais fraca. – Sua esposa tem algo a ver com o que aconteceu com você?
Rio sentiu seu coração parar de bater. O sangue que antes pulsava fortemente em seus ouvidos se transformou em gelo quando ele conseguiu se concentrar na pergunta de Dylan. A preocupação estampava seu rosto.
– Ela fez isso com você, Rio?
Ele seguiu a mão estendida de Dylan enquanto ela alcançava o objeto que tinha deixado no criado-mudo. Era uma fotografia em um porta-retratos. Rio não precisava ver a foto no vidro para saber que era de Eva, de um passeio que eles tinham feito no Charles River certa noite. Eva, sorrindo. Eva, dizendo o quanto o amava. Enquanto, em suas costas, ela conspirava com os inimigos da Ordem para conquistar seus objetivos egoístas.
Rio grunhiu quando pensou em sua própria burrice. Em sua própria cegueira.
– Isso não é da sua conta – murmurou, ainda à deriva da escuridão que tomava conta de sua mente. – Você não sabe nada a respeito dela.
– Foi ela quem me levou até você. Eu a vi na montanha em Jicín.
Uma suspeita irracional transformou a ira de Rio em um sentimento letal.
– Do que você está falando? Como assim, você a viu?
Dylan engoliu em seco e encolheu levemente o ombro. Em seguida, segurou a fotografia diante dele.
– Eu a vi... O espírito dela estava lá. Ela estava na montanha com você.
– Você só pode estar mentindo – ele grunhiu. – E não me fale dessa mulher. Ela está morta, e merecidamente.
– Ela pediu que eu o ajudasse, Rio. Ela me procurou. Queria que eu salvasse você...
– Já disse para você parar de falar dela! – ele esbravejou.
A raiva fez com que o corpo de Rio estremecesse no colchão como uma víbora sendo atacada. Ele puxou o retrato das mãos de Dylan e o atirou pelo quarto com uma velocidade impressionante. O objeto bateu contra o enorme espelho na parede de frente com a cama, quebrando-o com o impacto e lançando cacos de vidro polido como uma chuva de lâminas.
Rio ouviu o grito de Dylan, mas foi somente quando ele sentiu o cheiro adocicado do sangue dela que se deu conta do que tinha feito.
Ela levou a mão até a maçã do rosto e, quando seus dedos se afastaram, estavam manchados de vermelho por conta de um pequeno ferimento logo abaixo do olho esquerdo.
Foi a visão daquela ferida que tirou Rio daquele espiral de depressão. Como um balde de água fria jogada sobre sua cabeça, ver Dylan ferida o puxou instantaneamente de volta para a realidade.
– Ah, Jesus Cristo! – disse ele com dentes apertados. – Eu sinto muito... Sinto muito!
Ele se moveu para tocá-la, para verificar o quanto a tinha ferido, mas ela se afastou com os olhos completamente aterrorizados.
– Dylan... eu não queria...
– Fique longe de mim!
Ele estendeu a mão, buscando demonstrar que realmente não queria feri-la.
– Não – ela estremeceu enquanto sacudia violentamente a cabeça. – Ah, meu Deus. Não me toque!
Madre de Dios.
Ela agora o olhava com um terror absoluto. E tremia. Seus olhos estavam fixos nele, banhados de medo e confusão.
Quando Rio passou a língua pelas pontas de suas presas salientes, ele entendeu a fonte do terror que Dylan sentia. Ele se levantou diante dela. Ela temia porque ele lhe tinha dito ser um vampiro, embora aquela mente humana tivesse se recusado a acreditar.
Agora, todavia, ela acreditava.
Dylan estava vendo a verdade com seus próprios olhos, as mudanças físicas no corpo de um louco cheio de cicatrizes que agora se transformava em uma criatura saída diretamente de seus piores pesadelos. Era impossível esconder as presas que se tornavam mais longas conforme a fome por ela se intensificava. Era impossível mascarar o afinamento daquelas pupilas conforme o brilho âmbar da sede de sangue embaçava sua visão.
Ele olhou para o pequeno corte, para o fio de sangue que escorria tão vermelho contra a pele macia da bochecha de Dylan. E ele mal conseguia formular um pensamento coerente.
– Eu tentei contar para você, Dylan. Isso é o que eu sou.
Capítulo 16
– Vampiro.
Dylan ouviu a palavra escapar por seus lábios, apesar do fato de mal poder acreditar no que estava vendo – ou dizendo.
Em questão de instantes, Rio tinha se transformado diante dos olhos de Dylan e ela olhava chocada as mudanças que acabara de presenciar. As íris dos olhos dele brilhavam como brasas e não tinham mais a cor topázio habitual. Em vez disso, estavam estampadas com uma inacreditável sombra âmbar que praticamente engolia as pupilas extremamente reduzidas. Os ossos da face de Rio pareciam mais duros agora, ostentando as esguias maçãs do rosto e uma mandíbula quadrada que parecia ter sido esculpida em pedra.
E, atrás do suculento e exuberante corte formado por sua boca, Rio exibia um par de presas que pareciam ter saído diretamente de algum filme de Hollywood.
– Você... – A voz de Dylan desapareceu conforme aqueles hipnóticos olhos cor de âmbar a encararam. Ela se sentou delicadamente na beirada da cama. – Meu Deus... Você realmente é um...
– Eu sou da Raça – ele pronunciou calma e articuladamente. – Exatamente como lhe disse.
Dylan estava sentada diante de Rio, e agora sua visão era preenchida completamente pela ampla musculatura do peito nu do vampiro. O intrincado desenho na pele dos antebraços subia pelos ombros de Rio e descia ao longo de seu peitoral. Todas as marcas – dermoglifos, como ele havia chamado da primeira vez em que ela as percebera – eram de uma cor vívida agora, a cor mais escura que Dylan já as tinha visto ostentar. Tramas profundas de cor púrpura e negra saturavam os belos desenhos e as linhas em forma de arcos.
– Não consigo impedir a transformação – ele murmurou, como se tivesse necessidade de dar uma justificativa a Dylan. – A transformação é espontânea nos machos da Raça quando sentimos o cheiro de sangue fresco.
O olhar dele desviou-se ligeiramente dos olhos de Dylan, e logo repousou na bochecha ferida pelos estilhaços do espelho quebrado. A mulher sentia que ainda havia sangue quente deslizando como uma lágrima por seu queixo. Rio assistia àquela gota deslizar com uma intensidade que fazia Dylan estremecer. Ele passou a língua pelos lábios sensuais e engoliu seco, mas manteve seus dentes cerrados o tempo todo.
– Fique aqui – ele ordenou com uma voz forte e autoritária enquanto franzia a testa com intensidade.
O instinto de Dylan lhe dizia que ela devia ser mais inteligente e correr, mas ela se recusava a sentir – ou, melhor dizendo, a demonstrar sentir – medo daquele homem enorme que estava sem camisa em sua frente. Por mais estranho que parecesse, Dylan sentia que tinha realmente conhecido aquele homem nos últimos dias, durante os quais eles foram obrigados a conviver. Rio não era nenhum santo, aquilo era um fato. Ele a tinha raptado, aprisionado e ela ainda não estava certa sobre o que ele queria fazer com ela – Santo Deus! No entanto, ela não acreditava que ele fosse perigoso – não para ela.
O que Dylan acabara de testemunhar ali não era exatamente algo a ser celebrado, mas, em seu coração, ela não sentia medo do que ele era.
Bem, não completamente.
Dylan ouviu quando Rio desligou o registro do chuveiro e saiu, poucos segundos depois, segurando uma toalha branca e umedecida que ele ofereceu para ela.
– Pressione isso contra a ferida. Vai estancar o sangramento.
Dylan tomou a toalha em suas mãos e a pressionou no rosto, exatamente como ele lhe dissera. Ela, porém, não pôde deixar de perceber a longa expiração que ele soltou quando a ferida em sua bochecha fora finalmente coberta, como se agora estivesse aliviado por não precisar mais passar pelo inferno de ter de olhar para aquilo e resistir. A cor ardente dos olhos de Rio começou a escurecer lentamente e as pupilas estreitas reassumiram a forma arredondada. Os dermoglifos, no entanto, ainda estavam avermelhados; as presas, ainda mortalmente afiadas.
– Você realmente é um... não é? – ela murmurou. – Você é um vampiro. Jesus Cristo! Não consigo acreditar que isso seja verdade. Quer dizer, como isso pode ser verdade, Rio?
Ele se sentou ao lado dela na cama. Menos de um metro de distância os separava agora.
– Eu já expliquei isso para você.
– Extraterrestres bebedores de sangue e mulheres humanas com DNA compatível com os deles – disse ela, recordando-se da estranha história sobre a raça híbrida de vampiros que ela tentara encarar como ficção científica. – Tudo isso é verdade?
– A verdade é um pouco mais complicada do que isso, mas sim... Tudo o que eu lhe disse é verdade.
Incrível.
Totalmente incrível.
Uma parte mercenária dela quase gritou de excitação ao pensar na potencial fama e fortuna que a revelação daquela história poderia lhe trazer. Mas havia outra parte de Dylan – a que não tinha se esquecido daquela incomum marca de nascença que ela trazia gravada na parte de trás do pescoço, a parte que ainda se lembrava de que ela tinha, aparentemente, uma forte conexão com aquele mundo – que mostrou instantaneamente seus instintos protetores, como se Rio e o mundo em que ele vivia fossem um delicioso segredo que pertencia exclusivamente a ela.
– Desculpe-me se eu chateei você – ela disse serenamente. – Eu não devia ter bisbilhotado as coisas enquanto você não estava aqui.
A cabeça dele se virou bruscamente e sua testa enrugou-se, levando as sobrancelhas a se unirem. O xingamento que ele murmurou foi forte e palpável.
– Você não precisa me pedir desculpas, Dylan. Fui eu quem errou. Eu nunca deveria ter entrado aqui no estado em que estava. Eu não posso ficar perto de ninguém quando estou daquele jeito.
– Você parece estar um pouco melhor agora.
Ele assentiu, sua cabeça caindo levemente em direção ao peito nu.
– A raiva diminui... no final. Se você não apagar antes, ela em algum momento... passa.
Não fazia muito tempo que Rio aparecera cambaleando no quarto, bastante desatento, com seus pés mal respondendo aos passos dificultosos que ele tentava dar. Ele mal conseguia pensar, seus músculos e ossos estavam embebidos em uma fúria insana.
– O que desperta isso, Rio?
Ele deu de ombros.
– Pequenas coisas, nada em especial. Nunca sei, exatamente.
– Aquele tipo de raiva faz parte do que você é? Todos os homens da Raça têm de passar por esse tipo de tormento?
– Não – disse, soltando o tipo de sorriso de alguém que está zombando de si. – Não. Esse problema é apenas meu. Falta um parafuso na minha cabeça. Eu o perdi no verão passado e nunca mais o encontrei.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan gentilmente. – Foi isso que aconteceu com você?
– Foi um erro – ele respondeu com uma ponta de insegurança na voz. – Eu confiei em alguém em quem não deveria ter confiado.
Dylan olhou para o dano terrível que o corpo de Rio tinha sofrido. O rosto e o pescoço dele carregavam graves cicatrizes, mas seu ombro esquerdo e metade de seu torso musculoso pareciam ter ido e voltado do inferno. Seu coração apertou-se em seu peito quando ela pensou na dor que ele deveria ter suportado, tanto no acontecimento que ferira seu corpo daquela forma, quanto no que provavelmente foram meses e meses de recuperação.
Ele estava ali, sentado naquela cama tão rigidamente, tão solitário e tão inalcançável, apesar de estar a menos de um braço de distância dela. Para Dylan, Rio parecia sozinho. Sozinho e à deriva.
– Sinto muito, Rio – disse ela. E antes que pudesse se interromper, Dylan colocou sua mão sobre a mão dele, que ele agora descansava sobre a coxa. ele estremeceu como se carvão em brasa tivesse sido colocado sobre sua pele. Todavia, não se afastou.
Ele olhou fixamente para os dedos de Dylan que descansavam suavemente sobre os dele, branco pálido sobre um tom bronzeado. Quando olhou para ela, lançou-lhe um olhar rústico e másculo que preenchia seus olhos completamente. Ela se perguntava quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele fora tocado com algum tipo de ternura.
Dylan deslizou seus dedos sobre a mão máscula de Rio, estudando o incrível tamanho e a enorme força que ela tinha. A pele dele era tão quente e havia tanta força concentrada em seu corpo, mesmo quando ele parecia determinado a manter-se perfeitamente parado.
– Sinto muito por tudo o que você enfrentou, Rio. Sinto de verdade.
A mandíbula dele estava tão apertada que fez um músculo de seu rosto se contrair. Dylan colocou de lado a toalha umedecida que ele tinha lhe trazido e mal percebia que todos os seus sentidos estavam concentrados nele e na eletricidade que parecia emanar de suas mãos entrelaçadas.
Ela ouviu um ruído baixo se formar dentro de Rio, algo entre um grunhido e um gemido. O olhar dele deslizou para a boca de Dylan, e, por um segundo – um rápido, um breve segundo que teria durado o tempo de uma batida do coração – ela se perguntou se ele iria beijá-la.
Dylan sabia que devia retroceder. Sabia que devia tirar sua mão de cima da mão dele, colocá-la longe. Sabia que devia fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não fosse ficar ali, parada, quase sem respiração enquanto esperava e desejava – desejava desesperadamente, incontrolavelmente – que ele se debruçasse sobre ela e apertasse seus lábios contra os dele.
E, de repente, ela não conseguia mais não tocá-lo. Foi quando estendeu a mão que estava livre e acariciou o rosto de Rio, sentindo um repentino sopro de ar gelado empurrá-la – com a imponência da Grande Muralha da China.
– Não quero sua compaixão – grunhiu Rio com uma voz que ela não reconheceu como sendo dele. O sotaque espanhol estava ali, como sempre, mas as sílabas eram ásperas e o timbre não era exatamente humano, o que imediatamente fez Dylan se lembrar de qual era a natureza daquele ser diante dela. Rio puxou a mão de debaixo da dela e se levantou da cama.
– O corte está sangrando. Você precisa de cuidados que não posso lhe oferecer.
– Tenho certeza de que não é nada grave – respondeu Dylan, sentindo-se uma idiota por se colocar em uma situação como aquela com ele. Depois, pegou novamente a toalha que descartara momentos antes e a pressionou outra vez contra o ferimento. – Não é nada. Vou ficar bem.
Não havia sentido algum em Dylan falar qualquer coisa que fosse, já que Rio não a ouviria, de qualquer forma. Ela o viu caminhar até a sala da frente, passando pelo espelho quebrado, e pegar um telefone sem fio, no qual imediatamente teclou uma sequência curta de números.
– Dante? Olá. Não, nenhum problema. Mas eu, é... Tess está por aí? Preciso que ela me faça um favor.
Rio parecia um animal enjaulado, andando de um lado para o outro durante os poucos minutos que se passaram até a ajuda chegar. Ele ficou do lado de fora do quarto, confinado a um espaço minúsculo perto da entrada principal. Ficou tão distante de Dylan quanto poderia ficar sem de fato ter de sair daquele maldito quarto e esperar do lado de fora.
Madre de Dios.
Ele quase lhe beijara.
E ele queria tê-la beijado. E admitir aquilo – mesmo que apenas para si – era como levar um soco no estômago. Beijar Dylan Alexander era uma maneira garantida de transformar uma situação que já era bastante ruim em algo que seria, de fato, catastrófico. Isso porque Rio sabia sem qualquer sombra de dúvida que, se beijasse aquela bela e ardente mulher, ele não conseguiria se conter, não conseguiria, de forma alguma, parar no beijo. Não, mesmo.
O simples pensamento da sensação que seria a de pressionar seus lábios contra os dela já fazia o sangue de Rio ferver e correr acelerado em suas veias. Seus dermoglifos pulsavam com as cores de seu desejo – agitando-se em tons de vermelho-escuro e negros. E também era impossível negar a outra evidência daquele desejo: seu pênis estava tão duro quanto granito, e estava daquele jeito desde o instante em que Dylan, inesperadamente, inadvertidamente, pousara a mão sobre sua coxa.
Jesus Cristo!
Ele sequer se atrevia a olhar para dentro do quarto, com medo de não ser capaz de impedir seus pés de marcharem de volta pelas portas fechadas e levarem-no diretamente para os braços de Dylan.
“Como ela provavelmente desejava” – ele pensou ardentemente.
Aquela carícia que Dylan fizera em sua mão tinha sido um gesto delicado, doce, do tipo que uma mãe faz em uma criança. Ou, pior do que isso, aquele gesto poderia ter sido um gesto de compaixão de um anjo caridoso que consola uma das criaturas mais infelizes criadas por Deus.
Maldecido.
Manos del diablo.
Monstruo.
Sim, Rio era todas essas coisas. E agora Dylan tinha visto como ele era realmente feio. Para seu crédito, ela não tinha recuado ao ver toda aquela carne retorcida e aquelas presas – o que queria dizer então que ela era muito mais forte do que aquilo tudo. Mas acreditar que ela poderia receber, poderia desejar seu toque? Que ela poderia aproximar-se o suficiente de seu rosto arruinado e permitir que ele a beijasse?
Jamais! E ele agradeceu a Deus por aquilo, pois aquilo lhe tinha poupado de ver a repugnância dela. Aquilo lhe tinha poupado de fazer algo realmente idiota, como se esquecer – ainda que por um segundo apenas – de que ela estava ali, no complexo – ali, em seu quarto – somente até que ele corrigisse o erro que cometera ao permitir que ela se aproximasse daquela maldita caverna em Jicín. Quanto mais rápido ele conseguisse fazer aquilo – consertar aquele erro – e mandar Dylan para casa, melhor.
Um golpe seco ecoou contra a porta.
Rio atendeu, com um grunhido de frustração.
– Você soava péssimo ao telefone, então decidi vir com Tess e ver com meus próprios olhos. – A boca de Dante curvou-se em um sorriso arrogante que só ele sabia dar enquanto seu corpo enorme permanecia parado na soleira da porta ao lado de sua bela Companheira de Raça. – E então, você não vai nos deixar entrar, cara?
– Claro.
Rio deu um passo para o lado, abrindo espaço para o casal entrar.
A companheira de Dante parecia ainda mais bela sob a luz daquele quarto. As longas ondas cor de mel de seus cabelos estavam presas em um rabo de cavalo frouxo e seus inquiridores olhos verde-mar eram suaves, mesmo quando encaravam Rio.
– É bom vê-lo novamente, Rio – disse ela, e, sem hesitação, deu um passo adiante e ficou na ponta dos dedos dos pés para dar um abraço rápido no guerreiro e beijar-lhe levemente a bochecha. – Dante e eu ficamos tão preocupados com você durante esses meses todos...
– Não precisava – respondeu Rio, embora não pudesse negar que aquela preocupação o deixava, de certa forma, feliz.
Tess e Dante estavam juntos desde o final do último outono. Ela tinha entrado para a Ordem com um extraordinário dom de curar e restaurar a vida com o simples toque de suas mãos macias. O toque de Tess tinha um poder inimaginável, mas nem mesmo ela fora capaz de consertar todos os danos que Rio tinha sofrido. Ele já estava muito longe quando ela chegou ao complexo, e as cicatrizes dele – tanto as interiores quanto as exteriores – eram permanentes, embora não fosse por falta de tentativas de Tess.
Dante passou o braço musculoso em volta de sua Companheira de Raça em um movimento que era protetor e respeitoso ao mesmo tempo. E foi então que Rio notou a leve protuberância no ventre dela. Tess percebeu o olhar de Rio e abriu um sorriso tão imaculado quanto o da própria Madonna de Botticelli.
– Estou nos primeiros três meses – ela disse, virando-se toda sorridente para Dante. – Alguém está usando isso como desculpa para me mimar.
Dante sorriu.
– Eu? Por favor...
– Felicidades – murmurou Rio, sinceramente sentindo os votos que desejava.
Não era comum guerreiros e Companheiras de Raça começarem uma família dentro da Ordem. Aliás, praticamente não se ouvia falar daquilo. Os homens da Raça que dedicavam suas vidas à luta contra os Renegados não eram tipos muito familiares, por assim dizer. Mas acontece que Dante nunca fora como esses guerreiros, então...
– Onde está Dylan? – perguntou Tess.
Rio gesticulou, apontando para as portas que estavam fechadas.
– Eu fui um idiota com ela. Tive uma crise e... Droga! Acabei quebrando o espelho. Um dos estilhaços acabou atingindo o rosto dela.
– Você ainda está tendo apagões? – perguntou novamente Tess, franzindo a testa. – As dores de cabeça ainda não passaram?
Rio recuou, obviamente não querendo falar sobre seus próprios problemas.
– Eu estou bem. – Foi tudo o que ele disse. – Apenas cuide dela, certo?
– Eu cuidarei. – Tess pegou uma pequena maleta médica das mãos de Dante, sob o olhar interrogativo de Rio, e completou:
– Desde que eu engravidei, minhas habilidades diminuíram. Eu entendo que, na gravidez, é normal a energia da Companheira de Raça se voltar para dentro do próprio corpo. As coisas vão voltar ao normal quando o bebê nascer. Até lá, terei de me apoiar na boa e velha medicina tradicional.
Rio lançou um olhar sobre seus ombros para dentro do quarto. Ele não conseguia ver Dylan, mas imaginou que ela estava lá dentro, precisando ver alguém gentil e carinhoso. Alguém que pudesse melhorar seu humor e conversar com ela como uma pessoa normal; alguém que pudesse tranquilizá-la, dizer-lhe que ela estava segura, que estava entre pessoas em quem ela podia confiar. Especialmente depois da espetacular demonstração de raiva psicótica e desregrada que ele, Rio, tinha feito para ela.
– Está tudo bem – disse Tess. – Não se preocupe, vou cuidar dela.
Com o punho fechado, Dante golpeou levemente o bíceps bem definido de Rio.
– Venha – disse –, vamos dar o fora daqui. Ainda falta uma hora para o amanhecer. E parece que você está precisando tomar um pouco de ar fresco, cara.
Capítulo 17
Dylan estava agachada perto do pé da cama, recolhendo cacos de vidro, quando as portas se abriram suavemente, abrindo caminho para o dormitório.
– Dylan?
Aquela era uma voz feminina. A mesma que, havia um minuto, ela tinha ouvido conversar baixinho com Rio e outro homem. Dylan olhou para cima e sentiu o calor instantâneo de um olhar brilhante que estava logo acima dela.
A mulher, jovem e bela, sorriu.
– Olá. Meu nome é Tess.
– Olá.
Dylan deixou um caco de vidro de lado e inclinou o corpo para recolher outro.
– Rio me pediu para vir ver se você estava bem.
Tess trazia consigo uma bolsa de couro preta quando entrou nos aposentos.
– Você está bem? – insistiu.
Dylan assentiu.
– É só um arranhão.
– Rio está se sentindo péssimo por causa disso. Ele anda passando por... problemas. Já faz algum tempo. Desde a explosão do armazém no verão passado. Ele tem sorte de estar vivo.
Meu Deus! Então isso explicava as queimaduras e as cicatrizes. Uma explosão havia feito aquilo? Quer dizer então que Rio realmente tinha feito uma viagem de ida e volta para o inferno, como Dylan havia suposto.
Tess continuou:
– Por causa do trauma cerebral causado pela explosão, ele tem blecautes de tempos em tempos. Além disso, Rio também tem fortes dores de cabeça, mudanças de humor... Bem, acredito que você deve ter visto com seus próprios olhos. Não é coisa para brincadeira. Mas ele não quis feri-la, disso eu tenho certeza.
– Estou bem – insistiu Dylan, sem se preocupar com o arranhão em sua bochecha. – Tentei dizer para ele que isto aqui não era nada. O corte nem está sangrando mais.
– É um alívio – disse Tess enquanto colocava a bolsa médica sob a escrivaninha. – Fico contente de saber que não é tão grave quanto Rio temia. Da forma como ele descreveu pelo telefone, pensei que teríamos que dar pelo menos meia dúzia de pontos. Mas pelo que vejo, um pouco de antisséptico e um curativo serão suficientes – Tess caminhou por onde Dylan recolhia os pedaços do espelho despedaçado. – Venha, deixe-me ajudá-la.
Quando Tess se aproximou, Dylan se deu conta de que a palma da mão de Tess estava apoiada sobre a curva na barriga. Ela estava grávida. E não foi apenas pela aparência física que Dylan percebeu, mas pelo fato de aquela mulher resplandecer com um brilho interior que não deixava dúvida alguma.
Além disso – e, talvez ainda mais estranho –, na mão que repousava sobre as primeiras fases de um bebê em desenvolvimento, havia uma pequena marca de nascença. Dylan não pôde deixar de olhar fixamente para a lágrima escarlate e a meia-lua na mão direita daquela mulher – a mesma marca com a qual ela tinha nascido, aquela que trazia no pescoço.
– Você vive aqui? – perguntou Dylan. – Com... eles?
Tess assentiu.
– Vivo com Dante. Ele é um guerreiro da Ordem, como Rio e os outros que vivem aqui no complexo.
Dylan acenou na direção da pequena marca de nascimento entre o polegar e o indicador de Tess:
– Você é a... Companheira de Raça dele? – perguntou, recordando o termo que Rio tinha usado depois de perceber que Dylan tinha uma marca idêntica àquela. – Você se casou com um deles?
– Dante e eu procriamos no ano passado – explicou Tess. – Fomos unidos por nosso sangue, o que nos liga de uma forma muito mais profunda do que o casamento. Imagino que Rio já tenha lhe dito algumas coisas sobre a Raça... Como eles vivem, de onde vêm. Depois do que aconteceu, estou segura de que você não tem dúvidas do que eles são.
Dylan assentiu, ainda sem acreditar que tudo aquilo poderia ser realmente verdade.
– Vampiros.
Tess sorriu gentilmente.
– Isso foi o que eu pensei a princípio. Porém, defini-los não é algo tão simples assim. A Raça é um pouco complicada. Eles vivem em um mundo complexo e cheio de inimigos. As coisas podem ser muito perigosas para eles e para quem os ama. Para os poucos homens que se comprometeram com a Ordem, cada noite é um risco para suas vidas.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan com um tom que deixava transparecer seu espanto. – A explosão que feriu Rio... foi algum acidente terrível?
Uma expressão de dor tomou conta do rosto de Tess. Ela estudou Dylan por um momento, como se não estivesse segura do quanto poderia contar. No entanto, ela logo sacudiu ligeiramente a cabeça.
– Não. Não foi um acidente. Alguém próximo de Rio o traiu. A explosão aconteceu durante uma investida em um velho armazém da cidade. Rio e os demais membros da Ordem se viram em uma emboscada.
Dylan olhou para baixo e se deu conta de que estava observando o porta-retratos que Rio tinha jogado pelo quarto durante seu ataque de raiva. Cuidadosamente o recolheu. Tirou a teia de aranha de cima do vidro quebrado sobre a imagem e observou os exóticos olhos escuros e o sorriso triste e distante.
– Eva – confirmou Tess. – Ela era a Companheira de Raça de Rio.
– Mas ela o traiu?
– Sim – Tess respondeu depois de uma longa pausa. – Eva fez um acordo com um dos inimigos da Ordem, com um poderoso vampiro que também era o irmão do líder da Ordem, Lucan. Para que este vampiro obtivesse informação que o ajudasse a matar Lucan, algo que Eva queria tanto quanto o inimigo, ela pediu duas coisas: que Rio sobrevivesse e que fosse ferido o suficiente para nunca mais conseguir lutar.
– Meu Deus! – ofegou Dylan. – E ela conseguiu o que queria?
– Não exatamente. A Ordem caiu em uma emboscada, apoiada nas informações que Eva entregou, mas o vampiro com o qual ela negociou não tinha a menor intenção de manter sua parte do acordo. Ele colocou uma bomba no local. A explosão poderia ter matado a todos, mas, ironicamente, Rio foi o mais atingido. E posteriormente ele veio a descobrir que Eva tinha sido a responsável por tudo aquilo.
Dylan não conseguia falar. Ela tentava absorver o peso que tudo aquilo deveria ter para Rio. Não apenas a dor física causada por aquelas lesões, mas também a dor emocional da traição sofrida por ele.
– Eu a vi. – Dylan olhou para Tess e viu a testa da mulher franzir. A confusão se tornava evidente naquele olhar carregado de interrogações. Dylan conhecia Tess há poucos minutos e não estava acostumada a falar sobre si com ninguém, em especial falar de seu segredo, de seu dom, daquilo que a tornava tão diferente dos outros humanos. No entanto, havia algo nos olhos cheios de cuidado de Tess que levava Dylan a confiar que estava segura. Ela tinha sentido uma afinidade instantânea que a fez saber que estava com uma amiga.
– Os mortos aparecem para mim de vez em quando. Bem, mulheres mortas, melhor dizendo. Eva apareceu para mim alguns dias atrás, quando eu estava viajando com algumas pessoas pelos arredores de Praga.
– Ela... apareceu para você...? – perguntou Tess com cautela. – O que você quer dizer com isso?
– Eu vi o espírito dela, por assim se dizer. Ela me guiou até uma caverna oculta. Eu não sabia, mas Rio estava lá dentro. Ela... Eva me levou até lá e me pediu que o salvasse.
– Meu Deus! – Tess acenou lentamente com a cabeça. – Ele sabe?
Dylan olhou significativamente para a destruição ainda sob seus pés.
– Sim, Rio sabe. Quando eu contei para ele, ele ficou louco.
O olhar de Tess transformou-se quase em um pedido de desculpa.
– Ele tem muita raiva de tudo que seja relacionado à Eva.
– É compreensível – respondeu Dylan. – Ele está bem, Tess? Quer dizer, considerando o que viveu, Rio vai ficar... bem?
– É o que eu espero. É o que todos nós esperamos. – Tess inclinou a cabeça ligeiramente, estudando Dylan. – Você não tem medo dele?
Não, Dylan não o temia. Tinha curiosidade de saber mais sobre Rio, e incerteza com relação às intenções dele quanto a ela. Mas não tinha medo. Embora isso parecesse loucura, mesmo depois de vê-lo tendo aquela reação naquele mesmo cômodo, Dylan não o temia. Aliás, pensar em Rio provocava muitas coisas nela, mas nenhuma delas era medo. Não mesmo.
– Você acha que eu deveria temê-lo? – perguntou.
– Não, claro que não – disse Tess sem vacilar. – Quer dizer, as coisas não devem estar sendo fáceis para você. Deus sabe que não aceitei muito bem no início, quando ouvi pela primeira vez toda essa coisa de sangue, presas e guerra.
Dylan encolheu o ombro.
– Eu escrevo para uma publicação que é quase um tabloide. Acredite, já escutei muitas coisas bizarras. Não me assusto com facilidade.
Tess sorriu, mas não manteve o olhar cruzado com o de Dylan por muito tempo. As palavras que ela não disse estavam claras naqueles olhos que a evitavam: aquilo não era apenas uma história bizarra de um tabloide. Aquilo era a realidade.
– O que havia naquela caverna, Tess? Parecia ser algum tipo de cripta, uma “câmara de hibernação”, como escutei Rio chamá-la. Mas que diabos era aquilo? Há algo perdido naquela montanha?
Tess levantou o olhar, mas só negou levemente com a cabeça.
– Na verdade, eu não acho que você queira saber.
– Sim, eu quero – insistiu Dylan. – Independentemente do que for, é importante o suficiente para que Rio sentisse a necessidade de me sequestrar e me trancafiar para que não dissesse nada do que vi.
O silêncio de Tess fez o estômago de Dylan formar um nó de medo. A Companheira de Raça sabia o que havia na caverna, e aquilo parecia aterrorizá-la. O que, é claro, apenas aumentou a curiosidade de Dylan.
– Tess, havia algo dormindo naquela tumba oculta. E, pelo aspecto, eu diria que esse algo estava escondido ali há muito tempo. Que tipo de criatura era ou é aquilo?
Tess se levantou e jogou alguns cacos de vidro no cesto de papéis ao lado da mesa.
– Deixe-me ver seu corte. Temos de limpá-lo. Depois faremos um curativo para evitar que você fique com uma cicatriz.
Confinado dentro da cela de raios ultravioleta, o Antigo jogou a cabeça para trás e soltou um rugido infernal. Sangue gotejava por suas enormes presas e seu peito, enorme e nu, ostentava a cor pulsante de seus dermoglifos.
– Apertem essas malditas correntes – gritou o cuidador, falando com seus subordinados por meio de um alto-falante na sala de observação fora da cela. – E, por Deus, arrumem toda essa bagunça aí dentro.
As algemas cibernéticas serpentearam e seguraram fortemente as pernas e os braços grossos do Antigo. Com um comando programado, ajustaram-se. A criatura tentou se libertar, mas não chegaria a lugar algum. Feriu-se futilmente: cortou seus próprios lábios e berrou de novo. O urro era pura fúria enquanto o imenso corpo era dominado por titânio e aço.
Ele ainda estava com o pênis ereto por conta do cruzamento que tinha dado tão violentamente errado. Ainda estava sedento pelo sangue e pelo corpo sem vida da mulher que naquele momento era apressadamente retirada da jaula.
A Companheira de Raça tinha sido atacada. Unhas e presas fortes tinham marcado irreversivelmente – mortalmente – seu corpo. E, antes que o Antigo pudesse ser afastado, ela já estava morta. Ela não era a primeira; tampouco seria a última (não estava perto de sê-lo, aliás). Ao longo das cinco décadas em que o Antigo tinha sido despertado de sua hibernação e posto sob o controle de seu guardião, alimentá-lo – e fazê-lo procriar – tinha se mostrado uma tarefa custosa e frustrante.
Apesar de toda aquela tecnologia e de todo aquele dinheiro disponível, não havia ciência alguma que pudesse substituir o tipo de acasalamento que havia ocorrido na cela do prisioneiro alguns momentos atrás. Carne com carne, esse era o único meio de concepção para o Antigo. E também para os demais membros da Raça. Mas o sexo era apenas uma parte do processo. Era necessária a ejaculação, com um intercâmbio de sangue no exato momento, para que a vida de um vampiro se desenvolvesse no corpo de uma Companheira de Raça.
Normalmente, os casais que desejavam conceber se deleitavam em um ato deliberado e sensual de criar uma vida. Neste caso, não. Aqui embaixo, com a selvagem criatura alienígena levada à loucura por conta da fome, da dor e do confinamento, a concepção era um jogo de vida e morte. Baixas, como a de hoje, eram parte da equação. Mortes deviam ser esperadas.
Mas êxitos haviam sido alcançados. E isso fazia os riscos valerem a pena. Para cada Companheira de Raça morta no processo, duas outras tinham saído vivas... E com as sementes de uma nova geração plantada em seus úteros.
O cuidador do Antigo sorriu secretamente, apesar da perda do dia.
Aquela nova geração poderosa já estava florescendo, a maioria em segredo.
E a obediência daqueles novos seres pertencia inteiramente a ele.
CONTINUA
Capítulo 14
Era muito estranho estar outra vez no complexo, mas, para Rio, o mais surreal era entrar novamente em seus aposentos dentro da sede subterrânea da Ordem, localizada no subúrbio de Boston.
Dante e Chase tinham ido para o laboratório de alta tecnologia logo que chegaram, deixando Rio a sós com Dylan. O guerreiro espanhol imaginou que os outros companheiros queriam lhe dar a oportunidade de ele se reencontrar com sua antiga vida – a vida que Eva havia lhe roubado um ano atrás com aquela maldita traição.
Rio não colocava os pés no complexo havia muito tempo, mas o lugar estava exatamente como ele se lembrava. Exatamente como ele tinha deixado antes da explosão no armazém que o mandara para a enfermaria do complexo por vários meses para enfrentar uma difícil recuperação – uma recuperação que não tinha sido, de modo algum, completa.
Aqueles aposentos, que uma vez Rio dividira com Eva, eram como uma espécie de cápsula do tempo. Tudo estava congelado em seu lugar desde aquela noite infernal quando Rio e seus companheiros tinham saído para acabar com um bando de Renegados sem imaginarem que estavam indo diretamente para uma emboscada mortal – uma emboscada orquestrada pela mulher que era uma Companheira de Raça... sua companheira.
E também fora ali, naquele mesmo lugar que, depois de ter sua traição descoberta e denunciada, Eva tinha cortado a própria garganta.
Ela se suicidou sobre a cama de Rio na enfermaria, mas era ali, em seu quarto, que Rio sentia mais a sua presença: o toque de Eva estava por todas as partes, desde as obras de arte extravagantes que ele tinha, a contragosto, permitido pendurar nas paredes antes vazias, até os inúmeros espelhos espalhados por todo o quarto, perto do closet e aos pés da enorme cama.
Rio conduziu Dylan pela elegante sala de estar, atravessando as portas cobertas por cortinas que levavam à suíte do dormitório. Ele se viu refletido no espelho enquanto, com todo o cuidado, deixava a delicada mulher sobre cama de dossel coberta por lençóis cor ameixa escura. Recuou diante do rosto moreno e arruinado do desconhecido que lhe devolvia o olhar. Mesmo vestido com as roupas elegantes que Reichen havia lhe dado, ele ainda parecia um monstro e a sensação apenas aumentava quando comparada à beleza adormecida em seus braços e totalmente à sua mercê.
Ele era um monstro e não podia jogar a culpa daquilo somente em Eva. Afinal, ele tinha nascido uma besta, um assassino, e agora simplesmente também se parecia um pouco mais com aquilo. Dylan se moveu um pouco assim que ele a colocou no colchão e ajeitou um dos macios travesseiros sob sua cabeça.
– Acorde agora – ele disse, roçando a mão brandamente na testa da mulher. – Você já descansou o suficiente, Dylan. Está na hora de despertar.
Ele não precisava acariciar o rosto dela para tirá-la do transe. Ele não precisava deslizar as pontas de seus dedos másculos sobre aquela pele aveludada e decorada com pequenas e encantadoras sardas. Ele não precisava demorar seu toque ao longo da delicada linha de sua mandíbula... Rio, todavia, não conseguiu deixar de aproveitar ao máximo aquela oportunidade única de fazer tudo isso.
As pálpebras de Dylan se abriram, seus cílios castanhos se levantaram e, de repente, Rio se viu capturado pela luz verde-dourada daquele olhar. Ele imediatamente afastou a mão do rosto de Dylan, mas não pôde deixar de notar que ela tinha se dado conta da liberdade que ele tomara. Ela, todavia, não demonstrou alteração alguma, simplesmente soltou um suave sopro de ar por seus lábios entreabertos.
– Estou com medo – ela sussurrou com uma voz baixa por causa do longo sono em que ele a tinha colocado. Dylan não tinha consciência do transe ou da viagem. Para sua mente humana, ela ainda estava no Refúgio de Reichen, uma vez que sua mente tinha sido colocada em suspensão momentos antes da partida para Boston. – Estou com medo do lugar para onde você está me levando...
– Já estamos aqui – disse Rio. – Acabamos de chegar.
O pânico tomou conta do olhar de Dylan.
– Onde...
– Eu a trouxe para a sede da Ordem. Você está segura aqui.
Dylan lançou um olhar ao seu redor, tentando entender onde estava.
– É aqui que você mora? – perguntou.
– É aqui que eu costumava morar. – Rio se levantou e se afastou da cama. – Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, basta pedir.
– Que tal uma carona até minha casa em Nova York? – ela disse. Sua consciência estava obviamente voltando ao normal. – Ou talvez um GPS mostrando onde estamos agora... Pode deixar que eu me viro para encontrar o caminho para casa.
Rio cruzou os braços sobre o peito enorme e musculoso.
– Esta é sua casa agora, Dylan. Como você é uma Companheira de Raça, será tratada com todo o respeito e reverência. Terá comida, conforto e tudo mais o que precisar. Você não vai ser trancada nesse quarto, mas eu posso lhe garantir que não há para onde você correr, caso isso venha a passar por sua cabeça. O complexo é inteiramente seguro. Meus companheiros e eu não vamos machucá-la, mas se você tentar deixar esses aposentos, nós saberemos antes de você dar o primeiro passo no corredor. Se você tentar fugir, vou encontrá-la, Dylan.
Ela ficou em silêncio por um longo momento enquanto ouvia aquele enorme homem falar e media cada uma de suas palavras.
– E então, o que vocês vão fazer comigo? Me segurar e morder minha garganta?
Jesus Cristo!
Rio sentiu todo o seu sangue drenar de sua cabeça ao simples pensamento daquilo. Ele sabia que para ela aquilo deveria ser um ato de extrema violência, mas, para ele, a imagem de segurar Dylan sob seu corpo enquanto ele perfurava delicadamente a pele macia de seu pescoço com suas presas era um ato inteiramente sensual.
O desejo percorreu seu corpo em uma espiral ardente e se concentrou imediatamente no meio de suas pernas. Ele ainda podia sentir a pele sedosa de Dylan em seus dedos e agora era outra parte de seu corpo que desejava imensamente, incontrolavelmente, conhecer o toque da pele daquela mulher em sua frente. Rio se virou, irritado com a rápida reação a Dylan que seu corpo esboçava.
– Quando eu estava em Jicín, ouvi uma história sobre um homem que foi atacado por um demônio. Um velho fazendeiro que testemunhou tudo disse que o tal demônio descia da montanha para se alimentar. Para beber sangue humano.
Rio ficou ali, encarando a porta em sua frente enquanto Dylan falava. Ele sabia a qual noite ela estava se referindo, ele se lembrava dela claramente, pois aquela tinha sido a última vez que ele tinha se alimentado. Fazia mais de duas semanas que ele não se alimentava quando foi até aquela humilde fazenda perto da floresta, na base da montanha.
Ele estava faminto e aquilo o deixou descontrolado. Um homem idoso apareceu, viu o ataque, viu Rio com os dentes cravados no pescoço de outro homem. Aquele foi um deslize, uma imprudência, e aquela interrupção tinha sido a única coisa responsável por salvar a vida da caça de Rio de sua fome incontrolável. Se aquele velho homem não tivesse aparecido, certamente o outro teria morrido. Rio tinha deixado de caçar naquela noite, aterrorizado com o que tinha se tornado.
– Foi um exagero, não é mesmo? – A voz de Dylan tornou-se lentamente mais calma durante o silêncio que Rio lhe deu como resposta. – Você não fez aquilo, fez, Rio?
– Fique à vontade – ele grunhiu, enquanto saía. Antes, porém, ele pegou a bolsa em que estavam o laptop e a câmera digital de Dylan. – Há algumas coisas que preciso fazer.
Rio não esperou que Dylan protestasse ou dissesse uma palavra mais, apenas sabia que precisava sair dali. Agora. Uns poucos passos o levariam para as portas abertas e à luxuosa sala de estar que atravessara minutos antes carregando Dylan em seus braços.
– Rosario...?
Ele parou ao som da voz dela em suas costas. Franziu a sobrancelha, virou a cabeça e voltou o olhar para a mulher, que agora tinha se levantado da cama e estava apoiada em seus cotovelos.
Madre de Dios, ela estava deliciosamente atraente, um tanto quanto despenteada, um tanto quanto sonolenta. Não demorou muito para Rio imaginar que talvez fosse daquela forma que Dylan deveria parecer depois de uma noite de sexo ardente. O fato de ela estar deitada sobre aqueles lençóis de seda de cor ameixa da cama de Rio apenas deixava a imagem ainda mais erótica.
– O quê? – a voz do homem enorme era um chiado que mal passava por sua garganta masculina.
– Seu nome – ela disse, como se ele devesse saber do que ela estava falando. A mulher, então, inclinou a cabeça enquanto estudava atenciosamente o quarto. – Você me disse que Rio é apenas parte de seu nome, então eu imaginei que talvez pudesse ser um apelido para Rosario.
– Não.
– Então qual é? – Quando ele não respondeu imediatamente, suas sobrancelhas castanho-claras juntaram-se, obviamente impacientes pela resposta. – Depois de tudo o que você me contou nos últimos dias, que problema teria em me dizer seu nome?
Ele escarnecia interiormente enquanto se lembrava de todos os nomes pelos quais tinha sido chamado desde que nascera. Nenhum deles era gentil, para dizer o mínimo.
– Por que isso é tão importante?
Ela sacudiu a cabeça, erguendo levemente os ombros magros.
– Não é importante. Suponho que simplesmente tenho curiosidade de saber mais sobre você. Para saber quem você realmente é.
– Você já sabe o suficiente – ele disse. Um leve xingamento escapou por sua boca. – Confie em mim, Dylan. Você não vai querer saber nada mais sobre mim além do que já sabe.
Mas Rio estava equivocado, pensou Dylan, enquanto observava o enorme corpo daquele homem afastar-se e atravessar a porta da ampla suíte. Ele fechou a porta e deixou a mulher sozinha na suave iluminação dos aposentos.
Ela virou o corpo na enorme cama, suas pernas estavam trêmulas como se fizesse muito tempo que não as usava, como se ela tivesse ficado ao relento durante boa parte de uma noite de inverno. Se o que ele disse era verdade – que eles tinham deixado Berlim e estavam agora nos Estados Unidos – então, ela pensou, faltava-lhe pelo menos nove horas de memória consciente.
Seria aquilo realmente possível?
Será que ele realmente a havia colocado em uma espécie de transe por todo aquele tempo?
Ela tinha ficado surpresa ao sentir os dedos de Rio acariciando seu rosto quando despertou. Aquele contato parecia tão suave, tão protetor e tão quente. Mas também tinha sido muito fugaz, tinha sido interrompido tão logo ele se dera conta de que ela estava acordando, tão logo notara que ela estava percebendo o que acontecia. Será que ele também percebeu que ela estava gostando?
Não, Dylan não queria sentir o calor de Rio, tampouco queria demonstrar algum calor para ele, mas ela não conseguia negar que havia algo de eletrizante na maneira como ele a olhava. Havia algo inegavelmente sedutor na maneira como ele a tocava. Ela queria saber mais sobre aquele homem – ela precisava saber mais sobre aquele homem. Afinal de contas, como sua prisioneira, seria de seu maior interesse saber qualquer coisa que pudesse a respeito do homem que a mantinha como refém. Como jornalista em busca – ou à espera – de uma grande matéria, era obrigação dela juntar até os mais insignificantes fatos e perseguir a verdade até o fim. Entretanto, era seu interesse como mulher o que mais incomodava Dylan.
Era aquele desejo mais íntimo e pessoal de saber mais sobre o tipo de homem que Rio era que fazia com que ela vagasse de um lado para o outro naqueles aposentos chiques. A decoração era exuberante e sensual, uma explosão de cores brilhantes que iam desde a roupa de cama de seda, da cor de ameixas maduras, até o tom dourado da pintura que cobria as paredes. Uma coleção de pinturas abstratas, tão brilhantes e gritantes que chegavam a fazer os olhos de Dylan doer, cobriam uma parede inteira da suíte luxuosa. Outra parede ostentava um espelho com uma moldura exuberante e obviamente caríssima. E o objeto estava colocado estrategicamente de modo a refletir os quatro lados da cama de dossel e tudo o que, por ventura, pudesse estar acontecendo em cima daqueles lençóis. Excitante.
– Sutil... – murmurou Dylan, girando os olhos enquanto se aproximava de um par de portas duplas que havia do outro lado do quarto. Ela as abriu e ficou de boca aberta quando percebeu que se tratava do closet... Um closet que tinha mais metros quadrados do que todo o seu apartamento no Brooklin.
– Santo Deus!
Ela entrou e imediatamente se deu conta de que havia mais espelhos ali dentro – e por que você não iria querer admirar-se em todos os ângulos possíveis quando tinha metade da Chanel à sua disposição?
Dylan ficou tentada a perscrutar aquele lugar que deveria ter milhares de dólares em roupas e sapatos assinados por estilistas famosos, mas um pensamento triste logo tomou conta de sua mente: apenas um quarto do armário tinha roupas masculinas. O resto todo pertencia a uma mulher. Uma mulher pequena, delicada, cujo gosto era, obviamente, muito caro. Aqueles aposentos poderiam ser de Rio, mas certamente ele não vivia ali sozinho.
Mas que merda! Será que ele era casado?!
Dylan deu meia-volta e saiu do closet, fechando bruscamente a porta e intimamente desejando nunca ter entrado ali. Dirigiu-se para a sala, observando atentamente cada detalhe e inegavelmente percebendo que havia um toque feminino em todos os cantos para os quais olhava. Nada se parecia nem de longe com seu estilo, mas, afinal, o que Dylan sabia sobre design de interiores mesmo? Não muito. Sua melhor peça de mobília era um sofá-cama que ela comprara de segunda mão.
Dylan deixou a mão percorrer o encosto de uma nogueira esculpida como uma cadeira enquanto observava a mobília declaradamente elegante do lugar. Ela se aproximou de um sofá de veludo dourado e parou enquanto seu olhar capturava uma pequena coleção de fotografias emolduradas minuciosamente expostas na mesa que havia atrás do sofá.
A primeira coisa que viu foi uma fotografia de Rio. Ele estava sentado no banco do passageiro de um clássico Thunderbird conversível que tinha sido estacionado sob a luz da lua em alguma praia deserta. Ele vestia uma camisa de seda preta – desabotoada, obviamente – e uma calça da mesma cor; suas coxas estavam ligeiramente separadas em um “V” casual e os dedos de seus pés descalços estavam inocentemente enterrados na areia branca enquanto seu olhar topázio escuro brilhava com uma espécie de sabedoria oculta e privada, e seu sorriso nebuloso o tornava igualmente perigoso e atraente.
Jesus Cristo, ele era lindo.
Para dizer a verdade, ele era muito mais do que lindo.
A foto não parecia antiga. Não havia cicatrizes no lado esquerdo do rosto dele, de modo que a lesão que ele sofrera devia ser bastante recente. Seja lá o que tenha roubado sua aparência clássica e incrivelmente atraente, a maior tragédia parecia ser a fúria que Rio havia dentro de si. Dylan olhou para a fotografia de Rio em dias felizes, e se perguntou como ele poderia ter mudado tanto desde aquela época.
Ela então olhou para outra fotografia, essa sim, antiga. Era uma imagem profissional em tons de sépia de uma mulher com os cabelos negros vestindo um bufante vestido vitoriano de gola alta. Dylan se inclinou para poder ter uma visão melhor enquanto se perguntava se aquela beleza exótica com sorriso tímido poderia ser, de repente, a avó de Rio. Os olhos escuros da modelo encaravam direta e fixamente a lente da câmera, lançando um olhar de pura sedução. Ela era bela, a mulher da fotografia, apesar da moda recatada de sua época.
E seu rosto... seu rosto parecia extremamente familiar.
– Ah, meu Deus!
A incredulidade, assim como o absoluto deslumbramento, inundou Dylan conforme ela deslizava o olhar para outra fotografia que havia na mesa. Esta, uma imagem colorida, obviamente tirada na última década ou menos... e na qual a mesma mulher da foto antiga também era modelo. Essa última imagem, tirada durante a noite, mostrava uma mulher de pé em uma ponte de pedra no meio de um parque, rindo enquanto seus belos e longos cabelos negros balançavam em sua cabeça. Ela parecia feliz, mas Dylan viu uma tristeza em seus olhos escuros – dolorosos segredos profundamente escondidos em seu olhar castanho-escuro que estava fixo em quem quer que estivesse tirando a foto.
E Dylan reconhecia aquele rosto, ela tinha certeza de que sim... Sim, ela percebia agora, e não era apenas da série de fotografias espalhadas naquela mesa e que a jornalista acabara de ver... Não, aquele rosto era familiar. Dylan já o tinha visto, sim, ela o reconhecia agora porque já o tinha visto na montanha, em Jicín. Aquele era, definitivamente, o rosto da mulher morta. A bela – e morta – mulher que a havia conduzido à caverna onde ela encontrara Rio – Dylan se dava conta disso agora – era esposa dele.
Capítulo 15
Era quase como se ele nunca tivesse deixado aquele local.
Rio estava no laboratório de alta tecnologia do complexo, cercado por Lucan, Gideon e Tegan, que o tinham saudado e oferecido um aperto de mão – sinal da amizade e da confiança verdadeiras.
O aperto de mão de Tegan se prolongou por mais tempo. Rio sabia que o forte guerreiro com cabelos acobreados e olhos esmeraldas era capaz de ler sua culpa e suas incertezas por meio da ligação entre suas mãos. Esse era o dom de Tegan, adivinhar as verdadeiras emoções com apenas um toque.
Ele deu um aceno quase imperceptível com a cabeça.
– Coisas ruins acontecem, meu amigo. E Deus sabe que todos nós temos nossos demônios tentando nos passar a perna. Então, ninguém está aqui para julgá-lo. Entendeu?
Rio assentiu com a cabeça enquanto Tegan soltava sua mão. Ao entregar a bolsa de Dylan a Gideon, o vampiro recém-chegado observou a parte posterior do laboratório, onde Dante e Chase limpavam suas armas para usá-las durante a noite. Dante ofereceu uma pequena saudação com o queixo, mas o olhar de aço de Chase deixava claro que ele não sabia o que pensar quando o assunto era Rio. Um homem inteligente. Rio imaginou que a reação do ex-agente fosse, provavelmente, a sua própria reação caso a situação fosse inversa e fosse Chase quem estivesse voando naquele jato em busca de resgate.
– Quanto a mulher sabe a nosso respeito? – perguntou Lucan.
Com novecentos anos de idade e fazendo parte da Primeira Geração da Raça, o fundador da Ordem e líder formidável poderia controlar toda uma sala com apenas um movimento de suas sobrancelhas negras. Rio o considerava um amigo – todos os guerreiros eram tão próximos que pareciam até mesmo familiares uns dos outros – e Rio odiava com todas as suas forças a possibilidade de tê-lo decepcionado.
– Só dei a ela as informações básicas – respondeu Rio. – Não acredito que ela esteja completamente convencida.
Lucan grunhiu, assentindo pensativamente.
– Realmente, são muitas informações para ela processar. Ela entende o propósito da cripta na montanha?
– Na verdade, não. Ela me ouviu chamando aquilo de câmara de hibernação quando Gideon e eu estávamos conversando, mas não sabe nada além disso. Pode ter certeza de que não pretendo dar mais nenhuma pista a ela. O fato de ela ter visto aquilo já é ruim demais. – Rio exalou um suspiro duro. – Ela é inteligente, Lucan. Não acredito que vá levar muito tempo para juntar as peças do quebra-cabeça.
– Então será melhor agirmos logo. Quanto menos detalhes tivermos que esclarecer posteriormente, melhor – explicou Lucan. Ele lançou um olhar a Gideon, que tinha aberto o laptop de Dylan no console ao seu lado. – Quão difícil acredita que será hackear e acabar com as fotos que ela enviou por e-mail?
– Apagar os arquivos da câmera e do computador é fácil. Demora apenas alguns segundos.
– E quanto a apagar as fotos da caixa de entrada daqueles que as receberam?
Gideon franziu o rosto como se estivesse calculando a raiz quadrada da renda líquida de Bill Gates.
– Algo como dez minutos para enviar uma bomba e estourar o disco rígido de todos os computadores da lista de contatos dela. Treze minutos se você quiser algo mais sutil.
– Eu não estou nem aí com o fator sutileza. – Lucan deixou claro. – Faça o que for necessário para destruir as fotos e destruir qualquer referência escrita ao que ela encontrou na montanha.
– Pode contar comigo – respondeu Gideon, que já se encontrava fazendo sua magia em ambos os dispositivos.
– Podemos destruir os arquivos eletrônicos, mas ainda teremos de tratar com as pessoas com quem ela manteve contato sobre a caverna – esclareceu Rio. – Além do chefe dela, há três mulheres com quem ela estava viajando. E também a mãe dela.
– Vou deixar isso para você – disse Lucan. – Não me importa como você vai fazer isso. Faça-a negar a história, acabe com a credibilidade dela ou saia para encontrar as pessoas com quem ela conversou e apague a memória de cada uma delas. A decisão é sua, Rio. Simplesmente dê um jeito na situação, como sei que você vai fazer.
Rio assentiu.
– Eu lhe dou minha palavra, Lucan. Vou consertar a situação.
A expressão do vampiro da Primeira Geração era tão sombria quanto segura.
– Não duvido de você. Nunca duvidei e nunca duvidarei.
A confiança de Lucan era inesperada, e um presente que Rio não tinha intenção de desperdiçar, independentemente de quão destruído ele soubesse estar. Durante muitos anos, a Ordem e os guerreiros que a serviam eram seu principal propósito na vida – inclusive acima de seu amor por Eva, o que acabou gerando um ressentimento silencioso, porém colérico, nela. Rio estava comprometido com até o último destes homens – como se eles fossem seus parentes de sangue –, comprometido a lutar por eles e, inclusive, a morrer por eles. Ele olhou em volta, sentindo-se humilde pelos rostos sombrios e corajosos dos cinco homens da Raça que ele sabia, sem dúvida alguma, que também dariam suas vidas por ele.
Rio limpou a garganta, sentindo-se desconfortável com as boas vidas praticamente unânimes de seus irmãos. Do outro lado do laboratório, as portas de vidro se abriram quando Nikolai, Brock e Kade chegaram, vindos do corredor. Os três conversavam com empolgação, trazendo um ar de camaradagem quando entraram no laboratório.
– Oi! – disse Niko, lançando a saudação para ninguém em particular. Seus olhos azuis como o gelo pararam em Rio por um segundo antes de ele finalmente olhar para Lucan e começar a detalhar a patrulha da noite. – Acabamos com um Renegado perto do rio há mais ou menos uma hora. O filho da mãe estava escondido em um contêiner de lixo quando o encontramos.
– Você acha que é um dos cachorros de Marek? – perguntou Lucan, referindo-se ao exército de Renegados que seu próprio irmão vinha criando até a Ordem finalmente intervir. Marek tinha morrido pelas mãos da Ordem, mas os vermes de seu exército ainda precisavam ser exterminados.
Nikolai ofereceu um aceno com a cabeça.
– O desgraçado não era um soldado, mas apenas um viciado tentando satisfazer sua sede de sangue. Imagino que só tenha passado algumas poucas noites fora do Refúgio Secreto. E nós o liquidamos facilmente. – O vampiro russo olhou atrás de Rio e lançou um sorriso desajeitado para Dante e Chase. – Alguma ação no lado Sul?
– Não, nada – murmurou Chase. – Estávamos muito ocupados buscando alguém no aeroporto.
Nikolai grunhiu, compreendendo o comentário e lançando um olhar em direção a Rio.
– Faz tempo, hein cara?! É bom ver que você continua inteiro.
Rio conhecia aquele cara muito bem para pensar que o comentário era amistoso. De todos os guerreiros da Ordem, Rio esperava que fosse Nikolai o primeiro na fila para defendê-lo – mesmo se Rio fosse ou não digno de defesa. Niko era o irmão que Rio nunca tivera. Os dois tinham nascido no século anterior e entrado para a Ordem em Boston na mesma época.
Era estranho Niko estar ausente durante a chegada de Rio ao complexo. No entanto, conhecendo o vampiro e seu amor pelo combate, ele provavelmente estava irritado com o fato de sua equipe de patrulha ter sido reduzida algumas horas antes do amanhecer.
Antes que Rio pudesse dizer qualquer coisa a seu velho amigo, a atenção de Nikolai voltou a Lucan.
– O Renegado que encontramos esta noite era jovem, mas a matança que ele tinha deixado para trás parecia ser trabalho de mais de um vampiro. Eu gostaria de retornar lá amanhã e verificar as redondezas. Talvez encontremos mais alguma coisa.
Lucan assentiu:
– Parece uma boa ideia.
Depois de resolver isso, Niko dirigiu sua atenção para Kade e Brock:
– Temos tempo suficiente antes do amanhecer para caçar um pouco. Alguém aí se sentiu com sede de repente?
Os olhos de Kade brilharam como mercúrio.
– Há um lugar em North End que deve ser bem interessante. Lá há um monte de jovens no ponto certo.
– Pode contar comigo – disse Chase com palavras arrastadas, saindo de sua cadeira ao lado de Dante para unir-se aos outros três vampiros não comprometidos conforme eles começavam a caminhar na direção da saída do laboratório.
Por um instante, Rio os observou partir. Entretanto, quando viu Nikolai sair junto aos outros, xingou em voz baixa e, logo depois, correu atrás dele.
– Niko, espere.
O guerreiro seguiu seu caminho, como se não tivesse ouvido nada.
– Espere, cara. Caramba, Nikolai. Que diabos está acontecendo com você?
Quando Chase, Brock e Kade pararam para olhar atrás, Niko acenou para que eles continuassem. Os três seguiram seu caminho, virando no canto do corredor e desaparecendo de vista. Depois de uns poucos segundos, finalmente, Niko deu meia-volta.
O rosto que olhava para Rio no túnel branco era duro e incompreensível.
– Sim. Estou aqui. O que você quer?
Rio não sabia como responder àquilo. A hostilidade saiu da boca de seu velho amigo como um vento frio de inverno.
– Fiz algo que o incomodou?
O som da risada de Nikolai raspava contra as paredes de mármore.
– Vá se ferrar, cara.
Nikolai deu meia-volta e começou a se afastar novamente.
Rio o alcançou em um piscar de olhos. Estava a ponto de agarrar o ombro do guerreiro e obrigá-lo a parar, mas Niko se movimentou com mais agilidade. O vampiro russo virou-se e golpeou Rio, acertando-o no esterno, fazendo-o bater a coluna contra a sólida parede no outro lado do corredor.
– Você quer morrer, seu filho da mãe? – Niko estava com os ombros entreabertos, a cor âmbar acesa como resultado de toda aquela ira. – Se você quer se matar, é problema seu. Só não peça a minha ajuda, está bem?
Os músculos de Rio estavam retesados e prontos para uma briga. Seus instintos de combate se tornaram mais aguçados, apesar de ele estar enfrentando um aliado de longa data. No entanto, enquanto Nikolai falava, a fúria que cresceu em Rio rapidamente se reduziu. De repente, a cólera que Niko sentia contra ele fez sentido. Afinal, Nikolai sabia que Rio tinha ficado naquela montanha da Boêmia com intenções de acabar com a própria vida. Se Niko não tinha se dado conta disso cinco meses atrás, agora ele tinha certeza.
– Você mentiu para mim – esbravejou Niko. – Você me olhou diretamente nos olhos e mentiu para mim, cara. Você nunca ia voltar para a Espanha. O que pretendia fazer com o C-4 que eu dei para você? Você pretendia detonar aquela droga presa ao seu corpo, como se fosse um camicase se divertindo. Ou talvez você só estivesse planejando se prender no interior daquela maldita caverna e ficar lá, esquecido por toda a eternidade. O que você ia fazer, amigo? Como você pretendia acabar com a própria vida?
Rio não respondeu. Não era necessário. De todos os guerreiros da Ordem, Nikolai era o que melhor o conhecia. Nikolai tinha visto Rio como o covarde e fraco que ele realmente era. Só ele sabia o quão próximo Rio tinha estado de dar um fim a tudo – antes mesmo de ele chegar àquela montanha tcheca.
Tinha sido Niko quem se negara a deixar Rio mergulhar no ódio que sentia de si. E, então, evitar que entrasse naquela espiral de negatividade tinha se tornado sua missão pessoal. Niko, que ajudou Rio a subir na montanha nas semanas que se seguiram, caçando para o amigo que estava fraco demais para cuidar dele mesmo. Nikolai, o irmão que Rio nunca tivera.
– Sim – disse Niko, fechando uma carranca. – Como disse. Vá se ferrar.
Ele tirou o braço do peito de Rio e se afastou, ainda rangendo alguns xingamentos. Rio o viu se distanciar. Os sapatos de Niko pareciam mastigar o piso de mármore polido quando ele se apressou para juntar-se aos outros guerreiros que já estavam a caminho do piso superior.
– Que droga! – murmurou Rio, correndo a mão pelos cabelos.
O choque com Nikolai era só mais uma evidência de que ele não devia ter retornado a Boston – mesmo que isso significasse jogar o problema Dylan Alexander nas mãos de outra pessoa. Rio já não se encaixava ali. Agora ele era um estranho, um elo fraco em meio a uma cadeia de aço, formada pelos corajosos guerreiros da Raça.
Ainda agora ele conseguia sentir suas têmporas latejarem por conta da descarga de adrenalina que tinha ocorrido alguns minutos atrás, quando parecia que Niko queria cortá-lo em pedaços. Sua visão começou a tremer enquanto ele estava parado ali. Se não se movesse e encontrasse um local privado para aguentar a crise mental que estava por vir, Rio sabia que seria questão de minutos antes que acordasse caído sobre o mármore que revestia o chão do corredor. E, francamente, ver Lucan e aos outros saírem do laboratório para olhá-lo fixamente como se ele fosse um moribundo era algo que não queria experimentar.
Ele forçou suas pernas a se movimentarem e, com uma dificuldade acentuada, conseguiu encontrar o caminho de volta até seus aposentos. Entrou, cambaleando, e fechou a porta. Em seguida, entregou-se a uma nova sensação de náusea que o invadiu.
– Você está bem?
A voz feminina vinha de algum ponto distante naquele cômodo. A princípio, não a reconheceu. Seu cérebro estava lutando para realizar as tarefas básicas. Aquela voz brilhante e cristalina não parecia pertencer àquele lugar cheio de lembranças antigas e empoeiradas.
Rio se distanciou da porta e se arrastou pela sala, em direção ao quarto. Seu cérebro transmitia a impressão de que se despedaçaria a qualquer momento.
Água quente. Escuridão. Tranquilidade. Ele precisava dessas três coisas. Imediatamente.
Rio tirou a camisa e a deixou cair no ridículo sofá de veludo de Eva. Ele realmente tinha que queimar todos seus pertences. E era uma pena que ele não tinha como jogar aquela maldita traidora na fogueira junto com todo o resto.
Rio se agarrou à sua fúria pela traição de Eva, um leve castigo, mas aquilo era tudo o que tinha no momento. Abriu as portas do quarto e ouviu um leve suspiro vindo lá de dentro.
– Meu Deus! Rio, você está bem?
Dylan.
O nome dela atravessava como um bálsamo a névoa que envolvia a mente de Rio. Ele levantou o olhar na direção de sua convidada indesejada, que agora estava sentada no canto da cama com algo plano e retangular apoiado em seu colo. Ela deixou o objeto de lado, no criado-mudo, e se aproximou antes que os joelhos dele cedessem.
– Banho – ele conseguiu grunhir.
– Você mal consegue parar em pé – Dylan o ajudou a alcançar a cama, onde ele rapidamente deixou o corpo cair. – Parece que você precisa de um médico. Há alguém aqui que possa ajudá-lo?
– Não – ele respondeu com uma voz rouca. – Uma ducha...
Rio estava fraco demais para usar sua habilidade mental da Raça e abrir o registro da água, mas ele não precisou sequer tentar. Dylan já estava se apressando na direção do banheiro ao lado. Ouviu o forte estalar da água batendo contra o chão e, em seguida, os suaves passos de Dylan no carpete enquanto ela retornava para onde estava caído, com o corpo virado na direção dos pés da cama.
Rio percebeu vagamente a desaceleração dos passos da mulher conforme ela se aproximava. Apenas escutou a respiração rápida logo acima de seu corpo. Mas era impossível confundir quem estava ali quando ela soltou, com a respiração trêmula, alguns palavrões. Um silêncio pesado e demorado se seguiu ao xingamento sussurrado. Em seguida:
– Rio... Meu Deus! Por que tipo de inferno você passou?
Lançando mão até mesmo da última gota de força que tinha, ele conseguiu abrir os olhos. Um erro enorme. O horror que ele viu nos olhos de Dylan era inegável. Ela estava olhando o lado esquerdo de seu corpo... O peito e o torso, que tinham sido destruídos por uma granada que quase esfolou seus ossos com as chamas da explosão que por pouco não lhe tirara a vida.
– Ela... – suave voz de Dylan foi se tornando cada vez mais fraca. – Sua esposa tem algo a ver com o que aconteceu com você?
Rio sentiu seu coração parar de bater. O sangue que antes pulsava fortemente em seus ouvidos se transformou em gelo quando ele conseguiu se concentrar na pergunta de Dylan. A preocupação estampava seu rosto.
– Ela fez isso com você, Rio?
Ele seguiu a mão estendida de Dylan enquanto ela alcançava o objeto que tinha deixado no criado-mudo. Era uma fotografia em um porta-retratos. Rio não precisava ver a foto no vidro para saber que era de Eva, de um passeio que eles tinham feito no Charles River certa noite. Eva, sorrindo. Eva, dizendo o quanto o amava. Enquanto, em suas costas, ela conspirava com os inimigos da Ordem para conquistar seus objetivos egoístas.
Rio grunhiu quando pensou em sua própria burrice. Em sua própria cegueira.
– Isso não é da sua conta – murmurou, ainda à deriva da escuridão que tomava conta de sua mente. – Você não sabe nada a respeito dela.
– Foi ela quem me levou até você. Eu a vi na montanha em Jicín.
Uma suspeita irracional transformou a ira de Rio em um sentimento letal.
– Do que você está falando? Como assim, você a viu?
Dylan engoliu em seco e encolheu levemente o ombro. Em seguida, segurou a fotografia diante dele.
– Eu a vi... O espírito dela estava lá. Ela estava na montanha com você.
– Você só pode estar mentindo – ele grunhiu. – E não me fale dessa mulher. Ela está morta, e merecidamente.
– Ela pediu que eu o ajudasse, Rio. Ela me procurou. Queria que eu salvasse você...
– Já disse para você parar de falar dela! – ele esbravejou.
A raiva fez com que o corpo de Rio estremecesse no colchão como uma víbora sendo atacada. Ele puxou o retrato das mãos de Dylan e o atirou pelo quarto com uma velocidade impressionante. O objeto bateu contra o enorme espelho na parede de frente com a cama, quebrando-o com o impacto e lançando cacos de vidro polido como uma chuva de lâminas.
Rio ouviu o grito de Dylan, mas foi somente quando ele sentiu o cheiro adocicado do sangue dela que se deu conta do que tinha feito.
Ela levou a mão até a maçã do rosto e, quando seus dedos se afastaram, estavam manchados de vermelho por conta de um pequeno ferimento logo abaixo do olho esquerdo.
Foi a visão daquela ferida que tirou Rio daquele espiral de depressão. Como um balde de água fria jogada sobre sua cabeça, ver Dylan ferida o puxou instantaneamente de volta para a realidade.
– Ah, Jesus Cristo! – disse ele com dentes apertados. – Eu sinto muito... Sinto muito!
Ele se moveu para tocá-la, para verificar o quanto a tinha ferido, mas ela se afastou com os olhos completamente aterrorizados.
– Dylan... eu não queria...
– Fique longe de mim!
Ele estendeu a mão, buscando demonstrar que realmente não queria feri-la.
– Não – ela estremeceu enquanto sacudia violentamente a cabeça. – Ah, meu Deus. Não me toque!
Madre de Dios.
Ela agora o olhava com um terror absoluto. E tremia. Seus olhos estavam fixos nele, banhados de medo e confusão.
Quando Rio passou a língua pelas pontas de suas presas salientes, ele entendeu a fonte do terror que Dylan sentia. Ele se levantou diante dela. Ela temia porque ele lhe tinha dito ser um vampiro, embora aquela mente humana tivesse se recusado a acreditar.
Agora, todavia, ela acreditava.
Dylan estava vendo a verdade com seus próprios olhos, as mudanças físicas no corpo de um louco cheio de cicatrizes que agora se transformava em uma criatura saída diretamente de seus piores pesadelos. Era impossível esconder as presas que se tornavam mais longas conforme a fome por ela se intensificava. Era impossível mascarar o afinamento daquelas pupilas conforme o brilho âmbar da sede de sangue embaçava sua visão.
Ele olhou para o pequeno corte, para o fio de sangue que escorria tão vermelho contra a pele macia da bochecha de Dylan. E ele mal conseguia formular um pensamento coerente.
– Eu tentei contar para você, Dylan. Isso é o que eu sou.
Capítulo 16
– Vampiro.
Dylan ouviu a palavra escapar por seus lábios, apesar do fato de mal poder acreditar no que estava vendo – ou dizendo.
Em questão de instantes, Rio tinha se transformado diante dos olhos de Dylan e ela olhava chocada as mudanças que acabara de presenciar. As íris dos olhos dele brilhavam como brasas e não tinham mais a cor topázio habitual. Em vez disso, estavam estampadas com uma inacreditável sombra âmbar que praticamente engolia as pupilas extremamente reduzidas. Os ossos da face de Rio pareciam mais duros agora, ostentando as esguias maçãs do rosto e uma mandíbula quadrada que parecia ter sido esculpida em pedra.
E, atrás do suculento e exuberante corte formado por sua boca, Rio exibia um par de presas que pareciam ter saído diretamente de algum filme de Hollywood.
– Você... – A voz de Dylan desapareceu conforme aqueles hipnóticos olhos cor de âmbar a encararam. Ela se sentou delicadamente na beirada da cama. – Meu Deus... Você realmente é um...
– Eu sou da Raça – ele pronunciou calma e articuladamente. – Exatamente como lhe disse.
Dylan estava sentada diante de Rio, e agora sua visão era preenchida completamente pela ampla musculatura do peito nu do vampiro. O intrincado desenho na pele dos antebraços subia pelos ombros de Rio e descia ao longo de seu peitoral. Todas as marcas – dermoglifos, como ele havia chamado da primeira vez em que ela as percebera – eram de uma cor vívida agora, a cor mais escura que Dylan já as tinha visto ostentar. Tramas profundas de cor púrpura e negra saturavam os belos desenhos e as linhas em forma de arcos.
– Não consigo impedir a transformação – ele murmurou, como se tivesse necessidade de dar uma justificativa a Dylan. – A transformação é espontânea nos machos da Raça quando sentimos o cheiro de sangue fresco.
O olhar dele desviou-se ligeiramente dos olhos de Dylan, e logo repousou na bochecha ferida pelos estilhaços do espelho quebrado. A mulher sentia que ainda havia sangue quente deslizando como uma lágrima por seu queixo. Rio assistia àquela gota deslizar com uma intensidade que fazia Dylan estremecer. Ele passou a língua pelos lábios sensuais e engoliu seco, mas manteve seus dentes cerrados o tempo todo.
– Fique aqui – ele ordenou com uma voz forte e autoritária enquanto franzia a testa com intensidade.
O instinto de Dylan lhe dizia que ela devia ser mais inteligente e correr, mas ela se recusava a sentir – ou, melhor dizendo, a demonstrar sentir – medo daquele homem enorme que estava sem camisa em sua frente. Por mais estranho que parecesse, Dylan sentia que tinha realmente conhecido aquele homem nos últimos dias, durante os quais eles foram obrigados a conviver. Rio não era nenhum santo, aquilo era um fato. Ele a tinha raptado, aprisionado e ela ainda não estava certa sobre o que ele queria fazer com ela – Santo Deus! No entanto, ela não acreditava que ele fosse perigoso – não para ela.
O que Dylan acabara de testemunhar ali não era exatamente algo a ser celebrado, mas, em seu coração, ela não sentia medo do que ele era.
Bem, não completamente.
Dylan ouviu quando Rio desligou o registro do chuveiro e saiu, poucos segundos depois, segurando uma toalha branca e umedecida que ele ofereceu para ela.
– Pressione isso contra a ferida. Vai estancar o sangramento.
Dylan tomou a toalha em suas mãos e a pressionou no rosto, exatamente como ele lhe dissera. Ela, porém, não pôde deixar de perceber a longa expiração que ele soltou quando a ferida em sua bochecha fora finalmente coberta, como se agora estivesse aliviado por não precisar mais passar pelo inferno de ter de olhar para aquilo e resistir. A cor ardente dos olhos de Rio começou a escurecer lentamente e as pupilas estreitas reassumiram a forma arredondada. Os dermoglifos, no entanto, ainda estavam avermelhados; as presas, ainda mortalmente afiadas.
– Você realmente é um... não é? – ela murmurou. – Você é um vampiro. Jesus Cristo! Não consigo acreditar que isso seja verdade. Quer dizer, como isso pode ser verdade, Rio?
Ele se sentou ao lado dela na cama. Menos de um metro de distância os separava agora.
– Eu já expliquei isso para você.
– Extraterrestres bebedores de sangue e mulheres humanas com DNA compatível com os deles – disse ela, recordando-se da estranha história sobre a raça híbrida de vampiros que ela tentara encarar como ficção científica. – Tudo isso é verdade?
– A verdade é um pouco mais complicada do que isso, mas sim... Tudo o que eu lhe disse é verdade.
Incrível.
Totalmente incrível.
Uma parte mercenária dela quase gritou de excitação ao pensar na potencial fama e fortuna que a revelação daquela história poderia lhe trazer. Mas havia outra parte de Dylan – a que não tinha se esquecido daquela incomum marca de nascença que ela trazia gravada na parte de trás do pescoço, a parte que ainda se lembrava de que ela tinha, aparentemente, uma forte conexão com aquele mundo – que mostrou instantaneamente seus instintos protetores, como se Rio e o mundo em que ele vivia fossem um delicioso segredo que pertencia exclusivamente a ela.
– Desculpe-me se eu chateei você – ela disse serenamente. – Eu não devia ter bisbilhotado as coisas enquanto você não estava aqui.
A cabeça dele se virou bruscamente e sua testa enrugou-se, levando as sobrancelhas a se unirem. O xingamento que ele murmurou foi forte e palpável.
– Você não precisa me pedir desculpas, Dylan. Fui eu quem errou. Eu nunca deveria ter entrado aqui no estado em que estava. Eu não posso ficar perto de ninguém quando estou daquele jeito.
– Você parece estar um pouco melhor agora.
Ele assentiu, sua cabeça caindo levemente em direção ao peito nu.
– A raiva diminui... no final. Se você não apagar antes, ela em algum momento... passa.
Não fazia muito tempo que Rio aparecera cambaleando no quarto, bastante desatento, com seus pés mal respondendo aos passos dificultosos que ele tentava dar. Ele mal conseguia pensar, seus músculos e ossos estavam embebidos em uma fúria insana.
– O que desperta isso, Rio?
Ele deu de ombros.
– Pequenas coisas, nada em especial. Nunca sei, exatamente.
– Aquele tipo de raiva faz parte do que você é? Todos os homens da Raça têm de passar por esse tipo de tormento?
– Não – disse, soltando o tipo de sorriso de alguém que está zombando de si. – Não. Esse problema é apenas meu. Falta um parafuso na minha cabeça. Eu o perdi no verão passado e nunca mais o encontrei.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan gentilmente. – Foi isso que aconteceu com você?
– Foi um erro – ele respondeu com uma ponta de insegurança na voz. – Eu confiei em alguém em quem não deveria ter confiado.
Dylan olhou para o dano terrível que o corpo de Rio tinha sofrido. O rosto e o pescoço dele carregavam graves cicatrizes, mas seu ombro esquerdo e metade de seu torso musculoso pareciam ter ido e voltado do inferno. Seu coração apertou-se em seu peito quando ela pensou na dor que ele deveria ter suportado, tanto no acontecimento que ferira seu corpo daquela forma, quanto no que provavelmente foram meses e meses de recuperação.
Ele estava ali, sentado naquela cama tão rigidamente, tão solitário e tão inalcançável, apesar de estar a menos de um braço de distância dela. Para Dylan, Rio parecia sozinho. Sozinho e à deriva.
– Sinto muito, Rio – disse ela. E antes que pudesse se interromper, Dylan colocou sua mão sobre a mão dele, que ele agora descansava sobre a coxa. ele estremeceu como se carvão em brasa tivesse sido colocado sobre sua pele. Todavia, não se afastou.
Ele olhou fixamente para os dedos de Dylan que descansavam suavemente sobre os dele, branco pálido sobre um tom bronzeado. Quando olhou para ela, lançou-lhe um olhar rústico e másculo que preenchia seus olhos completamente. Ela se perguntava quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele fora tocado com algum tipo de ternura.
Dylan deslizou seus dedos sobre a mão máscula de Rio, estudando o incrível tamanho e a enorme força que ela tinha. A pele dele era tão quente e havia tanta força concentrada em seu corpo, mesmo quando ele parecia determinado a manter-se perfeitamente parado.
– Sinto muito por tudo o que você enfrentou, Rio. Sinto de verdade.
A mandíbula dele estava tão apertada que fez um músculo de seu rosto se contrair. Dylan colocou de lado a toalha umedecida que ele tinha lhe trazido e mal percebia que todos os seus sentidos estavam concentrados nele e na eletricidade que parecia emanar de suas mãos entrelaçadas.
Ela ouviu um ruído baixo se formar dentro de Rio, algo entre um grunhido e um gemido. O olhar dele deslizou para a boca de Dylan, e, por um segundo – um rápido, um breve segundo que teria durado o tempo de uma batida do coração – ela se perguntou se ele iria beijá-la.
Dylan sabia que devia retroceder. Sabia que devia tirar sua mão de cima da mão dele, colocá-la longe. Sabia que devia fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não fosse ficar ali, parada, quase sem respiração enquanto esperava e desejava – desejava desesperadamente, incontrolavelmente – que ele se debruçasse sobre ela e apertasse seus lábios contra os dele.
E, de repente, ela não conseguia mais não tocá-lo. Foi quando estendeu a mão que estava livre e acariciou o rosto de Rio, sentindo um repentino sopro de ar gelado empurrá-la – com a imponência da Grande Muralha da China.
– Não quero sua compaixão – grunhiu Rio com uma voz que ela não reconheceu como sendo dele. O sotaque espanhol estava ali, como sempre, mas as sílabas eram ásperas e o timbre não era exatamente humano, o que imediatamente fez Dylan se lembrar de qual era a natureza daquele ser diante dela. Rio puxou a mão de debaixo da dela e se levantou da cama.
– O corte está sangrando. Você precisa de cuidados que não posso lhe oferecer.
– Tenho certeza de que não é nada grave – respondeu Dylan, sentindo-se uma idiota por se colocar em uma situação como aquela com ele. Depois, pegou novamente a toalha que descartara momentos antes e a pressionou outra vez contra o ferimento. – Não é nada. Vou ficar bem.
Não havia sentido algum em Dylan falar qualquer coisa que fosse, já que Rio não a ouviria, de qualquer forma. Ela o viu caminhar até a sala da frente, passando pelo espelho quebrado, e pegar um telefone sem fio, no qual imediatamente teclou uma sequência curta de números.
– Dante? Olá. Não, nenhum problema. Mas eu, é... Tess está por aí? Preciso que ela me faça um favor.
Rio parecia um animal enjaulado, andando de um lado para o outro durante os poucos minutos que se passaram até a ajuda chegar. Ele ficou do lado de fora do quarto, confinado a um espaço minúsculo perto da entrada principal. Ficou tão distante de Dylan quanto poderia ficar sem de fato ter de sair daquele maldito quarto e esperar do lado de fora.
Madre de Dios.
Ele quase lhe beijara.
E ele queria tê-la beijado. E admitir aquilo – mesmo que apenas para si – era como levar um soco no estômago. Beijar Dylan Alexander era uma maneira garantida de transformar uma situação que já era bastante ruim em algo que seria, de fato, catastrófico. Isso porque Rio sabia sem qualquer sombra de dúvida que, se beijasse aquela bela e ardente mulher, ele não conseguiria se conter, não conseguiria, de forma alguma, parar no beijo. Não, mesmo.
O simples pensamento da sensação que seria a de pressionar seus lábios contra os dela já fazia o sangue de Rio ferver e correr acelerado em suas veias. Seus dermoglifos pulsavam com as cores de seu desejo – agitando-se em tons de vermelho-escuro e negros. E também era impossível negar a outra evidência daquele desejo: seu pênis estava tão duro quanto granito, e estava daquele jeito desde o instante em que Dylan, inesperadamente, inadvertidamente, pousara a mão sobre sua coxa.
Jesus Cristo!
Ele sequer se atrevia a olhar para dentro do quarto, com medo de não ser capaz de impedir seus pés de marcharem de volta pelas portas fechadas e levarem-no diretamente para os braços de Dylan.
“Como ela provavelmente desejava” – ele pensou ardentemente.
Aquela carícia que Dylan fizera em sua mão tinha sido um gesto delicado, doce, do tipo que uma mãe faz em uma criança. Ou, pior do que isso, aquele gesto poderia ter sido um gesto de compaixão de um anjo caridoso que consola uma das criaturas mais infelizes criadas por Deus.
Maldecido.
Manos del diablo.
Monstruo.
Sim, Rio era todas essas coisas. E agora Dylan tinha visto como ele era realmente feio. Para seu crédito, ela não tinha recuado ao ver toda aquela carne retorcida e aquelas presas – o que queria dizer então que ela era muito mais forte do que aquilo tudo. Mas acreditar que ela poderia receber, poderia desejar seu toque? Que ela poderia aproximar-se o suficiente de seu rosto arruinado e permitir que ele a beijasse?
Jamais! E ele agradeceu a Deus por aquilo, pois aquilo lhe tinha poupado de ver a repugnância dela. Aquilo lhe tinha poupado de fazer algo realmente idiota, como se esquecer – ainda que por um segundo apenas – de que ela estava ali, no complexo – ali, em seu quarto – somente até que ele corrigisse o erro que cometera ao permitir que ela se aproximasse daquela maldita caverna em Jicín. Quanto mais rápido ele conseguisse fazer aquilo – consertar aquele erro – e mandar Dylan para casa, melhor.
Um golpe seco ecoou contra a porta.
Rio atendeu, com um grunhido de frustração.
– Você soava péssimo ao telefone, então decidi vir com Tess e ver com meus próprios olhos. – A boca de Dante curvou-se em um sorriso arrogante que só ele sabia dar enquanto seu corpo enorme permanecia parado na soleira da porta ao lado de sua bela Companheira de Raça. – E então, você não vai nos deixar entrar, cara?
– Claro.
Rio deu um passo para o lado, abrindo espaço para o casal entrar.
A companheira de Dante parecia ainda mais bela sob a luz daquele quarto. As longas ondas cor de mel de seus cabelos estavam presas em um rabo de cavalo frouxo e seus inquiridores olhos verde-mar eram suaves, mesmo quando encaravam Rio.
– É bom vê-lo novamente, Rio – disse ela, e, sem hesitação, deu um passo adiante e ficou na ponta dos dedos dos pés para dar um abraço rápido no guerreiro e beijar-lhe levemente a bochecha. – Dante e eu ficamos tão preocupados com você durante esses meses todos...
– Não precisava – respondeu Rio, embora não pudesse negar que aquela preocupação o deixava, de certa forma, feliz.
Tess e Dante estavam juntos desde o final do último outono. Ela tinha entrado para a Ordem com um extraordinário dom de curar e restaurar a vida com o simples toque de suas mãos macias. O toque de Tess tinha um poder inimaginável, mas nem mesmo ela fora capaz de consertar todos os danos que Rio tinha sofrido. Ele já estava muito longe quando ela chegou ao complexo, e as cicatrizes dele – tanto as interiores quanto as exteriores – eram permanentes, embora não fosse por falta de tentativas de Tess.
Dante passou o braço musculoso em volta de sua Companheira de Raça em um movimento que era protetor e respeitoso ao mesmo tempo. E foi então que Rio notou a leve protuberância no ventre dela. Tess percebeu o olhar de Rio e abriu um sorriso tão imaculado quanto o da própria Madonna de Botticelli.
– Estou nos primeiros três meses – ela disse, virando-se toda sorridente para Dante. – Alguém está usando isso como desculpa para me mimar.
Dante sorriu.
– Eu? Por favor...
– Felicidades – murmurou Rio, sinceramente sentindo os votos que desejava.
Não era comum guerreiros e Companheiras de Raça começarem uma família dentro da Ordem. Aliás, praticamente não se ouvia falar daquilo. Os homens da Raça que dedicavam suas vidas à luta contra os Renegados não eram tipos muito familiares, por assim dizer. Mas acontece que Dante nunca fora como esses guerreiros, então...
– Onde está Dylan? – perguntou Tess.
Rio gesticulou, apontando para as portas que estavam fechadas.
– Eu fui um idiota com ela. Tive uma crise e... Droga! Acabei quebrando o espelho. Um dos estilhaços acabou atingindo o rosto dela.
– Você ainda está tendo apagões? – perguntou novamente Tess, franzindo a testa. – As dores de cabeça ainda não passaram?
Rio recuou, obviamente não querendo falar sobre seus próprios problemas.
– Eu estou bem. – Foi tudo o que ele disse. – Apenas cuide dela, certo?
– Eu cuidarei. – Tess pegou uma pequena maleta médica das mãos de Dante, sob o olhar interrogativo de Rio, e completou:
– Desde que eu engravidei, minhas habilidades diminuíram. Eu entendo que, na gravidez, é normal a energia da Companheira de Raça se voltar para dentro do próprio corpo. As coisas vão voltar ao normal quando o bebê nascer. Até lá, terei de me apoiar na boa e velha medicina tradicional.
Rio lançou um olhar sobre seus ombros para dentro do quarto. Ele não conseguia ver Dylan, mas imaginou que ela estava lá dentro, precisando ver alguém gentil e carinhoso. Alguém que pudesse melhorar seu humor e conversar com ela como uma pessoa normal; alguém que pudesse tranquilizá-la, dizer-lhe que ela estava segura, que estava entre pessoas em quem ela podia confiar. Especialmente depois da espetacular demonstração de raiva psicótica e desregrada que ele, Rio, tinha feito para ela.
– Está tudo bem – disse Tess. – Não se preocupe, vou cuidar dela.
Com o punho fechado, Dante golpeou levemente o bíceps bem definido de Rio.
– Venha – disse –, vamos dar o fora daqui. Ainda falta uma hora para o amanhecer. E parece que você está precisando tomar um pouco de ar fresco, cara.
Capítulo 17
Dylan estava agachada perto do pé da cama, recolhendo cacos de vidro, quando as portas se abriram suavemente, abrindo caminho para o dormitório.
– Dylan?
Aquela era uma voz feminina. A mesma que, havia um minuto, ela tinha ouvido conversar baixinho com Rio e outro homem. Dylan olhou para cima e sentiu o calor instantâneo de um olhar brilhante que estava logo acima dela.
A mulher, jovem e bela, sorriu.
– Olá. Meu nome é Tess.
– Olá.
Dylan deixou um caco de vidro de lado e inclinou o corpo para recolher outro.
– Rio me pediu para vir ver se você estava bem.
Tess trazia consigo uma bolsa de couro preta quando entrou nos aposentos.
– Você está bem? – insistiu.
Dylan assentiu.
– É só um arranhão.
– Rio está se sentindo péssimo por causa disso. Ele anda passando por... problemas. Já faz algum tempo. Desde a explosão do armazém no verão passado. Ele tem sorte de estar vivo.
Meu Deus! Então isso explicava as queimaduras e as cicatrizes. Uma explosão havia feito aquilo? Quer dizer então que Rio realmente tinha feito uma viagem de ida e volta para o inferno, como Dylan havia suposto.
Tess continuou:
– Por causa do trauma cerebral causado pela explosão, ele tem blecautes de tempos em tempos. Além disso, Rio também tem fortes dores de cabeça, mudanças de humor... Bem, acredito que você deve ter visto com seus próprios olhos. Não é coisa para brincadeira. Mas ele não quis feri-la, disso eu tenho certeza.
– Estou bem – insistiu Dylan, sem se preocupar com o arranhão em sua bochecha. – Tentei dizer para ele que isto aqui não era nada. O corte nem está sangrando mais.
– É um alívio – disse Tess enquanto colocava a bolsa médica sob a escrivaninha. – Fico contente de saber que não é tão grave quanto Rio temia. Da forma como ele descreveu pelo telefone, pensei que teríamos que dar pelo menos meia dúzia de pontos. Mas pelo que vejo, um pouco de antisséptico e um curativo serão suficientes – Tess caminhou por onde Dylan recolhia os pedaços do espelho despedaçado. – Venha, deixe-me ajudá-la.
Quando Tess se aproximou, Dylan se deu conta de que a palma da mão de Tess estava apoiada sobre a curva na barriga. Ela estava grávida. E não foi apenas pela aparência física que Dylan percebeu, mas pelo fato de aquela mulher resplandecer com um brilho interior que não deixava dúvida alguma.
Além disso – e, talvez ainda mais estranho –, na mão que repousava sobre as primeiras fases de um bebê em desenvolvimento, havia uma pequena marca de nascença. Dylan não pôde deixar de olhar fixamente para a lágrima escarlate e a meia-lua na mão direita daquela mulher – a mesma marca com a qual ela tinha nascido, aquela que trazia no pescoço.
– Você vive aqui? – perguntou Dylan. – Com... eles?
Tess assentiu.
– Vivo com Dante. Ele é um guerreiro da Ordem, como Rio e os outros que vivem aqui no complexo.
Dylan acenou na direção da pequena marca de nascimento entre o polegar e o indicador de Tess:
– Você é a... Companheira de Raça dele? – perguntou, recordando o termo que Rio tinha usado depois de perceber que Dylan tinha uma marca idêntica àquela. – Você se casou com um deles?
– Dante e eu procriamos no ano passado – explicou Tess. – Fomos unidos por nosso sangue, o que nos liga de uma forma muito mais profunda do que o casamento. Imagino que Rio já tenha lhe dito algumas coisas sobre a Raça... Como eles vivem, de onde vêm. Depois do que aconteceu, estou segura de que você não tem dúvidas do que eles são.
Dylan assentiu, ainda sem acreditar que tudo aquilo poderia ser realmente verdade.
– Vampiros.
Tess sorriu gentilmente.
– Isso foi o que eu pensei a princípio. Porém, defini-los não é algo tão simples assim. A Raça é um pouco complicada. Eles vivem em um mundo complexo e cheio de inimigos. As coisas podem ser muito perigosas para eles e para quem os ama. Para os poucos homens que se comprometeram com a Ordem, cada noite é um risco para suas vidas.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan com um tom que deixava transparecer seu espanto. – A explosão que feriu Rio... foi algum acidente terrível?
Uma expressão de dor tomou conta do rosto de Tess. Ela estudou Dylan por um momento, como se não estivesse segura do quanto poderia contar. No entanto, ela logo sacudiu ligeiramente a cabeça.
– Não. Não foi um acidente. Alguém próximo de Rio o traiu. A explosão aconteceu durante uma investida em um velho armazém da cidade. Rio e os demais membros da Ordem se viram em uma emboscada.
Dylan olhou para baixo e se deu conta de que estava observando o porta-retratos que Rio tinha jogado pelo quarto durante seu ataque de raiva. Cuidadosamente o recolheu. Tirou a teia de aranha de cima do vidro quebrado sobre a imagem e observou os exóticos olhos escuros e o sorriso triste e distante.
– Eva – confirmou Tess. – Ela era a Companheira de Raça de Rio.
– Mas ela o traiu?
– Sim – Tess respondeu depois de uma longa pausa. – Eva fez um acordo com um dos inimigos da Ordem, com um poderoso vampiro que também era o irmão do líder da Ordem, Lucan. Para que este vampiro obtivesse informação que o ajudasse a matar Lucan, algo que Eva queria tanto quanto o inimigo, ela pediu duas coisas: que Rio sobrevivesse e que fosse ferido o suficiente para nunca mais conseguir lutar.
– Meu Deus! – ofegou Dylan. – E ela conseguiu o que queria?
– Não exatamente. A Ordem caiu em uma emboscada, apoiada nas informações que Eva entregou, mas o vampiro com o qual ela negociou não tinha a menor intenção de manter sua parte do acordo. Ele colocou uma bomba no local. A explosão poderia ter matado a todos, mas, ironicamente, Rio foi o mais atingido. E posteriormente ele veio a descobrir que Eva tinha sido a responsável por tudo aquilo.
Dylan não conseguia falar. Ela tentava absorver o peso que tudo aquilo deveria ter para Rio. Não apenas a dor física causada por aquelas lesões, mas também a dor emocional da traição sofrida por ele.
– Eu a vi. – Dylan olhou para Tess e viu a testa da mulher franzir. A confusão se tornava evidente naquele olhar carregado de interrogações. Dylan conhecia Tess há poucos minutos e não estava acostumada a falar sobre si com ninguém, em especial falar de seu segredo, de seu dom, daquilo que a tornava tão diferente dos outros humanos. No entanto, havia algo nos olhos cheios de cuidado de Tess que levava Dylan a confiar que estava segura. Ela tinha sentido uma afinidade instantânea que a fez saber que estava com uma amiga.
– Os mortos aparecem para mim de vez em quando. Bem, mulheres mortas, melhor dizendo. Eva apareceu para mim alguns dias atrás, quando eu estava viajando com algumas pessoas pelos arredores de Praga.
– Ela... apareceu para você...? – perguntou Tess com cautela. – O que você quer dizer com isso?
– Eu vi o espírito dela, por assim se dizer. Ela me guiou até uma caverna oculta. Eu não sabia, mas Rio estava lá dentro. Ela... Eva me levou até lá e me pediu que o salvasse.
– Meu Deus! – Tess acenou lentamente com a cabeça. – Ele sabe?
Dylan olhou significativamente para a destruição ainda sob seus pés.
– Sim, Rio sabe. Quando eu contei para ele, ele ficou louco.
O olhar de Tess transformou-se quase em um pedido de desculpa.
– Ele tem muita raiva de tudo que seja relacionado à Eva.
– É compreensível – respondeu Dylan. – Ele está bem, Tess? Quer dizer, considerando o que viveu, Rio vai ficar... bem?
– É o que eu espero. É o que todos nós esperamos. – Tess inclinou a cabeça ligeiramente, estudando Dylan. – Você não tem medo dele?
Não, Dylan não o temia. Tinha curiosidade de saber mais sobre Rio, e incerteza com relação às intenções dele quanto a ela. Mas não tinha medo. Embora isso parecesse loucura, mesmo depois de vê-lo tendo aquela reação naquele mesmo cômodo, Dylan não o temia. Aliás, pensar em Rio provocava muitas coisas nela, mas nenhuma delas era medo. Não mesmo.
– Você acha que eu deveria temê-lo? – perguntou.
– Não, claro que não – disse Tess sem vacilar. – Quer dizer, as coisas não devem estar sendo fáceis para você. Deus sabe que não aceitei muito bem no início, quando ouvi pela primeira vez toda essa coisa de sangue, presas e guerra.
Dylan encolheu o ombro.
– Eu escrevo para uma publicação que é quase um tabloide. Acredite, já escutei muitas coisas bizarras. Não me assusto com facilidade.
Tess sorriu, mas não manteve o olhar cruzado com o de Dylan por muito tempo. As palavras que ela não disse estavam claras naqueles olhos que a evitavam: aquilo não era apenas uma história bizarra de um tabloide. Aquilo era a realidade.
– O que havia naquela caverna, Tess? Parecia ser algum tipo de cripta, uma “câmara de hibernação”, como escutei Rio chamá-la. Mas que diabos era aquilo? Há algo perdido naquela montanha?
Tess levantou o olhar, mas só negou levemente com a cabeça.
– Na verdade, eu não acho que você queira saber.
– Sim, eu quero – insistiu Dylan. – Independentemente do que for, é importante o suficiente para que Rio sentisse a necessidade de me sequestrar e me trancafiar para que não dissesse nada do que vi.
O silêncio de Tess fez o estômago de Dylan formar um nó de medo. A Companheira de Raça sabia o que havia na caverna, e aquilo parecia aterrorizá-la. O que, é claro, apenas aumentou a curiosidade de Dylan.
– Tess, havia algo dormindo naquela tumba oculta. E, pelo aspecto, eu diria que esse algo estava escondido ali há muito tempo. Que tipo de criatura era ou é aquilo?
Tess se levantou e jogou alguns cacos de vidro no cesto de papéis ao lado da mesa.
– Deixe-me ver seu corte. Temos de limpá-lo. Depois faremos um curativo para evitar que você fique com uma cicatriz.
Confinado dentro da cela de raios ultravioleta, o Antigo jogou a cabeça para trás e soltou um rugido infernal. Sangue gotejava por suas enormes presas e seu peito, enorme e nu, ostentava a cor pulsante de seus dermoglifos.
– Apertem essas malditas correntes – gritou o cuidador, falando com seus subordinados por meio de um alto-falante na sala de observação fora da cela. – E, por Deus, arrumem toda essa bagunça aí dentro.
As algemas cibernéticas serpentearam e seguraram fortemente as pernas e os braços grossos do Antigo. Com um comando programado, ajustaram-se. A criatura tentou se libertar, mas não chegaria a lugar algum. Feriu-se futilmente: cortou seus próprios lábios e berrou de novo. O urro era pura fúria enquanto o imenso corpo era dominado por titânio e aço.
Ele ainda estava com o pênis ereto por conta do cruzamento que tinha dado tão violentamente errado. Ainda estava sedento pelo sangue e pelo corpo sem vida da mulher que naquele momento era apressadamente retirada da jaula.
A Companheira de Raça tinha sido atacada. Unhas e presas fortes tinham marcado irreversivelmente – mortalmente – seu corpo. E, antes que o Antigo pudesse ser afastado, ela já estava morta. Ela não era a primeira; tampouco seria a última (não estava perto de sê-lo, aliás). Ao longo das cinco décadas em que o Antigo tinha sido despertado de sua hibernação e posto sob o controle de seu guardião, alimentá-lo – e fazê-lo procriar – tinha se mostrado uma tarefa custosa e frustrante.
Apesar de toda aquela tecnologia e de todo aquele dinheiro disponível, não havia ciência alguma que pudesse substituir o tipo de acasalamento que havia ocorrido na cela do prisioneiro alguns momentos atrás. Carne com carne, esse era o único meio de concepção para o Antigo. E também para os demais membros da Raça. Mas o sexo era apenas uma parte do processo. Era necessária a ejaculação, com um intercâmbio de sangue no exato momento, para que a vida de um vampiro se desenvolvesse no corpo de uma Companheira de Raça.
Normalmente, os casais que desejavam conceber se deleitavam em um ato deliberado e sensual de criar uma vida. Neste caso, não. Aqui embaixo, com a selvagem criatura alienígena levada à loucura por conta da fome, da dor e do confinamento, a concepção era um jogo de vida e morte. Baixas, como a de hoje, eram parte da equação. Mortes deviam ser esperadas.
Mas êxitos haviam sido alcançados. E isso fazia os riscos valerem a pena. Para cada Companheira de Raça morta no processo, duas outras tinham saído vivas... E com as sementes de uma nova geração plantada em seus úteros.
O cuidador do Antigo sorriu secretamente, apesar da perda do dia.
Aquela nova geração poderosa já estava florescendo, a maioria em segredo.
E a obediência daqueles novos seres pertencia inteiramente a ele.
CONTINUA
Capítulo 14
Era muito estranho estar outra vez no complexo, mas, para Rio, o mais surreal era entrar novamente em seus aposentos dentro da sede subterrânea da Ordem, localizada no subúrbio de Boston.
Dante e Chase tinham ido para o laboratório de alta tecnologia logo que chegaram, deixando Rio a sós com Dylan. O guerreiro espanhol imaginou que os outros companheiros queriam lhe dar a oportunidade de ele se reencontrar com sua antiga vida – a vida que Eva havia lhe roubado um ano atrás com aquela maldita traição.
Rio não colocava os pés no complexo havia muito tempo, mas o lugar estava exatamente como ele se lembrava. Exatamente como ele tinha deixado antes da explosão no armazém que o mandara para a enfermaria do complexo por vários meses para enfrentar uma difícil recuperação – uma recuperação que não tinha sido, de modo algum, completa.
Aqueles aposentos, que uma vez Rio dividira com Eva, eram como uma espécie de cápsula do tempo. Tudo estava congelado em seu lugar desde aquela noite infernal quando Rio e seus companheiros tinham saído para acabar com um bando de Renegados sem imaginarem que estavam indo diretamente para uma emboscada mortal – uma emboscada orquestrada pela mulher que era uma Companheira de Raça... sua companheira.
E também fora ali, naquele mesmo lugar que, depois de ter sua traição descoberta e denunciada, Eva tinha cortado a própria garganta.
Ela se suicidou sobre a cama de Rio na enfermaria, mas era ali, em seu quarto, que Rio sentia mais a sua presença: o toque de Eva estava por todas as partes, desde as obras de arte extravagantes que ele tinha, a contragosto, permitido pendurar nas paredes antes vazias, até os inúmeros espelhos espalhados por todo o quarto, perto do closet e aos pés da enorme cama.
Rio conduziu Dylan pela elegante sala de estar, atravessando as portas cobertas por cortinas que levavam à suíte do dormitório. Ele se viu refletido no espelho enquanto, com todo o cuidado, deixava a delicada mulher sobre cama de dossel coberta por lençóis cor ameixa escura. Recuou diante do rosto moreno e arruinado do desconhecido que lhe devolvia o olhar. Mesmo vestido com as roupas elegantes que Reichen havia lhe dado, ele ainda parecia um monstro e a sensação apenas aumentava quando comparada à beleza adormecida em seus braços e totalmente à sua mercê.
Ele era um monstro e não podia jogar a culpa daquilo somente em Eva. Afinal, ele tinha nascido uma besta, um assassino, e agora simplesmente também se parecia um pouco mais com aquilo. Dylan se moveu um pouco assim que ele a colocou no colchão e ajeitou um dos macios travesseiros sob sua cabeça.
– Acorde agora – ele disse, roçando a mão brandamente na testa da mulher. – Você já descansou o suficiente, Dylan. Está na hora de despertar.
Ele não precisava acariciar o rosto dela para tirá-la do transe. Ele não precisava deslizar as pontas de seus dedos másculos sobre aquela pele aveludada e decorada com pequenas e encantadoras sardas. Ele não precisava demorar seu toque ao longo da delicada linha de sua mandíbula... Rio, todavia, não conseguiu deixar de aproveitar ao máximo aquela oportunidade única de fazer tudo isso.
As pálpebras de Dylan se abriram, seus cílios castanhos se levantaram e, de repente, Rio se viu capturado pela luz verde-dourada daquele olhar. Ele imediatamente afastou a mão do rosto de Dylan, mas não pôde deixar de notar que ela tinha se dado conta da liberdade que ele tomara. Ela, todavia, não demonstrou alteração alguma, simplesmente soltou um suave sopro de ar por seus lábios entreabertos.
– Estou com medo – ela sussurrou com uma voz baixa por causa do longo sono em que ele a tinha colocado. Dylan não tinha consciência do transe ou da viagem. Para sua mente humana, ela ainda estava no Refúgio de Reichen, uma vez que sua mente tinha sido colocada em suspensão momentos antes da partida para Boston. – Estou com medo do lugar para onde você está me levando...
– Já estamos aqui – disse Rio. – Acabamos de chegar.
O pânico tomou conta do olhar de Dylan.
– Onde...
– Eu a trouxe para a sede da Ordem. Você está segura aqui.
Dylan lançou um olhar ao seu redor, tentando entender onde estava.
– É aqui que você mora? – perguntou.
– É aqui que eu costumava morar. – Rio se levantou e se afastou da cama. – Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, basta pedir.
– Que tal uma carona até minha casa em Nova York? – ela disse. Sua consciência estava obviamente voltando ao normal. – Ou talvez um GPS mostrando onde estamos agora... Pode deixar que eu me viro para encontrar o caminho para casa.
Rio cruzou os braços sobre o peito enorme e musculoso.
– Esta é sua casa agora, Dylan. Como você é uma Companheira de Raça, será tratada com todo o respeito e reverência. Terá comida, conforto e tudo mais o que precisar. Você não vai ser trancada nesse quarto, mas eu posso lhe garantir que não há para onde você correr, caso isso venha a passar por sua cabeça. O complexo é inteiramente seguro. Meus companheiros e eu não vamos machucá-la, mas se você tentar deixar esses aposentos, nós saberemos antes de você dar o primeiro passo no corredor. Se você tentar fugir, vou encontrá-la, Dylan.
Ela ficou em silêncio por um longo momento enquanto ouvia aquele enorme homem falar e media cada uma de suas palavras.
– E então, o que vocês vão fazer comigo? Me segurar e morder minha garganta?
Jesus Cristo!
Rio sentiu todo o seu sangue drenar de sua cabeça ao simples pensamento daquilo. Ele sabia que para ela aquilo deveria ser um ato de extrema violência, mas, para ele, a imagem de segurar Dylan sob seu corpo enquanto ele perfurava delicadamente a pele macia de seu pescoço com suas presas era um ato inteiramente sensual.
O desejo percorreu seu corpo em uma espiral ardente e se concentrou imediatamente no meio de suas pernas. Ele ainda podia sentir a pele sedosa de Dylan em seus dedos e agora era outra parte de seu corpo que desejava imensamente, incontrolavelmente, conhecer o toque da pele daquela mulher em sua frente. Rio se virou, irritado com a rápida reação a Dylan que seu corpo esboçava.
– Quando eu estava em Jicín, ouvi uma história sobre um homem que foi atacado por um demônio. Um velho fazendeiro que testemunhou tudo disse que o tal demônio descia da montanha para se alimentar. Para beber sangue humano.
Rio ficou ali, encarando a porta em sua frente enquanto Dylan falava. Ele sabia a qual noite ela estava se referindo, ele se lembrava dela claramente, pois aquela tinha sido a última vez que ele tinha se alimentado. Fazia mais de duas semanas que ele não se alimentava quando foi até aquela humilde fazenda perto da floresta, na base da montanha.
Ele estava faminto e aquilo o deixou descontrolado. Um homem idoso apareceu, viu o ataque, viu Rio com os dentes cravados no pescoço de outro homem. Aquele foi um deslize, uma imprudência, e aquela interrupção tinha sido a única coisa responsável por salvar a vida da caça de Rio de sua fome incontrolável. Se aquele velho homem não tivesse aparecido, certamente o outro teria morrido. Rio tinha deixado de caçar naquela noite, aterrorizado com o que tinha se tornado.
– Foi um exagero, não é mesmo? – A voz de Dylan tornou-se lentamente mais calma durante o silêncio que Rio lhe deu como resposta. – Você não fez aquilo, fez, Rio?
– Fique à vontade – ele grunhiu, enquanto saía. Antes, porém, ele pegou a bolsa em que estavam o laptop e a câmera digital de Dylan. – Há algumas coisas que preciso fazer.
Rio não esperou que Dylan protestasse ou dissesse uma palavra mais, apenas sabia que precisava sair dali. Agora. Uns poucos passos o levariam para as portas abertas e à luxuosa sala de estar que atravessara minutos antes carregando Dylan em seus braços.
– Rosario...?
Ele parou ao som da voz dela em suas costas. Franziu a sobrancelha, virou a cabeça e voltou o olhar para a mulher, que agora tinha se levantado da cama e estava apoiada em seus cotovelos.
Madre de Dios, ela estava deliciosamente atraente, um tanto quanto despenteada, um tanto quanto sonolenta. Não demorou muito para Rio imaginar que talvez fosse daquela forma que Dylan deveria parecer depois de uma noite de sexo ardente. O fato de ela estar deitada sobre aqueles lençóis de seda de cor ameixa da cama de Rio apenas deixava a imagem ainda mais erótica.
– O quê? – a voz do homem enorme era um chiado que mal passava por sua garganta masculina.
– Seu nome – ela disse, como se ele devesse saber do que ela estava falando. A mulher, então, inclinou a cabeça enquanto estudava atenciosamente o quarto. – Você me disse que Rio é apenas parte de seu nome, então eu imaginei que talvez pudesse ser um apelido para Rosario.
– Não.
– Então qual é? – Quando ele não respondeu imediatamente, suas sobrancelhas castanho-claras juntaram-se, obviamente impacientes pela resposta. – Depois de tudo o que você me contou nos últimos dias, que problema teria em me dizer seu nome?
Ele escarnecia interiormente enquanto se lembrava de todos os nomes pelos quais tinha sido chamado desde que nascera. Nenhum deles era gentil, para dizer o mínimo.
– Por que isso é tão importante?
Ela sacudiu a cabeça, erguendo levemente os ombros magros.
– Não é importante. Suponho que simplesmente tenho curiosidade de saber mais sobre você. Para saber quem você realmente é.
– Você já sabe o suficiente – ele disse. Um leve xingamento escapou por sua boca. – Confie em mim, Dylan. Você não vai querer saber nada mais sobre mim além do que já sabe.
Mas Rio estava equivocado, pensou Dylan, enquanto observava o enorme corpo daquele homem afastar-se e atravessar a porta da ampla suíte. Ele fechou a porta e deixou a mulher sozinha na suave iluminação dos aposentos.
Ela virou o corpo na enorme cama, suas pernas estavam trêmulas como se fizesse muito tempo que não as usava, como se ela tivesse ficado ao relento durante boa parte de uma noite de inverno. Se o que ele disse era verdade – que eles tinham deixado Berlim e estavam agora nos Estados Unidos – então, ela pensou, faltava-lhe pelo menos nove horas de memória consciente.
Seria aquilo realmente possível?
Será que ele realmente a havia colocado em uma espécie de transe por todo aquele tempo?
Ela tinha ficado surpresa ao sentir os dedos de Rio acariciando seu rosto quando despertou. Aquele contato parecia tão suave, tão protetor e tão quente. Mas também tinha sido muito fugaz, tinha sido interrompido tão logo ele se dera conta de que ela estava acordando, tão logo notara que ela estava percebendo o que acontecia. Será que ele também percebeu que ela estava gostando?
Não, Dylan não queria sentir o calor de Rio, tampouco queria demonstrar algum calor para ele, mas ela não conseguia negar que havia algo de eletrizante na maneira como ele a olhava. Havia algo inegavelmente sedutor na maneira como ele a tocava. Ela queria saber mais sobre aquele homem – ela precisava saber mais sobre aquele homem. Afinal de contas, como sua prisioneira, seria de seu maior interesse saber qualquer coisa que pudesse a respeito do homem que a mantinha como refém. Como jornalista em busca – ou à espera – de uma grande matéria, era obrigação dela juntar até os mais insignificantes fatos e perseguir a verdade até o fim. Entretanto, era seu interesse como mulher o que mais incomodava Dylan.
Era aquele desejo mais íntimo e pessoal de saber mais sobre o tipo de homem que Rio era que fazia com que ela vagasse de um lado para o outro naqueles aposentos chiques. A decoração era exuberante e sensual, uma explosão de cores brilhantes que iam desde a roupa de cama de seda, da cor de ameixas maduras, até o tom dourado da pintura que cobria as paredes. Uma coleção de pinturas abstratas, tão brilhantes e gritantes que chegavam a fazer os olhos de Dylan doer, cobriam uma parede inteira da suíte luxuosa. Outra parede ostentava um espelho com uma moldura exuberante e obviamente caríssima. E o objeto estava colocado estrategicamente de modo a refletir os quatro lados da cama de dossel e tudo o que, por ventura, pudesse estar acontecendo em cima daqueles lençóis. Excitante.
– Sutil... – murmurou Dylan, girando os olhos enquanto se aproximava de um par de portas duplas que havia do outro lado do quarto. Ela as abriu e ficou de boca aberta quando percebeu que se tratava do closet... Um closet que tinha mais metros quadrados do que todo o seu apartamento no Brooklin.
– Santo Deus!
Ela entrou e imediatamente se deu conta de que havia mais espelhos ali dentro – e por que você não iria querer admirar-se em todos os ângulos possíveis quando tinha metade da Chanel à sua disposição?
Dylan ficou tentada a perscrutar aquele lugar que deveria ter milhares de dólares em roupas e sapatos assinados por estilistas famosos, mas um pensamento triste logo tomou conta de sua mente: apenas um quarto do armário tinha roupas masculinas. O resto todo pertencia a uma mulher. Uma mulher pequena, delicada, cujo gosto era, obviamente, muito caro. Aqueles aposentos poderiam ser de Rio, mas certamente ele não vivia ali sozinho.
Mas que merda! Será que ele era casado?!
Dylan deu meia-volta e saiu do closet, fechando bruscamente a porta e intimamente desejando nunca ter entrado ali. Dirigiu-se para a sala, observando atentamente cada detalhe e inegavelmente percebendo que havia um toque feminino em todos os cantos para os quais olhava. Nada se parecia nem de longe com seu estilo, mas, afinal, o que Dylan sabia sobre design de interiores mesmo? Não muito. Sua melhor peça de mobília era um sofá-cama que ela comprara de segunda mão.
Dylan deixou a mão percorrer o encosto de uma nogueira esculpida como uma cadeira enquanto observava a mobília declaradamente elegante do lugar. Ela se aproximou de um sofá de veludo dourado e parou enquanto seu olhar capturava uma pequena coleção de fotografias emolduradas minuciosamente expostas na mesa que havia atrás do sofá.
A primeira coisa que viu foi uma fotografia de Rio. Ele estava sentado no banco do passageiro de um clássico Thunderbird conversível que tinha sido estacionado sob a luz da lua em alguma praia deserta. Ele vestia uma camisa de seda preta – desabotoada, obviamente – e uma calça da mesma cor; suas coxas estavam ligeiramente separadas em um “V” casual e os dedos de seus pés descalços estavam inocentemente enterrados na areia branca enquanto seu olhar topázio escuro brilhava com uma espécie de sabedoria oculta e privada, e seu sorriso nebuloso o tornava igualmente perigoso e atraente.
Jesus Cristo, ele era lindo.
Para dizer a verdade, ele era muito mais do que lindo.
A foto não parecia antiga. Não havia cicatrizes no lado esquerdo do rosto dele, de modo que a lesão que ele sofrera devia ser bastante recente. Seja lá o que tenha roubado sua aparência clássica e incrivelmente atraente, a maior tragédia parecia ser a fúria que Rio havia dentro de si. Dylan olhou para a fotografia de Rio em dias felizes, e se perguntou como ele poderia ter mudado tanto desde aquela época.
Ela então olhou para outra fotografia, essa sim, antiga. Era uma imagem profissional em tons de sépia de uma mulher com os cabelos negros vestindo um bufante vestido vitoriano de gola alta. Dylan se inclinou para poder ter uma visão melhor enquanto se perguntava se aquela beleza exótica com sorriso tímido poderia ser, de repente, a avó de Rio. Os olhos escuros da modelo encaravam direta e fixamente a lente da câmera, lançando um olhar de pura sedução. Ela era bela, a mulher da fotografia, apesar da moda recatada de sua época.
E seu rosto... seu rosto parecia extremamente familiar.
– Ah, meu Deus!
A incredulidade, assim como o absoluto deslumbramento, inundou Dylan conforme ela deslizava o olhar para outra fotografia que havia na mesa. Esta, uma imagem colorida, obviamente tirada na última década ou menos... e na qual a mesma mulher da foto antiga também era modelo. Essa última imagem, tirada durante a noite, mostrava uma mulher de pé em uma ponte de pedra no meio de um parque, rindo enquanto seus belos e longos cabelos negros balançavam em sua cabeça. Ela parecia feliz, mas Dylan viu uma tristeza em seus olhos escuros – dolorosos segredos profundamente escondidos em seu olhar castanho-escuro que estava fixo em quem quer que estivesse tirando a foto.
E Dylan reconhecia aquele rosto, ela tinha certeza de que sim... Sim, ela percebia agora, e não era apenas da série de fotografias espalhadas naquela mesa e que a jornalista acabara de ver... Não, aquele rosto era familiar. Dylan já o tinha visto, sim, ela o reconhecia agora porque já o tinha visto na montanha, em Jicín. Aquele era, definitivamente, o rosto da mulher morta. A bela – e morta – mulher que a havia conduzido à caverna onde ela encontrara Rio – Dylan se dava conta disso agora – era esposa dele.
Capítulo 15
Era quase como se ele nunca tivesse deixado aquele local.
Rio estava no laboratório de alta tecnologia do complexo, cercado por Lucan, Gideon e Tegan, que o tinham saudado e oferecido um aperto de mão – sinal da amizade e da confiança verdadeiras.
O aperto de mão de Tegan se prolongou por mais tempo. Rio sabia que o forte guerreiro com cabelos acobreados e olhos esmeraldas era capaz de ler sua culpa e suas incertezas por meio da ligação entre suas mãos. Esse era o dom de Tegan, adivinhar as verdadeiras emoções com apenas um toque.
Ele deu um aceno quase imperceptível com a cabeça.
– Coisas ruins acontecem, meu amigo. E Deus sabe que todos nós temos nossos demônios tentando nos passar a perna. Então, ninguém está aqui para julgá-lo. Entendeu?
Rio assentiu com a cabeça enquanto Tegan soltava sua mão. Ao entregar a bolsa de Dylan a Gideon, o vampiro recém-chegado observou a parte posterior do laboratório, onde Dante e Chase limpavam suas armas para usá-las durante a noite. Dante ofereceu uma pequena saudação com o queixo, mas o olhar de aço de Chase deixava claro que ele não sabia o que pensar quando o assunto era Rio. Um homem inteligente. Rio imaginou que a reação do ex-agente fosse, provavelmente, a sua própria reação caso a situação fosse inversa e fosse Chase quem estivesse voando naquele jato em busca de resgate.
– Quanto a mulher sabe a nosso respeito? – perguntou Lucan.
Com novecentos anos de idade e fazendo parte da Primeira Geração da Raça, o fundador da Ordem e líder formidável poderia controlar toda uma sala com apenas um movimento de suas sobrancelhas negras. Rio o considerava um amigo – todos os guerreiros eram tão próximos que pareciam até mesmo familiares uns dos outros – e Rio odiava com todas as suas forças a possibilidade de tê-lo decepcionado.
– Só dei a ela as informações básicas – respondeu Rio. – Não acredito que ela esteja completamente convencida.
Lucan grunhiu, assentindo pensativamente.
– Realmente, são muitas informações para ela processar. Ela entende o propósito da cripta na montanha?
– Na verdade, não. Ela me ouviu chamando aquilo de câmara de hibernação quando Gideon e eu estávamos conversando, mas não sabe nada além disso. Pode ter certeza de que não pretendo dar mais nenhuma pista a ela. O fato de ela ter visto aquilo já é ruim demais. – Rio exalou um suspiro duro. – Ela é inteligente, Lucan. Não acredito que vá levar muito tempo para juntar as peças do quebra-cabeça.
– Então será melhor agirmos logo. Quanto menos detalhes tivermos que esclarecer posteriormente, melhor – explicou Lucan. Ele lançou um olhar a Gideon, que tinha aberto o laptop de Dylan no console ao seu lado. – Quão difícil acredita que será hackear e acabar com as fotos que ela enviou por e-mail?
– Apagar os arquivos da câmera e do computador é fácil. Demora apenas alguns segundos.
– E quanto a apagar as fotos da caixa de entrada daqueles que as receberam?
Gideon franziu o rosto como se estivesse calculando a raiz quadrada da renda líquida de Bill Gates.
– Algo como dez minutos para enviar uma bomba e estourar o disco rígido de todos os computadores da lista de contatos dela. Treze minutos se você quiser algo mais sutil.
– Eu não estou nem aí com o fator sutileza. – Lucan deixou claro. – Faça o que for necessário para destruir as fotos e destruir qualquer referência escrita ao que ela encontrou na montanha.
– Pode contar comigo – respondeu Gideon, que já se encontrava fazendo sua magia em ambos os dispositivos.
– Podemos destruir os arquivos eletrônicos, mas ainda teremos de tratar com as pessoas com quem ela manteve contato sobre a caverna – esclareceu Rio. – Além do chefe dela, há três mulheres com quem ela estava viajando. E também a mãe dela.
– Vou deixar isso para você – disse Lucan. – Não me importa como você vai fazer isso. Faça-a negar a história, acabe com a credibilidade dela ou saia para encontrar as pessoas com quem ela conversou e apague a memória de cada uma delas. A decisão é sua, Rio. Simplesmente dê um jeito na situação, como sei que você vai fazer.
Rio assentiu.
– Eu lhe dou minha palavra, Lucan. Vou consertar a situação.
A expressão do vampiro da Primeira Geração era tão sombria quanto segura.
– Não duvido de você. Nunca duvidei e nunca duvidarei.
A confiança de Lucan era inesperada, e um presente que Rio não tinha intenção de desperdiçar, independentemente de quão destruído ele soubesse estar. Durante muitos anos, a Ordem e os guerreiros que a serviam eram seu principal propósito na vida – inclusive acima de seu amor por Eva, o que acabou gerando um ressentimento silencioso, porém colérico, nela. Rio estava comprometido com até o último destes homens – como se eles fossem seus parentes de sangue –, comprometido a lutar por eles e, inclusive, a morrer por eles. Ele olhou em volta, sentindo-se humilde pelos rostos sombrios e corajosos dos cinco homens da Raça que ele sabia, sem dúvida alguma, que também dariam suas vidas por ele.
Rio limpou a garganta, sentindo-se desconfortável com as boas vidas praticamente unânimes de seus irmãos. Do outro lado do laboratório, as portas de vidro se abriram quando Nikolai, Brock e Kade chegaram, vindos do corredor. Os três conversavam com empolgação, trazendo um ar de camaradagem quando entraram no laboratório.
– Oi! – disse Niko, lançando a saudação para ninguém em particular. Seus olhos azuis como o gelo pararam em Rio por um segundo antes de ele finalmente olhar para Lucan e começar a detalhar a patrulha da noite. – Acabamos com um Renegado perto do rio há mais ou menos uma hora. O filho da mãe estava escondido em um contêiner de lixo quando o encontramos.
– Você acha que é um dos cachorros de Marek? – perguntou Lucan, referindo-se ao exército de Renegados que seu próprio irmão vinha criando até a Ordem finalmente intervir. Marek tinha morrido pelas mãos da Ordem, mas os vermes de seu exército ainda precisavam ser exterminados.
Nikolai ofereceu um aceno com a cabeça.
– O desgraçado não era um soldado, mas apenas um viciado tentando satisfazer sua sede de sangue. Imagino que só tenha passado algumas poucas noites fora do Refúgio Secreto. E nós o liquidamos facilmente. – O vampiro russo olhou atrás de Rio e lançou um sorriso desajeitado para Dante e Chase. – Alguma ação no lado Sul?
– Não, nada – murmurou Chase. – Estávamos muito ocupados buscando alguém no aeroporto.
Nikolai grunhiu, compreendendo o comentário e lançando um olhar em direção a Rio.
– Faz tempo, hein cara?! É bom ver que você continua inteiro.
Rio conhecia aquele cara muito bem para pensar que o comentário era amistoso. De todos os guerreiros da Ordem, Rio esperava que fosse Nikolai o primeiro na fila para defendê-lo – mesmo se Rio fosse ou não digno de defesa. Niko era o irmão que Rio nunca tivera. Os dois tinham nascido no século anterior e entrado para a Ordem em Boston na mesma época.
Era estranho Niko estar ausente durante a chegada de Rio ao complexo. No entanto, conhecendo o vampiro e seu amor pelo combate, ele provavelmente estava irritado com o fato de sua equipe de patrulha ter sido reduzida algumas horas antes do amanhecer.
Antes que Rio pudesse dizer qualquer coisa a seu velho amigo, a atenção de Nikolai voltou a Lucan.
– O Renegado que encontramos esta noite era jovem, mas a matança que ele tinha deixado para trás parecia ser trabalho de mais de um vampiro. Eu gostaria de retornar lá amanhã e verificar as redondezas. Talvez encontremos mais alguma coisa.
Lucan assentiu:
– Parece uma boa ideia.
Depois de resolver isso, Niko dirigiu sua atenção para Kade e Brock:
– Temos tempo suficiente antes do amanhecer para caçar um pouco. Alguém aí se sentiu com sede de repente?
Os olhos de Kade brilharam como mercúrio.
– Há um lugar em North End que deve ser bem interessante. Lá há um monte de jovens no ponto certo.
– Pode contar comigo – disse Chase com palavras arrastadas, saindo de sua cadeira ao lado de Dante para unir-se aos outros três vampiros não comprometidos conforme eles começavam a caminhar na direção da saída do laboratório.
Por um instante, Rio os observou partir. Entretanto, quando viu Nikolai sair junto aos outros, xingou em voz baixa e, logo depois, correu atrás dele.
– Niko, espere.
O guerreiro seguiu seu caminho, como se não tivesse ouvido nada.
– Espere, cara. Caramba, Nikolai. Que diabos está acontecendo com você?
Quando Chase, Brock e Kade pararam para olhar atrás, Niko acenou para que eles continuassem. Os três seguiram seu caminho, virando no canto do corredor e desaparecendo de vista. Depois de uns poucos segundos, finalmente, Niko deu meia-volta.
O rosto que olhava para Rio no túnel branco era duro e incompreensível.
– Sim. Estou aqui. O que você quer?
Rio não sabia como responder àquilo. A hostilidade saiu da boca de seu velho amigo como um vento frio de inverno.
– Fiz algo que o incomodou?
O som da risada de Nikolai raspava contra as paredes de mármore.
– Vá se ferrar, cara.
Nikolai deu meia-volta e começou a se afastar novamente.
Rio o alcançou em um piscar de olhos. Estava a ponto de agarrar o ombro do guerreiro e obrigá-lo a parar, mas Niko se movimentou com mais agilidade. O vampiro russo virou-se e golpeou Rio, acertando-o no esterno, fazendo-o bater a coluna contra a sólida parede no outro lado do corredor.
– Você quer morrer, seu filho da mãe? – Niko estava com os ombros entreabertos, a cor âmbar acesa como resultado de toda aquela ira. – Se você quer se matar, é problema seu. Só não peça a minha ajuda, está bem?
Os músculos de Rio estavam retesados e prontos para uma briga. Seus instintos de combate se tornaram mais aguçados, apesar de ele estar enfrentando um aliado de longa data. No entanto, enquanto Nikolai falava, a fúria que cresceu em Rio rapidamente se reduziu. De repente, a cólera que Niko sentia contra ele fez sentido. Afinal, Nikolai sabia que Rio tinha ficado naquela montanha da Boêmia com intenções de acabar com a própria vida. Se Niko não tinha se dado conta disso cinco meses atrás, agora ele tinha certeza.
– Você mentiu para mim – esbravejou Niko. – Você me olhou diretamente nos olhos e mentiu para mim, cara. Você nunca ia voltar para a Espanha. O que pretendia fazer com o C-4 que eu dei para você? Você pretendia detonar aquela droga presa ao seu corpo, como se fosse um camicase se divertindo. Ou talvez você só estivesse planejando se prender no interior daquela maldita caverna e ficar lá, esquecido por toda a eternidade. O que você ia fazer, amigo? Como você pretendia acabar com a própria vida?
Rio não respondeu. Não era necessário. De todos os guerreiros da Ordem, Nikolai era o que melhor o conhecia. Nikolai tinha visto Rio como o covarde e fraco que ele realmente era. Só ele sabia o quão próximo Rio tinha estado de dar um fim a tudo – antes mesmo de ele chegar àquela montanha tcheca.
Tinha sido Niko quem se negara a deixar Rio mergulhar no ódio que sentia de si. E, então, evitar que entrasse naquela espiral de negatividade tinha se tornado sua missão pessoal. Niko, que ajudou Rio a subir na montanha nas semanas que se seguiram, caçando para o amigo que estava fraco demais para cuidar dele mesmo. Nikolai, o irmão que Rio nunca tivera.
– Sim – disse Niko, fechando uma carranca. – Como disse. Vá se ferrar.
Ele tirou o braço do peito de Rio e se afastou, ainda rangendo alguns xingamentos. Rio o viu se distanciar. Os sapatos de Niko pareciam mastigar o piso de mármore polido quando ele se apressou para juntar-se aos outros guerreiros que já estavam a caminho do piso superior.
– Que droga! – murmurou Rio, correndo a mão pelos cabelos.
O choque com Nikolai era só mais uma evidência de que ele não devia ter retornado a Boston – mesmo que isso significasse jogar o problema Dylan Alexander nas mãos de outra pessoa. Rio já não se encaixava ali. Agora ele era um estranho, um elo fraco em meio a uma cadeia de aço, formada pelos corajosos guerreiros da Raça.
Ainda agora ele conseguia sentir suas têmporas latejarem por conta da descarga de adrenalina que tinha ocorrido alguns minutos atrás, quando parecia que Niko queria cortá-lo em pedaços. Sua visão começou a tremer enquanto ele estava parado ali. Se não se movesse e encontrasse um local privado para aguentar a crise mental que estava por vir, Rio sabia que seria questão de minutos antes que acordasse caído sobre o mármore que revestia o chão do corredor. E, francamente, ver Lucan e aos outros saírem do laboratório para olhá-lo fixamente como se ele fosse um moribundo era algo que não queria experimentar.
Ele forçou suas pernas a se movimentarem e, com uma dificuldade acentuada, conseguiu encontrar o caminho de volta até seus aposentos. Entrou, cambaleando, e fechou a porta. Em seguida, entregou-se a uma nova sensação de náusea que o invadiu.
– Você está bem?
A voz feminina vinha de algum ponto distante naquele cômodo. A princípio, não a reconheceu. Seu cérebro estava lutando para realizar as tarefas básicas. Aquela voz brilhante e cristalina não parecia pertencer àquele lugar cheio de lembranças antigas e empoeiradas.
Rio se distanciou da porta e se arrastou pela sala, em direção ao quarto. Seu cérebro transmitia a impressão de que se despedaçaria a qualquer momento.
Água quente. Escuridão. Tranquilidade. Ele precisava dessas três coisas. Imediatamente.
Rio tirou a camisa e a deixou cair no ridículo sofá de veludo de Eva. Ele realmente tinha que queimar todos seus pertences. E era uma pena que ele não tinha como jogar aquela maldita traidora na fogueira junto com todo o resto.
Rio se agarrou à sua fúria pela traição de Eva, um leve castigo, mas aquilo era tudo o que tinha no momento. Abriu as portas do quarto e ouviu um leve suspiro vindo lá de dentro.
– Meu Deus! Rio, você está bem?
Dylan.
O nome dela atravessava como um bálsamo a névoa que envolvia a mente de Rio. Ele levantou o olhar na direção de sua convidada indesejada, que agora estava sentada no canto da cama com algo plano e retangular apoiado em seu colo. Ela deixou o objeto de lado, no criado-mudo, e se aproximou antes que os joelhos dele cedessem.
– Banho – ele conseguiu grunhir.
– Você mal consegue parar em pé – Dylan o ajudou a alcançar a cama, onde ele rapidamente deixou o corpo cair. – Parece que você precisa de um médico. Há alguém aqui que possa ajudá-lo?
– Não – ele respondeu com uma voz rouca. – Uma ducha...
Rio estava fraco demais para usar sua habilidade mental da Raça e abrir o registro da água, mas ele não precisou sequer tentar. Dylan já estava se apressando na direção do banheiro ao lado. Ouviu o forte estalar da água batendo contra o chão e, em seguida, os suaves passos de Dylan no carpete enquanto ela retornava para onde estava caído, com o corpo virado na direção dos pés da cama.
Rio percebeu vagamente a desaceleração dos passos da mulher conforme ela se aproximava. Apenas escutou a respiração rápida logo acima de seu corpo. Mas era impossível confundir quem estava ali quando ela soltou, com a respiração trêmula, alguns palavrões. Um silêncio pesado e demorado se seguiu ao xingamento sussurrado. Em seguida:
– Rio... Meu Deus! Por que tipo de inferno você passou?
Lançando mão até mesmo da última gota de força que tinha, ele conseguiu abrir os olhos. Um erro enorme. O horror que ele viu nos olhos de Dylan era inegável. Ela estava olhando o lado esquerdo de seu corpo... O peito e o torso, que tinham sido destruídos por uma granada que quase esfolou seus ossos com as chamas da explosão que por pouco não lhe tirara a vida.
– Ela... – suave voz de Dylan foi se tornando cada vez mais fraca. – Sua esposa tem algo a ver com o que aconteceu com você?
Rio sentiu seu coração parar de bater. O sangue que antes pulsava fortemente em seus ouvidos se transformou em gelo quando ele conseguiu se concentrar na pergunta de Dylan. A preocupação estampava seu rosto.
– Ela fez isso com você, Rio?
Ele seguiu a mão estendida de Dylan enquanto ela alcançava o objeto que tinha deixado no criado-mudo. Era uma fotografia em um porta-retratos. Rio não precisava ver a foto no vidro para saber que era de Eva, de um passeio que eles tinham feito no Charles River certa noite. Eva, sorrindo. Eva, dizendo o quanto o amava. Enquanto, em suas costas, ela conspirava com os inimigos da Ordem para conquistar seus objetivos egoístas.
Rio grunhiu quando pensou em sua própria burrice. Em sua própria cegueira.
– Isso não é da sua conta – murmurou, ainda à deriva da escuridão que tomava conta de sua mente. – Você não sabe nada a respeito dela.
– Foi ela quem me levou até você. Eu a vi na montanha em Jicín.
Uma suspeita irracional transformou a ira de Rio em um sentimento letal.
– Do que você está falando? Como assim, você a viu?
Dylan engoliu em seco e encolheu levemente o ombro. Em seguida, segurou a fotografia diante dele.
– Eu a vi... O espírito dela estava lá. Ela estava na montanha com você.
– Você só pode estar mentindo – ele grunhiu. – E não me fale dessa mulher. Ela está morta, e merecidamente.
– Ela pediu que eu o ajudasse, Rio. Ela me procurou. Queria que eu salvasse você...
– Já disse para você parar de falar dela! – ele esbravejou.
A raiva fez com que o corpo de Rio estremecesse no colchão como uma víbora sendo atacada. Ele puxou o retrato das mãos de Dylan e o atirou pelo quarto com uma velocidade impressionante. O objeto bateu contra o enorme espelho na parede de frente com a cama, quebrando-o com o impacto e lançando cacos de vidro polido como uma chuva de lâminas.
Rio ouviu o grito de Dylan, mas foi somente quando ele sentiu o cheiro adocicado do sangue dela que se deu conta do que tinha feito.
Ela levou a mão até a maçã do rosto e, quando seus dedos se afastaram, estavam manchados de vermelho por conta de um pequeno ferimento logo abaixo do olho esquerdo.
Foi a visão daquela ferida que tirou Rio daquele espiral de depressão. Como um balde de água fria jogada sobre sua cabeça, ver Dylan ferida o puxou instantaneamente de volta para a realidade.
– Ah, Jesus Cristo! – disse ele com dentes apertados. – Eu sinto muito... Sinto muito!
Ele se moveu para tocá-la, para verificar o quanto a tinha ferido, mas ela se afastou com os olhos completamente aterrorizados.
– Dylan... eu não queria...
– Fique longe de mim!
Ele estendeu a mão, buscando demonstrar que realmente não queria feri-la.
– Não – ela estremeceu enquanto sacudia violentamente a cabeça. – Ah, meu Deus. Não me toque!
Madre de Dios.
Ela agora o olhava com um terror absoluto. E tremia. Seus olhos estavam fixos nele, banhados de medo e confusão.
Quando Rio passou a língua pelas pontas de suas presas salientes, ele entendeu a fonte do terror que Dylan sentia. Ele se levantou diante dela. Ela temia porque ele lhe tinha dito ser um vampiro, embora aquela mente humana tivesse se recusado a acreditar.
Agora, todavia, ela acreditava.
Dylan estava vendo a verdade com seus próprios olhos, as mudanças físicas no corpo de um louco cheio de cicatrizes que agora se transformava em uma criatura saída diretamente de seus piores pesadelos. Era impossível esconder as presas que se tornavam mais longas conforme a fome por ela se intensificava. Era impossível mascarar o afinamento daquelas pupilas conforme o brilho âmbar da sede de sangue embaçava sua visão.
Ele olhou para o pequeno corte, para o fio de sangue que escorria tão vermelho contra a pele macia da bochecha de Dylan. E ele mal conseguia formular um pensamento coerente.
– Eu tentei contar para você, Dylan. Isso é o que eu sou.
Capítulo 16
– Vampiro.
Dylan ouviu a palavra escapar por seus lábios, apesar do fato de mal poder acreditar no que estava vendo – ou dizendo.
Em questão de instantes, Rio tinha se transformado diante dos olhos de Dylan e ela olhava chocada as mudanças que acabara de presenciar. As íris dos olhos dele brilhavam como brasas e não tinham mais a cor topázio habitual. Em vez disso, estavam estampadas com uma inacreditável sombra âmbar que praticamente engolia as pupilas extremamente reduzidas. Os ossos da face de Rio pareciam mais duros agora, ostentando as esguias maçãs do rosto e uma mandíbula quadrada que parecia ter sido esculpida em pedra.
E, atrás do suculento e exuberante corte formado por sua boca, Rio exibia um par de presas que pareciam ter saído diretamente de algum filme de Hollywood.
– Você... – A voz de Dylan desapareceu conforme aqueles hipnóticos olhos cor de âmbar a encararam. Ela se sentou delicadamente na beirada da cama. – Meu Deus... Você realmente é um...
– Eu sou da Raça – ele pronunciou calma e articuladamente. – Exatamente como lhe disse.
Dylan estava sentada diante de Rio, e agora sua visão era preenchida completamente pela ampla musculatura do peito nu do vampiro. O intrincado desenho na pele dos antebraços subia pelos ombros de Rio e descia ao longo de seu peitoral. Todas as marcas – dermoglifos, como ele havia chamado da primeira vez em que ela as percebera – eram de uma cor vívida agora, a cor mais escura que Dylan já as tinha visto ostentar. Tramas profundas de cor púrpura e negra saturavam os belos desenhos e as linhas em forma de arcos.
– Não consigo impedir a transformação – ele murmurou, como se tivesse necessidade de dar uma justificativa a Dylan. – A transformação é espontânea nos machos da Raça quando sentimos o cheiro de sangue fresco.
O olhar dele desviou-se ligeiramente dos olhos de Dylan, e logo repousou na bochecha ferida pelos estilhaços do espelho quebrado. A mulher sentia que ainda havia sangue quente deslizando como uma lágrima por seu queixo. Rio assistia àquela gota deslizar com uma intensidade que fazia Dylan estremecer. Ele passou a língua pelos lábios sensuais e engoliu seco, mas manteve seus dentes cerrados o tempo todo.
– Fique aqui – ele ordenou com uma voz forte e autoritária enquanto franzia a testa com intensidade.
O instinto de Dylan lhe dizia que ela devia ser mais inteligente e correr, mas ela se recusava a sentir – ou, melhor dizendo, a demonstrar sentir – medo daquele homem enorme que estava sem camisa em sua frente. Por mais estranho que parecesse, Dylan sentia que tinha realmente conhecido aquele homem nos últimos dias, durante os quais eles foram obrigados a conviver. Rio não era nenhum santo, aquilo era um fato. Ele a tinha raptado, aprisionado e ela ainda não estava certa sobre o que ele queria fazer com ela – Santo Deus! No entanto, ela não acreditava que ele fosse perigoso – não para ela.
O que Dylan acabara de testemunhar ali não era exatamente algo a ser celebrado, mas, em seu coração, ela não sentia medo do que ele era.
Bem, não completamente.
Dylan ouviu quando Rio desligou o registro do chuveiro e saiu, poucos segundos depois, segurando uma toalha branca e umedecida que ele ofereceu para ela.
– Pressione isso contra a ferida. Vai estancar o sangramento.
Dylan tomou a toalha em suas mãos e a pressionou no rosto, exatamente como ele lhe dissera. Ela, porém, não pôde deixar de perceber a longa expiração que ele soltou quando a ferida em sua bochecha fora finalmente coberta, como se agora estivesse aliviado por não precisar mais passar pelo inferno de ter de olhar para aquilo e resistir. A cor ardente dos olhos de Rio começou a escurecer lentamente e as pupilas estreitas reassumiram a forma arredondada. Os dermoglifos, no entanto, ainda estavam avermelhados; as presas, ainda mortalmente afiadas.
– Você realmente é um... não é? – ela murmurou. – Você é um vampiro. Jesus Cristo! Não consigo acreditar que isso seja verdade. Quer dizer, como isso pode ser verdade, Rio?
Ele se sentou ao lado dela na cama. Menos de um metro de distância os separava agora.
– Eu já expliquei isso para você.
– Extraterrestres bebedores de sangue e mulheres humanas com DNA compatível com os deles – disse ela, recordando-se da estranha história sobre a raça híbrida de vampiros que ela tentara encarar como ficção científica. – Tudo isso é verdade?
– A verdade é um pouco mais complicada do que isso, mas sim... Tudo o que eu lhe disse é verdade.
Incrível.
Totalmente incrível.
Uma parte mercenária dela quase gritou de excitação ao pensar na potencial fama e fortuna que a revelação daquela história poderia lhe trazer. Mas havia outra parte de Dylan – a que não tinha se esquecido daquela incomum marca de nascença que ela trazia gravada na parte de trás do pescoço, a parte que ainda se lembrava de que ela tinha, aparentemente, uma forte conexão com aquele mundo – que mostrou instantaneamente seus instintos protetores, como se Rio e o mundo em que ele vivia fossem um delicioso segredo que pertencia exclusivamente a ela.
– Desculpe-me se eu chateei você – ela disse serenamente. – Eu não devia ter bisbilhotado as coisas enquanto você não estava aqui.
A cabeça dele se virou bruscamente e sua testa enrugou-se, levando as sobrancelhas a se unirem. O xingamento que ele murmurou foi forte e palpável.
– Você não precisa me pedir desculpas, Dylan. Fui eu quem errou. Eu nunca deveria ter entrado aqui no estado em que estava. Eu não posso ficar perto de ninguém quando estou daquele jeito.
– Você parece estar um pouco melhor agora.
Ele assentiu, sua cabeça caindo levemente em direção ao peito nu.
– A raiva diminui... no final. Se você não apagar antes, ela em algum momento... passa.
Não fazia muito tempo que Rio aparecera cambaleando no quarto, bastante desatento, com seus pés mal respondendo aos passos dificultosos que ele tentava dar. Ele mal conseguia pensar, seus músculos e ossos estavam embebidos em uma fúria insana.
– O que desperta isso, Rio?
Ele deu de ombros.
– Pequenas coisas, nada em especial. Nunca sei, exatamente.
– Aquele tipo de raiva faz parte do que você é? Todos os homens da Raça têm de passar por esse tipo de tormento?
– Não – disse, soltando o tipo de sorriso de alguém que está zombando de si. – Não. Esse problema é apenas meu. Falta um parafuso na minha cabeça. Eu o perdi no verão passado e nunca mais o encontrei.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan gentilmente. – Foi isso que aconteceu com você?
– Foi um erro – ele respondeu com uma ponta de insegurança na voz. – Eu confiei em alguém em quem não deveria ter confiado.
Dylan olhou para o dano terrível que o corpo de Rio tinha sofrido. O rosto e o pescoço dele carregavam graves cicatrizes, mas seu ombro esquerdo e metade de seu torso musculoso pareciam ter ido e voltado do inferno. Seu coração apertou-se em seu peito quando ela pensou na dor que ele deveria ter suportado, tanto no acontecimento que ferira seu corpo daquela forma, quanto no que provavelmente foram meses e meses de recuperação.
Ele estava ali, sentado naquela cama tão rigidamente, tão solitário e tão inalcançável, apesar de estar a menos de um braço de distância dela. Para Dylan, Rio parecia sozinho. Sozinho e à deriva.
– Sinto muito, Rio – disse ela. E antes que pudesse se interromper, Dylan colocou sua mão sobre a mão dele, que ele agora descansava sobre a coxa. ele estremeceu como se carvão em brasa tivesse sido colocado sobre sua pele. Todavia, não se afastou.
Ele olhou fixamente para os dedos de Dylan que descansavam suavemente sobre os dele, branco pálido sobre um tom bronzeado. Quando olhou para ela, lançou-lhe um olhar rústico e másculo que preenchia seus olhos completamente. Ela se perguntava quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele fora tocado com algum tipo de ternura.
Dylan deslizou seus dedos sobre a mão máscula de Rio, estudando o incrível tamanho e a enorme força que ela tinha. A pele dele era tão quente e havia tanta força concentrada em seu corpo, mesmo quando ele parecia determinado a manter-se perfeitamente parado.
– Sinto muito por tudo o que você enfrentou, Rio. Sinto de verdade.
A mandíbula dele estava tão apertada que fez um músculo de seu rosto se contrair. Dylan colocou de lado a toalha umedecida que ele tinha lhe trazido e mal percebia que todos os seus sentidos estavam concentrados nele e na eletricidade que parecia emanar de suas mãos entrelaçadas.
Ela ouviu um ruído baixo se formar dentro de Rio, algo entre um grunhido e um gemido. O olhar dele deslizou para a boca de Dylan, e, por um segundo – um rápido, um breve segundo que teria durado o tempo de uma batida do coração – ela se perguntou se ele iria beijá-la.
Dylan sabia que devia retroceder. Sabia que devia tirar sua mão de cima da mão dele, colocá-la longe. Sabia que devia fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não fosse ficar ali, parada, quase sem respiração enquanto esperava e desejava – desejava desesperadamente, incontrolavelmente – que ele se debruçasse sobre ela e apertasse seus lábios contra os dele.
E, de repente, ela não conseguia mais não tocá-lo. Foi quando estendeu a mão que estava livre e acariciou o rosto de Rio, sentindo um repentino sopro de ar gelado empurrá-la – com a imponência da Grande Muralha da China.
– Não quero sua compaixão – grunhiu Rio com uma voz que ela não reconheceu como sendo dele. O sotaque espanhol estava ali, como sempre, mas as sílabas eram ásperas e o timbre não era exatamente humano, o que imediatamente fez Dylan se lembrar de qual era a natureza daquele ser diante dela. Rio puxou a mão de debaixo da dela e se levantou da cama.
– O corte está sangrando. Você precisa de cuidados que não posso lhe oferecer.
– Tenho certeza de que não é nada grave – respondeu Dylan, sentindo-se uma idiota por se colocar em uma situação como aquela com ele. Depois, pegou novamente a toalha que descartara momentos antes e a pressionou outra vez contra o ferimento. – Não é nada. Vou ficar bem.
Não havia sentido algum em Dylan falar qualquer coisa que fosse, já que Rio não a ouviria, de qualquer forma. Ela o viu caminhar até a sala da frente, passando pelo espelho quebrado, e pegar um telefone sem fio, no qual imediatamente teclou uma sequência curta de números.
– Dante? Olá. Não, nenhum problema. Mas eu, é... Tess está por aí? Preciso que ela me faça um favor.
Rio parecia um animal enjaulado, andando de um lado para o outro durante os poucos minutos que se passaram até a ajuda chegar. Ele ficou do lado de fora do quarto, confinado a um espaço minúsculo perto da entrada principal. Ficou tão distante de Dylan quanto poderia ficar sem de fato ter de sair daquele maldito quarto e esperar do lado de fora.
Madre de Dios.
Ele quase lhe beijara.
E ele queria tê-la beijado. E admitir aquilo – mesmo que apenas para si – era como levar um soco no estômago. Beijar Dylan Alexander era uma maneira garantida de transformar uma situação que já era bastante ruim em algo que seria, de fato, catastrófico. Isso porque Rio sabia sem qualquer sombra de dúvida que, se beijasse aquela bela e ardente mulher, ele não conseguiria se conter, não conseguiria, de forma alguma, parar no beijo. Não, mesmo.
O simples pensamento da sensação que seria a de pressionar seus lábios contra os dela já fazia o sangue de Rio ferver e correr acelerado em suas veias. Seus dermoglifos pulsavam com as cores de seu desejo – agitando-se em tons de vermelho-escuro e negros. E também era impossível negar a outra evidência daquele desejo: seu pênis estava tão duro quanto granito, e estava daquele jeito desde o instante em que Dylan, inesperadamente, inadvertidamente, pousara a mão sobre sua coxa.
Jesus Cristo!
Ele sequer se atrevia a olhar para dentro do quarto, com medo de não ser capaz de impedir seus pés de marcharem de volta pelas portas fechadas e levarem-no diretamente para os braços de Dylan.
“Como ela provavelmente desejava” – ele pensou ardentemente.
Aquela carícia que Dylan fizera em sua mão tinha sido um gesto delicado, doce, do tipo que uma mãe faz em uma criança. Ou, pior do que isso, aquele gesto poderia ter sido um gesto de compaixão de um anjo caridoso que consola uma das criaturas mais infelizes criadas por Deus.
Maldecido.
Manos del diablo.
Monstruo.
Sim, Rio era todas essas coisas. E agora Dylan tinha visto como ele era realmente feio. Para seu crédito, ela não tinha recuado ao ver toda aquela carne retorcida e aquelas presas – o que queria dizer então que ela era muito mais forte do que aquilo tudo. Mas acreditar que ela poderia receber, poderia desejar seu toque? Que ela poderia aproximar-se o suficiente de seu rosto arruinado e permitir que ele a beijasse?
Jamais! E ele agradeceu a Deus por aquilo, pois aquilo lhe tinha poupado de ver a repugnância dela. Aquilo lhe tinha poupado de fazer algo realmente idiota, como se esquecer – ainda que por um segundo apenas – de que ela estava ali, no complexo – ali, em seu quarto – somente até que ele corrigisse o erro que cometera ao permitir que ela se aproximasse daquela maldita caverna em Jicín. Quanto mais rápido ele conseguisse fazer aquilo – consertar aquele erro – e mandar Dylan para casa, melhor.
Um golpe seco ecoou contra a porta.
Rio atendeu, com um grunhido de frustração.
– Você soava péssimo ao telefone, então decidi vir com Tess e ver com meus próprios olhos. – A boca de Dante curvou-se em um sorriso arrogante que só ele sabia dar enquanto seu corpo enorme permanecia parado na soleira da porta ao lado de sua bela Companheira de Raça. – E então, você não vai nos deixar entrar, cara?
– Claro.
Rio deu um passo para o lado, abrindo espaço para o casal entrar.
A companheira de Dante parecia ainda mais bela sob a luz daquele quarto. As longas ondas cor de mel de seus cabelos estavam presas em um rabo de cavalo frouxo e seus inquiridores olhos verde-mar eram suaves, mesmo quando encaravam Rio.
– É bom vê-lo novamente, Rio – disse ela, e, sem hesitação, deu um passo adiante e ficou na ponta dos dedos dos pés para dar um abraço rápido no guerreiro e beijar-lhe levemente a bochecha. – Dante e eu ficamos tão preocupados com você durante esses meses todos...
– Não precisava – respondeu Rio, embora não pudesse negar que aquela preocupação o deixava, de certa forma, feliz.
Tess e Dante estavam juntos desde o final do último outono. Ela tinha entrado para a Ordem com um extraordinário dom de curar e restaurar a vida com o simples toque de suas mãos macias. O toque de Tess tinha um poder inimaginável, mas nem mesmo ela fora capaz de consertar todos os danos que Rio tinha sofrido. Ele já estava muito longe quando ela chegou ao complexo, e as cicatrizes dele – tanto as interiores quanto as exteriores – eram permanentes, embora não fosse por falta de tentativas de Tess.
Dante passou o braço musculoso em volta de sua Companheira de Raça em um movimento que era protetor e respeitoso ao mesmo tempo. E foi então que Rio notou a leve protuberância no ventre dela. Tess percebeu o olhar de Rio e abriu um sorriso tão imaculado quanto o da própria Madonna de Botticelli.
– Estou nos primeiros três meses – ela disse, virando-se toda sorridente para Dante. – Alguém está usando isso como desculpa para me mimar.
Dante sorriu.
– Eu? Por favor...
– Felicidades – murmurou Rio, sinceramente sentindo os votos que desejava.
Não era comum guerreiros e Companheiras de Raça começarem uma família dentro da Ordem. Aliás, praticamente não se ouvia falar daquilo. Os homens da Raça que dedicavam suas vidas à luta contra os Renegados não eram tipos muito familiares, por assim dizer. Mas acontece que Dante nunca fora como esses guerreiros, então...
– Onde está Dylan? – perguntou Tess.
Rio gesticulou, apontando para as portas que estavam fechadas.
– Eu fui um idiota com ela. Tive uma crise e... Droga! Acabei quebrando o espelho. Um dos estilhaços acabou atingindo o rosto dela.
– Você ainda está tendo apagões? – perguntou novamente Tess, franzindo a testa. – As dores de cabeça ainda não passaram?
Rio recuou, obviamente não querendo falar sobre seus próprios problemas.
– Eu estou bem. – Foi tudo o que ele disse. – Apenas cuide dela, certo?
– Eu cuidarei. – Tess pegou uma pequena maleta médica das mãos de Dante, sob o olhar interrogativo de Rio, e completou:
– Desde que eu engravidei, minhas habilidades diminuíram. Eu entendo que, na gravidez, é normal a energia da Companheira de Raça se voltar para dentro do próprio corpo. As coisas vão voltar ao normal quando o bebê nascer. Até lá, terei de me apoiar na boa e velha medicina tradicional.
Rio lançou um olhar sobre seus ombros para dentro do quarto. Ele não conseguia ver Dylan, mas imaginou que ela estava lá dentro, precisando ver alguém gentil e carinhoso. Alguém que pudesse melhorar seu humor e conversar com ela como uma pessoa normal; alguém que pudesse tranquilizá-la, dizer-lhe que ela estava segura, que estava entre pessoas em quem ela podia confiar. Especialmente depois da espetacular demonstração de raiva psicótica e desregrada que ele, Rio, tinha feito para ela.
– Está tudo bem – disse Tess. – Não se preocupe, vou cuidar dela.
Com o punho fechado, Dante golpeou levemente o bíceps bem definido de Rio.
– Venha – disse –, vamos dar o fora daqui. Ainda falta uma hora para o amanhecer. E parece que você está precisando tomar um pouco de ar fresco, cara.
Capítulo 17
Dylan estava agachada perto do pé da cama, recolhendo cacos de vidro, quando as portas se abriram suavemente, abrindo caminho para o dormitório.
– Dylan?
Aquela era uma voz feminina. A mesma que, havia um minuto, ela tinha ouvido conversar baixinho com Rio e outro homem. Dylan olhou para cima e sentiu o calor instantâneo de um olhar brilhante que estava logo acima dela.
A mulher, jovem e bela, sorriu.
– Olá. Meu nome é Tess.
– Olá.
Dylan deixou um caco de vidro de lado e inclinou o corpo para recolher outro.
– Rio me pediu para vir ver se você estava bem.
Tess trazia consigo uma bolsa de couro preta quando entrou nos aposentos.
– Você está bem? – insistiu.
Dylan assentiu.
– É só um arranhão.
– Rio está se sentindo péssimo por causa disso. Ele anda passando por... problemas. Já faz algum tempo. Desde a explosão do armazém no verão passado. Ele tem sorte de estar vivo.
Meu Deus! Então isso explicava as queimaduras e as cicatrizes. Uma explosão havia feito aquilo? Quer dizer então que Rio realmente tinha feito uma viagem de ida e volta para o inferno, como Dylan havia suposto.
Tess continuou:
– Por causa do trauma cerebral causado pela explosão, ele tem blecautes de tempos em tempos. Além disso, Rio também tem fortes dores de cabeça, mudanças de humor... Bem, acredito que você deve ter visto com seus próprios olhos. Não é coisa para brincadeira. Mas ele não quis feri-la, disso eu tenho certeza.
– Estou bem – insistiu Dylan, sem se preocupar com o arranhão em sua bochecha. – Tentei dizer para ele que isto aqui não era nada. O corte nem está sangrando mais.
– É um alívio – disse Tess enquanto colocava a bolsa médica sob a escrivaninha. – Fico contente de saber que não é tão grave quanto Rio temia. Da forma como ele descreveu pelo telefone, pensei que teríamos que dar pelo menos meia dúzia de pontos. Mas pelo que vejo, um pouco de antisséptico e um curativo serão suficientes – Tess caminhou por onde Dylan recolhia os pedaços do espelho despedaçado. – Venha, deixe-me ajudá-la.
Quando Tess se aproximou, Dylan se deu conta de que a palma da mão de Tess estava apoiada sobre a curva na barriga. Ela estava grávida. E não foi apenas pela aparência física que Dylan percebeu, mas pelo fato de aquela mulher resplandecer com um brilho interior que não deixava dúvida alguma.
Além disso – e, talvez ainda mais estranho –, na mão que repousava sobre as primeiras fases de um bebê em desenvolvimento, havia uma pequena marca de nascença. Dylan não pôde deixar de olhar fixamente para a lágrima escarlate e a meia-lua na mão direita daquela mulher – a mesma marca com a qual ela tinha nascido, aquela que trazia no pescoço.
– Você vive aqui? – perguntou Dylan. – Com... eles?
Tess assentiu.
– Vivo com Dante. Ele é um guerreiro da Ordem, como Rio e os outros que vivem aqui no complexo.
Dylan acenou na direção da pequena marca de nascimento entre o polegar e o indicador de Tess:
– Você é a... Companheira de Raça dele? – perguntou, recordando o termo que Rio tinha usado depois de perceber que Dylan tinha uma marca idêntica àquela. – Você se casou com um deles?
– Dante e eu procriamos no ano passado – explicou Tess. – Fomos unidos por nosso sangue, o que nos liga de uma forma muito mais profunda do que o casamento. Imagino que Rio já tenha lhe dito algumas coisas sobre a Raça... Como eles vivem, de onde vêm. Depois do que aconteceu, estou segura de que você não tem dúvidas do que eles são.
Dylan assentiu, ainda sem acreditar que tudo aquilo poderia ser realmente verdade.
– Vampiros.
Tess sorriu gentilmente.
– Isso foi o que eu pensei a princípio. Porém, defini-los não é algo tão simples assim. A Raça é um pouco complicada. Eles vivem em um mundo complexo e cheio de inimigos. As coisas podem ser muito perigosas para eles e para quem os ama. Para os poucos homens que se comprometeram com a Ordem, cada noite é um risco para suas vidas.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan com um tom que deixava transparecer seu espanto. – A explosão que feriu Rio... foi algum acidente terrível?
Uma expressão de dor tomou conta do rosto de Tess. Ela estudou Dylan por um momento, como se não estivesse segura do quanto poderia contar. No entanto, ela logo sacudiu ligeiramente a cabeça.
– Não. Não foi um acidente. Alguém próximo de Rio o traiu. A explosão aconteceu durante uma investida em um velho armazém da cidade. Rio e os demais membros da Ordem se viram em uma emboscada.
Dylan olhou para baixo e se deu conta de que estava observando o porta-retratos que Rio tinha jogado pelo quarto durante seu ataque de raiva. Cuidadosamente o recolheu. Tirou a teia de aranha de cima do vidro quebrado sobre a imagem e observou os exóticos olhos escuros e o sorriso triste e distante.
– Eva – confirmou Tess. – Ela era a Companheira de Raça de Rio.
– Mas ela o traiu?
– Sim – Tess respondeu depois de uma longa pausa. – Eva fez um acordo com um dos inimigos da Ordem, com um poderoso vampiro que também era o irmão do líder da Ordem, Lucan. Para que este vampiro obtivesse informação que o ajudasse a matar Lucan, algo que Eva queria tanto quanto o inimigo, ela pediu duas coisas: que Rio sobrevivesse e que fosse ferido o suficiente para nunca mais conseguir lutar.
– Meu Deus! – ofegou Dylan. – E ela conseguiu o que queria?
– Não exatamente. A Ordem caiu em uma emboscada, apoiada nas informações que Eva entregou, mas o vampiro com o qual ela negociou não tinha a menor intenção de manter sua parte do acordo. Ele colocou uma bomba no local. A explosão poderia ter matado a todos, mas, ironicamente, Rio foi o mais atingido. E posteriormente ele veio a descobrir que Eva tinha sido a responsável por tudo aquilo.
Dylan não conseguia falar. Ela tentava absorver o peso que tudo aquilo deveria ter para Rio. Não apenas a dor física causada por aquelas lesões, mas também a dor emocional da traição sofrida por ele.
– Eu a vi. – Dylan olhou para Tess e viu a testa da mulher franzir. A confusão se tornava evidente naquele olhar carregado de interrogações. Dylan conhecia Tess há poucos minutos e não estava acostumada a falar sobre si com ninguém, em especial falar de seu segredo, de seu dom, daquilo que a tornava tão diferente dos outros humanos. No entanto, havia algo nos olhos cheios de cuidado de Tess que levava Dylan a confiar que estava segura. Ela tinha sentido uma afinidade instantânea que a fez saber que estava com uma amiga.
– Os mortos aparecem para mim de vez em quando. Bem, mulheres mortas, melhor dizendo. Eva apareceu para mim alguns dias atrás, quando eu estava viajando com algumas pessoas pelos arredores de Praga.
– Ela... apareceu para você...? – perguntou Tess com cautela. – O que você quer dizer com isso?
– Eu vi o espírito dela, por assim se dizer. Ela me guiou até uma caverna oculta. Eu não sabia, mas Rio estava lá dentro. Ela... Eva me levou até lá e me pediu que o salvasse.
– Meu Deus! – Tess acenou lentamente com a cabeça. – Ele sabe?
Dylan olhou significativamente para a destruição ainda sob seus pés.
– Sim, Rio sabe. Quando eu contei para ele, ele ficou louco.
O olhar de Tess transformou-se quase em um pedido de desculpa.
– Ele tem muita raiva de tudo que seja relacionado à Eva.
– É compreensível – respondeu Dylan. – Ele está bem, Tess? Quer dizer, considerando o que viveu, Rio vai ficar... bem?
– É o que eu espero. É o que todos nós esperamos. – Tess inclinou a cabeça ligeiramente, estudando Dylan. – Você não tem medo dele?
Não, Dylan não o temia. Tinha curiosidade de saber mais sobre Rio, e incerteza com relação às intenções dele quanto a ela. Mas não tinha medo. Embora isso parecesse loucura, mesmo depois de vê-lo tendo aquela reação naquele mesmo cômodo, Dylan não o temia. Aliás, pensar em Rio provocava muitas coisas nela, mas nenhuma delas era medo. Não mesmo.
– Você acha que eu deveria temê-lo? – perguntou.
– Não, claro que não – disse Tess sem vacilar. – Quer dizer, as coisas não devem estar sendo fáceis para você. Deus sabe que não aceitei muito bem no início, quando ouvi pela primeira vez toda essa coisa de sangue, presas e guerra.
Dylan encolheu o ombro.
– Eu escrevo para uma publicação que é quase um tabloide. Acredite, já escutei muitas coisas bizarras. Não me assusto com facilidade.
Tess sorriu, mas não manteve o olhar cruzado com o de Dylan por muito tempo. As palavras que ela não disse estavam claras naqueles olhos que a evitavam: aquilo não era apenas uma história bizarra de um tabloide. Aquilo era a realidade.
– O que havia naquela caverna, Tess? Parecia ser algum tipo de cripta, uma “câmara de hibernação”, como escutei Rio chamá-la. Mas que diabos era aquilo? Há algo perdido naquela montanha?
Tess levantou o olhar, mas só negou levemente com a cabeça.
– Na verdade, eu não acho que você queira saber.
– Sim, eu quero – insistiu Dylan. – Independentemente do que for, é importante o suficiente para que Rio sentisse a necessidade de me sequestrar e me trancafiar para que não dissesse nada do que vi.
O silêncio de Tess fez o estômago de Dylan formar um nó de medo. A Companheira de Raça sabia o que havia na caverna, e aquilo parecia aterrorizá-la. O que, é claro, apenas aumentou a curiosidade de Dylan.
– Tess, havia algo dormindo naquela tumba oculta. E, pelo aspecto, eu diria que esse algo estava escondido ali há muito tempo. Que tipo de criatura era ou é aquilo?
Tess se levantou e jogou alguns cacos de vidro no cesto de papéis ao lado da mesa.
– Deixe-me ver seu corte. Temos de limpá-lo. Depois faremos um curativo para evitar que você fique com uma cicatriz.
Confinado dentro da cela de raios ultravioleta, o Antigo jogou a cabeça para trás e soltou um rugido infernal. Sangue gotejava por suas enormes presas e seu peito, enorme e nu, ostentava a cor pulsante de seus dermoglifos.
– Apertem essas malditas correntes – gritou o cuidador, falando com seus subordinados por meio de um alto-falante na sala de observação fora da cela. – E, por Deus, arrumem toda essa bagunça aí dentro.
As algemas cibernéticas serpentearam e seguraram fortemente as pernas e os braços grossos do Antigo. Com um comando programado, ajustaram-se. A criatura tentou se libertar, mas não chegaria a lugar algum. Feriu-se futilmente: cortou seus próprios lábios e berrou de novo. O urro era pura fúria enquanto o imenso corpo era dominado por titânio e aço.
Ele ainda estava com o pênis ereto por conta do cruzamento que tinha dado tão violentamente errado. Ainda estava sedento pelo sangue e pelo corpo sem vida da mulher que naquele momento era apressadamente retirada da jaula.
A Companheira de Raça tinha sido atacada. Unhas e presas fortes tinham marcado irreversivelmente – mortalmente – seu corpo. E, antes que o Antigo pudesse ser afastado, ela já estava morta. Ela não era a primeira; tampouco seria a última (não estava perto de sê-lo, aliás). Ao longo das cinco décadas em que o Antigo tinha sido despertado de sua hibernação e posto sob o controle de seu guardião, alimentá-lo – e fazê-lo procriar – tinha se mostrado uma tarefa custosa e frustrante.
Apesar de toda aquela tecnologia e de todo aquele dinheiro disponível, não havia ciência alguma que pudesse substituir o tipo de acasalamento que havia ocorrido na cela do prisioneiro alguns momentos atrás. Carne com carne, esse era o único meio de concepção para o Antigo. E também para os demais membros da Raça. Mas o sexo era apenas uma parte do processo. Era necessária a ejaculação, com um intercâmbio de sangue no exato momento, para que a vida de um vampiro se desenvolvesse no corpo de uma Companheira de Raça.
Normalmente, os casais que desejavam conceber se deleitavam em um ato deliberado e sensual de criar uma vida. Neste caso, não. Aqui embaixo, com a selvagem criatura alienígena levada à loucura por conta da fome, da dor e do confinamento, a concepção era um jogo de vida e morte. Baixas, como a de hoje, eram parte da equação. Mortes deviam ser esperadas.
Mas êxitos haviam sido alcançados. E isso fazia os riscos valerem a pena. Para cada Companheira de Raça morta no processo, duas outras tinham saído vivas... E com as sementes de uma nova geração plantada em seus úteros.
O cuidador do Antigo sorriu secretamente, apesar da perda do dia.
Aquela nova geração poderosa já estava florescendo, a maioria em segredo.
E a obediência daqueles novos seres pertencia inteiramente a ele.
CONTINUA
Capítulo 14
Era muito estranho estar outra vez no complexo, mas, para Rio, o mais surreal era entrar novamente em seus aposentos dentro da sede subterrânea da Ordem, localizada no subúrbio de Boston.
Dante e Chase tinham ido para o laboratório de alta tecnologia logo que chegaram, deixando Rio a sós com Dylan. O guerreiro espanhol imaginou que os outros companheiros queriam lhe dar a oportunidade de ele se reencontrar com sua antiga vida – a vida que Eva havia lhe roubado um ano atrás com aquela maldita traição.
Rio não colocava os pés no complexo havia muito tempo, mas o lugar estava exatamente como ele se lembrava. Exatamente como ele tinha deixado antes da explosão no armazém que o mandara para a enfermaria do complexo por vários meses para enfrentar uma difícil recuperação – uma recuperação que não tinha sido, de modo algum, completa.
Aqueles aposentos, que uma vez Rio dividira com Eva, eram como uma espécie de cápsula do tempo. Tudo estava congelado em seu lugar desde aquela noite infernal quando Rio e seus companheiros tinham saído para acabar com um bando de Renegados sem imaginarem que estavam indo diretamente para uma emboscada mortal – uma emboscada orquestrada pela mulher que era uma Companheira de Raça... sua companheira.
E também fora ali, naquele mesmo lugar que, depois de ter sua traição descoberta e denunciada, Eva tinha cortado a própria garganta.
Ela se suicidou sobre a cama de Rio na enfermaria, mas era ali, em seu quarto, que Rio sentia mais a sua presença: o toque de Eva estava por todas as partes, desde as obras de arte extravagantes que ele tinha, a contragosto, permitido pendurar nas paredes antes vazias, até os inúmeros espelhos espalhados por todo o quarto, perto do closet e aos pés da enorme cama.
Rio conduziu Dylan pela elegante sala de estar, atravessando as portas cobertas por cortinas que levavam à suíte do dormitório. Ele se viu refletido no espelho enquanto, com todo o cuidado, deixava a delicada mulher sobre cama de dossel coberta por lençóis cor ameixa escura. Recuou diante do rosto moreno e arruinado do desconhecido que lhe devolvia o olhar. Mesmo vestido com as roupas elegantes que Reichen havia lhe dado, ele ainda parecia um monstro e a sensação apenas aumentava quando comparada à beleza adormecida em seus braços e totalmente à sua mercê.
Ele era um monstro e não podia jogar a culpa daquilo somente em Eva. Afinal, ele tinha nascido uma besta, um assassino, e agora simplesmente também se parecia um pouco mais com aquilo. Dylan se moveu um pouco assim que ele a colocou no colchão e ajeitou um dos macios travesseiros sob sua cabeça.
– Acorde agora – ele disse, roçando a mão brandamente na testa da mulher. – Você já descansou o suficiente, Dylan. Está na hora de despertar.
Ele não precisava acariciar o rosto dela para tirá-la do transe. Ele não precisava deslizar as pontas de seus dedos másculos sobre aquela pele aveludada e decorada com pequenas e encantadoras sardas. Ele não precisava demorar seu toque ao longo da delicada linha de sua mandíbula... Rio, todavia, não conseguiu deixar de aproveitar ao máximo aquela oportunidade única de fazer tudo isso.
As pálpebras de Dylan se abriram, seus cílios castanhos se levantaram e, de repente, Rio se viu capturado pela luz verde-dourada daquele olhar. Ele imediatamente afastou a mão do rosto de Dylan, mas não pôde deixar de notar que ela tinha se dado conta da liberdade que ele tomara. Ela, todavia, não demonstrou alteração alguma, simplesmente soltou um suave sopro de ar por seus lábios entreabertos.
– Estou com medo – ela sussurrou com uma voz baixa por causa do longo sono em que ele a tinha colocado. Dylan não tinha consciência do transe ou da viagem. Para sua mente humana, ela ainda estava no Refúgio de Reichen, uma vez que sua mente tinha sido colocada em suspensão momentos antes da partida para Boston. – Estou com medo do lugar para onde você está me levando...
– Já estamos aqui – disse Rio. – Acabamos de chegar.
O pânico tomou conta do olhar de Dylan.
– Onde...
– Eu a trouxe para a sede da Ordem. Você está segura aqui.
Dylan lançou um olhar ao seu redor, tentando entender onde estava.
– É aqui que você mora? – perguntou.
– É aqui que eu costumava morar. – Rio se levantou e se afastou da cama. – Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, basta pedir.
– Que tal uma carona até minha casa em Nova York? – ela disse. Sua consciência estava obviamente voltando ao normal. – Ou talvez um GPS mostrando onde estamos agora... Pode deixar que eu me viro para encontrar o caminho para casa.
Rio cruzou os braços sobre o peito enorme e musculoso.
– Esta é sua casa agora, Dylan. Como você é uma Companheira de Raça, será tratada com todo o respeito e reverência. Terá comida, conforto e tudo mais o que precisar. Você não vai ser trancada nesse quarto, mas eu posso lhe garantir que não há para onde você correr, caso isso venha a passar por sua cabeça. O complexo é inteiramente seguro. Meus companheiros e eu não vamos machucá-la, mas se você tentar deixar esses aposentos, nós saberemos antes de você dar o primeiro passo no corredor. Se você tentar fugir, vou encontrá-la, Dylan.
Ela ficou em silêncio por um longo momento enquanto ouvia aquele enorme homem falar e media cada uma de suas palavras.
– E então, o que vocês vão fazer comigo? Me segurar e morder minha garganta?
Jesus Cristo!
Rio sentiu todo o seu sangue drenar de sua cabeça ao simples pensamento daquilo. Ele sabia que para ela aquilo deveria ser um ato de extrema violência, mas, para ele, a imagem de segurar Dylan sob seu corpo enquanto ele perfurava delicadamente a pele macia de seu pescoço com suas presas era um ato inteiramente sensual.
O desejo percorreu seu corpo em uma espiral ardente e se concentrou imediatamente no meio de suas pernas. Ele ainda podia sentir a pele sedosa de Dylan em seus dedos e agora era outra parte de seu corpo que desejava imensamente, incontrolavelmente, conhecer o toque da pele daquela mulher em sua frente. Rio se virou, irritado com a rápida reação a Dylan que seu corpo esboçava.
– Quando eu estava em Jicín, ouvi uma história sobre um homem que foi atacado por um demônio. Um velho fazendeiro que testemunhou tudo disse que o tal demônio descia da montanha para se alimentar. Para beber sangue humano.
Rio ficou ali, encarando a porta em sua frente enquanto Dylan falava. Ele sabia a qual noite ela estava se referindo, ele se lembrava dela claramente, pois aquela tinha sido a última vez que ele tinha se alimentado. Fazia mais de duas semanas que ele não se alimentava quando foi até aquela humilde fazenda perto da floresta, na base da montanha.
Ele estava faminto e aquilo o deixou descontrolado. Um homem idoso apareceu, viu o ataque, viu Rio com os dentes cravados no pescoço de outro homem. Aquele foi um deslize, uma imprudência, e aquela interrupção tinha sido a única coisa responsável por salvar a vida da caça de Rio de sua fome incontrolável. Se aquele velho homem não tivesse aparecido, certamente o outro teria morrido. Rio tinha deixado de caçar naquela noite, aterrorizado com o que tinha se tornado.
– Foi um exagero, não é mesmo? – A voz de Dylan tornou-se lentamente mais calma durante o silêncio que Rio lhe deu como resposta. – Você não fez aquilo, fez, Rio?
– Fique à vontade – ele grunhiu, enquanto saía. Antes, porém, ele pegou a bolsa em que estavam o laptop e a câmera digital de Dylan. – Há algumas coisas que preciso fazer.
Rio não esperou que Dylan protestasse ou dissesse uma palavra mais, apenas sabia que precisava sair dali. Agora. Uns poucos passos o levariam para as portas abertas e à luxuosa sala de estar que atravessara minutos antes carregando Dylan em seus braços.
– Rosario...?
Ele parou ao som da voz dela em suas costas. Franziu a sobrancelha, virou a cabeça e voltou o olhar para a mulher, que agora tinha se levantado da cama e estava apoiada em seus cotovelos.
Madre de Dios, ela estava deliciosamente atraente, um tanto quanto despenteada, um tanto quanto sonolenta. Não demorou muito para Rio imaginar que talvez fosse daquela forma que Dylan deveria parecer depois de uma noite de sexo ardente. O fato de ela estar deitada sobre aqueles lençóis de seda de cor ameixa da cama de Rio apenas deixava a imagem ainda mais erótica.
– O quê? – a voz do homem enorme era um chiado que mal passava por sua garganta masculina.
– Seu nome – ela disse, como se ele devesse saber do que ela estava falando. A mulher, então, inclinou a cabeça enquanto estudava atenciosamente o quarto. – Você me disse que Rio é apenas parte de seu nome, então eu imaginei que talvez pudesse ser um apelido para Rosario.
– Não.
– Então qual é? – Quando ele não respondeu imediatamente, suas sobrancelhas castanho-claras juntaram-se, obviamente impacientes pela resposta. – Depois de tudo o que você me contou nos últimos dias, que problema teria em me dizer seu nome?
Ele escarnecia interiormente enquanto se lembrava de todos os nomes pelos quais tinha sido chamado desde que nascera. Nenhum deles era gentil, para dizer o mínimo.
– Por que isso é tão importante?
Ela sacudiu a cabeça, erguendo levemente os ombros magros.
– Não é importante. Suponho que simplesmente tenho curiosidade de saber mais sobre você. Para saber quem você realmente é.
– Você já sabe o suficiente – ele disse. Um leve xingamento escapou por sua boca. – Confie em mim, Dylan. Você não vai querer saber nada mais sobre mim além do que já sabe.
Mas Rio estava equivocado, pensou Dylan, enquanto observava o enorme corpo daquele homem afastar-se e atravessar a porta da ampla suíte. Ele fechou a porta e deixou a mulher sozinha na suave iluminação dos aposentos.
Ela virou o corpo na enorme cama, suas pernas estavam trêmulas como se fizesse muito tempo que não as usava, como se ela tivesse ficado ao relento durante boa parte de uma noite de inverno. Se o que ele disse era verdade – que eles tinham deixado Berlim e estavam agora nos Estados Unidos – então, ela pensou, faltava-lhe pelo menos nove horas de memória consciente.
Seria aquilo realmente possível?
Será que ele realmente a havia colocado em uma espécie de transe por todo aquele tempo?
Ela tinha ficado surpresa ao sentir os dedos de Rio acariciando seu rosto quando despertou. Aquele contato parecia tão suave, tão protetor e tão quente. Mas também tinha sido muito fugaz, tinha sido interrompido tão logo ele se dera conta de que ela estava acordando, tão logo notara que ela estava percebendo o que acontecia. Será que ele também percebeu que ela estava gostando?
Não, Dylan não queria sentir o calor de Rio, tampouco queria demonstrar algum calor para ele, mas ela não conseguia negar que havia algo de eletrizante na maneira como ele a olhava. Havia algo inegavelmente sedutor na maneira como ele a tocava. Ela queria saber mais sobre aquele homem – ela precisava saber mais sobre aquele homem. Afinal de contas, como sua prisioneira, seria de seu maior interesse saber qualquer coisa que pudesse a respeito do homem que a mantinha como refém. Como jornalista em busca – ou à espera – de uma grande matéria, era obrigação dela juntar até os mais insignificantes fatos e perseguir a verdade até o fim. Entretanto, era seu interesse como mulher o que mais incomodava Dylan.
Era aquele desejo mais íntimo e pessoal de saber mais sobre o tipo de homem que Rio era que fazia com que ela vagasse de um lado para o outro naqueles aposentos chiques. A decoração era exuberante e sensual, uma explosão de cores brilhantes que iam desde a roupa de cama de seda, da cor de ameixas maduras, até o tom dourado da pintura que cobria as paredes. Uma coleção de pinturas abstratas, tão brilhantes e gritantes que chegavam a fazer os olhos de Dylan doer, cobriam uma parede inteira da suíte luxuosa. Outra parede ostentava um espelho com uma moldura exuberante e obviamente caríssima. E o objeto estava colocado estrategicamente de modo a refletir os quatro lados da cama de dossel e tudo o que, por ventura, pudesse estar acontecendo em cima daqueles lençóis. Excitante.
– Sutil... – murmurou Dylan, girando os olhos enquanto se aproximava de um par de portas duplas que havia do outro lado do quarto. Ela as abriu e ficou de boca aberta quando percebeu que se tratava do closet... Um closet que tinha mais metros quadrados do que todo o seu apartamento no Brooklin.
– Santo Deus!
Ela entrou e imediatamente se deu conta de que havia mais espelhos ali dentro – e por que você não iria querer admirar-se em todos os ângulos possíveis quando tinha metade da Chanel à sua disposição?
Dylan ficou tentada a perscrutar aquele lugar que deveria ter milhares de dólares em roupas e sapatos assinados por estilistas famosos, mas um pensamento triste logo tomou conta de sua mente: apenas um quarto do armário tinha roupas masculinas. O resto todo pertencia a uma mulher. Uma mulher pequena, delicada, cujo gosto era, obviamente, muito caro. Aqueles aposentos poderiam ser de Rio, mas certamente ele não vivia ali sozinho.
Mas que merda! Será que ele era casado?!
Dylan deu meia-volta e saiu do closet, fechando bruscamente a porta e intimamente desejando nunca ter entrado ali. Dirigiu-se para a sala, observando atentamente cada detalhe e inegavelmente percebendo que havia um toque feminino em todos os cantos para os quais olhava. Nada se parecia nem de longe com seu estilo, mas, afinal, o que Dylan sabia sobre design de interiores mesmo? Não muito. Sua melhor peça de mobília era um sofá-cama que ela comprara de segunda mão.
Dylan deixou a mão percorrer o encosto de uma nogueira esculpida como uma cadeira enquanto observava a mobília declaradamente elegante do lugar. Ela se aproximou de um sofá de veludo dourado e parou enquanto seu olhar capturava uma pequena coleção de fotografias emolduradas minuciosamente expostas na mesa que havia atrás do sofá.
A primeira coisa que viu foi uma fotografia de Rio. Ele estava sentado no banco do passageiro de um clássico Thunderbird conversível que tinha sido estacionado sob a luz da lua em alguma praia deserta. Ele vestia uma camisa de seda preta – desabotoada, obviamente – e uma calça da mesma cor; suas coxas estavam ligeiramente separadas em um “V” casual e os dedos de seus pés descalços estavam inocentemente enterrados na areia branca enquanto seu olhar topázio escuro brilhava com uma espécie de sabedoria oculta e privada, e seu sorriso nebuloso o tornava igualmente perigoso e atraente.
Jesus Cristo, ele era lindo.
Para dizer a verdade, ele era muito mais do que lindo.
A foto não parecia antiga. Não havia cicatrizes no lado esquerdo do rosto dele, de modo que a lesão que ele sofrera devia ser bastante recente. Seja lá o que tenha roubado sua aparência clássica e incrivelmente atraente, a maior tragédia parecia ser a fúria que Rio havia dentro de si. Dylan olhou para a fotografia de Rio em dias felizes, e se perguntou como ele poderia ter mudado tanto desde aquela época.
Ela então olhou para outra fotografia, essa sim, antiga. Era uma imagem profissional em tons de sépia de uma mulher com os cabelos negros vestindo um bufante vestido vitoriano de gola alta. Dylan se inclinou para poder ter uma visão melhor enquanto se perguntava se aquela beleza exótica com sorriso tímido poderia ser, de repente, a avó de Rio. Os olhos escuros da modelo encaravam direta e fixamente a lente da câmera, lançando um olhar de pura sedução. Ela era bela, a mulher da fotografia, apesar da moda recatada de sua época.
E seu rosto... seu rosto parecia extremamente familiar.
– Ah, meu Deus!
A incredulidade, assim como o absoluto deslumbramento, inundou Dylan conforme ela deslizava o olhar para outra fotografia que havia na mesa. Esta, uma imagem colorida, obviamente tirada na última década ou menos... e na qual a mesma mulher da foto antiga também era modelo. Essa última imagem, tirada durante a noite, mostrava uma mulher de pé em uma ponte de pedra no meio de um parque, rindo enquanto seus belos e longos cabelos negros balançavam em sua cabeça. Ela parecia feliz, mas Dylan viu uma tristeza em seus olhos escuros – dolorosos segredos profundamente escondidos em seu olhar castanho-escuro que estava fixo em quem quer que estivesse tirando a foto.
E Dylan reconhecia aquele rosto, ela tinha certeza de que sim... Sim, ela percebia agora, e não era apenas da série de fotografias espalhadas naquela mesa e que a jornalista acabara de ver... Não, aquele rosto era familiar. Dylan já o tinha visto, sim, ela o reconhecia agora porque já o tinha visto na montanha, em Jicín. Aquele era, definitivamente, o rosto da mulher morta. A bela – e morta – mulher que a havia conduzido à caverna onde ela encontrara Rio – Dylan se dava conta disso agora – era esposa dele.
Capítulo 15
Era quase como se ele nunca tivesse deixado aquele local.
Rio estava no laboratório de alta tecnologia do complexo, cercado por Lucan, Gideon e Tegan, que o tinham saudado e oferecido um aperto de mão – sinal da amizade e da confiança verdadeiras.
O aperto de mão de Tegan se prolongou por mais tempo. Rio sabia que o forte guerreiro com cabelos acobreados e olhos esmeraldas era capaz de ler sua culpa e suas incertezas por meio da ligação entre suas mãos. Esse era o dom de Tegan, adivinhar as verdadeiras emoções com apenas um toque.
Ele deu um aceno quase imperceptível com a cabeça.
– Coisas ruins acontecem, meu amigo. E Deus sabe que todos nós temos nossos demônios tentando nos passar a perna. Então, ninguém está aqui para julgá-lo. Entendeu?
Rio assentiu com a cabeça enquanto Tegan soltava sua mão. Ao entregar a bolsa de Dylan a Gideon, o vampiro recém-chegado observou a parte posterior do laboratório, onde Dante e Chase limpavam suas armas para usá-las durante a noite. Dante ofereceu uma pequena saudação com o queixo, mas o olhar de aço de Chase deixava claro que ele não sabia o que pensar quando o assunto era Rio. Um homem inteligente. Rio imaginou que a reação do ex-agente fosse, provavelmente, a sua própria reação caso a situação fosse inversa e fosse Chase quem estivesse voando naquele jato em busca de resgate.
– Quanto a mulher sabe a nosso respeito? – perguntou Lucan.
Com novecentos anos de idade e fazendo parte da Primeira Geração da Raça, o fundador da Ordem e líder formidável poderia controlar toda uma sala com apenas um movimento de suas sobrancelhas negras. Rio o considerava um amigo – todos os guerreiros eram tão próximos que pareciam até mesmo familiares uns dos outros – e Rio odiava com todas as suas forças a possibilidade de tê-lo decepcionado.
– Só dei a ela as informações básicas – respondeu Rio. – Não acredito que ela esteja completamente convencida.
Lucan grunhiu, assentindo pensativamente.
– Realmente, são muitas informações para ela processar. Ela entende o propósito da cripta na montanha?
– Na verdade, não. Ela me ouviu chamando aquilo de câmara de hibernação quando Gideon e eu estávamos conversando, mas não sabe nada além disso. Pode ter certeza de que não pretendo dar mais nenhuma pista a ela. O fato de ela ter visto aquilo já é ruim demais. – Rio exalou um suspiro duro. – Ela é inteligente, Lucan. Não acredito que vá levar muito tempo para juntar as peças do quebra-cabeça.
– Então será melhor agirmos logo. Quanto menos detalhes tivermos que esclarecer posteriormente, melhor – explicou Lucan. Ele lançou um olhar a Gideon, que tinha aberto o laptop de Dylan no console ao seu lado. – Quão difícil acredita que será hackear e acabar com as fotos que ela enviou por e-mail?
– Apagar os arquivos da câmera e do computador é fácil. Demora apenas alguns segundos.
– E quanto a apagar as fotos da caixa de entrada daqueles que as receberam?
Gideon franziu o rosto como se estivesse calculando a raiz quadrada da renda líquida de Bill Gates.
– Algo como dez minutos para enviar uma bomba e estourar o disco rígido de todos os computadores da lista de contatos dela. Treze minutos se você quiser algo mais sutil.
– Eu não estou nem aí com o fator sutileza. – Lucan deixou claro. – Faça o que for necessário para destruir as fotos e destruir qualquer referência escrita ao que ela encontrou na montanha.
– Pode contar comigo – respondeu Gideon, que já se encontrava fazendo sua magia em ambos os dispositivos.
– Podemos destruir os arquivos eletrônicos, mas ainda teremos de tratar com as pessoas com quem ela manteve contato sobre a caverna – esclareceu Rio. – Além do chefe dela, há três mulheres com quem ela estava viajando. E também a mãe dela.
– Vou deixar isso para você – disse Lucan. – Não me importa como você vai fazer isso. Faça-a negar a história, acabe com a credibilidade dela ou saia para encontrar as pessoas com quem ela conversou e apague a memória de cada uma delas. A decisão é sua, Rio. Simplesmente dê um jeito na situação, como sei que você vai fazer.
Rio assentiu.
– Eu lhe dou minha palavra, Lucan. Vou consertar a situação.
A expressão do vampiro da Primeira Geração era tão sombria quanto segura.
– Não duvido de você. Nunca duvidei e nunca duvidarei.
A confiança de Lucan era inesperada, e um presente que Rio não tinha intenção de desperdiçar, independentemente de quão destruído ele soubesse estar. Durante muitos anos, a Ordem e os guerreiros que a serviam eram seu principal propósito na vida – inclusive acima de seu amor por Eva, o que acabou gerando um ressentimento silencioso, porém colérico, nela. Rio estava comprometido com até o último destes homens – como se eles fossem seus parentes de sangue –, comprometido a lutar por eles e, inclusive, a morrer por eles. Ele olhou em volta, sentindo-se humilde pelos rostos sombrios e corajosos dos cinco homens da Raça que ele sabia, sem dúvida alguma, que também dariam suas vidas por ele.
Rio limpou a garganta, sentindo-se desconfortável com as boas vidas praticamente unânimes de seus irmãos. Do outro lado do laboratório, as portas de vidro se abriram quando Nikolai, Brock e Kade chegaram, vindos do corredor. Os três conversavam com empolgação, trazendo um ar de camaradagem quando entraram no laboratório.
– Oi! – disse Niko, lançando a saudação para ninguém em particular. Seus olhos azuis como o gelo pararam em Rio por um segundo antes de ele finalmente olhar para Lucan e começar a detalhar a patrulha da noite. – Acabamos com um Renegado perto do rio há mais ou menos uma hora. O filho da mãe estava escondido em um contêiner de lixo quando o encontramos.
– Você acha que é um dos cachorros de Marek? – perguntou Lucan, referindo-se ao exército de Renegados que seu próprio irmão vinha criando até a Ordem finalmente intervir. Marek tinha morrido pelas mãos da Ordem, mas os vermes de seu exército ainda precisavam ser exterminados.
Nikolai ofereceu um aceno com a cabeça.
– O desgraçado não era um soldado, mas apenas um viciado tentando satisfazer sua sede de sangue. Imagino que só tenha passado algumas poucas noites fora do Refúgio Secreto. E nós o liquidamos facilmente. – O vampiro russo olhou atrás de Rio e lançou um sorriso desajeitado para Dante e Chase. – Alguma ação no lado Sul?
– Não, nada – murmurou Chase. – Estávamos muito ocupados buscando alguém no aeroporto.
Nikolai grunhiu, compreendendo o comentário e lançando um olhar em direção a Rio.
– Faz tempo, hein cara?! É bom ver que você continua inteiro.
Rio conhecia aquele cara muito bem para pensar que o comentário era amistoso. De todos os guerreiros da Ordem, Rio esperava que fosse Nikolai o primeiro na fila para defendê-lo – mesmo se Rio fosse ou não digno de defesa. Niko era o irmão que Rio nunca tivera. Os dois tinham nascido no século anterior e entrado para a Ordem em Boston na mesma época.
Era estranho Niko estar ausente durante a chegada de Rio ao complexo. No entanto, conhecendo o vampiro e seu amor pelo combate, ele provavelmente estava irritado com o fato de sua equipe de patrulha ter sido reduzida algumas horas antes do amanhecer.
Antes que Rio pudesse dizer qualquer coisa a seu velho amigo, a atenção de Nikolai voltou a Lucan.
– O Renegado que encontramos esta noite era jovem, mas a matança que ele tinha deixado para trás parecia ser trabalho de mais de um vampiro. Eu gostaria de retornar lá amanhã e verificar as redondezas. Talvez encontremos mais alguma coisa.
Lucan assentiu:
– Parece uma boa ideia.
Depois de resolver isso, Niko dirigiu sua atenção para Kade e Brock:
– Temos tempo suficiente antes do amanhecer para caçar um pouco. Alguém aí se sentiu com sede de repente?
Os olhos de Kade brilharam como mercúrio.
– Há um lugar em North End que deve ser bem interessante. Lá há um monte de jovens no ponto certo.
– Pode contar comigo – disse Chase com palavras arrastadas, saindo de sua cadeira ao lado de Dante para unir-se aos outros três vampiros não comprometidos conforme eles começavam a caminhar na direção da saída do laboratório.
Por um instante, Rio os observou partir. Entretanto, quando viu Nikolai sair junto aos outros, xingou em voz baixa e, logo depois, correu atrás dele.
– Niko, espere.
O guerreiro seguiu seu caminho, como se não tivesse ouvido nada.
– Espere, cara. Caramba, Nikolai. Que diabos está acontecendo com você?
Quando Chase, Brock e Kade pararam para olhar atrás, Niko acenou para que eles continuassem. Os três seguiram seu caminho, virando no canto do corredor e desaparecendo de vista. Depois de uns poucos segundos, finalmente, Niko deu meia-volta.
O rosto que olhava para Rio no túnel branco era duro e incompreensível.
– Sim. Estou aqui. O que você quer?
Rio não sabia como responder àquilo. A hostilidade saiu da boca de seu velho amigo como um vento frio de inverno.
– Fiz algo que o incomodou?
O som da risada de Nikolai raspava contra as paredes de mármore.
– Vá se ferrar, cara.
Nikolai deu meia-volta e começou a se afastar novamente.
Rio o alcançou em um piscar de olhos. Estava a ponto de agarrar o ombro do guerreiro e obrigá-lo a parar, mas Niko se movimentou com mais agilidade. O vampiro russo virou-se e golpeou Rio, acertando-o no esterno, fazendo-o bater a coluna contra a sólida parede no outro lado do corredor.
– Você quer morrer, seu filho da mãe? – Niko estava com os ombros entreabertos, a cor âmbar acesa como resultado de toda aquela ira. – Se você quer se matar, é problema seu. Só não peça a minha ajuda, está bem?
Os músculos de Rio estavam retesados e prontos para uma briga. Seus instintos de combate se tornaram mais aguçados, apesar de ele estar enfrentando um aliado de longa data. No entanto, enquanto Nikolai falava, a fúria que cresceu em Rio rapidamente se reduziu. De repente, a cólera que Niko sentia contra ele fez sentido. Afinal, Nikolai sabia que Rio tinha ficado naquela montanha da Boêmia com intenções de acabar com a própria vida. Se Niko não tinha se dado conta disso cinco meses atrás, agora ele tinha certeza.
– Você mentiu para mim – esbravejou Niko. – Você me olhou diretamente nos olhos e mentiu para mim, cara. Você nunca ia voltar para a Espanha. O que pretendia fazer com o C-4 que eu dei para você? Você pretendia detonar aquela droga presa ao seu corpo, como se fosse um camicase se divertindo. Ou talvez você só estivesse planejando se prender no interior daquela maldita caverna e ficar lá, esquecido por toda a eternidade. O que você ia fazer, amigo? Como você pretendia acabar com a própria vida?
Rio não respondeu. Não era necessário. De todos os guerreiros da Ordem, Nikolai era o que melhor o conhecia. Nikolai tinha visto Rio como o covarde e fraco que ele realmente era. Só ele sabia o quão próximo Rio tinha estado de dar um fim a tudo – antes mesmo de ele chegar àquela montanha tcheca.
Tinha sido Niko quem se negara a deixar Rio mergulhar no ódio que sentia de si. E, então, evitar que entrasse naquela espiral de negatividade tinha se tornado sua missão pessoal. Niko, que ajudou Rio a subir na montanha nas semanas que se seguiram, caçando para o amigo que estava fraco demais para cuidar dele mesmo. Nikolai, o irmão que Rio nunca tivera.
– Sim – disse Niko, fechando uma carranca. – Como disse. Vá se ferrar.
Ele tirou o braço do peito de Rio e se afastou, ainda rangendo alguns xingamentos. Rio o viu se distanciar. Os sapatos de Niko pareciam mastigar o piso de mármore polido quando ele se apressou para juntar-se aos outros guerreiros que já estavam a caminho do piso superior.
– Que droga! – murmurou Rio, correndo a mão pelos cabelos.
O choque com Nikolai era só mais uma evidência de que ele não devia ter retornado a Boston – mesmo que isso significasse jogar o problema Dylan Alexander nas mãos de outra pessoa. Rio já não se encaixava ali. Agora ele era um estranho, um elo fraco em meio a uma cadeia de aço, formada pelos corajosos guerreiros da Raça.
Ainda agora ele conseguia sentir suas têmporas latejarem por conta da descarga de adrenalina que tinha ocorrido alguns minutos atrás, quando parecia que Niko queria cortá-lo em pedaços. Sua visão começou a tremer enquanto ele estava parado ali. Se não se movesse e encontrasse um local privado para aguentar a crise mental que estava por vir, Rio sabia que seria questão de minutos antes que acordasse caído sobre o mármore que revestia o chão do corredor. E, francamente, ver Lucan e aos outros saírem do laboratório para olhá-lo fixamente como se ele fosse um moribundo era algo que não queria experimentar.
Ele forçou suas pernas a se movimentarem e, com uma dificuldade acentuada, conseguiu encontrar o caminho de volta até seus aposentos. Entrou, cambaleando, e fechou a porta. Em seguida, entregou-se a uma nova sensação de náusea que o invadiu.
– Você está bem?
A voz feminina vinha de algum ponto distante naquele cômodo. A princípio, não a reconheceu. Seu cérebro estava lutando para realizar as tarefas básicas. Aquela voz brilhante e cristalina não parecia pertencer àquele lugar cheio de lembranças antigas e empoeiradas.
Rio se distanciou da porta e se arrastou pela sala, em direção ao quarto. Seu cérebro transmitia a impressão de que se despedaçaria a qualquer momento.
Água quente. Escuridão. Tranquilidade. Ele precisava dessas três coisas. Imediatamente.
Rio tirou a camisa e a deixou cair no ridículo sofá de veludo de Eva. Ele realmente tinha que queimar todos seus pertences. E era uma pena que ele não tinha como jogar aquela maldita traidora na fogueira junto com todo o resto.
Rio se agarrou à sua fúria pela traição de Eva, um leve castigo, mas aquilo era tudo o que tinha no momento. Abriu as portas do quarto e ouviu um leve suspiro vindo lá de dentro.
– Meu Deus! Rio, você está bem?
Dylan.
O nome dela atravessava como um bálsamo a névoa que envolvia a mente de Rio. Ele levantou o olhar na direção de sua convidada indesejada, que agora estava sentada no canto da cama com algo plano e retangular apoiado em seu colo. Ela deixou o objeto de lado, no criado-mudo, e se aproximou antes que os joelhos dele cedessem.
– Banho – ele conseguiu grunhir.
– Você mal consegue parar em pé – Dylan o ajudou a alcançar a cama, onde ele rapidamente deixou o corpo cair. – Parece que você precisa de um médico. Há alguém aqui que possa ajudá-lo?
– Não – ele respondeu com uma voz rouca. – Uma ducha...
Rio estava fraco demais para usar sua habilidade mental da Raça e abrir o registro da água, mas ele não precisou sequer tentar. Dylan já estava se apressando na direção do banheiro ao lado. Ouviu o forte estalar da água batendo contra o chão e, em seguida, os suaves passos de Dylan no carpete enquanto ela retornava para onde estava caído, com o corpo virado na direção dos pés da cama.
Rio percebeu vagamente a desaceleração dos passos da mulher conforme ela se aproximava. Apenas escutou a respiração rápida logo acima de seu corpo. Mas era impossível confundir quem estava ali quando ela soltou, com a respiração trêmula, alguns palavrões. Um silêncio pesado e demorado se seguiu ao xingamento sussurrado. Em seguida:
– Rio... Meu Deus! Por que tipo de inferno você passou?
Lançando mão até mesmo da última gota de força que tinha, ele conseguiu abrir os olhos. Um erro enorme. O horror que ele viu nos olhos de Dylan era inegável. Ela estava olhando o lado esquerdo de seu corpo... O peito e o torso, que tinham sido destruídos por uma granada que quase esfolou seus ossos com as chamas da explosão que por pouco não lhe tirara a vida.
– Ela... – suave voz de Dylan foi se tornando cada vez mais fraca. – Sua esposa tem algo a ver com o que aconteceu com você?
Rio sentiu seu coração parar de bater. O sangue que antes pulsava fortemente em seus ouvidos se transformou em gelo quando ele conseguiu se concentrar na pergunta de Dylan. A preocupação estampava seu rosto.
– Ela fez isso com você, Rio?
Ele seguiu a mão estendida de Dylan enquanto ela alcançava o objeto que tinha deixado no criado-mudo. Era uma fotografia em um porta-retratos. Rio não precisava ver a foto no vidro para saber que era de Eva, de um passeio que eles tinham feito no Charles River certa noite. Eva, sorrindo. Eva, dizendo o quanto o amava. Enquanto, em suas costas, ela conspirava com os inimigos da Ordem para conquistar seus objetivos egoístas.
Rio grunhiu quando pensou em sua própria burrice. Em sua própria cegueira.
– Isso não é da sua conta – murmurou, ainda à deriva da escuridão que tomava conta de sua mente. – Você não sabe nada a respeito dela.
– Foi ela quem me levou até você. Eu a vi na montanha em Jicín.
Uma suspeita irracional transformou a ira de Rio em um sentimento letal.
– Do que você está falando? Como assim, você a viu?
Dylan engoliu em seco e encolheu levemente o ombro. Em seguida, segurou a fotografia diante dele.
– Eu a vi... O espírito dela estava lá. Ela estava na montanha com você.
– Você só pode estar mentindo – ele grunhiu. – E não me fale dessa mulher. Ela está morta, e merecidamente.
– Ela pediu que eu o ajudasse, Rio. Ela me procurou. Queria que eu salvasse você...
– Já disse para você parar de falar dela! – ele esbravejou.
A raiva fez com que o corpo de Rio estremecesse no colchão como uma víbora sendo atacada. Ele puxou o retrato das mãos de Dylan e o atirou pelo quarto com uma velocidade impressionante. O objeto bateu contra o enorme espelho na parede de frente com a cama, quebrando-o com o impacto e lançando cacos de vidro polido como uma chuva de lâminas.
Rio ouviu o grito de Dylan, mas foi somente quando ele sentiu o cheiro adocicado do sangue dela que se deu conta do que tinha feito.
Ela levou a mão até a maçã do rosto e, quando seus dedos se afastaram, estavam manchados de vermelho por conta de um pequeno ferimento logo abaixo do olho esquerdo.
Foi a visão daquela ferida que tirou Rio daquele espiral de depressão. Como um balde de água fria jogada sobre sua cabeça, ver Dylan ferida o puxou instantaneamente de volta para a realidade.
– Ah, Jesus Cristo! – disse ele com dentes apertados. – Eu sinto muito... Sinto muito!
Ele se moveu para tocá-la, para verificar o quanto a tinha ferido, mas ela se afastou com os olhos completamente aterrorizados.
– Dylan... eu não queria...
– Fique longe de mim!
Ele estendeu a mão, buscando demonstrar que realmente não queria feri-la.
– Não – ela estremeceu enquanto sacudia violentamente a cabeça. – Ah, meu Deus. Não me toque!
Madre de Dios.
Ela agora o olhava com um terror absoluto. E tremia. Seus olhos estavam fixos nele, banhados de medo e confusão.
Quando Rio passou a língua pelas pontas de suas presas salientes, ele entendeu a fonte do terror que Dylan sentia. Ele se levantou diante dela. Ela temia porque ele lhe tinha dito ser um vampiro, embora aquela mente humana tivesse se recusado a acreditar.
Agora, todavia, ela acreditava.
Dylan estava vendo a verdade com seus próprios olhos, as mudanças físicas no corpo de um louco cheio de cicatrizes que agora se transformava em uma criatura saída diretamente de seus piores pesadelos. Era impossível esconder as presas que se tornavam mais longas conforme a fome por ela se intensificava. Era impossível mascarar o afinamento daquelas pupilas conforme o brilho âmbar da sede de sangue embaçava sua visão.
Ele olhou para o pequeno corte, para o fio de sangue que escorria tão vermelho contra a pele macia da bochecha de Dylan. E ele mal conseguia formular um pensamento coerente.
– Eu tentei contar para você, Dylan. Isso é o que eu sou.
Capítulo 16
– Vampiro.
Dylan ouviu a palavra escapar por seus lábios, apesar do fato de mal poder acreditar no que estava vendo – ou dizendo.
Em questão de instantes, Rio tinha se transformado diante dos olhos de Dylan e ela olhava chocada as mudanças que acabara de presenciar. As íris dos olhos dele brilhavam como brasas e não tinham mais a cor topázio habitual. Em vez disso, estavam estampadas com uma inacreditável sombra âmbar que praticamente engolia as pupilas extremamente reduzidas. Os ossos da face de Rio pareciam mais duros agora, ostentando as esguias maçãs do rosto e uma mandíbula quadrada que parecia ter sido esculpida em pedra.
E, atrás do suculento e exuberante corte formado por sua boca, Rio exibia um par de presas que pareciam ter saído diretamente de algum filme de Hollywood.
– Você... – A voz de Dylan desapareceu conforme aqueles hipnóticos olhos cor de âmbar a encararam. Ela se sentou delicadamente na beirada da cama. – Meu Deus... Você realmente é um...
– Eu sou da Raça – ele pronunciou calma e articuladamente. – Exatamente como lhe disse.
Dylan estava sentada diante de Rio, e agora sua visão era preenchida completamente pela ampla musculatura do peito nu do vampiro. O intrincado desenho na pele dos antebraços subia pelos ombros de Rio e descia ao longo de seu peitoral. Todas as marcas – dermoglifos, como ele havia chamado da primeira vez em que ela as percebera – eram de uma cor vívida agora, a cor mais escura que Dylan já as tinha visto ostentar. Tramas profundas de cor púrpura e negra saturavam os belos desenhos e as linhas em forma de arcos.
– Não consigo impedir a transformação – ele murmurou, como se tivesse necessidade de dar uma justificativa a Dylan. – A transformação é espontânea nos machos da Raça quando sentimos o cheiro de sangue fresco.
O olhar dele desviou-se ligeiramente dos olhos de Dylan, e logo repousou na bochecha ferida pelos estilhaços do espelho quebrado. A mulher sentia que ainda havia sangue quente deslizando como uma lágrima por seu queixo. Rio assistia àquela gota deslizar com uma intensidade que fazia Dylan estremecer. Ele passou a língua pelos lábios sensuais e engoliu seco, mas manteve seus dentes cerrados o tempo todo.
– Fique aqui – ele ordenou com uma voz forte e autoritária enquanto franzia a testa com intensidade.
O instinto de Dylan lhe dizia que ela devia ser mais inteligente e correr, mas ela se recusava a sentir – ou, melhor dizendo, a demonstrar sentir – medo daquele homem enorme que estava sem camisa em sua frente. Por mais estranho que parecesse, Dylan sentia que tinha realmente conhecido aquele homem nos últimos dias, durante os quais eles foram obrigados a conviver. Rio não era nenhum santo, aquilo era um fato. Ele a tinha raptado, aprisionado e ela ainda não estava certa sobre o que ele queria fazer com ela – Santo Deus! No entanto, ela não acreditava que ele fosse perigoso – não para ela.
O que Dylan acabara de testemunhar ali não era exatamente algo a ser celebrado, mas, em seu coração, ela não sentia medo do que ele era.
Bem, não completamente.
Dylan ouviu quando Rio desligou o registro do chuveiro e saiu, poucos segundos depois, segurando uma toalha branca e umedecida que ele ofereceu para ela.
– Pressione isso contra a ferida. Vai estancar o sangramento.
Dylan tomou a toalha em suas mãos e a pressionou no rosto, exatamente como ele lhe dissera. Ela, porém, não pôde deixar de perceber a longa expiração que ele soltou quando a ferida em sua bochecha fora finalmente coberta, como se agora estivesse aliviado por não precisar mais passar pelo inferno de ter de olhar para aquilo e resistir. A cor ardente dos olhos de Rio começou a escurecer lentamente e as pupilas estreitas reassumiram a forma arredondada. Os dermoglifos, no entanto, ainda estavam avermelhados; as presas, ainda mortalmente afiadas.
– Você realmente é um... não é? – ela murmurou. – Você é um vampiro. Jesus Cristo! Não consigo acreditar que isso seja verdade. Quer dizer, como isso pode ser verdade, Rio?
Ele se sentou ao lado dela na cama. Menos de um metro de distância os separava agora.
– Eu já expliquei isso para você.
– Extraterrestres bebedores de sangue e mulheres humanas com DNA compatível com os deles – disse ela, recordando-se da estranha história sobre a raça híbrida de vampiros que ela tentara encarar como ficção científica. – Tudo isso é verdade?
– A verdade é um pouco mais complicada do que isso, mas sim... Tudo o que eu lhe disse é verdade.
Incrível.
Totalmente incrível.
Uma parte mercenária dela quase gritou de excitação ao pensar na potencial fama e fortuna que a revelação daquela história poderia lhe trazer. Mas havia outra parte de Dylan – a que não tinha se esquecido daquela incomum marca de nascença que ela trazia gravada na parte de trás do pescoço, a parte que ainda se lembrava de que ela tinha, aparentemente, uma forte conexão com aquele mundo – que mostrou instantaneamente seus instintos protetores, como se Rio e o mundo em que ele vivia fossem um delicioso segredo que pertencia exclusivamente a ela.
– Desculpe-me se eu chateei você – ela disse serenamente. – Eu não devia ter bisbilhotado as coisas enquanto você não estava aqui.
A cabeça dele se virou bruscamente e sua testa enrugou-se, levando as sobrancelhas a se unirem. O xingamento que ele murmurou foi forte e palpável.
– Você não precisa me pedir desculpas, Dylan. Fui eu quem errou. Eu nunca deveria ter entrado aqui no estado em que estava. Eu não posso ficar perto de ninguém quando estou daquele jeito.
– Você parece estar um pouco melhor agora.
Ele assentiu, sua cabeça caindo levemente em direção ao peito nu.
– A raiva diminui... no final. Se você não apagar antes, ela em algum momento... passa.
Não fazia muito tempo que Rio aparecera cambaleando no quarto, bastante desatento, com seus pés mal respondendo aos passos dificultosos que ele tentava dar. Ele mal conseguia pensar, seus músculos e ossos estavam embebidos em uma fúria insana.
– O que desperta isso, Rio?
Ele deu de ombros.
– Pequenas coisas, nada em especial. Nunca sei, exatamente.
– Aquele tipo de raiva faz parte do que você é? Todos os homens da Raça têm de passar por esse tipo de tormento?
– Não – disse, soltando o tipo de sorriso de alguém que está zombando de si. – Não. Esse problema é apenas meu. Falta um parafuso na minha cabeça. Eu o perdi no verão passado e nunca mais o encontrei.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan gentilmente. – Foi isso que aconteceu com você?
– Foi um erro – ele respondeu com uma ponta de insegurança na voz. – Eu confiei em alguém em quem não deveria ter confiado.
Dylan olhou para o dano terrível que o corpo de Rio tinha sofrido. O rosto e o pescoço dele carregavam graves cicatrizes, mas seu ombro esquerdo e metade de seu torso musculoso pareciam ter ido e voltado do inferno. Seu coração apertou-se em seu peito quando ela pensou na dor que ele deveria ter suportado, tanto no acontecimento que ferira seu corpo daquela forma, quanto no que provavelmente foram meses e meses de recuperação.
Ele estava ali, sentado naquela cama tão rigidamente, tão solitário e tão inalcançável, apesar de estar a menos de um braço de distância dela. Para Dylan, Rio parecia sozinho. Sozinho e à deriva.
– Sinto muito, Rio – disse ela. E antes que pudesse se interromper, Dylan colocou sua mão sobre a mão dele, que ele agora descansava sobre a coxa. ele estremeceu como se carvão em brasa tivesse sido colocado sobre sua pele. Todavia, não se afastou.
Ele olhou fixamente para os dedos de Dylan que descansavam suavemente sobre os dele, branco pálido sobre um tom bronzeado. Quando olhou para ela, lançou-lhe um olhar rústico e másculo que preenchia seus olhos completamente. Ela se perguntava quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele fora tocado com algum tipo de ternura.
Dylan deslizou seus dedos sobre a mão máscula de Rio, estudando o incrível tamanho e a enorme força que ela tinha. A pele dele era tão quente e havia tanta força concentrada em seu corpo, mesmo quando ele parecia determinado a manter-se perfeitamente parado.
– Sinto muito por tudo o que você enfrentou, Rio. Sinto de verdade.
A mandíbula dele estava tão apertada que fez um músculo de seu rosto se contrair. Dylan colocou de lado a toalha umedecida que ele tinha lhe trazido e mal percebia que todos os seus sentidos estavam concentrados nele e na eletricidade que parecia emanar de suas mãos entrelaçadas.
Ela ouviu um ruído baixo se formar dentro de Rio, algo entre um grunhido e um gemido. O olhar dele deslizou para a boca de Dylan, e, por um segundo – um rápido, um breve segundo que teria durado o tempo de uma batida do coração – ela se perguntou se ele iria beijá-la.
Dylan sabia que devia retroceder. Sabia que devia tirar sua mão de cima da mão dele, colocá-la longe. Sabia que devia fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não fosse ficar ali, parada, quase sem respiração enquanto esperava e desejava – desejava desesperadamente, incontrolavelmente – que ele se debruçasse sobre ela e apertasse seus lábios contra os dele.
E, de repente, ela não conseguia mais não tocá-lo. Foi quando estendeu a mão que estava livre e acariciou o rosto de Rio, sentindo um repentino sopro de ar gelado empurrá-la – com a imponência da Grande Muralha da China.
– Não quero sua compaixão – grunhiu Rio com uma voz que ela não reconheceu como sendo dele. O sotaque espanhol estava ali, como sempre, mas as sílabas eram ásperas e o timbre não era exatamente humano, o que imediatamente fez Dylan se lembrar de qual era a natureza daquele ser diante dela. Rio puxou a mão de debaixo da dela e se levantou da cama.
– O corte está sangrando. Você precisa de cuidados que não posso lhe oferecer.
– Tenho certeza de que não é nada grave – respondeu Dylan, sentindo-se uma idiota por se colocar em uma situação como aquela com ele. Depois, pegou novamente a toalha que descartara momentos antes e a pressionou outra vez contra o ferimento. – Não é nada. Vou ficar bem.
Não havia sentido algum em Dylan falar qualquer coisa que fosse, já que Rio não a ouviria, de qualquer forma. Ela o viu caminhar até a sala da frente, passando pelo espelho quebrado, e pegar um telefone sem fio, no qual imediatamente teclou uma sequência curta de números.
– Dante? Olá. Não, nenhum problema. Mas eu, é... Tess está por aí? Preciso que ela me faça um favor.
Rio parecia um animal enjaulado, andando de um lado para o outro durante os poucos minutos que se passaram até a ajuda chegar. Ele ficou do lado de fora do quarto, confinado a um espaço minúsculo perto da entrada principal. Ficou tão distante de Dylan quanto poderia ficar sem de fato ter de sair daquele maldito quarto e esperar do lado de fora.
Madre de Dios.
Ele quase lhe beijara.
E ele queria tê-la beijado. E admitir aquilo – mesmo que apenas para si – era como levar um soco no estômago. Beijar Dylan Alexander era uma maneira garantida de transformar uma situação que já era bastante ruim em algo que seria, de fato, catastrófico. Isso porque Rio sabia sem qualquer sombra de dúvida que, se beijasse aquela bela e ardente mulher, ele não conseguiria se conter, não conseguiria, de forma alguma, parar no beijo. Não, mesmo.
O simples pensamento da sensação que seria a de pressionar seus lábios contra os dela já fazia o sangue de Rio ferver e correr acelerado em suas veias. Seus dermoglifos pulsavam com as cores de seu desejo – agitando-se em tons de vermelho-escuro e negros. E também era impossível negar a outra evidência daquele desejo: seu pênis estava tão duro quanto granito, e estava daquele jeito desde o instante em que Dylan, inesperadamente, inadvertidamente, pousara a mão sobre sua coxa.
Jesus Cristo!
Ele sequer se atrevia a olhar para dentro do quarto, com medo de não ser capaz de impedir seus pés de marcharem de volta pelas portas fechadas e levarem-no diretamente para os braços de Dylan.
“Como ela provavelmente desejava” – ele pensou ardentemente.
Aquela carícia que Dylan fizera em sua mão tinha sido um gesto delicado, doce, do tipo que uma mãe faz em uma criança. Ou, pior do que isso, aquele gesto poderia ter sido um gesto de compaixão de um anjo caridoso que consola uma das criaturas mais infelizes criadas por Deus.
Maldecido.
Manos del diablo.
Monstruo.
Sim, Rio era todas essas coisas. E agora Dylan tinha visto como ele era realmente feio. Para seu crédito, ela não tinha recuado ao ver toda aquela carne retorcida e aquelas presas – o que queria dizer então que ela era muito mais forte do que aquilo tudo. Mas acreditar que ela poderia receber, poderia desejar seu toque? Que ela poderia aproximar-se o suficiente de seu rosto arruinado e permitir que ele a beijasse?
Jamais! E ele agradeceu a Deus por aquilo, pois aquilo lhe tinha poupado de ver a repugnância dela. Aquilo lhe tinha poupado de fazer algo realmente idiota, como se esquecer – ainda que por um segundo apenas – de que ela estava ali, no complexo – ali, em seu quarto – somente até que ele corrigisse o erro que cometera ao permitir que ela se aproximasse daquela maldita caverna em Jicín. Quanto mais rápido ele conseguisse fazer aquilo – consertar aquele erro – e mandar Dylan para casa, melhor.
Um golpe seco ecoou contra a porta.
Rio atendeu, com um grunhido de frustração.
– Você soava péssimo ao telefone, então decidi vir com Tess e ver com meus próprios olhos. – A boca de Dante curvou-se em um sorriso arrogante que só ele sabia dar enquanto seu corpo enorme permanecia parado na soleira da porta ao lado de sua bela Companheira de Raça. – E então, você não vai nos deixar entrar, cara?
– Claro.
Rio deu um passo para o lado, abrindo espaço para o casal entrar.
A companheira de Dante parecia ainda mais bela sob a luz daquele quarto. As longas ondas cor de mel de seus cabelos estavam presas em um rabo de cavalo frouxo e seus inquiridores olhos verde-mar eram suaves, mesmo quando encaravam Rio.
– É bom vê-lo novamente, Rio – disse ela, e, sem hesitação, deu um passo adiante e ficou na ponta dos dedos dos pés para dar um abraço rápido no guerreiro e beijar-lhe levemente a bochecha. – Dante e eu ficamos tão preocupados com você durante esses meses todos...
– Não precisava – respondeu Rio, embora não pudesse negar que aquela preocupação o deixava, de certa forma, feliz.
Tess e Dante estavam juntos desde o final do último outono. Ela tinha entrado para a Ordem com um extraordinário dom de curar e restaurar a vida com o simples toque de suas mãos macias. O toque de Tess tinha um poder inimaginável, mas nem mesmo ela fora capaz de consertar todos os danos que Rio tinha sofrido. Ele já estava muito longe quando ela chegou ao complexo, e as cicatrizes dele – tanto as interiores quanto as exteriores – eram permanentes, embora não fosse por falta de tentativas de Tess.
Dante passou o braço musculoso em volta de sua Companheira de Raça em um movimento que era protetor e respeitoso ao mesmo tempo. E foi então que Rio notou a leve protuberância no ventre dela. Tess percebeu o olhar de Rio e abriu um sorriso tão imaculado quanto o da própria Madonna de Botticelli.
– Estou nos primeiros três meses – ela disse, virando-se toda sorridente para Dante. – Alguém está usando isso como desculpa para me mimar.
Dante sorriu.
– Eu? Por favor...
– Felicidades – murmurou Rio, sinceramente sentindo os votos que desejava.
Não era comum guerreiros e Companheiras de Raça começarem uma família dentro da Ordem. Aliás, praticamente não se ouvia falar daquilo. Os homens da Raça que dedicavam suas vidas à luta contra os Renegados não eram tipos muito familiares, por assim dizer. Mas acontece que Dante nunca fora como esses guerreiros, então...
– Onde está Dylan? – perguntou Tess.
Rio gesticulou, apontando para as portas que estavam fechadas.
– Eu fui um idiota com ela. Tive uma crise e... Droga! Acabei quebrando o espelho. Um dos estilhaços acabou atingindo o rosto dela.
– Você ainda está tendo apagões? – perguntou novamente Tess, franzindo a testa. – As dores de cabeça ainda não passaram?
Rio recuou, obviamente não querendo falar sobre seus próprios problemas.
– Eu estou bem. – Foi tudo o que ele disse. – Apenas cuide dela, certo?
– Eu cuidarei. – Tess pegou uma pequena maleta médica das mãos de Dante, sob o olhar interrogativo de Rio, e completou:
– Desde que eu engravidei, minhas habilidades diminuíram. Eu entendo que, na gravidez, é normal a energia da Companheira de Raça se voltar para dentro do próprio corpo. As coisas vão voltar ao normal quando o bebê nascer. Até lá, terei de me apoiar na boa e velha medicina tradicional.
Rio lançou um olhar sobre seus ombros para dentro do quarto. Ele não conseguia ver Dylan, mas imaginou que ela estava lá dentro, precisando ver alguém gentil e carinhoso. Alguém que pudesse melhorar seu humor e conversar com ela como uma pessoa normal; alguém que pudesse tranquilizá-la, dizer-lhe que ela estava segura, que estava entre pessoas em quem ela podia confiar. Especialmente depois da espetacular demonstração de raiva psicótica e desregrada que ele, Rio, tinha feito para ela.
– Está tudo bem – disse Tess. – Não se preocupe, vou cuidar dela.
Com o punho fechado, Dante golpeou levemente o bíceps bem definido de Rio.
– Venha – disse –, vamos dar o fora daqui. Ainda falta uma hora para o amanhecer. E parece que você está precisando tomar um pouco de ar fresco, cara.
Capítulo 17
Dylan estava agachada perto do pé da cama, recolhendo cacos de vidro, quando as portas se abriram suavemente, abrindo caminho para o dormitório.
– Dylan?
Aquela era uma voz feminina. A mesma que, havia um minuto, ela tinha ouvido conversar baixinho com Rio e outro homem. Dylan olhou para cima e sentiu o calor instantâneo de um olhar brilhante que estava logo acima dela.
A mulher, jovem e bela, sorriu.
– Olá. Meu nome é Tess.
– Olá.
Dylan deixou um caco de vidro de lado e inclinou o corpo para recolher outro.
– Rio me pediu para vir ver se você estava bem.
Tess trazia consigo uma bolsa de couro preta quando entrou nos aposentos.
– Você está bem? – insistiu.
Dylan assentiu.
– É só um arranhão.
– Rio está se sentindo péssimo por causa disso. Ele anda passando por... problemas. Já faz algum tempo. Desde a explosão do armazém no verão passado. Ele tem sorte de estar vivo.
Meu Deus! Então isso explicava as queimaduras e as cicatrizes. Uma explosão havia feito aquilo? Quer dizer então que Rio realmente tinha feito uma viagem de ida e volta para o inferno, como Dylan havia suposto.
Tess continuou:
– Por causa do trauma cerebral causado pela explosão, ele tem blecautes de tempos em tempos. Além disso, Rio também tem fortes dores de cabeça, mudanças de humor... Bem, acredito que você deve ter visto com seus próprios olhos. Não é coisa para brincadeira. Mas ele não quis feri-la, disso eu tenho certeza.
– Estou bem – insistiu Dylan, sem se preocupar com o arranhão em sua bochecha. – Tentei dizer para ele que isto aqui não era nada. O corte nem está sangrando mais.
– É um alívio – disse Tess enquanto colocava a bolsa médica sob a escrivaninha. – Fico contente de saber que não é tão grave quanto Rio temia. Da forma como ele descreveu pelo telefone, pensei que teríamos que dar pelo menos meia dúzia de pontos. Mas pelo que vejo, um pouco de antisséptico e um curativo serão suficientes – Tess caminhou por onde Dylan recolhia os pedaços do espelho despedaçado. – Venha, deixe-me ajudá-la.
Quando Tess se aproximou, Dylan se deu conta de que a palma da mão de Tess estava apoiada sobre a curva na barriga. Ela estava grávida. E não foi apenas pela aparência física que Dylan percebeu, mas pelo fato de aquela mulher resplandecer com um brilho interior que não deixava dúvida alguma.
Além disso – e, talvez ainda mais estranho –, na mão que repousava sobre as primeiras fases de um bebê em desenvolvimento, havia uma pequena marca de nascença. Dylan não pôde deixar de olhar fixamente para a lágrima escarlate e a meia-lua na mão direita daquela mulher – a mesma marca com a qual ela tinha nascido, aquela que trazia no pescoço.
– Você vive aqui? – perguntou Dylan. – Com... eles?
Tess assentiu.
– Vivo com Dante. Ele é um guerreiro da Ordem, como Rio e os outros que vivem aqui no complexo.
Dylan acenou na direção da pequena marca de nascimento entre o polegar e o indicador de Tess:
– Você é a... Companheira de Raça dele? – perguntou, recordando o termo que Rio tinha usado depois de perceber que Dylan tinha uma marca idêntica àquela. – Você se casou com um deles?
– Dante e eu procriamos no ano passado – explicou Tess. – Fomos unidos por nosso sangue, o que nos liga de uma forma muito mais profunda do que o casamento. Imagino que Rio já tenha lhe dito algumas coisas sobre a Raça... Como eles vivem, de onde vêm. Depois do que aconteceu, estou segura de que você não tem dúvidas do que eles são.
Dylan assentiu, ainda sem acreditar que tudo aquilo poderia ser realmente verdade.
– Vampiros.
Tess sorriu gentilmente.
– Isso foi o que eu pensei a princípio. Porém, defini-los não é algo tão simples assim. A Raça é um pouco complicada. Eles vivem em um mundo complexo e cheio de inimigos. As coisas podem ser muito perigosas para eles e para quem os ama. Para os poucos homens que se comprometeram com a Ordem, cada noite é um risco para suas vidas.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan com um tom que deixava transparecer seu espanto. – A explosão que feriu Rio... foi algum acidente terrível?
Uma expressão de dor tomou conta do rosto de Tess. Ela estudou Dylan por um momento, como se não estivesse segura do quanto poderia contar. No entanto, ela logo sacudiu ligeiramente a cabeça.
– Não. Não foi um acidente. Alguém próximo de Rio o traiu. A explosão aconteceu durante uma investida em um velho armazém da cidade. Rio e os demais membros da Ordem se viram em uma emboscada.
Dylan olhou para baixo e se deu conta de que estava observando o porta-retratos que Rio tinha jogado pelo quarto durante seu ataque de raiva. Cuidadosamente o recolheu. Tirou a teia de aranha de cima do vidro quebrado sobre a imagem e observou os exóticos olhos escuros e o sorriso triste e distante.
– Eva – confirmou Tess. – Ela era a Companheira de Raça de Rio.
– Mas ela o traiu?
– Sim – Tess respondeu depois de uma longa pausa. – Eva fez um acordo com um dos inimigos da Ordem, com um poderoso vampiro que também era o irmão do líder da Ordem, Lucan. Para que este vampiro obtivesse informação que o ajudasse a matar Lucan, algo que Eva queria tanto quanto o inimigo, ela pediu duas coisas: que Rio sobrevivesse e que fosse ferido o suficiente para nunca mais conseguir lutar.
– Meu Deus! – ofegou Dylan. – E ela conseguiu o que queria?
– Não exatamente. A Ordem caiu em uma emboscada, apoiada nas informações que Eva entregou, mas o vampiro com o qual ela negociou não tinha a menor intenção de manter sua parte do acordo. Ele colocou uma bomba no local. A explosão poderia ter matado a todos, mas, ironicamente, Rio foi o mais atingido. E posteriormente ele veio a descobrir que Eva tinha sido a responsável por tudo aquilo.
Dylan não conseguia falar. Ela tentava absorver o peso que tudo aquilo deveria ter para Rio. Não apenas a dor física causada por aquelas lesões, mas também a dor emocional da traição sofrida por ele.
– Eu a vi. – Dylan olhou para Tess e viu a testa da mulher franzir. A confusão se tornava evidente naquele olhar carregado de interrogações. Dylan conhecia Tess há poucos minutos e não estava acostumada a falar sobre si com ninguém, em especial falar de seu segredo, de seu dom, daquilo que a tornava tão diferente dos outros humanos. No entanto, havia algo nos olhos cheios de cuidado de Tess que levava Dylan a confiar que estava segura. Ela tinha sentido uma afinidade instantânea que a fez saber que estava com uma amiga.
– Os mortos aparecem para mim de vez em quando. Bem, mulheres mortas, melhor dizendo. Eva apareceu para mim alguns dias atrás, quando eu estava viajando com algumas pessoas pelos arredores de Praga.
– Ela... apareceu para você...? – perguntou Tess com cautela. – O que você quer dizer com isso?
– Eu vi o espírito dela, por assim se dizer. Ela me guiou até uma caverna oculta. Eu não sabia, mas Rio estava lá dentro. Ela... Eva me levou até lá e me pediu que o salvasse.
– Meu Deus! – Tess acenou lentamente com a cabeça. – Ele sabe?
Dylan olhou significativamente para a destruição ainda sob seus pés.
– Sim, Rio sabe. Quando eu contei para ele, ele ficou louco.
O olhar de Tess transformou-se quase em um pedido de desculpa.
– Ele tem muita raiva de tudo que seja relacionado à Eva.
– É compreensível – respondeu Dylan. – Ele está bem, Tess? Quer dizer, considerando o que viveu, Rio vai ficar... bem?
– É o que eu espero. É o que todos nós esperamos. – Tess inclinou a cabeça ligeiramente, estudando Dylan. – Você não tem medo dele?
Não, Dylan não o temia. Tinha curiosidade de saber mais sobre Rio, e incerteza com relação às intenções dele quanto a ela. Mas não tinha medo. Embora isso parecesse loucura, mesmo depois de vê-lo tendo aquela reação naquele mesmo cômodo, Dylan não o temia. Aliás, pensar em Rio provocava muitas coisas nela, mas nenhuma delas era medo. Não mesmo.
– Você acha que eu deveria temê-lo? – perguntou.
– Não, claro que não – disse Tess sem vacilar. – Quer dizer, as coisas não devem estar sendo fáceis para você. Deus sabe que não aceitei muito bem no início, quando ouvi pela primeira vez toda essa coisa de sangue, presas e guerra.
Dylan encolheu o ombro.
– Eu escrevo para uma publicação que é quase um tabloide. Acredite, já escutei muitas coisas bizarras. Não me assusto com facilidade.
Tess sorriu, mas não manteve o olhar cruzado com o de Dylan por muito tempo. As palavras que ela não disse estavam claras naqueles olhos que a evitavam: aquilo não era apenas uma história bizarra de um tabloide. Aquilo era a realidade.
– O que havia naquela caverna, Tess? Parecia ser algum tipo de cripta, uma “câmara de hibernação”, como escutei Rio chamá-la. Mas que diabos era aquilo? Há algo perdido naquela montanha?
Tess levantou o olhar, mas só negou levemente com a cabeça.
– Na verdade, eu não acho que você queira saber.
– Sim, eu quero – insistiu Dylan. – Independentemente do que for, é importante o suficiente para que Rio sentisse a necessidade de me sequestrar e me trancafiar para que não dissesse nada do que vi.
O silêncio de Tess fez o estômago de Dylan formar um nó de medo. A Companheira de Raça sabia o que havia na caverna, e aquilo parecia aterrorizá-la. O que, é claro, apenas aumentou a curiosidade de Dylan.
– Tess, havia algo dormindo naquela tumba oculta. E, pelo aspecto, eu diria que esse algo estava escondido ali há muito tempo. Que tipo de criatura era ou é aquilo?
Tess se levantou e jogou alguns cacos de vidro no cesto de papéis ao lado da mesa.
– Deixe-me ver seu corte. Temos de limpá-lo. Depois faremos um curativo para evitar que você fique com uma cicatriz.
Confinado dentro da cela de raios ultravioleta, o Antigo jogou a cabeça para trás e soltou um rugido infernal. Sangue gotejava por suas enormes presas e seu peito, enorme e nu, ostentava a cor pulsante de seus dermoglifos.
– Apertem essas malditas correntes – gritou o cuidador, falando com seus subordinados por meio de um alto-falante na sala de observação fora da cela. – E, por Deus, arrumem toda essa bagunça aí dentro.
As algemas cibernéticas serpentearam e seguraram fortemente as pernas e os braços grossos do Antigo. Com um comando programado, ajustaram-se. A criatura tentou se libertar, mas não chegaria a lugar algum. Feriu-se futilmente: cortou seus próprios lábios e berrou de novo. O urro era pura fúria enquanto o imenso corpo era dominado por titânio e aço.
Ele ainda estava com o pênis ereto por conta do cruzamento que tinha dado tão violentamente errado. Ainda estava sedento pelo sangue e pelo corpo sem vida da mulher que naquele momento era apressadamente retirada da jaula.
A Companheira de Raça tinha sido atacada. Unhas e presas fortes tinham marcado irreversivelmente – mortalmente – seu corpo. E, antes que o Antigo pudesse ser afastado, ela já estava morta. Ela não era a primeira; tampouco seria a última (não estava perto de sê-lo, aliás). Ao longo das cinco décadas em que o Antigo tinha sido despertado de sua hibernação e posto sob o controle de seu guardião, alimentá-lo – e fazê-lo procriar – tinha se mostrado uma tarefa custosa e frustrante.
Apesar de toda aquela tecnologia e de todo aquele dinheiro disponível, não havia ciência alguma que pudesse substituir o tipo de acasalamento que havia ocorrido na cela do prisioneiro alguns momentos atrás. Carne com carne, esse era o único meio de concepção para o Antigo. E também para os demais membros da Raça. Mas o sexo era apenas uma parte do processo. Era necessária a ejaculação, com um intercâmbio de sangue no exato momento, para que a vida de um vampiro se desenvolvesse no corpo de uma Companheira de Raça.
Normalmente, os casais que desejavam conceber se deleitavam em um ato deliberado e sensual de criar uma vida. Neste caso, não. Aqui embaixo, com a selvagem criatura alienígena levada à loucura por conta da fome, da dor e do confinamento, a concepção era um jogo de vida e morte. Baixas, como a de hoje, eram parte da equação. Mortes deviam ser esperadas.
Mas êxitos haviam sido alcançados. E isso fazia os riscos valerem a pena. Para cada Companheira de Raça morta no processo, duas outras tinham saído vivas... E com as sementes de uma nova geração plantada em seus úteros.
O cuidador do Antigo sorriu secretamente, apesar da perda do dia.
Aquela nova geração poderosa já estava florescendo, a maioria em segredo.
E a obediência daqueles novos seres pertencia inteiramente a ele.
CONTINUA
Capítulo 14
Era muito estranho estar outra vez no complexo, mas, para Rio, o mais surreal era entrar novamente em seus aposentos dentro da sede subterrânea da Ordem, localizada no subúrbio de Boston.
Dante e Chase tinham ido para o laboratório de alta tecnologia logo que chegaram, deixando Rio a sós com Dylan. O guerreiro espanhol imaginou que os outros companheiros queriam lhe dar a oportunidade de ele se reencontrar com sua antiga vida – a vida que Eva havia lhe roubado um ano atrás com aquela maldita traição.
Rio não colocava os pés no complexo havia muito tempo, mas o lugar estava exatamente como ele se lembrava. Exatamente como ele tinha deixado antes da explosão no armazém que o mandara para a enfermaria do complexo por vários meses para enfrentar uma difícil recuperação – uma recuperação que não tinha sido, de modo algum, completa.
Aqueles aposentos, que uma vez Rio dividira com Eva, eram como uma espécie de cápsula do tempo. Tudo estava congelado em seu lugar desde aquela noite infernal quando Rio e seus companheiros tinham saído para acabar com um bando de Renegados sem imaginarem que estavam indo diretamente para uma emboscada mortal – uma emboscada orquestrada pela mulher que era uma Companheira de Raça... sua companheira.
E também fora ali, naquele mesmo lugar que, depois de ter sua traição descoberta e denunciada, Eva tinha cortado a própria garganta.
Ela se suicidou sobre a cama de Rio na enfermaria, mas era ali, em seu quarto, que Rio sentia mais a sua presença: o toque de Eva estava por todas as partes, desde as obras de arte extravagantes que ele tinha, a contragosto, permitido pendurar nas paredes antes vazias, até os inúmeros espelhos espalhados por todo o quarto, perto do closet e aos pés da enorme cama.
Rio conduziu Dylan pela elegante sala de estar, atravessando as portas cobertas por cortinas que levavam à suíte do dormitório. Ele se viu refletido no espelho enquanto, com todo o cuidado, deixava a delicada mulher sobre cama de dossel coberta por lençóis cor ameixa escura. Recuou diante do rosto moreno e arruinado do desconhecido que lhe devolvia o olhar. Mesmo vestido com as roupas elegantes que Reichen havia lhe dado, ele ainda parecia um monstro e a sensação apenas aumentava quando comparada à beleza adormecida em seus braços e totalmente à sua mercê.
Ele era um monstro e não podia jogar a culpa daquilo somente em Eva. Afinal, ele tinha nascido uma besta, um assassino, e agora simplesmente também se parecia um pouco mais com aquilo. Dylan se moveu um pouco assim que ele a colocou no colchão e ajeitou um dos macios travesseiros sob sua cabeça.
– Acorde agora – ele disse, roçando a mão brandamente na testa da mulher. – Você já descansou o suficiente, Dylan. Está na hora de despertar.
Ele não precisava acariciar o rosto dela para tirá-la do transe. Ele não precisava deslizar as pontas de seus dedos másculos sobre aquela pele aveludada e decorada com pequenas e encantadoras sardas. Ele não precisava demorar seu toque ao longo da delicada linha de sua mandíbula... Rio, todavia, não conseguiu deixar de aproveitar ao máximo aquela oportunidade única de fazer tudo isso.
As pálpebras de Dylan se abriram, seus cílios castanhos se levantaram e, de repente, Rio se viu capturado pela luz verde-dourada daquele olhar. Ele imediatamente afastou a mão do rosto de Dylan, mas não pôde deixar de notar que ela tinha se dado conta da liberdade que ele tomara. Ela, todavia, não demonstrou alteração alguma, simplesmente soltou um suave sopro de ar por seus lábios entreabertos.
– Estou com medo – ela sussurrou com uma voz baixa por causa do longo sono em que ele a tinha colocado. Dylan não tinha consciência do transe ou da viagem. Para sua mente humana, ela ainda estava no Refúgio de Reichen, uma vez que sua mente tinha sido colocada em suspensão momentos antes da partida para Boston. – Estou com medo do lugar para onde você está me levando...
– Já estamos aqui – disse Rio. – Acabamos de chegar.
O pânico tomou conta do olhar de Dylan.
– Onde...
– Eu a trouxe para a sede da Ordem. Você está segura aqui.
Dylan lançou um olhar ao seu redor, tentando entender onde estava.
– É aqui que você mora? – perguntou.
– É aqui que eu costumava morar. – Rio se levantou e se afastou da cama. – Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, basta pedir.
– Que tal uma carona até minha casa em Nova York? – ela disse. Sua consciência estava obviamente voltando ao normal. – Ou talvez um GPS mostrando onde estamos agora... Pode deixar que eu me viro para encontrar o caminho para casa.
Rio cruzou os braços sobre o peito enorme e musculoso.
– Esta é sua casa agora, Dylan. Como você é uma Companheira de Raça, será tratada com todo o respeito e reverência. Terá comida, conforto e tudo mais o que precisar. Você não vai ser trancada nesse quarto, mas eu posso lhe garantir que não há para onde você correr, caso isso venha a passar por sua cabeça. O complexo é inteiramente seguro. Meus companheiros e eu não vamos machucá-la, mas se você tentar deixar esses aposentos, nós saberemos antes de você dar o primeiro passo no corredor. Se você tentar fugir, vou encontrá-la, Dylan.
Ela ficou em silêncio por um longo momento enquanto ouvia aquele enorme homem falar e media cada uma de suas palavras.
– E então, o que vocês vão fazer comigo? Me segurar e morder minha garganta?
Jesus Cristo!
Rio sentiu todo o seu sangue drenar de sua cabeça ao simples pensamento daquilo. Ele sabia que para ela aquilo deveria ser um ato de extrema violência, mas, para ele, a imagem de segurar Dylan sob seu corpo enquanto ele perfurava delicadamente a pele macia de seu pescoço com suas presas era um ato inteiramente sensual.
O desejo percorreu seu corpo em uma espiral ardente e se concentrou imediatamente no meio de suas pernas. Ele ainda podia sentir a pele sedosa de Dylan em seus dedos e agora era outra parte de seu corpo que desejava imensamente, incontrolavelmente, conhecer o toque da pele daquela mulher em sua frente. Rio se virou, irritado com a rápida reação a Dylan que seu corpo esboçava.
– Quando eu estava em Jicín, ouvi uma história sobre um homem que foi atacado por um demônio. Um velho fazendeiro que testemunhou tudo disse que o tal demônio descia da montanha para se alimentar. Para beber sangue humano.
Rio ficou ali, encarando a porta em sua frente enquanto Dylan falava. Ele sabia a qual noite ela estava se referindo, ele se lembrava dela claramente, pois aquela tinha sido a última vez que ele tinha se alimentado. Fazia mais de duas semanas que ele não se alimentava quando foi até aquela humilde fazenda perto da floresta, na base da montanha.
Ele estava faminto e aquilo o deixou descontrolado. Um homem idoso apareceu, viu o ataque, viu Rio com os dentes cravados no pescoço de outro homem. Aquele foi um deslize, uma imprudência, e aquela interrupção tinha sido a única coisa responsável por salvar a vida da caça de Rio de sua fome incontrolável. Se aquele velho homem não tivesse aparecido, certamente o outro teria morrido. Rio tinha deixado de caçar naquela noite, aterrorizado com o que tinha se tornado.
– Foi um exagero, não é mesmo? – A voz de Dylan tornou-se lentamente mais calma durante o silêncio que Rio lhe deu como resposta. – Você não fez aquilo, fez, Rio?
– Fique à vontade – ele grunhiu, enquanto saía. Antes, porém, ele pegou a bolsa em que estavam o laptop e a câmera digital de Dylan. – Há algumas coisas que preciso fazer.
Rio não esperou que Dylan protestasse ou dissesse uma palavra mais, apenas sabia que precisava sair dali. Agora. Uns poucos passos o levariam para as portas abertas e à luxuosa sala de estar que atravessara minutos antes carregando Dylan em seus braços.
– Rosario...?
Ele parou ao som da voz dela em suas costas. Franziu a sobrancelha, virou a cabeça e voltou o olhar para a mulher, que agora tinha se levantado da cama e estava apoiada em seus cotovelos.
Madre de Dios, ela estava deliciosamente atraente, um tanto quanto despenteada, um tanto quanto sonolenta. Não demorou muito para Rio imaginar que talvez fosse daquela forma que Dylan deveria parecer depois de uma noite de sexo ardente. O fato de ela estar deitada sobre aqueles lençóis de seda de cor ameixa da cama de Rio apenas deixava a imagem ainda mais erótica.
– O quê? – a voz do homem enorme era um chiado que mal passava por sua garganta masculina.
– Seu nome – ela disse, como se ele devesse saber do que ela estava falando. A mulher, então, inclinou a cabeça enquanto estudava atenciosamente o quarto. – Você me disse que Rio é apenas parte de seu nome, então eu imaginei que talvez pudesse ser um apelido para Rosario.
– Não.
– Então qual é? – Quando ele não respondeu imediatamente, suas sobrancelhas castanho-claras juntaram-se, obviamente impacientes pela resposta. – Depois de tudo o que você me contou nos últimos dias, que problema teria em me dizer seu nome?
Ele escarnecia interiormente enquanto se lembrava de todos os nomes pelos quais tinha sido chamado desde que nascera. Nenhum deles era gentil, para dizer o mínimo.
– Por que isso é tão importante?
Ela sacudiu a cabeça, erguendo levemente os ombros magros.
– Não é importante. Suponho que simplesmente tenho curiosidade de saber mais sobre você. Para saber quem você realmente é.
– Você já sabe o suficiente – ele disse. Um leve xingamento escapou por sua boca. – Confie em mim, Dylan. Você não vai querer saber nada mais sobre mim além do que já sabe.
Mas Rio estava equivocado, pensou Dylan, enquanto observava o enorme corpo daquele homem afastar-se e atravessar a porta da ampla suíte. Ele fechou a porta e deixou a mulher sozinha na suave iluminação dos aposentos.
Ela virou o corpo na enorme cama, suas pernas estavam trêmulas como se fizesse muito tempo que não as usava, como se ela tivesse ficado ao relento durante boa parte de uma noite de inverno. Se o que ele disse era verdade – que eles tinham deixado Berlim e estavam agora nos Estados Unidos – então, ela pensou, faltava-lhe pelo menos nove horas de memória consciente.
Seria aquilo realmente possível?
Será que ele realmente a havia colocado em uma espécie de transe por todo aquele tempo?
Ela tinha ficado surpresa ao sentir os dedos de Rio acariciando seu rosto quando despertou. Aquele contato parecia tão suave, tão protetor e tão quente. Mas também tinha sido muito fugaz, tinha sido interrompido tão logo ele se dera conta de que ela estava acordando, tão logo notara que ela estava percebendo o que acontecia. Será que ele também percebeu que ela estava gostando?
Não, Dylan não queria sentir o calor de Rio, tampouco queria demonstrar algum calor para ele, mas ela não conseguia negar que havia algo de eletrizante na maneira como ele a olhava. Havia algo inegavelmente sedutor na maneira como ele a tocava. Ela queria saber mais sobre aquele homem – ela precisava saber mais sobre aquele homem. Afinal de contas, como sua prisioneira, seria de seu maior interesse saber qualquer coisa que pudesse a respeito do homem que a mantinha como refém. Como jornalista em busca – ou à espera – de uma grande matéria, era obrigação dela juntar até os mais insignificantes fatos e perseguir a verdade até o fim. Entretanto, era seu interesse como mulher o que mais incomodava Dylan.
Era aquele desejo mais íntimo e pessoal de saber mais sobre o tipo de homem que Rio era que fazia com que ela vagasse de um lado para o outro naqueles aposentos chiques. A decoração era exuberante e sensual, uma explosão de cores brilhantes que iam desde a roupa de cama de seda, da cor de ameixas maduras, até o tom dourado da pintura que cobria as paredes. Uma coleção de pinturas abstratas, tão brilhantes e gritantes que chegavam a fazer os olhos de Dylan doer, cobriam uma parede inteira da suíte luxuosa. Outra parede ostentava um espelho com uma moldura exuberante e obviamente caríssima. E o objeto estava colocado estrategicamente de modo a refletir os quatro lados da cama de dossel e tudo o que, por ventura, pudesse estar acontecendo em cima daqueles lençóis. Excitante.
– Sutil... – murmurou Dylan, girando os olhos enquanto se aproximava de um par de portas duplas que havia do outro lado do quarto. Ela as abriu e ficou de boca aberta quando percebeu que se tratava do closet... Um closet que tinha mais metros quadrados do que todo o seu apartamento no Brooklin.
– Santo Deus!
Ela entrou e imediatamente se deu conta de que havia mais espelhos ali dentro – e por que você não iria querer admirar-se em todos os ângulos possíveis quando tinha metade da Chanel à sua disposição?
Dylan ficou tentada a perscrutar aquele lugar que deveria ter milhares de dólares em roupas e sapatos assinados por estilistas famosos, mas um pensamento triste logo tomou conta de sua mente: apenas um quarto do armário tinha roupas masculinas. O resto todo pertencia a uma mulher. Uma mulher pequena, delicada, cujo gosto era, obviamente, muito caro. Aqueles aposentos poderiam ser de Rio, mas certamente ele não vivia ali sozinho.
Mas que merda! Será que ele era casado?!
Dylan deu meia-volta e saiu do closet, fechando bruscamente a porta e intimamente desejando nunca ter entrado ali. Dirigiu-se para a sala, observando atentamente cada detalhe e inegavelmente percebendo que havia um toque feminino em todos os cantos para os quais olhava. Nada se parecia nem de longe com seu estilo, mas, afinal, o que Dylan sabia sobre design de interiores mesmo? Não muito. Sua melhor peça de mobília era um sofá-cama que ela comprara de segunda mão.
Dylan deixou a mão percorrer o encosto de uma nogueira esculpida como uma cadeira enquanto observava a mobília declaradamente elegante do lugar. Ela se aproximou de um sofá de veludo dourado e parou enquanto seu olhar capturava uma pequena coleção de fotografias emolduradas minuciosamente expostas na mesa que havia atrás do sofá.
A primeira coisa que viu foi uma fotografia de Rio. Ele estava sentado no banco do passageiro de um clássico Thunderbird conversível que tinha sido estacionado sob a luz da lua em alguma praia deserta. Ele vestia uma camisa de seda preta – desabotoada, obviamente – e uma calça da mesma cor; suas coxas estavam ligeiramente separadas em um “V” casual e os dedos de seus pés descalços estavam inocentemente enterrados na areia branca enquanto seu olhar topázio escuro brilhava com uma espécie de sabedoria oculta e privada, e seu sorriso nebuloso o tornava igualmente perigoso e atraente.
Jesus Cristo, ele era lindo.
Para dizer a verdade, ele era muito mais do que lindo.
A foto não parecia antiga. Não havia cicatrizes no lado esquerdo do rosto dele, de modo que a lesão que ele sofrera devia ser bastante recente. Seja lá o que tenha roubado sua aparência clássica e incrivelmente atraente, a maior tragédia parecia ser a fúria que Rio havia dentro de si. Dylan olhou para a fotografia de Rio em dias felizes, e se perguntou como ele poderia ter mudado tanto desde aquela época.
Ela então olhou para outra fotografia, essa sim, antiga. Era uma imagem profissional em tons de sépia de uma mulher com os cabelos negros vestindo um bufante vestido vitoriano de gola alta. Dylan se inclinou para poder ter uma visão melhor enquanto se perguntava se aquela beleza exótica com sorriso tímido poderia ser, de repente, a avó de Rio. Os olhos escuros da modelo encaravam direta e fixamente a lente da câmera, lançando um olhar de pura sedução. Ela era bela, a mulher da fotografia, apesar da moda recatada de sua época.
E seu rosto... seu rosto parecia extremamente familiar.
– Ah, meu Deus!
A incredulidade, assim como o absoluto deslumbramento, inundou Dylan conforme ela deslizava o olhar para outra fotografia que havia na mesa. Esta, uma imagem colorida, obviamente tirada na última década ou menos... e na qual a mesma mulher da foto antiga também era modelo. Essa última imagem, tirada durante a noite, mostrava uma mulher de pé em uma ponte de pedra no meio de um parque, rindo enquanto seus belos e longos cabelos negros balançavam em sua cabeça. Ela parecia feliz, mas Dylan viu uma tristeza em seus olhos escuros – dolorosos segredos profundamente escondidos em seu olhar castanho-escuro que estava fixo em quem quer que estivesse tirando a foto.
E Dylan reconhecia aquele rosto, ela tinha certeza de que sim... Sim, ela percebia agora, e não era apenas da série de fotografias espalhadas naquela mesa e que a jornalista acabara de ver... Não, aquele rosto era familiar. Dylan já o tinha visto, sim, ela o reconhecia agora porque já o tinha visto na montanha, em Jicín. Aquele era, definitivamente, o rosto da mulher morta. A bela – e morta – mulher que a havia conduzido à caverna onde ela encontrara Rio – Dylan se dava conta disso agora – era esposa dele.
Capítulo 15
Era quase como se ele nunca tivesse deixado aquele local.
Rio estava no laboratório de alta tecnologia do complexo, cercado por Lucan, Gideon e Tegan, que o tinham saudado e oferecido um aperto de mão – sinal da amizade e da confiança verdadeiras.
O aperto de mão de Tegan se prolongou por mais tempo. Rio sabia que o forte guerreiro com cabelos acobreados e olhos esmeraldas era capaz de ler sua culpa e suas incertezas por meio da ligação entre suas mãos. Esse era o dom de Tegan, adivinhar as verdadeiras emoções com apenas um toque.
Ele deu um aceno quase imperceptível com a cabeça.
– Coisas ruins acontecem, meu amigo. E Deus sabe que todos nós temos nossos demônios tentando nos passar a perna. Então, ninguém está aqui para julgá-lo. Entendeu?
Rio assentiu com a cabeça enquanto Tegan soltava sua mão. Ao entregar a bolsa de Dylan a Gideon, o vampiro recém-chegado observou a parte posterior do laboratório, onde Dante e Chase limpavam suas armas para usá-las durante a noite. Dante ofereceu uma pequena saudação com o queixo, mas o olhar de aço de Chase deixava claro que ele não sabia o que pensar quando o assunto era Rio. Um homem inteligente. Rio imaginou que a reação do ex-agente fosse, provavelmente, a sua própria reação caso a situação fosse inversa e fosse Chase quem estivesse voando naquele jato em busca de resgate.
– Quanto a mulher sabe a nosso respeito? – perguntou Lucan.
Com novecentos anos de idade e fazendo parte da Primeira Geração da Raça, o fundador da Ordem e líder formidável poderia controlar toda uma sala com apenas um movimento de suas sobrancelhas negras. Rio o considerava um amigo – todos os guerreiros eram tão próximos que pareciam até mesmo familiares uns dos outros – e Rio odiava com todas as suas forças a possibilidade de tê-lo decepcionado.
– Só dei a ela as informações básicas – respondeu Rio. – Não acredito que ela esteja completamente convencida.
Lucan grunhiu, assentindo pensativamente.
– Realmente, são muitas informações para ela processar. Ela entende o propósito da cripta na montanha?
– Na verdade, não. Ela me ouviu chamando aquilo de câmara de hibernação quando Gideon e eu estávamos conversando, mas não sabe nada além disso. Pode ter certeza de que não pretendo dar mais nenhuma pista a ela. O fato de ela ter visto aquilo já é ruim demais. – Rio exalou um suspiro duro. – Ela é inteligente, Lucan. Não acredito que vá levar muito tempo para juntar as peças do quebra-cabeça.
– Então será melhor agirmos logo. Quanto menos detalhes tivermos que esclarecer posteriormente, melhor – explicou Lucan. Ele lançou um olhar a Gideon, que tinha aberto o laptop de Dylan no console ao seu lado. – Quão difícil acredita que será hackear e acabar com as fotos que ela enviou por e-mail?
– Apagar os arquivos da câmera e do computador é fácil. Demora apenas alguns segundos.
– E quanto a apagar as fotos da caixa de entrada daqueles que as receberam?
Gideon franziu o rosto como se estivesse calculando a raiz quadrada da renda líquida de Bill Gates.
– Algo como dez minutos para enviar uma bomba e estourar o disco rígido de todos os computadores da lista de contatos dela. Treze minutos se você quiser algo mais sutil.
– Eu não estou nem aí com o fator sutileza. – Lucan deixou claro. – Faça o que for necessário para destruir as fotos e destruir qualquer referência escrita ao que ela encontrou na montanha.
– Pode contar comigo – respondeu Gideon, que já se encontrava fazendo sua magia em ambos os dispositivos.
– Podemos destruir os arquivos eletrônicos, mas ainda teremos de tratar com as pessoas com quem ela manteve contato sobre a caverna – esclareceu Rio. – Além do chefe dela, há três mulheres com quem ela estava viajando. E também a mãe dela.
– Vou deixar isso para você – disse Lucan. – Não me importa como você vai fazer isso. Faça-a negar a história, acabe com a credibilidade dela ou saia para encontrar as pessoas com quem ela conversou e apague a memória de cada uma delas. A decisão é sua, Rio. Simplesmente dê um jeito na situação, como sei que você vai fazer.
Rio assentiu.
– Eu lhe dou minha palavra, Lucan. Vou consertar a situação.
A expressão do vampiro da Primeira Geração era tão sombria quanto segura.
– Não duvido de você. Nunca duvidei e nunca duvidarei.
A confiança de Lucan era inesperada, e um presente que Rio não tinha intenção de desperdiçar, independentemente de quão destruído ele soubesse estar. Durante muitos anos, a Ordem e os guerreiros que a serviam eram seu principal propósito na vida – inclusive acima de seu amor por Eva, o que acabou gerando um ressentimento silencioso, porém colérico, nela. Rio estava comprometido com até o último destes homens – como se eles fossem seus parentes de sangue –, comprometido a lutar por eles e, inclusive, a morrer por eles. Ele olhou em volta, sentindo-se humilde pelos rostos sombrios e corajosos dos cinco homens da Raça que ele sabia, sem dúvida alguma, que também dariam suas vidas por ele.
Rio limpou a garganta, sentindo-se desconfortável com as boas vidas praticamente unânimes de seus irmãos. Do outro lado do laboratório, as portas de vidro se abriram quando Nikolai, Brock e Kade chegaram, vindos do corredor. Os três conversavam com empolgação, trazendo um ar de camaradagem quando entraram no laboratório.
– Oi! – disse Niko, lançando a saudação para ninguém em particular. Seus olhos azuis como o gelo pararam em Rio por um segundo antes de ele finalmente olhar para Lucan e começar a detalhar a patrulha da noite. – Acabamos com um Renegado perto do rio há mais ou menos uma hora. O filho da mãe estava escondido em um contêiner de lixo quando o encontramos.
– Você acha que é um dos cachorros de Marek? – perguntou Lucan, referindo-se ao exército de Renegados que seu próprio irmão vinha criando até a Ordem finalmente intervir. Marek tinha morrido pelas mãos da Ordem, mas os vermes de seu exército ainda precisavam ser exterminados.
Nikolai ofereceu um aceno com a cabeça.
– O desgraçado não era um soldado, mas apenas um viciado tentando satisfazer sua sede de sangue. Imagino que só tenha passado algumas poucas noites fora do Refúgio Secreto. E nós o liquidamos facilmente. – O vampiro russo olhou atrás de Rio e lançou um sorriso desajeitado para Dante e Chase. – Alguma ação no lado Sul?
– Não, nada – murmurou Chase. – Estávamos muito ocupados buscando alguém no aeroporto.
Nikolai grunhiu, compreendendo o comentário e lançando um olhar em direção a Rio.
– Faz tempo, hein cara?! É bom ver que você continua inteiro.
Rio conhecia aquele cara muito bem para pensar que o comentário era amistoso. De todos os guerreiros da Ordem, Rio esperava que fosse Nikolai o primeiro na fila para defendê-lo – mesmo se Rio fosse ou não digno de defesa. Niko era o irmão que Rio nunca tivera. Os dois tinham nascido no século anterior e entrado para a Ordem em Boston na mesma época.
Era estranho Niko estar ausente durante a chegada de Rio ao complexo. No entanto, conhecendo o vampiro e seu amor pelo combate, ele provavelmente estava irritado com o fato de sua equipe de patrulha ter sido reduzida algumas horas antes do amanhecer.
Antes que Rio pudesse dizer qualquer coisa a seu velho amigo, a atenção de Nikolai voltou a Lucan.
– O Renegado que encontramos esta noite era jovem, mas a matança que ele tinha deixado para trás parecia ser trabalho de mais de um vampiro. Eu gostaria de retornar lá amanhã e verificar as redondezas. Talvez encontremos mais alguma coisa.
Lucan assentiu:
– Parece uma boa ideia.
Depois de resolver isso, Niko dirigiu sua atenção para Kade e Brock:
– Temos tempo suficiente antes do amanhecer para caçar um pouco. Alguém aí se sentiu com sede de repente?
Os olhos de Kade brilharam como mercúrio.
– Há um lugar em North End que deve ser bem interessante. Lá há um monte de jovens no ponto certo.
– Pode contar comigo – disse Chase com palavras arrastadas, saindo de sua cadeira ao lado de Dante para unir-se aos outros três vampiros não comprometidos conforme eles começavam a caminhar na direção da saída do laboratório.
Por um instante, Rio os observou partir. Entretanto, quando viu Nikolai sair junto aos outros, xingou em voz baixa e, logo depois, correu atrás dele.
– Niko, espere.
O guerreiro seguiu seu caminho, como se não tivesse ouvido nada.
– Espere, cara. Caramba, Nikolai. Que diabos está acontecendo com você?
Quando Chase, Brock e Kade pararam para olhar atrás, Niko acenou para que eles continuassem. Os três seguiram seu caminho, virando no canto do corredor e desaparecendo de vista. Depois de uns poucos segundos, finalmente, Niko deu meia-volta.
O rosto que olhava para Rio no túnel branco era duro e incompreensível.
– Sim. Estou aqui. O que você quer?
Rio não sabia como responder àquilo. A hostilidade saiu da boca de seu velho amigo como um vento frio de inverno.
– Fiz algo que o incomodou?
O som da risada de Nikolai raspava contra as paredes de mármore.
– Vá se ferrar, cara.
Nikolai deu meia-volta e começou a se afastar novamente.
Rio o alcançou em um piscar de olhos. Estava a ponto de agarrar o ombro do guerreiro e obrigá-lo a parar, mas Niko se movimentou com mais agilidade. O vampiro russo virou-se e golpeou Rio, acertando-o no esterno, fazendo-o bater a coluna contra a sólida parede no outro lado do corredor.
– Você quer morrer, seu filho da mãe? – Niko estava com os ombros entreabertos, a cor âmbar acesa como resultado de toda aquela ira. – Se você quer se matar, é problema seu. Só não peça a minha ajuda, está bem?
Os músculos de Rio estavam retesados e prontos para uma briga. Seus instintos de combate se tornaram mais aguçados, apesar de ele estar enfrentando um aliado de longa data. No entanto, enquanto Nikolai falava, a fúria que cresceu em Rio rapidamente se reduziu. De repente, a cólera que Niko sentia contra ele fez sentido. Afinal, Nikolai sabia que Rio tinha ficado naquela montanha da Boêmia com intenções de acabar com a própria vida. Se Niko não tinha se dado conta disso cinco meses atrás, agora ele tinha certeza.
– Você mentiu para mim – esbravejou Niko. – Você me olhou diretamente nos olhos e mentiu para mim, cara. Você nunca ia voltar para a Espanha. O que pretendia fazer com o C-4 que eu dei para você? Você pretendia detonar aquela droga presa ao seu corpo, como se fosse um camicase se divertindo. Ou talvez você só estivesse planejando se prender no interior daquela maldita caverna e ficar lá, esquecido por toda a eternidade. O que você ia fazer, amigo? Como você pretendia acabar com a própria vida?
Rio não respondeu. Não era necessário. De todos os guerreiros da Ordem, Nikolai era o que melhor o conhecia. Nikolai tinha visto Rio como o covarde e fraco que ele realmente era. Só ele sabia o quão próximo Rio tinha estado de dar um fim a tudo – antes mesmo de ele chegar àquela montanha tcheca.
Tinha sido Niko quem se negara a deixar Rio mergulhar no ódio que sentia de si. E, então, evitar que entrasse naquela espiral de negatividade tinha se tornado sua missão pessoal. Niko, que ajudou Rio a subir na montanha nas semanas que se seguiram, caçando para o amigo que estava fraco demais para cuidar dele mesmo. Nikolai, o irmão que Rio nunca tivera.
– Sim – disse Niko, fechando uma carranca. – Como disse. Vá se ferrar.
Ele tirou o braço do peito de Rio e se afastou, ainda rangendo alguns xingamentos. Rio o viu se distanciar. Os sapatos de Niko pareciam mastigar o piso de mármore polido quando ele se apressou para juntar-se aos outros guerreiros que já estavam a caminho do piso superior.
– Que droga! – murmurou Rio, correndo a mão pelos cabelos.
O choque com Nikolai era só mais uma evidência de que ele não devia ter retornado a Boston – mesmo que isso significasse jogar o problema Dylan Alexander nas mãos de outra pessoa. Rio já não se encaixava ali. Agora ele era um estranho, um elo fraco em meio a uma cadeia de aço, formada pelos corajosos guerreiros da Raça.
Ainda agora ele conseguia sentir suas têmporas latejarem por conta da descarga de adrenalina que tinha ocorrido alguns minutos atrás, quando parecia que Niko queria cortá-lo em pedaços. Sua visão começou a tremer enquanto ele estava parado ali. Se não se movesse e encontrasse um local privado para aguentar a crise mental que estava por vir, Rio sabia que seria questão de minutos antes que acordasse caído sobre o mármore que revestia o chão do corredor. E, francamente, ver Lucan e aos outros saírem do laboratório para olhá-lo fixamente como se ele fosse um moribundo era algo que não queria experimentar.
Ele forçou suas pernas a se movimentarem e, com uma dificuldade acentuada, conseguiu encontrar o caminho de volta até seus aposentos. Entrou, cambaleando, e fechou a porta. Em seguida, entregou-se a uma nova sensação de náusea que o invadiu.
– Você está bem?
A voz feminina vinha de algum ponto distante naquele cômodo. A princípio, não a reconheceu. Seu cérebro estava lutando para realizar as tarefas básicas. Aquela voz brilhante e cristalina não parecia pertencer àquele lugar cheio de lembranças antigas e empoeiradas.
Rio se distanciou da porta e se arrastou pela sala, em direção ao quarto. Seu cérebro transmitia a impressão de que se despedaçaria a qualquer momento.
Água quente. Escuridão. Tranquilidade. Ele precisava dessas três coisas. Imediatamente.
Rio tirou a camisa e a deixou cair no ridículo sofá de veludo de Eva. Ele realmente tinha que queimar todos seus pertences. E era uma pena que ele não tinha como jogar aquela maldita traidora na fogueira junto com todo o resto.
Rio se agarrou à sua fúria pela traição de Eva, um leve castigo, mas aquilo era tudo o que tinha no momento. Abriu as portas do quarto e ouviu um leve suspiro vindo lá de dentro.
– Meu Deus! Rio, você está bem?
Dylan.
O nome dela atravessava como um bálsamo a névoa que envolvia a mente de Rio. Ele levantou o olhar na direção de sua convidada indesejada, que agora estava sentada no canto da cama com algo plano e retangular apoiado em seu colo. Ela deixou o objeto de lado, no criado-mudo, e se aproximou antes que os joelhos dele cedessem.
– Banho – ele conseguiu grunhir.
– Você mal consegue parar em pé – Dylan o ajudou a alcançar a cama, onde ele rapidamente deixou o corpo cair. – Parece que você precisa de um médico. Há alguém aqui que possa ajudá-lo?
– Não – ele respondeu com uma voz rouca. – Uma ducha...
Rio estava fraco demais para usar sua habilidade mental da Raça e abrir o registro da água, mas ele não precisou sequer tentar. Dylan já estava se apressando na direção do banheiro ao lado. Ouviu o forte estalar da água batendo contra o chão e, em seguida, os suaves passos de Dylan no carpete enquanto ela retornava para onde estava caído, com o corpo virado na direção dos pés da cama.
Rio percebeu vagamente a desaceleração dos passos da mulher conforme ela se aproximava. Apenas escutou a respiração rápida logo acima de seu corpo. Mas era impossível confundir quem estava ali quando ela soltou, com a respiração trêmula, alguns palavrões. Um silêncio pesado e demorado se seguiu ao xingamento sussurrado. Em seguida:
– Rio... Meu Deus! Por que tipo de inferno você passou?
Lançando mão até mesmo da última gota de força que tinha, ele conseguiu abrir os olhos. Um erro enorme. O horror que ele viu nos olhos de Dylan era inegável. Ela estava olhando o lado esquerdo de seu corpo... O peito e o torso, que tinham sido destruídos por uma granada que quase esfolou seus ossos com as chamas da explosão que por pouco não lhe tirara a vida.
– Ela... – suave voz de Dylan foi se tornando cada vez mais fraca. – Sua esposa tem algo a ver com o que aconteceu com você?
Rio sentiu seu coração parar de bater. O sangue que antes pulsava fortemente em seus ouvidos se transformou em gelo quando ele conseguiu se concentrar na pergunta de Dylan. A preocupação estampava seu rosto.
– Ela fez isso com você, Rio?
Ele seguiu a mão estendida de Dylan enquanto ela alcançava o objeto que tinha deixado no criado-mudo. Era uma fotografia em um porta-retratos. Rio não precisava ver a foto no vidro para saber que era de Eva, de um passeio que eles tinham feito no Charles River certa noite. Eva, sorrindo. Eva, dizendo o quanto o amava. Enquanto, em suas costas, ela conspirava com os inimigos da Ordem para conquistar seus objetivos egoístas.
Rio grunhiu quando pensou em sua própria burrice. Em sua própria cegueira.
– Isso não é da sua conta – murmurou, ainda à deriva da escuridão que tomava conta de sua mente. – Você não sabe nada a respeito dela.
– Foi ela quem me levou até você. Eu a vi na montanha em Jicín.
Uma suspeita irracional transformou a ira de Rio em um sentimento letal.
– Do que você está falando? Como assim, você a viu?
Dylan engoliu em seco e encolheu levemente o ombro. Em seguida, segurou a fotografia diante dele.
– Eu a vi... O espírito dela estava lá. Ela estava na montanha com você.
– Você só pode estar mentindo – ele grunhiu. – E não me fale dessa mulher. Ela está morta, e merecidamente.
– Ela pediu que eu o ajudasse, Rio. Ela me procurou. Queria que eu salvasse você...
– Já disse para você parar de falar dela! – ele esbravejou.
A raiva fez com que o corpo de Rio estremecesse no colchão como uma víbora sendo atacada. Ele puxou o retrato das mãos de Dylan e o atirou pelo quarto com uma velocidade impressionante. O objeto bateu contra o enorme espelho na parede de frente com a cama, quebrando-o com o impacto e lançando cacos de vidro polido como uma chuva de lâminas.
Rio ouviu o grito de Dylan, mas foi somente quando ele sentiu o cheiro adocicado do sangue dela que se deu conta do que tinha feito.
Ela levou a mão até a maçã do rosto e, quando seus dedos se afastaram, estavam manchados de vermelho por conta de um pequeno ferimento logo abaixo do olho esquerdo.
Foi a visão daquela ferida que tirou Rio daquele espiral de depressão. Como um balde de água fria jogada sobre sua cabeça, ver Dylan ferida o puxou instantaneamente de volta para a realidade.
– Ah, Jesus Cristo! – disse ele com dentes apertados. – Eu sinto muito... Sinto muito!
Ele se moveu para tocá-la, para verificar o quanto a tinha ferido, mas ela se afastou com os olhos completamente aterrorizados.
– Dylan... eu não queria...
– Fique longe de mim!
Ele estendeu a mão, buscando demonstrar que realmente não queria feri-la.
– Não – ela estremeceu enquanto sacudia violentamente a cabeça. – Ah, meu Deus. Não me toque!
Madre de Dios.
Ela agora o olhava com um terror absoluto. E tremia. Seus olhos estavam fixos nele, banhados de medo e confusão.
Quando Rio passou a língua pelas pontas de suas presas salientes, ele entendeu a fonte do terror que Dylan sentia. Ele se levantou diante dela. Ela temia porque ele lhe tinha dito ser um vampiro, embora aquela mente humana tivesse se recusado a acreditar.
Agora, todavia, ela acreditava.
Dylan estava vendo a verdade com seus próprios olhos, as mudanças físicas no corpo de um louco cheio de cicatrizes que agora se transformava em uma criatura saída diretamente de seus piores pesadelos. Era impossível esconder as presas que se tornavam mais longas conforme a fome por ela se intensificava. Era impossível mascarar o afinamento daquelas pupilas conforme o brilho âmbar da sede de sangue embaçava sua visão.
Ele olhou para o pequeno corte, para o fio de sangue que escorria tão vermelho contra a pele macia da bochecha de Dylan. E ele mal conseguia formular um pensamento coerente.
– Eu tentei contar para você, Dylan. Isso é o que eu sou.
Capítulo 16
– Vampiro.
Dylan ouviu a palavra escapar por seus lábios, apesar do fato de mal poder acreditar no que estava vendo – ou dizendo.
Em questão de instantes, Rio tinha se transformado diante dos olhos de Dylan e ela olhava chocada as mudanças que acabara de presenciar. As íris dos olhos dele brilhavam como brasas e não tinham mais a cor topázio habitual. Em vez disso, estavam estampadas com uma inacreditável sombra âmbar que praticamente engolia as pupilas extremamente reduzidas. Os ossos da face de Rio pareciam mais duros agora, ostentando as esguias maçãs do rosto e uma mandíbula quadrada que parecia ter sido esculpida em pedra.
E, atrás do suculento e exuberante corte formado por sua boca, Rio exibia um par de presas que pareciam ter saído diretamente de algum filme de Hollywood.
– Você... – A voz de Dylan desapareceu conforme aqueles hipnóticos olhos cor de âmbar a encararam. Ela se sentou delicadamente na beirada da cama. – Meu Deus... Você realmente é um...
– Eu sou da Raça – ele pronunciou calma e articuladamente. – Exatamente como lhe disse.
Dylan estava sentada diante de Rio, e agora sua visão era preenchida completamente pela ampla musculatura do peito nu do vampiro. O intrincado desenho na pele dos antebraços subia pelos ombros de Rio e descia ao longo de seu peitoral. Todas as marcas – dermoglifos, como ele havia chamado da primeira vez em que ela as percebera – eram de uma cor vívida agora, a cor mais escura que Dylan já as tinha visto ostentar. Tramas profundas de cor púrpura e negra saturavam os belos desenhos e as linhas em forma de arcos.
– Não consigo impedir a transformação – ele murmurou, como se tivesse necessidade de dar uma justificativa a Dylan. – A transformação é espontânea nos machos da Raça quando sentimos o cheiro de sangue fresco.
O olhar dele desviou-se ligeiramente dos olhos de Dylan, e logo repousou na bochecha ferida pelos estilhaços do espelho quebrado. A mulher sentia que ainda havia sangue quente deslizando como uma lágrima por seu queixo. Rio assistia àquela gota deslizar com uma intensidade que fazia Dylan estremecer. Ele passou a língua pelos lábios sensuais e engoliu seco, mas manteve seus dentes cerrados o tempo todo.
– Fique aqui – ele ordenou com uma voz forte e autoritária enquanto franzia a testa com intensidade.
O instinto de Dylan lhe dizia que ela devia ser mais inteligente e correr, mas ela se recusava a sentir – ou, melhor dizendo, a demonstrar sentir – medo daquele homem enorme que estava sem camisa em sua frente. Por mais estranho que parecesse, Dylan sentia que tinha realmente conhecido aquele homem nos últimos dias, durante os quais eles foram obrigados a conviver. Rio não era nenhum santo, aquilo era um fato. Ele a tinha raptado, aprisionado e ela ainda não estava certa sobre o que ele queria fazer com ela – Santo Deus! No entanto, ela não acreditava que ele fosse perigoso – não para ela.
O que Dylan acabara de testemunhar ali não era exatamente algo a ser celebrado, mas, em seu coração, ela não sentia medo do que ele era.
Bem, não completamente.
Dylan ouviu quando Rio desligou o registro do chuveiro e saiu, poucos segundos depois, segurando uma toalha branca e umedecida que ele ofereceu para ela.
– Pressione isso contra a ferida. Vai estancar o sangramento.
Dylan tomou a toalha em suas mãos e a pressionou no rosto, exatamente como ele lhe dissera. Ela, porém, não pôde deixar de perceber a longa expiração que ele soltou quando a ferida em sua bochecha fora finalmente coberta, como se agora estivesse aliviado por não precisar mais passar pelo inferno de ter de olhar para aquilo e resistir. A cor ardente dos olhos de Rio começou a escurecer lentamente e as pupilas estreitas reassumiram a forma arredondada. Os dermoglifos, no entanto, ainda estavam avermelhados; as presas, ainda mortalmente afiadas.
– Você realmente é um... não é? – ela murmurou. – Você é um vampiro. Jesus Cristo! Não consigo acreditar que isso seja verdade. Quer dizer, como isso pode ser verdade, Rio?
Ele se sentou ao lado dela na cama. Menos de um metro de distância os separava agora.
– Eu já expliquei isso para você.
– Extraterrestres bebedores de sangue e mulheres humanas com DNA compatível com os deles – disse ela, recordando-se da estranha história sobre a raça híbrida de vampiros que ela tentara encarar como ficção científica. – Tudo isso é verdade?
– A verdade é um pouco mais complicada do que isso, mas sim... Tudo o que eu lhe disse é verdade.
Incrível.
Totalmente incrível.
Uma parte mercenária dela quase gritou de excitação ao pensar na potencial fama e fortuna que a revelação daquela história poderia lhe trazer. Mas havia outra parte de Dylan – a que não tinha se esquecido daquela incomum marca de nascença que ela trazia gravada na parte de trás do pescoço, a parte que ainda se lembrava de que ela tinha, aparentemente, uma forte conexão com aquele mundo – que mostrou instantaneamente seus instintos protetores, como se Rio e o mundo em que ele vivia fossem um delicioso segredo que pertencia exclusivamente a ela.
– Desculpe-me se eu chateei você – ela disse serenamente. – Eu não devia ter bisbilhotado as coisas enquanto você não estava aqui.
A cabeça dele se virou bruscamente e sua testa enrugou-se, levando as sobrancelhas a se unirem. O xingamento que ele murmurou foi forte e palpável.
– Você não precisa me pedir desculpas, Dylan. Fui eu quem errou. Eu nunca deveria ter entrado aqui no estado em que estava. Eu não posso ficar perto de ninguém quando estou daquele jeito.
– Você parece estar um pouco melhor agora.
Ele assentiu, sua cabeça caindo levemente em direção ao peito nu.
– A raiva diminui... no final. Se você não apagar antes, ela em algum momento... passa.
Não fazia muito tempo que Rio aparecera cambaleando no quarto, bastante desatento, com seus pés mal respondendo aos passos dificultosos que ele tentava dar. Ele mal conseguia pensar, seus músculos e ossos estavam embebidos em uma fúria insana.
– O que desperta isso, Rio?
Ele deu de ombros.
– Pequenas coisas, nada em especial. Nunca sei, exatamente.
– Aquele tipo de raiva faz parte do que você é? Todos os homens da Raça têm de passar por esse tipo de tormento?
– Não – disse, soltando o tipo de sorriso de alguém que está zombando de si. – Não. Esse problema é apenas meu. Falta um parafuso na minha cabeça. Eu o perdi no verão passado e nunca mais o encontrei.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan gentilmente. – Foi isso que aconteceu com você?
– Foi um erro – ele respondeu com uma ponta de insegurança na voz. – Eu confiei em alguém em quem não deveria ter confiado.
Dylan olhou para o dano terrível que o corpo de Rio tinha sofrido. O rosto e o pescoço dele carregavam graves cicatrizes, mas seu ombro esquerdo e metade de seu torso musculoso pareciam ter ido e voltado do inferno. Seu coração apertou-se em seu peito quando ela pensou na dor que ele deveria ter suportado, tanto no acontecimento que ferira seu corpo daquela forma, quanto no que provavelmente foram meses e meses de recuperação.
Ele estava ali, sentado naquela cama tão rigidamente, tão solitário e tão inalcançável, apesar de estar a menos de um braço de distância dela. Para Dylan, Rio parecia sozinho. Sozinho e à deriva.
– Sinto muito, Rio – disse ela. E antes que pudesse se interromper, Dylan colocou sua mão sobre a mão dele, que ele agora descansava sobre a coxa. ele estremeceu como se carvão em brasa tivesse sido colocado sobre sua pele. Todavia, não se afastou.
Ele olhou fixamente para os dedos de Dylan que descansavam suavemente sobre os dele, branco pálido sobre um tom bronzeado. Quando olhou para ela, lançou-lhe um olhar rústico e másculo que preenchia seus olhos completamente. Ela se perguntava quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele fora tocado com algum tipo de ternura.
Dylan deslizou seus dedos sobre a mão máscula de Rio, estudando o incrível tamanho e a enorme força que ela tinha. A pele dele era tão quente e havia tanta força concentrada em seu corpo, mesmo quando ele parecia determinado a manter-se perfeitamente parado.
– Sinto muito por tudo o que você enfrentou, Rio. Sinto de verdade.
A mandíbula dele estava tão apertada que fez um músculo de seu rosto se contrair. Dylan colocou de lado a toalha umedecida que ele tinha lhe trazido e mal percebia que todos os seus sentidos estavam concentrados nele e na eletricidade que parecia emanar de suas mãos entrelaçadas.
Ela ouviu um ruído baixo se formar dentro de Rio, algo entre um grunhido e um gemido. O olhar dele deslizou para a boca de Dylan, e, por um segundo – um rápido, um breve segundo que teria durado o tempo de uma batida do coração – ela se perguntou se ele iria beijá-la.
Dylan sabia que devia retroceder. Sabia que devia tirar sua mão de cima da mão dele, colocá-la longe. Sabia que devia fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não fosse ficar ali, parada, quase sem respiração enquanto esperava e desejava – desejava desesperadamente, incontrolavelmente – que ele se debruçasse sobre ela e apertasse seus lábios contra os dele.
E, de repente, ela não conseguia mais não tocá-lo. Foi quando estendeu a mão que estava livre e acariciou o rosto de Rio, sentindo um repentino sopro de ar gelado empurrá-la – com a imponência da Grande Muralha da China.
– Não quero sua compaixão – grunhiu Rio com uma voz que ela não reconheceu como sendo dele. O sotaque espanhol estava ali, como sempre, mas as sílabas eram ásperas e o timbre não era exatamente humano, o que imediatamente fez Dylan se lembrar de qual era a natureza daquele ser diante dela. Rio puxou a mão de debaixo da dela e se levantou da cama.
– O corte está sangrando. Você precisa de cuidados que não posso lhe oferecer.
– Tenho certeza de que não é nada grave – respondeu Dylan, sentindo-se uma idiota por se colocar em uma situação como aquela com ele. Depois, pegou novamente a toalha que descartara momentos antes e a pressionou outra vez contra o ferimento. – Não é nada. Vou ficar bem.
Não havia sentido algum em Dylan falar qualquer coisa que fosse, já que Rio não a ouviria, de qualquer forma. Ela o viu caminhar até a sala da frente, passando pelo espelho quebrado, e pegar um telefone sem fio, no qual imediatamente teclou uma sequência curta de números.
– Dante? Olá. Não, nenhum problema. Mas eu, é... Tess está por aí? Preciso que ela me faça um favor.
Rio parecia um animal enjaulado, andando de um lado para o outro durante os poucos minutos que se passaram até a ajuda chegar. Ele ficou do lado de fora do quarto, confinado a um espaço minúsculo perto da entrada principal. Ficou tão distante de Dylan quanto poderia ficar sem de fato ter de sair daquele maldito quarto e esperar do lado de fora.
Madre de Dios.
Ele quase lhe beijara.
E ele queria tê-la beijado. E admitir aquilo – mesmo que apenas para si – era como levar um soco no estômago. Beijar Dylan Alexander era uma maneira garantida de transformar uma situação que já era bastante ruim em algo que seria, de fato, catastrófico. Isso porque Rio sabia sem qualquer sombra de dúvida que, se beijasse aquela bela e ardente mulher, ele não conseguiria se conter, não conseguiria, de forma alguma, parar no beijo. Não, mesmo.
O simples pensamento da sensação que seria a de pressionar seus lábios contra os dela já fazia o sangue de Rio ferver e correr acelerado em suas veias. Seus dermoglifos pulsavam com as cores de seu desejo – agitando-se em tons de vermelho-escuro e negros. E também era impossível negar a outra evidência daquele desejo: seu pênis estava tão duro quanto granito, e estava daquele jeito desde o instante em que Dylan, inesperadamente, inadvertidamente, pousara a mão sobre sua coxa.
Jesus Cristo!
Ele sequer se atrevia a olhar para dentro do quarto, com medo de não ser capaz de impedir seus pés de marcharem de volta pelas portas fechadas e levarem-no diretamente para os braços de Dylan.
“Como ela provavelmente desejava” – ele pensou ardentemente.
Aquela carícia que Dylan fizera em sua mão tinha sido um gesto delicado, doce, do tipo que uma mãe faz em uma criança. Ou, pior do que isso, aquele gesto poderia ter sido um gesto de compaixão de um anjo caridoso que consola uma das criaturas mais infelizes criadas por Deus.
Maldecido.
Manos del diablo.
Monstruo.
Sim, Rio era todas essas coisas. E agora Dylan tinha visto como ele era realmente feio. Para seu crédito, ela não tinha recuado ao ver toda aquela carne retorcida e aquelas presas – o que queria dizer então que ela era muito mais forte do que aquilo tudo. Mas acreditar que ela poderia receber, poderia desejar seu toque? Que ela poderia aproximar-se o suficiente de seu rosto arruinado e permitir que ele a beijasse?
Jamais! E ele agradeceu a Deus por aquilo, pois aquilo lhe tinha poupado de ver a repugnância dela. Aquilo lhe tinha poupado de fazer algo realmente idiota, como se esquecer – ainda que por um segundo apenas – de que ela estava ali, no complexo – ali, em seu quarto – somente até que ele corrigisse o erro que cometera ao permitir que ela se aproximasse daquela maldita caverna em Jicín. Quanto mais rápido ele conseguisse fazer aquilo – consertar aquele erro – e mandar Dylan para casa, melhor.
Um golpe seco ecoou contra a porta.
Rio atendeu, com um grunhido de frustração.
– Você soava péssimo ao telefone, então decidi vir com Tess e ver com meus próprios olhos. – A boca de Dante curvou-se em um sorriso arrogante que só ele sabia dar enquanto seu corpo enorme permanecia parado na soleira da porta ao lado de sua bela Companheira de Raça. – E então, você não vai nos deixar entrar, cara?
– Claro.
Rio deu um passo para o lado, abrindo espaço para o casal entrar.
A companheira de Dante parecia ainda mais bela sob a luz daquele quarto. As longas ondas cor de mel de seus cabelos estavam presas em um rabo de cavalo frouxo e seus inquiridores olhos verde-mar eram suaves, mesmo quando encaravam Rio.
– É bom vê-lo novamente, Rio – disse ela, e, sem hesitação, deu um passo adiante e ficou na ponta dos dedos dos pés para dar um abraço rápido no guerreiro e beijar-lhe levemente a bochecha. – Dante e eu ficamos tão preocupados com você durante esses meses todos...
– Não precisava – respondeu Rio, embora não pudesse negar que aquela preocupação o deixava, de certa forma, feliz.
Tess e Dante estavam juntos desde o final do último outono. Ela tinha entrado para a Ordem com um extraordinário dom de curar e restaurar a vida com o simples toque de suas mãos macias. O toque de Tess tinha um poder inimaginável, mas nem mesmo ela fora capaz de consertar todos os danos que Rio tinha sofrido. Ele já estava muito longe quando ela chegou ao complexo, e as cicatrizes dele – tanto as interiores quanto as exteriores – eram permanentes, embora não fosse por falta de tentativas de Tess.
Dante passou o braço musculoso em volta de sua Companheira de Raça em um movimento que era protetor e respeitoso ao mesmo tempo. E foi então que Rio notou a leve protuberância no ventre dela. Tess percebeu o olhar de Rio e abriu um sorriso tão imaculado quanto o da própria Madonna de Botticelli.
– Estou nos primeiros três meses – ela disse, virando-se toda sorridente para Dante. – Alguém está usando isso como desculpa para me mimar.
Dante sorriu.
– Eu? Por favor...
– Felicidades – murmurou Rio, sinceramente sentindo os votos que desejava.
Não era comum guerreiros e Companheiras de Raça começarem uma família dentro da Ordem. Aliás, praticamente não se ouvia falar daquilo. Os homens da Raça que dedicavam suas vidas à luta contra os Renegados não eram tipos muito familiares, por assim dizer. Mas acontece que Dante nunca fora como esses guerreiros, então...
– Onde está Dylan? – perguntou Tess.
Rio gesticulou, apontando para as portas que estavam fechadas.
– Eu fui um idiota com ela. Tive uma crise e... Droga! Acabei quebrando o espelho. Um dos estilhaços acabou atingindo o rosto dela.
– Você ainda está tendo apagões? – perguntou novamente Tess, franzindo a testa. – As dores de cabeça ainda não passaram?
Rio recuou, obviamente não querendo falar sobre seus próprios problemas.
– Eu estou bem. – Foi tudo o que ele disse. – Apenas cuide dela, certo?
– Eu cuidarei. – Tess pegou uma pequena maleta médica das mãos de Dante, sob o olhar interrogativo de Rio, e completou:
– Desde que eu engravidei, minhas habilidades diminuíram. Eu entendo que, na gravidez, é normal a energia da Companheira de Raça se voltar para dentro do próprio corpo. As coisas vão voltar ao normal quando o bebê nascer. Até lá, terei de me apoiar na boa e velha medicina tradicional.
Rio lançou um olhar sobre seus ombros para dentro do quarto. Ele não conseguia ver Dylan, mas imaginou que ela estava lá dentro, precisando ver alguém gentil e carinhoso. Alguém que pudesse melhorar seu humor e conversar com ela como uma pessoa normal; alguém que pudesse tranquilizá-la, dizer-lhe que ela estava segura, que estava entre pessoas em quem ela podia confiar. Especialmente depois da espetacular demonstração de raiva psicótica e desregrada que ele, Rio, tinha feito para ela.
– Está tudo bem – disse Tess. – Não se preocupe, vou cuidar dela.
Com o punho fechado, Dante golpeou levemente o bíceps bem definido de Rio.
– Venha – disse –, vamos dar o fora daqui. Ainda falta uma hora para o amanhecer. E parece que você está precisando tomar um pouco de ar fresco, cara.
Capítulo 17
Dylan estava agachada perto do pé da cama, recolhendo cacos de vidro, quando as portas se abriram suavemente, abrindo caminho para o dormitório.
– Dylan?
Aquela era uma voz feminina. A mesma que, havia um minuto, ela tinha ouvido conversar baixinho com Rio e outro homem. Dylan olhou para cima e sentiu o calor instantâneo de um olhar brilhante que estava logo acima dela.
A mulher, jovem e bela, sorriu.
– Olá. Meu nome é Tess.
– Olá.
Dylan deixou um caco de vidro de lado e inclinou o corpo para recolher outro.
– Rio me pediu para vir ver se você estava bem.
Tess trazia consigo uma bolsa de couro preta quando entrou nos aposentos.
– Você está bem? – insistiu.
Dylan assentiu.
– É só um arranhão.
– Rio está se sentindo péssimo por causa disso. Ele anda passando por... problemas. Já faz algum tempo. Desde a explosão do armazém no verão passado. Ele tem sorte de estar vivo.
Meu Deus! Então isso explicava as queimaduras e as cicatrizes. Uma explosão havia feito aquilo? Quer dizer então que Rio realmente tinha feito uma viagem de ida e volta para o inferno, como Dylan havia suposto.
Tess continuou:
– Por causa do trauma cerebral causado pela explosão, ele tem blecautes de tempos em tempos. Além disso, Rio também tem fortes dores de cabeça, mudanças de humor... Bem, acredito que você deve ter visto com seus próprios olhos. Não é coisa para brincadeira. Mas ele não quis feri-la, disso eu tenho certeza.
– Estou bem – insistiu Dylan, sem se preocupar com o arranhão em sua bochecha. – Tentei dizer para ele que isto aqui não era nada. O corte nem está sangrando mais.
– É um alívio – disse Tess enquanto colocava a bolsa médica sob a escrivaninha. – Fico contente de saber que não é tão grave quanto Rio temia. Da forma como ele descreveu pelo telefone, pensei que teríamos que dar pelo menos meia dúzia de pontos. Mas pelo que vejo, um pouco de antisséptico e um curativo serão suficientes – Tess caminhou por onde Dylan recolhia os pedaços do espelho despedaçado. – Venha, deixe-me ajudá-la.
Quando Tess se aproximou, Dylan se deu conta de que a palma da mão de Tess estava apoiada sobre a curva na barriga. Ela estava grávida. E não foi apenas pela aparência física que Dylan percebeu, mas pelo fato de aquela mulher resplandecer com um brilho interior que não deixava dúvida alguma.
Além disso – e, talvez ainda mais estranho –, na mão que repousava sobre as primeiras fases de um bebê em desenvolvimento, havia uma pequena marca de nascença. Dylan não pôde deixar de olhar fixamente para a lágrima escarlate e a meia-lua na mão direita daquela mulher – a mesma marca com a qual ela tinha nascido, aquela que trazia no pescoço.
– Você vive aqui? – perguntou Dylan. – Com... eles?
Tess assentiu.
– Vivo com Dante. Ele é um guerreiro da Ordem, como Rio e os outros que vivem aqui no complexo.
Dylan acenou na direção da pequena marca de nascimento entre o polegar e o indicador de Tess:
– Você é a... Companheira de Raça dele? – perguntou, recordando o termo que Rio tinha usado depois de perceber que Dylan tinha uma marca idêntica àquela. – Você se casou com um deles?
– Dante e eu procriamos no ano passado – explicou Tess. – Fomos unidos por nosso sangue, o que nos liga de uma forma muito mais profunda do que o casamento. Imagino que Rio já tenha lhe dito algumas coisas sobre a Raça... Como eles vivem, de onde vêm. Depois do que aconteceu, estou segura de que você não tem dúvidas do que eles são.
Dylan assentiu, ainda sem acreditar que tudo aquilo poderia ser realmente verdade.
– Vampiros.
Tess sorriu gentilmente.
– Isso foi o que eu pensei a princípio. Porém, defini-los não é algo tão simples assim. A Raça é um pouco complicada. Eles vivem em um mundo complexo e cheio de inimigos. As coisas podem ser muito perigosas para eles e para quem os ama. Para os poucos homens que se comprometeram com a Ordem, cada noite é um risco para suas vidas.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan com um tom que deixava transparecer seu espanto. – A explosão que feriu Rio... foi algum acidente terrível?
Uma expressão de dor tomou conta do rosto de Tess. Ela estudou Dylan por um momento, como se não estivesse segura do quanto poderia contar. No entanto, ela logo sacudiu ligeiramente a cabeça.
– Não. Não foi um acidente. Alguém próximo de Rio o traiu. A explosão aconteceu durante uma investida em um velho armazém da cidade. Rio e os demais membros da Ordem se viram em uma emboscada.
Dylan olhou para baixo e se deu conta de que estava observando o porta-retratos que Rio tinha jogado pelo quarto durante seu ataque de raiva. Cuidadosamente o recolheu. Tirou a teia de aranha de cima do vidro quebrado sobre a imagem e observou os exóticos olhos escuros e o sorriso triste e distante.
– Eva – confirmou Tess. – Ela era a Companheira de Raça de Rio.
– Mas ela o traiu?
– Sim – Tess respondeu depois de uma longa pausa. – Eva fez um acordo com um dos inimigos da Ordem, com um poderoso vampiro que também era o irmão do líder da Ordem, Lucan. Para que este vampiro obtivesse informação que o ajudasse a matar Lucan, algo que Eva queria tanto quanto o inimigo, ela pediu duas coisas: que Rio sobrevivesse e que fosse ferido o suficiente para nunca mais conseguir lutar.
– Meu Deus! – ofegou Dylan. – E ela conseguiu o que queria?
– Não exatamente. A Ordem caiu em uma emboscada, apoiada nas informações que Eva entregou, mas o vampiro com o qual ela negociou não tinha a menor intenção de manter sua parte do acordo. Ele colocou uma bomba no local. A explosão poderia ter matado a todos, mas, ironicamente, Rio foi o mais atingido. E posteriormente ele veio a descobrir que Eva tinha sido a responsável por tudo aquilo.
Dylan não conseguia falar. Ela tentava absorver o peso que tudo aquilo deveria ter para Rio. Não apenas a dor física causada por aquelas lesões, mas também a dor emocional da traição sofrida por ele.
– Eu a vi. – Dylan olhou para Tess e viu a testa da mulher franzir. A confusão se tornava evidente naquele olhar carregado de interrogações. Dylan conhecia Tess há poucos minutos e não estava acostumada a falar sobre si com ninguém, em especial falar de seu segredo, de seu dom, daquilo que a tornava tão diferente dos outros humanos. No entanto, havia algo nos olhos cheios de cuidado de Tess que levava Dylan a confiar que estava segura. Ela tinha sentido uma afinidade instantânea que a fez saber que estava com uma amiga.
– Os mortos aparecem para mim de vez em quando. Bem, mulheres mortas, melhor dizendo. Eva apareceu para mim alguns dias atrás, quando eu estava viajando com algumas pessoas pelos arredores de Praga.
– Ela... apareceu para você...? – perguntou Tess com cautela. – O que você quer dizer com isso?
– Eu vi o espírito dela, por assim se dizer. Ela me guiou até uma caverna oculta. Eu não sabia, mas Rio estava lá dentro. Ela... Eva me levou até lá e me pediu que o salvasse.
– Meu Deus! – Tess acenou lentamente com a cabeça. – Ele sabe?
Dylan olhou significativamente para a destruição ainda sob seus pés.
– Sim, Rio sabe. Quando eu contei para ele, ele ficou louco.
O olhar de Tess transformou-se quase em um pedido de desculpa.
– Ele tem muita raiva de tudo que seja relacionado à Eva.
– É compreensível – respondeu Dylan. – Ele está bem, Tess? Quer dizer, considerando o que viveu, Rio vai ficar... bem?
– É o que eu espero. É o que todos nós esperamos. – Tess inclinou a cabeça ligeiramente, estudando Dylan. – Você não tem medo dele?
Não, Dylan não o temia. Tinha curiosidade de saber mais sobre Rio, e incerteza com relação às intenções dele quanto a ela. Mas não tinha medo. Embora isso parecesse loucura, mesmo depois de vê-lo tendo aquela reação naquele mesmo cômodo, Dylan não o temia. Aliás, pensar em Rio provocava muitas coisas nela, mas nenhuma delas era medo. Não mesmo.
– Você acha que eu deveria temê-lo? – perguntou.
– Não, claro que não – disse Tess sem vacilar. – Quer dizer, as coisas não devem estar sendo fáceis para você. Deus sabe que não aceitei muito bem no início, quando ouvi pela primeira vez toda essa coisa de sangue, presas e guerra.
Dylan encolheu o ombro.
– Eu escrevo para uma publicação que é quase um tabloide. Acredite, já escutei muitas coisas bizarras. Não me assusto com facilidade.
Tess sorriu, mas não manteve o olhar cruzado com o de Dylan por muito tempo. As palavras que ela não disse estavam claras naqueles olhos que a evitavam: aquilo não era apenas uma história bizarra de um tabloide. Aquilo era a realidade.
– O que havia naquela caverna, Tess? Parecia ser algum tipo de cripta, uma “câmara de hibernação”, como escutei Rio chamá-la. Mas que diabos era aquilo? Há algo perdido naquela montanha?
Tess levantou o olhar, mas só negou levemente com a cabeça.
– Na verdade, eu não acho que você queira saber.
– Sim, eu quero – insistiu Dylan. – Independentemente do que for, é importante o suficiente para que Rio sentisse a necessidade de me sequestrar e me trancafiar para que não dissesse nada do que vi.
O silêncio de Tess fez o estômago de Dylan formar um nó de medo. A Companheira de Raça sabia o que havia na caverna, e aquilo parecia aterrorizá-la. O que, é claro, apenas aumentou a curiosidade de Dylan.
– Tess, havia algo dormindo naquela tumba oculta. E, pelo aspecto, eu diria que esse algo estava escondido ali há muito tempo. Que tipo de criatura era ou é aquilo?
Tess se levantou e jogou alguns cacos de vidro no cesto de papéis ao lado da mesa.
– Deixe-me ver seu corte. Temos de limpá-lo. Depois faremos um curativo para evitar que você fique com uma cicatriz.
Confinado dentro da cela de raios ultravioleta, o Antigo jogou a cabeça para trás e soltou um rugido infernal. Sangue gotejava por suas enormes presas e seu peito, enorme e nu, ostentava a cor pulsante de seus dermoglifos.
– Apertem essas malditas correntes – gritou o cuidador, falando com seus subordinados por meio de um alto-falante na sala de observação fora da cela. – E, por Deus, arrumem toda essa bagunça aí dentro.
As algemas cibernéticas serpentearam e seguraram fortemente as pernas e os braços grossos do Antigo. Com um comando programado, ajustaram-se. A criatura tentou se libertar, mas não chegaria a lugar algum. Feriu-se futilmente: cortou seus próprios lábios e berrou de novo. O urro era pura fúria enquanto o imenso corpo era dominado por titânio e aço.
Ele ainda estava com o pênis ereto por conta do cruzamento que tinha dado tão violentamente errado. Ainda estava sedento pelo sangue e pelo corpo sem vida da mulher que naquele momento era apressadamente retirada da jaula.
A Companheira de Raça tinha sido atacada. Unhas e presas fortes tinham marcado irreversivelmente – mortalmente – seu corpo. E, antes que o Antigo pudesse ser afastado, ela já estava morta. Ela não era a primeira; tampouco seria a última (não estava perto de sê-lo, aliás). Ao longo das cinco décadas em que o Antigo tinha sido despertado de sua hibernação e posto sob o controle de seu guardião, alimentá-lo – e fazê-lo procriar – tinha se mostrado uma tarefa custosa e frustrante.
Apesar de toda aquela tecnologia e de todo aquele dinheiro disponível, não havia ciência alguma que pudesse substituir o tipo de acasalamento que havia ocorrido na cela do prisioneiro alguns momentos atrás. Carne com carne, esse era o único meio de concepção para o Antigo. E também para os demais membros da Raça. Mas o sexo era apenas uma parte do processo. Era necessária a ejaculação, com um intercâmbio de sangue no exato momento, para que a vida de um vampiro se desenvolvesse no corpo de uma Companheira de Raça.
Normalmente, os casais que desejavam conceber se deleitavam em um ato deliberado e sensual de criar uma vida. Neste caso, não. Aqui embaixo, com a selvagem criatura alienígena levada à loucura por conta da fome, da dor e do confinamento, a concepção era um jogo de vida e morte. Baixas, como a de hoje, eram parte da equação. Mortes deviam ser esperadas.
Mas êxitos haviam sido alcançados. E isso fazia os riscos valerem a pena. Para cada Companheira de Raça morta no processo, duas outras tinham saído vivas... E com as sementes de uma nova geração plantada em seus úteros.
O cuidador do Antigo sorriu secretamente, apesar da perda do dia.
Aquela nova geração poderosa já estava florescendo, a maioria em segredo.
E a obediência daqueles novos seres pertencia inteiramente a ele.
CONTINUA
Capítulo 14
Era muito estranho estar outra vez no complexo, mas, para Rio, o mais surreal era entrar novamente em seus aposentos dentro da sede subterrânea da Ordem, localizada no subúrbio de Boston.
Dante e Chase tinham ido para o laboratório de alta tecnologia logo que chegaram, deixando Rio a sós com Dylan. O guerreiro espanhol imaginou que os outros companheiros queriam lhe dar a oportunidade de ele se reencontrar com sua antiga vida – a vida que Eva havia lhe roubado um ano atrás com aquela maldita traição.
Rio não colocava os pés no complexo havia muito tempo, mas o lugar estava exatamente como ele se lembrava. Exatamente como ele tinha deixado antes da explosão no armazém que o mandara para a enfermaria do complexo por vários meses para enfrentar uma difícil recuperação – uma recuperação que não tinha sido, de modo algum, completa.
Aqueles aposentos, que uma vez Rio dividira com Eva, eram como uma espécie de cápsula do tempo. Tudo estava congelado em seu lugar desde aquela noite infernal quando Rio e seus companheiros tinham saído para acabar com um bando de Renegados sem imaginarem que estavam indo diretamente para uma emboscada mortal – uma emboscada orquestrada pela mulher que era uma Companheira de Raça... sua companheira.
E também fora ali, naquele mesmo lugar que, depois de ter sua traição descoberta e denunciada, Eva tinha cortado a própria garganta.
Ela se suicidou sobre a cama de Rio na enfermaria, mas era ali, em seu quarto, que Rio sentia mais a sua presença: o toque de Eva estava por todas as partes, desde as obras de arte extravagantes que ele tinha, a contragosto, permitido pendurar nas paredes antes vazias, até os inúmeros espelhos espalhados por todo o quarto, perto do closet e aos pés da enorme cama.
Rio conduziu Dylan pela elegante sala de estar, atravessando as portas cobertas por cortinas que levavam à suíte do dormitório. Ele se viu refletido no espelho enquanto, com todo o cuidado, deixava a delicada mulher sobre cama de dossel coberta por lençóis cor ameixa escura. Recuou diante do rosto moreno e arruinado do desconhecido que lhe devolvia o olhar. Mesmo vestido com as roupas elegantes que Reichen havia lhe dado, ele ainda parecia um monstro e a sensação apenas aumentava quando comparada à beleza adormecida em seus braços e totalmente à sua mercê.
Ele era um monstro e não podia jogar a culpa daquilo somente em Eva. Afinal, ele tinha nascido uma besta, um assassino, e agora simplesmente também se parecia um pouco mais com aquilo. Dylan se moveu um pouco assim que ele a colocou no colchão e ajeitou um dos macios travesseiros sob sua cabeça.
– Acorde agora – ele disse, roçando a mão brandamente na testa da mulher. – Você já descansou o suficiente, Dylan. Está na hora de despertar.
Ele não precisava acariciar o rosto dela para tirá-la do transe. Ele não precisava deslizar as pontas de seus dedos másculos sobre aquela pele aveludada e decorada com pequenas e encantadoras sardas. Ele não precisava demorar seu toque ao longo da delicada linha de sua mandíbula... Rio, todavia, não conseguiu deixar de aproveitar ao máximo aquela oportunidade única de fazer tudo isso.
As pálpebras de Dylan se abriram, seus cílios castanhos se levantaram e, de repente, Rio se viu capturado pela luz verde-dourada daquele olhar. Ele imediatamente afastou a mão do rosto de Dylan, mas não pôde deixar de notar que ela tinha se dado conta da liberdade que ele tomara. Ela, todavia, não demonstrou alteração alguma, simplesmente soltou um suave sopro de ar por seus lábios entreabertos.
– Estou com medo – ela sussurrou com uma voz baixa por causa do longo sono em que ele a tinha colocado. Dylan não tinha consciência do transe ou da viagem. Para sua mente humana, ela ainda estava no Refúgio de Reichen, uma vez que sua mente tinha sido colocada em suspensão momentos antes da partida para Boston. – Estou com medo do lugar para onde você está me levando...
– Já estamos aqui – disse Rio. – Acabamos de chegar.
O pânico tomou conta do olhar de Dylan.
– Onde...
– Eu a trouxe para a sede da Ordem. Você está segura aqui.
Dylan lançou um olhar ao seu redor, tentando entender onde estava.
– É aqui que você mora? – perguntou.
– É aqui que eu costumava morar. – Rio se levantou e se afastou da cama. – Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, basta pedir.
– Que tal uma carona até minha casa em Nova York? – ela disse. Sua consciência estava obviamente voltando ao normal. – Ou talvez um GPS mostrando onde estamos agora... Pode deixar que eu me viro para encontrar o caminho para casa.
Rio cruzou os braços sobre o peito enorme e musculoso.
– Esta é sua casa agora, Dylan. Como você é uma Companheira de Raça, será tratada com todo o respeito e reverência. Terá comida, conforto e tudo mais o que precisar. Você não vai ser trancada nesse quarto, mas eu posso lhe garantir que não há para onde você correr, caso isso venha a passar por sua cabeça. O complexo é inteiramente seguro. Meus companheiros e eu não vamos machucá-la, mas se você tentar deixar esses aposentos, nós saberemos antes de você dar o primeiro passo no corredor. Se você tentar fugir, vou encontrá-la, Dylan.
Ela ficou em silêncio por um longo momento enquanto ouvia aquele enorme homem falar e media cada uma de suas palavras.
– E então, o que vocês vão fazer comigo? Me segurar e morder minha garganta?
Jesus Cristo!
Rio sentiu todo o seu sangue drenar de sua cabeça ao simples pensamento daquilo. Ele sabia que para ela aquilo deveria ser um ato de extrema violência, mas, para ele, a imagem de segurar Dylan sob seu corpo enquanto ele perfurava delicadamente a pele macia de seu pescoço com suas presas era um ato inteiramente sensual.
O desejo percorreu seu corpo em uma espiral ardente e se concentrou imediatamente no meio de suas pernas. Ele ainda podia sentir a pele sedosa de Dylan em seus dedos e agora era outra parte de seu corpo que desejava imensamente, incontrolavelmente, conhecer o toque da pele daquela mulher em sua frente. Rio se virou, irritado com a rápida reação a Dylan que seu corpo esboçava.
– Quando eu estava em Jicín, ouvi uma história sobre um homem que foi atacado por um demônio. Um velho fazendeiro que testemunhou tudo disse que o tal demônio descia da montanha para se alimentar. Para beber sangue humano.
Rio ficou ali, encarando a porta em sua frente enquanto Dylan falava. Ele sabia a qual noite ela estava se referindo, ele se lembrava dela claramente, pois aquela tinha sido a última vez que ele tinha se alimentado. Fazia mais de duas semanas que ele não se alimentava quando foi até aquela humilde fazenda perto da floresta, na base da montanha.
Ele estava faminto e aquilo o deixou descontrolado. Um homem idoso apareceu, viu o ataque, viu Rio com os dentes cravados no pescoço de outro homem. Aquele foi um deslize, uma imprudência, e aquela interrupção tinha sido a única coisa responsável por salvar a vida da caça de Rio de sua fome incontrolável. Se aquele velho homem não tivesse aparecido, certamente o outro teria morrido. Rio tinha deixado de caçar naquela noite, aterrorizado com o que tinha se tornado.
– Foi um exagero, não é mesmo? – A voz de Dylan tornou-se lentamente mais calma durante o silêncio que Rio lhe deu como resposta. – Você não fez aquilo, fez, Rio?
– Fique à vontade – ele grunhiu, enquanto saía. Antes, porém, ele pegou a bolsa em que estavam o laptop e a câmera digital de Dylan. – Há algumas coisas que preciso fazer.
Rio não esperou que Dylan protestasse ou dissesse uma palavra mais, apenas sabia que precisava sair dali. Agora. Uns poucos passos o levariam para as portas abertas e à luxuosa sala de estar que atravessara minutos antes carregando Dylan em seus braços.
– Rosario...?
Ele parou ao som da voz dela em suas costas. Franziu a sobrancelha, virou a cabeça e voltou o olhar para a mulher, que agora tinha se levantado da cama e estava apoiada em seus cotovelos.
Madre de Dios, ela estava deliciosamente atraente, um tanto quanto despenteada, um tanto quanto sonolenta. Não demorou muito para Rio imaginar que talvez fosse daquela forma que Dylan deveria parecer depois de uma noite de sexo ardente. O fato de ela estar deitada sobre aqueles lençóis de seda de cor ameixa da cama de Rio apenas deixava a imagem ainda mais erótica.
– O quê? – a voz do homem enorme era um chiado que mal passava por sua garganta masculina.
– Seu nome – ela disse, como se ele devesse saber do que ela estava falando. A mulher, então, inclinou a cabeça enquanto estudava atenciosamente o quarto. – Você me disse que Rio é apenas parte de seu nome, então eu imaginei que talvez pudesse ser um apelido para Rosario.
– Não.
– Então qual é? – Quando ele não respondeu imediatamente, suas sobrancelhas castanho-claras juntaram-se, obviamente impacientes pela resposta. – Depois de tudo o que você me contou nos últimos dias, que problema teria em me dizer seu nome?
Ele escarnecia interiormente enquanto se lembrava de todos os nomes pelos quais tinha sido chamado desde que nascera. Nenhum deles era gentil, para dizer o mínimo.
– Por que isso é tão importante?
Ela sacudiu a cabeça, erguendo levemente os ombros magros.
– Não é importante. Suponho que simplesmente tenho curiosidade de saber mais sobre você. Para saber quem você realmente é.
– Você já sabe o suficiente – ele disse. Um leve xingamento escapou por sua boca. – Confie em mim, Dylan. Você não vai querer saber nada mais sobre mim além do que já sabe.
Mas Rio estava equivocado, pensou Dylan, enquanto observava o enorme corpo daquele homem afastar-se e atravessar a porta da ampla suíte. Ele fechou a porta e deixou a mulher sozinha na suave iluminação dos aposentos.
Ela virou o corpo na enorme cama, suas pernas estavam trêmulas como se fizesse muito tempo que não as usava, como se ela tivesse ficado ao relento durante boa parte de uma noite de inverno. Se o que ele disse era verdade – que eles tinham deixado Berlim e estavam agora nos Estados Unidos – então, ela pensou, faltava-lhe pelo menos nove horas de memória consciente.
Seria aquilo realmente possível?
Será que ele realmente a havia colocado em uma espécie de transe por todo aquele tempo?
Ela tinha ficado surpresa ao sentir os dedos de Rio acariciando seu rosto quando despertou. Aquele contato parecia tão suave, tão protetor e tão quente. Mas também tinha sido muito fugaz, tinha sido interrompido tão logo ele se dera conta de que ela estava acordando, tão logo notara que ela estava percebendo o que acontecia. Será que ele também percebeu que ela estava gostando?
Não, Dylan não queria sentir o calor de Rio, tampouco queria demonstrar algum calor para ele, mas ela não conseguia negar que havia algo de eletrizante na maneira como ele a olhava. Havia algo inegavelmente sedutor na maneira como ele a tocava. Ela queria saber mais sobre aquele homem – ela precisava saber mais sobre aquele homem. Afinal de contas, como sua prisioneira, seria de seu maior interesse saber qualquer coisa que pudesse a respeito do homem que a mantinha como refém. Como jornalista em busca – ou à espera – de uma grande matéria, era obrigação dela juntar até os mais insignificantes fatos e perseguir a verdade até o fim. Entretanto, era seu interesse como mulher o que mais incomodava Dylan.
Era aquele desejo mais íntimo e pessoal de saber mais sobre o tipo de homem que Rio era que fazia com que ela vagasse de um lado para o outro naqueles aposentos chiques. A decoração era exuberante e sensual, uma explosão de cores brilhantes que iam desde a roupa de cama de seda, da cor de ameixas maduras, até o tom dourado da pintura que cobria as paredes. Uma coleção de pinturas abstratas, tão brilhantes e gritantes que chegavam a fazer os olhos de Dylan doer, cobriam uma parede inteira da suíte luxuosa. Outra parede ostentava um espelho com uma moldura exuberante e obviamente caríssima. E o objeto estava colocado estrategicamente de modo a refletir os quatro lados da cama de dossel e tudo o que, por ventura, pudesse estar acontecendo em cima daqueles lençóis. Excitante.
– Sutil... – murmurou Dylan, girando os olhos enquanto se aproximava de um par de portas duplas que havia do outro lado do quarto. Ela as abriu e ficou de boca aberta quando percebeu que se tratava do closet... Um closet que tinha mais metros quadrados do que todo o seu apartamento no Brooklin.
– Santo Deus!
Ela entrou e imediatamente se deu conta de que havia mais espelhos ali dentro – e por que você não iria querer admirar-se em todos os ângulos possíveis quando tinha metade da Chanel à sua disposição?
Dylan ficou tentada a perscrutar aquele lugar que deveria ter milhares de dólares em roupas e sapatos assinados por estilistas famosos, mas um pensamento triste logo tomou conta de sua mente: apenas um quarto do armário tinha roupas masculinas. O resto todo pertencia a uma mulher. Uma mulher pequena, delicada, cujo gosto era, obviamente, muito caro. Aqueles aposentos poderiam ser de Rio, mas certamente ele não vivia ali sozinho.
Mas que merda! Será que ele era casado?!
Dylan deu meia-volta e saiu do closet, fechando bruscamente a porta e intimamente desejando nunca ter entrado ali. Dirigiu-se para a sala, observando atentamente cada detalhe e inegavelmente percebendo que havia um toque feminino em todos os cantos para os quais olhava. Nada se parecia nem de longe com seu estilo, mas, afinal, o que Dylan sabia sobre design de interiores mesmo? Não muito. Sua melhor peça de mobília era um sofá-cama que ela comprara de segunda mão.
Dylan deixou a mão percorrer o encosto de uma nogueira esculpida como uma cadeira enquanto observava a mobília declaradamente elegante do lugar. Ela se aproximou de um sofá de veludo dourado e parou enquanto seu olhar capturava uma pequena coleção de fotografias emolduradas minuciosamente expostas na mesa que havia atrás do sofá.
A primeira coisa que viu foi uma fotografia de Rio. Ele estava sentado no banco do passageiro de um clássico Thunderbird conversível que tinha sido estacionado sob a luz da lua em alguma praia deserta. Ele vestia uma camisa de seda preta – desabotoada, obviamente – e uma calça da mesma cor; suas coxas estavam ligeiramente separadas em um “V” casual e os dedos de seus pés descalços estavam inocentemente enterrados na areia branca enquanto seu olhar topázio escuro brilhava com uma espécie de sabedoria oculta e privada, e seu sorriso nebuloso o tornava igualmente perigoso e atraente.
Jesus Cristo, ele era lindo.
Para dizer a verdade, ele era muito mais do que lindo.
A foto não parecia antiga. Não havia cicatrizes no lado esquerdo do rosto dele, de modo que a lesão que ele sofrera devia ser bastante recente. Seja lá o que tenha roubado sua aparência clássica e incrivelmente atraente, a maior tragédia parecia ser a fúria que Rio havia dentro de si. Dylan olhou para a fotografia de Rio em dias felizes, e se perguntou como ele poderia ter mudado tanto desde aquela época.
Ela então olhou para outra fotografia, essa sim, antiga. Era uma imagem profissional em tons de sépia de uma mulher com os cabelos negros vestindo um bufante vestido vitoriano de gola alta. Dylan se inclinou para poder ter uma visão melhor enquanto se perguntava se aquela beleza exótica com sorriso tímido poderia ser, de repente, a avó de Rio. Os olhos escuros da modelo encaravam direta e fixamente a lente da câmera, lançando um olhar de pura sedução. Ela era bela, a mulher da fotografia, apesar da moda recatada de sua época.
E seu rosto... seu rosto parecia extremamente familiar.
– Ah, meu Deus!
A incredulidade, assim como o absoluto deslumbramento, inundou Dylan conforme ela deslizava o olhar para outra fotografia que havia na mesa. Esta, uma imagem colorida, obviamente tirada na última década ou menos... e na qual a mesma mulher da foto antiga também era modelo. Essa última imagem, tirada durante a noite, mostrava uma mulher de pé em uma ponte de pedra no meio de um parque, rindo enquanto seus belos e longos cabelos negros balançavam em sua cabeça. Ela parecia feliz, mas Dylan viu uma tristeza em seus olhos escuros – dolorosos segredos profundamente escondidos em seu olhar castanho-escuro que estava fixo em quem quer que estivesse tirando a foto.
E Dylan reconhecia aquele rosto, ela tinha certeza de que sim... Sim, ela percebia agora, e não era apenas da série de fotografias espalhadas naquela mesa e que a jornalista acabara de ver... Não, aquele rosto era familiar. Dylan já o tinha visto, sim, ela o reconhecia agora porque já o tinha visto na montanha, em Jicín. Aquele era, definitivamente, o rosto da mulher morta. A bela – e morta – mulher que a havia conduzido à caverna onde ela encontrara Rio – Dylan se dava conta disso agora – era esposa dele.
Capítulo 15
Era quase como se ele nunca tivesse deixado aquele local.
Rio estava no laboratório de alta tecnologia do complexo, cercado por Lucan, Gideon e Tegan, que o tinham saudado e oferecido um aperto de mão – sinal da amizade e da confiança verdadeiras.
O aperto de mão de Tegan se prolongou por mais tempo. Rio sabia que o forte guerreiro com cabelos acobreados e olhos esmeraldas era capaz de ler sua culpa e suas incertezas por meio da ligação entre suas mãos. Esse era o dom de Tegan, adivinhar as verdadeiras emoções com apenas um toque.
Ele deu um aceno quase imperceptível com a cabeça.
– Coisas ruins acontecem, meu amigo. E Deus sabe que todos nós temos nossos demônios tentando nos passar a perna. Então, ninguém está aqui para julgá-lo. Entendeu?
Rio assentiu com a cabeça enquanto Tegan soltava sua mão. Ao entregar a bolsa de Dylan a Gideon, o vampiro recém-chegado observou a parte posterior do laboratório, onde Dante e Chase limpavam suas armas para usá-las durante a noite. Dante ofereceu uma pequena saudação com o queixo, mas o olhar de aço de Chase deixava claro que ele não sabia o que pensar quando o assunto era Rio. Um homem inteligente. Rio imaginou que a reação do ex-agente fosse, provavelmente, a sua própria reação caso a situação fosse inversa e fosse Chase quem estivesse voando naquele jato em busca de resgate.
– Quanto a mulher sabe a nosso respeito? – perguntou Lucan.
Com novecentos anos de idade e fazendo parte da Primeira Geração da Raça, o fundador da Ordem e líder formidável poderia controlar toda uma sala com apenas um movimento de suas sobrancelhas negras. Rio o considerava um amigo – todos os guerreiros eram tão próximos que pareciam até mesmo familiares uns dos outros – e Rio odiava com todas as suas forças a possibilidade de tê-lo decepcionado.
– Só dei a ela as informações básicas – respondeu Rio. – Não acredito que ela esteja completamente convencida.
Lucan grunhiu, assentindo pensativamente.
– Realmente, são muitas informações para ela processar. Ela entende o propósito da cripta na montanha?
– Na verdade, não. Ela me ouviu chamando aquilo de câmara de hibernação quando Gideon e eu estávamos conversando, mas não sabe nada além disso. Pode ter certeza de que não pretendo dar mais nenhuma pista a ela. O fato de ela ter visto aquilo já é ruim demais. – Rio exalou um suspiro duro. – Ela é inteligente, Lucan. Não acredito que vá levar muito tempo para juntar as peças do quebra-cabeça.
– Então será melhor agirmos logo. Quanto menos detalhes tivermos que esclarecer posteriormente, melhor – explicou Lucan. Ele lançou um olhar a Gideon, que tinha aberto o laptop de Dylan no console ao seu lado. – Quão difícil acredita que será hackear e acabar com as fotos que ela enviou por e-mail?
– Apagar os arquivos da câmera e do computador é fácil. Demora apenas alguns segundos.
– E quanto a apagar as fotos da caixa de entrada daqueles que as receberam?
Gideon franziu o rosto como se estivesse calculando a raiz quadrada da renda líquida de Bill Gates.
– Algo como dez minutos para enviar uma bomba e estourar o disco rígido de todos os computadores da lista de contatos dela. Treze minutos se você quiser algo mais sutil.
– Eu não estou nem aí com o fator sutileza. – Lucan deixou claro. – Faça o que for necessário para destruir as fotos e destruir qualquer referência escrita ao que ela encontrou na montanha.
– Pode contar comigo – respondeu Gideon, que já se encontrava fazendo sua magia em ambos os dispositivos.
– Podemos destruir os arquivos eletrônicos, mas ainda teremos de tratar com as pessoas com quem ela manteve contato sobre a caverna – esclareceu Rio. – Além do chefe dela, há três mulheres com quem ela estava viajando. E também a mãe dela.
– Vou deixar isso para você – disse Lucan. – Não me importa como você vai fazer isso. Faça-a negar a história, acabe com a credibilidade dela ou saia para encontrar as pessoas com quem ela conversou e apague a memória de cada uma delas. A decisão é sua, Rio. Simplesmente dê um jeito na situação, como sei que você vai fazer.
Rio assentiu.
– Eu lhe dou minha palavra, Lucan. Vou consertar a situação.
A expressão do vampiro da Primeira Geração era tão sombria quanto segura.
– Não duvido de você. Nunca duvidei e nunca duvidarei.
A confiança de Lucan era inesperada, e um presente que Rio não tinha intenção de desperdiçar, independentemente de quão destruído ele soubesse estar. Durante muitos anos, a Ordem e os guerreiros que a serviam eram seu principal propósito na vida – inclusive acima de seu amor por Eva, o que acabou gerando um ressentimento silencioso, porém colérico, nela. Rio estava comprometido com até o último destes homens – como se eles fossem seus parentes de sangue –, comprometido a lutar por eles e, inclusive, a morrer por eles. Ele olhou em volta, sentindo-se humilde pelos rostos sombrios e corajosos dos cinco homens da Raça que ele sabia, sem dúvida alguma, que também dariam suas vidas por ele.
Rio limpou a garganta, sentindo-se desconfortável com as boas vidas praticamente unânimes de seus irmãos. Do outro lado do laboratório, as portas de vidro se abriram quando Nikolai, Brock e Kade chegaram, vindos do corredor. Os três conversavam com empolgação, trazendo um ar de camaradagem quando entraram no laboratório.
– Oi! – disse Niko, lançando a saudação para ninguém em particular. Seus olhos azuis como o gelo pararam em Rio por um segundo antes de ele finalmente olhar para Lucan e começar a detalhar a patrulha da noite. – Acabamos com um Renegado perto do rio há mais ou menos uma hora. O filho da mãe estava escondido em um contêiner de lixo quando o encontramos.
– Você acha que é um dos cachorros de Marek? – perguntou Lucan, referindo-se ao exército de Renegados que seu próprio irmão vinha criando até a Ordem finalmente intervir. Marek tinha morrido pelas mãos da Ordem, mas os vermes de seu exército ainda precisavam ser exterminados.
Nikolai ofereceu um aceno com a cabeça.
– O desgraçado não era um soldado, mas apenas um viciado tentando satisfazer sua sede de sangue. Imagino que só tenha passado algumas poucas noites fora do Refúgio Secreto. E nós o liquidamos facilmente. – O vampiro russo olhou atrás de Rio e lançou um sorriso desajeitado para Dante e Chase. – Alguma ação no lado Sul?
– Não, nada – murmurou Chase. – Estávamos muito ocupados buscando alguém no aeroporto.
Nikolai grunhiu, compreendendo o comentário e lançando um olhar em direção a Rio.
– Faz tempo, hein cara?! É bom ver que você continua inteiro.
Rio conhecia aquele cara muito bem para pensar que o comentário era amistoso. De todos os guerreiros da Ordem, Rio esperava que fosse Nikolai o primeiro na fila para defendê-lo – mesmo se Rio fosse ou não digno de defesa. Niko era o irmão que Rio nunca tivera. Os dois tinham nascido no século anterior e entrado para a Ordem em Boston na mesma época.
Era estranho Niko estar ausente durante a chegada de Rio ao complexo. No entanto, conhecendo o vampiro e seu amor pelo combate, ele provavelmente estava irritado com o fato de sua equipe de patrulha ter sido reduzida algumas horas antes do amanhecer.
Antes que Rio pudesse dizer qualquer coisa a seu velho amigo, a atenção de Nikolai voltou a Lucan.
– O Renegado que encontramos esta noite era jovem, mas a matança que ele tinha deixado para trás parecia ser trabalho de mais de um vampiro. Eu gostaria de retornar lá amanhã e verificar as redondezas. Talvez encontremos mais alguma coisa.
Lucan assentiu:
– Parece uma boa ideia.
Depois de resolver isso, Niko dirigiu sua atenção para Kade e Brock:
– Temos tempo suficiente antes do amanhecer para caçar um pouco. Alguém aí se sentiu com sede de repente?
Os olhos de Kade brilharam como mercúrio.
– Há um lugar em North End que deve ser bem interessante. Lá há um monte de jovens no ponto certo.
– Pode contar comigo – disse Chase com palavras arrastadas, saindo de sua cadeira ao lado de Dante para unir-se aos outros três vampiros não comprometidos conforme eles começavam a caminhar na direção da saída do laboratório.
Por um instante, Rio os observou partir. Entretanto, quando viu Nikolai sair junto aos outros, xingou em voz baixa e, logo depois, correu atrás dele.
– Niko, espere.
O guerreiro seguiu seu caminho, como se não tivesse ouvido nada.
– Espere, cara. Caramba, Nikolai. Que diabos está acontecendo com você?
Quando Chase, Brock e Kade pararam para olhar atrás, Niko acenou para que eles continuassem. Os três seguiram seu caminho, virando no canto do corredor e desaparecendo de vista. Depois de uns poucos segundos, finalmente, Niko deu meia-volta.
O rosto que olhava para Rio no túnel branco era duro e incompreensível.
– Sim. Estou aqui. O que você quer?
Rio não sabia como responder àquilo. A hostilidade saiu da boca de seu velho amigo como um vento frio de inverno.
– Fiz algo que o incomodou?
O som da risada de Nikolai raspava contra as paredes de mármore.
– Vá se ferrar, cara.
Nikolai deu meia-volta e começou a se afastar novamente.
Rio o alcançou em um piscar de olhos. Estava a ponto de agarrar o ombro do guerreiro e obrigá-lo a parar, mas Niko se movimentou com mais agilidade. O vampiro russo virou-se e golpeou Rio, acertando-o no esterno, fazendo-o bater a coluna contra a sólida parede no outro lado do corredor.
– Você quer morrer, seu filho da mãe? – Niko estava com os ombros entreabertos, a cor âmbar acesa como resultado de toda aquela ira. – Se você quer se matar, é problema seu. Só não peça a minha ajuda, está bem?
Os músculos de Rio estavam retesados e prontos para uma briga. Seus instintos de combate se tornaram mais aguçados, apesar de ele estar enfrentando um aliado de longa data. No entanto, enquanto Nikolai falava, a fúria que cresceu em Rio rapidamente se reduziu. De repente, a cólera que Niko sentia contra ele fez sentido. Afinal, Nikolai sabia que Rio tinha ficado naquela montanha da Boêmia com intenções de acabar com a própria vida. Se Niko não tinha se dado conta disso cinco meses atrás, agora ele tinha certeza.
– Você mentiu para mim – esbravejou Niko. – Você me olhou diretamente nos olhos e mentiu para mim, cara. Você nunca ia voltar para a Espanha. O que pretendia fazer com o C-4 que eu dei para você? Você pretendia detonar aquela droga presa ao seu corpo, como se fosse um camicase se divertindo. Ou talvez você só estivesse planejando se prender no interior daquela maldita caverna e ficar lá, esquecido por toda a eternidade. O que você ia fazer, amigo? Como você pretendia acabar com a própria vida?
Rio não respondeu. Não era necessário. De todos os guerreiros da Ordem, Nikolai era o que melhor o conhecia. Nikolai tinha visto Rio como o covarde e fraco que ele realmente era. Só ele sabia o quão próximo Rio tinha estado de dar um fim a tudo – antes mesmo de ele chegar àquela montanha tcheca.
Tinha sido Niko quem se negara a deixar Rio mergulhar no ódio que sentia de si. E, então, evitar que entrasse naquela espiral de negatividade tinha se tornado sua missão pessoal. Niko, que ajudou Rio a subir na montanha nas semanas que se seguiram, caçando para o amigo que estava fraco demais para cuidar dele mesmo. Nikolai, o irmão que Rio nunca tivera.
– Sim – disse Niko, fechando uma carranca. – Como disse. Vá se ferrar.
Ele tirou o braço do peito de Rio e se afastou, ainda rangendo alguns xingamentos. Rio o viu se distanciar. Os sapatos de Niko pareciam mastigar o piso de mármore polido quando ele se apressou para juntar-se aos outros guerreiros que já estavam a caminho do piso superior.
– Que droga! – murmurou Rio, correndo a mão pelos cabelos.
O choque com Nikolai era só mais uma evidência de que ele não devia ter retornado a Boston – mesmo que isso significasse jogar o problema Dylan Alexander nas mãos de outra pessoa. Rio já não se encaixava ali. Agora ele era um estranho, um elo fraco em meio a uma cadeia de aço, formada pelos corajosos guerreiros da Raça.
Ainda agora ele conseguia sentir suas têmporas latejarem por conta da descarga de adrenalina que tinha ocorrido alguns minutos atrás, quando parecia que Niko queria cortá-lo em pedaços. Sua visão começou a tremer enquanto ele estava parado ali. Se não se movesse e encontrasse um local privado para aguentar a crise mental que estava por vir, Rio sabia que seria questão de minutos antes que acordasse caído sobre o mármore que revestia o chão do corredor. E, francamente, ver Lucan e aos outros saírem do laboratório para olhá-lo fixamente como se ele fosse um moribundo era algo que não queria experimentar.
Ele forçou suas pernas a se movimentarem e, com uma dificuldade acentuada, conseguiu encontrar o caminho de volta até seus aposentos. Entrou, cambaleando, e fechou a porta. Em seguida, entregou-se a uma nova sensação de náusea que o invadiu.
– Você está bem?
A voz feminina vinha de algum ponto distante naquele cômodo. A princípio, não a reconheceu. Seu cérebro estava lutando para realizar as tarefas básicas. Aquela voz brilhante e cristalina não parecia pertencer àquele lugar cheio de lembranças antigas e empoeiradas.
Rio se distanciou da porta e se arrastou pela sala, em direção ao quarto. Seu cérebro transmitia a impressão de que se despedaçaria a qualquer momento.
Água quente. Escuridão. Tranquilidade. Ele precisava dessas três coisas. Imediatamente.
Rio tirou a camisa e a deixou cair no ridículo sofá de veludo de Eva. Ele realmente tinha que queimar todos seus pertences. E era uma pena que ele não tinha como jogar aquela maldita traidora na fogueira junto com todo o resto.
Rio se agarrou à sua fúria pela traição de Eva, um leve castigo, mas aquilo era tudo o que tinha no momento. Abriu as portas do quarto e ouviu um leve suspiro vindo lá de dentro.
– Meu Deus! Rio, você está bem?
Dylan.
O nome dela atravessava como um bálsamo a névoa que envolvia a mente de Rio. Ele levantou o olhar na direção de sua convidada indesejada, que agora estava sentada no canto da cama com algo plano e retangular apoiado em seu colo. Ela deixou o objeto de lado, no criado-mudo, e se aproximou antes que os joelhos dele cedessem.
– Banho – ele conseguiu grunhir.
– Você mal consegue parar em pé – Dylan o ajudou a alcançar a cama, onde ele rapidamente deixou o corpo cair. – Parece que você precisa de um médico. Há alguém aqui que possa ajudá-lo?
– Não – ele respondeu com uma voz rouca. – Uma ducha...
Rio estava fraco demais para usar sua habilidade mental da Raça e abrir o registro da água, mas ele não precisou sequer tentar. Dylan já estava se apressando na direção do banheiro ao lado. Ouviu o forte estalar da água batendo contra o chão e, em seguida, os suaves passos de Dylan no carpete enquanto ela retornava para onde estava caído, com o corpo virado na direção dos pés da cama.
Rio percebeu vagamente a desaceleração dos passos da mulher conforme ela se aproximava. Apenas escutou a respiração rápida logo acima de seu corpo. Mas era impossível confundir quem estava ali quando ela soltou, com a respiração trêmula, alguns palavrões. Um silêncio pesado e demorado se seguiu ao xingamento sussurrado. Em seguida:
– Rio... Meu Deus! Por que tipo de inferno você passou?
Lançando mão até mesmo da última gota de força que tinha, ele conseguiu abrir os olhos. Um erro enorme. O horror que ele viu nos olhos de Dylan era inegável. Ela estava olhando o lado esquerdo de seu corpo... O peito e o torso, que tinham sido destruídos por uma granada que quase esfolou seus ossos com as chamas da explosão que por pouco não lhe tirara a vida.
– Ela... – suave voz de Dylan foi se tornando cada vez mais fraca. – Sua esposa tem algo a ver com o que aconteceu com você?
Rio sentiu seu coração parar de bater. O sangue que antes pulsava fortemente em seus ouvidos se transformou em gelo quando ele conseguiu se concentrar na pergunta de Dylan. A preocupação estampava seu rosto.
– Ela fez isso com você, Rio?
Ele seguiu a mão estendida de Dylan enquanto ela alcançava o objeto que tinha deixado no criado-mudo. Era uma fotografia em um porta-retratos. Rio não precisava ver a foto no vidro para saber que era de Eva, de um passeio que eles tinham feito no Charles River certa noite. Eva, sorrindo. Eva, dizendo o quanto o amava. Enquanto, em suas costas, ela conspirava com os inimigos da Ordem para conquistar seus objetivos egoístas.
Rio grunhiu quando pensou em sua própria burrice. Em sua própria cegueira.
– Isso não é da sua conta – murmurou, ainda à deriva da escuridão que tomava conta de sua mente. – Você não sabe nada a respeito dela.
– Foi ela quem me levou até você. Eu a vi na montanha em Jicín.
Uma suspeita irracional transformou a ira de Rio em um sentimento letal.
– Do que você está falando? Como assim, você a viu?
Dylan engoliu em seco e encolheu levemente o ombro. Em seguida, segurou a fotografia diante dele.
– Eu a vi... O espírito dela estava lá. Ela estava na montanha com você.
– Você só pode estar mentindo – ele grunhiu. – E não me fale dessa mulher. Ela está morta, e merecidamente.
– Ela pediu que eu o ajudasse, Rio. Ela me procurou. Queria que eu salvasse você...
– Já disse para você parar de falar dela! – ele esbravejou.
A raiva fez com que o corpo de Rio estremecesse no colchão como uma víbora sendo atacada. Ele puxou o retrato das mãos de Dylan e o atirou pelo quarto com uma velocidade impressionante. O objeto bateu contra o enorme espelho na parede de frente com a cama, quebrando-o com o impacto e lançando cacos de vidro polido como uma chuva de lâminas.
Rio ouviu o grito de Dylan, mas foi somente quando ele sentiu o cheiro adocicado do sangue dela que se deu conta do que tinha feito.
Ela levou a mão até a maçã do rosto e, quando seus dedos se afastaram, estavam manchados de vermelho por conta de um pequeno ferimento logo abaixo do olho esquerdo.
Foi a visão daquela ferida que tirou Rio daquele espiral de depressão. Como um balde de água fria jogada sobre sua cabeça, ver Dylan ferida o puxou instantaneamente de volta para a realidade.
– Ah, Jesus Cristo! – disse ele com dentes apertados. – Eu sinto muito... Sinto muito!
Ele se moveu para tocá-la, para verificar o quanto a tinha ferido, mas ela se afastou com os olhos completamente aterrorizados.
– Dylan... eu não queria...
– Fique longe de mim!
Ele estendeu a mão, buscando demonstrar que realmente não queria feri-la.
– Não – ela estremeceu enquanto sacudia violentamente a cabeça. – Ah, meu Deus. Não me toque!
Madre de Dios.
Ela agora o olhava com um terror absoluto. E tremia. Seus olhos estavam fixos nele, banhados de medo e confusão.
Quando Rio passou a língua pelas pontas de suas presas salientes, ele entendeu a fonte do terror que Dylan sentia. Ele se levantou diante dela. Ela temia porque ele lhe tinha dito ser um vampiro, embora aquela mente humana tivesse se recusado a acreditar.
Agora, todavia, ela acreditava.
Dylan estava vendo a verdade com seus próprios olhos, as mudanças físicas no corpo de um louco cheio de cicatrizes que agora se transformava em uma criatura saída diretamente de seus piores pesadelos. Era impossível esconder as presas que se tornavam mais longas conforme a fome por ela se intensificava. Era impossível mascarar o afinamento daquelas pupilas conforme o brilho âmbar da sede de sangue embaçava sua visão.
Ele olhou para o pequeno corte, para o fio de sangue que escorria tão vermelho contra a pele macia da bochecha de Dylan. E ele mal conseguia formular um pensamento coerente.
– Eu tentei contar para você, Dylan. Isso é o que eu sou.
Capítulo 16
– Vampiro.
Dylan ouviu a palavra escapar por seus lábios, apesar do fato de mal poder acreditar no que estava vendo – ou dizendo.
Em questão de instantes, Rio tinha se transformado diante dos olhos de Dylan e ela olhava chocada as mudanças que acabara de presenciar. As íris dos olhos dele brilhavam como brasas e não tinham mais a cor topázio habitual. Em vez disso, estavam estampadas com uma inacreditável sombra âmbar que praticamente engolia as pupilas extremamente reduzidas. Os ossos da face de Rio pareciam mais duros agora, ostentando as esguias maçãs do rosto e uma mandíbula quadrada que parecia ter sido esculpida em pedra.
E, atrás do suculento e exuberante corte formado por sua boca, Rio exibia um par de presas que pareciam ter saído diretamente de algum filme de Hollywood.
– Você... – A voz de Dylan desapareceu conforme aqueles hipnóticos olhos cor de âmbar a encararam. Ela se sentou delicadamente na beirada da cama. – Meu Deus... Você realmente é um...
– Eu sou da Raça – ele pronunciou calma e articuladamente. – Exatamente como lhe disse.
Dylan estava sentada diante de Rio, e agora sua visão era preenchida completamente pela ampla musculatura do peito nu do vampiro. O intrincado desenho na pele dos antebraços subia pelos ombros de Rio e descia ao longo de seu peitoral. Todas as marcas – dermoglifos, como ele havia chamado da primeira vez em que ela as percebera – eram de uma cor vívida agora, a cor mais escura que Dylan já as tinha visto ostentar. Tramas profundas de cor púrpura e negra saturavam os belos desenhos e as linhas em forma de arcos.
– Não consigo impedir a transformação – ele murmurou, como se tivesse necessidade de dar uma justificativa a Dylan. – A transformação é espontânea nos machos da Raça quando sentimos o cheiro de sangue fresco.
O olhar dele desviou-se ligeiramente dos olhos de Dylan, e logo repousou na bochecha ferida pelos estilhaços do espelho quebrado. A mulher sentia que ainda havia sangue quente deslizando como uma lágrima por seu queixo. Rio assistia àquela gota deslizar com uma intensidade que fazia Dylan estremecer. Ele passou a língua pelos lábios sensuais e engoliu seco, mas manteve seus dentes cerrados o tempo todo.
– Fique aqui – ele ordenou com uma voz forte e autoritária enquanto franzia a testa com intensidade.
O instinto de Dylan lhe dizia que ela devia ser mais inteligente e correr, mas ela se recusava a sentir – ou, melhor dizendo, a demonstrar sentir – medo daquele homem enorme que estava sem camisa em sua frente. Por mais estranho que parecesse, Dylan sentia que tinha realmente conhecido aquele homem nos últimos dias, durante os quais eles foram obrigados a conviver. Rio não era nenhum santo, aquilo era um fato. Ele a tinha raptado, aprisionado e ela ainda não estava certa sobre o que ele queria fazer com ela – Santo Deus! No entanto, ela não acreditava que ele fosse perigoso – não para ela.
O que Dylan acabara de testemunhar ali não era exatamente algo a ser celebrado, mas, em seu coração, ela não sentia medo do que ele era.
Bem, não completamente.
Dylan ouviu quando Rio desligou o registro do chuveiro e saiu, poucos segundos depois, segurando uma toalha branca e umedecida que ele ofereceu para ela.
– Pressione isso contra a ferida. Vai estancar o sangramento.
Dylan tomou a toalha em suas mãos e a pressionou no rosto, exatamente como ele lhe dissera. Ela, porém, não pôde deixar de perceber a longa expiração que ele soltou quando a ferida em sua bochecha fora finalmente coberta, como se agora estivesse aliviado por não precisar mais passar pelo inferno de ter de olhar para aquilo e resistir. A cor ardente dos olhos de Rio começou a escurecer lentamente e as pupilas estreitas reassumiram a forma arredondada. Os dermoglifos, no entanto, ainda estavam avermelhados; as presas, ainda mortalmente afiadas.
– Você realmente é um... não é? – ela murmurou. – Você é um vampiro. Jesus Cristo! Não consigo acreditar que isso seja verdade. Quer dizer, como isso pode ser verdade, Rio?
Ele se sentou ao lado dela na cama. Menos de um metro de distância os separava agora.
– Eu já expliquei isso para você.
– Extraterrestres bebedores de sangue e mulheres humanas com DNA compatível com os deles – disse ela, recordando-se da estranha história sobre a raça híbrida de vampiros que ela tentara encarar como ficção científica. – Tudo isso é verdade?
– A verdade é um pouco mais complicada do que isso, mas sim... Tudo o que eu lhe disse é verdade.
Incrível.
Totalmente incrível.
Uma parte mercenária dela quase gritou de excitação ao pensar na potencial fama e fortuna que a revelação daquela história poderia lhe trazer. Mas havia outra parte de Dylan – a que não tinha se esquecido daquela incomum marca de nascença que ela trazia gravada na parte de trás do pescoço, a parte que ainda se lembrava de que ela tinha, aparentemente, uma forte conexão com aquele mundo – que mostrou instantaneamente seus instintos protetores, como se Rio e o mundo em que ele vivia fossem um delicioso segredo que pertencia exclusivamente a ela.
– Desculpe-me se eu chateei você – ela disse serenamente. – Eu não devia ter bisbilhotado as coisas enquanto você não estava aqui.
A cabeça dele se virou bruscamente e sua testa enrugou-se, levando as sobrancelhas a se unirem. O xingamento que ele murmurou foi forte e palpável.
– Você não precisa me pedir desculpas, Dylan. Fui eu quem errou. Eu nunca deveria ter entrado aqui no estado em que estava. Eu não posso ficar perto de ninguém quando estou daquele jeito.
– Você parece estar um pouco melhor agora.
Ele assentiu, sua cabeça caindo levemente em direção ao peito nu.
– A raiva diminui... no final. Se você não apagar antes, ela em algum momento... passa.
Não fazia muito tempo que Rio aparecera cambaleando no quarto, bastante desatento, com seus pés mal respondendo aos passos dificultosos que ele tentava dar. Ele mal conseguia pensar, seus músculos e ossos estavam embebidos em uma fúria insana.
– O que desperta isso, Rio?
Ele deu de ombros.
– Pequenas coisas, nada em especial. Nunca sei, exatamente.
– Aquele tipo de raiva faz parte do que você é? Todos os homens da Raça têm de passar por esse tipo de tormento?
– Não – disse, soltando o tipo de sorriso de alguém que está zombando de si. – Não. Esse problema é apenas meu. Falta um parafuso na minha cabeça. Eu o perdi no verão passado e nunca mais o encontrei.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan gentilmente. – Foi isso que aconteceu com você?
– Foi um erro – ele respondeu com uma ponta de insegurança na voz. – Eu confiei em alguém em quem não deveria ter confiado.
Dylan olhou para o dano terrível que o corpo de Rio tinha sofrido. O rosto e o pescoço dele carregavam graves cicatrizes, mas seu ombro esquerdo e metade de seu torso musculoso pareciam ter ido e voltado do inferno. Seu coração apertou-se em seu peito quando ela pensou na dor que ele deveria ter suportado, tanto no acontecimento que ferira seu corpo daquela forma, quanto no que provavelmente foram meses e meses de recuperação.
Ele estava ali, sentado naquela cama tão rigidamente, tão solitário e tão inalcançável, apesar de estar a menos de um braço de distância dela. Para Dylan, Rio parecia sozinho. Sozinho e à deriva.
– Sinto muito, Rio – disse ela. E antes que pudesse se interromper, Dylan colocou sua mão sobre a mão dele, que ele agora descansava sobre a coxa. ele estremeceu como se carvão em brasa tivesse sido colocado sobre sua pele. Todavia, não se afastou.
Ele olhou fixamente para os dedos de Dylan que descansavam suavemente sobre os dele, branco pálido sobre um tom bronzeado. Quando olhou para ela, lançou-lhe um olhar rústico e másculo que preenchia seus olhos completamente. Ela se perguntava quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele fora tocado com algum tipo de ternura.
Dylan deslizou seus dedos sobre a mão máscula de Rio, estudando o incrível tamanho e a enorme força que ela tinha. A pele dele era tão quente e havia tanta força concentrada em seu corpo, mesmo quando ele parecia determinado a manter-se perfeitamente parado.
– Sinto muito por tudo o que você enfrentou, Rio. Sinto de verdade.
A mandíbula dele estava tão apertada que fez um músculo de seu rosto se contrair. Dylan colocou de lado a toalha umedecida que ele tinha lhe trazido e mal percebia que todos os seus sentidos estavam concentrados nele e na eletricidade que parecia emanar de suas mãos entrelaçadas.
Ela ouviu um ruído baixo se formar dentro de Rio, algo entre um grunhido e um gemido. O olhar dele deslizou para a boca de Dylan, e, por um segundo – um rápido, um breve segundo que teria durado o tempo de uma batida do coração – ela se perguntou se ele iria beijá-la.
Dylan sabia que devia retroceder. Sabia que devia tirar sua mão de cima da mão dele, colocá-la longe. Sabia que devia fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não fosse ficar ali, parada, quase sem respiração enquanto esperava e desejava – desejava desesperadamente, incontrolavelmente – que ele se debruçasse sobre ela e apertasse seus lábios contra os dele.
E, de repente, ela não conseguia mais não tocá-lo. Foi quando estendeu a mão que estava livre e acariciou o rosto de Rio, sentindo um repentino sopro de ar gelado empurrá-la – com a imponência da Grande Muralha da China.
– Não quero sua compaixão – grunhiu Rio com uma voz que ela não reconheceu como sendo dele. O sotaque espanhol estava ali, como sempre, mas as sílabas eram ásperas e o timbre não era exatamente humano, o que imediatamente fez Dylan se lembrar de qual era a natureza daquele ser diante dela. Rio puxou a mão de debaixo da dela e se levantou da cama.
– O corte está sangrando. Você precisa de cuidados que não posso lhe oferecer.
– Tenho certeza de que não é nada grave – respondeu Dylan, sentindo-se uma idiota por se colocar em uma situação como aquela com ele. Depois, pegou novamente a toalha que descartara momentos antes e a pressionou outra vez contra o ferimento. – Não é nada. Vou ficar bem.
Não havia sentido algum em Dylan falar qualquer coisa que fosse, já que Rio não a ouviria, de qualquer forma. Ela o viu caminhar até a sala da frente, passando pelo espelho quebrado, e pegar um telefone sem fio, no qual imediatamente teclou uma sequência curta de números.
– Dante? Olá. Não, nenhum problema. Mas eu, é... Tess está por aí? Preciso que ela me faça um favor.
Rio parecia um animal enjaulado, andando de um lado para o outro durante os poucos minutos que se passaram até a ajuda chegar. Ele ficou do lado de fora do quarto, confinado a um espaço minúsculo perto da entrada principal. Ficou tão distante de Dylan quanto poderia ficar sem de fato ter de sair daquele maldito quarto e esperar do lado de fora.
Madre de Dios.
Ele quase lhe beijara.
E ele queria tê-la beijado. E admitir aquilo – mesmo que apenas para si – era como levar um soco no estômago. Beijar Dylan Alexander era uma maneira garantida de transformar uma situação que já era bastante ruim em algo que seria, de fato, catastrófico. Isso porque Rio sabia sem qualquer sombra de dúvida que, se beijasse aquela bela e ardente mulher, ele não conseguiria se conter, não conseguiria, de forma alguma, parar no beijo. Não, mesmo.
O simples pensamento da sensação que seria a de pressionar seus lábios contra os dela já fazia o sangue de Rio ferver e correr acelerado em suas veias. Seus dermoglifos pulsavam com as cores de seu desejo – agitando-se em tons de vermelho-escuro e negros. E também era impossível negar a outra evidência daquele desejo: seu pênis estava tão duro quanto granito, e estava daquele jeito desde o instante em que Dylan, inesperadamente, inadvertidamente, pousara a mão sobre sua coxa.
Jesus Cristo!
Ele sequer se atrevia a olhar para dentro do quarto, com medo de não ser capaz de impedir seus pés de marcharem de volta pelas portas fechadas e levarem-no diretamente para os braços de Dylan.
“Como ela provavelmente desejava” – ele pensou ardentemente.
Aquela carícia que Dylan fizera em sua mão tinha sido um gesto delicado, doce, do tipo que uma mãe faz em uma criança. Ou, pior do que isso, aquele gesto poderia ter sido um gesto de compaixão de um anjo caridoso que consola uma das criaturas mais infelizes criadas por Deus.
Maldecido.
Manos del diablo.
Monstruo.
Sim, Rio era todas essas coisas. E agora Dylan tinha visto como ele era realmente feio. Para seu crédito, ela não tinha recuado ao ver toda aquela carne retorcida e aquelas presas – o que queria dizer então que ela era muito mais forte do que aquilo tudo. Mas acreditar que ela poderia receber, poderia desejar seu toque? Que ela poderia aproximar-se o suficiente de seu rosto arruinado e permitir que ele a beijasse?
Jamais! E ele agradeceu a Deus por aquilo, pois aquilo lhe tinha poupado de ver a repugnância dela. Aquilo lhe tinha poupado de fazer algo realmente idiota, como se esquecer – ainda que por um segundo apenas – de que ela estava ali, no complexo – ali, em seu quarto – somente até que ele corrigisse o erro que cometera ao permitir que ela se aproximasse daquela maldita caverna em Jicín. Quanto mais rápido ele conseguisse fazer aquilo – consertar aquele erro – e mandar Dylan para casa, melhor.
Um golpe seco ecoou contra a porta.
Rio atendeu, com um grunhido de frustração.
– Você soava péssimo ao telefone, então decidi vir com Tess e ver com meus próprios olhos. – A boca de Dante curvou-se em um sorriso arrogante que só ele sabia dar enquanto seu corpo enorme permanecia parado na soleira da porta ao lado de sua bela Companheira de Raça. – E então, você não vai nos deixar entrar, cara?
– Claro.
Rio deu um passo para o lado, abrindo espaço para o casal entrar.
A companheira de Dante parecia ainda mais bela sob a luz daquele quarto. As longas ondas cor de mel de seus cabelos estavam presas em um rabo de cavalo frouxo e seus inquiridores olhos verde-mar eram suaves, mesmo quando encaravam Rio.
– É bom vê-lo novamente, Rio – disse ela, e, sem hesitação, deu um passo adiante e ficou na ponta dos dedos dos pés para dar um abraço rápido no guerreiro e beijar-lhe levemente a bochecha. – Dante e eu ficamos tão preocupados com você durante esses meses todos...
– Não precisava – respondeu Rio, embora não pudesse negar que aquela preocupação o deixava, de certa forma, feliz.
Tess e Dante estavam juntos desde o final do último outono. Ela tinha entrado para a Ordem com um extraordinário dom de curar e restaurar a vida com o simples toque de suas mãos macias. O toque de Tess tinha um poder inimaginável, mas nem mesmo ela fora capaz de consertar todos os danos que Rio tinha sofrido. Ele já estava muito longe quando ela chegou ao complexo, e as cicatrizes dele – tanto as interiores quanto as exteriores – eram permanentes, embora não fosse por falta de tentativas de Tess.
Dante passou o braço musculoso em volta de sua Companheira de Raça em um movimento que era protetor e respeitoso ao mesmo tempo. E foi então que Rio notou a leve protuberância no ventre dela. Tess percebeu o olhar de Rio e abriu um sorriso tão imaculado quanto o da própria Madonna de Botticelli.
– Estou nos primeiros três meses – ela disse, virando-se toda sorridente para Dante. – Alguém está usando isso como desculpa para me mimar.
Dante sorriu.
– Eu? Por favor...
– Felicidades – murmurou Rio, sinceramente sentindo os votos que desejava.
Não era comum guerreiros e Companheiras de Raça começarem uma família dentro da Ordem. Aliás, praticamente não se ouvia falar daquilo. Os homens da Raça que dedicavam suas vidas à luta contra os Renegados não eram tipos muito familiares, por assim dizer. Mas acontece que Dante nunca fora como esses guerreiros, então...
– Onde está Dylan? – perguntou Tess.
Rio gesticulou, apontando para as portas que estavam fechadas.
– Eu fui um idiota com ela. Tive uma crise e... Droga! Acabei quebrando o espelho. Um dos estilhaços acabou atingindo o rosto dela.
– Você ainda está tendo apagões? – perguntou novamente Tess, franzindo a testa. – As dores de cabeça ainda não passaram?
Rio recuou, obviamente não querendo falar sobre seus próprios problemas.
– Eu estou bem. – Foi tudo o que ele disse. – Apenas cuide dela, certo?
– Eu cuidarei. – Tess pegou uma pequena maleta médica das mãos de Dante, sob o olhar interrogativo de Rio, e completou:
– Desde que eu engravidei, minhas habilidades diminuíram. Eu entendo que, na gravidez, é normal a energia da Companheira de Raça se voltar para dentro do próprio corpo. As coisas vão voltar ao normal quando o bebê nascer. Até lá, terei de me apoiar na boa e velha medicina tradicional.
Rio lançou um olhar sobre seus ombros para dentro do quarto. Ele não conseguia ver Dylan, mas imaginou que ela estava lá dentro, precisando ver alguém gentil e carinhoso. Alguém que pudesse melhorar seu humor e conversar com ela como uma pessoa normal; alguém que pudesse tranquilizá-la, dizer-lhe que ela estava segura, que estava entre pessoas em quem ela podia confiar. Especialmente depois da espetacular demonstração de raiva psicótica e desregrada que ele, Rio, tinha feito para ela.
– Está tudo bem – disse Tess. – Não se preocupe, vou cuidar dela.
Com o punho fechado, Dante golpeou levemente o bíceps bem definido de Rio.
– Venha – disse –, vamos dar o fora daqui. Ainda falta uma hora para o amanhecer. E parece que você está precisando tomar um pouco de ar fresco, cara.
Capítulo 17
Dylan estava agachada perto do pé da cama, recolhendo cacos de vidro, quando as portas se abriram suavemente, abrindo caminho para o dormitório.
– Dylan?
Aquela era uma voz feminina. A mesma que, havia um minuto, ela tinha ouvido conversar baixinho com Rio e outro homem. Dylan olhou para cima e sentiu o calor instantâneo de um olhar brilhante que estava logo acima dela.
A mulher, jovem e bela, sorriu.
– Olá. Meu nome é Tess.
– Olá.
Dylan deixou um caco de vidro de lado e inclinou o corpo para recolher outro.
– Rio me pediu para vir ver se você estava bem.
Tess trazia consigo uma bolsa de couro preta quando entrou nos aposentos.
– Você está bem? – insistiu.
Dylan assentiu.
– É só um arranhão.
– Rio está se sentindo péssimo por causa disso. Ele anda passando por... problemas. Já faz algum tempo. Desde a explosão do armazém no verão passado. Ele tem sorte de estar vivo.
Meu Deus! Então isso explicava as queimaduras e as cicatrizes. Uma explosão havia feito aquilo? Quer dizer então que Rio realmente tinha feito uma viagem de ida e volta para o inferno, como Dylan havia suposto.
Tess continuou:
– Por causa do trauma cerebral causado pela explosão, ele tem blecautes de tempos em tempos. Além disso, Rio também tem fortes dores de cabeça, mudanças de humor... Bem, acredito que você deve ter visto com seus próprios olhos. Não é coisa para brincadeira. Mas ele não quis feri-la, disso eu tenho certeza.
– Estou bem – insistiu Dylan, sem se preocupar com o arranhão em sua bochecha. – Tentei dizer para ele que isto aqui não era nada. O corte nem está sangrando mais.
– É um alívio – disse Tess enquanto colocava a bolsa médica sob a escrivaninha. – Fico contente de saber que não é tão grave quanto Rio temia. Da forma como ele descreveu pelo telefone, pensei que teríamos que dar pelo menos meia dúzia de pontos. Mas pelo que vejo, um pouco de antisséptico e um curativo serão suficientes – Tess caminhou por onde Dylan recolhia os pedaços do espelho despedaçado. – Venha, deixe-me ajudá-la.
Quando Tess se aproximou, Dylan se deu conta de que a palma da mão de Tess estava apoiada sobre a curva na barriga. Ela estava grávida. E não foi apenas pela aparência física que Dylan percebeu, mas pelo fato de aquela mulher resplandecer com um brilho interior que não deixava dúvida alguma.
Além disso – e, talvez ainda mais estranho –, na mão que repousava sobre as primeiras fases de um bebê em desenvolvimento, havia uma pequena marca de nascença. Dylan não pôde deixar de olhar fixamente para a lágrima escarlate e a meia-lua na mão direita daquela mulher – a mesma marca com a qual ela tinha nascido, aquela que trazia no pescoço.
– Você vive aqui? – perguntou Dylan. – Com... eles?
Tess assentiu.
– Vivo com Dante. Ele é um guerreiro da Ordem, como Rio e os outros que vivem aqui no complexo.
Dylan acenou na direção da pequena marca de nascimento entre o polegar e o indicador de Tess:
– Você é a... Companheira de Raça dele? – perguntou, recordando o termo que Rio tinha usado depois de perceber que Dylan tinha uma marca idêntica àquela. – Você se casou com um deles?
– Dante e eu procriamos no ano passado – explicou Tess. – Fomos unidos por nosso sangue, o que nos liga de uma forma muito mais profunda do que o casamento. Imagino que Rio já tenha lhe dito algumas coisas sobre a Raça... Como eles vivem, de onde vêm. Depois do que aconteceu, estou segura de que você não tem dúvidas do que eles são.
Dylan assentiu, ainda sem acreditar que tudo aquilo poderia ser realmente verdade.
– Vampiros.
Tess sorriu gentilmente.
– Isso foi o que eu pensei a princípio. Porém, defini-los não é algo tão simples assim. A Raça é um pouco complicada. Eles vivem em um mundo complexo e cheio de inimigos. As coisas podem ser muito perigosas para eles e para quem os ama. Para os poucos homens que se comprometeram com a Ordem, cada noite é um risco para suas vidas.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan com um tom que deixava transparecer seu espanto. – A explosão que feriu Rio... foi algum acidente terrível?
Uma expressão de dor tomou conta do rosto de Tess. Ela estudou Dylan por um momento, como se não estivesse segura do quanto poderia contar. No entanto, ela logo sacudiu ligeiramente a cabeça.
– Não. Não foi um acidente. Alguém próximo de Rio o traiu. A explosão aconteceu durante uma investida em um velho armazém da cidade. Rio e os demais membros da Ordem se viram em uma emboscada.
Dylan olhou para baixo e se deu conta de que estava observando o porta-retratos que Rio tinha jogado pelo quarto durante seu ataque de raiva. Cuidadosamente o recolheu. Tirou a teia de aranha de cima do vidro quebrado sobre a imagem e observou os exóticos olhos escuros e o sorriso triste e distante.
– Eva – confirmou Tess. – Ela era a Companheira de Raça de Rio.
– Mas ela o traiu?
– Sim – Tess respondeu depois de uma longa pausa. – Eva fez um acordo com um dos inimigos da Ordem, com um poderoso vampiro que também era o irmão do líder da Ordem, Lucan. Para que este vampiro obtivesse informação que o ajudasse a matar Lucan, algo que Eva queria tanto quanto o inimigo, ela pediu duas coisas: que Rio sobrevivesse e que fosse ferido o suficiente para nunca mais conseguir lutar.
– Meu Deus! – ofegou Dylan. – E ela conseguiu o que queria?
– Não exatamente. A Ordem caiu em uma emboscada, apoiada nas informações que Eva entregou, mas o vampiro com o qual ela negociou não tinha a menor intenção de manter sua parte do acordo. Ele colocou uma bomba no local. A explosão poderia ter matado a todos, mas, ironicamente, Rio foi o mais atingido. E posteriormente ele veio a descobrir que Eva tinha sido a responsável por tudo aquilo.
Dylan não conseguia falar. Ela tentava absorver o peso que tudo aquilo deveria ter para Rio. Não apenas a dor física causada por aquelas lesões, mas também a dor emocional da traição sofrida por ele.
– Eu a vi. – Dylan olhou para Tess e viu a testa da mulher franzir. A confusão se tornava evidente naquele olhar carregado de interrogações. Dylan conhecia Tess há poucos minutos e não estava acostumada a falar sobre si com ninguém, em especial falar de seu segredo, de seu dom, daquilo que a tornava tão diferente dos outros humanos. No entanto, havia algo nos olhos cheios de cuidado de Tess que levava Dylan a confiar que estava segura. Ela tinha sentido uma afinidade instantânea que a fez saber que estava com uma amiga.
– Os mortos aparecem para mim de vez em quando. Bem, mulheres mortas, melhor dizendo. Eva apareceu para mim alguns dias atrás, quando eu estava viajando com algumas pessoas pelos arredores de Praga.
– Ela... apareceu para você...? – perguntou Tess com cautela. – O que você quer dizer com isso?
– Eu vi o espírito dela, por assim se dizer. Ela me guiou até uma caverna oculta. Eu não sabia, mas Rio estava lá dentro. Ela... Eva me levou até lá e me pediu que o salvasse.
– Meu Deus! – Tess acenou lentamente com a cabeça. – Ele sabe?
Dylan olhou significativamente para a destruição ainda sob seus pés.
– Sim, Rio sabe. Quando eu contei para ele, ele ficou louco.
O olhar de Tess transformou-se quase em um pedido de desculpa.
– Ele tem muita raiva de tudo que seja relacionado à Eva.
– É compreensível – respondeu Dylan. – Ele está bem, Tess? Quer dizer, considerando o que viveu, Rio vai ficar... bem?
– É o que eu espero. É o que todos nós esperamos. – Tess inclinou a cabeça ligeiramente, estudando Dylan. – Você não tem medo dele?
Não, Dylan não o temia. Tinha curiosidade de saber mais sobre Rio, e incerteza com relação às intenções dele quanto a ela. Mas não tinha medo. Embora isso parecesse loucura, mesmo depois de vê-lo tendo aquela reação naquele mesmo cômodo, Dylan não o temia. Aliás, pensar em Rio provocava muitas coisas nela, mas nenhuma delas era medo. Não mesmo.
– Você acha que eu deveria temê-lo? – perguntou.
– Não, claro que não – disse Tess sem vacilar. – Quer dizer, as coisas não devem estar sendo fáceis para você. Deus sabe que não aceitei muito bem no início, quando ouvi pela primeira vez toda essa coisa de sangue, presas e guerra.
Dylan encolheu o ombro.
– Eu escrevo para uma publicação que é quase um tabloide. Acredite, já escutei muitas coisas bizarras. Não me assusto com facilidade.
Tess sorriu, mas não manteve o olhar cruzado com o de Dylan por muito tempo. As palavras que ela não disse estavam claras naqueles olhos que a evitavam: aquilo não era apenas uma história bizarra de um tabloide. Aquilo era a realidade.
– O que havia naquela caverna, Tess? Parecia ser algum tipo de cripta, uma “câmara de hibernação”, como escutei Rio chamá-la. Mas que diabos era aquilo? Há algo perdido naquela montanha?
Tess levantou o olhar, mas só negou levemente com a cabeça.
– Na verdade, eu não acho que você queira saber.
– Sim, eu quero – insistiu Dylan. – Independentemente do que for, é importante o suficiente para que Rio sentisse a necessidade de me sequestrar e me trancafiar para que não dissesse nada do que vi.
O silêncio de Tess fez o estômago de Dylan formar um nó de medo. A Companheira de Raça sabia o que havia na caverna, e aquilo parecia aterrorizá-la. O que, é claro, apenas aumentou a curiosidade de Dylan.
– Tess, havia algo dormindo naquela tumba oculta. E, pelo aspecto, eu diria que esse algo estava escondido ali há muito tempo. Que tipo de criatura era ou é aquilo?
Tess se levantou e jogou alguns cacos de vidro no cesto de papéis ao lado da mesa.
– Deixe-me ver seu corte. Temos de limpá-lo. Depois faremos um curativo para evitar que você fique com uma cicatriz.
Confinado dentro da cela de raios ultravioleta, o Antigo jogou a cabeça para trás e soltou um rugido infernal. Sangue gotejava por suas enormes presas e seu peito, enorme e nu, ostentava a cor pulsante de seus dermoglifos.
– Apertem essas malditas correntes – gritou o cuidador, falando com seus subordinados por meio de um alto-falante na sala de observação fora da cela. – E, por Deus, arrumem toda essa bagunça aí dentro.
As algemas cibernéticas serpentearam e seguraram fortemente as pernas e os braços grossos do Antigo. Com um comando programado, ajustaram-se. A criatura tentou se libertar, mas não chegaria a lugar algum. Feriu-se futilmente: cortou seus próprios lábios e berrou de novo. O urro era pura fúria enquanto o imenso corpo era dominado por titânio e aço.
Ele ainda estava com o pênis ereto por conta do cruzamento que tinha dado tão violentamente errado. Ainda estava sedento pelo sangue e pelo corpo sem vida da mulher que naquele momento era apressadamente retirada da jaula.
A Companheira de Raça tinha sido atacada. Unhas e presas fortes tinham marcado irreversivelmente – mortalmente – seu corpo. E, antes que o Antigo pudesse ser afastado, ela já estava morta. Ela não era a primeira; tampouco seria a última (não estava perto de sê-lo, aliás). Ao longo das cinco décadas em que o Antigo tinha sido despertado de sua hibernação e posto sob o controle de seu guardião, alimentá-lo – e fazê-lo procriar – tinha se mostrado uma tarefa custosa e frustrante.
Apesar de toda aquela tecnologia e de todo aquele dinheiro disponível, não havia ciência alguma que pudesse substituir o tipo de acasalamento que havia ocorrido na cela do prisioneiro alguns momentos atrás. Carne com carne, esse era o único meio de concepção para o Antigo. E também para os demais membros da Raça. Mas o sexo era apenas uma parte do processo. Era necessária a ejaculação, com um intercâmbio de sangue no exato momento, para que a vida de um vampiro se desenvolvesse no corpo de uma Companheira de Raça.
Normalmente, os casais que desejavam conceber se deleitavam em um ato deliberado e sensual de criar uma vida. Neste caso, não. Aqui embaixo, com a selvagem criatura alienígena levada à loucura por conta da fome, da dor e do confinamento, a concepção era um jogo de vida e morte. Baixas, como a de hoje, eram parte da equação. Mortes deviam ser esperadas.
Mas êxitos haviam sido alcançados. E isso fazia os riscos valerem a pena. Para cada Companheira de Raça morta no processo, duas outras tinham saído vivas... E com as sementes de uma nova geração plantada em seus úteros.
O cuidador do Antigo sorriu secretamente, apesar da perda do dia.
Aquela nova geração poderosa já estava florescendo, a maioria em segredo.
E a obediência daqueles novos seres pertencia inteiramente a ele.
CONTINUA
Capítulo 14
Era muito estranho estar outra vez no complexo, mas, para Rio, o mais surreal era entrar novamente em seus aposentos dentro da sede subterrânea da Ordem, localizada no subúrbio de Boston.
Dante e Chase tinham ido para o laboratório de alta tecnologia logo que chegaram, deixando Rio a sós com Dylan. O guerreiro espanhol imaginou que os outros companheiros queriam lhe dar a oportunidade de ele se reencontrar com sua antiga vida – a vida que Eva havia lhe roubado um ano atrás com aquela maldita traição.
Rio não colocava os pés no complexo havia muito tempo, mas o lugar estava exatamente como ele se lembrava. Exatamente como ele tinha deixado antes da explosão no armazém que o mandara para a enfermaria do complexo por vários meses para enfrentar uma difícil recuperação – uma recuperação que não tinha sido, de modo algum, completa.
Aqueles aposentos, que uma vez Rio dividira com Eva, eram como uma espécie de cápsula do tempo. Tudo estava congelado em seu lugar desde aquela noite infernal quando Rio e seus companheiros tinham saído para acabar com um bando de Renegados sem imaginarem que estavam indo diretamente para uma emboscada mortal – uma emboscada orquestrada pela mulher que era uma Companheira de Raça... sua companheira.
E também fora ali, naquele mesmo lugar que, depois de ter sua traição descoberta e denunciada, Eva tinha cortado a própria garganta.
Ela se suicidou sobre a cama de Rio na enfermaria, mas era ali, em seu quarto, que Rio sentia mais a sua presença: o toque de Eva estava por todas as partes, desde as obras de arte extravagantes que ele tinha, a contragosto, permitido pendurar nas paredes antes vazias, até os inúmeros espelhos espalhados por todo o quarto, perto do closet e aos pés da enorme cama.
Rio conduziu Dylan pela elegante sala de estar, atravessando as portas cobertas por cortinas que levavam à suíte do dormitório. Ele se viu refletido no espelho enquanto, com todo o cuidado, deixava a delicada mulher sobre cama de dossel coberta por lençóis cor ameixa escura. Recuou diante do rosto moreno e arruinado do desconhecido que lhe devolvia o olhar. Mesmo vestido com as roupas elegantes que Reichen havia lhe dado, ele ainda parecia um monstro e a sensação apenas aumentava quando comparada à beleza adormecida em seus braços e totalmente à sua mercê.
Ele era um monstro e não podia jogar a culpa daquilo somente em Eva. Afinal, ele tinha nascido uma besta, um assassino, e agora simplesmente também se parecia um pouco mais com aquilo. Dylan se moveu um pouco assim que ele a colocou no colchão e ajeitou um dos macios travesseiros sob sua cabeça.
– Acorde agora – ele disse, roçando a mão brandamente na testa da mulher. – Você já descansou o suficiente, Dylan. Está na hora de despertar.
Ele não precisava acariciar o rosto dela para tirá-la do transe. Ele não precisava deslizar as pontas de seus dedos másculos sobre aquela pele aveludada e decorada com pequenas e encantadoras sardas. Ele não precisava demorar seu toque ao longo da delicada linha de sua mandíbula... Rio, todavia, não conseguiu deixar de aproveitar ao máximo aquela oportunidade única de fazer tudo isso.
As pálpebras de Dylan se abriram, seus cílios castanhos se levantaram e, de repente, Rio se viu capturado pela luz verde-dourada daquele olhar. Ele imediatamente afastou a mão do rosto de Dylan, mas não pôde deixar de notar que ela tinha se dado conta da liberdade que ele tomara. Ela, todavia, não demonstrou alteração alguma, simplesmente soltou um suave sopro de ar por seus lábios entreabertos.
– Estou com medo – ela sussurrou com uma voz baixa por causa do longo sono em que ele a tinha colocado. Dylan não tinha consciência do transe ou da viagem. Para sua mente humana, ela ainda estava no Refúgio de Reichen, uma vez que sua mente tinha sido colocada em suspensão momentos antes da partida para Boston. – Estou com medo do lugar para onde você está me levando...
– Já estamos aqui – disse Rio. – Acabamos de chegar.
O pânico tomou conta do olhar de Dylan.
– Onde...
– Eu a trouxe para a sede da Ordem. Você está segura aqui.
Dylan lançou um olhar ao seu redor, tentando entender onde estava.
– É aqui que você mora? – perguntou.
– É aqui que eu costumava morar. – Rio se levantou e se afastou da cama. – Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, basta pedir.
– Que tal uma carona até minha casa em Nova York? – ela disse. Sua consciência estava obviamente voltando ao normal. – Ou talvez um GPS mostrando onde estamos agora... Pode deixar que eu me viro para encontrar o caminho para casa.
Rio cruzou os braços sobre o peito enorme e musculoso.
– Esta é sua casa agora, Dylan. Como você é uma Companheira de Raça, será tratada com todo o respeito e reverência. Terá comida, conforto e tudo mais o que precisar. Você não vai ser trancada nesse quarto, mas eu posso lhe garantir que não há para onde você correr, caso isso venha a passar por sua cabeça. O complexo é inteiramente seguro. Meus companheiros e eu não vamos machucá-la, mas se você tentar deixar esses aposentos, nós saberemos antes de você dar o primeiro passo no corredor. Se você tentar fugir, vou encontrá-la, Dylan.
Ela ficou em silêncio por um longo momento enquanto ouvia aquele enorme homem falar e media cada uma de suas palavras.
– E então, o que vocês vão fazer comigo? Me segurar e morder minha garganta?
Jesus Cristo!
Rio sentiu todo o seu sangue drenar de sua cabeça ao simples pensamento daquilo. Ele sabia que para ela aquilo deveria ser um ato de extrema violência, mas, para ele, a imagem de segurar Dylan sob seu corpo enquanto ele perfurava delicadamente a pele macia de seu pescoço com suas presas era um ato inteiramente sensual.
O desejo percorreu seu corpo em uma espiral ardente e se concentrou imediatamente no meio de suas pernas. Ele ainda podia sentir a pele sedosa de Dylan em seus dedos e agora era outra parte de seu corpo que desejava imensamente, incontrolavelmente, conhecer o toque da pele daquela mulher em sua frente. Rio se virou, irritado com a rápida reação a Dylan que seu corpo esboçava.
– Quando eu estava em Jicín, ouvi uma história sobre um homem que foi atacado por um demônio. Um velho fazendeiro que testemunhou tudo disse que o tal demônio descia da montanha para se alimentar. Para beber sangue humano.
Rio ficou ali, encarando a porta em sua frente enquanto Dylan falava. Ele sabia a qual noite ela estava se referindo, ele se lembrava dela claramente, pois aquela tinha sido a última vez que ele tinha se alimentado. Fazia mais de duas semanas que ele não se alimentava quando foi até aquela humilde fazenda perto da floresta, na base da montanha.
Ele estava faminto e aquilo o deixou descontrolado. Um homem idoso apareceu, viu o ataque, viu Rio com os dentes cravados no pescoço de outro homem. Aquele foi um deslize, uma imprudência, e aquela interrupção tinha sido a única coisa responsável por salvar a vida da caça de Rio de sua fome incontrolável. Se aquele velho homem não tivesse aparecido, certamente o outro teria morrido. Rio tinha deixado de caçar naquela noite, aterrorizado com o que tinha se tornado.
– Foi um exagero, não é mesmo? – A voz de Dylan tornou-se lentamente mais calma durante o silêncio que Rio lhe deu como resposta. – Você não fez aquilo, fez, Rio?
– Fique à vontade – ele grunhiu, enquanto saía. Antes, porém, ele pegou a bolsa em que estavam o laptop e a câmera digital de Dylan. – Há algumas coisas que preciso fazer.
Rio não esperou que Dylan protestasse ou dissesse uma palavra mais, apenas sabia que precisava sair dali. Agora. Uns poucos passos o levariam para as portas abertas e à luxuosa sala de estar que atravessara minutos antes carregando Dylan em seus braços.
– Rosario...?
Ele parou ao som da voz dela em suas costas. Franziu a sobrancelha, virou a cabeça e voltou o olhar para a mulher, que agora tinha se levantado da cama e estava apoiada em seus cotovelos.
Madre de Dios, ela estava deliciosamente atraente, um tanto quanto despenteada, um tanto quanto sonolenta. Não demorou muito para Rio imaginar que talvez fosse daquela forma que Dylan deveria parecer depois de uma noite de sexo ardente. O fato de ela estar deitada sobre aqueles lençóis de seda de cor ameixa da cama de Rio apenas deixava a imagem ainda mais erótica.
– O quê? – a voz do homem enorme era um chiado que mal passava por sua garganta masculina.
– Seu nome – ela disse, como se ele devesse saber do que ela estava falando. A mulher, então, inclinou a cabeça enquanto estudava atenciosamente o quarto. – Você me disse que Rio é apenas parte de seu nome, então eu imaginei que talvez pudesse ser um apelido para Rosario.
– Não.
– Então qual é? – Quando ele não respondeu imediatamente, suas sobrancelhas castanho-claras juntaram-se, obviamente impacientes pela resposta. – Depois de tudo o que você me contou nos últimos dias, que problema teria em me dizer seu nome?
Ele escarnecia interiormente enquanto se lembrava de todos os nomes pelos quais tinha sido chamado desde que nascera. Nenhum deles era gentil, para dizer o mínimo.
– Por que isso é tão importante?
Ela sacudiu a cabeça, erguendo levemente os ombros magros.
– Não é importante. Suponho que simplesmente tenho curiosidade de saber mais sobre você. Para saber quem você realmente é.
– Você já sabe o suficiente – ele disse. Um leve xingamento escapou por sua boca. – Confie em mim, Dylan. Você não vai querer saber nada mais sobre mim além do que já sabe.
Mas Rio estava equivocado, pensou Dylan, enquanto observava o enorme corpo daquele homem afastar-se e atravessar a porta da ampla suíte. Ele fechou a porta e deixou a mulher sozinha na suave iluminação dos aposentos.
Ela virou o corpo na enorme cama, suas pernas estavam trêmulas como se fizesse muito tempo que não as usava, como se ela tivesse ficado ao relento durante boa parte de uma noite de inverno. Se o que ele disse era verdade – que eles tinham deixado Berlim e estavam agora nos Estados Unidos – então, ela pensou, faltava-lhe pelo menos nove horas de memória consciente.
Seria aquilo realmente possível?
Será que ele realmente a havia colocado em uma espécie de transe por todo aquele tempo?
Ela tinha ficado surpresa ao sentir os dedos de Rio acariciando seu rosto quando despertou. Aquele contato parecia tão suave, tão protetor e tão quente. Mas também tinha sido muito fugaz, tinha sido interrompido tão logo ele se dera conta de que ela estava acordando, tão logo notara que ela estava percebendo o que acontecia. Será que ele também percebeu que ela estava gostando?
Não, Dylan não queria sentir o calor de Rio, tampouco queria demonstrar algum calor para ele, mas ela não conseguia negar que havia algo de eletrizante na maneira como ele a olhava. Havia algo inegavelmente sedutor na maneira como ele a tocava. Ela queria saber mais sobre aquele homem – ela precisava saber mais sobre aquele homem. Afinal de contas, como sua prisioneira, seria de seu maior interesse saber qualquer coisa que pudesse a respeito do homem que a mantinha como refém. Como jornalista em busca – ou à espera – de uma grande matéria, era obrigação dela juntar até os mais insignificantes fatos e perseguir a verdade até o fim. Entretanto, era seu interesse como mulher o que mais incomodava Dylan.
Era aquele desejo mais íntimo e pessoal de saber mais sobre o tipo de homem que Rio era que fazia com que ela vagasse de um lado para o outro naqueles aposentos chiques. A decoração era exuberante e sensual, uma explosão de cores brilhantes que iam desde a roupa de cama de seda, da cor de ameixas maduras, até o tom dourado da pintura que cobria as paredes. Uma coleção de pinturas abstratas, tão brilhantes e gritantes que chegavam a fazer os olhos de Dylan doer, cobriam uma parede inteira da suíte luxuosa. Outra parede ostentava um espelho com uma moldura exuberante e obviamente caríssima. E o objeto estava colocado estrategicamente de modo a refletir os quatro lados da cama de dossel e tudo o que, por ventura, pudesse estar acontecendo em cima daqueles lençóis. Excitante.
– Sutil... – murmurou Dylan, girando os olhos enquanto se aproximava de um par de portas duplas que havia do outro lado do quarto. Ela as abriu e ficou de boca aberta quando percebeu que se tratava do closet... Um closet que tinha mais metros quadrados do que todo o seu apartamento no Brooklin.
– Santo Deus!
Ela entrou e imediatamente se deu conta de que havia mais espelhos ali dentro – e por que você não iria querer admirar-se em todos os ângulos possíveis quando tinha metade da Chanel à sua disposição?
Dylan ficou tentada a perscrutar aquele lugar que deveria ter milhares de dólares em roupas e sapatos assinados por estilistas famosos, mas um pensamento triste logo tomou conta de sua mente: apenas um quarto do armário tinha roupas masculinas. O resto todo pertencia a uma mulher. Uma mulher pequena, delicada, cujo gosto era, obviamente, muito caro. Aqueles aposentos poderiam ser de Rio, mas certamente ele não vivia ali sozinho.
Mas que merda! Será que ele era casado?!
Dylan deu meia-volta e saiu do closet, fechando bruscamente a porta e intimamente desejando nunca ter entrado ali. Dirigiu-se para a sala, observando atentamente cada detalhe e inegavelmente percebendo que havia um toque feminino em todos os cantos para os quais olhava. Nada se parecia nem de longe com seu estilo, mas, afinal, o que Dylan sabia sobre design de interiores mesmo? Não muito. Sua melhor peça de mobília era um sofá-cama que ela comprara de segunda mão.
Dylan deixou a mão percorrer o encosto de uma nogueira esculpida como uma cadeira enquanto observava a mobília declaradamente elegante do lugar. Ela se aproximou de um sofá de veludo dourado e parou enquanto seu olhar capturava uma pequena coleção de fotografias emolduradas minuciosamente expostas na mesa que havia atrás do sofá.
A primeira coisa que viu foi uma fotografia de Rio. Ele estava sentado no banco do passageiro de um clássico Thunderbird conversível que tinha sido estacionado sob a luz da lua em alguma praia deserta. Ele vestia uma camisa de seda preta – desabotoada, obviamente – e uma calça da mesma cor; suas coxas estavam ligeiramente separadas em um “V” casual e os dedos de seus pés descalços estavam inocentemente enterrados na areia branca enquanto seu olhar topázio escuro brilhava com uma espécie de sabedoria oculta e privada, e seu sorriso nebuloso o tornava igualmente perigoso e atraente.
Jesus Cristo, ele era lindo.
Para dizer a verdade, ele era muito mais do que lindo.
A foto não parecia antiga. Não havia cicatrizes no lado esquerdo do rosto dele, de modo que a lesão que ele sofrera devia ser bastante recente. Seja lá o que tenha roubado sua aparência clássica e incrivelmente atraente, a maior tragédia parecia ser a fúria que Rio havia dentro de si. Dylan olhou para a fotografia de Rio em dias felizes, e se perguntou como ele poderia ter mudado tanto desde aquela época.
Ela então olhou para outra fotografia, essa sim, antiga. Era uma imagem profissional em tons de sépia de uma mulher com os cabelos negros vestindo um bufante vestido vitoriano de gola alta. Dylan se inclinou para poder ter uma visão melhor enquanto se perguntava se aquela beleza exótica com sorriso tímido poderia ser, de repente, a avó de Rio. Os olhos escuros da modelo encaravam direta e fixamente a lente da câmera, lançando um olhar de pura sedução. Ela era bela, a mulher da fotografia, apesar da moda recatada de sua época.
E seu rosto... seu rosto parecia extremamente familiar.
– Ah, meu Deus!
A incredulidade, assim como o absoluto deslumbramento, inundou Dylan conforme ela deslizava o olhar para outra fotografia que havia na mesa. Esta, uma imagem colorida, obviamente tirada na última década ou menos... e na qual a mesma mulher da foto antiga também era modelo. Essa última imagem, tirada durante a noite, mostrava uma mulher de pé em uma ponte de pedra no meio de um parque, rindo enquanto seus belos e longos cabelos negros balançavam em sua cabeça. Ela parecia feliz, mas Dylan viu uma tristeza em seus olhos escuros – dolorosos segredos profundamente escondidos em seu olhar castanho-escuro que estava fixo em quem quer que estivesse tirando a foto.
E Dylan reconhecia aquele rosto, ela tinha certeza de que sim... Sim, ela percebia agora, e não era apenas da série de fotografias espalhadas naquela mesa e que a jornalista acabara de ver... Não, aquele rosto era familiar. Dylan já o tinha visto, sim, ela o reconhecia agora porque já o tinha visto na montanha, em Jicín. Aquele era, definitivamente, o rosto da mulher morta. A bela – e morta – mulher que a havia conduzido à caverna onde ela encontrara Rio – Dylan se dava conta disso agora – era esposa dele.
Capítulo 15
Era quase como se ele nunca tivesse deixado aquele local.
Rio estava no laboratório de alta tecnologia do complexo, cercado por Lucan, Gideon e Tegan, que o tinham saudado e oferecido um aperto de mão – sinal da amizade e da confiança verdadeiras.
O aperto de mão de Tegan se prolongou por mais tempo. Rio sabia que o forte guerreiro com cabelos acobreados e olhos esmeraldas era capaz de ler sua culpa e suas incertezas por meio da ligação entre suas mãos. Esse era o dom de Tegan, adivinhar as verdadeiras emoções com apenas um toque.
Ele deu um aceno quase imperceptível com a cabeça.
– Coisas ruins acontecem, meu amigo. E Deus sabe que todos nós temos nossos demônios tentando nos passar a perna. Então, ninguém está aqui para julgá-lo. Entendeu?
Rio assentiu com a cabeça enquanto Tegan soltava sua mão. Ao entregar a bolsa de Dylan a Gideon, o vampiro recém-chegado observou a parte posterior do laboratório, onde Dante e Chase limpavam suas armas para usá-las durante a noite. Dante ofereceu uma pequena saudação com o queixo, mas o olhar de aço de Chase deixava claro que ele não sabia o que pensar quando o assunto era Rio. Um homem inteligente. Rio imaginou que a reação do ex-agente fosse, provavelmente, a sua própria reação caso a situação fosse inversa e fosse Chase quem estivesse voando naquele jato em busca de resgate.
– Quanto a mulher sabe a nosso respeito? – perguntou Lucan.
Com novecentos anos de idade e fazendo parte da Primeira Geração da Raça, o fundador da Ordem e líder formidável poderia controlar toda uma sala com apenas um movimento de suas sobrancelhas negras. Rio o considerava um amigo – todos os guerreiros eram tão próximos que pareciam até mesmo familiares uns dos outros – e Rio odiava com todas as suas forças a possibilidade de tê-lo decepcionado.
– Só dei a ela as informações básicas – respondeu Rio. – Não acredito que ela esteja completamente convencida.
Lucan grunhiu, assentindo pensativamente.
– Realmente, são muitas informações para ela processar. Ela entende o propósito da cripta na montanha?
– Na verdade, não. Ela me ouviu chamando aquilo de câmara de hibernação quando Gideon e eu estávamos conversando, mas não sabe nada além disso. Pode ter certeza de que não pretendo dar mais nenhuma pista a ela. O fato de ela ter visto aquilo já é ruim demais. – Rio exalou um suspiro duro. – Ela é inteligente, Lucan. Não acredito que vá levar muito tempo para juntar as peças do quebra-cabeça.
– Então será melhor agirmos logo. Quanto menos detalhes tivermos que esclarecer posteriormente, melhor – explicou Lucan. Ele lançou um olhar a Gideon, que tinha aberto o laptop de Dylan no console ao seu lado. – Quão difícil acredita que será hackear e acabar com as fotos que ela enviou por e-mail?
– Apagar os arquivos da câmera e do computador é fácil. Demora apenas alguns segundos.
– E quanto a apagar as fotos da caixa de entrada daqueles que as receberam?
Gideon franziu o rosto como se estivesse calculando a raiz quadrada da renda líquida de Bill Gates.
– Algo como dez minutos para enviar uma bomba e estourar o disco rígido de todos os computadores da lista de contatos dela. Treze minutos se você quiser algo mais sutil.
– Eu não estou nem aí com o fator sutileza. – Lucan deixou claro. – Faça o que for necessário para destruir as fotos e destruir qualquer referência escrita ao que ela encontrou na montanha.
– Pode contar comigo – respondeu Gideon, que já se encontrava fazendo sua magia em ambos os dispositivos.
– Podemos destruir os arquivos eletrônicos, mas ainda teremos de tratar com as pessoas com quem ela manteve contato sobre a caverna – esclareceu Rio. – Além do chefe dela, há três mulheres com quem ela estava viajando. E também a mãe dela.
– Vou deixar isso para você – disse Lucan. – Não me importa como você vai fazer isso. Faça-a negar a história, acabe com a credibilidade dela ou saia para encontrar as pessoas com quem ela conversou e apague a memória de cada uma delas. A decisão é sua, Rio. Simplesmente dê um jeito na situação, como sei que você vai fazer.
Rio assentiu.
– Eu lhe dou minha palavra, Lucan. Vou consertar a situação.
A expressão do vampiro da Primeira Geração era tão sombria quanto segura.
– Não duvido de você. Nunca duvidei e nunca duvidarei.
A confiança de Lucan era inesperada, e um presente que Rio não tinha intenção de desperdiçar, independentemente de quão destruído ele soubesse estar. Durante muitos anos, a Ordem e os guerreiros que a serviam eram seu principal propósito na vida – inclusive acima de seu amor por Eva, o que acabou gerando um ressentimento silencioso, porém colérico, nela. Rio estava comprometido com até o último destes homens – como se eles fossem seus parentes de sangue –, comprometido a lutar por eles e, inclusive, a morrer por eles. Ele olhou em volta, sentindo-se humilde pelos rostos sombrios e corajosos dos cinco homens da Raça que ele sabia, sem dúvida alguma, que também dariam suas vidas por ele.
Rio limpou a garganta, sentindo-se desconfortável com as boas vidas praticamente unânimes de seus irmãos. Do outro lado do laboratório, as portas de vidro se abriram quando Nikolai, Brock e Kade chegaram, vindos do corredor. Os três conversavam com empolgação, trazendo um ar de camaradagem quando entraram no laboratório.
– Oi! – disse Niko, lançando a saudação para ninguém em particular. Seus olhos azuis como o gelo pararam em Rio por um segundo antes de ele finalmente olhar para Lucan e começar a detalhar a patrulha da noite. – Acabamos com um Renegado perto do rio há mais ou menos uma hora. O filho da mãe estava escondido em um contêiner de lixo quando o encontramos.
– Você acha que é um dos cachorros de Marek? – perguntou Lucan, referindo-se ao exército de Renegados que seu próprio irmão vinha criando até a Ordem finalmente intervir. Marek tinha morrido pelas mãos da Ordem, mas os vermes de seu exército ainda precisavam ser exterminados.
Nikolai ofereceu um aceno com a cabeça.
– O desgraçado não era um soldado, mas apenas um viciado tentando satisfazer sua sede de sangue. Imagino que só tenha passado algumas poucas noites fora do Refúgio Secreto. E nós o liquidamos facilmente. – O vampiro russo olhou atrás de Rio e lançou um sorriso desajeitado para Dante e Chase. – Alguma ação no lado Sul?
– Não, nada – murmurou Chase. – Estávamos muito ocupados buscando alguém no aeroporto.
Nikolai grunhiu, compreendendo o comentário e lançando um olhar em direção a Rio.
– Faz tempo, hein cara?! É bom ver que você continua inteiro.
Rio conhecia aquele cara muito bem para pensar que o comentário era amistoso. De todos os guerreiros da Ordem, Rio esperava que fosse Nikolai o primeiro na fila para defendê-lo – mesmo se Rio fosse ou não digno de defesa. Niko era o irmão que Rio nunca tivera. Os dois tinham nascido no século anterior e entrado para a Ordem em Boston na mesma época.
Era estranho Niko estar ausente durante a chegada de Rio ao complexo. No entanto, conhecendo o vampiro e seu amor pelo combate, ele provavelmente estava irritado com o fato de sua equipe de patrulha ter sido reduzida algumas horas antes do amanhecer.
Antes que Rio pudesse dizer qualquer coisa a seu velho amigo, a atenção de Nikolai voltou a Lucan.
– O Renegado que encontramos esta noite era jovem, mas a matança que ele tinha deixado para trás parecia ser trabalho de mais de um vampiro. Eu gostaria de retornar lá amanhã e verificar as redondezas. Talvez encontremos mais alguma coisa.
Lucan assentiu:
– Parece uma boa ideia.
Depois de resolver isso, Niko dirigiu sua atenção para Kade e Brock:
– Temos tempo suficiente antes do amanhecer para caçar um pouco. Alguém aí se sentiu com sede de repente?
Os olhos de Kade brilharam como mercúrio.
– Há um lugar em North End que deve ser bem interessante. Lá há um monte de jovens no ponto certo.
– Pode contar comigo – disse Chase com palavras arrastadas, saindo de sua cadeira ao lado de Dante para unir-se aos outros três vampiros não comprometidos conforme eles começavam a caminhar na direção da saída do laboratório.
Por um instante, Rio os observou partir. Entretanto, quando viu Nikolai sair junto aos outros, xingou em voz baixa e, logo depois, correu atrás dele.
– Niko, espere.
O guerreiro seguiu seu caminho, como se não tivesse ouvido nada.
– Espere, cara. Caramba, Nikolai. Que diabos está acontecendo com você?
Quando Chase, Brock e Kade pararam para olhar atrás, Niko acenou para que eles continuassem. Os três seguiram seu caminho, virando no canto do corredor e desaparecendo de vista. Depois de uns poucos segundos, finalmente, Niko deu meia-volta.
O rosto que olhava para Rio no túnel branco era duro e incompreensível.
– Sim. Estou aqui. O que você quer?
Rio não sabia como responder àquilo. A hostilidade saiu da boca de seu velho amigo como um vento frio de inverno.
– Fiz algo que o incomodou?
O som da risada de Nikolai raspava contra as paredes de mármore.
– Vá se ferrar, cara.
Nikolai deu meia-volta e começou a se afastar novamente.
Rio o alcançou em um piscar de olhos. Estava a ponto de agarrar o ombro do guerreiro e obrigá-lo a parar, mas Niko se movimentou com mais agilidade. O vampiro russo virou-se e golpeou Rio, acertando-o no esterno, fazendo-o bater a coluna contra a sólida parede no outro lado do corredor.
– Você quer morrer, seu filho da mãe? – Niko estava com os ombros entreabertos, a cor âmbar acesa como resultado de toda aquela ira. – Se você quer se matar, é problema seu. Só não peça a minha ajuda, está bem?
Os músculos de Rio estavam retesados e prontos para uma briga. Seus instintos de combate se tornaram mais aguçados, apesar de ele estar enfrentando um aliado de longa data. No entanto, enquanto Nikolai falava, a fúria que cresceu em Rio rapidamente se reduziu. De repente, a cólera que Niko sentia contra ele fez sentido. Afinal, Nikolai sabia que Rio tinha ficado naquela montanha da Boêmia com intenções de acabar com a própria vida. Se Niko não tinha se dado conta disso cinco meses atrás, agora ele tinha certeza.
– Você mentiu para mim – esbravejou Niko. – Você me olhou diretamente nos olhos e mentiu para mim, cara. Você nunca ia voltar para a Espanha. O que pretendia fazer com o C-4 que eu dei para você? Você pretendia detonar aquela droga presa ao seu corpo, como se fosse um camicase se divertindo. Ou talvez você só estivesse planejando se prender no interior daquela maldita caverna e ficar lá, esquecido por toda a eternidade. O que você ia fazer, amigo? Como você pretendia acabar com a própria vida?
Rio não respondeu. Não era necessário. De todos os guerreiros da Ordem, Nikolai era o que melhor o conhecia. Nikolai tinha visto Rio como o covarde e fraco que ele realmente era. Só ele sabia o quão próximo Rio tinha estado de dar um fim a tudo – antes mesmo de ele chegar àquela montanha tcheca.
Tinha sido Niko quem se negara a deixar Rio mergulhar no ódio que sentia de si. E, então, evitar que entrasse naquela espiral de negatividade tinha se tornado sua missão pessoal. Niko, que ajudou Rio a subir na montanha nas semanas que se seguiram, caçando para o amigo que estava fraco demais para cuidar dele mesmo. Nikolai, o irmão que Rio nunca tivera.
– Sim – disse Niko, fechando uma carranca. – Como disse. Vá se ferrar.
Ele tirou o braço do peito de Rio e se afastou, ainda rangendo alguns xingamentos. Rio o viu se distanciar. Os sapatos de Niko pareciam mastigar o piso de mármore polido quando ele se apressou para juntar-se aos outros guerreiros que já estavam a caminho do piso superior.
– Que droga! – murmurou Rio, correndo a mão pelos cabelos.
O choque com Nikolai era só mais uma evidência de que ele não devia ter retornado a Boston – mesmo que isso significasse jogar o problema Dylan Alexander nas mãos de outra pessoa. Rio já não se encaixava ali. Agora ele era um estranho, um elo fraco em meio a uma cadeia de aço, formada pelos corajosos guerreiros da Raça.
Ainda agora ele conseguia sentir suas têmporas latejarem por conta da descarga de adrenalina que tinha ocorrido alguns minutos atrás, quando parecia que Niko queria cortá-lo em pedaços. Sua visão começou a tremer enquanto ele estava parado ali. Se não se movesse e encontrasse um local privado para aguentar a crise mental que estava por vir, Rio sabia que seria questão de minutos antes que acordasse caído sobre o mármore que revestia o chão do corredor. E, francamente, ver Lucan e aos outros saírem do laboratório para olhá-lo fixamente como se ele fosse um moribundo era algo que não queria experimentar.
Ele forçou suas pernas a se movimentarem e, com uma dificuldade acentuada, conseguiu encontrar o caminho de volta até seus aposentos. Entrou, cambaleando, e fechou a porta. Em seguida, entregou-se a uma nova sensação de náusea que o invadiu.
– Você está bem?
A voz feminina vinha de algum ponto distante naquele cômodo. A princípio, não a reconheceu. Seu cérebro estava lutando para realizar as tarefas básicas. Aquela voz brilhante e cristalina não parecia pertencer àquele lugar cheio de lembranças antigas e empoeiradas.
Rio se distanciou da porta e se arrastou pela sala, em direção ao quarto. Seu cérebro transmitia a impressão de que se despedaçaria a qualquer momento.
Água quente. Escuridão. Tranquilidade. Ele precisava dessas três coisas. Imediatamente.
Rio tirou a camisa e a deixou cair no ridículo sofá de veludo de Eva. Ele realmente tinha que queimar todos seus pertences. E era uma pena que ele não tinha como jogar aquela maldita traidora na fogueira junto com todo o resto.
Rio se agarrou à sua fúria pela traição de Eva, um leve castigo, mas aquilo era tudo o que tinha no momento. Abriu as portas do quarto e ouviu um leve suspiro vindo lá de dentro.
– Meu Deus! Rio, você está bem?
Dylan.
O nome dela atravessava como um bálsamo a névoa que envolvia a mente de Rio. Ele levantou o olhar na direção de sua convidada indesejada, que agora estava sentada no canto da cama com algo plano e retangular apoiado em seu colo. Ela deixou o objeto de lado, no criado-mudo, e se aproximou antes que os joelhos dele cedessem.
– Banho – ele conseguiu grunhir.
– Você mal consegue parar em pé – Dylan o ajudou a alcançar a cama, onde ele rapidamente deixou o corpo cair. – Parece que você precisa de um médico. Há alguém aqui que possa ajudá-lo?
– Não – ele respondeu com uma voz rouca. – Uma ducha...
Rio estava fraco demais para usar sua habilidade mental da Raça e abrir o registro da água, mas ele não precisou sequer tentar. Dylan já estava se apressando na direção do banheiro ao lado. Ouviu o forte estalar da água batendo contra o chão e, em seguida, os suaves passos de Dylan no carpete enquanto ela retornava para onde estava caído, com o corpo virado na direção dos pés da cama.
Rio percebeu vagamente a desaceleração dos passos da mulher conforme ela se aproximava. Apenas escutou a respiração rápida logo acima de seu corpo. Mas era impossível confundir quem estava ali quando ela soltou, com a respiração trêmula, alguns palavrões. Um silêncio pesado e demorado se seguiu ao xingamento sussurrado. Em seguida:
– Rio... Meu Deus! Por que tipo de inferno você passou?
Lançando mão até mesmo da última gota de força que tinha, ele conseguiu abrir os olhos. Um erro enorme. O horror que ele viu nos olhos de Dylan era inegável. Ela estava olhando o lado esquerdo de seu corpo... O peito e o torso, que tinham sido destruídos por uma granada que quase esfolou seus ossos com as chamas da explosão que por pouco não lhe tirara a vida.
– Ela... – suave voz de Dylan foi se tornando cada vez mais fraca. – Sua esposa tem algo a ver com o que aconteceu com você?
Rio sentiu seu coração parar de bater. O sangue que antes pulsava fortemente em seus ouvidos se transformou em gelo quando ele conseguiu se concentrar na pergunta de Dylan. A preocupação estampava seu rosto.
– Ela fez isso com você, Rio?
Ele seguiu a mão estendida de Dylan enquanto ela alcançava o objeto que tinha deixado no criado-mudo. Era uma fotografia em um porta-retratos. Rio não precisava ver a foto no vidro para saber que era de Eva, de um passeio que eles tinham feito no Charles River certa noite. Eva, sorrindo. Eva, dizendo o quanto o amava. Enquanto, em suas costas, ela conspirava com os inimigos da Ordem para conquistar seus objetivos egoístas.
Rio grunhiu quando pensou em sua própria burrice. Em sua própria cegueira.
– Isso não é da sua conta – murmurou, ainda à deriva da escuridão que tomava conta de sua mente. – Você não sabe nada a respeito dela.
– Foi ela quem me levou até você. Eu a vi na montanha em Jicín.
Uma suspeita irracional transformou a ira de Rio em um sentimento letal.
– Do que você está falando? Como assim, você a viu?
Dylan engoliu em seco e encolheu levemente o ombro. Em seguida, segurou a fotografia diante dele.
– Eu a vi... O espírito dela estava lá. Ela estava na montanha com você.
– Você só pode estar mentindo – ele grunhiu. – E não me fale dessa mulher. Ela está morta, e merecidamente.
– Ela pediu que eu o ajudasse, Rio. Ela me procurou. Queria que eu salvasse você...
– Já disse para você parar de falar dela! – ele esbravejou.
A raiva fez com que o corpo de Rio estremecesse no colchão como uma víbora sendo atacada. Ele puxou o retrato das mãos de Dylan e o atirou pelo quarto com uma velocidade impressionante. O objeto bateu contra o enorme espelho na parede de frente com a cama, quebrando-o com o impacto e lançando cacos de vidro polido como uma chuva de lâminas.
Rio ouviu o grito de Dylan, mas foi somente quando ele sentiu o cheiro adocicado do sangue dela que se deu conta do que tinha feito.
Ela levou a mão até a maçã do rosto e, quando seus dedos se afastaram, estavam manchados de vermelho por conta de um pequeno ferimento logo abaixo do olho esquerdo.
Foi a visão daquela ferida que tirou Rio daquele espiral de depressão. Como um balde de água fria jogada sobre sua cabeça, ver Dylan ferida o puxou instantaneamente de volta para a realidade.
– Ah, Jesus Cristo! – disse ele com dentes apertados. – Eu sinto muito... Sinto muito!
Ele se moveu para tocá-la, para verificar o quanto a tinha ferido, mas ela se afastou com os olhos completamente aterrorizados.
– Dylan... eu não queria...
– Fique longe de mim!
Ele estendeu a mão, buscando demonstrar que realmente não queria feri-la.
– Não – ela estremeceu enquanto sacudia violentamente a cabeça. – Ah, meu Deus. Não me toque!
Madre de Dios.
Ela agora o olhava com um terror absoluto. E tremia. Seus olhos estavam fixos nele, banhados de medo e confusão.
Quando Rio passou a língua pelas pontas de suas presas salientes, ele entendeu a fonte do terror que Dylan sentia. Ele se levantou diante dela. Ela temia porque ele lhe tinha dito ser um vampiro, embora aquela mente humana tivesse se recusado a acreditar.
Agora, todavia, ela acreditava.
Dylan estava vendo a verdade com seus próprios olhos, as mudanças físicas no corpo de um louco cheio de cicatrizes que agora se transformava em uma criatura saída diretamente de seus piores pesadelos. Era impossível esconder as presas que se tornavam mais longas conforme a fome por ela se intensificava. Era impossível mascarar o afinamento daquelas pupilas conforme o brilho âmbar da sede de sangue embaçava sua visão.
Ele olhou para o pequeno corte, para o fio de sangue que escorria tão vermelho contra a pele macia da bochecha de Dylan. E ele mal conseguia formular um pensamento coerente.
– Eu tentei contar para você, Dylan. Isso é o que eu sou.
Capítulo 16
– Vampiro.
Dylan ouviu a palavra escapar por seus lábios, apesar do fato de mal poder acreditar no que estava vendo – ou dizendo.
Em questão de instantes, Rio tinha se transformado diante dos olhos de Dylan e ela olhava chocada as mudanças que acabara de presenciar. As íris dos olhos dele brilhavam como brasas e não tinham mais a cor topázio habitual. Em vez disso, estavam estampadas com uma inacreditável sombra âmbar que praticamente engolia as pupilas extremamente reduzidas. Os ossos da face de Rio pareciam mais duros agora, ostentando as esguias maçãs do rosto e uma mandíbula quadrada que parecia ter sido esculpida em pedra.
E, atrás do suculento e exuberante corte formado por sua boca, Rio exibia um par de presas que pareciam ter saído diretamente de algum filme de Hollywood.
– Você... – A voz de Dylan desapareceu conforme aqueles hipnóticos olhos cor de âmbar a encararam. Ela se sentou delicadamente na beirada da cama. – Meu Deus... Você realmente é um...
– Eu sou da Raça – ele pronunciou calma e articuladamente. – Exatamente como lhe disse.
Dylan estava sentada diante de Rio, e agora sua visão era preenchida completamente pela ampla musculatura do peito nu do vampiro. O intrincado desenho na pele dos antebraços subia pelos ombros de Rio e descia ao longo de seu peitoral. Todas as marcas – dermoglifos, como ele havia chamado da primeira vez em que ela as percebera – eram de uma cor vívida agora, a cor mais escura que Dylan já as tinha visto ostentar. Tramas profundas de cor púrpura e negra saturavam os belos desenhos e as linhas em forma de arcos.
– Não consigo impedir a transformação – ele murmurou, como se tivesse necessidade de dar uma justificativa a Dylan. – A transformação é espontânea nos machos da Raça quando sentimos o cheiro de sangue fresco.
O olhar dele desviou-se ligeiramente dos olhos de Dylan, e logo repousou na bochecha ferida pelos estilhaços do espelho quebrado. A mulher sentia que ainda havia sangue quente deslizando como uma lágrima por seu queixo. Rio assistia àquela gota deslizar com uma intensidade que fazia Dylan estremecer. Ele passou a língua pelos lábios sensuais e engoliu seco, mas manteve seus dentes cerrados o tempo todo.
– Fique aqui – ele ordenou com uma voz forte e autoritária enquanto franzia a testa com intensidade.
O instinto de Dylan lhe dizia que ela devia ser mais inteligente e correr, mas ela se recusava a sentir – ou, melhor dizendo, a demonstrar sentir – medo daquele homem enorme que estava sem camisa em sua frente. Por mais estranho que parecesse, Dylan sentia que tinha realmente conhecido aquele homem nos últimos dias, durante os quais eles foram obrigados a conviver. Rio não era nenhum santo, aquilo era um fato. Ele a tinha raptado, aprisionado e ela ainda não estava certa sobre o que ele queria fazer com ela – Santo Deus! No entanto, ela não acreditava que ele fosse perigoso – não para ela.
O que Dylan acabara de testemunhar ali não era exatamente algo a ser celebrado, mas, em seu coração, ela não sentia medo do que ele era.
Bem, não completamente.
Dylan ouviu quando Rio desligou o registro do chuveiro e saiu, poucos segundos depois, segurando uma toalha branca e umedecida que ele ofereceu para ela.
– Pressione isso contra a ferida. Vai estancar o sangramento.
Dylan tomou a toalha em suas mãos e a pressionou no rosto, exatamente como ele lhe dissera. Ela, porém, não pôde deixar de perceber a longa expiração que ele soltou quando a ferida em sua bochecha fora finalmente coberta, como se agora estivesse aliviado por não precisar mais passar pelo inferno de ter de olhar para aquilo e resistir. A cor ardente dos olhos de Rio começou a escurecer lentamente e as pupilas estreitas reassumiram a forma arredondada. Os dermoglifos, no entanto, ainda estavam avermelhados; as presas, ainda mortalmente afiadas.
– Você realmente é um... não é? – ela murmurou. – Você é um vampiro. Jesus Cristo! Não consigo acreditar que isso seja verdade. Quer dizer, como isso pode ser verdade, Rio?
Ele se sentou ao lado dela na cama. Menos de um metro de distância os separava agora.
– Eu já expliquei isso para você.
– Extraterrestres bebedores de sangue e mulheres humanas com DNA compatível com os deles – disse ela, recordando-se da estranha história sobre a raça híbrida de vampiros que ela tentara encarar como ficção científica. – Tudo isso é verdade?
– A verdade é um pouco mais complicada do que isso, mas sim... Tudo o que eu lhe disse é verdade.
Incrível.
Totalmente incrível.
Uma parte mercenária dela quase gritou de excitação ao pensar na potencial fama e fortuna que a revelação daquela história poderia lhe trazer. Mas havia outra parte de Dylan – a que não tinha se esquecido daquela incomum marca de nascença que ela trazia gravada na parte de trás do pescoço, a parte que ainda se lembrava de que ela tinha, aparentemente, uma forte conexão com aquele mundo – que mostrou instantaneamente seus instintos protetores, como se Rio e o mundo em que ele vivia fossem um delicioso segredo que pertencia exclusivamente a ela.
– Desculpe-me se eu chateei você – ela disse serenamente. – Eu não devia ter bisbilhotado as coisas enquanto você não estava aqui.
A cabeça dele se virou bruscamente e sua testa enrugou-se, levando as sobrancelhas a se unirem. O xingamento que ele murmurou foi forte e palpável.
– Você não precisa me pedir desculpas, Dylan. Fui eu quem errou. Eu nunca deveria ter entrado aqui no estado em que estava. Eu não posso ficar perto de ninguém quando estou daquele jeito.
– Você parece estar um pouco melhor agora.
Ele assentiu, sua cabeça caindo levemente em direção ao peito nu.
– A raiva diminui... no final. Se você não apagar antes, ela em algum momento... passa.
Não fazia muito tempo que Rio aparecera cambaleando no quarto, bastante desatento, com seus pés mal respondendo aos passos dificultosos que ele tentava dar. Ele mal conseguia pensar, seus músculos e ossos estavam embebidos em uma fúria insana.
– O que desperta isso, Rio?
Ele deu de ombros.
– Pequenas coisas, nada em especial. Nunca sei, exatamente.
– Aquele tipo de raiva faz parte do que você é? Todos os homens da Raça têm de passar por esse tipo de tormento?
– Não – disse, soltando o tipo de sorriso de alguém que está zombando de si. – Não. Esse problema é apenas meu. Falta um parafuso na minha cabeça. Eu o perdi no verão passado e nunca mais o encontrei.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan gentilmente. – Foi isso que aconteceu com você?
– Foi um erro – ele respondeu com uma ponta de insegurança na voz. – Eu confiei em alguém em quem não deveria ter confiado.
Dylan olhou para o dano terrível que o corpo de Rio tinha sofrido. O rosto e o pescoço dele carregavam graves cicatrizes, mas seu ombro esquerdo e metade de seu torso musculoso pareciam ter ido e voltado do inferno. Seu coração apertou-se em seu peito quando ela pensou na dor que ele deveria ter suportado, tanto no acontecimento que ferira seu corpo daquela forma, quanto no que provavelmente foram meses e meses de recuperação.
Ele estava ali, sentado naquela cama tão rigidamente, tão solitário e tão inalcançável, apesar de estar a menos de um braço de distância dela. Para Dylan, Rio parecia sozinho. Sozinho e à deriva.
– Sinto muito, Rio – disse ela. E antes que pudesse se interromper, Dylan colocou sua mão sobre a mão dele, que ele agora descansava sobre a coxa. ele estremeceu como se carvão em brasa tivesse sido colocado sobre sua pele. Todavia, não se afastou.
Ele olhou fixamente para os dedos de Dylan que descansavam suavemente sobre os dele, branco pálido sobre um tom bronzeado. Quando olhou para ela, lançou-lhe um olhar rústico e másculo que preenchia seus olhos completamente. Ela se perguntava quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele fora tocado com algum tipo de ternura.
Dylan deslizou seus dedos sobre a mão máscula de Rio, estudando o incrível tamanho e a enorme força que ela tinha. A pele dele era tão quente e havia tanta força concentrada em seu corpo, mesmo quando ele parecia determinado a manter-se perfeitamente parado.
– Sinto muito por tudo o que você enfrentou, Rio. Sinto de verdade.
A mandíbula dele estava tão apertada que fez um músculo de seu rosto se contrair. Dylan colocou de lado a toalha umedecida que ele tinha lhe trazido e mal percebia que todos os seus sentidos estavam concentrados nele e na eletricidade que parecia emanar de suas mãos entrelaçadas.
Ela ouviu um ruído baixo se formar dentro de Rio, algo entre um grunhido e um gemido. O olhar dele deslizou para a boca de Dylan, e, por um segundo – um rápido, um breve segundo que teria durado o tempo de uma batida do coração – ela se perguntou se ele iria beijá-la.
Dylan sabia que devia retroceder. Sabia que devia tirar sua mão de cima da mão dele, colocá-la longe. Sabia que devia fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não fosse ficar ali, parada, quase sem respiração enquanto esperava e desejava – desejava desesperadamente, incontrolavelmente – que ele se debruçasse sobre ela e apertasse seus lábios contra os dele.
E, de repente, ela não conseguia mais não tocá-lo. Foi quando estendeu a mão que estava livre e acariciou o rosto de Rio, sentindo um repentino sopro de ar gelado empurrá-la – com a imponência da Grande Muralha da China.
– Não quero sua compaixão – grunhiu Rio com uma voz que ela não reconheceu como sendo dele. O sotaque espanhol estava ali, como sempre, mas as sílabas eram ásperas e o timbre não era exatamente humano, o que imediatamente fez Dylan se lembrar de qual era a natureza daquele ser diante dela. Rio puxou a mão de debaixo da dela e se levantou da cama.
– O corte está sangrando. Você precisa de cuidados que não posso lhe oferecer.
– Tenho certeza de que não é nada grave – respondeu Dylan, sentindo-se uma idiota por se colocar em uma situação como aquela com ele. Depois, pegou novamente a toalha que descartara momentos antes e a pressionou outra vez contra o ferimento. – Não é nada. Vou ficar bem.
Não havia sentido algum em Dylan falar qualquer coisa que fosse, já que Rio não a ouviria, de qualquer forma. Ela o viu caminhar até a sala da frente, passando pelo espelho quebrado, e pegar um telefone sem fio, no qual imediatamente teclou uma sequência curta de números.
– Dante? Olá. Não, nenhum problema. Mas eu, é... Tess está por aí? Preciso que ela me faça um favor.
Rio parecia um animal enjaulado, andando de um lado para o outro durante os poucos minutos que se passaram até a ajuda chegar. Ele ficou do lado de fora do quarto, confinado a um espaço minúsculo perto da entrada principal. Ficou tão distante de Dylan quanto poderia ficar sem de fato ter de sair daquele maldito quarto e esperar do lado de fora.
Madre de Dios.
Ele quase lhe beijara.
E ele queria tê-la beijado. E admitir aquilo – mesmo que apenas para si – era como levar um soco no estômago. Beijar Dylan Alexander era uma maneira garantida de transformar uma situação que já era bastante ruim em algo que seria, de fato, catastrófico. Isso porque Rio sabia sem qualquer sombra de dúvida que, se beijasse aquela bela e ardente mulher, ele não conseguiria se conter, não conseguiria, de forma alguma, parar no beijo. Não, mesmo.
O simples pensamento da sensação que seria a de pressionar seus lábios contra os dela já fazia o sangue de Rio ferver e correr acelerado em suas veias. Seus dermoglifos pulsavam com as cores de seu desejo – agitando-se em tons de vermelho-escuro e negros. E também era impossível negar a outra evidência daquele desejo: seu pênis estava tão duro quanto granito, e estava daquele jeito desde o instante em que Dylan, inesperadamente, inadvertidamente, pousara a mão sobre sua coxa.
Jesus Cristo!
Ele sequer se atrevia a olhar para dentro do quarto, com medo de não ser capaz de impedir seus pés de marcharem de volta pelas portas fechadas e levarem-no diretamente para os braços de Dylan.
“Como ela provavelmente desejava” – ele pensou ardentemente.
Aquela carícia que Dylan fizera em sua mão tinha sido um gesto delicado, doce, do tipo que uma mãe faz em uma criança. Ou, pior do que isso, aquele gesto poderia ter sido um gesto de compaixão de um anjo caridoso que consola uma das criaturas mais infelizes criadas por Deus.
Maldecido.
Manos del diablo.
Monstruo.
Sim, Rio era todas essas coisas. E agora Dylan tinha visto como ele era realmente feio. Para seu crédito, ela não tinha recuado ao ver toda aquela carne retorcida e aquelas presas – o que queria dizer então que ela era muito mais forte do que aquilo tudo. Mas acreditar que ela poderia receber, poderia desejar seu toque? Que ela poderia aproximar-se o suficiente de seu rosto arruinado e permitir que ele a beijasse?
Jamais! E ele agradeceu a Deus por aquilo, pois aquilo lhe tinha poupado de ver a repugnância dela. Aquilo lhe tinha poupado de fazer algo realmente idiota, como se esquecer – ainda que por um segundo apenas – de que ela estava ali, no complexo – ali, em seu quarto – somente até que ele corrigisse o erro que cometera ao permitir que ela se aproximasse daquela maldita caverna em Jicín. Quanto mais rápido ele conseguisse fazer aquilo – consertar aquele erro – e mandar Dylan para casa, melhor.
Um golpe seco ecoou contra a porta.
Rio atendeu, com um grunhido de frustração.
– Você soava péssimo ao telefone, então decidi vir com Tess e ver com meus próprios olhos. – A boca de Dante curvou-se em um sorriso arrogante que só ele sabia dar enquanto seu corpo enorme permanecia parado na soleira da porta ao lado de sua bela Companheira de Raça. – E então, você não vai nos deixar entrar, cara?
– Claro.
Rio deu um passo para o lado, abrindo espaço para o casal entrar.
A companheira de Dante parecia ainda mais bela sob a luz daquele quarto. As longas ondas cor de mel de seus cabelos estavam presas em um rabo de cavalo frouxo e seus inquiridores olhos verde-mar eram suaves, mesmo quando encaravam Rio.
– É bom vê-lo novamente, Rio – disse ela, e, sem hesitação, deu um passo adiante e ficou na ponta dos dedos dos pés para dar um abraço rápido no guerreiro e beijar-lhe levemente a bochecha. – Dante e eu ficamos tão preocupados com você durante esses meses todos...
– Não precisava – respondeu Rio, embora não pudesse negar que aquela preocupação o deixava, de certa forma, feliz.
Tess e Dante estavam juntos desde o final do último outono. Ela tinha entrado para a Ordem com um extraordinário dom de curar e restaurar a vida com o simples toque de suas mãos macias. O toque de Tess tinha um poder inimaginável, mas nem mesmo ela fora capaz de consertar todos os danos que Rio tinha sofrido. Ele já estava muito longe quando ela chegou ao complexo, e as cicatrizes dele – tanto as interiores quanto as exteriores – eram permanentes, embora não fosse por falta de tentativas de Tess.
Dante passou o braço musculoso em volta de sua Companheira de Raça em um movimento que era protetor e respeitoso ao mesmo tempo. E foi então que Rio notou a leve protuberância no ventre dela. Tess percebeu o olhar de Rio e abriu um sorriso tão imaculado quanto o da própria Madonna de Botticelli.
– Estou nos primeiros três meses – ela disse, virando-se toda sorridente para Dante. – Alguém está usando isso como desculpa para me mimar.
Dante sorriu.
– Eu? Por favor...
– Felicidades – murmurou Rio, sinceramente sentindo os votos que desejava.
Não era comum guerreiros e Companheiras de Raça começarem uma família dentro da Ordem. Aliás, praticamente não se ouvia falar daquilo. Os homens da Raça que dedicavam suas vidas à luta contra os Renegados não eram tipos muito familiares, por assim dizer. Mas acontece que Dante nunca fora como esses guerreiros, então...
– Onde está Dylan? – perguntou Tess.
Rio gesticulou, apontando para as portas que estavam fechadas.
– Eu fui um idiota com ela. Tive uma crise e... Droga! Acabei quebrando o espelho. Um dos estilhaços acabou atingindo o rosto dela.
– Você ainda está tendo apagões? – perguntou novamente Tess, franzindo a testa. – As dores de cabeça ainda não passaram?
Rio recuou, obviamente não querendo falar sobre seus próprios problemas.
– Eu estou bem. – Foi tudo o que ele disse. – Apenas cuide dela, certo?
– Eu cuidarei. – Tess pegou uma pequena maleta médica das mãos de Dante, sob o olhar interrogativo de Rio, e completou:
– Desde que eu engravidei, minhas habilidades diminuíram. Eu entendo que, na gravidez, é normal a energia da Companheira de Raça se voltar para dentro do próprio corpo. As coisas vão voltar ao normal quando o bebê nascer. Até lá, terei de me apoiar na boa e velha medicina tradicional.
Rio lançou um olhar sobre seus ombros para dentro do quarto. Ele não conseguia ver Dylan, mas imaginou que ela estava lá dentro, precisando ver alguém gentil e carinhoso. Alguém que pudesse melhorar seu humor e conversar com ela como uma pessoa normal; alguém que pudesse tranquilizá-la, dizer-lhe que ela estava segura, que estava entre pessoas em quem ela podia confiar. Especialmente depois da espetacular demonstração de raiva psicótica e desregrada que ele, Rio, tinha feito para ela.
– Está tudo bem – disse Tess. – Não se preocupe, vou cuidar dela.
Com o punho fechado, Dante golpeou levemente o bíceps bem definido de Rio.
– Venha – disse –, vamos dar o fora daqui. Ainda falta uma hora para o amanhecer. E parece que você está precisando tomar um pouco de ar fresco, cara.
Capítulo 17
Dylan estava agachada perto do pé da cama, recolhendo cacos de vidro, quando as portas se abriram suavemente, abrindo caminho para o dormitório.
– Dylan?
Aquela era uma voz feminina. A mesma que, havia um minuto, ela tinha ouvido conversar baixinho com Rio e outro homem. Dylan olhou para cima e sentiu o calor instantâneo de um olhar brilhante que estava logo acima dela.
A mulher, jovem e bela, sorriu.
– Olá. Meu nome é Tess.
– Olá.
Dylan deixou um caco de vidro de lado e inclinou o corpo para recolher outro.
– Rio me pediu para vir ver se você estava bem.
Tess trazia consigo uma bolsa de couro preta quando entrou nos aposentos.
– Você está bem? – insistiu.
Dylan assentiu.
– É só um arranhão.
– Rio está se sentindo péssimo por causa disso. Ele anda passando por... problemas. Já faz algum tempo. Desde a explosão do armazém no verão passado. Ele tem sorte de estar vivo.
Meu Deus! Então isso explicava as queimaduras e as cicatrizes. Uma explosão havia feito aquilo? Quer dizer então que Rio realmente tinha feito uma viagem de ida e volta para o inferno, como Dylan havia suposto.
Tess continuou:
– Por causa do trauma cerebral causado pela explosão, ele tem blecautes de tempos em tempos. Além disso, Rio também tem fortes dores de cabeça, mudanças de humor... Bem, acredito que você deve ter visto com seus próprios olhos. Não é coisa para brincadeira. Mas ele não quis feri-la, disso eu tenho certeza.
– Estou bem – insistiu Dylan, sem se preocupar com o arranhão em sua bochecha. – Tentei dizer para ele que isto aqui não era nada. O corte nem está sangrando mais.
– É um alívio – disse Tess enquanto colocava a bolsa médica sob a escrivaninha. – Fico contente de saber que não é tão grave quanto Rio temia. Da forma como ele descreveu pelo telefone, pensei que teríamos que dar pelo menos meia dúzia de pontos. Mas pelo que vejo, um pouco de antisséptico e um curativo serão suficientes – Tess caminhou por onde Dylan recolhia os pedaços do espelho despedaçado. – Venha, deixe-me ajudá-la.
Quando Tess se aproximou, Dylan se deu conta de que a palma da mão de Tess estava apoiada sobre a curva na barriga. Ela estava grávida. E não foi apenas pela aparência física que Dylan percebeu, mas pelo fato de aquela mulher resplandecer com um brilho interior que não deixava dúvida alguma.
Além disso – e, talvez ainda mais estranho –, na mão que repousava sobre as primeiras fases de um bebê em desenvolvimento, havia uma pequena marca de nascença. Dylan não pôde deixar de olhar fixamente para a lágrima escarlate e a meia-lua na mão direita daquela mulher – a mesma marca com a qual ela tinha nascido, aquela que trazia no pescoço.
– Você vive aqui? – perguntou Dylan. – Com... eles?
Tess assentiu.
– Vivo com Dante. Ele é um guerreiro da Ordem, como Rio e os outros que vivem aqui no complexo.
Dylan acenou na direção da pequena marca de nascimento entre o polegar e o indicador de Tess:
– Você é a... Companheira de Raça dele? – perguntou, recordando o termo que Rio tinha usado depois de perceber que Dylan tinha uma marca idêntica àquela. – Você se casou com um deles?
– Dante e eu procriamos no ano passado – explicou Tess. – Fomos unidos por nosso sangue, o que nos liga de uma forma muito mais profunda do que o casamento. Imagino que Rio já tenha lhe dito algumas coisas sobre a Raça... Como eles vivem, de onde vêm. Depois do que aconteceu, estou segura de que você não tem dúvidas do que eles são.
Dylan assentiu, ainda sem acreditar que tudo aquilo poderia ser realmente verdade.
– Vampiros.
Tess sorriu gentilmente.
– Isso foi o que eu pensei a princípio. Porém, defini-los não é algo tão simples assim. A Raça é um pouco complicada. Eles vivem em um mundo complexo e cheio de inimigos. As coisas podem ser muito perigosas para eles e para quem os ama. Para os poucos homens que se comprometeram com a Ordem, cada noite é um risco para suas vidas.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan com um tom que deixava transparecer seu espanto. – A explosão que feriu Rio... foi algum acidente terrível?
Uma expressão de dor tomou conta do rosto de Tess. Ela estudou Dylan por um momento, como se não estivesse segura do quanto poderia contar. No entanto, ela logo sacudiu ligeiramente a cabeça.
– Não. Não foi um acidente. Alguém próximo de Rio o traiu. A explosão aconteceu durante uma investida em um velho armazém da cidade. Rio e os demais membros da Ordem se viram em uma emboscada.
Dylan olhou para baixo e se deu conta de que estava observando o porta-retratos que Rio tinha jogado pelo quarto durante seu ataque de raiva. Cuidadosamente o recolheu. Tirou a teia de aranha de cima do vidro quebrado sobre a imagem e observou os exóticos olhos escuros e o sorriso triste e distante.
– Eva – confirmou Tess. – Ela era a Companheira de Raça de Rio.
– Mas ela o traiu?
– Sim – Tess respondeu depois de uma longa pausa. – Eva fez um acordo com um dos inimigos da Ordem, com um poderoso vampiro que também era o irmão do líder da Ordem, Lucan. Para que este vampiro obtivesse informação que o ajudasse a matar Lucan, algo que Eva queria tanto quanto o inimigo, ela pediu duas coisas: que Rio sobrevivesse e que fosse ferido o suficiente para nunca mais conseguir lutar.
– Meu Deus! – ofegou Dylan. – E ela conseguiu o que queria?
– Não exatamente. A Ordem caiu em uma emboscada, apoiada nas informações que Eva entregou, mas o vampiro com o qual ela negociou não tinha a menor intenção de manter sua parte do acordo. Ele colocou uma bomba no local. A explosão poderia ter matado a todos, mas, ironicamente, Rio foi o mais atingido. E posteriormente ele veio a descobrir que Eva tinha sido a responsável por tudo aquilo.
Dylan não conseguia falar. Ela tentava absorver o peso que tudo aquilo deveria ter para Rio. Não apenas a dor física causada por aquelas lesões, mas também a dor emocional da traição sofrida por ele.
– Eu a vi. – Dylan olhou para Tess e viu a testa da mulher franzir. A confusão se tornava evidente naquele olhar carregado de interrogações. Dylan conhecia Tess há poucos minutos e não estava acostumada a falar sobre si com ninguém, em especial falar de seu segredo, de seu dom, daquilo que a tornava tão diferente dos outros humanos. No entanto, havia algo nos olhos cheios de cuidado de Tess que levava Dylan a confiar que estava segura. Ela tinha sentido uma afinidade instantânea que a fez saber que estava com uma amiga.
– Os mortos aparecem para mim de vez em quando. Bem, mulheres mortas, melhor dizendo. Eva apareceu para mim alguns dias atrás, quando eu estava viajando com algumas pessoas pelos arredores de Praga.
– Ela... apareceu para você...? – perguntou Tess com cautela. – O que você quer dizer com isso?
– Eu vi o espírito dela, por assim se dizer. Ela me guiou até uma caverna oculta. Eu não sabia, mas Rio estava lá dentro. Ela... Eva me levou até lá e me pediu que o salvasse.
– Meu Deus! – Tess acenou lentamente com a cabeça. – Ele sabe?
Dylan olhou significativamente para a destruição ainda sob seus pés.
– Sim, Rio sabe. Quando eu contei para ele, ele ficou louco.
O olhar de Tess transformou-se quase em um pedido de desculpa.
– Ele tem muita raiva de tudo que seja relacionado à Eva.
– É compreensível – respondeu Dylan. – Ele está bem, Tess? Quer dizer, considerando o que viveu, Rio vai ficar... bem?
– É o que eu espero. É o que todos nós esperamos. – Tess inclinou a cabeça ligeiramente, estudando Dylan. – Você não tem medo dele?
Não, Dylan não o temia. Tinha curiosidade de saber mais sobre Rio, e incerteza com relação às intenções dele quanto a ela. Mas não tinha medo. Embora isso parecesse loucura, mesmo depois de vê-lo tendo aquela reação naquele mesmo cômodo, Dylan não o temia. Aliás, pensar em Rio provocava muitas coisas nela, mas nenhuma delas era medo. Não mesmo.
– Você acha que eu deveria temê-lo? – perguntou.
– Não, claro que não – disse Tess sem vacilar. – Quer dizer, as coisas não devem estar sendo fáceis para você. Deus sabe que não aceitei muito bem no início, quando ouvi pela primeira vez toda essa coisa de sangue, presas e guerra.
Dylan encolheu o ombro.
– Eu escrevo para uma publicação que é quase um tabloide. Acredite, já escutei muitas coisas bizarras. Não me assusto com facilidade.
Tess sorriu, mas não manteve o olhar cruzado com o de Dylan por muito tempo. As palavras que ela não disse estavam claras naqueles olhos que a evitavam: aquilo não era apenas uma história bizarra de um tabloide. Aquilo era a realidade.
– O que havia naquela caverna, Tess? Parecia ser algum tipo de cripta, uma “câmara de hibernação”, como escutei Rio chamá-la. Mas que diabos era aquilo? Há algo perdido naquela montanha?
Tess levantou o olhar, mas só negou levemente com a cabeça.
– Na verdade, eu não acho que você queira saber.
– Sim, eu quero – insistiu Dylan. – Independentemente do que for, é importante o suficiente para que Rio sentisse a necessidade de me sequestrar e me trancafiar para que não dissesse nada do que vi.
O silêncio de Tess fez o estômago de Dylan formar um nó de medo. A Companheira de Raça sabia o que havia na caverna, e aquilo parecia aterrorizá-la. O que, é claro, apenas aumentou a curiosidade de Dylan.
– Tess, havia algo dormindo naquela tumba oculta. E, pelo aspecto, eu diria que esse algo estava escondido ali há muito tempo. Que tipo de criatura era ou é aquilo?
Tess se levantou e jogou alguns cacos de vidro no cesto de papéis ao lado da mesa.
– Deixe-me ver seu corte. Temos de limpá-lo. Depois faremos um curativo para evitar que você fique com uma cicatriz.
Confinado dentro da cela de raios ultravioleta, o Antigo jogou a cabeça para trás e soltou um rugido infernal. Sangue gotejava por suas enormes presas e seu peito, enorme e nu, ostentava a cor pulsante de seus dermoglifos.
– Apertem essas malditas correntes – gritou o cuidador, falando com seus subordinados por meio de um alto-falante na sala de observação fora da cela. – E, por Deus, arrumem toda essa bagunça aí dentro.
As algemas cibernéticas serpentearam e seguraram fortemente as pernas e os braços grossos do Antigo. Com um comando programado, ajustaram-se. A criatura tentou se libertar, mas não chegaria a lugar algum. Feriu-se futilmente: cortou seus próprios lábios e berrou de novo. O urro era pura fúria enquanto o imenso corpo era dominado por titânio e aço.
Ele ainda estava com o pênis ereto por conta do cruzamento que tinha dado tão violentamente errado. Ainda estava sedento pelo sangue e pelo corpo sem vida da mulher que naquele momento era apressadamente retirada da jaula.
A Companheira de Raça tinha sido atacada. Unhas e presas fortes tinham marcado irreversivelmente – mortalmente – seu corpo. E, antes que o Antigo pudesse ser afastado, ela já estava morta. Ela não era a primeira; tampouco seria a última (não estava perto de sê-lo, aliás). Ao longo das cinco décadas em que o Antigo tinha sido despertado de sua hibernação e posto sob o controle de seu guardião, alimentá-lo – e fazê-lo procriar – tinha se mostrado uma tarefa custosa e frustrante.
Apesar de toda aquela tecnologia e de todo aquele dinheiro disponível, não havia ciência alguma que pudesse substituir o tipo de acasalamento que havia ocorrido na cela do prisioneiro alguns momentos atrás. Carne com carne, esse era o único meio de concepção para o Antigo. E também para os demais membros da Raça. Mas o sexo era apenas uma parte do processo. Era necessária a ejaculação, com um intercâmbio de sangue no exato momento, para que a vida de um vampiro se desenvolvesse no corpo de uma Companheira de Raça.
Normalmente, os casais que desejavam conceber se deleitavam em um ato deliberado e sensual de criar uma vida. Neste caso, não. Aqui embaixo, com a selvagem criatura alienígena levada à loucura por conta da fome, da dor e do confinamento, a concepção era um jogo de vida e morte. Baixas, como a de hoje, eram parte da equação. Mortes deviam ser esperadas.
Mas êxitos haviam sido alcançados. E isso fazia os riscos valerem a pena. Para cada Companheira de Raça morta no processo, duas outras tinham saído vivas... E com as sementes de uma nova geração plantada em seus úteros.
O cuidador do Antigo sorriu secretamente, apesar da perda do dia.
Aquela nova geração poderosa já estava florescendo, a maioria em segredo.
E a obediência daqueles novos seres pertencia inteiramente a ele.
CONTINUA
Capítulo 14
Era muito estranho estar outra vez no complexo, mas, para Rio, o mais surreal era entrar novamente em seus aposentos dentro da sede subterrânea da Ordem, localizada no subúrbio de Boston.
Dante e Chase tinham ido para o laboratório de alta tecnologia logo que chegaram, deixando Rio a sós com Dylan. O guerreiro espanhol imaginou que os outros companheiros queriam lhe dar a oportunidade de ele se reencontrar com sua antiga vida – a vida que Eva havia lhe roubado um ano atrás com aquela maldita traição.
Rio não colocava os pés no complexo havia muito tempo, mas o lugar estava exatamente como ele se lembrava. Exatamente como ele tinha deixado antes da explosão no armazém que o mandara para a enfermaria do complexo por vários meses para enfrentar uma difícil recuperação – uma recuperação que não tinha sido, de modo algum, completa.
Aqueles aposentos, que uma vez Rio dividira com Eva, eram como uma espécie de cápsula do tempo. Tudo estava congelado em seu lugar desde aquela noite infernal quando Rio e seus companheiros tinham saído para acabar com um bando de Renegados sem imaginarem que estavam indo diretamente para uma emboscada mortal – uma emboscada orquestrada pela mulher que era uma Companheira de Raça... sua companheira.
E também fora ali, naquele mesmo lugar que, depois de ter sua traição descoberta e denunciada, Eva tinha cortado a própria garganta.
Ela se suicidou sobre a cama de Rio na enfermaria, mas era ali, em seu quarto, que Rio sentia mais a sua presença: o toque de Eva estava por todas as partes, desde as obras de arte extravagantes que ele tinha, a contragosto, permitido pendurar nas paredes antes vazias, até os inúmeros espelhos espalhados por todo o quarto, perto do closet e aos pés da enorme cama.
Rio conduziu Dylan pela elegante sala de estar, atravessando as portas cobertas por cortinas que levavam à suíte do dormitório. Ele se viu refletido no espelho enquanto, com todo o cuidado, deixava a delicada mulher sobre cama de dossel coberta por lençóis cor ameixa escura. Recuou diante do rosto moreno e arruinado do desconhecido que lhe devolvia o olhar. Mesmo vestido com as roupas elegantes que Reichen havia lhe dado, ele ainda parecia um monstro e a sensação apenas aumentava quando comparada à beleza adormecida em seus braços e totalmente à sua mercê.
Ele era um monstro e não podia jogar a culpa daquilo somente em Eva. Afinal, ele tinha nascido uma besta, um assassino, e agora simplesmente também se parecia um pouco mais com aquilo. Dylan se moveu um pouco assim que ele a colocou no colchão e ajeitou um dos macios travesseiros sob sua cabeça.
– Acorde agora – ele disse, roçando a mão brandamente na testa da mulher. – Você já descansou o suficiente, Dylan. Está na hora de despertar.
Ele não precisava acariciar o rosto dela para tirá-la do transe. Ele não precisava deslizar as pontas de seus dedos másculos sobre aquela pele aveludada e decorada com pequenas e encantadoras sardas. Ele não precisava demorar seu toque ao longo da delicada linha de sua mandíbula... Rio, todavia, não conseguiu deixar de aproveitar ao máximo aquela oportunidade única de fazer tudo isso.
As pálpebras de Dylan se abriram, seus cílios castanhos se levantaram e, de repente, Rio se viu capturado pela luz verde-dourada daquele olhar. Ele imediatamente afastou a mão do rosto de Dylan, mas não pôde deixar de notar que ela tinha se dado conta da liberdade que ele tomara. Ela, todavia, não demonstrou alteração alguma, simplesmente soltou um suave sopro de ar por seus lábios entreabertos.
– Estou com medo – ela sussurrou com uma voz baixa por causa do longo sono em que ele a tinha colocado. Dylan não tinha consciência do transe ou da viagem. Para sua mente humana, ela ainda estava no Refúgio de Reichen, uma vez que sua mente tinha sido colocada em suspensão momentos antes da partida para Boston. – Estou com medo do lugar para onde você está me levando...
– Já estamos aqui – disse Rio. – Acabamos de chegar.
O pânico tomou conta do olhar de Dylan.
– Onde...
– Eu a trouxe para a sede da Ordem. Você está segura aqui.
Dylan lançou um olhar ao seu redor, tentando entender onde estava.
– É aqui que você mora? – perguntou.
– É aqui que eu costumava morar. – Rio se levantou e se afastou da cama. – Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, basta pedir.
– Que tal uma carona até minha casa em Nova York? – ela disse. Sua consciência estava obviamente voltando ao normal. – Ou talvez um GPS mostrando onde estamos agora... Pode deixar que eu me viro para encontrar o caminho para casa.
Rio cruzou os braços sobre o peito enorme e musculoso.
– Esta é sua casa agora, Dylan. Como você é uma Companheira de Raça, será tratada com todo o respeito e reverência. Terá comida, conforto e tudo mais o que precisar. Você não vai ser trancada nesse quarto, mas eu posso lhe garantir que não há para onde você correr, caso isso venha a passar por sua cabeça. O complexo é inteiramente seguro. Meus companheiros e eu não vamos machucá-la, mas se você tentar deixar esses aposentos, nós saberemos antes de você dar o primeiro passo no corredor. Se você tentar fugir, vou encontrá-la, Dylan.
Ela ficou em silêncio por um longo momento enquanto ouvia aquele enorme homem falar e media cada uma de suas palavras.
– E então, o que vocês vão fazer comigo? Me segurar e morder minha garganta?
Jesus Cristo!
Rio sentiu todo o seu sangue drenar de sua cabeça ao simples pensamento daquilo. Ele sabia que para ela aquilo deveria ser um ato de extrema violência, mas, para ele, a imagem de segurar Dylan sob seu corpo enquanto ele perfurava delicadamente a pele macia de seu pescoço com suas presas era um ato inteiramente sensual.
O desejo percorreu seu corpo em uma espiral ardente e se concentrou imediatamente no meio de suas pernas. Ele ainda podia sentir a pele sedosa de Dylan em seus dedos e agora era outra parte de seu corpo que desejava imensamente, incontrolavelmente, conhecer o toque da pele daquela mulher em sua frente. Rio se virou, irritado com a rápida reação a Dylan que seu corpo esboçava.
– Quando eu estava em Jicín, ouvi uma história sobre um homem que foi atacado por um demônio. Um velho fazendeiro que testemunhou tudo disse que o tal demônio descia da montanha para se alimentar. Para beber sangue humano.
Rio ficou ali, encarando a porta em sua frente enquanto Dylan falava. Ele sabia a qual noite ela estava se referindo, ele se lembrava dela claramente, pois aquela tinha sido a última vez que ele tinha se alimentado. Fazia mais de duas semanas que ele não se alimentava quando foi até aquela humilde fazenda perto da floresta, na base da montanha.
Ele estava faminto e aquilo o deixou descontrolado. Um homem idoso apareceu, viu o ataque, viu Rio com os dentes cravados no pescoço de outro homem. Aquele foi um deslize, uma imprudência, e aquela interrupção tinha sido a única coisa responsável por salvar a vida da caça de Rio de sua fome incontrolável. Se aquele velho homem não tivesse aparecido, certamente o outro teria morrido. Rio tinha deixado de caçar naquela noite, aterrorizado com o que tinha se tornado.
– Foi um exagero, não é mesmo? – A voz de Dylan tornou-se lentamente mais calma durante o silêncio que Rio lhe deu como resposta. – Você não fez aquilo, fez, Rio?
– Fique à vontade – ele grunhiu, enquanto saía. Antes, porém, ele pegou a bolsa em que estavam o laptop e a câmera digital de Dylan. – Há algumas coisas que preciso fazer.
Rio não esperou que Dylan protestasse ou dissesse uma palavra mais, apenas sabia que precisava sair dali. Agora. Uns poucos passos o levariam para as portas abertas e à luxuosa sala de estar que atravessara minutos antes carregando Dylan em seus braços.
– Rosario...?
Ele parou ao som da voz dela em suas costas. Franziu a sobrancelha, virou a cabeça e voltou o olhar para a mulher, que agora tinha se levantado da cama e estava apoiada em seus cotovelos.
Madre de Dios, ela estava deliciosamente atraente, um tanto quanto despenteada, um tanto quanto sonolenta. Não demorou muito para Rio imaginar que talvez fosse daquela forma que Dylan deveria parecer depois de uma noite de sexo ardente. O fato de ela estar deitada sobre aqueles lençóis de seda de cor ameixa da cama de Rio apenas deixava a imagem ainda mais erótica.
– O quê? – a voz do homem enorme era um chiado que mal passava por sua garganta masculina.
– Seu nome – ela disse, como se ele devesse saber do que ela estava falando. A mulher, então, inclinou a cabeça enquanto estudava atenciosamente o quarto. – Você me disse que Rio é apenas parte de seu nome, então eu imaginei que talvez pudesse ser um apelido para Rosario.
– Não.
– Então qual é? – Quando ele não respondeu imediatamente, suas sobrancelhas castanho-claras juntaram-se, obviamente impacientes pela resposta. – Depois de tudo o que você me contou nos últimos dias, que problema teria em me dizer seu nome?
Ele escarnecia interiormente enquanto se lembrava de todos os nomes pelos quais tinha sido chamado desde que nascera. Nenhum deles era gentil, para dizer o mínimo.
– Por que isso é tão importante?
Ela sacudiu a cabeça, erguendo levemente os ombros magros.
– Não é importante. Suponho que simplesmente tenho curiosidade de saber mais sobre você. Para saber quem você realmente é.
– Você já sabe o suficiente – ele disse. Um leve xingamento escapou por sua boca. – Confie em mim, Dylan. Você não vai querer saber nada mais sobre mim além do que já sabe.
Mas Rio estava equivocado, pensou Dylan, enquanto observava o enorme corpo daquele homem afastar-se e atravessar a porta da ampla suíte. Ele fechou a porta e deixou a mulher sozinha na suave iluminação dos aposentos.
Ela virou o corpo na enorme cama, suas pernas estavam trêmulas como se fizesse muito tempo que não as usava, como se ela tivesse ficado ao relento durante boa parte de uma noite de inverno. Se o que ele disse era verdade – que eles tinham deixado Berlim e estavam agora nos Estados Unidos – então, ela pensou, faltava-lhe pelo menos nove horas de memória consciente.
Seria aquilo realmente possível?
Será que ele realmente a havia colocado em uma espécie de transe por todo aquele tempo?
Ela tinha ficado surpresa ao sentir os dedos de Rio acariciando seu rosto quando despertou. Aquele contato parecia tão suave, tão protetor e tão quente. Mas também tinha sido muito fugaz, tinha sido interrompido tão logo ele se dera conta de que ela estava acordando, tão logo notara que ela estava percebendo o que acontecia. Será que ele também percebeu que ela estava gostando?
Não, Dylan não queria sentir o calor de Rio, tampouco queria demonstrar algum calor para ele, mas ela não conseguia negar que havia algo de eletrizante na maneira como ele a olhava. Havia algo inegavelmente sedutor na maneira como ele a tocava. Ela queria saber mais sobre aquele homem – ela precisava saber mais sobre aquele homem. Afinal de contas, como sua prisioneira, seria de seu maior interesse saber qualquer coisa que pudesse a respeito do homem que a mantinha como refém. Como jornalista em busca – ou à espera – de uma grande matéria, era obrigação dela juntar até os mais insignificantes fatos e perseguir a verdade até o fim. Entretanto, era seu interesse como mulher o que mais incomodava Dylan.
Era aquele desejo mais íntimo e pessoal de saber mais sobre o tipo de homem que Rio era que fazia com que ela vagasse de um lado para o outro naqueles aposentos chiques. A decoração era exuberante e sensual, uma explosão de cores brilhantes que iam desde a roupa de cama de seda, da cor de ameixas maduras, até o tom dourado da pintura que cobria as paredes. Uma coleção de pinturas abstratas, tão brilhantes e gritantes que chegavam a fazer os olhos de Dylan doer, cobriam uma parede inteira da suíte luxuosa. Outra parede ostentava um espelho com uma moldura exuberante e obviamente caríssima. E o objeto estava colocado estrategicamente de modo a refletir os quatro lados da cama de dossel e tudo o que, por ventura, pudesse estar acontecendo em cima daqueles lençóis. Excitante.
– Sutil... – murmurou Dylan, girando os olhos enquanto se aproximava de um par de portas duplas que havia do outro lado do quarto. Ela as abriu e ficou de boca aberta quando percebeu que se tratava do closet... Um closet que tinha mais metros quadrados do que todo o seu apartamento no Brooklin.
– Santo Deus!
Ela entrou e imediatamente se deu conta de que havia mais espelhos ali dentro – e por que você não iria querer admirar-se em todos os ângulos possíveis quando tinha metade da Chanel à sua disposição?
Dylan ficou tentada a perscrutar aquele lugar que deveria ter milhares de dólares em roupas e sapatos assinados por estilistas famosos, mas um pensamento triste logo tomou conta de sua mente: apenas um quarto do armário tinha roupas masculinas. O resto todo pertencia a uma mulher. Uma mulher pequena, delicada, cujo gosto era, obviamente, muito caro. Aqueles aposentos poderiam ser de Rio, mas certamente ele não vivia ali sozinho.
Mas que merda! Será que ele era casado?!
Dylan deu meia-volta e saiu do closet, fechando bruscamente a porta e intimamente desejando nunca ter entrado ali. Dirigiu-se para a sala, observando atentamente cada detalhe e inegavelmente percebendo que havia um toque feminino em todos os cantos para os quais olhava. Nada se parecia nem de longe com seu estilo, mas, afinal, o que Dylan sabia sobre design de interiores mesmo? Não muito. Sua melhor peça de mobília era um sofá-cama que ela comprara de segunda mão.
Dylan deixou a mão percorrer o encosto de uma nogueira esculpida como uma cadeira enquanto observava a mobília declaradamente elegante do lugar. Ela se aproximou de um sofá de veludo dourado e parou enquanto seu olhar capturava uma pequena coleção de fotografias emolduradas minuciosamente expostas na mesa que havia atrás do sofá.
A primeira coisa que viu foi uma fotografia de Rio. Ele estava sentado no banco do passageiro de um clássico Thunderbird conversível que tinha sido estacionado sob a luz da lua em alguma praia deserta. Ele vestia uma camisa de seda preta – desabotoada, obviamente – e uma calça da mesma cor; suas coxas estavam ligeiramente separadas em um “V” casual e os dedos de seus pés descalços estavam inocentemente enterrados na areia branca enquanto seu olhar topázio escuro brilhava com uma espécie de sabedoria oculta e privada, e seu sorriso nebuloso o tornava igualmente perigoso e atraente.
Jesus Cristo, ele era lindo.
Para dizer a verdade, ele era muito mais do que lindo.
A foto não parecia antiga. Não havia cicatrizes no lado esquerdo do rosto dele, de modo que a lesão que ele sofrera devia ser bastante recente. Seja lá o que tenha roubado sua aparência clássica e incrivelmente atraente, a maior tragédia parecia ser a fúria que Rio havia dentro de si. Dylan olhou para a fotografia de Rio em dias felizes, e se perguntou como ele poderia ter mudado tanto desde aquela época.
Ela então olhou para outra fotografia, essa sim, antiga. Era uma imagem profissional em tons de sépia de uma mulher com os cabelos negros vestindo um bufante vestido vitoriano de gola alta. Dylan se inclinou para poder ter uma visão melhor enquanto se perguntava se aquela beleza exótica com sorriso tímido poderia ser, de repente, a avó de Rio. Os olhos escuros da modelo encaravam direta e fixamente a lente da câmera, lançando um olhar de pura sedução. Ela era bela, a mulher da fotografia, apesar da moda recatada de sua época.
E seu rosto... seu rosto parecia extremamente familiar.
– Ah, meu Deus!
A incredulidade, assim como o absoluto deslumbramento, inundou Dylan conforme ela deslizava o olhar para outra fotografia que havia na mesa. Esta, uma imagem colorida, obviamente tirada na última década ou menos... e na qual a mesma mulher da foto antiga também era modelo. Essa última imagem, tirada durante a noite, mostrava uma mulher de pé em uma ponte de pedra no meio de um parque, rindo enquanto seus belos e longos cabelos negros balançavam em sua cabeça. Ela parecia feliz, mas Dylan viu uma tristeza em seus olhos escuros – dolorosos segredos profundamente escondidos em seu olhar castanho-escuro que estava fixo em quem quer que estivesse tirando a foto.
E Dylan reconhecia aquele rosto, ela tinha certeza de que sim... Sim, ela percebia agora, e não era apenas da série de fotografias espalhadas naquela mesa e que a jornalista acabara de ver... Não, aquele rosto era familiar. Dylan já o tinha visto, sim, ela o reconhecia agora porque já o tinha visto na montanha, em Jicín. Aquele era, definitivamente, o rosto da mulher morta. A bela – e morta – mulher que a havia conduzido à caverna onde ela encontrara Rio – Dylan se dava conta disso agora – era esposa dele.
Capítulo 15
Era quase como se ele nunca tivesse deixado aquele local.
Rio estava no laboratório de alta tecnologia do complexo, cercado por Lucan, Gideon e Tegan, que o tinham saudado e oferecido um aperto de mão – sinal da amizade e da confiança verdadeiras.
O aperto de mão de Tegan se prolongou por mais tempo. Rio sabia que o forte guerreiro com cabelos acobreados e olhos esmeraldas era capaz de ler sua culpa e suas incertezas por meio da ligação entre suas mãos. Esse era o dom de Tegan, adivinhar as verdadeiras emoções com apenas um toque.
Ele deu um aceno quase imperceptível com a cabeça.
– Coisas ruins acontecem, meu amigo. E Deus sabe que todos nós temos nossos demônios tentando nos passar a perna. Então, ninguém está aqui para julgá-lo. Entendeu?
Rio assentiu com a cabeça enquanto Tegan soltava sua mão. Ao entregar a bolsa de Dylan a Gideon, o vampiro recém-chegado observou a parte posterior do laboratório, onde Dante e Chase limpavam suas armas para usá-las durante a noite. Dante ofereceu uma pequena saudação com o queixo, mas o olhar de aço de Chase deixava claro que ele não sabia o que pensar quando o assunto era Rio. Um homem inteligente. Rio imaginou que a reação do ex-agente fosse, provavelmente, a sua própria reação caso a situação fosse inversa e fosse Chase quem estivesse voando naquele jato em busca de resgate.
– Quanto a mulher sabe a nosso respeito? – perguntou Lucan.
Com novecentos anos de idade e fazendo parte da Primeira Geração da Raça, o fundador da Ordem e líder formidável poderia controlar toda uma sala com apenas um movimento de suas sobrancelhas negras. Rio o considerava um amigo – todos os guerreiros eram tão próximos que pareciam até mesmo familiares uns dos outros – e Rio odiava com todas as suas forças a possibilidade de tê-lo decepcionado.
– Só dei a ela as informações básicas – respondeu Rio. – Não acredito que ela esteja completamente convencida.
Lucan grunhiu, assentindo pensativamente.
– Realmente, são muitas informações para ela processar. Ela entende o propósito da cripta na montanha?
– Na verdade, não. Ela me ouviu chamando aquilo de câmara de hibernação quando Gideon e eu estávamos conversando, mas não sabe nada além disso. Pode ter certeza de que não pretendo dar mais nenhuma pista a ela. O fato de ela ter visto aquilo já é ruim demais. – Rio exalou um suspiro duro. – Ela é inteligente, Lucan. Não acredito que vá levar muito tempo para juntar as peças do quebra-cabeça.
– Então será melhor agirmos logo. Quanto menos detalhes tivermos que esclarecer posteriormente, melhor – explicou Lucan. Ele lançou um olhar a Gideon, que tinha aberto o laptop de Dylan no console ao seu lado. – Quão difícil acredita que será hackear e acabar com as fotos que ela enviou por e-mail?
– Apagar os arquivos da câmera e do computador é fácil. Demora apenas alguns segundos.
– E quanto a apagar as fotos da caixa de entrada daqueles que as receberam?
Gideon franziu o rosto como se estivesse calculando a raiz quadrada da renda líquida de Bill Gates.
– Algo como dez minutos para enviar uma bomba e estourar o disco rígido de todos os computadores da lista de contatos dela. Treze minutos se você quiser algo mais sutil.
– Eu não estou nem aí com o fator sutileza. – Lucan deixou claro. – Faça o que for necessário para destruir as fotos e destruir qualquer referência escrita ao que ela encontrou na montanha.
– Pode contar comigo – respondeu Gideon, que já se encontrava fazendo sua magia em ambos os dispositivos.
– Podemos destruir os arquivos eletrônicos, mas ainda teremos de tratar com as pessoas com quem ela manteve contato sobre a caverna – esclareceu Rio. – Além do chefe dela, há três mulheres com quem ela estava viajando. E também a mãe dela.
– Vou deixar isso para você – disse Lucan. – Não me importa como você vai fazer isso. Faça-a negar a história, acabe com a credibilidade dela ou saia para encontrar as pessoas com quem ela conversou e apague a memória de cada uma delas. A decisão é sua, Rio. Simplesmente dê um jeito na situação, como sei que você vai fazer.
Rio assentiu.
– Eu lhe dou minha palavra, Lucan. Vou consertar a situação.
A expressão do vampiro da Primeira Geração era tão sombria quanto segura.
– Não duvido de você. Nunca duvidei e nunca duvidarei.
A confiança de Lucan era inesperada, e um presente que Rio não tinha intenção de desperdiçar, independentemente de quão destruído ele soubesse estar. Durante muitos anos, a Ordem e os guerreiros que a serviam eram seu principal propósito na vida – inclusive acima de seu amor por Eva, o que acabou gerando um ressentimento silencioso, porém colérico, nela. Rio estava comprometido com até o último destes homens – como se eles fossem seus parentes de sangue –, comprometido a lutar por eles e, inclusive, a morrer por eles. Ele olhou em volta, sentindo-se humilde pelos rostos sombrios e corajosos dos cinco homens da Raça que ele sabia, sem dúvida alguma, que também dariam suas vidas por ele.
Rio limpou a garganta, sentindo-se desconfortável com as boas vidas praticamente unânimes de seus irmãos. Do outro lado do laboratório, as portas de vidro se abriram quando Nikolai, Brock e Kade chegaram, vindos do corredor. Os três conversavam com empolgação, trazendo um ar de camaradagem quando entraram no laboratório.
– Oi! – disse Niko, lançando a saudação para ninguém em particular. Seus olhos azuis como o gelo pararam em Rio por um segundo antes de ele finalmente olhar para Lucan e começar a detalhar a patrulha da noite. – Acabamos com um Renegado perto do rio há mais ou menos uma hora. O filho da mãe estava escondido em um contêiner de lixo quando o encontramos.
– Você acha que é um dos cachorros de Marek? – perguntou Lucan, referindo-se ao exército de Renegados que seu próprio irmão vinha criando até a Ordem finalmente intervir. Marek tinha morrido pelas mãos da Ordem, mas os vermes de seu exército ainda precisavam ser exterminados.
Nikolai ofereceu um aceno com a cabeça.
– O desgraçado não era um soldado, mas apenas um viciado tentando satisfazer sua sede de sangue. Imagino que só tenha passado algumas poucas noites fora do Refúgio Secreto. E nós o liquidamos facilmente. – O vampiro russo olhou atrás de Rio e lançou um sorriso desajeitado para Dante e Chase. – Alguma ação no lado Sul?
– Não, nada – murmurou Chase. – Estávamos muito ocupados buscando alguém no aeroporto.
Nikolai grunhiu, compreendendo o comentário e lançando um olhar em direção a Rio.
– Faz tempo, hein cara?! É bom ver que você continua inteiro.
Rio conhecia aquele cara muito bem para pensar que o comentário era amistoso. De todos os guerreiros da Ordem, Rio esperava que fosse Nikolai o primeiro na fila para defendê-lo – mesmo se Rio fosse ou não digno de defesa. Niko era o irmão que Rio nunca tivera. Os dois tinham nascido no século anterior e entrado para a Ordem em Boston na mesma época.
Era estranho Niko estar ausente durante a chegada de Rio ao complexo. No entanto, conhecendo o vampiro e seu amor pelo combate, ele provavelmente estava irritado com o fato de sua equipe de patrulha ter sido reduzida algumas horas antes do amanhecer.
Antes que Rio pudesse dizer qualquer coisa a seu velho amigo, a atenção de Nikolai voltou a Lucan.
– O Renegado que encontramos esta noite era jovem, mas a matança que ele tinha deixado para trás parecia ser trabalho de mais de um vampiro. Eu gostaria de retornar lá amanhã e verificar as redondezas. Talvez encontremos mais alguma coisa.
Lucan assentiu:
– Parece uma boa ideia.
Depois de resolver isso, Niko dirigiu sua atenção para Kade e Brock:
– Temos tempo suficiente antes do amanhecer para caçar um pouco. Alguém aí se sentiu com sede de repente?
Os olhos de Kade brilharam como mercúrio.
– Há um lugar em North End que deve ser bem interessante. Lá há um monte de jovens no ponto certo.
– Pode contar comigo – disse Chase com palavras arrastadas, saindo de sua cadeira ao lado de Dante para unir-se aos outros três vampiros não comprometidos conforme eles começavam a caminhar na direção da saída do laboratório.
Por um instante, Rio os observou partir. Entretanto, quando viu Nikolai sair junto aos outros, xingou em voz baixa e, logo depois, correu atrás dele.
– Niko, espere.
O guerreiro seguiu seu caminho, como se não tivesse ouvido nada.
– Espere, cara. Caramba, Nikolai. Que diabos está acontecendo com você?
Quando Chase, Brock e Kade pararam para olhar atrás, Niko acenou para que eles continuassem. Os três seguiram seu caminho, virando no canto do corredor e desaparecendo de vista. Depois de uns poucos segundos, finalmente, Niko deu meia-volta.
O rosto que olhava para Rio no túnel branco era duro e incompreensível.
– Sim. Estou aqui. O que você quer?
Rio não sabia como responder àquilo. A hostilidade saiu da boca de seu velho amigo como um vento frio de inverno.
– Fiz algo que o incomodou?
O som da risada de Nikolai raspava contra as paredes de mármore.
– Vá se ferrar, cara.
Nikolai deu meia-volta e começou a se afastar novamente.
Rio o alcançou em um piscar de olhos. Estava a ponto de agarrar o ombro do guerreiro e obrigá-lo a parar, mas Niko se movimentou com mais agilidade. O vampiro russo virou-se e golpeou Rio, acertando-o no esterno, fazendo-o bater a coluna contra a sólida parede no outro lado do corredor.
– Você quer morrer, seu filho da mãe? – Niko estava com os ombros entreabertos, a cor âmbar acesa como resultado de toda aquela ira. – Se você quer se matar, é problema seu. Só não peça a minha ajuda, está bem?
Os músculos de Rio estavam retesados e prontos para uma briga. Seus instintos de combate se tornaram mais aguçados, apesar de ele estar enfrentando um aliado de longa data. No entanto, enquanto Nikolai falava, a fúria que cresceu em Rio rapidamente se reduziu. De repente, a cólera que Niko sentia contra ele fez sentido. Afinal, Nikolai sabia que Rio tinha ficado naquela montanha da Boêmia com intenções de acabar com a própria vida. Se Niko não tinha se dado conta disso cinco meses atrás, agora ele tinha certeza.
– Você mentiu para mim – esbravejou Niko. – Você me olhou diretamente nos olhos e mentiu para mim, cara. Você nunca ia voltar para a Espanha. O que pretendia fazer com o C-4 que eu dei para você? Você pretendia detonar aquela droga presa ao seu corpo, como se fosse um camicase se divertindo. Ou talvez você só estivesse planejando se prender no interior daquela maldita caverna e ficar lá, esquecido por toda a eternidade. O que você ia fazer, amigo? Como você pretendia acabar com a própria vida?
Rio não respondeu. Não era necessário. De todos os guerreiros da Ordem, Nikolai era o que melhor o conhecia. Nikolai tinha visto Rio como o covarde e fraco que ele realmente era. Só ele sabia o quão próximo Rio tinha estado de dar um fim a tudo – antes mesmo de ele chegar àquela montanha tcheca.
Tinha sido Niko quem se negara a deixar Rio mergulhar no ódio que sentia de si. E, então, evitar que entrasse naquela espiral de negatividade tinha se tornado sua missão pessoal. Niko, que ajudou Rio a subir na montanha nas semanas que se seguiram, caçando para o amigo que estava fraco demais para cuidar dele mesmo. Nikolai, o irmão que Rio nunca tivera.
– Sim – disse Niko, fechando uma carranca. – Como disse. Vá se ferrar.
Ele tirou o braço do peito de Rio e se afastou, ainda rangendo alguns xingamentos. Rio o viu se distanciar. Os sapatos de Niko pareciam mastigar o piso de mármore polido quando ele se apressou para juntar-se aos outros guerreiros que já estavam a caminho do piso superior.
– Que droga! – murmurou Rio, correndo a mão pelos cabelos.
O choque com Nikolai era só mais uma evidência de que ele não devia ter retornado a Boston – mesmo que isso significasse jogar o problema Dylan Alexander nas mãos de outra pessoa. Rio já não se encaixava ali. Agora ele era um estranho, um elo fraco em meio a uma cadeia de aço, formada pelos corajosos guerreiros da Raça.
Ainda agora ele conseguia sentir suas têmporas latejarem por conta da descarga de adrenalina que tinha ocorrido alguns minutos atrás, quando parecia que Niko queria cortá-lo em pedaços. Sua visão começou a tremer enquanto ele estava parado ali. Se não se movesse e encontrasse um local privado para aguentar a crise mental que estava por vir, Rio sabia que seria questão de minutos antes que acordasse caído sobre o mármore que revestia o chão do corredor. E, francamente, ver Lucan e aos outros saírem do laboratório para olhá-lo fixamente como se ele fosse um moribundo era algo que não queria experimentar.
Ele forçou suas pernas a se movimentarem e, com uma dificuldade acentuada, conseguiu encontrar o caminho de volta até seus aposentos. Entrou, cambaleando, e fechou a porta. Em seguida, entregou-se a uma nova sensação de náusea que o invadiu.
– Você está bem?
A voz feminina vinha de algum ponto distante naquele cômodo. A princípio, não a reconheceu. Seu cérebro estava lutando para realizar as tarefas básicas. Aquela voz brilhante e cristalina não parecia pertencer àquele lugar cheio de lembranças antigas e empoeiradas.
Rio se distanciou da porta e se arrastou pela sala, em direção ao quarto. Seu cérebro transmitia a impressão de que se despedaçaria a qualquer momento.
Água quente. Escuridão. Tranquilidade. Ele precisava dessas três coisas. Imediatamente.
Rio tirou a camisa e a deixou cair no ridículo sofá de veludo de Eva. Ele realmente tinha que queimar todos seus pertences. E era uma pena que ele não tinha como jogar aquela maldita traidora na fogueira junto com todo o resto.
Rio se agarrou à sua fúria pela traição de Eva, um leve castigo, mas aquilo era tudo o que tinha no momento. Abriu as portas do quarto e ouviu um leve suspiro vindo lá de dentro.
– Meu Deus! Rio, você está bem?
Dylan.
O nome dela atravessava como um bálsamo a névoa que envolvia a mente de Rio. Ele levantou o olhar na direção de sua convidada indesejada, que agora estava sentada no canto da cama com algo plano e retangular apoiado em seu colo. Ela deixou o objeto de lado, no criado-mudo, e se aproximou antes que os joelhos dele cedessem.
– Banho – ele conseguiu grunhir.
– Você mal consegue parar em pé – Dylan o ajudou a alcançar a cama, onde ele rapidamente deixou o corpo cair. – Parece que você precisa de um médico. Há alguém aqui que possa ajudá-lo?
– Não – ele respondeu com uma voz rouca. – Uma ducha...
Rio estava fraco demais para usar sua habilidade mental da Raça e abrir o registro da água, mas ele não precisou sequer tentar. Dylan já estava se apressando na direção do banheiro ao lado. Ouviu o forte estalar da água batendo contra o chão e, em seguida, os suaves passos de Dylan no carpete enquanto ela retornava para onde estava caído, com o corpo virado na direção dos pés da cama.
Rio percebeu vagamente a desaceleração dos passos da mulher conforme ela se aproximava. Apenas escutou a respiração rápida logo acima de seu corpo. Mas era impossível confundir quem estava ali quando ela soltou, com a respiração trêmula, alguns palavrões. Um silêncio pesado e demorado se seguiu ao xingamento sussurrado. Em seguida:
– Rio... Meu Deus! Por que tipo de inferno você passou?
Lançando mão até mesmo da última gota de força que tinha, ele conseguiu abrir os olhos. Um erro enorme. O horror que ele viu nos olhos de Dylan era inegável. Ela estava olhando o lado esquerdo de seu corpo... O peito e o torso, que tinham sido destruídos por uma granada que quase esfolou seus ossos com as chamas da explosão que por pouco não lhe tirara a vida.
– Ela... – suave voz de Dylan foi se tornando cada vez mais fraca. – Sua esposa tem algo a ver com o que aconteceu com você?
Rio sentiu seu coração parar de bater. O sangue que antes pulsava fortemente em seus ouvidos se transformou em gelo quando ele conseguiu se concentrar na pergunta de Dylan. A preocupação estampava seu rosto.
– Ela fez isso com você, Rio?
Ele seguiu a mão estendida de Dylan enquanto ela alcançava o objeto que tinha deixado no criado-mudo. Era uma fotografia em um porta-retratos. Rio não precisava ver a foto no vidro para saber que era de Eva, de um passeio que eles tinham feito no Charles River certa noite. Eva, sorrindo. Eva, dizendo o quanto o amava. Enquanto, em suas costas, ela conspirava com os inimigos da Ordem para conquistar seus objetivos egoístas.
Rio grunhiu quando pensou em sua própria burrice. Em sua própria cegueira.
– Isso não é da sua conta – murmurou, ainda à deriva da escuridão que tomava conta de sua mente. – Você não sabe nada a respeito dela.
– Foi ela quem me levou até você. Eu a vi na montanha em Jicín.
Uma suspeita irracional transformou a ira de Rio em um sentimento letal.
– Do que você está falando? Como assim, você a viu?
Dylan engoliu em seco e encolheu levemente o ombro. Em seguida, segurou a fotografia diante dele.
– Eu a vi... O espírito dela estava lá. Ela estava na montanha com você.
– Você só pode estar mentindo – ele grunhiu. – E não me fale dessa mulher. Ela está morta, e merecidamente.
– Ela pediu que eu o ajudasse, Rio. Ela me procurou. Queria que eu salvasse você...
– Já disse para você parar de falar dela! – ele esbravejou.
A raiva fez com que o corpo de Rio estremecesse no colchão como uma víbora sendo atacada. Ele puxou o retrato das mãos de Dylan e o atirou pelo quarto com uma velocidade impressionante. O objeto bateu contra o enorme espelho na parede de frente com a cama, quebrando-o com o impacto e lançando cacos de vidro polido como uma chuva de lâminas.
Rio ouviu o grito de Dylan, mas foi somente quando ele sentiu o cheiro adocicado do sangue dela que se deu conta do que tinha feito.
Ela levou a mão até a maçã do rosto e, quando seus dedos se afastaram, estavam manchados de vermelho por conta de um pequeno ferimento logo abaixo do olho esquerdo.
Foi a visão daquela ferida que tirou Rio daquele espiral de depressão. Como um balde de água fria jogada sobre sua cabeça, ver Dylan ferida o puxou instantaneamente de volta para a realidade.
– Ah, Jesus Cristo! – disse ele com dentes apertados. – Eu sinto muito... Sinto muito!
Ele se moveu para tocá-la, para verificar o quanto a tinha ferido, mas ela se afastou com os olhos completamente aterrorizados.
– Dylan... eu não queria...
– Fique longe de mim!
Ele estendeu a mão, buscando demonstrar que realmente não queria feri-la.
– Não – ela estremeceu enquanto sacudia violentamente a cabeça. – Ah, meu Deus. Não me toque!
Madre de Dios.
Ela agora o olhava com um terror absoluto. E tremia. Seus olhos estavam fixos nele, banhados de medo e confusão.
Quando Rio passou a língua pelas pontas de suas presas salientes, ele entendeu a fonte do terror que Dylan sentia. Ele se levantou diante dela. Ela temia porque ele lhe tinha dito ser um vampiro, embora aquela mente humana tivesse se recusado a acreditar.
Agora, todavia, ela acreditava.
Dylan estava vendo a verdade com seus próprios olhos, as mudanças físicas no corpo de um louco cheio de cicatrizes que agora se transformava em uma criatura saída diretamente de seus piores pesadelos. Era impossível esconder as presas que se tornavam mais longas conforme a fome por ela se intensificava. Era impossível mascarar o afinamento daquelas pupilas conforme o brilho âmbar da sede de sangue embaçava sua visão.
Ele olhou para o pequeno corte, para o fio de sangue que escorria tão vermelho contra a pele macia da bochecha de Dylan. E ele mal conseguia formular um pensamento coerente.
– Eu tentei contar para você, Dylan. Isso é o que eu sou.
Capítulo 16
– Vampiro.
Dylan ouviu a palavra escapar por seus lábios, apesar do fato de mal poder acreditar no que estava vendo – ou dizendo.
Em questão de instantes, Rio tinha se transformado diante dos olhos de Dylan e ela olhava chocada as mudanças que acabara de presenciar. As íris dos olhos dele brilhavam como brasas e não tinham mais a cor topázio habitual. Em vez disso, estavam estampadas com uma inacreditável sombra âmbar que praticamente engolia as pupilas extremamente reduzidas. Os ossos da face de Rio pareciam mais duros agora, ostentando as esguias maçãs do rosto e uma mandíbula quadrada que parecia ter sido esculpida em pedra.
E, atrás do suculento e exuberante corte formado por sua boca, Rio exibia um par de presas que pareciam ter saído diretamente de algum filme de Hollywood.
– Você... – A voz de Dylan desapareceu conforme aqueles hipnóticos olhos cor de âmbar a encararam. Ela se sentou delicadamente na beirada da cama. – Meu Deus... Você realmente é um...
– Eu sou da Raça – ele pronunciou calma e articuladamente. – Exatamente como lhe disse.
Dylan estava sentada diante de Rio, e agora sua visão era preenchida completamente pela ampla musculatura do peito nu do vampiro. O intrincado desenho na pele dos antebraços subia pelos ombros de Rio e descia ao longo de seu peitoral. Todas as marcas – dermoglifos, como ele havia chamado da primeira vez em que ela as percebera – eram de uma cor vívida agora, a cor mais escura que Dylan já as tinha visto ostentar. Tramas profundas de cor púrpura e negra saturavam os belos desenhos e as linhas em forma de arcos.
– Não consigo impedir a transformação – ele murmurou, como se tivesse necessidade de dar uma justificativa a Dylan. – A transformação é espontânea nos machos da Raça quando sentimos o cheiro de sangue fresco.
O olhar dele desviou-se ligeiramente dos olhos de Dylan, e logo repousou na bochecha ferida pelos estilhaços do espelho quebrado. A mulher sentia que ainda havia sangue quente deslizando como uma lágrima por seu queixo. Rio assistia àquela gota deslizar com uma intensidade que fazia Dylan estremecer. Ele passou a língua pelos lábios sensuais e engoliu seco, mas manteve seus dentes cerrados o tempo todo.
– Fique aqui – ele ordenou com uma voz forte e autoritária enquanto franzia a testa com intensidade.
O instinto de Dylan lhe dizia que ela devia ser mais inteligente e correr, mas ela se recusava a sentir – ou, melhor dizendo, a demonstrar sentir – medo daquele homem enorme que estava sem camisa em sua frente. Por mais estranho que parecesse, Dylan sentia que tinha realmente conhecido aquele homem nos últimos dias, durante os quais eles foram obrigados a conviver. Rio não era nenhum santo, aquilo era um fato. Ele a tinha raptado, aprisionado e ela ainda não estava certa sobre o que ele queria fazer com ela – Santo Deus! No entanto, ela não acreditava que ele fosse perigoso – não para ela.
O que Dylan acabara de testemunhar ali não era exatamente algo a ser celebrado, mas, em seu coração, ela não sentia medo do que ele era.
Bem, não completamente.
Dylan ouviu quando Rio desligou o registro do chuveiro e saiu, poucos segundos depois, segurando uma toalha branca e umedecida que ele ofereceu para ela.
– Pressione isso contra a ferida. Vai estancar o sangramento.
Dylan tomou a toalha em suas mãos e a pressionou no rosto, exatamente como ele lhe dissera. Ela, porém, não pôde deixar de perceber a longa expiração que ele soltou quando a ferida em sua bochecha fora finalmente coberta, como se agora estivesse aliviado por não precisar mais passar pelo inferno de ter de olhar para aquilo e resistir. A cor ardente dos olhos de Rio começou a escurecer lentamente e as pupilas estreitas reassumiram a forma arredondada. Os dermoglifos, no entanto, ainda estavam avermelhados; as presas, ainda mortalmente afiadas.
– Você realmente é um... não é? – ela murmurou. – Você é um vampiro. Jesus Cristo! Não consigo acreditar que isso seja verdade. Quer dizer, como isso pode ser verdade, Rio?
Ele se sentou ao lado dela na cama. Menos de um metro de distância os separava agora.
– Eu já expliquei isso para você.
– Extraterrestres bebedores de sangue e mulheres humanas com DNA compatível com os deles – disse ela, recordando-se da estranha história sobre a raça híbrida de vampiros que ela tentara encarar como ficção científica. – Tudo isso é verdade?
– A verdade é um pouco mais complicada do que isso, mas sim... Tudo o que eu lhe disse é verdade.
Incrível.
Totalmente incrível.
Uma parte mercenária dela quase gritou de excitação ao pensar na potencial fama e fortuna que a revelação daquela história poderia lhe trazer. Mas havia outra parte de Dylan – a que não tinha se esquecido daquela incomum marca de nascença que ela trazia gravada na parte de trás do pescoço, a parte que ainda se lembrava de que ela tinha, aparentemente, uma forte conexão com aquele mundo – que mostrou instantaneamente seus instintos protetores, como se Rio e o mundo em que ele vivia fossem um delicioso segredo que pertencia exclusivamente a ela.
– Desculpe-me se eu chateei você – ela disse serenamente. – Eu não devia ter bisbilhotado as coisas enquanto você não estava aqui.
A cabeça dele se virou bruscamente e sua testa enrugou-se, levando as sobrancelhas a se unirem. O xingamento que ele murmurou foi forte e palpável.
– Você não precisa me pedir desculpas, Dylan. Fui eu quem errou. Eu nunca deveria ter entrado aqui no estado em que estava. Eu não posso ficar perto de ninguém quando estou daquele jeito.
– Você parece estar um pouco melhor agora.
Ele assentiu, sua cabeça caindo levemente em direção ao peito nu.
– A raiva diminui... no final. Se você não apagar antes, ela em algum momento... passa.
Não fazia muito tempo que Rio aparecera cambaleando no quarto, bastante desatento, com seus pés mal respondendo aos passos dificultosos que ele tentava dar. Ele mal conseguia pensar, seus músculos e ossos estavam embebidos em uma fúria insana.
– O que desperta isso, Rio?
Ele deu de ombros.
– Pequenas coisas, nada em especial. Nunca sei, exatamente.
– Aquele tipo de raiva faz parte do que você é? Todos os homens da Raça têm de passar por esse tipo de tormento?
– Não – disse, soltando o tipo de sorriso de alguém que está zombando de si. – Não. Esse problema é apenas meu. Falta um parafuso na minha cabeça. Eu o perdi no verão passado e nunca mais o encontrei.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan gentilmente. – Foi isso que aconteceu com você?
– Foi um erro – ele respondeu com uma ponta de insegurança na voz. – Eu confiei em alguém em quem não deveria ter confiado.
Dylan olhou para o dano terrível que o corpo de Rio tinha sofrido. O rosto e o pescoço dele carregavam graves cicatrizes, mas seu ombro esquerdo e metade de seu torso musculoso pareciam ter ido e voltado do inferno. Seu coração apertou-se em seu peito quando ela pensou na dor que ele deveria ter suportado, tanto no acontecimento que ferira seu corpo daquela forma, quanto no que provavelmente foram meses e meses de recuperação.
Ele estava ali, sentado naquela cama tão rigidamente, tão solitário e tão inalcançável, apesar de estar a menos de um braço de distância dela. Para Dylan, Rio parecia sozinho. Sozinho e à deriva.
– Sinto muito, Rio – disse ela. E antes que pudesse se interromper, Dylan colocou sua mão sobre a mão dele, que ele agora descansava sobre a coxa. ele estremeceu como se carvão em brasa tivesse sido colocado sobre sua pele. Todavia, não se afastou.
Ele olhou fixamente para os dedos de Dylan que descansavam suavemente sobre os dele, branco pálido sobre um tom bronzeado. Quando olhou para ela, lançou-lhe um olhar rústico e másculo que preenchia seus olhos completamente. Ela se perguntava quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele fora tocado com algum tipo de ternura.
Dylan deslizou seus dedos sobre a mão máscula de Rio, estudando o incrível tamanho e a enorme força que ela tinha. A pele dele era tão quente e havia tanta força concentrada em seu corpo, mesmo quando ele parecia determinado a manter-se perfeitamente parado.
– Sinto muito por tudo o que você enfrentou, Rio. Sinto de verdade.
A mandíbula dele estava tão apertada que fez um músculo de seu rosto se contrair. Dylan colocou de lado a toalha umedecida que ele tinha lhe trazido e mal percebia que todos os seus sentidos estavam concentrados nele e na eletricidade que parecia emanar de suas mãos entrelaçadas.
Ela ouviu um ruído baixo se formar dentro de Rio, algo entre um grunhido e um gemido. O olhar dele deslizou para a boca de Dylan, e, por um segundo – um rápido, um breve segundo que teria durado o tempo de uma batida do coração – ela se perguntou se ele iria beijá-la.
Dylan sabia que devia retroceder. Sabia que devia tirar sua mão de cima da mão dele, colocá-la longe. Sabia que devia fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não fosse ficar ali, parada, quase sem respiração enquanto esperava e desejava – desejava desesperadamente, incontrolavelmente – que ele se debruçasse sobre ela e apertasse seus lábios contra os dele.
E, de repente, ela não conseguia mais não tocá-lo. Foi quando estendeu a mão que estava livre e acariciou o rosto de Rio, sentindo um repentino sopro de ar gelado empurrá-la – com a imponência da Grande Muralha da China.
– Não quero sua compaixão – grunhiu Rio com uma voz que ela não reconheceu como sendo dele. O sotaque espanhol estava ali, como sempre, mas as sílabas eram ásperas e o timbre não era exatamente humano, o que imediatamente fez Dylan se lembrar de qual era a natureza daquele ser diante dela. Rio puxou a mão de debaixo da dela e se levantou da cama.
– O corte está sangrando. Você precisa de cuidados que não posso lhe oferecer.
– Tenho certeza de que não é nada grave – respondeu Dylan, sentindo-se uma idiota por se colocar em uma situação como aquela com ele. Depois, pegou novamente a toalha que descartara momentos antes e a pressionou outra vez contra o ferimento. – Não é nada. Vou ficar bem.
Não havia sentido algum em Dylan falar qualquer coisa que fosse, já que Rio não a ouviria, de qualquer forma. Ela o viu caminhar até a sala da frente, passando pelo espelho quebrado, e pegar um telefone sem fio, no qual imediatamente teclou uma sequência curta de números.
– Dante? Olá. Não, nenhum problema. Mas eu, é... Tess está por aí? Preciso que ela me faça um favor.
Rio parecia um animal enjaulado, andando de um lado para o outro durante os poucos minutos que se passaram até a ajuda chegar. Ele ficou do lado de fora do quarto, confinado a um espaço minúsculo perto da entrada principal. Ficou tão distante de Dylan quanto poderia ficar sem de fato ter de sair daquele maldito quarto e esperar do lado de fora.
Madre de Dios.
Ele quase lhe beijara.
E ele queria tê-la beijado. E admitir aquilo – mesmo que apenas para si – era como levar um soco no estômago. Beijar Dylan Alexander era uma maneira garantida de transformar uma situação que já era bastante ruim em algo que seria, de fato, catastrófico. Isso porque Rio sabia sem qualquer sombra de dúvida que, se beijasse aquela bela e ardente mulher, ele não conseguiria se conter, não conseguiria, de forma alguma, parar no beijo. Não, mesmo.
O simples pensamento da sensação que seria a de pressionar seus lábios contra os dela já fazia o sangue de Rio ferver e correr acelerado em suas veias. Seus dermoglifos pulsavam com as cores de seu desejo – agitando-se em tons de vermelho-escuro e negros. E também era impossível negar a outra evidência daquele desejo: seu pênis estava tão duro quanto granito, e estava daquele jeito desde o instante em que Dylan, inesperadamente, inadvertidamente, pousara a mão sobre sua coxa.
Jesus Cristo!
Ele sequer se atrevia a olhar para dentro do quarto, com medo de não ser capaz de impedir seus pés de marcharem de volta pelas portas fechadas e levarem-no diretamente para os braços de Dylan.
“Como ela provavelmente desejava” – ele pensou ardentemente.
Aquela carícia que Dylan fizera em sua mão tinha sido um gesto delicado, doce, do tipo que uma mãe faz em uma criança. Ou, pior do que isso, aquele gesto poderia ter sido um gesto de compaixão de um anjo caridoso que consola uma das criaturas mais infelizes criadas por Deus.
Maldecido.
Manos del diablo.
Monstruo.
Sim, Rio era todas essas coisas. E agora Dylan tinha visto como ele era realmente feio. Para seu crédito, ela não tinha recuado ao ver toda aquela carne retorcida e aquelas presas – o que queria dizer então que ela era muito mais forte do que aquilo tudo. Mas acreditar que ela poderia receber, poderia desejar seu toque? Que ela poderia aproximar-se o suficiente de seu rosto arruinado e permitir que ele a beijasse?
Jamais! E ele agradeceu a Deus por aquilo, pois aquilo lhe tinha poupado de ver a repugnância dela. Aquilo lhe tinha poupado de fazer algo realmente idiota, como se esquecer – ainda que por um segundo apenas – de que ela estava ali, no complexo – ali, em seu quarto – somente até que ele corrigisse o erro que cometera ao permitir que ela se aproximasse daquela maldita caverna em Jicín. Quanto mais rápido ele conseguisse fazer aquilo – consertar aquele erro – e mandar Dylan para casa, melhor.
Um golpe seco ecoou contra a porta.
Rio atendeu, com um grunhido de frustração.
– Você soava péssimo ao telefone, então decidi vir com Tess e ver com meus próprios olhos. – A boca de Dante curvou-se em um sorriso arrogante que só ele sabia dar enquanto seu corpo enorme permanecia parado na soleira da porta ao lado de sua bela Companheira de Raça. – E então, você não vai nos deixar entrar, cara?
– Claro.
Rio deu um passo para o lado, abrindo espaço para o casal entrar.
A companheira de Dante parecia ainda mais bela sob a luz daquele quarto. As longas ondas cor de mel de seus cabelos estavam presas em um rabo de cavalo frouxo e seus inquiridores olhos verde-mar eram suaves, mesmo quando encaravam Rio.
– É bom vê-lo novamente, Rio – disse ela, e, sem hesitação, deu um passo adiante e ficou na ponta dos dedos dos pés para dar um abraço rápido no guerreiro e beijar-lhe levemente a bochecha. – Dante e eu ficamos tão preocupados com você durante esses meses todos...
– Não precisava – respondeu Rio, embora não pudesse negar que aquela preocupação o deixava, de certa forma, feliz.
Tess e Dante estavam juntos desde o final do último outono. Ela tinha entrado para a Ordem com um extraordinário dom de curar e restaurar a vida com o simples toque de suas mãos macias. O toque de Tess tinha um poder inimaginável, mas nem mesmo ela fora capaz de consertar todos os danos que Rio tinha sofrido. Ele já estava muito longe quando ela chegou ao complexo, e as cicatrizes dele – tanto as interiores quanto as exteriores – eram permanentes, embora não fosse por falta de tentativas de Tess.
Dante passou o braço musculoso em volta de sua Companheira de Raça em um movimento que era protetor e respeitoso ao mesmo tempo. E foi então que Rio notou a leve protuberância no ventre dela. Tess percebeu o olhar de Rio e abriu um sorriso tão imaculado quanto o da própria Madonna de Botticelli.
– Estou nos primeiros três meses – ela disse, virando-se toda sorridente para Dante. – Alguém está usando isso como desculpa para me mimar.
Dante sorriu.
– Eu? Por favor...
– Felicidades – murmurou Rio, sinceramente sentindo os votos que desejava.
Não era comum guerreiros e Companheiras de Raça começarem uma família dentro da Ordem. Aliás, praticamente não se ouvia falar daquilo. Os homens da Raça que dedicavam suas vidas à luta contra os Renegados não eram tipos muito familiares, por assim dizer. Mas acontece que Dante nunca fora como esses guerreiros, então...
– Onde está Dylan? – perguntou Tess.
Rio gesticulou, apontando para as portas que estavam fechadas.
– Eu fui um idiota com ela. Tive uma crise e... Droga! Acabei quebrando o espelho. Um dos estilhaços acabou atingindo o rosto dela.
– Você ainda está tendo apagões? – perguntou novamente Tess, franzindo a testa. – As dores de cabeça ainda não passaram?
Rio recuou, obviamente não querendo falar sobre seus próprios problemas.
– Eu estou bem. – Foi tudo o que ele disse. – Apenas cuide dela, certo?
– Eu cuidarei. – Tess pegou uma pequena maleta médica das mãos de Dante, sob o olhar interrogativo de Rio, e completou:
– Desde que eu engravidei, minhas habilidades diminuíram. Eu entendo que, na gravidez, é normal a energia da Companheira de Raça se voltar para dentro do próprio corpo. As coisas vão voltar ao normal quando o bebê nascer. Até lá, terei de me apoiar na boa e velha medicina tradicional.
Rio lançou um olhar sobre seus ombros para dentro do quarto. Ele não conseguia ver Dylan, mas imaginou que ela estava lá dentro, precisando ver alguém gentil e carinhoso. Alguém que pudesse melhorar seu humor e conversar com ela como uma pessoa normal; alguém que pudesse tranquilizá-la, dizer-lhe que ela estava segura, que estava entre pessoas em quem ela podia confiar. Especialmente depois da espetacular demonstração de raiva psicótica e desregrada que ele, Rio, tinha feito para ela.
– Está tudo bem – disse Tess. – Não se preocupe, vou cuidar dela.
Com o punho fechado, Dante golpeou levemente o bíceps bem definido de Rio.
– Venha – disse –, vamos dar o fora daqui. Ainda falta uma hora para o amanhecer. E parece que você está precisando tomar um pouco de ar fresco, cara.
Capítulo 17
Dylan estava agachada perto do pé da cama, recolhendo cacos de vidro, quando as portas se abriram suavemente, abrindo caminho para o dormitório.
– Dylan?
Aquela era uma voz feminina. A mesma que, havia um minuto, ela tinha ouvido conversar baixinho com Rio e outro homem. Dylan olhou para cima e sentiu o calor instantâneo de um olhar brilhante que estava logo acima dela.
A mulher, jovem e bela, sorriu.
– Olá. Meu nome é Tess.
– Olá.
Dylan deixou um caco de vidro de lado e inclinou o corpo para recolher outro.
– Rio me pediu para vir ver se você estava bem.
Tess trazia consigo uma bolsa de couro preta quando entrou nos aposentos.
– Você está bem? – insistiu.
Dylan assentiu.
– É só um arranhão.
– Rio está se sentindo péssimo por causa disso. Ele anda passando por... problemas. Já faz algum tempo. Desde a explosão do armazém no verão passado. Ele tem sorte de estar vivo.
Meu Deus! Então isso explicava as queimaduras e as cicatrizes. Uma explosão havia feito aquilo? Quer dizer então que Rio realmente tinha feito uma viagem de ida e volta para o inferno, como Dylan havia suposto.
Tess continuou:
– Por causa do trauma cerebral causado pela explosão, ele tem blecautes de tempos em tempos. Além disso, Rio também tem fortes dores de cabeça, mudanças de humor... Bem, acredito que você deve ter visto com seus próprios olhos. Não é coisa para brincadeira. Mas ele não quis feri-la, disso eu tenho certeza.
– Estou bem – insistiu Dylan, sem se preocupar com o arranhão em sua bochecha. – Tentei dizer para ele que isto aqui não era nada. O corte nem está sangrando mais.
– É um alívio – disse Tess enquanto colocava a bolsa médica sob a escrivaninha. – Fico contente de saber que não é tão grave quanto Rio temia. Da forma como ele descreveu pelo telefone, pensei que teríamos que dar pelo menos meia dúzia de pontos. Mas pelo que vejo, um pouco de antisséptico e um curativo serão suficientes – Tess caminhou por onde Dylan recolhia os pedaços do espelho despedaçado. – Venha, deixe-me ajudá-la.
Quando Tess se aproximou, Dylan se deu conta de que a palma da mão de Tess estava apoiada sobre a curva na barriga. Ela estava grávida. E não foi apenas pela aparência física que Dylan percebeu, mas pelo fato de aquela mulher resplandecer com um brilho interior que não deixava dúvida alguma.
Além disso – e, talvez ainda mais estranho –, na mão que repousava sobre as primeiras fases de um bebê em desenvolvimento, havia uma pequena marca de nascença. Dylan não pôde deixar de olhar fixamente para a lágrima escarlate e a meia-lua na mão direita daquela mulher – a mesma marca com a qual ela tinha nascido, aquela que trazia no pescoço.
– Você vive aqui? – perguntou Dylan. – Com... eles?
Tess assentiu.
– Vivo com Dante. Ele é um guerreiro da Ordem, como Rio e os outros que vivem aqui no complexo.
Dylan acenou na direção da pequena marca de nascimento entre o polegar e o indicador de Tess:
– Você é a... Companheira de Raça dele? – perguntou, recordando o termo que Rio tinha usado depois de perceber que Dylan tinha uma marca idêntica àquela. – Você se casou com um deles?
– Dante e eu procriamos no ano passado – explicou Tess. – Fomos unidos por nosso sangue, o que nos liga de uma forma muito mais profunda do que o casamento. Imagino que Rio já tenha lhe dito algumas coisas sobre a Raça... Como eles vivem, de onde vêm. Depois do que aconteceu, estou segura de que você não tem dúvidas do que eles são.
Dylan assentiu, ainda sem acreditar que tudo aquilo poderia ser realmente verdade.
– Vampiros.
Tess sorriu gentilmente.
– Isso foi o que eu pensei a princípio. Porém, defini-los não é algo tão simples assim. A Raça é um pouco complicada. Eles vivem em um mundo complexo e cheio de inimigos. As coisas podem ser muito perigosas para eles e para quem os ama. Para os poucos homens que se comprometeram com a Ordem, cada noite é um risco para suas vidas.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan com um tom que deixava transparecer seu espanto. – A explosão que feriu Rio... foi algum acidente terrível?
Uma expressão de dor tomou conta do rosto de Tess. Ela estudou Dylan por um momento, como se não estivesse segura do quanto poderia contar. No entanto, ela logo sacudiu ligeiramente a cabeça.
– Não. Não foi um acidente. Alguém próximo de Rio o traiu. A explosão aconteceu durante uma investida em um velho armazém da cidade. Rio e os demais membros da Ordem se viram em uma emboscada.
Dylan olhou para baixo e se deu conta de que estava observando o porta-retratos que Rio tinha jogado pelo quarto durante seu ataque de raiva. Cuidadosamente o recolheu. Tirou a teia de aranha de cima do vidro quebrado sobre a imagem e observou os exóticos olhos escuros e o sorriso triste e distante.
– Eva – confirmou Tess. – Ela era a Companheira de Raça de Rio.
– Mas ela o traiu?
– Sim – Tess respondeu depois de uma longa pausa. – Eva fez um acordo com um dos inimigos da Ordem, com um poderoso vampiro que também era o irmão do líder da Ordem, Lucan. Para que este vampiro obtivesse informação que o ajudasse a matar Lucan, algo que Eva queria tanto quanto o inimigo, ela pediu duas coisas: que Rio sobrevivesse e que fosse ferido o suficiente para nunca mais conseguir lutar.
– Meu Deus! – ofegou Dylan. – E ela conseguiu o que queria?
– Não exatamente. A Ordem caiu em uma emboscada, apoiada nas informações que Eva entregou, mas o vampiro com o qual ela negociou não tinha a menor intenção de manter sua parte do acordo. Ele colocou uma bomba no local. A explosão poderia ter matado a todos, mas, ironicamente, Rio foi o mais atingido. E posteriormente ele veio a descobrir que Eva tinha sido a responsável por tudo aquilo.
Dylan não conseguia falar. Ela tentava absorver o peso que tudo aquilo deveria ter para Rio. Não apenas a dor física causada por aquelas lesões, mas também a dor emocional da traição sofrida por ele.
– Eu a vi. – Dylan olhou para Tess e viu a testa da mulher franzir. A confusão se tornava evidente naquele olhar carregado de interrogações. Dylan conhecia Tess há poucos minutos e não estava acostumada a falar sobre si com ninguém, em especial falar de seu segredo, de seu dom, daquilo que a tornava tão diferente dos outros humanos. No entanto, havia algo nos olhos cheios de cuidado de Tess que levava Dylan a confiar que estava segura. Ela tinha sentido uma afinidade instantânea que a fez saber que estava com uma amiga.
– Os mortos aparecem para mim de vez em quando. Bem, mulheres mortas, melhor dizendo. Eva apareceu para mim alguns dias atrás, quando eu estava viajando com algumas pessoas pelos arredores de Praga.
– Ela... apareceu para você...? – perguntou Tess com cautela. – O que você quer dizer com isso?
– Eu vi o espírito dela, por assim se dizer. Ela me guiou até uma caverna oculta. Eu não sabia, mas Rio estava lá dentro. Ela... Eva me levou até lá e me pediu que o salvasse.
– Meu Deus! – Tess acenou lentamente com a cabeça. – Ele sabe?
Dylan olhou significativamente para a destruição ainda sob seus pés.
– Sim, Rio sabe. Quando eu contei para ele, ele ficou louco.
O olhar de Tess transformou-se quase em um pedido de desculpa.
– Ele tem muita raiva de tudo que seja relacionado à Eva.
– É compreensível – respondeu Dylan. – Ele está bem, Tess? Quer dizer, considerando o que viveu, Rio vai ficar... bem?
– É o que eu espero. É o que todos nós esperamos. – Tess inclinou a cabeça ligeiramente, estudando Dylan. – Você não tem medo dele?
Não, Dylan não o temia. Tinha curiosidade de saber mais sobre Rio, e incerteza com relação às intenções dele quanto a ela. Mas não tinha medo. Embora isso parecesse loucura, mesmo depois de vê-lo tendo aquela reação naquele mesmo cômodo, Dylan não o temia. Aliás, pensar em Rio provocava muitas coisas nela, mas nenhuma delas era medo. Não mesmo.
– Você acha que eu deveria temê-lo? – perguntou.
– Não, claro que não – disse Tess sem vacilar. – Quer dizer, as coisas não devem estar sendo fáceis para você. Deus sabe que não aceitei muito bem no início, quando ouvi pela primeira vez toda essa coisa de sangue, presas e guerra.
Dylan encolheu o ombro.
– Eu escrevo para uma publicação que é quase um tabloide. Acredite, já escutei muitas coisas bizarras. Não me assusto com facilidade.
Tess sorriu, mas não manteve o olhar cruzado com o de Dylan por muito tempo. As palavras que ela não disse estavam claras naqueles olhos que a evitavam: aquilo não era apenas uma história bizarra de um tabloide. Aquilo era a realidade.
– O que havia naquela caverna, Tess? Parecia ser algum tipo de cripta, uma “câmara de hibernação”, como escutei Rio chamá-la. Mas que diabos era aquilo? Há algo perdido naquela montanha?
Tess levantou o olhar, mas só negou levemente com a cabeça.
– Na verdade, eu não acho que você queira saber.
– Sim, eu quero – insistiu Dylan. – Independentemente do que for, é importante o suficiente para que Rio sentisse a necessidade de me sequestrar e me trancafiar para que não dissesse nada do que vi.
O silêncio de Tess fez o estômago de Dylan formar um nó de medo. A Companheira de Raça sabia o que havia na caverna, e aquilo parecia aterrorizá-la. O que, é claro, apenas aumentou a curiosidade de Dylan.
– Tess, havia algo dormindo naquela tumba oculta. E, pelo aspecto, eu diria que esse algo estava escondido ali há muito tempo. Que tipo de criatura era ou é aquilo?
Tess se levantou e jogou alguns cacos de vidro no cesto de papéis ao lado da mesa.
– Deixe-me ver seu corte. Temos de limpá-lo. Depois faremos um curativo para evitar que você fique com uma cicatriz.
Confinado dentro da cela de raios ultravioleta, o Antigo jogou a cabeça para trás e soltou um rugido infernal. Sangue gotejava por suas enormes presas e seu peito, enorme e nu, ostentava a cor pulsante de seus dermoglifos.
– Apertem essas malditas correntes – gritou o cuidador, falando com seus subordinados por meio de um alto-falante na sala de observação fora da cela. – E, por Deus, arrumem toda essa bagunça aí dentro.
As algemas cibernéticas serpentearam e seguraram fortemente as pernas e os braços grossos do Antigo. Com um comando programado, ajustaram-se. A criatura tentou se libertar, mas não chegaria a lugar algum. Feriu-se futilmente: cortou seus próprios lábios e berrou de novo. O urro era pura fúria enquanto o imenso corpo era dominado por titânio e aço.
Ele ainda estava com o pênis ereto por conta do cruzamento que tinha dado tão violentamente errado. Ainda estava sedento pelo sangue e pelo corpo sem vida da mulher que naquele momento era apressadamente retirada da jaula.
A Companheira de Raça tinha sido atacada. Unhas e presas fortes tinham marcado irreversivelmente – mortalmente – seu corpo. E, antes que o Antigo pudesse ser afastado, ela já estava morta. Ela não era a primeira; tampouco seria a última (não estava perto de sê-lo, aliás). Ao longo das cinco décadas em que o Antigo tinha sido despertado de sua hibernação e posto sob o controle de seu guardião, alimentá-lo – e fazê-lo procriar – tinha se mostrado uma tarefa custosa e frustrante.
Apesar de toda aquela tecnologia e de todo aquele dinheiro disponível, não havia ciência alguma que pudesse substituir o tipo de acasalamento que havia ocorrido na cela do prisioneiro alguns momentos atrás. Carne com carne, esse era o único meio de concepção para o Antigo. E também para os demais membros da Raça. Mas o sexo era apenas uma parte do processo. Era necessária a ejaculação, com um intercâmbio de sangue no exato momento, para que a vida de um vampiro se desenvolvesse no corpo de uma Companheira de Raça.
Normalmente, os casais que desejavam conceber se deleitavam em um ato deliberado e sensual de criar uma vida. Neste caso, não. Aqui embaixo, com a selvagem criatura alienígena levada à loucura por conta da fome, da dor e do confinamento, a concepção era um jogo de vida e morte. Baixas, como a de hoje, eram parte da equação. Mortes deviam ser esperadas.
Mas êxitos haviam sido alcançados. E isso fazia os riscos valerem a pena. Para cada Companheira de Raça morta no processo, duas outras tinham saído vivas... E com as sementes de uma nova geração plantada em seus úteros.
O cuidador do Antigo sorriu secretamente, apesar da perda do dia.
Aquela nova geração poderosa já estava florescendo, a maioria em segredo.
E a obediência daqueles novos seres pertencia inteiramente a ele.
CONTINUA
Capítulo 14
Era muito estranho estar outra vez no complexo, mas, para Rio, o mais surreal era entrar novamente em seus aposentos dentro da sede subterrânea da Ordem, localizada no subúrbio de Boston.
Dante e Chase tinham ido para o laboratório de alta tecnologia logo que chegaram, deixando Rio a sós com Dylan. O guerreiro espanhol imaginou que os outros companheiros queriam lhe dar a oportunidade de ele se reencontrar com sua antiga vida – a vida que Eva havia lhe roubado um ano atrás com aquela maldita traição.
Rio não colocava os pés no complexo havia muito tempo, mas o lugar estava exatamente como ele se lembrava. Exatamente como ele tinha deixado antes da explosão no armazém que o mandara para a enfermaria do complexo por vários meses para enfrentar uma difícil recuperação – uma recuperação que não tinha sido, de modo algum, completa.
Aqueles aposentos, que uma vez Rio dividira com Eva, eram como uma espécie de cápsula do tempo. Tudo estava congelado em seu lugar desde aquela noite infernal quando Rio e seus companheiros tinham saído para acabar com um bando de Renegados sem imaginarem que estavam indo diretamente para uma emboscada mortal – uma emboscada orquestrada pela mulher que era uma Companheira de Raça... sua companheira.
E também fora ali, naquele mesmo lugar que, depois de ter sua traição descoberta e denunciada, Eva tinha cortado a própria garganta.
Ela se suicidou sobre a cama de Rio na enfermaria, mas era ali, em seu quarto, que Rio sentia mais a sua presença: o toque de Eva estava por todas as partes, desde as obras de arte extravagantes que ele tinha, a contragosto, permitido pendurar nas paredes antes vazias, até os inúmeros espelhos espalhados por todo o quarto, perto do closet e aos pés da enorme cama.
Rio conduziu Dylan pela elegante sala de estar, atravessando as portas cobertas por cortinas que levavam à suíte do dormitório. Ele se viu refletido no espelho enquanto, com todo o cuidado, deixava a delicada mulher sobre cama de dossel coberta por lençóis cor ameixa escura. Recuou diante do rosto moreno e arruinado do desconhecido que lhe devolvia o olhar. Mesmo vestido com as roupas elegantes que Reichen havia lhe dado, ele ainda parecia um monstro e a sensação apenas aumentava quando comparada à beleza adormecida em seus braços e totalmente à sua mercê.
Ele era um monstro e não podia jogar a culpa daquilo somente em Eva. Afinal, ele tinha nascido uma besta, um assassino, e agora simplesmente também se parecia um pouco mais com aquilo. Dylan se moveu um pouco assim que ele a colocou no colchão e ajeitou um dos macios travesseiros sob sua cabeça.
– Acorde agora – ele disse, roçando a mão brandamente na testa da mulher. – Você já descansou o suficiente, Dylan. Está na hora de despertar.
Ele não precisava acariciar o rosto dela para tirá-la do transe. Ele não precisava deslizar as pontas de seus dedos másculos sobre aquela pele aveludada e decorada com pequenas e encantadoras sardas. Ele não precisava demorar seu toque ao longo da delicada linha de sua mandíbula... Rio, todavia, não conseguiu deixar de aproveitar ao máximo aquela oportunidade única de fazer tudo isso.
As pálpebras de Dylan se abriram, seus cílios castanhos se levantaram e, de repente, Rio se viu capturado pela luz verde-dourada daquele olhar. Ele imediatamente afastou a mão do rosto de Dylan, mas não pôde deixar de notar que ela tinha se dado conta da liberdade que ele tomara. Ela, todavia, não demonstrou alteração alguma, simplesmente soltou um suave sopro de ar por seus lábios entreabertos.
– Estou com medo – ela sussurrou com uma voz baixa por causa do longo sono em que ele a tinha colocado. Dylan não tinha consciência do transe ou da viagem. Para sua mente humana, ela ainda estava no Refúgio de Reichen, uma vez que sua mente tinha sido colocada em suspensão momentos antes da partida para Boston. – Estou com medo do lugar para onde você está me levando...
– Já estamos aqui – disse Rio. – Acabamos de chegar.
O pânico tomou conta do olhar de Dylan.
– Onde...
– Eu a trouxe para a sede da Ordem. Você está segura aqui.
Dylan lançou um olhar ao seu redor, tentando entender onde estava.
– É aqui que você mora? – perguntou.
– É aqui que eu costumava morar. – Rio se levantou e se afastou da cama. – Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, basta pedir.
– Que tal uma carona até minha casa em Nova York? – ela disse. Sua consciência estava obviamente voltando ao normal. – Ou talvez um GPS mostrando onde estamos agora... Pode deixar que eu me viro para encontrar o caminho para casa.
Rio cruzou os braços sobre o peito enorme e musculoso.
– Esta é sua casa agora, Dylan. Como você é uma Companheira de Raça, será tratada com todo o respeito e reverência. Terá comida, conforto e tudo mais o que precisar. Você não vai ser trancada nesse quarto, mas eu posso lhe garantir que não há para onde você correr, caso isso venha a passar por sua cabeça. O complexo é inteiramente seguro. Meus companheiros e eu não vamos machucá-la, mas se você tentar deixar esses aposentos, nós saberemos antes de você dar o primeiro passo no corredor. Se você tentar fugir, vou encontrá-la, Dylan.
Ela ficou em silêncio por um longo momento enquanto ouvia aquele enorme homem falar e media cada uma de suas palavras.
– E então, o que vocês vão fazer comigo? Me segurar e morder minha garganta?
Jesus Cristo!
Rio sentiu todo o seu sangue drenar de sua cabeça ao simples pensamento daquilo. Ele sabia que para ela aquilo deveria ser um ato de extrema violência, mas, para ele, a imagem de segurar Dylan sob seu corpo enquanto ele perfurava delicadamente a pele macia de seu pescoço com suas presas era um ato inteiramente sensual.
O desejo percorreu seu corpo em uma espiral ardente e se concentrou imediatamente no meio de suas pernas. Ele ainda podia sentir a pele sedosa de Dylan em seus dedos e agora era outra parte de seu corpo que desejava imensamente, incontrolavelmente, conhecer o toque da pele daquela mulher em sua frente. Rio se virou, irritado com a rápida reação a Dylan que seu corpo esboçava.
– Quando eu estava em Jicín, ouvi uma história sobre um homem que foi atacado por um demônio. Um velho fazendeiro que testemunhou tudo disse que o tal demônio descia da montanha para se alimentar. Para beber sangue humano.
Rio ficou ali, encarando a porta em sua frente enquanto Dylan falava. Ele sabia a qual noite ela estava se referindo, ele se lembrava dela claramente, pois aquela tinha sido a última vez que ele tinha se alimentado. Fazia mais de duas semanas que ele não se alimentava quando foi até aquela humilde fazenda perto da floresta, na base da montanha.
Ele estava faminto e aquilo o deixou descontrolado. Um homem idoso apareceu, viu o ataque, viu Rio com os dentes cravados no pescoço de outro homem. Aquele foi um deslize, uma imprudência, e aquela interrupção tinha sido a única coisa responsável por salvar a vida da caça de Rio de sua fome incontrolável. Se aquele velho homem não tivesse aparecido, certamente o outro teria morrido. Rio tinha deixado de caçar naquela noite, aterrorizado com o que tinha se tornado.
– Foi um exagero, não é mesmo? – A voz de Dylan tornou-se lentamente mais calma durante o silêncio que Rio lhe deu como resposta. – Você não fez aquilo, fez, Rio?
– Fique à vontade – ele grunhiu, enquanto saía. Antes, porém, ele pegou a bolsa em que estavam o laptop e a câmera digital de Dylan. – Há algumas coisas que preciso fazer.
Rio não esperou que Dylan protestasse ou dissesse uma palavra mais, apenas sabia que precisava sair dali. Agora. Uns poucos passos o levariam para as portas abertas e à luxuosa sala de estar que atravessara minutos antes carregando Dylan em seus braços.
– Rosario...?
Ele parou ao som da voz dela em suas costas. Franziu a sobrancelha, virou a cabeça e voltou o olhar para a mulher, que agora tinha se levantado da cama e estava apoiada em seus cotovelos.
Madre de Dios, ela estava deliciosamente atraente, um tanto quanto despenteada, um tanto quanto sonolenta. Não demorou muito para Rio imaginar que talvez fosse daquela forma que Dylan deveria parecer depois de uma noite de sexo ardente. O fato de ela estar deitada sobre aqueles lençóis de seda de cor ameixa da cama de Rio apenas deixava a imagem ainda mais erótica.
– O quê? – a voz do homem enorme era um chiado que mal passava por sua garganta masculina.
– Seu nome – ela disse, como se ele devesse saber do que ela estava falando. A mulher, então, inclinou a cabeça enquanto estudava atenciosamente o quarto. – Você me disse que Rio é apenas parte de seu nome, então eu imaginei que talvez pudesse ser um apelido para Rosario.
– Não.
– Então qual é? – Quando ele não respondeu imediatamente, suas sobrancelhas castanho-claras juntaram-se, obviamente impacientes pela resposta. – Depois de tudo o que você me contou nos últimos dias, que problema teria em me dizer seu nome?
Ele escarnecia interiormente enquanto se lembrava de todos os nomes pelos quais tinha sido chamado desde que nascera. Nenhum deles era gentil, para dizer o mínimo.
– Por que isso é tão importante?
Ela sacudiu a cabeça, erguendo levemente os ombros magros.
– Não é importante. Suponho que simplesmente tenho curiosidade de saber mais sobre você. Para saber quem você realmente é.
– Você já sabe o suficiente – ele disse. Um leve xingamento escapou por sua boca. – Confie em mim, Dylan. Você não vai querer saber nada mais sobre mim além do que já sabe.
Mas Rio estava equivocado, pensou Dylan, enquanto observava o enorme corpo daquele homem afastar-se e atravessar a porta da ampla suíte. Ele fechou a porta e deixou a mulher sozinha na suave iluminação dos aposentos.
Ela virou o corpo na enorme cama, suas pernas estavam trêmulas como se fizesse muito tempo que não as usava, como se ela tivesse ficado ao relento durante boa parte de uma noite de inverno. Se o que ele disse era verdade – que eles tinham deixado Berlim e estavam agora nos Estados Unidos – então, ela pensou, faltava-lhe pelo menos nove horas de memória consciente.
Seria aquilo realmente possível?
Será que ele realmente a havia colocado em uma espécie de transe por todo aquele tempo?
Ela tinha ficado surpresa ao sentir os dedos de Rio acariciando seu rosto quando despertou. Aquele contato parecia tão suave, tão protetor e tão quente. Mas também tinha sido muito fugaz, tinha sido interrompido tão logo ele se dera conta de que ela estava acordando, tão logo notara que ela estava percebendo o que acontecia. Será que ele também percebeu que ela estava gostando?
Não, Dylan não queria sentir o calor de Rio, tampouco queria demonstrar algum calor para ele, mas ela não conseguia negar que havia algo de eletrizante na maneira como ele a olhava. Havia algo inegavelmente sedutor na maneira como ele a tocava. Ela queria saber mais sobre aquele homem – ela precisava saber mais sobre aquele homem. Afinal de contas, como sua prisioneira, seria de seu maior interesse saber qualquer coisa que pudesse a respeito do homem que a mantinha como refém. Como jornalista em busca – ou à espera – de uma grande matéria, era obrigação dela juntar até os mais insignificantes fatos e perseguir a verdade até o fim. Entretanto, era seu interesse como mulher o que mais incomodava Dylan.
Era aquele desejo mais íntimo e pessoal de saber mais sobre o tipo de homem que Rio era que fazia com que ela vagasse de um lado para o outro naqueles aposentos chiques. A decoração era exuberante e sensual, uma explosão de cores brilhantes que iam desde a roupa de cama de seda, da cor de ameixas maduras, até o tom dourado da pintura que cobria as paredes. Uma coleção de pinturas abstratas, tão brilhantes e gritantes que chegavam a fazer os olhos de Dylan doer, cobriam uma parede inteira da suíte luxuosa. Outra parede ostentava um espelho com uma moldura exuberante e obviamente caríssima. E o objeto estava colocado estrategicamente de modo a refletir os quatro lados da cama de dossel e tudo o que, por ventura, pudesse estar acontecendo em cima daqueles lençóis. Excitante.
– Sutil... – murmurou Dylan, girando os olhos enquanto se aproximava de um par de portas duplas que havia do outro lado do quarto. Ela as abriu e ficou de boca aberta quando percebeu que se tratava do closet... Um closet que tinha mais metros quadrados do que todo o seu apartamento no Brooklin.
– Santo Deus!
Ela entrou e imediatamente se deu conta de que havia mais espelhos ali dentro – e por que você não iria querer admirar-se em todos os ângulos possíveis quando tinha metade da Chanel à sua disposição?
Dylan ficou tentada a perscrutar aquele lugar que deveria ter milhares de dólares em roupas e sapatos assinados por estilistas famosos, mas um pensamento triste logo tomou conta de sua mente: apenas um quarto do armário tinha roupas masculinas. O resto todo pertencia a uma mulher. Uma mulher pequena, delicada, cujo gosto era, obviamente, muito caro. Aqueles aposentos poderiam ser de Rio, mas certamente ele não vivia ali sozinho.
Mas que merda! Será que ele era casado?!
Dylan deu meia-volta e saiu do closet, fechando bruscamente a porta e intimamente desejando nunca ter entrado ali. Dirigiu-se para a sala, observando atentamente cada detalhe e inegavelmente percebendo que havia um toque feminino em todos os cantos para os quais olhava. Nada se parecia nem de longe com seu estilo, mas, afinal, o que Dylan sabia sobre design de interiores mesmo? Não muito. Sua melhor peça de mobília era um sofá-cama que ela comprara de segunda mão.
Dylan deixou a mão percorrer o encosto de uma nogueira esculpida como uma cadeira enquanto observava a mobília declaradamente elegante do lugar. Ela se aproximou de um sofá de veludo dourado e parou enquanto seu olhar capturava uma pequena coleção de fotografias emolduradas minuciosamente expostas na mesa que havia atrás do sofá.
A primeira coisa que viu foi uma fotografia de Rio. Ele estava sentado no banco do passageiro de um clássico Thunderbird conversível que tinha sido estacionado sob a luz da lua em alguma praia deserta. Ele vestia uma camisa de seda preta – desabotoada, obviamente – e uma calça da mesma cor; suas coxas estavam ligeiramente separadas em um “V” casual e os dedos de seus pés descalços estavam inocentemente enterrados na areia branca enquanto seu olhar topázio escuro brilhava com uma espécie de sabedoria oculta e privada, e seu sorriso nebuloso o tornava igualmente perigoso e atraente.
Jesus Cristo, ele era lindo.
Para dizer a verdade, ele era muito mais do que lindo.
A foto não parecia antiga. Não havia cicatrizes no lado esquerdo do rosto dele, de modo que a lesão que ele sofrera devia ser bastante recente. Seja lá o que tenha roubado sua aparência clássica e incrivelmente atraente, a maior tragédia parecia ser a fúria que Rio havia dentro de si. Dylan olhou para a fotografia de Rio em dias felizes, e se perguntou como ele poderia ter mudado tanto desde aquela época.
Ela então olhou para outra fotografia, essa sim, antiga. Era uma imagem profissional em tons de sépia de uma mulher com os cabelos negros vestindo um bufante vestido vitoriano de gola alta. Dylan se inclinou para poder ter uma visão melhor enquanto se perguntava se aquela beleza exótica com sorriso tímido poderia ser, de repente, a avó de Rio. Os olhos escuros da modelo encaravam direta e fixamente a lente da câmera, lançando um olhar de pura sedução. Ela era bela, a mulher da fotografia, apesar da moda recatada de sua época.
E seu rosto... seu rosto parecia extremamente familiar.
– Ah, meu Deus!
A incredulidade, assim como o absoluto deslumbramento, inundou Dylan conforme ela deslizava o olhar para outra fotografia que havia na mesa. Esta, uma imagem colorida, obviamente tirada na última década ou menos... e na qual a mesma mulher da foto antiga também era modelo. Essa última imagem, tirada durante a noite, mostrava uma mulher de pé em uma ponte de pedra no meio de um parque, rindo enquanto seus belos e longos cabelos negros balançavam em sua cabeça. Ela parecia feliz, mas Dylan viu uma tristeza em seus olhos escuros – dolorosos segredos profundamente escondidos em seu olhar castanho-escuro que estava fixo em quem quer que estivesse tirando a foto.
E Dylan reconhecia aquele rosto, ela tinha certeza de que sim... Sim, ela percebia agora, e não era apenas da série de fotografias espalhadas naquela mesa e que a jornalista acabara de ver... Não, aquele rosto era familiar. Dylan já o tinha visto, sim, ela o reconhecia agora porque já o tinha visto na montanha, em Jicín. Aquele era, definitivamente, o rosto da mulher morta. A bela – e morta – mulher que a havia conduzido à caverna onde ela encontrara Rio – Dylan se dava conta disso agora – era esposa dele.
Capítulo 15
Era quase como se ele nunca tivesse deixado aquele local.
Rio estava no laboratório de alta tecnologia do complexo, cercado por Lucan, Gideon e Tegan, que o tinham saudado e oferecido um aperto de mão – sinal da amizade e da confiança verdadeiras.
O aperto de mão de Tegan se prolongou por mais tempo. Rio sabia que o forte guerreiro com cabelos acobreados e olhos esmeraldas era capaz de ler sua culpa e suas incertezas por meio da ligação entre suas mãos. Esse era o dom de Tegan, adivinhar as verdadeiras emoções com apenas um toque.
Ele deu um aceno quase imperceptível com a cabeça.
– Coisas ruins acontecem, meu amigo. E Deus sabe que todos nós temos nossos demônios tentando nos passar a perna. Então, ninguém está aqui para julgá-lo. Entendeu?
Rio assentiu com a cabeça enquanto Tegan soltava sua mão. Ao entregar a bolsa de Dylan a Gideon, o vampiro recém-chegado observou a parte posterior do laboratório, onde Dante e Chase limpavam suas armas para usá-las durante a noite. Dante ofereceu uma pequena saudação com o queixo, mas o olhar de aço de Chase deixava claro que ele não sabia o que pensar quando o assunto era Rio. Um homem inteligente. Rio imaginou que a reação do ex-agente fosse, provavelmente, a sua própria reação caso a situação fosse inversa e fosse Chase quem estivesse voando naquele jato em busca de resgate.
– Quanto a mulher sabe a nosso respeito? – perguntou Lucan.
Com novecentos anos de idade e fazendo parte da Primeira Geração da Raça, o fundador da Ordem e líder formidável poderia controlar toda uma sala com apenas um movimento de suas sobrancelhas negras. Rio o considerava um amigo – todos os guerreiros eram tão próximos que pareciam até mesmo familiares uns dos outros – e Rio odiava com todas as suas forças a possibilidade de tê-lo decepcionado.
– Só dei a ela as informações básicas – respondeu Rio. – Não acredito que ela esteja completamente convencida.
Lucan grunhiu, assentindo pensativamente.
– Realmente, são muitas informações para ela processar. Ela entende o propósito da cripta na montanha?
– Na verdade, não. Ela me ouviu chamando aquilo de câmara de hibernação quando Gideon e eu estávamos conversando, mas não sabe nada além disso. Pode ter certeza de que não pretendo dar mais nenhuma pista a ela. O fato de ela ter visto aquilo já é ruim demais. – Rio exalou um suspiro duro. – Ela é inteligente, Lucan. Não acredito que vá levar muito tempo para juntar as peças do quebra-cabeça.
– Então será melhor agirmos logo. Quanto menos detalhes tivermos que esclarecer posteriormente, melhor – explicou Lucan. Ele lançou um olhar a Gideon, que tinha aberto o laptop de Dylan no console ao seu lado. – Quão difícil acredita que será hackear e acabar com as fotos que ela enviou por e-mail?
– Apagar os arquivos da câmera e do computador é fácil. Demora apenas alguns segundos.
– E quanto a apagar as fotos da caixa de entrada daqueles que as receberam?
Gideon franziu o rosto como se estivesse calculando a raiz quadrada da renda líquida de Bill Gates.
– Algo como dez minutos para enviar uma bomba e estourar o disco rígido de todos os computadores da lista de contatos dela. Treze minutos se você quiser algo mais sutil.
– Eu não estou nem aí com o fator sutileza. – Lucan deixou claro. – Faça o que for necessário para destruir as fotos e destruir qualquer referência escrita ao que ela encontrou na montanha.
– Pode contar comigo – respondeu Gideon, que já se encontrava fazendo sua magia em ambos os dispositivos.
– Podemos destruir os arquivos eletrônicos, mas ainda teremos de tratar com as pessoas com quem ela manteve contato sobre a caverna – esclareceu Rio. – Além do chefe dela, há três mulheres com quem ela estava viajando. E também a mãe dela.
– Vou deixar isso para você – disse Lucan. – Não me importa como você vai fazer isso. Faça-a negar a história, acabe com a credibilidade dela ou saia para encontrar as pessoas com quem ela conversou e apague a memória de cada uma delas. A decisão é sua, Rio. Simplesmente dê um jeito na situação, como sei que você vai fazer.
Rio assentiu.
– Eu lhe dou minha palavra, Lucan. Vou consertar a situação.
A expressão do vampiro da Primeira Geração era tão sombria quanto segura.
– Não duvido de você. Nunca duvidei e nunca duvidarei.
A confiança de Lucan era inesperada, e um presente que Rio não tinha intenção de desperdiçar, independentemente de quão destruído ele soubesse estar. Durante muitos anos, a Ordem e os guerreiros que a serviam eram seu principal propósito na vida – inclusive acima de seu amor por Eva, o que acabou gerando um ressentimento silencioso, porém colérico, nela. Rio estava comprometido com até o último destes homens – como se eles fossem seus parentes de sangue –, comprometido a lutar por eles e, inclusive, a morrer por eles. Ele olhou em volta, sentindo-se humilde pelos rostos sombrios e corajosos dos cinco homens da Raça que ele sabia, sem dúvida alguma, que também dariam suas vidas por ele.
Rio limpou a garganta, sentindo-se desconfortável com as boas vidas praticamente unânimes de seus irmãos. Do outro lado do laboratório, as portas de vidro se abriram quando Nikolai, Brock e Kade chegaram, vindos do corredor. Os três conversavam com empolgação, trazendo um ar de camaradagem quando entraram no laboratório.
– Oi! – disse Niko, lançando a saudação para ninguém em particular. Seus olhos azuis como o gelo pararam em Rio por um segundo antes de ele finalmente olhar para Lucan e começar a detalhar a patrulha da noite. – Acabamos com um Renegado perto do rio há mais ou menos uma hora. O filho da mãe estava escondido em um contêiner de lixo quando o encontramos.
– Você acha que é um dos cachorros de Marek? – perguntou Lucan, referindo-se ao exército de Renegados que seu próprio irmão vinha criando até a Ordem finalmente intervir. Marek tinha morrido pelas mãos da Ordem, mas os vermes de seu exército ainda precisavam ser exterminados.
Nikolai ofereceu um aceno com a cabeça.
– O desgraçado não era um soldado, mas apenas um viciado tentando satisfazer sua sede de sangue. Imagino que só tenha passado algumas poucas noites fora do Refúgio Secreto. E nós o liquidamos facilmente. – O vampiro russo olhou atrás de Rio e lançou um sorriso desajeitado para Dante e Chase. – Alguma ação no lado Sul?
– Não, nada – murmurou Chase. – Estávamos muito ocupados buscando alguém no aeroporto.
Nikolai grunhiu, compreendendo o comentário e lançando um olhar em direção a Rio.
– Faz tempo, hein cara?! É bom ver que você continua inteiro.
Rio conhecia aquele cara muito bem para pensar que o comentário era amistoso. De todos os guerreiros da Ordem, Rio esperava que fosse Nikolai o primeiro na fila para defendê-lo – mesmo se Rio fosse ou não digno de defesa. Niko era o irmão que Rio nunca tivera. Os dois tinham nascido no século anterior e entrado para a Ordem em Boston na mesma época.
Era estranho Niko estar ausente durante a chegada de Rio ao complexo. No entanto, conhecendo o vampiro e seu amor pelo combate, ele provavelmente estava irritado com o fato de sua equipe de patrulha ter sido reduzida algumas horas antes do amanhecer.
Antes que Rio pudesse dizer qualquer coisa a seu velho amigo, a atenção de Nikolai voltou a Lucan.
– O Renegado que encontramos esta noite era jovem, mas a matança que ele tinha deixado para trás parecia ser trabalho de mais de um vampiro. Eu gostaria de retornar lá amanhã e verificar as redondezas. Talvez encontremos mais alguma coisa.
Lucan assentiu:
– Parece uma boa ideia.
Depois de resolver isso, Niko dirigiu sua atenção para Kade e Brock:
– Temos tempo suficiente antes do amanhecer para caçar um pouco. Alguém aí se sentiu com sede de repente?
Os olhos de Kade brilharam como mercúrio.
– Há um lugar em North End que deve ser bem interessante. Lá há um monte de jovens no ponto certo.
– Pode contar comigo – disse Chase com palavras arrastadas, saindo de sua cadeira ao lado de Dante para unir-se aos outros três vampiros não comprometidos conforme eles começavam a caminhar na direção da saída do laboratório.
Por um instante, Rio os observou partir. Entretanto, quando viu Nikolai sair junto aos outros, xingou em voz baixa e, logo depois, correu atrás dele.
– Niko, espere.
O guerreiro seguiu seu caminho, como se não tivesse ouvido nada.
– Espere, cara. Caramba, Nikolai. Que diabos está acontecendo com você?
Quando Chase, Brock e Kade pararam para olhar atrás, Niko acenou para que eles continuassem. Os três seguiram seu caminho, virando no canto do corredor e desaparecendo de vista. Depois de uns poucos segundos, finalmente, Niko deu meia-volta.
O rosto que olhava para Rio no túnel branco era duro e incompreensível.
– Sim. Estou aqui. O que você quer?
Rio não sabia como responder àquilo. A hostilidade saiu da boca de seu velho amigo como um vento frio de inverno.
– Fiz algo que o incomodou?
O som da risada de Nikolai raspava contra as paredes de mármore.
– Vá se ferrar, cara.
Nikolai deu meia-volta e começou a se afastar novamente.
Rio o alcançou em um piscar de olhos. Estava a ponto de agarrar o ombro do guerreiro e obrigá-lo a parar, mas Niko se movimentou com mais agilidade. O vampiro russo virou-se e golpeou Rio, acertando-o no esterno, fazendo-o bater a coluna contra a sólida parede no outro lado do corredor.
– Você quer morrer, seu filho da mãe? – Niko estava com os ombros entreabertos, a cor âmbar acesa como resultado de toda aquela ira. – Se você quer se matar, é problema seu. Só não peça a minha ajuda, está bem?
Os músculos de Rio estavam retesados e prontos para uma briga. Seus instintos de combate se tornaram mais aguçados, apesar de ele estar enfrentando um aliado de longa data. No entanto, enquanto Nikolai falava, a fúria que cresceu em Rio rapidamente se reduziu. De repente, a cólera que Niko sentia contra ele fez sentido. Afinal, Nikolai sabia que Rio tinha ficado naquela montanha da Boêmia com intenções de acabar com a própria vida. Se Niko não tinha se dado conta disso cinco meses atrás, agora ele tinha certeza.
– Você mentiu para mim – esbravejou Niko. – Você me olhou diretamente nos olhos e mentiu para mim, cara. Você nunca ia voltar para a Espanha. O que pretendia fazer com o C-4 que eu dei para você? Você pretendia detonar aquela droga presa ao seu corpo, como se fosse um camicase se divertindo. Ou talvez você só estivesse planejando se prender no interior daquela maldita caverna e ficar lá, esquecido por toda a eternidade. O que você ia fazer, amigo? Como você pretendia acabar com a própria vida?
Rio não respondeu. Não era necessário. De todos os guerreiros da Ordem, Nikolai era o que melhor o conhecia. Nikolai tinha visto Rio como o covarde e fraco que ele realmente era. Só ele sabia o quão próximo Rio tinha estado de dar um fim a tudo – antes mesmo de ele chegar àquela montanha tcheca.
Tinha sido Niko quem se negara a deixar Rio mergulhar no ódio que sentia de si. E, então, evitar que entrasse naquela espiral de negatividade tinha se tornado sua missão pessoal. Niko, que ajudou Rio a subir na montanha nas semanas que se seguiram, caçando para o amigo que estava fraco demais para cuidar dele mesmo. Nikolai, o irmão que Rio nunca tivera.
– Sim – disse Niko, fechando uma carranca. – Como disse. Vá se ferrar.
Ele tirou o braço do peito de Rio e se afastou, ainda rangendo alguns xingamentos. Rio o viu se distanciar. Os sapatos de Niko pareciam mastigar o piso de mármore polido quando ele se apressou para juntar-se aos outros guerreiros que já estavam a caminho do piso superior.
– Que droga! – murmurou Rio, correndo a mão pelos cabelos.
O choque com Nikolai era só mais uma evidência de que ele não devia ter retornado a Boston – mesmo que isso significasse jogar o problema Dylan Alexander nas mãos de outra pessoa. Rio já não se encaixava ali. Agora ele era um estranho, um elo fraco em meio a uma cadeia de aço, formada pelos corajosos guerreiros da Raça.
Ainda agora ele conseguia sentir suas têmporas latejarem por conta da descarga de adrenalina que tinha ocorrido alguns minutos atrás, quando parecia que Niko queria cortá-lo em pedaços. Sua visão começou a tremer enquanto ele estava parado ali. Se não se movesse e encontrasse um local privado para aguentar a crise mental que estava por vir, Rio sabia que seria questão de minutos antes que acordasse caído sobre o mármore que revestia o chão do corredor. E, francamente, ver Lucan e aos outros saírem do laboratório para olhá-lo fixamente como se ele fosse um moribundo era algo que não queria experimentar.
Ele forçou suas pernas a se movimentarem e, com uma dificuldade acentuada, conseguiu encontrar o caminho de volta até seus aposentos. Entrou, cambaleando, e fechou a porta. Em seguida, entregou-se a uma nova sensação de náusea que o invadiu.
– Você está bem?
A voz feminina vinha de algum ponto distante naquele cômodo. A princípio, não a reconheceu. Seu cérebro estava lutando para realizar as tarefas básicas. Aquela voz brilhante e cristalina não parecia pertencer àquele lugar cheio de lembranças antigas e empoeiradas.
Rio se distanciou da porta e se arrastou pela sala, em direção ao quarto. Seu cérebro transmitia a impressão de que se despedaçaria a qualquer momento.
Água quente. Escuridão. Tranquilidade. Ele precisava dessas três coisas. Imediatamente.
Rio tirou a camisa e a deixou cair no ridículo sofá de veludo de Eva. Ele realmente tinha que queimar todos seus pertences. E era uma pena que ele não tinha como jogar aquela maldita traidora na fogueira junto com todo o resto.
Rio se agarrou à sua fúria pela traição de Eva, um leve castigo, mas aquilo era tudo o que tinha no momento. Abriu as portas do quarto e ouviu um leve suspiro vindo lá de dentro.
– Meu Deus! Rio, você está bem?
Dylan.
O nome dela atravessava como um bálsamo a névoa que envolvia a mente de Rio. Ele levantou o olhar na direção de sua convidada indesejada, que agora estava sentada no canto da cama com algo plano e retangular apoiado em seu colo. Ela deixou o objeto de lado, no criado-mudo, e se aproximou antes que os joelhos dele cedessem.
– Banho – ele conseguiu grunhir.
– Você mal consegue parar em pé – Dylan o ajudou a alcançar a cama, onde ele rapidamente deixou o corpo cair. – Parece que você precisa de um médico. Há alguém aqui que possa ajudá-lo?
– Não – ele respondeu com uma voz rouca. – Uma ducha...
Rio estava fraco demais para usar sua habilidade mental da Raça e abrir o registro da água, mas ele não precisou sequer tentar. Dylan já estava se apressando na direção do banheiro ao lado. Ouviu o forte estalar da água batendo contra o chão e, em seguida, os suaves passos de Dylan no carpete enquanto ela retornava para onde estava caído, com o corpo virado na direção dos pés da cama.
Rio percebeu vagamente a desaceleração dos passos da mulher conforme ela se aproximava. Apenas escutou a respiração rápida logo acima de seu corpo. Mas era impossível confundir quem estava ali quando ela soltou, com a respiração trêmula, alguns palavrões. Um silêncio pesado e demorado se seguiu ao xingamento sussurrado. Em seguida:
– Rio... Meu Deus! Por que tipo de inferno você passou?
Lançando mão até mesmo da última gota de força que tinha, ele conseguiu abrir os olhos. Um erro enorme. O horror que ele viu nos olhos de Dylan era inegável. Ela estava olhando o lado esquerdo de seu corpo... O peito e o torso, que tinham sido destruídos por uma granada que quase esfolou seus ossos com as chamas da explosão que por pouco não lhe tirara a vida.
– Ela... – suave voz de Dylan foi se tornando cada vez mais fraca. – Sua esposa tem algo a ver com o que aconteceu com você?
Rio sentiu seu coração parar de bater. O sangue que antes pulsava fortemente em seus ouvidos se transformou em gelo quando ele conseguiu se concentrar na pergunta de Dylan. A preocupação estampava seu rosto.
– Ela fez isso com você, Rio?
Ele seguiu a mão estendida de Dylan enquanto ela alcançava o objeto que tinha deixado no criado-mudo. Era uma fotografia em um porta-retratos. Rio não precisava ver a foto no vidro para saber que era de Eva, de um passeio que eles tinham feito no Charles River certa noite. Eva, sorrindo. Eva, dizendo o quanto o amava. Enquanto, em suas costas, ela conspirava com os inimigos da Ordem para conquistar seus objetivos egoístas.
Rio grunhiu quando pensou em sua própria burrice. Em sua própria cegueira.
– Isso não é da sua conta – murmurou, ainda à deriva da escuridão que tomava conta de sua mente. – Você não sabe nada a respeito dela.
– Foi ela quem me levou até você. Eu a vi na montanha em Jicín.
Uma suspeita irracional transformou a ira de Rio em um sentimento letal.
– Do que você está falando? Como assim, você a viu?
Dylan engoliu em seco e encolheu levemente o ombro. Em seguida, segurou a fotografia diante dele.
– Eu a vi... O espírito dela estava lá. Ela estava na montanha com você.
– Você só pode estar mentindo – ele grunhiu. – E não me fale dessa mulher. Ela está morta, e merecidamente.
– Ela pediu que eu o ajudasse, Rio. Ela me procurou. Queria que eu salvasse você...
– Já disse para você parar de falar dela! – ele esbravejou.
A raiva fez com que o corpo de Rio estremecesse no colchão como uma víbora sendo atacada. Ele puxou o retrato das mãos de Dylan e o atirou pelo quarto com uma velocidade impressionante. O objeto bateu contra o enorme espelho na parede de frente com a cama, quebrando-o com o impacto e lançando cacos de vidro polido como uma chuva de lâminas.
Rio ouviu o grito de Dylan, mas foi somente quando ele sentiu o cheiro adocicado do sangue dela que se deu conta do que tinha feito.
Ela levou a mão até a maçã do rosto e, quando seus dedos se afastaram, estavam manchados de vermelho por conta de um pequeno ferimento logo abaixo do olho esquerdo.
Foi a visão daquela ferida que tirou Rio daquele espiral de depressão. Como um balde de água fria jogada sobre sua cabeça, ver Dylan ferida o puxou instantaneamente de volta para a realidade.
– Ah, Jesus Cristo! – disse ele com dentes apertados. – Eu sinto muito... Sinto muito!
Ele se moveu para tocá-la, para verificar o quanto a tinha ferido, mas ela se afastou com os olhos completamente aterrorizados.
– Dylan... eu não queria...
– Fique longe de mim!
Ele estendeu a mão, buscando demonstrar que realmente não queria feri-la.
– Não – ela estremeceu enquanto sacudia violentamente a cabeça. – Ah, meu Deus. Não me toque!
Madre de Dios.
Ela agora o olhava com um terror absoluto. E tremia. Seus olhos estavam fixos nele, banhados de medo e confusão.
Quando Rio passou a língua pelas pontas de suas presas salientes, ele entendeu a fonte do terror que Dylan sentia. Ele se levantou diante dela. Ela temia porque ele lhe tinha dito ser um vampiro, embora aquela mente humana tivesse se recusado a acreditar.
Agora, todavia, ela acreditava.
Dylan estava vendo a verdade com seus próprios olhos, as mudanças físicas no corpo de um louco cheio de cicatrizes que agora se transformava em uma criatura saída diretamente de seus piores pesadelos. Era impossível esconder as presas que se tornavam mais longas conforme a fome por ela se intensificava. Era impossível mascarar o afinamento daquelas pupilas conforme o brilho âmbar da sede de sangue embaçava sua visão.
Ele olhou para o pequeno corte, para o fio de sangue que escorria tão vermelho contra a pele macia da bochecha de Dylan. E ele mal conseguia formular um pensamento coerente.
– Eu tentei contar para você, Dylan. Isso é o que eu sou.
Capítulo 16
– Vampiro.
Dylan ouviu a palavra escapar por seus lábios, apesar do fato de mal poder acreditar no que estava vendo – ou dizendo.
Em questão de instantes, Rio tinha se transformado diante dos olhos de Dylan e ela olhava chocada as mudanças que acabara de presenciar. As íris dos olhos dele brilhavam como brasas e não tinham mais a cor topázio habitual. Em vez disso, estavam estampadas com uma inacreditável sombra âmbar que praticamente engolia as pupilas extremamente reduzidas. Os ossos da face de Rio pareciam mais duros agora, ostentando as esguias maçãs do rosto e uma mandíbula quadrada que parecia ter sido esculpida em pedra.
E, atrás do suculento e exuberante corte formado por sua boca, Rio exibia um par de presas que pareciam ter saído diretamente de algum filme de Hollywood.
– Você... – A voz de Dylan desapareceu conforme aqueles hipnóticos olhos cor de âmbar a encararam. Ela se sentou delicadamente na beirada da cama. – Meu Deus... Você realmente é um...
– Eu sou da Raça – ele pronunciou calma e articuladamente. – Exatamente como lhe disse.
Dylan estava sentada diante de Rio, e agora sua visão era preenchida completamente pela ampla musculatura do peito nu do vampiro. O intrincado desenho na pele dos antebraços subia pelos ombros de Rio e descia ao longo de seu peitoral. Todas as marcas – dermoglifos, como ele havia chamado da primeira vez em que ela as percebera – eram de uma cor vívida agora, a cor mais escura que Dylan já as tinha visto ostentar. Tramas profundas de cor púrpura e negra saturavam os belos desenhos e as linhas em forma de arcos.
– Não consigo impedir a transformação – ele murmurou, como se tivesse necessidade de dar uma justificativa a Dylan. – A transformação é espontânea nos machos da Raça quando sentimos o cheiro de sangue fresco.
O olhar dele desviou-se ligeiramente dos olhos de Dylan, e logo repousou na bochecha ferida pelos estilhaços do espelho quebrado. A mulher sentia que ainda havia sangue quente deslizando como uma lágrima por seu queixo. Rio assistia àquela gota deslizar com uma intensidade que fazia Dylan estremecer. Ele passou a língua pelos lábios sensuais e engoliu seco, mas manteve seus dentes cerrados o tempo todo.
– Fique aqui – ele ordenou com uma voz forte e autoritária enquanto franzia a testa com intensidade.
O instinto de Dylan lhe dizia que ela devia ser mais inteligente e correr, mas ela se recusava a sentir – ou, melhor dizendo, a demonstrar sentir – medo daquele homem enorme que estava sem camisa em sua frente. Por mais estranho que parecesse, Dylan sentia que tinha realmente conhecido aquele homem nos últimos dias, durante os quais eles foram obrigados a conviver. Rio não era nenhum santo, aquilo era um fato. Ele a tinha raptado, aprisionado e ela ainda não estava certa sobre o que ele queria fazer com ela – Santo Deus! No entanto, ela não acreditava que ele fosse perigoso – não para ela.
O que Dylan acabara de testemunhar ali não era exatamente algo a ser celebrado, mas, em seu coração, ela não sentia medo do que ele era.
Bem, não completamente.
Dylan ouviu quando Rio desligou o registro do chuveiro e saiu, poucos segundos depois, segurando uma toalha branca e umedecida que ele ofereceu para ela.
– Pressione isso contra a ferida. Vai estancar o sangramento.
Dylan tomou a toalha em suas mãos e a pressionou no rosto, exatamente como ele lhe dissera. Ela, porém, não pôde deixar de perceber a longa expiração que ele soltou quando a ferida em sua bochecha fora finalmente coberta, como se agora estivesse aliviado por não precisar mais passar pelo inferno de ter de olhar para aquilo e resistir. A cor ardente dos olhos de Rio começou a escurecer lentamente e as pupilas estreitas reassumiram a forma arredondada. Os dermoglifos, no entanto, ainda estavam avermelhados; as presas, ainda mortalmente afiadas.
– Você realmente é um... não é? – ela murmurou. – Você é um vampiro. Jesus Cristo! Não consigo acreditar que isso seja verdade. Quer dizer, como isso pode ser verdade, Rio?
Ele se sentou ao lado dela na cama. Menos de um metro de distância os separava agora.
– Eu já expliquei isso para você.
– Extraterrestres bebedores de sangue e mulheres humanas com DNA compatível com os deles – disse ela, recordando-se da estranha história sobre a raça híbrida de vampiros que ela tentara encarar como ficção científica. – Tudo isso é verdade?
– A verdade é um pouco mais complicada do que isso, mas sim... Tudo o que eu lhe disse é verdade.
Incrível.
Totalmente incrível.
Uma parte mercenária dela quase gritou de excitação ao pensar na potencial fama e fortuna que a revelação daquela história poderia lhe trazer. Mas havia outra parte de Dylan – a que não tinha se esquecido daquela incomum marca de nascença que ela trazia gravada na parte de trás do pescoço, a parte que ainda se lembrava de que ela tinha, aparentemente, uma forte conexão com aquele mundo – que mostrou instantaneamente seus instintos protetores, como se Rio e o mundo em que ele vivia fossem um delicioso segredo que pertencia exclusivamente a ela.
– Desculpe-me se eu chateei você – ela disse serenamente. – Eu não devia ter bisbilhotado as coisas enquanto você não estava aqui.
A cabeça dele se virou bruscamente e sua testa enrugou-se, levando as sobrancelhas a se unirem. O xingamento que ele murmurou foi forte e palpável.
– Você não precisa me pedir desculpas, Dylan. Fui eu quem errou. Eu nunca deveria ter entrado aqui no estado em que estava. Eu não posso ficar perto de ninguém quando estou daquele jeito.
– Você parece estar um pouco melhor agora.
Ele assentiu, sua cabeça caindo levemente em direção ao peito nu.
– A raiva diminui... no final. Se você não apagar antes, ela em algum momento... passa.
Não fazia muito tempo que Rio aparecera cambaleando no quarto, bastante desatento, com seus pés mal respondendo aos passos dificultosos que ele tentava dar. Ele mal conseguia pensar, seus músculos e ossos estavam embebidos em uma fúria insana.
– O que desperta isso, Rio?
Ele deu de ombros.
– Pequenas coisas, nada em especial. Nunca sei, exatamente.
– Aquele tipo de raiva faz parte do que você é? Todos os homens da Raça têm de passar por esse tipo de tormento?
– Não – disse, soltando o tipo de sorriso de alguém que está zombando de si. – Não. Esse problema é apenas meu. Falta um parafuso na minha cabeça. Eu o perdi no verão passado e nunca mais o encontrei.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan gentilmente. – Foi isso que aconteceu com você?
– Foi um erro – ele respondeu com uma ponta de insegurança na voz. – Eu confiei em alguém em quem não deveria ter confiado.
Dylan olhou para o dano terrível que o corpo de Rio tinha sofrido. O rosto e o pescoço dele carregavam graves cicatrizes, mas seu ombro esquerdo e metade de seu torso musculoso pareciam ter ido e voltado do inferno. Seu coração apertou-se em seu peito quando ela pensou na dor que ele deveria ter suportado, tanto no acontecimento que ferira seu corpo daquela forma, quanto no que provavelmente foram meses e meses de recuperação.
Ele estava ali, sentado naquela cama tão rigidamente, tão solitário e tão inalcançável, apesar de estar a menos de um braço de distância dela. Para Dylan, Rio parecia sozinho. Sozinho e à deriva.
– Sinto muito, Rio – disse ela. E antes que pudesse se interromper, Dylan colocou sua mão sobre a mão dele, que ele agora descansava sobre a coxa. ele estremeceu como se carvão em brasa tivesse sido colocado sobre sua pele. Todavia, não se afastou.
Ele olhou fixamente para os dedos de Dylan que descansavam suavemente sobre os dele, branco pálido sobre um tom bronzeado. Quando olhou para ela, lançou-lhe um olhar rústico e másculo que preenchia seus olhos completamente. Ela se perguntava quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele fora tocado com algum tipo de ternura.
Dylan deslizou seus dedos sobre a mão máscula de Rio, estudando o incrível tamanho e a enorme força que ela tinha. A pele dele era tão quente e havia tanta força concentrada em seu corpo, mesmo quando ele parecia determinado a manter-se perfeitamente parado.
– Sinto muito por tudo o que você enfrentou, Rio. Sinto de verdade.
A mandíbula dele estava tão apertada que fez um músculo de seu rosto se contrair. Dylan colocou de lado a toalha umedecida que ele tinha lhe trazido e mal percebia que todos os seus sentidos estavam concentrados nele e na eletricidade que parecia emanar de suas mãos entrelaçadas.
Ela ouviu um ruído baixo se formar dentro de Rio, algo entre um grunhido e um gemido. O olhar dele deslizou para a boca de Dylan, e, por um segundo – um rápido, um breve segundo que teria durado o tempo de uma batida do coração – ela se perguntou se ele iria beijá-la.
Dylan sabia que devia retroceder. Sabia que devia tirar sua mão de cima da mão dele, colocá-la longe. Sabia que devia fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não fosse ficar ali, parada, quase sem respiração enquanto esperava e desejava – desejava desesperadamente, incontrolavelmente – que ele se debruçasse sobre ela e apertasse seus lábios contra os dele.
E, de repente, ela não conseguia mais não tocá-lo. Foi quando estendeu a mão que estava livre e acariciou o rosto de Rio, sentindo um repentino sopro de ar gelado empurrá-la – com a imponência da Grande Muralha da China.
– Não quero sua compaixão – grunhiu Rio com uma voz que ela não reconheceu como sendo dele. O sotaque espanhol estava ali, como sempre, mas as sílabas eram ásperas e o timbre não era exatamente humano, o que imediatamente fez Dylan se lembrar de qual era a natureza daquele ser diante dela. Rio puxou a mão de debaixo da dela e se levantou da cama.
– O corte está sangrando. Você precisa de cuidados que não posso lhe oferecer.
– Tenho certeza de que não é nada grave – respondeu Dylan, sentindo-se uma idiota por se colocar em uma situação como aquela com ele. Depois, pegou novamente a toalha que descartara momentos antes e a pressionou outra vez contra o ferimento. – Não é nada. Vou ficar bem.
Não havia sentido algum em Dylan falar qualquer coisa que fosse, já que Rio não a ouviria, de qualquer forma. Ela o viu caminhar até a sala da frente, passando pelo espelho quebrado, e pegar um telefone sem fio, no qual imediatamente teclou uma sequência curta de números.
– Dante? Olá. Não, nenhum problema. Mas eu, é... Tess está por aí? Preciso que ela me faça um favor.
Rio parecia um animal enjaulado, andando de um lado para o outro durante os poucos minutos que se passaram até a ajuda chegar. Ele ficou do lado de fora do quarto, confinado a um espaço minúsculo perto da entrada principal. Ficou tão distante de Dylan quanto poderia ficar sem de fato ter de sair daquele maldito quarto e esperar do lado de fora.
Madre de Dios.
Ele quase lhe beijara.
E ele queria tê-la beijado. E admitir aquilo – mesmo que apenas para si – era como levar um soco no estômago. Beijar Dylan Alexander era uma maneira garantida de transformar uma situação que já era bastante ruim em algo que seria, de fato, catastrófico. Isso porque Rio sabia sem qualquer sombra de dúvida que, se beijasse aquela bela e ardente mulher, ele não conseguiria se conter, não conseguiria, de forma alguma, parar no beijo. Não, mesmo.
O simples pensamento da sensação que seria a de pressionar seus lábios contra os dela já fazia o sangue de Rio ferver e correr acelerado em suas veias. Seus dermoglifos pulsavam com as cores de seu desejo – agitando-se em tons de vermelho-escuro e negros. E também era impossível negar a outra evidência daquele desejo: seu pênis estava tão duro quanto granito, e estava daquele jeito desde o instante em que Dylan, inesperadamente, inadvertidamente, pousara a mão sobre sua coxa.
Jesus Cristo!
Ele sequer se atrevia a olhar para dentro do quarto, com medo de não ser capaz de impedir seus pés de marcharem de volta pelas portas fechadas e levarem-no diretamente para os braços de Dylan.
“Como ela provavelmente desejava” – ele pensou ardentemente.
Aquela carícia que Dylan fizera em sua mão tinha sido um gesto delicado, doce, do tipo que uma mãe faz em uma criança. Ou, pior do que isso, aquele gesto poderia ter sido um gesto de compaixão de um anjo caridoso que consola uma das criaturas mais infelizes criadas por Deus.
Maldecido.
Manos del diablo.
Monstruo.
Sim, Rio era todas essas coisas. E agora Dylan tinha visto como ele era realmente feio. Para seu crédito, ela não tinha recuado ao ver toda aquela carne retorcida e aquelas presas – o que queria dizer então que ela era muito mais forte do que aquilo tudo. Mas acreditar que ela poderia receber, poderia desejar seu toque? Que ela poderia aproximar-se o suficiente de seu rosto arruinado e permitir que ele a beijasse?
Jamais! E ele agradeceu a Deus por aquilo, pois aquilo lhe tinha poupado de ver a repugnância dela. Aquilo lhe tinha poupado de fazer algo realmente idiota, como se esquecer – ainda que por um segundo apenas – de que ela estava ali, no complexo – ali, em seu quarto – somente até que ele corrigisse o erro que cometera ao permitir que ela se aproximasse daquela maldita caverna em Jicín. Quanto mais rápido ele conseguisse fazer aquilo – consertar aquele erro – e mandar Dylan para casa, melhor.
Um golpe seco ecoou contra a porta.
Rio atendeu, com um grunhido de frustração.
– Você soava péssimo ao telefone, então decidi vir com Tess e ver com meus próprios olhos. – A boca de Dante curvou-se em um sorriso arrogante que só ele sabia dar enquanto seu corpo enorme permanecia parado na soleira da porta ao lado de sua bela Companheira de Raça. – E então, você não vai nos deixar entrar, cara?
– Claro.
Rio deu um passo para o lado, abrindo espaço para o casal entrar.
A companheira de Dante parecia ainda mais bela sob a luz daquele quarto. As longas ondas cor de mel de seus cabelos estavam presas em um rabo de cavalo frouxo e seus inquiridores olhos verde-mar eram suaves, mesmo quando encaravam Rio.
– É bom vê-lo novamente, Rio – disse ela, e, sem hesitação, deu um passo adiante e ficou na ponta dos dedos dos pés para dar um abraço rápido no guerreiro e beijar-lhe levemente a bochecha. – Dante e eu ficamos tão preocupados com você durante esses meses todos...
– Não precisava – respondeu Rio, embora não pudesse negar que aquela preocupação o deixava, de certa forma, feliz.
Tess e Dante estavam juntos desde o final do último outono. Ela tinha entrado para a Ordem com um extraordinário dom de curar e restaurar a vida com o simples toque de suas mãos macias. O toque de Tess tinha um poder inimaginável, mas nem mesmo ela fora capaz de consertar todos os danos que Rio tinha sofrido. Ele já estava muito longe quando ela chegou ao complexo, e as cicatrizes dele – tanto as interiores quanto as exteriores – eram permanentes, embora não fosse por falta de tentativas de Tess.
Dante passou o braço musculoso em volta de sua Companheira de Raça em um movimento que era protetor e respeitoso ao mesmo tempo. E foi então que Rio notou a leve protuberância no ventre dela. Tess percebeu o olhar de Rio e abriu um sorriso tão imaculado quanto o da própria Madonna de Botticelli.
– Estou nos primeiros três meses – ela disse, virando-se toda sorridente para Dante. – Alguém está usando isso como desculpa para me mimar.
Dante sorriu.
– Eu? Por favor...
– Felicidades – murmurou Rio, sinceramente sentindo os votos que desejava.
Não era comum guerreiros e Companheiras de Raça começarem uma família dentro da Ordem. Aliás, praticamente não se ouvia falar daquilo. Os homens da Raça que dedicavam suas vidas à luta contra os Renegados não eram tipos muito familiares, por assim dizer. Mas acontece que Dante nunca fora como esses guerreiros, então...
– Onde está Dylan? – perguntou Tess.
Rio gesticulou, apontando para as portas que estavam fechadas.
– Eu fui um idiota com ela. Tive uma crise e... Droga! Acabei quebrando o espelho. Um dos estilhaços acabou atingindo o rosto dela.
– Você ainda está tendo apagões? – perguntou novamente Tess, franzindo a testa. – As dores de cabeça ainda não passaram?
Rio recuou, obviamente não querendo falar sobre seus próprios problemas.
– Eu estou bem. – Foi tudo o que ele disse. – Apenas cuide dela, certo?
– Eu cuidarei. – Tess pegou uma pequena maleta médica das mãos de Dante, sob o olhar interrogativo de Rio, e completou:
– Desde que eu engravidei, minhas habilidades diminuíram. Eu entendo que, na gravidez, é normal a energia da Companheira de Raça se voltar para dentro do próprio corpo. As coisas vão voltar ao normal quando o bebê nascer. Até lá, terei de me apoiar na boa e velha medicina tradicional.
Rio lançou um olhar sobre seus ombros para dentro do quarto. Ele não conseguia ver Dylan, mas imaginou que ela estava lá dentro, precisando ver alguém gentil e carinhoso. Alguém que pudesse melhorar seu humor e conversar com ela como uma pessoa normal; alguém que pudesse tranquilizá-la, dizer-lhe que ela estava segura, que estava entre pessoas em quem ela podia confiar. Especialmente depois da espetacular demonstração de raiva psicótica e desregrada que ele, Rio, tinha feito para ela.
– Está tudo bem – disse Tess. – Não se preocupe, vou cuidar dela.
Com o punho fechado, Dante golpeou levemente o bíceps bem definido de Rio.
– Venha – disse –, vamos dar o fora daqui. Ainda falta uma hora para o amanhecer. E parece que você está precisando tomar um pouco de ar fresco, cara.
Capítulo 17
Dylan estava agachada perto do pé da cama, recolhendo cacos de vidro, quando as portas se abriram suavemente, abrindo caminho para o dormitório.
– Dylan?
Aquela era uma voz feminina. A mesma que, havia um minuto, ela tinha ouvido conversar baixinho com Rio e outro homem. Dylan olhou para cima e sentiu o calor instantâneo de um olhar brilhante que estava logo acima dela.
A mulher, jovem e bela, sorriu.
– Olá. Meu nome é Tess.
– Olá.
Dylan deixou um caco de vidro de lado e inclinou o corpo para recolher outro.
– Rio me pediu para vir ver se você estava bem.
Tess trazia consigo uma bolsa de couro preta quando entrou nos aposentos.
– Você está bem? – insistiu.
Dylan assentiu.
– É só um arranhão.
– Rio está se sentindo péssimo por causa disso. Ele anda passando por... problemas. Já faz algum tempo. Desde a explosão do armazém no verão passado. Ele tem sorte de estar vivo.
Meu Deus! Então isso explicava as queimaduras e as cicatrizes. Uma explosão havia feito aquilo? Quer dizer então que Rio realmente tinha feito uma viagem de ida e volta para o inferno, como Dylan havia suposto.
Tess continuou:
– Por causa do trauma cerebral causado pela explosão, ele tem blecautes de tempos em tempos. Além disso, Rio também tem fortes dores de cabeça, mudanças de humor... Bem, acredito que você deve ter visto com seus próprios olhos. Não é coisa para brincadeira. Mas ele não quis feri-la, disso eu tenho certeza.
– Estou bem – insistiu Dylan, sem se preocupar com o arranhão em sua bochecha. – Tentei dizer para ele que isto aqui não era nada. O corte nem está sangrando mais.
– É um alívio – disse Tess enquanto colocava a bolsa médica sob a escrivaninha. – Fico contente de saber que não é tão grave quanto Rio temia. Da forma como ele descreveu pelo telefone, pensei que teríamos que dar pelo menos meia dúzia de pontos. Mas pelo que vejo, um pouco de antisséptico e um curativo serão suficientes – Tess caminhou por onde Dylan recolhia os pedaços do espelho despedaçado. – Venha, deixe-me ajudá-la.
Quando Tess se aproximou, Dylan se deu conta de que a palma da mão de Tess estava apoiada sobre a curva na barriga. Ela estava grávida. E não foi apenas pela aparência física que Dylan percebeu, mas pelo fato de aquela mulher resplandecer com um brilho interior que não deixava dúvida alguma.
Além disso – e, talvez ainda mais estranho –, na mão que repousava sobre as primeiras fases de um bebê em desenvolvimento, havia uma pequena marca de nascença. Dylan não pôde deixar de olhar fixamente para a lágrima escarlate e a meia-lua na mão direita daquela mulher – a mesma marca com a qual ela tinha nascido, aquela que trazia no pescoço.
– Você vive aqui? – perguntou Dylan. – Com... eles?
Tess assentiu.
– Vivo com Dante. Ele é um guerreiro da Ordem, como Rio e os outros que vivem aqui no complexo.
Dylan acenou na direção da pequena marca de nascimento entre o polegar e o indicador de Tess:
– Você é a... Companheira de Raça dele? – perguntou, recordando o termo que Rio tinha usado depois de perceber que Dylan tinha uma marca idêntica àquela. – Você se casou com um deles?
– Dante e eu procriamos no ano passado – explicou Tess. – Fomos unidos por nosso sangue, o que nos liga de uma forma muito mais profunda do que o casamento. Imagino que Rio já tenha lhe dito algumas coisas sobre a Raça... Como eles vivem, de onde vêm. Depois do que aconteceu, estou segura de que você não tem dúvidas do que eles são.
Dylan assentiu, ainda sem acreditar que tudo aquilo poderia ser realmente verdade.
– Vampiros.
Tess sorriu gentilmente.
– Isso foi o que eu pensei a princípio. Porém, defini-los não é algo tão simples assim. A Raça é um pouco complicada. Eles vivem em um mundo complexo e cheio de inimigos. As coisas podem ser muito perigosas para eles e para quem os ama. Para os poucos homens que se comprometeram com a Ordem, cada noite é um risco para suas vidas.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan com um tom que deixava transparecer seu espanto. – A explosão que feriu Rio... foi algum acidente terrível?
Uma expressão de dor tomou conta do rosto de Tess. Ela estudou Dylan por um momento, como se não estivesse segura do quanto poderia contar. No entanto, ela logo sacudiu ligeiramente a cabeça.
– Não. Não foi um acidente. Alguém próximo de Rio o traiu. A explosão aconteceu durante uma investida em um velho armazém da cidade. Rio e os demais membros da Ordem se viram em uma emboscada.
Dylan olhou para baixo e se deu conta de que estava observando o porta-retratos que Rio tinha jogado pelo quarto durante seu ataque de raiva. Cuidadosamente o recolheu. Tirou a teia de aranha de cima do vidro quebrado sobre a imagem e observou os exóticos olhos escuros e o sorriso triste e distante.
– Eva – confirmou Tess. – Ela era a Companheira de Raça de Rio.
– Mas ela o traiu?
– Sim – Tess respondeu depois de uma longa pausa. – Eva fez um acordo com um dos inimigos da Ordem, com um poderoso vampiro que também era o irmão do líder da Ordem, Lucan. Para que este vampiro obtivesse informação que o ajudasse a matar Lucan, algo que Eva queria tanto quanto o inimigo, ela pediu duas coisas: que Rio sobrevivesse e que fosse ferido o suficiente para nunca mais conseguir lutar.
– Meu Deus! – ofegou Dylan. – E ela conseguiu o que queria?
– Não exatamente. A Ordem caiu em uma emboscada, apoiada nas informações que Eva entregou, mas o vampiro com o qual ela negociou não tinha a menor intenção de manter sua parte do acordo. Ele colocou uma bomba no local. A explosão poderia ter matado a todos, mas, ironicamente, Rio foi o mais atingido. E posteriormente ele veio a descobrir que Eva tinha sido a responsável por tudo aquilo.
Dylan não conseguia falar. Ela tentava absorver o peso que tudo aquilo deveria ter para Rio. Não apenas a dor física causada por aquelas lesões, mas também a dor emocional da traição sofrida por ele.
– Eu a vi. – Dylan olhou para Tess e viu a testa da mulher franzir. A confusão se tornava evidente naquele olhar carregado de interrogações. Dylan conhecia Tess há poucos minutos e não estava acostumada a falar sobre si com ninguém, em especial falar de seu segredo, de seu dom, daquilo que a tornava tão diferente dos outros humanos. No entanto, havia algo nos olhos cheios de cuidado de Tess que levava Dylan a confiar que estava segura. Ela tinha sentido uma afinidade instantânea que a fez saber que estava com uma amiga.
– Os mortos aparecem para mim de vez em quando. Bem, mulheres mortas, melhor dizendo. Eva apareceu para mim alguns dias atrás, quando eu estava viajando com algumas pessoas pelos arredores de Praga.
– Ela... apareceu para você...? – perguntou Tess com cautela. – O que você quer dizer com isso?
– Eu vi o espírito dela, por assim se dizer. Ela me guiou até uma caverna oculta. Eu não sabia, mas Rio estava lá dentro. Ela... Eva me levou até lá e me pediu que o salvasse.
– Meu Deus! – Tess acenou lentamente com a cabeça. – Ele sabe?
Dylan olhou significativamente para a destruição ainda sob seus pés.
– Sim, Rio sabe. Quando eu contei para ele, ele ficou louco.
O olhar de Tess transformou-se quase em um pedido de desculpa.
– Ele tem muita raiva de tudo que seja relacionado à Eva.
– É compreensível – respondeu Dylan. – Ele está bem, Tess? Quer dizer, considerando o que viveu, Rio vai ficar... bem?
– É o que eu espero. É o que todos nós esperamos. – Tess inclinou a cabeça ligeiramente, estudando Dylan. – Você não tem medo dele?
Não, Dylan não o temia. Tinha curiosidade de saber mais sobre Rio, e incerteza com relação às intenções dele quanto a ela. Mas não tinha medo. Embora isso parecesse loucura, mesmo depois de vê-lo tendo aquela reação naquele mesmo cômodo, Dylan não o temia. Aliás, pensar em Rio provocava muitas coisas nela, mas nenhuma delas era medo. Não mesmo.
– Você acha que eu deveria temê-lo? – perguntou.
– Não, claro que não – disse Tess sem vacilar. – Quer dizer, as coisas não devem estar sendo fáceis para você. Deus sabe que não aceitei muito bem no início, quando ouvi pela primeira vez toda essa coisa de sangue, presas e guerra.
Dylan encolheu o ombro.
– Eu escrevo para uma publicação que é quase um tabloide. Acredite, já escutei muitas coisas bizarras. Não me assusto com facilidade.
Tess sorriu, mas não manteve o olhar cruzado com o de Dylan por muito tempo. As palavras que ela não disse estavam claras naqueles olhos que a evitavam: aquilo não era apenas uma história bizarra de um tabloide. Aquilo era a realidade.
– O que havia naquela caverna, Tess? Parecia ser algum tipo de cripta, uma “câmara de hibernação”, como escutei Rio chamá-la. Mas que diabos era aquilo? Há algo perdido naquela montanha?
Tess levantou o olhar, mas só negou levemente com a cabeça.
– Na verdade, eu não acho que você queira saber.
– Sim, eu quero – insistiu Dylan. – Independentemente do que for, é importante o suficiente para que Rio sentisse a necessidade de me sequestrar e me trancafiar para que não dissesse nada do que vi.
O silêncio de Tess fez o estômago de Dylan formar um nó de medo. A Companheira de Raça sabia o que havia na caverna, e aquilo parecia aterrorizá-la. O que, é claro, apenas aumentou a curiosidade de Dylan.
– Tess, havia algo dormindo naquela tumba oculta. E, pelo aspecto, eu diria que esse algo estava escondido ali há muito tempo. Que tipo de criatura era ou é aquilo?
Tess se levantou e jogou alguns cacos de vidro no cesto de papéis ao lado da mesa.
– Deixe-me ver seu corte. Temos de limpá-lo. Depois faremos um curativo para evitar que você fique com uma cicatriz.
Confinado dentro da cela de raios ultravioleta, o Antigo jogou a cabeça para trás e soltou um rugido infernal. Sangue gotejava por suas enormes presas e seu peito, enorme e nu, ostentava a cor pulsante de seus dermoglifos.
– Apertem essas malditas correntes – gritou o cuidador, falando com seus subordinados por meio de um alto-falante na sala de observação fora da cela. – E, por Deus, arrumem toda essa bagunça aí dentro.
As algemas cibernéticas serpentearam e seguraram fortemente as pernas e os braços grossos do Antigo. Com um comando programado, ajustaram-se. A criatura tentou se libertar, mas não chegaria a lugar algum. Feriu-se futilmente: cortou seus próprios lábios e berrou de novo. O urro era pura fúria enquanto o imenso corpo era dominado por titânio e aço.
Ele ainda estava com o pênis ereto por conta do cruzamento que tinha dado tão violentamente errado. Ainda estava sedento pelo sangue e pelo corpo sem vida da mulher que naquele momento era apressadamente retirada da jaula.
A Companheira de Raça tinha sido atacada. Unhas e presas fortes tinham marcado irreversivelmente – mortalmente – seu corpo. E, antes que o Antigo pudesse ser afastado, ela já estava morta. Ela não era a primeira; tampouco seria a última (não estava perto de sê-lo, aliás). Ao longo das cinco décadas em que o Antigo tinha sido despertado de sua hibernação e posto sob o controle de seu guardião, alimentá-lo – e fazê-lo procriar – tinha se mostrado uma tarefa custosa e frustrante.
Apesar de toda aquela tecnologia e de todo aquele dinheiro disponível, não havia ciência alguma que pudesse substituir o tipo de acasalamento que havia ocorrido na cela do prisioneiro alguns momentos atrás. Carne com carne, esse era o único meio de concepção para o Antigo. E também para os demais membros da Raça. Mas o sexo era apenas uma parte do processo. Era necessária a ejaculação, com um intercâmbio de sangue no exato momento, para que a vida de um vampiro se desenvolvesse no corpo de uma Companheira de Raça.
Normalmente, os casais que desejavam conceber se deleitavam em um ato deliberado e sensual de criar uma vida. Neste caso, não. Aqui embaixo, com a selvagem criatura alienígena levada à loucura por conta da fome, da dor e do confinamento, a concepção era um jogo de vida e morte. Baixas, como a de hoje, eram parte da equação. Mortes deviam ser esperadas.
Mas êxitos haviam sido alcançados. E isso fazia os riscos valerem a pena. Para cada Companheira de Raça morta no processo, duas outras tinham saído vivas... E com as sementes de uma nova geração plantada em seus úteros.
O cuidador do Antigo sorriu secretamente, apesar da perda do dia.
Aquela nova geração poderosa já estava florescendo, a maioria em segredo.
E a obediência daqueles novos seres pertencia inteiramente a ele.
CONTINUA
Capítulo 14
Era muito estranho estar outra vez no complexo, mas, para Rio, o mais surreal era entrar novamente em seus aposentos dentro da sede subterrânea da Ordem, localizada no subúrbio de Boston.
Dante e Chase tinham ido para o laboratório de alta tecnologia logo que chegaram, deixando Rio a sós com Dylan. O guerreiro espanhol imaginou que os outros companheiros queriam lhe dar a oportunidade de ele se reencontrar com sua antiga vida – a vida que Eva havia lhe roubado um ano atrás com aquela maldita traição.
Rio não colocava os pés no complexo havia muito tempo, mas o lugar estava exatamente como ele se lembrava. Exatamente como ele tinha deixado antes da explosão no armazém que o mandara para a enfermaria do complexo por vários meses para enfrentar uma difícil recuperação – uma recuperação que não tinha sido, de modo algum, completa.
Aqueles aposentos, que uma vez Rio dividira com Eva, eram como uma espécie de cápsula do tempo. Tudo estava congelado em seu lugar desde aquela noite infernal quando Rio e seus companheiros tinham saído para acabar com um bando de Renegados sem imaginarem que estavam indo diretamente para uma emboscada mortal – uma emboscada orquestrada pela mulher que era uma Companheira de Raça... sua companheira.
E também fora ali, naquele mesmo lugar que, depois de ter sua traição descoberta e denunciada, Eva tinha cortado a própria garganta.
Ela se suicidou sobre a cama de Rio na enfermaria, mas era ali, em seu quarto, que Rio sentia mais a sua presença: o toque de Eva estava por todas as partes, desde as obras de arte extravagantes que ele tinha, a contragosto, permitido pendurar nas paredes antes vazias, até os inúmeros espelhos espalhados por todo o quarto, perto do closet e aos pés da enorme cama.
Rio conduziu Dylan pela elegante sala de estar, atravessando as portas cobertas por cortinas que levavam à suíte do dormitório. Ele se viu refletido no espelho enquanto, com todo o cuidado, deixava a delicada mulher sobre cama de dossel coberta por lençóis cor ameixa escura. Recuou diante do rosto moreno e arruinado do desconhecido que lhe devolvia o olhar. Mesmo vestido com as roupas elegantes que Reichen havia lhe dado, ele ainda parecia um monstro e a sensação apenas aumentava quando comparada à beleza adormecida em seus braços e totalmente à sua mercê.
Ele era um monstro e não podia jogar a culpa daquilo somente em Eva. Afinal, ele tinha nascido uma besta, um assassino, e agora simplesmente também se parecia um pouco mais com aquilo. Dylan se moveu um pouco assim que ele a colocou no colchão e ajeitou um dos macios travesseiros sob sua cabeça.
– Acorde agora – ele disse, roçando a mão brandamente na testa da mulher. – Você já descansou o suficiente, Dylan. Está na hora de despertar.
Ele não precisava acariciar o rosto dela para tirá-la do transe. Ele não precisava deslizar as pontas de seus dedos másculos sobre aquela pele aveludada e decorada com pequenas e encantadoras sardas. Ele não precisava demorar seu toque ao longo da delicada linha de sua mandíbula... Rio, todavia, não conseguiu deixar de aproveitar ao máximo aquela oportunidade única de fazer tudo isso.
As pálpebras de Dylan se abriram, seus cílios castanhos se levantaram e, de repente, Rio se viu capturado pela luz verde-dourada daquele olhar. Ele imediatamente afastou a mão do rosto de Dylan, mas não pôde deixar de notar que ela tinha se dado conta da liberdade que ele tomara. Ela, todavia, não demonstrou alteração alguma, simplesmente soltou um suave sopro de ar por seus lábios entreabertos.
– Estou com medo – ela sussurrou com uma voz baixa por causa do longo sono em que ele a tinha colocado. Dylan não tinha consciência do transe ou da viagem. Para sua mente humana, ela ainda estava no Refúgio de Reichen, uma vez que sua mente tinha sido colocada em suspensão momentos antes da partida para Boston. – Estou com medo do lugar para onde você está me levando...
– Já estamos aqui – disse Rio. – Acabamos de chegar.
O pânico tomou conta do olhar de Dylan.
– Onde...
– Eu a trouxe para a sede da Ordem. Você está segura aqui.
Dylan lançou um olhar ao seu redor, tentando entender onde estava.
– É aqui que você mora? – perguntou.
– É aqui que eu costumava morar. – Rio se levantou e se afastou da cama. – Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, basta pedir.
– Que tal uma carona até minha casa em Nova York? – ela disse. Sua consciência estava obviamente voltando ao normal. – Ou talvez um GPS mostrando onde estamos agora... Pode deixar que eu me viro para encontrar o caminho para casa.
Rio cruzou os braços sobre o peito enorme e musculoso.
– Esta é sua casa agora, Dylan. Como você é uma Companheira de Raça, será tratada com todo o respeito e reverência. Terá comida, conforto e tudo mais o que precisar. Você não vai ser trancada nesse quarto, mas eu posso lhe garantir que não há para onde você correr, caso isso venha a passar por sua cabeça. O complexo é inteiramente seguro. Meus companheiros e eu não vamos machucá-la, mas se você tentar deixar esses aposentos, nós saberemos antes de você dar o primeiro passo no corredor. Se você tentar fugir, vou encontrá-la, Dylan.
Ela ficou em silêncio por um longo momento enquanto ouvia aquele enorme homem falar e media cada uma de suas palavras.
– E então, o que vocês vão fazer comigo? Me segurar e morder minha garganta?
Jesus Cristo!
Rio sentiu todo o seu sangue drenar de sua cabeça ao simples pensamento daquilo. Ele sabia que para ela aquilo deveria ser um ato de extrema violência, mas, para ele, a imagem de segurar Dylan sob seu corpo enquanto ele perfurava delicadamente a pele macia de seu pescoço com suas presas era um ato inteiramente sensual.
O desejo percorreu seu corpo em uma espiral ardente e se concentrou imediatamente no meio de suas pernas. Ele ainda podia sentir a pele sedosa de Dylan em seus dedos e agora era outra parte de seu corpo que desejava imensamente, incontrolavelmente, conhecer o toque da pele daquela mulher em sua frente. Rio se virou, irritado com a rápida reação a Dylan que seu corpo esboçava.
– Quando eu estava em Jicín, ouvi uma história sobre um homem que foi atacado por um demônio. Um velho fazendeiro que testemunhou tudo disse que o tal demônio descia da montanha para se alimentar. Para beber sangue humano.
Rio ficou ali, encarando a porta em sua frente enquanto Dylan falava. Ele sabia a qual noite ela estava se referindo, ele se lembrava dela claramente, pois aquela tinha sido a última vez que ele tinha se alimentado. Fazia mais de duas semanas que ele não se alimentava quando foi até aquela humilde fazenda perto da floresta, na base da montanha.
Ele estava faminto e aquilo o deixou descontrolado. Um homem idoso apareceu, viu o ataque, viu Rio com os dentes cravados no pescoço de outro homem. Aquele foi um deslize, uma imprudência, e aquela interrupção tinha sido a única coisa responsável por salvar a vida da caça de Rio de sua fome incontrolável. Se aquele velho homem não tivesse aparecido, certamente o outro teria morrido. Rio tinha deixado de caçar naquela noite, aterrorizado com o que tinha se tornado.
– Foi um exagero, não é mesmo? – A voz de Dylan tornou-se lentamente mais calma durante o silêncio que Rio lhe deu como resposta. – Você não fez aquilo, fez, Rio?
– Fique à vontade – ele grunhiu, enquanto saía. Antes, porém, ele pegou a bolsa em que estavam o laptop e a câmera digital de Dylan. – Há algumas coisas que preciso fazer.
Rio não esperou que Dylan protestasse ou dissesse uma palavra mais, apenas sabia que precisava sair dali. Agora. Uns poucos passos o levariam para as portas abertas e à luxuosa sala de estar que atravessara minutos antes carregando Dylan em seus braços.
– Rosario...?
Ele parou ao som da voz dela em suas costas. Franziu a sobrancelha, virou a cabeça e voltou o olhar para a mulher, que agora tinha se levantado da cama e estava apoiada em seus cotovelos.
Madre de Dios, ela estava deliciosamente atraente, um tanto quanto despenteada, um tanto quanto sonolenta. Não demorou muito para Rio imaginar que talvez fosse daquela forma que Dylan deveria parecer depois de uma noite de sexo ardente. O fato de ela estar deitada sobre aqueles lençóis de seda de cor ameixa da cama de Rio apenas deixava a imagem ainda mais erótica.
– O quê? – a voz do homem enorme era um chiado que mal passava por sua garganta masculina.
– Seu nome – ela disse, como se ele devesse saber do que ela estava falando. A mulher, então, inclinou a cabeça enquanto estudava atenciosamente o quarto. – Você me disse que Rio é apenas parte de seu nome, então eu imaginei que talvez pudesse ser um apelido para Rosario.
– Não.
– Então qual é? – Quando ele não respondeu imediatamente, suas sobrancelhas castanho-claras juntaram-se, obviamente impacientes pela resposta. – Depois de tudo o que você me contou nos últimos dias, que problema teria em me dizer seu nome?
Ele escarnecia interiormente enquanto se lembrava de todos os nomes pelos quais tinha sido chamado desde que nascera. Nenhum deles era gentil, para dizer o mínimo.
– Por que isso é tão importante?
Ela sacudiu a cabeça, erguendo levemente os ombros magros.
– Não é importante. Suponho que simplesmente tenho curiosidade de saber mais sobre você. Para saber quem você realmente é.
– Você já sabe o suficiente – ele disse. Um leve xingamento escapou por sua boca. – Confie em mim, Dylan. Você não vai querer saber nada mais sobre mim além do que já sabe.
Mas Rio estava equivocado, pensou Dylan, enquanto observava o enorme corpo daquele homem afastar-se e atravessar a porta da ampla suíte. Ele fechou a porta e deixou a mulher sozinha na suave iluminação dos aposentos.
Ela virou o corpo na enorme cama, suas pernas estavam trêmulas como se fizesse muito tempo que não as usava, como se ela tivesse ficado ao relento durante boa parte de uma noite de inverno. Se o que ele disse era verdade – que eles tinham deixado Berlim e estavam agora nos Estados Unidos – então, ela pensou, faltava-lhe pelo menos nove horas de memória consciente.
Seria aquilo realmente possível?
Será que ele realmente a havia colocado em uma espécie de transe por todo aquele tempo?
Ela tinha ficado surpresa ao sentir os dedos de Rio acariciando seu rosto quando despertou. Aquele contato parecia tão suave, tão protetor e tão quente. Mas também tinha sido muito fugaz, tinha sido interrompido tão logo ele se dera conta de que ela estava acordando, tão logo notara que ela estava percebendo o que acontecia. Será que ele também percebeu que ela estava gostando?
Não, Dylan não queria sentir o calor de Rio, tampouco queria demonstrar algum calor para ele, mas ela não conseguia negar que havia algo de eletrizante na maneira como ele a olhava. Havia algo inegavelmente sedutor na maneira como ele a tocava. Ela queria saber mais sobre aquele homem – ela precisava saber mais sobre aquele homem. Afinal de contas, como sua prisioneira, seria de seu maior interesse saber qualquer coisa que pudesse a respeito do homem que a mantinha como refém. Como jornalista em busca – ou à espera – de uma grande matéria, era obrigação dela juntar até os mais insignificantes fatos e perseguir a verdade até o fim. Entretanto, era seu interesse como mulher o que mais incomodava Dylan.
Era aquele desejo mais íntimo e pessoal de saber mais sobre o tipo de homem que Rio era que fazia com que ela vagasse de um lado para o outro naqueles aposentos chiques. A decoração era exuberante e sensual, uma explosão de cores brilhantes que iam desde a roupa de cama de seda, da cor de ameixas maduras, até o tom dourado da pintura que cobria as paredes. Uma coleção de pinturas abstratas, tão brilhantes e gritantes que chegavam a fazer os olhos de Dylan doer, cobriam uma parede inteira da suíte luxuosa. Outra parede ostentava um espelho com uma moldura exuberante e obviamente caríssima. E o objeto estava colocado estrategicamente de modo a refletir os quatro lados da cama de dossel e tudo o que, por ventura, pudesse estar acontecendo em cima daqueles lençóis. Excitante.
– Sutil... – murmurou Dylan, girando os olhos enquanto se aproximava de um par de portas duplas que havia do outro lado do quarto. Ela as abriu e ficou de boca aberta quando percebeu que se tratava do closet... Um closet que tinha mais metros quadrados do que todo o seu apartamento no Brooklin.
– Santo Deus!
Ela entrou e imediatamente se deu conta de que havia mais espelhos ali dentro – e por que você não iria querer admirar-se em todos os ângulos possíveis quando tinha metade da Chanel à sua disposição?
Dylan ficou tentada a perscrutar aquele lugar que deveria ter milhares de dólares em roupas e sapatos assinados por estilistas famosos, mas um pensamento triste logo tomou conta de sua mente: apenas um quarto do armário tinha roupas masculinas. O resto todo pertencia a uma mulher. Uma mulher pequena, delicada, cujo gosto era, obviamente, muito caro. Aqueles aposentos poderiam ser de Rio, mas certamente ele não vivia ali sozinho.
Mas que merda! Será que ele era casado?!
Dylan deu meia-volta e saiu do closet, fechando bruscamente a porta e intimamente desejando nunca ter entrado ali. Dirigiu-se para a sala, observando atentamente cada detalhe e inegavelmente percebendo que havia um toque feminino em todos os cantos para os quais olhava. Nada se parecia nem de longe com seu estilo, mas, afinal, o que Dylan sabia sobre design de interiores mesmo? Não muito. Sua melhor peça de mobília era um sofá-cama que ela comprara de segunda mão.
Dylan deixou a mão percorrer o encosto de uma nogueira esculpida como uma cadeira enquanto observava a mobília declaradamente elegante do lugar. Ela se aproximou de um sofá de veludo dourado e parou enquanto seu olhar capturava uma pequena coleção de fotografias emolduradas minuciosamente expostas na mesa que havia atrás do sofá.
A primeira coisa que viu foi uma fotografia de Rio. Ele estava sentado no banco do passageiro de um clássico Thunderbird conversível que tinha sido estacionado sob a luz da lua em alguma praia deserta. Ele vestia uma camisa de seda preta – desabotoada, obviamente – e uma calça da mesma cor; suas coxas estavam ligeiramente separadas em um “V” casual e os dedos de seus pés descalços estavam inocentemente enterrados na areia branca enquanto seu olhar topázio escuro brilhava com uma espécie de sabedoria oculta e privada, e seu sorriso nebuloso o tornava igualmente perigoso e atraente.
Jesus Cristo, ele era lindo.
Para dizer a verdade, ele era muito mais do que lindo.
A foto não parecia antiga. Não havia cicatrizes no lado esquerdo do rosto dele, de modo que a lesão que ele sofrera devia ser bastante recente. Seja lá o que tenha roubado sua aparência clássica e incrivelmente atraente, a maior tragédia parecia ser a fúria que Rio havia dentro de si. Dylan olhou para a fotografia de Rio em dias felizes, e se perguntou como ele poderia ter mudado tanto desde aquela época.
Ela então olhou para outra fotografia, essa sim, antiga. Era uma imagem profissional em tons de sépia de uma mulher com os cabelos negros vestindo um bufante vestido vitoriano de gola alta. Dylan se inclinou para poder ter uma visão melhor enquanto se perguntava se aquela beleza exótica com sorriso tímido poderia ser, de repente, a avó de Rio. Os olhos escuros da modelo encaravam direta e fixamente a lente da câmera, lançando um olhar de pura sedução. Ela era bela, a mulher da fotografia, apesar da moda recatada de sua época.
E seu rosto... seu rosto parecia extremamente familiar.
– Ah, meu Deus!
A incredulidade, assim como o absoluto deslumbramento, inundou Dylan conforme ela deslizava o olhar para outra fotografia que havia na mesa. Esta, uma imagem colorida, obviamente tirada na última década ou menos... e na qual a mesma mulher da foto antiga também era modelo. Essa última imagem, tirada durante a noite, mostrava uma mulher de pé em uma ponte de pedra no meio de um parque, rindo enquanto seus belos e longos cabelos negros balançavam em sua cabeça. Ela parecia feliz, mas Dylan viu uma tristeza em seus olhos escuros – dolorosos segredos profundamente escondidos em seu olhar castanho-escuro que estava fixo em quem quer que estivesse tirando a foto.
E Dylan reconhecia aquele rosto, ela tinha certeza de que sim... Sim, ela percebia agora, e não era apenas da série de fotografias espalhadas naquela mesa e que a jornalista acabara de ver... Não, aquele rosto era familiar. Dylan já o tinha visto, sim, ela o reconhecia agora porque já o tinha visto na montanha, em Jicín. Aquele era, definitivamente, o rosto da mulher morta. A bela – e morta – mulher que a havia conduzido à caverna onde ela encontrara Rio – Dylan se dava conta disso agora – era esposa dele.
Capítulo 15
Era quase como se ele nunca tivesse deixado aquele local.
Rio estava no laboratório de alta tecnologia do complexo, cercado por Lucan, Gideon e Tegan, que o tinham saudado e oferecido um aperto de mão – sinal da amizade e da confiança verdadeiras.
O aperto de mão de Tegan se prolongou por mais tempo. Rio sabia que o forte guerreiro com cabelos acobreados e olhos esmeraldas era capaz de ler sua culpa e suas incertezas por meio da ligação entre suas mãos. Esse era o dom de Tegan, adivinhar as verdadeiras emoções com apenas um toque.
Ele deu um aceno quase imperceptível com a cabeça.
– Coisas ruins acontecem, meu amigo. E Deus sabe que todos nós temos nossos demônios tentando nos passar a perna. Então, ninguém está aqui para julgá-lo. Entendeu?
Rio assentiu com a cabeça enquanto Tegan soltava sua mão. Ao entregar a bolsa de Dylan a Gideon, o vampiro recém-chegado observou a parte posterior do laboratório, onde Dante e Chase limpavam suas armas para usá-las durante a noite. Dante ofereceu uma pequena saudação com o queixo, mas o olhar de aço de Chase deixava claro que ele não sabia o que pensar quando o assunto era Rio. Um homem inteligente. Rio imaginou que a reação do ex-agente fosse, provavelmente, a sua própria reação caso a situação fosse inversa e fosse Chase quem estivesse voando naquele jato em busca de resgate.
– Quanto a mulher sabe a nosso respeito? – perguntou Lucan.
Com novecentos anos de idade e fazendo parte da Primeira Geração da Raça, o fundador da Ordem e líder formidável poderia controlar toda uma sala com apenas um movimento de suas sobrancelhas negras. Rio o considerava um amigo – todos os guerreiros eram tão próximos que pareciam até mesmo familiares uns dos outros – e Rio odiava com todas as suas forças a possibilidade de tê-lo decepcionado.
– Só dei a ela as informações básicas – respondeu Rio. – Não acredito que ela esteja completamente convencida.
Lucan grunhiu, assentindo pensativamente.
– Realmente, são muitas informações para ela processar. Ela entende o propósito da cripta na montanha?
– Na verdade, não. Ela me ouviu chamando aquilo de câmara de hibernação quando Gideon e eu estávamos conversando, mas não sabe nada além disso. Pode ter certeza de que não pretendo dar mais nenhuma pista a ela. O fato de ela ter visto aquilo já é ruim demais. – Rio exalou um suspiro duro. – Ela é inteligente, Lucan. Não acredito que vá levar muito tempo para juntar as peças do quebra-cabeça.
– Então será melhor agirmos logo. Quanto menos detalhes tivermos que esclarecer posteriormente, melhor – explicou Lucan. Ele lançou um olhar a Gideon, que tinha aberto o laptop de Dylan no console ao seu lado. – Quão difícil acredita que será hackear e acabar com as fotos que ela enviou por e-mail?
– Apagar os arquivos da câmera e do computador é fácil. Demora apenas alguns segundos.
– E quanto a apagar as fotos da caixa de entrada daqueles que as receberam?
Gideon franziu o rosto como se estivesse calculando a raiz quadrada da renda líquida de Bill Gates.
– Algo como dez minutos para enviar uma bomba e estourar o disco rígido de todos os computadores da lista de contatos dela. Treze minutos se você quiser algo mais sutil.
– Eu não estou nem aí com o fator sutileza. – Lucan deixou claro. – Faça o que for necessário para destruir as fotos e destruir qualquer referência escrita ao que ela encontrou na montanha.
– Pode contar comigo – respondeu Gideon, que já se encontrava fazendo sua magia em ambos os dispositivos.
– Podemos destruir os arquivos eletrônicos, mas ainda teremos de tratar com as pessoas com quem ela manteve contato sobre a caverna – esclareceu Rio. – Além do chefe dela, há três mulheres com quem ela estava viajando. E também a mãe dela.
– Vou deixar isso para você – disse Lucan. – Não me importa como você vai fazer isso. Faça-a negar a história, acabe com a credibilidade dela ou saia para encontrar as pessoas com quem ela conversou e apague a memória de cada uma delas. A decisão é sua, Rio. Simplesmente dê um jeito na situação, como sei que você vai fazer.
Rio assentiu.
– Eu lhe dou minha palavra, Lucan. Vou consertar a situação.
A expressão do vampiro da Primeira Geração era tão sombria quanto segura.
– Não duvido de você. Nunca duvidei e nunca duvidarei.
A confiança de Lucan era inesperada, e um presente que Rio não tinha intenção de desperdiçar, independentemente de quão destruído ele soubesse estar. Durante muitos anos, a Ordem e os guerreiros que a serviam eram seu principal propósito na vida – inclusive acima de seu amor por Eva, o que acabou gerando um ressentimento silencioso, porém colérico, nela. Rio estava comprometido com até o último destes homens – como se eles fossem seus parentes de sangue –, comprometido a lutar por eles e, inclusive, a morrer por eles. Ele olhou em volta, sentindo-se humilde pelos rostos sombrios e corajosos dos cinco homens da Raça que ele sabia, sem dúvida alguma, que também dariam suas vidas por ele.
Rio limpou a garganta, sentindo-se desconfortável com as boas vidas praticamente unânimes de seus irmãos. Do outro lado do laboratório, as portas de vidro se abriram quando Nikolai, Brock e Kade chegaram, vindos do corredor. Os três conversavam com empolgação, trazendo um ar de camaradagem quando entraram no laboratório.
– Oi! – disse Niko, lançando a saudação para ninguém em particular. Seus olhos azuis como o gelo pararam em Rio por um segundo antes de ele finalmente olhar para Lucan e começar a detalhar a patrulha da noite. – Acabamos com um Renegado perto do rio há mais ou menos uma hora. O filho da mãe estava escondido em um contêiner de lixo quando o encontramos.
– Você acha que é um dos cachorros de Marek? – perguntou Lucan, referindo-se ao exército de Renegados que seu próprio irmão vinha criando até a Ordem finalmente intervir. Marek tinha morrido pelas mãos da Ordem, mas os vermes de seu exército ainda precisavam ser exterminados.
Nikolai ofereceu um aceno com a cabeça.
– O desgraçado não era um soldado, mas apenas um viciado tentando satisfazer sua sede de sangue. Imagino que só tenha passado algumas poucas noites fora do Refúgio Secreto. E nós o liquidamos facilmente. – O vampiro russo olhou atrás de Rio e lançou um sorriso desajeitado para Dante e Chase. – Alguma ação no lado Sul?
– Não, nada – murmurou Chase. – Estávamos muito ocupados buscando alguém no aeroporto.
Nikolai grunhiu, compreendendo o comentário e lançando um olhar em direção a Rio.
– Faz tempo, hein cara?! É bom ver que você continua inteiro.
Rio conhecia aquele cara muito bem para pensar que o comentário era amistoso. De todos os guerreiros da Ordem, Rio esperava que fosse Nikolai o primeiro na fila para defendê-lo – mesmo se Rio fosse ou não digno de defesa. Niko era o irmão que Rio nunca tivera. Os dois tinham nascido no século anterior e entrado para a Ordem em Boston na mesma época.
Era estranho Niko estar ausente durante a chegada de Rio ao complexo. No entanto, conhecendo o vampiro e seu amor pelo combate, ele provavelmente estava irritado com o fato de sua equipe de patrulha ter sido reduzida algumas horas antes do amanhecer.
Antes que Rio pudesse dizer qualquer coisa a seu velho amigo, a atenção de Nikolai voltou a Lucan.
– O Renegado que encontramos esta noite era jovem, mas a matança que ele tinha deixado para trás parecia ser trabalho de mais de um vampiro. Eu gostaria de retornar lá amanhã e verificar as redondezas. Talvez encontremos mais alguma coisa.
Lucan assentiu:
– Parece uma boa ideia.
Depois de resolver isso, Niko dirigiu sua atenção para Kade e Brock:
– Temos tempo suficiente antes do amanhecer para caçar um pouco. Alguém aí se sentiu com sede de repente?
Os olhos de Kade brilharam como mercúrio.
– Há um lugar em North End que deve ser bem interessante. Lá há um monte de jovens no ponto certo.
– Pode contar comigo – disse Chase com palavras arrastadas, saindo de sua cadeira ao lado de Dante para unir-se aos outros três vampiros não comprometidos conforme eles começavam a caminhar na direção da saída do laboratório.
Por um instante, Rio os observou partir. Entretanto, quando viu Nikolai sair junto aos outros, xingou em voz baixa e, logo depois, correu atrás dele.
– Niko, espere.
O guerreiro seguiu seu caminho, como se não tivesse ouvido nada.
– Espere, cara. Caramba, Nikolai. Que diabos está acontecendo com você?
Quando Chase, Brock e Kade pararam para olhar atrás, Niko acenou para que eles continuassem. Os três seguiram seu caminho, virando no canto do corredor e desaparecendo de vista. Depois de uns poucos segundos, finalmente, Niko deu meia-volta.
O rosto que olhava para Rio no túnel branco era duro e incompreensível.
– Sim. Estou aqui. O que você quer?
Rio não sabia como responder àquilo. A hostilidade saiu da boca de seu velho amigo como um vento frio de inverno.
– Fiz algo que o incomodou?
O som da risada de Nikolai raspava contra as paredes de mármore.
– Vá se ferrar, cara.
Nikolai deu meia-volta e começou a se afastar novamente.
Rio o alcançou em um piscar de olhos. Estava a ponto de agarrar o ombro do guerreiro e obrigá-lo a parar, mas Niko se movimentou com mais agilidade. O vampiro russo virou-se e golpeou Rio, acertando-o no esterno, fazendo-o bater a coluna contra a sólida parede no outro lado do corredor.
– Você quer morrer, seu filho da mãe? – Niko estava com os ombros entreabertos, a cor âmbar acesa como resultado de toda aquela ira. – Se você quer se matar, é problema seu. Só não peça a minha ajuda, está bem?
Os músculos de Rio estavam retesados e prontos para uma briga. Seus instintos de combate se tornaram mais aguçados, apesar de ele estar enfrentando um aliado de longa data. No entanto, enquanto Nikolai falava, a fúria que cresceu em Rio rapidamente se reduziu. De repente, a cólera que Niko sentia contra ele fez sentido. Afinal, Nikolai sabia que Rio tinha ficado naquela montanha da Boêmia com intenções de acabar com a própria vida. Se Niko não tinha se dado conta disso cinco meses atrás, agora ele tinha certeza.
– Você mentiu para mim – esbravejou Niko. – Você me olhou diretamente nos olhos e mentiu para mim, cara. Você nunca ia voltar para a Espanha. O que pretendia fazer com o C-4 que eu dei para você? Você pretendia detonar aquela droga presa ao seu corpo, como se fosse um camicase se divertindo. Ou talvez você só estivesse planejando se prender no interior daquela maldita caverna e ficar lá, esquecido por toda a eternidade. O que você ia fazer, amigo? Como você pretendia acabar com a própria vida?
Rio não respondeu. Não era necessário. De todos os guerreiros da Ordem, Nikolai era o que melhor o conhecia. Nikolai tinha visto Rio como o covarde e fraco que ele realmente era. Só ele sabia o quão próximo Rio tinha estado de dar um fim a tudo – antes mesmo de ele chegar àquela montanha tcheca.
Tinha sido Niko quem se negara a deixar Rio mergulhar no ódio que sentia de si. E, então, evitar que entrasse naquela espiral de negatividade tinha se tornado sua missão pessoal. Niko, que ajudou Rio a subir na montanha nas semanas que se seguiram, caçando para o amigo que estava fraco demais para cuidar dele mesmo. Nikolai, o irmão que Rio nunca tivera.
– Sim – disse Niko, fechando uma carranca. – Como disse. Vá se ferrar.
Ele tirou o braço do peito de Rio e se afastou, ainda rangendo alguns xingamentos. Rio o viu se distanciar. Os sapatos de Niko pareciam mastigar o piso de mármore polido quando ele se apressou para juntar-se aos outros guerreiros que já estavam a caminho do piso superior.
– Que droga! – murmurou Rio, correndo a mão pelos cabelos.
O choque com Nikolai era só mais uma evidência de que ele não devia ter retornado a Boston – mesmo que isso significasse jogar o problema Dylan Alexander nas mãos de outra pessoa. Rio já não se encaixava ali. Agora ele era um estranho, um elo fraco em meio a uma cadeia de aço, formada pelos corajosos guerreiros da Raça.
Ainda agora ele conseguia sentir suas têmporas latejarem por conta da descarga de adrenalina que tinha ocorrido alguns minutos atrás, quando parecia que Niko queria cortá-lo em pedaços. Sua visão começou a tremer enquanto ele estava parado ali. Se não se movesse e encontrasse um local privado para aguentar a crise mental que estava por vir, Rio sabia que seria questão de minutos antes que acordasse caído sobre o mármore que revestia o chão do corredor. E, francamente, ver Lucan e aos outros saírem do laboratório para olhá-lo fixamente como se ele fosse um moribundo era algo que não queria experimentar.
Ele forçou suas pernas a se movimentarem e, com uma dificuldade acentuada, conseguiu encontrar o caminho de volta até seus aposentos. Entrou, cambaleando, e fechou a porta. Em seguida, entregou-se a uma nova sensação de náusea que o invadiu.
– Você está bem?
A voz feminina vinha de algum ponto distante naquele cômodo. A princípio, não a reconheceu. Seu cérebro estava lutando para realizar as tarefas básicas. Aquela voz brilhante e cristalina não parecia pertencer àquele lugar cheio de lembranças antigas e empoeiradas.
Rio se distanciou da porta e se arrastou pela sala, em direção ao quarto. Seu cérebro transmitia a impressão de que se despedaçaria a qualquer momento.
Água quente. Escuridão. Tranquilidade. Ele precisava dessas três coisas. Imediatamente.
Rio tirou a camisa e a deixou cair no ridículo sofá de veludo de Eva. Ele realmente tinha que queimar todos seus pertences. E era uma pena que ele não tinha como jogar aquela maldita traidora na fogueira junto com todo o resto.
Rio se agarrou à sua fúria pela traição de Eva, um leve castigo, mas aquilo era tudo o que tinha no momento. Abriu as portas do quarto e ouviu um leve suspiro vindo lá de dentro.
– Meu Deus! Rio, você está bem?
Dylan.
O nome dela atravessava como um bálsamo a névoa que envolvia a mente de Rio. Ele levantou o olhar na direção de sua convidada indesejada, que agora estava sentada no canto da cama com algo plano e retangular apoiado em seu colo. Ela deixou o objeto de lado, no criado-mudo, e se aproximou antes que os joelhos dele cedessem.
– Banho – ele conseguiu grunhir.
– Você mal consegue parar em pé – Dylan o ajudou a alcançar a cama, onde ele rapidamente deixou o corpo cair. – Parece que você precisa de um médico. Há alguém aqui que possa ajudá-lo?
– Não – ele respondeu com uma voz rouca. – Uma ducha...
Rio estava fraco demais para usar sua habilidade mental da Raça e abrir o registro da água, mas ele não precisou sequer tentar. Dylan já estava se apressando na direção do banheiro ao lado. Ouviu o forte estalar da água batendo contra o chão e, em seguida, os suaves passos de Dylan no carpete enquanto ela retornava para onde estava caído, com o corpo virado na direção dos pés da cama.
Rio percebeu vagamente a desaceleração dos passos da mulher conforme ela se aproximava. Apenas escutou a respiração rápida logo acima de seu corpo. Mas era impossível confundir quem estava ali quando ela soltou, com a respiração trêmula, alguns palavrões. Um silêncio pesado e demorado se seguiu ao xingamento sussurrado. Em seguida:
– Rio... Meu Deus! Por que tipo de inferno você passou?
Lançando mão até mesmo da última gota de força que tinha, ele conseguiu abrir os olhos. Um erro enorme. O horror que ele viu nos olhos de Dylan era inegável. Ela estava olhando o lado esquerdo de seu corpo... O peito e o torso, que tinham sido destruídos por uma granada que quase esfolou seus ossos com as chamas da explosão que por pouco não lhe tirara a vida.
– Ela... – suave voz de Dylan foi se tornando cada vez mais fraca. – Sua esposa tem algo a ver com o que aconteceu com você?
Rio sentiu seu coração parar de bater. O sangue que antes pulsava fortemente em seus ouvidos se transformou em gelo quando ele conseguiu se concentrar na pergunta de Dylan. A preocupação estampava seu rosto.
– Ela fez isso com você, Rio?
Ele seguiu a mão estendida de Dylan enquanto ela alcançava o objeto que tinha deixado no criado-mudo. Era uma fotografia em um porta-retratos. Rio não precisava ver a foto no vidro para saber que era de Eva, de um passeio que eles tinham feito no Charles River certa noite. Eva, sorrindo. Eva, dizendo o quanto o amava. Enquanto, em suas costas, ela conspirava com os inimigos da Ordem para conquistar seus objetivos egoístas.
Rio grunhiu quando pensou em sua própria burrice. Em sua própria cegueira.
– Isso não é da sua conta – murmurou, ainda à deriva da escuridão que tomava conta de sua mente. – Você não sabe nada a respeito dela.
– Foi ela quem me levou até você. Eu a vi na montanha em Jicín.
Uma suspeita irracional transformou a ira de Rio em um sentimento letal.
– Do que você está falando? Como assim, você a viu?
Dylan engoliu em seco e encolheu levemente o ombro. Em seguida, segurou a fotografia diante dele.
– Eu a vi... O espírito dela estava lá. Ela estava na montanha com você.
– Você só pode estar mentindo – ele grunhiu. – E não me fale dessa mulher. Ela está morta, e merecidamente.
– Ela pediu que eu o ajudasse, Rio. Ela me procurou. Queria que eu salvasse você...
– Já disse para você parar de falar dela! – ele esbravejou.
A raiva fez com que o corpo de Rio estremecesse no colchão como uma víbora sendo atacada. Ele puxou o retrato das mãos de Dylan e o atirou pelo quarto com uma velocidade impressionante. O objeto bateu contra o enorme espelho na parede de frente com a cama, quebrando-o com o impacto e lançando cacos de vidro polido como uma chuva de lâminas.
Rio ouviu o grito de Dylan, mas foi somente quando ele sentiu o cheiro adocicado do sangue dela que se deu conta do que tinha feito.
Ela levou a mão até a maçã do rosto e, quando seus dedos se afastaram, estavam manchados de vermelho por conta de um pequeno ferimento logo abaixo do olho esquerdo.
Foi a visão daquela ferida que tirou Rio daquele espiral de depressão. Como um balde de água fria jogada sobre sua cabeça, ver Dylan ferida o puxou instantaneamente de volta para a realidade.
– Ah, Jesus Cristo! – disse ele com dentes apertados. – Eu sinto muito... Sinto muito!
Ele se moveu para tocá-la, para verificar o quanto a tinha ferido, mas ela se afastou com os olhos completamente aterrorizados.
– Dylan... eu não queria...
– Fique longe de mim!
Ele estendeu a mão, buscando demonstrar que realmente não queria feri-la.
– Não – ela estremeceu enquanto sacudia violentamente a cabeça. – Ah, meu Deus. Não me toque!
Madre de Dios.
Ela agora o olhava com um terror absoluto. E tremia. Seus olhos estavam fixos nele, banhados de medo e confusão.
Quando Rio passou a língua pelas pontas de suas presas salientes, ele entendeu a fonte do terror que Dylan sentia. Ele se levantou diante dela. Ela temia porque ele lhe tinha dito ser um vampiro, embora aquela mente humana tivesse se recusado a acreditar.
Agora, todavia, ela acreditava.
Dylan estava vendo a verdade com seus próprios olhos, as mudanças físicas no corpo de um louco cheio de cicatrizes que agora se transformava em uma criatura saída diretamente de seus piores pesadelos. Era impossível esconder as presas que se tornavam mais longas conforme a fome por ela se intensificava. Era impossível mascarar o afinamento daquelas pupilas conforme o brilho âmbar da sede de sangue embaçava sua visão.
Ele olhou para o pequeno corte, para o fio de sangue que escorria tão vermelho contra a pele macia da bochecha de Dylan. E ele mal conseguia formular um pensamento coerente.
– Eu tentei contar para você, Dylan. Isso é o que eu sou.
Capítulo 16
– Vampiro.
Dylan ouviu a palavra escapar por seus lábios, apesar do fato de mal poder acreditar no que estava vendo – ou dizendo.
Em questão de instantes, Rio tinha se transformado diante dos olhos de Dylan e ela olhava chocada as mudanças que acabara de presenciar. As íris dos olhos dele brilhavam como brasas e não tinham mais a cor topázio habitual. Em vez disso, estavam estampadas com uma inacreditável sombra âmbar que praticamente engolia as pupilas extremamente reduzidas. Os ossos da face de Rio pareciam mais duros agora, ostentando as esguias maçãs do rosto e uma mandíbula quadrada que parecia ter sido esculpida em pedra.
E, atrás do suculento e exuberante corte formado por sua boca, Rio exibia um par de presas que pareciam ter saído diretamente de algum filme de Hollywood.
– Você... – A voz de Dylan desapareceu conforme aqueles hipnóticos olhos cor de âmbar a encararam. Ela se sentou delicadamente na beirada da cama. – Meu Deus... Você realmente é um...
– Eu sou da Raça – ele pronunciou calma e articuladamente. – Exatamente como lhe disse.
Dylan estava sentada diante de Rio, e agora sua visão era preenchida completamente pela ampla musculatura do peito nu do vampiro. O intrincado desenho na pele dos antebraços subia pelos ombros de Rio e descia ao longo de seu peitoral. Todas as marcas – dermoglifos, como ele havia chamado da primeira vez em que ela as percebera – eram de uma cor vívida agora, a cor mais escura que Dylan já as tinha visto ostentar. Tramas profundas de cor púrpura e negra saturavam os belos desenhos e as linhas em forma de arcos.
– Não consigo impedir a transformação – ele murmurou, como se tivesse necessidade de dar uma justificativa a Dylan. – A transformação é espontânea nos machos da Raça quando sentimos o cheiro de sangue fresco.
O olhar dele desviou-se ligeiramente dos olhos de Dylan, e logo repousou na bochecha ferida pelos estilhaços do espelho quebrado. A mulher sentia que ainda havia sangue quente deslizando como uma lágrima por seu queixo. Rio assistia àquela gota deslizar com uma intensidade que fazia Dylan estremecer. Ele passou a língua pelos lábios sensuais e engoliu seco, mas manteve seus dentes cerrados o tempo todo.
– Fique aqui – ele ordenou com uma voz forte e autoritária enquanto franzia a testa com intensidade.
O instinto de Dylan lhe dizia que ela devia ser mais inteligente e correr, mas ela se recusava a sentir – ou, melhor dizendo, a demonstrar sentir – medo daquele homem enorme que estava sem camisa em sua frente. Por mais estranho que parecesse, Dylan sentia que tinha realmente conhecido aquele homem nos últimos dias, durante os quais eles foram obrigados a conviver. Rio não era nenhum santo, aquilo era um fato. Ele a tinha raptado, aprisionado e ela ainda não estava certa sobre o que ele queria fazer com ela – Santo Deus! No entanto, ela não acreditava que ele fosse perigoso – não para ela.
O que Dylan acabara de testemunhar ali não era exatamente algo a ser celebrado, mas, em seu coração, ela não sentia medo do que ele era.
Bem, não completamente.
Dylan ouviu quando Rio desligou o registro do chuveiro e saiu, poucos segundos depois, segurando uma toalha branca e umedecida que ele ofereceu para ela.
– Pressione isso contra a ferida. Vai estancar o sangramento.
Dylan tomou a toalha em suas mãos e a pressionou no rosto, exatamente como ele lhe dissera. Ela, porém, não pôde deixar de perceber a longa expiração que ele soltou quando a ferida em sua bochecha fora finalmente coberta, como se agora estivesse aliviado por não precisar mais passar pelo inferno de ter de olhar para aquilo e resistir. A cor ardente dos olhos de Rio começou a escurecer lentamente e as pupilas estreitas reassumiram a forma arredondada. Os dermoglifos, no entanto, ainda estavam avermelhados; as presas, ainda mortalmente afiadas.
– Você realmente é um... não é? – ela murmurou. – Você é um vampiro. Jesus Cristo! Não consigo acreditar que isso seja verdade. Quer dizer, como isso pode ser verdade, Rio?
Ele se sentou ao lado dela na cama. Menos de um metro de distância os separava agora.
– Eu já expliquei isso para você.
– Extraterrestres bebedores de sangue e mulheres humanas com DNA compatível com os deles – disse ela, recordando-se da estranha história sobre a raça híbrida de vampiros que ela tentara encarar como ficção científica. – Tudo isso é verdade?
– A verdade é um pouco mais complicada do que isso, mas sim... Tudo o que eu lhe disse é verdade.
Incrível.
Totalmente incrível.
Uma parte mercenária dela quase gritou de excitação ao pensar na potencial fama e fortuna que a revelação daquela história poderia lhe trazer. Mas havia outra parte de Dylan – a que não tinha se esquecido daquela incomum marca de nascença que ela trazia gravada na parte de trás do pescoço, a parte que ainda se lembrava de que ela tinha, aparentemente, uma forte conexão com aquele mundo – que mostrou instantaneamente seus instintos protetores, como se Rio e o mundo em que ele vivia fossem um delicioso segredo que pertencia exclusivamente a ela.
– Desculpe-me se eu chateei você – ela disse serenamente. – Eu não devia ter bisbilhotado as coisas enquanto você não estava aqui.
A cabeça dele se virou bruscamente e sua testa enrugou-se, levando as sobrancelhas a se unirem. O xingamento que ele murmurou foi forte e palpável.
– Você não precisa me pedir desculpas, Dylan. Fui eu quem errou. Eu nunca deveria ter entrado aqui no estado em que estava. Eu não posso ficar perto de ninguém quando estou daquele jeito.
– Você parece estar um pouco melhor agora.
Ele assentiu, sua cabeça caindo levemente em direção ao peito nu.
– A raiva diminui... no final. Se você não apagar antes, ela em algum momento... passa.
Não fazia muito tempo que Rio aparecera cambaleando no quarto, bastante desatento, com seus pés mal respondendo aos passos dificultosos que ele tentava dar. Ele mal conseguia pensar, seus músculos e ossos estavam embebidos em uma fúria insana.
– O que desperta isso, Rio?
Ele deu de ombros.
– Pequenas coisas, nada em especial. Nunca sei, exatamente.
– Aquele tipo de raiva faz parte do que você é? Todos os homens da Raça têm de passar por esse tipo de tormento?
– Não – disse, soltando o tipo de sorriso de alguém que está zombando de si. – Não. Esse problema é apenas meu. Falta um parafuso na minha cabeça. Eu o perdi no verão passado e nunca mais o encontrei.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan gentilmente. – Foi isso que aconteceu com você?
– Foi um erro – ele respondeu com uma ponta de insegurança na voz. – Eu confiei em alguém em quem não deveria ter confiado.
Dylan olhou para o dano terrível que o corpo de Rio tinha sofrido. O rosto e o pescoço dele carregavam graves cicatrizes, mas seu ombro esquerdo e metade de seu torso musculoso pareciam ter ido e voltado do inferno. Seu coração apertou-se em seu peito quando ela pensou na dor que ele deveria ter suportado, tanto no acontecimento que ferira seu corpo daquela forma, quanto no que provavelmente foram meses e meses de recuperação.
Ele estava ali, sentado naquela cama tão rigidamente, tão solitário e tão inalcançável, apesar de estar a menos de um braço de distância dela. Para Dylan, Rio parecia sozinho. Sozinho e à deriva.
– Sinto muito, Rio – disse ela. E antes que pudesse se interromper, Dylan colocou sua mão sobre a mão dele, que ele agora descansava sobre a coxa. ele estremeceu como se carvão em brasa tivesse sido colocado sobre sua pele. Todavia, não se afastou.
Ele olhou fixamente para os dedos de Dylan que descansavam suavemente sobre os dele, branco pálido sobre um tom bronzeado. Quando olhou para ela, lançou-lhe um olhar rústico e másculo que preenchia seus olhos completamente. Ela se perguntava quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele fora tocado com algum tipo de ternura.
Dylan deslizou seus dedos sobre a mão máscula de Rio, estudando o incrível tamanho e a enorme força que ela tinha. A pele dele era tão quente e havia tanta força concentrada em seu corpo, mesmo quando ele parecia determinado a manter-se perfeitamente parado.
– Sinto muito por tudo o que você enfrentou, Rio. Sinto de verdade.
A mandíbula dele estava tão apertada que fez um músculo de seu rosto se contrair. Dylan colocou de lado a toalha umedecida que ele tinha lhe trazido e mal percebia que todos os seus sentidos estavam concentrados nele e na eletricidade que parecia emanar de suas mãos entrelaçadas.
Ela ouviu um ruído baixo se formar dentro de Rio, algo entre um grunhido e um gemido. O olhar dele deslizou para a boca de Dylan, e, por um segundo – um rápido, um breve segundo que teria durado o tempo de uma batida do coração – ela se perguntou se ele iria beijá-la.
Dylan sabia que devia retroceder. Sabia que devia tirar sua mão de cima da mão dele, colocá-la longe. Sabia que devia fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não fosse ficar ali, parada, quase sem respiração enquanto esperava e desejava – desejava desesperadamente, incontrolavelmente – que ele se debruçasse sobre ela e apertasse seus lábios contra os dele.
E, de repente, ela não conseguia mais não tocá-lo. Foi quando estendeu a mão que estava livre e acariciou o rosto de Rio, sentindo um repentino sopro de ar gelado empurrá-la – com a imponência da Grande Muralha da China.
– Não quero sua compaixão – grunhiu Rio com uma voz que ela não reconheceu como sendo dele. O sotaque espanhol estava ali, como sempre, mas as sílabas eram ásperas e o timbre não era exatamente humano, o que imediatamente fez Dylan se lembrar de qual era a natureza daquele ser diante dela. Rio puxou a mão de debaixo da dela e se levantou da cama.
– O corte está sangrando. Você precisa de cuidados que não posso lhe oferecer.
– Tenho certeza de que não é nada grave – respondeu Dylan, sentindo-se uma idiota por se colocar em uma situação como aquela com ele. Depois, pegou novamente a toalha que descartara momentos antes e a pressionou outra vez contra o ferimento. – Não é nada. Vou ficar bem.
Não havia sentido algum em Dylan falar qualquer coisa que fosse, já que Rio não a ouviria, de qualquer forma. Ela o viu caminhar até a sala da frente, passando pelo espelho quebrado, e pegar um telefone sem fio, no qual imediatamente teclou uma sequência curta de números.
– Dante? Olá. Não, nenhum problema. Mas eu, é... Tess está por aí? Preciso que ela me faça um favor.
Rio parecia um animal enjaulado, andando de um lado para o outro durante os poucos minutos que se passaram até a ajuda chegar. Ele ficou do lado de fora do quarto, confinado a um espaço minúsculo perto da entrada principal. Ficou tão distante de Dylan quanto poderia ficar sem de fato ter de sair daquele maldito quarto e esperar do lado de fora.
Madre de Dios.
Ele quase lhe beijara.
E ele queria tê-la beijado. E admitir aquilo – mesmo que apenas para si – era como levar um soco no estômago. Beijar Dylan Alexander era uma maneira garantida de transformar uma situação que já era bastante ruim em algo que seria, de fato, catastrófico. Isso porque Rio sabia sem qualquer sombra de dúvida que, se beijasse aquela bela e ardente mulher, ele não conseguiria se conter, não conseguiria, de forma alguma, parar no beijo. Não, mesmo.
O simples pensamento da sensação que seria a de pressionar seus lábios contra os dela já fazia o sangue de Rio ferver e correr acelerado em suas veias. Seus dermoglifos pulsavam com as cores de seu desejo – agitando-se em tons de vermelho-escuro e negros. E também era impossível negar a outra evidência daquele desejo: seu pênis estava tão duro quanto granito, e estava daquele jeito desde o instante em que Dylan, inesperadamente, inadvertidamente, pousara a mão sobre sua coxa.
Jesus Cristo!
Ele sequer se atrevia a olhar para dentro do quarto, com medo de não ser capaz de impedir seus pés de marcharem de volta pelas portas fechadas e levarem-no diretamente para os braços de Dylan.
“Como ela provavelmente desejava” – ele pensou ardentemente.
Aquela carícia que Dylan fizera em sua mão tinha sido um gesto delicado, doce, do tipo que uma mãe faz em uma criança. Ou, pior do que isso, aquele gesto poderia ter sido um gesto de compaixão de um anjo caridoso que consola uma das criaturas mais infelizes criadas por Deus.
Maldecido.
Manos del diablo.
Monstruo.
Sim, Rio era todas essas coisas. E agora Dylan tinha visto como ele era realmente feio. Para seu crédito, ela não tinha recuado ao ver toda aquela carne retorcida e aquelas presas – o que queria dizer então que ela era muito mais forte do que aquilo tudo. Mas acreditar que ela poderia receber, poderia desejar seu toque? Que ela poderia aproximar-se o suficiente de seu rosto arruinado e permitir que ele a beijasse?
Jamais! E ele agradeceu a Deus por aquilo, pois aquilo lhe tinha poupado de ver a repugnância dela. Aquilo lhe tinha poupado de fazer algo realmente idiota, como se esquecer – ainda que por um segundo apenas – de que ela estava ali, no complexo – ali, em seu quarto – somente até que ele corrigisse o erro que cometera ao permitir que ela se aproximasse daquela maldita caverna em Jicín. Quanto mais rápido ele conseguisse fazer aquilo – consertar aquele erro – e mandar Dylan para casa, melhor.
Um golpe seco ecoou contra a porta.
Rio atendeu, com um grunhido de frustração.
– Você soava péssimo ao telefone, então decidi vir com Tess e ver com meus próprios olhos. – A boca de Dante curvou-se em um sorriso arrogante que só ele sabia dar enquanto seu corpo enorme permanecia parado na soleira da porta ao lado de sua bela Companheira de Raça. – E então, você não vai nos deixar entrar, cara?
– Claro.
Rio deu um passo para o lado, abrindo espaço para o casal entrar.
A companheira de Dante parecia ainda mais bela sob a luz daquele quarto. As longas ondas cor de mel de seus cabelos estavam presas em um rabo de cavalo frouxo e seus inquiridores olhos verde-mar eram suaves, mesmo quando encaravam Rio.
– É bom vê-lo novamente, Rio – disse ela, e, sem hesitação, deu um passo adiante e ficou na ponta dos dedos dos pés para dar um abraço rápido no guerreiro e beijar-lhe levemente a bochecha. – Dante e eu ficamos tão preocupados com você durante esses meses todos...
– Não precisava – respondeu Rio, embora não pudesse negar que aquela preocupação o deixava, de certa forma, feliz.
Tess e Dante estavam juntos desde o final do último outono. Ela tinha entrado para a Ordem com um extraordinário dom de curar e restaurar a vida com o simples toque de suas mãos macias. O toque de Tess tinha um poder inimaginável, mas nem mesmo ela fora capaz de consertar todos os danos que Rio tinha sofrido. Ele já estava muito longe quando ela chegou ao complexo, e as cicatrizes dele – tanto as interiores quanto as exteriores – eram permanentes, embora não fosse por falta de tentativas de Tess.
Dante passou o braço musculoso em volta de sua Companheira de Raça em um movimento que era protetor e respeitoso ao mesmo tempo. E foi então que Rio notou a leve protuberância no ventre dela. Tess percebeu o olhar de Rio e abriu um sorriso tão imaculado quanto o da própria Madonna de Botticelli.
– Estou nos primeiros três meses – ela disse, virando-se toda sorridente para Dante. – Alguém está usando isso como desculpa para me mimar.
Dante sorriu.
– Eu? Por favor...
– Felicidades – murmurou Rio, sinceramente sentindo os votos que desejava.
Não era comum guerreiros e Companheiras de Raça começarem uma família dentro da Ordem. Aliás, praticamente não se ouvia falar daquilo. Os homens da Raça que dedicavam suas vidas à luta contra os Renegados não eram tipos muito familiares, por assim dizer. Mas acontece que Dante nunca fora como esses guerreiros, então...
– Onde está Dylan? – perguntou Tess.
Rio gesticulou, apontando para as portas que estavam fechadas.
– Eu fui um idiota com ela. Tive uma crise e... Droga! Acabei quebrando o espelho. Um dos estilhaços acabou atingindo o rosto dela.
– Você ainda está tendo apagões? – perguntou novamente Tess, franzindo a testa. – As dores de cabeça ainda não passaram?
Rio recuou, obviamente não querendo falar sobre seus próprios problemas.
– Eu estou bem. – Foi tudo o que ele disse. – Apenas cuide dela, certo?
– Eu cuidarei. – Tess pegou uma pequena maleta médica das mãos de Dante, sob o olhar interrogativo de Rio, e completou:
– Desde que eu engravidei, minhas habilidades diminuíram. Eu entendo que, na gravidez, é normal a energia da Companheira de Raça se voltar para dentro do próprio corpo. As coisas vão voltar ao normal quando o bebê nascer. Até lá, terei de me apoiar na boa e velha medicina tradicional.
Rio lançou um olhar sobre seus ombros para dentro do quarto. Ele não conseguia ver Dylan, mas imaginou que ela estava lá dentro, precisando ver alguém gentil e carinhoso. Alguém que pudesse melhorar seu humor e conversar com ela como uma pessoa normal; alguém que pudesse tranquilizá-la, dizer-lhe que ela estava segura, que estava entre pessoas em quem ela podia confiar. Especialmente depois da espetacular demonstração de raiva psicótica e desregrada que ele, Rio, tinha feito para ela.
– Está tudo bem – disse Tess. – Não se preocupe, vou cuidar dela.
Com o punho fechado, Dante golpeou levemente o bíceps bem definido de Rio.
– Venha – disse –, vamos dar o fora daqui. Ainda falta uma hora para o amanhecer. E parece que você está precisando tomar um pouco de ar fresco, cara.
Capítulo 17
Dylan estava agachada perto do pé da cama, recolhendo cacos de vidro, quando as portas se abriram suavemente, abrindo caminho para o dormitório.
– Dylan?
Aquela era uma voz feminina. A mesma que, havia um minuto, ela tinha ouvido conversar baixinho com Rio e outro homem. Dylan olhou para cima e sentiu o calor instantâneo de um olhar brilhante que estava logo acima dela.
A mulher, jovem e bela, sorriu.
– Olá. Meu nome é Tess.
– Olá.
Dylan deixou um caco de vidro de lado e inclinou o corpo para recolher outro.
– Rio me pediu para vir ver se você estava bem.
Tess trazia consigo uma bolsa de couro preta quando entrou nos aposentos.
– Você está bem? – insistiu.
Dylan assentiu.
– É só um arranhão.
– Rio está se sentindo péssimo por causa disso. Ele anda passando por... problemas. Já faz algum tempo. Desde a explosão do armazém no verão passado. Ele tem sorte de estar vivo.
Meu Deus! Então isso explicava as queimaduras e as cicatrizes. Uma explosão havia feito aquilo? Quer dizer então que Rio realmente tinha feito uma viagem de ida e volta para o inferno, como Dylan havia suposto.
Tess continuou:
– Por causa do trauma cerebral causado pela explosão, ele tem blecautes de tempos em tempos. Além disso, Rio também tem fortes dores de cabeça, mudanças de humor... Bem, acredito que você deve ter visto com seus próprios olhos. Não é coisa para brincadeira. Mas ele não quis feri-la, disso eu tenho certeza.
– Estou bem – insistiu Dylan, sem se preocupar com o arranhão em sua bochecha. – Tentei dizer para ele que isto aqui não era nada. O corte nem está sangrando mais.
– É um alívio – disse Tess enquanto colocava a bolsa médica sob a escrivaninha. – Fico contente de saber que não é tão grave quanto Rio temia. Da forma como ele descreveu pelo telefone, pensei que teríamos que dar pelo menos meia dúzia de pontos. Mas pelo que vejo, um pouco de antisséptico e um curativo serão suficientes – Tess caminhou por onde Dylan recolhia os pedaços do espelho despedaçado. – Venha, deixe-me ajudá-la.
Quando Tess se aproximou, Dylan se deu conta de que a palma da mão de Tess estava apoiada sobre a curva na barriga. Ela estava grávida. E não foi apenas pela aparência física que Dylan percebeu, mas pelo fato de aquela mulher resplandecer com um brilho interior que não deixava dúvida alguma.
Além disso – e, talvez ainda mais estranho –, na mão que repousava sobre as primeiras fases de um bebê em desenvolvimento, havia uma pequena marca de nascença. Dylan não pôde deixar de olhar fixamente para a lágrima escarlate e a meia-lua na mão direita daquela mulher – a mesma marca com a qual ela tinha nascido, aquela que trazia no pescoço.
– Você vive aqui? – perguntou Dylan. – Com... eles?
Tess assentiu.
– Vivo com Dante. Ele é um guerreiro da Ordem, como Rio e os outros que vivem aqui no complexo.
Dylan acenou na direção da pequena marca de nascimento entre o polegar e o indicador de Tess:
– Você é a... Companheira de Raça dele? – perguntou, recordando o termo que Rio tinha usado depois de perceber que Dylan tinha uma marca idêntica àquela. – Você se casou com um deles?
– Dante e eu procriamos no ano passado – explicou Tess. – Fomos unidos por nosso sangue, o que nos liga de uma forma muito mais profunda do que o casamento. Imagino que Rio já tenha lhe dito algumas coisas sobre a Raça... Como eles vivem, de onde vêm. Depois do que aconteceu, estou segura de que você não tem dúvidas do que eles são.
Dylan assentiu, ainda sem acreditar que tudo aquilo poderia ser realmente verdade.
– Vampiros.
Tess sorriu gentilmente.
– Isso foi o que eu pensei a princípio. Porém, defini-los não é algo tão simples assim. A Raça é um pouco complicada. Eles vivem em um mundo complexo e cheio de inimigos. As coisas podem ser muito perigosas para eles e para quem os ama. Para os poucos homens que se comprometeram com a Ordem, cada noite é um risco para suas vidas.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan com um tom que deixava transparecer seu espanto. – A explosão que feriu Rio... foi algum acidente terrível?
Uma expressão de dor tomou conta do rosto de Tess. Ela estudou Dylan por um momento, como se não estivesse segura do quanto poderia contar. No entanto, ela logo sacudiu ligeiramente a cabeça.
– Não. Não foi um acidente. Alguém próximo de Rio o traiu. A explosão aconteceu durante uma investida em um velho armazém da cidade. Rio e os demais membros da Ordem se viram em uma emboscada.
Dylan olhou para baixo e se deu conta de que estava observando o porta-retratos que Rio tinha jogado pelo quarto durante seu ataque de raiva. Cuidadosamente o recolheu. Tirou a teia de aranha de cima do vidro quebrado sobre a imagem e observou os exóticos olhos escuros e o sorriso triste e distante.
– Eva – confirmou Tess. – Ela era a Companheira de Raça de Rio.
– Mas ela o traiu?
– Sim – Tess respondeu depois de uma longa pausa. – Eva fez um acordo com um dos inimigos da Ordem, com um poderoso vampiro que também era o irmão do líder da Ordem, Lucan. Para que este vampiro obtivesse informação que o ajudasse a matar Lucan, algo que Eva queria tanto quanto o inimigo, ela pediu duas coisas: que Rio sobrevivesse e que fosse ferido o suficiente para nunca mais conseguir lutar.
– Meu Deus! – ofegou Dylan. – E ela conseguiu o que queria?
– Não exatamente. A Ordem caiu em uma emboscada, apoiada nas informações que Eva entregou, mas o vampiro com o qual ela negociou não tinha a menor intenção de manter sua parte do acordo. Ele colocou uma bomba no local. A explosão poderia ter matado a todos, mas, ironicamente, Rio foi o mais atingido. E posteriormente ele veio a descobrir que Eva tinha sido a responsável por tudo aquilo.
Dylan não conseguia falar. Ela tentava absorver o peso que tudo aquilo deveria ter para Rio. Não apenas a dor física causada por aquelas lesões, mas também a dor emocional da traição sofrida por ele.
– Eu a vi. – Dylan olhou para Tess e viu a testa da mulher franzir. A confusão se tornava evidente naquele olhar carregado de interrogações. Dylan conhecia Tess há poucos minutos e não estava acostumada a falar sobre si com ninguém, em especial falar de seu segredo, de seu dom, daquilo que a tornava tão diferente dos outros humanos. No entanto, havia algo nos olhos cheios de cuidado de Tess que levava Dylan a confiar que estava segura. Ela tinha sentido uma afinidade instantânea que a fez saber que estava com uma amiga.
– Os mortos aparecem para mim de vez em quando. Bem, mulheres mortas, melhor dizendo. Eva apareceu para mim alguns dias atrás, quando eu estava viajando com algumas pessoas pelos arredores de Praga.
– Ela... apareceu para você...? – perguntou Tess com cautela. – O que você quer dizer com isso?
– Eu vi o espírito dela, por assim se dizer. Ela me guiou até uma caverna oculta. Eu não sabia, mas Rio estava lá dentro. Ela... Eva me levou até lá e me pediu que o salvasse.
– Meu Deus! – Tess acenou lentamente com a cabeça. – Ele sabe?
Dylan olhou significativamente para a destruição ainda sob seus pés.
– Sim, Rio sabe. Quando eu contei para ele, ele ficou louco.
O olhar de Tess transformou-se quase em um pedido de desculpa.
– Ele tem muita raiva de tudo que seja relacionado à Eva.
– É compreensível – respondeu Dylan. – Ele está bem, Tess? Quer dizer, considerando o que viveu, Rio vai ficar... bem?
– É o que eu espero. É o que todos nós esperamos. – Tess inclinou a cabeça ligeiramente, estudando Dylan. – Você não tem medo dele?
Não, Dylan não o temia. Tinha curiosidade de saber mais sobre Rio, e incerteza com relação às intenções dele quanto a ela. Mas não tinha medo. Embora isso parecesse loucura, mesmo depois de vê-lo tendo aquela reação naquele mesmo cômodo, Dylan não o temia. Aliás, pensar em Rio provocava muitas coisas nela, mas nenhuma delas era medo. Não mesmo.
– Você acha que eu deveria temê-lo? – perguntou.
– Não, claro que não – disse Tess sem vacilar. – Quer dizer, as coisas não devem estar sendo fáceis para você. Deus sabe que não aceitei muito bem no início, quando ouvi pela primeira vez toda essa coisa de sangue, presas e guerra.
Dylan encolheu o ombro.
– Eu escrevo para uma publicação que é quase um tabloide. Acredite, já escutei muitas coisas bizarras. Não me assusto com facilidade.
Tess sorriu, mas não manteve o olhar cruzado com o de Dylan por muito tempo. As palavras que ela não disse estavam claras naqueles olhos que a evitavam: aquilo não era apenas uma história bizarra de um tabloide. Aquilo era a realidade.
– O que havia naquela caverna, Tess? Parecia ser algum tipo de cripta, uma “câmara de hibernação”, como escutei Rio chamá-la. Mas que diabos era aquilo? Há algo perdido naquela montanha?
Tess levantou o olhar, mas só negou levemente com a cabeça.
– Na verdade, eu não acho que você queira saber.
– Sim, eu quero – insistiu Dylan. – Independentemente do que for, é importante o suficiente para que Rio sentisse a necessidade de me sequestrar e me trancafiar para que não dissesse nada do que vi.
O silêncio de Tess fez o estômago de Dylan formar um nó de medo. A Companheira de Raça sabia o que havia na caverna, e aquilo parecia aterrorizá-la. O que, é claro, apenas aumentou a curiosidade de Dylan.
– Tess, havia algo dormindo naquela tumba oculta. E, pelo aspecto, eu diria que esse algo estava escondido ali há muito tempo. Que tipo de criatura era ou é aquilo?
Tess se levantou e jogou alguns cacos de vidro no cesto de papéis ao lado da mesa.
– Deixe-me ver seu corte. Temos de limpá-lo. Depois faremos um curativo para evitar que você fique com uma cicatriz.
Confinado dentro da cela de raios ultravioleta, o Antigo jogou a cabeça para trás e soltou um rugido infernal. Sangue gotejava por suas enormes presas e seu peito, enorme e nu, ostentava a cor pulsante de seus dermoglifos.
– Apertem essas malditas correntes – gritou o cuidador, falando com seus subordinados por meio de um alto-falante na sala de observação fora da cela. – E, por Deus, arrumem toda essa bagunça aí dentro.
As algemas cibernéticas serpentearam e seguraram fortemente as pernas e os braços grossos do Antigo. Com um comando programado, ajustaram-se. A criatura tentou se libertar, mas não chegaria a lugar algum. Feriu-se futilmente: cortou seus próprios lábios e berrou de novo. O urro era pura fúria enquanto o imenso corpo era dominado por titânio e aço.
Ele ainda estava com o pênis ereto por conta do cruzamento que tinha dado tão violentamente errado. Ainda estava sedento pelo sangue e pelo corpo sem vida da mulher que naquele momento era apressadamente retirada da jaula.
A Companheira de Raça tinha sido atacada. Unhas e presas fortes tinham marcado irreversivelmente – mortalmente – seu corpo. E, antes que o Antigo pudesse ser afastado, ela já estava morta. Ela não era a primeira; tampouco seria a última (não estava perto de sê-lo, aliás). Ao longo das cinco décadas em que o Antigo tinha sido despertado de sua hibernação e posto sob o controle de seu guardião, alimentá-lo – e fazê-lo procriar – tinha se mostrado uma tarefa custosa e frustrante.
Apesar de toda aquela tecnologia e de todo aquele dinheiro disponível, não havia ciência alguma que pudesse substituir o tipo de acasalamento que havia ocorrido na cela do prisioneiro alguns momentos atrás. Carne com carne, esse era o único meio de concepção para o Antigo. E também para os demais membros da Raça. Mas o sexo era apenas uma parte do processo. Era necessária a ejaculação, com um intercâmbio de sangue no exato momento, para que a vida de um vampiro se desenvolvesse no corpo de uma Companheira de Raça.
Normalmente, os casais que desejavam conceber se deleitavam em um ato deliberado e sensual de criar uma vida. Neste caso, não. Aqui embaixo, com a selvagem criatura alienígena levada à loucura por conta da fome, da dor e do confinamento, a concepção era um jogo de vida e morte. Baixas, como a de hoje, eram parte da equação. Mortes deviam ser esperadas.
Mas êxitos haviam sido alcançados. E isso fazia os riscos valerem a pena. Para cada Companheira de Raça morta no processo, duas outras tinham saído vivas... E com as sementes de uma nova geração plantada em seus úteros.
O cuidador do Antigo sorriu secretamente, apesar da perda do dia.
Aquela nova geração poderosa já estava florescendo, a maioria em segredo.
E a obediência daqueles novos seres pertencia inteiramente a ele.
CONTINUA
Capítulo 14
Era muito estranho estar outra vez no complexo, mas, para Rio, o mais surreal era entrar novamente em seus aposentos dentro da sede subterrânea da Ordem, localizada no subúrbio de Boston.
Dante e Chase tinham ido para o laboratório de alta tecnologia logo que chegaram, deixando Rio a sós com Dylan. O guerreiro espanhol imaginou que os outros companheiros queriam lhe dar a oportunidade de ele se reencontrar com sua antiga vida – a vida que Eva havia lhe roubado um ano atrás com aquela maldita traição.
Rio não colocava os pés no complexo havia muito tempo, mas o lugar estava exatamente como ele se lembrava. Exatamente como ele tinha deixado antes da explosão no armazém que o mandara para a enfermaria do complexo por vários meses para enfrentar uma difícil recuperação – uma recuperação que não tinha sido, de modo algum, completa.
Aqueles aposentos, que uma vez Rio dividira com Eva, eram como uma espécie de cápsula do tempo. Tudo estava congelado em seu lugar desde aquela noite infernal quando Rio e seus companheiros tinham saído para acabar com um bando de Renegados sem imaginarem que estavam indo diretamente para uma emboscada mortal – uma emboscada orquestrada pela mulher que era uma Companheira de Raça... sua companheira.
E também fora ali, naquele mesmo lugar que, depois de ter sua traição descoberta e denunciada, Eva tinha cortado a própria garganta.
Ela se suicidou sobre a cama de Rio na enfermaria, mas era ali, em seu quarto, que Rio sentia mais a sua presença: o toque de Eva estava por todas as partes, desde as obras de arte extravagantes que ele tinha, a contragosto, permitido pendurar nas paredes antes vazias, até os inúmeros espelhos espalhados por todo o quarto, perto do closet e aos pés da enorme cama.
Rio conduziu Dylan pela elegante sala de estar, atravessando as portas cobertas por cortinas que levavam à suíte do dormitório. Ele se viu refletido no espelho enquanto, com todo o cuidado, deixava a delicada mulher sobre cama de dossel coberta por lençóis cor ameixa escura. Recuou diante do rosto moreno e arruinado do desconhecido que lhe devolvia o olhar. Mesmo vestido com as roupas elegantes que Reichen havia lhe dado, ele ainda parecia um monstro e a sensação apenas aumentava quando comparada à beleza adormecida em seus braços e totalmente à sua mercê.
Ele era um monstro e não podia jogar a culpa daquilo somente em Eva. Afinal, ele tinha nascido uma besta, um assassino, e agora simplesmente também se parecia um pouco mais com aquilo. Dylan se moveu um pouco assim que ele a colocou no colchão e ajeitou um dos macios travesseiros sob sua cabeça.
– Acorde agora – ele disse, roçando a mão brandamente na testa da mulher. – Você já descansou o suficiente, Dylan. Está na hora de despertar.
Ele não precisava acariciar o rosto dela para tirá-la do transe. Ele não precisava deslizar as pontas de seus dedos másculos sobre aquela pele aveludada e decorada com pequenas e encantadoras sardas. Ele não precisava demorar seu toque ao longo da delicada linha de sua mandíbula... Rio, todavia, não conseguiu deixar de aproveitar ao máximo aquela oportunidade única de fazer tudo isso.
As pálpebras de Dylan se abriram, seus cílios castanhos se levantaram e, de repente, Rio se viu capturado pela luz verde-dourada daquele olhar. Ele imediatamente afastou a mão do rosto de Dylan, mas não pôde deixar de notar que ela tinha se dado conta da liberdade que ele tomara. Ela, todavia, não demonstrou alteração alguma, simplesmente soltou um suave sopro de ar por seus lábios entreabertos.
– Estou com medo – ela sussurrou com uma voz baixa por causa do longo sono em que ele a tinha colocado. Dylan não tinha consciência do transe ou da viagem. Para sua mente humana, ela ainda estava no Refúgio de Reichen, uma vez que sua mente tinha sido colocada em suspensão momentos antes da partida para Boston. – Estou com medo do lugar para onde você está me levando...
– Já estamos aqui – disse Rio. – Acabamos de chegar.
O pânico tomou conta do olhar de Dylan.
– Onde...
– Eu a trouxe para a sede da Ordem. Você está segura aqui.
Dylan lançou um olhar ao seu redor, tentando entender onde estava.
– É aqui que você mora? – perguntou.
– É aqui que eu costumava morar. – Rio se levantou e se afastou da cama. – Fique à vontade. Se precisar de alguma coisa, basta pedir.
– Que tal uma carona até minha casa em Nova York? – ela disse. Sua consciência estava obviamente voltando ao normal. – Ou talvez um GPS mostrando onde estamos agora... Pode deixar que eu me viro para encontrar o caminho para casa.
Rio cruzou os braços sobre o peito enorme e musculoso.
– Esta é sua casa agora, Dylan. Como você é uma Companheira de Raça, será tratada com todo o respeito e reverência. Terá comida, conforto e tudo mais o que precisar. Você não vai ser trancada nesse quarto, mas eu posso lhe garantir que não há para onde você correr, caso isso venha a passar por sua cabeça. O complexo é inteiramente seguro. Meus companheiros e eu não vamos machucá-la, mas se você tentar deixar esses aposentos, nós saberemos antes de você dar o primeiro passo no corredor. Se você tentar fugir, vou encontrá-la, Dylan.
Ela ficou em silêncio por um longo momento enquanto ouvia aquele enorme homem falar e media cada uma de suas palavras.
– E então, o que vocês vão fazer comigo? Me segurar e morder minha garganta?
Jesus Cristo!
Rio sentiu todo o seu sangue drenar de sua cabeça ao simples pensamento daquilo. Ele sabia que para ela aquilo deveria ser um ato de extrema violência, mas, para ele, a imagem de segurar Dylan sob seu corpo enquanto ele perfurava delicadamente a pele macia de seu pescoço com suas presas era um ato inteiramente sensual.
O desejo percorreu seu corpo em uma espiral ardente e se concentrou imediatamente no meio de suas pernas. Ele ainda podia sentir a pele sedosa de Dylan em seus dedos e agora era outra parte de seu corpo que desejava imensamente, incontrolavelmente, conhecer o toque da pele daquela mulher em sua frente. Rio se virou, irritado com a rápida reação a Dylan que seu corpo esboçava.
– Quando eu estava em Jicín, ouvi uma história sobre um homem que foi atacado por um demônio. Um velho fazendeiro que testemunhou tudo disse que o tal demônio descia da montanha para se alimentar. Para beber sangue humano.
Rio ficou ali, encarando a porta em sua frente enquanto Dylan falava. Ele sabia a qual noite ela estava se referindo, ele se lembrava dela claramente, pois aquela tinha sido a última vez que ele tinha se alimentado. Fazia mais de duas semanas que ele não se alimentava quando foi até aquela humilde fazenda perto da floresta, na base da montanha.
Ele estava faminto e aquilo o deixou descontrolado. Um homem idoso apareceu, viu o ataque, viu Rio com os dentes cravados no pescoço de outro homem. Aquele foi um deslize, uma imprudência, e aquela interrupção tinha sido a única coisa responsável por salvar a vida da caça de Rio de sua fome incontrolável. Se aquele velho homem não tivesse aparecido, certamente o outro teria morrido. Rio tinha deixado de caçar naquela noite, aterrorizado com o que tinha se tornado.
– Foi um exagero, não é mesmo? – A voz de Dylan tornou-se lentamente mais calma durante o silêncio que Rio lhe deu como resposta. – Você não fez aquilo, fez, Rio?
– Fique à vontade – ele grunhiu, enquanto saía. Antes, porém, ele pegou a bolsa em que estavam o laptop e a câmera digital de Dylan. – Há algumas coisas que preciso fazer.
Rio não esperou que Dylan protestasse ou dissesse uma palavra mais, apenas sabia que precisava sair dali. Agora. Uns poucos passos o levariam para as portas abertas e à luxuosa sala de estar que atravessara minutos antes carregando Dylan em seus braços.
– Rosario...?
Ele parou ao som da voz dela em suas costas. Franziu a sobrancelha, virou a cabeça e voltou o olhar para a mulher, que agora tinha se levantado da cama e estava apoiada em seus cotovelos.
Madre de Dios, ela estava deliciosamente atraente, um tanto quanto despenteada, um tanto quanto sonolenta. Não demorou muito para Rio imaginar que talvez fosse daquela forma que Dylan deveria parecer depois de uma noite de sexo ardente. O fato de ela estar deitada sobre aqueles lençóis de seda de cor ameixa da cama de Rio apenas deixava a imagem ainda mais erótica.
– O quê? – a voz do homem enorme era um chiado que mal passava por sua garganta masculina.
– Seu nome – ela disse, como se ele devesse saber do que ela estava falando. A mulher, então, inclinou a cabeça enquanto estudava atenciosamente o quarto. – Você me disse que Rio é apenas parte de seu nome, então eu imaginei que talvez pudesse ser um apelido para Rosario.
– Não.
– Então qual é? – Quando ele não respondeu imediatamente, suas sobrancelhas castanho-claras juntaram-se, obviamente impacientes pela resposta. – Depois de tudo o que você me contou nos últimos dias, que problema teria em me dizer seu nome?
Ele escarnecia interiormente enquanto se lembrava de todos os nomes pelos quais tinha sido chamado desde que nascera. Nenhum deles era gentil, para dizer o mínimo.
– Por que isso é tão importante?
Ela sacudiu a cabeça, erguendo levemente os ombros magros.
– Não é importante. Suponho que simplesmente tenho curiosidade de saber mais sobre você. Para saber quem você realmente é.
– Você já sabe o suficiente – ele disse. Um leve xingamento escapou por sua boca. – Confie em mim, Dylan. Você não vai querer saber nada mais sobre mim além do que já sabe.
Mas Rio estava equivocado, pensou Dylan, enquanto observava o enorme corpo daquele homem afastar-se e atravessar a porta da ampla suíte. Ele fechou a porta e deixou a mulher sozinha na suave iluminação dos aposentos.
Ela virou o corpo na enorme cama, suas pernas estavam trêmulas como se fizesse muito tempo que não as usava, como se ela tivesse ficado ao relento durante boa parte de uma noite de inverno. Se o que ele disse era verdade – que eles tinham deixado Berlim e estavam agora nos Estados Unidos – então, ela pensou, faltava-lhe pelo menos nove horas de memória consciente.
Seria aquilo realmente possível?
Será que ele realmente a havia colocado em uma espécie de transe por todo aquele tempo?
Ela tinha ficado surpresa ao sentir os dedos de Rio acariciando seu rosto quando despertou. Aquele contato parecia tão suave, tão protetor e tão quente. Mas também tinha sido muito fugaz, tinha sido interrompido tão logo ele se dera conta de que ela estava acordando, tão logo notara que ela estava percebendo o que acontecia. Será que ele também percebeu que ela estava gostando?
Não, Dylan não queria sentir o calor de Rio, tampouco queria demonstrar algum calor para ele, mas ela não conseguia negar que havia algo de eletrizante na maneira como ele a olhava. Havia algo inegavelmente sedutor na maneira como ele a tocava. Ela queria saber mais sobre aquele homem – ela precisava saber mais sobre aquele homem. Afinal de contas, como sua prisioneira, seria de seu maior interesse saber qualquer coisa que pudesse a respeito do homem que a mantinha como refém. Como jornalista em busca – ou à espera – de uma grande matéria, era obrigação dela juntar até os mais insignificantes fatos e perseguir a verdade até o fim. Entretanto, era seu interesse como mulher o que mais incomodava Dylan.
Era aquele desejo mais íntimo e pessoal de saber mais sobre o tipo de homem que Rio era que fazia com que ela vagasse de um lado para o outro naqueles aposentos chiques. A decoração era exuberante e sensual, uma explosão de cores brilhantes que iam desde a roupa de cama de seda, da cor de ameixas maduras, até o tom dourado da pintura que cobria as paredes. Uma coleção de pinturas abstratas, tão brilhantes e gritantes que chegavam a fazer os olhos de Dylan doer, cobriam uma parede inteira da suíte luxuosa. Outra parede ostentava um espelho com uma moldura exuberante e obviamente caríssima. E o objeto estava colocado estrategicamente de modo a refletir os quatro lados da cama de dossel e tudo o que, por ventura, pudesse estar acontecendo em cima daqueles lençóis. Excitante.
– Sutil... – murmurou Dylan, girando os olhos enquanto se aproximava de um par de portas duplas que havia do outro lado do quarto. Ela as abriu e ficou de boca aberta quando percebeu que se tratava do closet... Um closet que tinha mais metros quadrados do que todo o seu apartamento no Brooklin.
– Santo Deus!
Ela entrou e imediatamente se deu conta de que havia mais espelhos ali dentro – e por que você não iria querer admirar-se em todos os ângulos possíveis quando tinha metade da Chanel à sua disposição?
Dylan ficou tentada a perscrutar aquele lugar que deveria ter milhares de dólares em roupas e sapatos assinados por estilistas famosos, mas um pensamento triste logo tomou conta de sua mente: apenas um quarto do armário tinha roupas masculinas. O resto todo pertencia a uma mulher. Uma mulher pequena, delicada, cujo gosto era, obviamente, muito caro. Aqueles aposentos poderiam ser de Rio, mas certamente ele não vivia ali sozinho.
Mas que merda! Será que ele era casado?!
Dylan deu meia-volta e saiu do closet, fechando bruscamente a porta e intimamente desejando nunca ter entrado ali. Dirigiu-se para a sala, observando atentamente cada detalhe e inegavelmente percebendo que havia um toque feminino em todos os cantos para os quais olhava. Nada se parecia nem de longe com seu estilo, mas, afinal, o que Dylan sabia sobre design de interiores mesmo? Não muito. Sua melhor peça de mobília era um sofá-cama que ela comprara de segunda mão.
Dylan deixou a mão percorrer o encosto de uma nogueira esculpida como uma cadeira enquanto observava a mobília declaradamente elegante do lugar. Ela se aproximou de um sofá de veludo dourado e parou enquanto seu olhar capturava uma pequena coleção de fotografias emolduradas minuciosamente expostas na mesa que havia atrás do sofá.
A primeira coisa que viu foi uma fotografia de Rio. Ele estava sentado no banco do passageiro de um clássico Thunderbird conversível que tinha sido estacionado sob a luz da lua em alguma praia deserta. Ele vestia uma camisa de seda preta – desabotoada, obviamente – e uma calça da mesma cor; suas coxas estavam ligeiramente separadas em um “V” casual e os dedos de seus pés descalços estavam inocentemente enterrados na areia branca enquanto seu olhar topázio escuro brilhava com uma espécie de sabedoria oculta e privada, e seu sorriso nebuloso o tornava igualmente perigoso e atraente.
Jesus Cristo, ele era lindo.
Para dizer a verdade, ele era muito mais do que lindo.
A foto não parecia antiga. Não havia cicatrizes no lado esquerdo do rosto dele, de modo que a lesão que ele sofrera devia ser bastante recente. Seja lá o que tenha roubado sua aparência clássica e incrivelmente atraente, a maior tragédia parecia ser a fúria que Rio havia dentro de si. Dylan olhou para a fotografia de Rio em dias felizes, e se perguntou como ele poderia ter mudado tanto desde aquela época.
Ela então olhou para outra fotografia, essa sim, antiga. Era uma imagem profissional em tons de sépia de uma mulher com os cabelos negros vestindo um bufante vestido vitoriano de gola alta. Dylan se inclinou para poder ter uma visão melhor enquanto se perguntava se aquela beleza exótica com sorriso tímido poderia ser, de repente, a avó de Rio. Os olhos escuros da modelo encaravam direta e fixamente a lente da câmera, lançando um olhar de pura sedução. Ela era bela, a mulher da fotografia, apesar da moda recatada de sua época.
E seu rosto... seu rosto parecia extremamente familiar.
– Ah, meu Deus!
A incredulidade, assim como o absoluto deslumbramento, inundou Dylan conforme ela deslizava o olhar para outra fotografia que havia na mesa. Esta, uma imagem colorida, obviamente tirada na última década ou menos... e na qual a mesma mulher da foto antiga também era modelo. Essa última imagem, tirada durante a noite, mostrava uma mulher de pé em uma ponte de pedra no meio de um parque, rindo enquanto seus belos e longos cabelos negros balançavam em sua cabeça. Ela parecia feliz, mas Dylan viu uma tristeza em seus olhos escuros – dolorosos segredos profundamente escondidos em seu olhar castanho-escuro que estava fixo em quem quer que estivesse tirando a foto.
E Dylan reconhecia aquele rosto, ela tinha certeza de que sim... Sim, ela percebia agora, e não era apenas da série de fotografias espalhadas naquela mesa e que a jornalista acabara de ver... Não, aquele rosto era familiar. Dylan já o tinha visto, sim, ela o reconhecia agora porque já o tinha visto na montanha, em Jicín. Aquele era, definitivamente, o rosto da mulher morta. A bela – e morta – mulher que a havia conduzido à caverna onde ela encontrara Rio – Dylan se dava conta disso agora – era esposa dele.
Capítulo 15
Era quase como se ele nunca tivesse deixado aquele local.
Rio estava no laboratório de alta tecnologia do complexo, cercado por Lucan, Gideon e Tegan, que o tinham saudado e oferecido um aperto de mão – sinal da amizade e da confiança verdadeiras.
O aperto de mão de Tegan se prolongou por mais tempo. Rio sabia que o forte guerreiro com cabelos acobreados e olhos esmeraldas era capaz de ler sua culpa e suas incertezas por meio da ligação entre suas mãos. Esse era o dom de Tegan, adivinhar as verdadeiras emoções com apenas um toque.
Ele deu um aceno quase imperceptível com a cabeça.
– Coisas ruins acontecem, meu amigo. E Deus sabe que todos nós temos nossos demônios tentando nos passar a perna. Então, ninguém está aqui para julgá-lo. Entendeu?
Rio assentiu com a cabeça enquanto Tegan soltava sua mão. Ao entregar a bolsa de Dylan a Gideon, o vampiro recém-chegado observou a parte posterior do laboratório, onde Dante e Chase limpavam suas armas para usá-las durante a noite. Dante ofereceu uma pequena saudação com o queixo, mas o olhar de aço de Chase deixava claro que ele não sabia o que pensar quando o assunto era Rio. Um homem inteligente. Rio imaginou que a reação do ex-agente fosse, provavelmente, a sua própria reação caso a situação fosse inversa e fosse Chase quem estivesse voando naquele jato em busca de resgate.
– Quanto a mulher sabe a nosso respeito? – perguntou Lucan.
Com novecentos anos de idade e fazendo parte da Primeira Geração da Raça, o fundador da Ordem e líder formidável poderia controlar toda uma sala com apenas um movimento de suas sobrancelhas negras. Rio o considerava um amigo – todos os guerreiros eram tão próximos que pareciam até mesmo familiares uns dos outros – e Rio odiava com todas as suas forças a possibilidade de tê-lo decepcionado.
– Só dei a ela as informações básicas – respondeu Rio. – Não acredito que ela esteja completamente convencida.
Lucan grunhiu, assentindo pensativamente.
– Realmente, são muitas informações para ela processar. Ela entende o propósito da cripta na montanha?
– Na verdade, não. Ela me ouviu chamando aquilo de câmara de hibernação quando Gideon e eu estávamos conversando, mas não sabe nada além disso. Pode ter certeza de que não pretendo dar mais nenhuma pista a ela. O fato de ela ter visto aquilo já é ruim demais. – Rio exalou um suspiro duro. – Ela é inteligente, Lucan. Não acredito que vá levar muito tempo para juntar as peças do quebra-cabeça.
– Então será melhor agirmos logo. Quanto menos detalhes tivermos que esclarecer posteriormente, melhor – explicou Lucan. Ele lançou um olhar a Gideon, que tinha aberto o laptop de Dylan no console ao seu lado. – Quão difícil acredita que será hackear e acabar com as fotos que ela enviou por e-mail?
– Apagar os arquivos da câmera e do computador é fácil. Demora apenas alguns segundos.
– E quanto a apagar as fotos da caixa de entrada daqueles que as receberam?
Gideon franziu o rosto como se estivesse calculando a raiz quadrada da renda líquida de Bill Gates.
– Algo como dez minutos para enviar uma bomba e estourar o disco rígido de todos os computadores da lista de contatos dela. Treze minutos se você quiser algo mais sutil.
– Eu não estou nem aí com o fator sutileza. – Lucan deixou claro. – Faça o que for necessário para destruir as fotos e destruir qualquer referência escrita ao que ela encontrou na montanha.
– Pode contar comigo – respondeu Gideon, que já se encontrava fazendo sua magia em ambos os dispositivos.
– Podemos destruir os arquivos eletrônicos, mas ainda teremos de tratar com as pessoas com quem ela manteve contato sobre a caverna – esclareceu Rio. – Além do chefe dela, há três mulheres com quem ela estava viajando. E também a mãe dela.
– Vou deixar isso para você – disse Lucan. – Não me importa como você vai fazer isso. Faça-a negar a história, acabe com a credibilidade dela ou saia para encontrar as pessoas com quem ela conversou e apague a memória de cada uma delas. A decisão é sua, Rio. Simplesmente dê um jeito na situação, como sei que você vai fazer.
Rio assentiu.
– Eu lhe dou minha palavra, Lucan. Vou consertar a situação.
A expressão do vampiro da Primeira Geração era tão sombria quanto segura.
– Não duvido de você. Nunca duvidei e nunca duvidarei.
A confiança de Lucan era inesperada, e um presente que Rio não tinha intenção de desperdiçar, independentemente de quão destruído ele soubesse estar. Durante muitos anos, a Ordem e os guerreiros que a serviam eram seu principal propósito na vida – inclusive acima de seu amor por Eva, o que acabou gerando um ressentimento silencioso, porém colérico, nela. Rio estava comprometido com até o último destes homens – como se eles fossem seus parentes de sangue –, comprometido a lutar por eles e, inclusive, a morrer por eles. Ele olhou em volta, sentindo-se humilde pelos rostos sombrios e corajosos dos cinco homens da Raça que ele sabia, sem dúvida alguma, que também dariam suas vidas por ele.
Rio limpou a garganta, sentindo-se desconfortável com as boas vidas praticamente unânimes de seus irmãos. Do outro lado do laboratório, as portas de vidro se abriram quando Nikolai, Brock e Kade chegaram, vindos do corredor. Os três conversavam com empolgação, trazendo um ar de camaradagem quando entraram no laboratório.
– Oi! – disse Niko, lançando a saudação para ninguém em particular. Seus olhos azuis como o gelo pararam em Rio por um segundo antes de ele finalmente olhar para Lucan e começar a detalhar a patrulha da noite. – Acabamos com um Renegado perto do rio há mais ou menos uma hora. O filho da mãe estava escondido em um contêiner de lixo quando o encontramos.
– Você acha que é um dos cachorros de Marek? – perguntou Lucan, referindo-se ao exército de Renegados que seu próprio irmão vinha criando até a Ordem finalmente intervir. Marek tinha morrido pelas mãos da Ordem, mas os vermes de seu exército ainda precisavam ser exterminados.
Nikolai ofereceu um aceno com a cabeça.
– O desgraçado não era um soldado, mas apenas um viciado tentando satisfazer sua sede de sangue. Imagino que só tenha passado algumas poucas noites fora do Refúgio Secreto. E nós o liquidamos facilmente. – O vampiro russo olhou atrás de Rio e lançou um sorriso desajeitado para Dante e Chase. – Alguma ação no lado Sul?
– Não, nada – murmurou Chase. – Estávamos muito ocupados buscando alguém no aeroporto.
Nikolai grunhiu, compreendendo o comentário e lançando um olhar em direção a Rio.
– Faz tempo, hein cara?! É bom ver que você continua inteiro.
Rio conhecia aquele cara muito bem para pensar que o comentário era amistoso. De todos os guerreiros da Ordem, Rio esperava que fosse Nikolai o primeiro na fila para defendê-lo – mesmo se Rio fosse ou não digno de defesa. Niko era o irmão que Rio nunca tivera. Os dois tinham nascido no século anterior e entrado para a Ordem em Boston na mesma época.
Era estranho Niko estar ausente durante a chegada de Rio ao complexo. No entanto, conhecendo o vampiro e seu amor pelo combate, ele provavelmente estava irritado com o fato de sua equipe de patrulha ter sido reduzida algumas horas antes do amanhecer.
Antes que Rio pudesse dizer qualquer coisa a seu velho amigo, a atenção de Nikolai voltou a Lucan.
– O Renegado que encontramos esta noite era jovem, mas a matança que ele tinha deixado para trás parecia ser trabalho de mais de um vampiro. Eu gostaria de retornar lá amanhã e verificar as redondezas. Talvez encontremos mais alguma coisa.
Lucan assentiu:
– Parece uma boa ideia.
Depois de resolver isso, Niko dirigiu sua atenção para Kade e Brock:
– Temos tempo suficiente antes do amanhecer para caçar um pouco. Alguém aí se sentiu com sede de repente?
Os olhos de Kade brilharam como mercúrio.
– Há um lugar em North End que deve ser bem interessante. Lá há um monte de jovens no ponto certo.
– Pode contar comigo – disse Chase com palavras arrastadas, saindo de sua cadeira ao lado de Dante para unir-se aos outros três vampiros não comprometidos conforme eles começavam a caminhar na direção da saída do laboratório.
Por um instante, Rio os observou partir. Entretanto, quando viu Nikolai sair junto aos outros, xingou em voz baixa e, logo depois, correu atrás dele.
– Niko, espere.
O guerreiro seguiu seu caminho, como se não tivesse ouvido nada.
– Espere, cara. Caramba, Nikolai. Que diabos está acontecendo com você?
Quando Chase, Brock e Kade pararam para olhar atrás, Niko acenou para que eles continuassem. Os três seguiram seu caminho, virando no canto do corredor e desaparecendo de vista. Depois de uns poucos segundos, finalmente, Niko deu meia-volta.
O rosto que olhava para Rio no túnel branco era duro e incompreensível.
– Sim. Estou aqui. O que você quer?
Rio não sabia como responder àquilo. A hostilidade saiu da boca de seu velho amigo como um vento frio de inverno.
– Fiz algo que o incomodou?
O som da risada de Nikolai raspava contra as paredes de mármore.
– Vá se ferrar, cara.
Nikolai deu meia-volta e começou a se afastar novamente.
Rio o alcançou em um piscar de olhos. Estava a ponto de agarrar o ombro do guerreiro e obrigá-lo a parar, mas Niko se movimentou com mais agilidade. O vampiro russo virou-se e golpeou Rio, acertando-o no esterno, fazendo-o bater a coluna contra a sólida parede no outro lado do corredor.
– Você quer morrer, seu filho da mãe? – Niko estava com os ombros entreabertos, a cor âmbar acesa como resultado de toda aquela ira. – Se você quer se matar, é problema seu. Só não peça a minha ajuda, está bem?
Os músculos de Rio estavam retesados e prontos para uma briga. Seus instintos de combate se tornaram mais aguçados, apesar de ele estar enfrentando um aliado de longa data. No entanto, enquanto Nikolai falava, a fúria que cresceu em Rio rapidamente se reduziu. De repente, a cólera que Niko sentia contra ele fez sentido. Afinal, Nikolai sabia que Rio tinha ficado naquela montanha da Boêmia com intenções de acabar com a própria vida. Se Niko não tinha se dado conta disso cinco meses atrás, agora ele tinha certeza.
– Você mentiu para mim – esbravejou Niko. – Você me olhou diretamente nos olhos e mentiu para mim, cara. Você nunca ia voltar para a Espanha. O que pretendia fazer com o C-4 que eu dei para você? Você pretendia detonar aquela droga presa ao seu corpo, como se fosse um camicase se divertindo. Ou talvez você só estivesse planejando se prender no interior daquela maldita caverna e ficar lá, esquecido por toda a eternidade. O que você ia fazer, amigo? Como você pretendia acabar com a própria vida?
Rio não respondeu. Não era necessário. De todos os guerreiros da Ordem, Nikolai era o que melhor o conhecia. Nikolai tinha visto Rio como o covarde e fraco que ele realmente era. Só ele sabia o quão próximo Rio tinha estado de dar um fim a tudo – antes mesmo de ele chegar àquela montanha tcheca.
Tinha sido Niko quem se negara a deixar Rio mergulhar no ódio que sentia de si. E, então, evitar que entrasse naquela espiral de negatividade tinha se tornado sua missão pessoal. Niko, que ajudou Rio a subir na montanha nas semanas que se seguiram, caçando para o amigo que estava fraco demais para cuidar dele mesmo. Nikolai, o irmão que Rio nunca tivera.
– Sim – disse Niko, fechando uma carranca. – Como disse. Vá se ferrar.
Ele tirou o braço do peito de Rio e se afastou, ainda rangendo alguns xingamentos. Rio o viu se distanciar. Os sapatos de Niko pareciam mastigar o piso de mármore polido quando ele se apressou para juntar-se aos outros guerreiros que já estavam a caminho do piso superior.
– Que droga! – murmurou Rio, correndo a mão pelos cabelos.
O choque com Nikolai era só mais uma evidência de que ele não devia ter retornado a Boston – mesmo que isso significasse jogar o problema Dylan Alexander nas mãos de outra pessoa. Rio já não se encaixava ali. Agora ele era um estranho, um elo fraco em meio a uma cadeia de aço, formada pelos corajosos guerreiros da Raça.
Ainda agora ele conseguia sentir suas têmporas latejarem por conta da descarga de adrenalina que tinha ocorrido alguns minutos atrás, quando parecia que Niko queria cortá-lo em pedaços. Sua visão começou a tremer enquanto ele estava parado ali. Se não se movesse e encontrasse um local privado para aguentar a crise mental que estava por vir, Rio sabia que seria questão de minutos antes que acordasse caído sobre o mármore que revestia o chão do corredor. E, francamente, ver Lucan e aos outros saírem do laboratório para olhá-lo fixamente como se ele fosse um moribundo era algo que não queria experimentar.
Ele forçou suas pernas a se movimentarem e, com uma dificuldade acentuada, conseguiu encontrar o caminho de volta até seus aposentos. Entrou, cambaleando, e fechou a porta. Em seguida, entregou-se a uma nova sensação de náusea que o invadiu.
– Você está bem?
A voz feminina vinha de algum ponto distante naquele cômodo. A princípio, não a reconheceu. Seu cérebro estava lutando para realizar as tarefas básicas. Aquela voz brilhante e cristalina não parecia pertencer àquele lugar cheio de lembranças antigas e empoeiradas.
Rio se distanciou da porta e se arrastou pela sala, em direção ao quarto. Seu cérebro transmitia a impressão de que se despedaçaria a qualquer momento.
Água quente. Escuridão. Tranquilidade. Ele precisava dessas três coisas. Imediatamente.
Rio tirou a camisa e a deixou cair no ridículo sofá de veludo de Eva. Ele realmente tinha que queimar todos seus pertences. E era uma pena que ele não tinha como jogar aquela maldita traidora na fogueira junto com todo o resto.
Rio se agarrou à sua fúria pela traição de Eva, um leve castigo, mas aquilo era tudo o que tinha no momento. Abriu as portas do quarto e ouviu um leve suspiro vindo lá de dentro.
– Meu Deus! Rio, você está bem?
Dylan.
O nome dela atravessava como um bálsamo a névoa que envolvia a mente de Rio. Ele levantou o olhar na direção de sua convidada indesejada, que agora estava sentada no canto da cama com algo plano e retangular apoiado em seu colo. Ela deixou o objeto de lado, no criado-mudo, e se aproximou antes que os joelhos dele cedessem.
– Banho – ele conseguiu grunhir.
– Você mal consegue parar em pé – Dylan o ajudou a alcançar a cama, onde ele rapidamente deixou o corpo cair. – Parece que você precisa de um médico. Há alguém aqui que possa ajudá-lo?
– Não – ele respondeu com uma voz rouca. – Uma ducha...
Rio estava fraco demais para usar sua habilidade mental da Raça e abrir o registro da água, mas ele não precisou sequer tentar. Dylan já estava se apressando na direção do banheiro ao lado. Ouviu o forte estalar da água batendo contra o chão e, em seguida, os suaves passos de Dylan no carpete enquanto ela retornava para onde estava caído, com o corpo virado na direção dos pés da cama.
Rio percebeu vagamente a desaceleração dos passos da mulher conforme ela se aproximava. Apenas escutou a respiração rápida logo acima de seu corpo. Mas era impossível confundir quem estava ali quando ela soltou, com a respiração trêmula, alguns palavrões. Um silêncio pesado e demorado se seguiu ao xingamento sussurrado. Em seguida:
– Rio... Meu Deus! Por que tipo de inferno você passou?
Lançando mão até mesmo da última gota de força que tinha, ele conseguiu abrir os olhos. Um erro enorme. O horror que ele viu nos olhos de Dylan era inegável. Ela estava olhando o lado esquerdo de seu corpo... O peito e o torso, que tinham sido destruídos por uma granada que quase esfolou seus ossos com as chamas da explosão que por pouco não lhe tirara a vida.
– Ela... – suave voz de Dylan foi se tornando cada vez mais fraca. – Sua esposa tem algo a ver com o que aconteceu com você?
Rio sentiu seu coração parar de bater. O sangue que antes pulsava fortemente em seus ouvidos se transformou em gelo quando ele conseguiu se concentrar na pergunta de Dylan. A preocupação estampava seu rosto.
– Ela fez isso com você, Rio?
Ele seguiu a mão estendida de Dylan enquanto ela alcançava o objeto que tinha deixado no criado-mudo. Era uma fotografia em um porta-retratos. Rio não precisava ver a foto no vidro para saber que era de Eva, de um passeio que eles tinham feito no Charles River certa noite. Eva, sorrindo. Eva, dizendo o quanto o amava. Enquanto, em suas costas, ela conspirava com os inimigos da Ordem para conquistar seus objetivos egoístas.
Rio grunhiu quando pensou em sua própria burrice. Em sua própria cegueira.
– Isso não é da sua conta – murmurou, ainda à deriva da escuridão que tomava conta de sua mente. – Você não sabe nada a respeito dela.
– Foi ela quem me levou até você. Eu a vi na montanha em Jicín.
Uma suspeita irracional transformou a ira de Rio em um sentimento letal.
– Do que você está falando? Como assim, você a viu?
Dylan engoliu em seco e encolheu levemente o ombro. Em seguida, segurou a fotografia diante dele.
– Eu a vi... O espírito dela estava lá. Ela estava na montanha com você.
– Você só pode estar mentindo – ele grunhiu. – E não me fale dessa mulher. Ela está morta, e merecidamente.
– Ela pediu que eu o ajudasse, Rio. Ela me procurou. Queria que eu salvasse você...
– Já disse para você parar de falar dela! – ele esbravejou.
A raiva fez com que o corpo de Rio estremecesse no colchão como uma víbora sendo atacada. Ele puxou o retrato das mãos de Dylan e o atirou pelo quarto com uma velocidade impressionante. O objeto bateu contra o enorme espelho na parede de frente com a cama, quebrando-o com o impacto e lançando cacos de vidro polido como uma chuva de lâminas.
Rio ouviu o grito de Dylan, mas foi somente quando ele sentiu o cheiro adocicado do sangue dela que se deu conta do que tinha feito.
Ela levou a mão até a maçã do rosto e, quando seus dedos se afastaram, estavam manchados de vermelho por conta de um pequeno ferimento logo abaixo do olho esquerdo.
Foi a visão daquela ferida que tirou Rio daquele espiral de depressão. Como um balde de água fria jogada sobre sua cabeça, ver Dylan ferida o puxou instantaneamente de volta para a realidade.
– Ah, Jesus Cristo! – disse ele com dentes apertados. – Eu sinto muito... Sinto muito!
Ele se moveu para tocá-la, para verificar o quanto a tinha ferido, mas ela se afastou com os olhos completamente aterrorizados.
– Dylan... eu não queria...
– Fique longe de mim!
Ele estendeu a mão, buscando demonstrar que realmente não queria feri-la.
– Não – ela estremeceu enquanto sacudia violentamente a cabeça. – Ah, meu Deus. Não me toque!
Madre de Dios.
Ela agora o olhava com um terror absoluto. E tremia. Seus olhos estavam fixos nele, banhados de medo e confusão.
Quando Rio passou a língua pelas pontas de suas presas salientes, ele entendeu a fonte do terror que Dylan sentia. Ele se levantou diante dela. Ela temia porque ele lhe tinha dito ser um vampiro, embora aquela mente humana tivesse se recusado a acreditar.
Agora, todavia, ela acreditava.
Dylan estava vendo a verdade com seus próprios olhos, as mudanças físicas no corpo de um louco cheio de cicatrizes que agora se transformava em uma criatura saída diretamente de seus piores pesadelos. Era impossível esconder as presas que se tornavam mais longas conforme a fome por ela se intensificava. Era impossível mascarar o afinamento daquelas pupilas conforme o brilho âmbar da sede de sangue embaçava sua visão.
Ele olhou para o pequeno corte, para o fio de sangue que escorria tão vermelho contra a pele macia da bochecha de Dylan. E ele mal conseguia formular um pensamento coerente.
– Eu tentei contar para você, Dylan. Isso é o que eu sou.
Capítulo 16
– Vampiro.
Dylan ouviu a palavra escapar por seus lábios, apesar do fato de mal poder acreditar no que estava vendo – ou dizendo.
Em questão de instantes, Rio tinha se transformado diante dos olhos de Dylan e ela olhava chocada as mudanças que acabara de presenciar. As íris dos olhos dele brilhavam como brasas e não tinham mais a cor topázio habitual. Em vez disso, estavam estampadas com uma inacreditável sombra âmbar que praticamente engolia as pupilas extremamente reduzidas. Os ossos da face de Rio pareciam mais duros agora, ostentando as esguias maçãs do rosto e uma mandíbula quadrada que parecia ter sido esculpida em pedra.
E, atrás do suculento e exuberante corte formado por sua boca, Rio exibia um par de presas que pareciam ter saído diretamente de algum filme de Hollywood.
– Você... – A voz de Dylan desapareceu conforme aqueles hipnóticos olhos cor de âmbar a encararam. Ela se sentou delicadamente na beirada da cama. – Meu Deus... Você realmente é um...
– Eu sou da Raça – ele pronunciou calma e articuladamente. – Exatamente como lhe disse.
Dylan estava sentada diante de Rio, e agora sua visão era preenchida completamente pela ampla musculatura do peito nu do vampiro. O intrincado desenho na pele dos antebraços subia pelos ombros de Rio e descia ao longo de seu peitoral. Todas as marcas – dermoglifos, como ele havia chamado da primeira vez em que ela as percebera – eram de uma cor vívida agora, a cor mais escura que Dylan já as tinha visto ostentar. Tramas profundas de cor púrpura e negra saturavam os belos desenhos e as linhas em forma de arcos.
– Não consigo impedir a transformação – ele murmurou, como se tivesse necessidade de dar uma justificativa a Dylan. – A transformação é espontânea nos machos da Raça quando sentimos o cheiro de sangue fresco.
O olhar dele desviou-se ligeiramente dos olhos de Dylan, e logo repousou na bochecha ferida pelos estilhaços do espelho quebrado. A mulher sentia que ainda havia sangue quente deslizando como uma lágrima por seu queixo. Rio assistia àquela gota deslizar com uma intensidade que fazia Dylan estremecer. Ele passou a língua pelos lábios sensuais e engoliu seco, mas manteve seus dentes cerrados o tempo todo.
– Fique aqui – ele ordenou com uma voz forte e autoritária enquanto franzia a testa com intensidade.
O instinto de Dylan lhe dizia que ela devia ser mais inteligente e correr, mas ela se recusava a sentir – ou, melhor dizendo, a demonstrar sentir – medo daquele homem enorme que estava sem camisa em sua frente. Por mais estranho que parecesse, Dylan sentia que tinha realmente conhecido aquele homem nos últimos dias, durante os quais eles foram obrigados a conviver. Rio não era nenhum santo, aquilo era um fato. Ele a tinha raptado, aprisionado e ela ainda não estava certa sobre o que ele queria fazer com ela – Santo Deus! No entanto, ela não acreditava que ele fosse perigoso – não para ela.
O que Dylan acabara de testemunhar ali não era exatamente algo a ser celebrado, mas, em seu coração, ela não sentia medo do que ele era.
Bem, não completamente.
Dylan ouviu quando Rio desligou o registro do chuveiro e saiu, poucos segundos depois, segurando uma toalha branca e umedecida que ele ofereceu para ela.
– Pressione isso contra a ferida. Vai estancar o sangramento.
Dylan tomou a toalha em suas mãos e a pressionou no rosto, exatamente como ele lhe dissera. Ela, porém, não pôde deixar de perceber a longa expiração que ele soltou quando a ferida em sua bochecha fora finalmente coberta, como se agora estivesse aliviado por não precisar mais passar pelo inferno de ter de olhar para aquilo e resistir. A cor ardente dos olhos de Rio começou a escurecer lentamente e as pupilas estreitas reassumiram a forma arredondada. Os dermoglifos, no entanto, ainda estavam avermelhados; as presas, ainda mortalmente afiadas.
– Você realmente é um... não é? – ela murmurou. – Você é um vampiro. Jesus Cristo! Não consigo acreditar que isso seja verdade. Quer dizer, como isso pode ser verdade, Rio?
Ele se sentou ao lado dela na cama. Menos de um metro de distância os separava agora.
– Eu já expliquei isso para você.
– Extraterrestres bebedores de sangue e mulheres humanas com DNA compatível com os deles – disse ela, recordando-se da estranha história sobre a raça híbrida de vampiros que ela tentara encarar como ficção científica. – Tudo isso é verdade?
– A verdade é um pouco mais complicada do que isso, mas sim... Tudo o que eu lhe disse é verdade.
Incrível.
Totalmente incrível.
Uma parte mercenária dela quase gritou de excitação ao pensar na potencial fama e fortuna que a revelação daquela história poderia lhe trazer. Mas havia outra parte de Dylan – a que não tinha se esquecido daquela incomum marca de nascença que ela trazia gravada na parte de trás do pescoço, a parte que ainda se lembrava de que ela tinha, aparentemente, uma forte conexão com aquele mundo – que mostrou instantaneamente seus instintos protetores, como se Rio e o mundo em que ele vivia fossem um delicioso segredo que pertencia exclusivamente a ela.
– Desculpe-me se eu chateei você – ela disse serenamente. – Eu não devia ter bisbilhotado as coisas enquanto você não estava aqui.
A cabeça dele se virou bruscamente e sua testa enrugou-se, levando as sobrancelhas a se unirem. O xingamento que ele murmurou foi forte e palpável.
– Você não precisa me pedir desculpas, Dylan. Fui eu quem errou. Eu nunca deveria ter entrado aqui no estado em que estava. Eu não posso ficar perto de ninguém quando estou daquele jeito.
– Você parece estar um pouco melhor agora.
Ele assentiu, sua cabeça caindo levemente em direção ao peito nu.
– A raiva diminui... no final. Se você não apagar antes, ela em algum momento... passa.
Não fazia muito tempo que Rio aparecera cambaleando no quarto, bastante desatento, com seus pés mal respondendo aos passos dificultosos que ele tentava dar. Ele mal conseguia pensar, seus músculos e ossos estavam embebidos em uma fúria insana.
– O que desperta isso, Rio?
Ele deu de ombros.
– Pequenas coisas, nada em especial. Nunca sei, exatamente.
– Aquele tipo de raiva faz parte do que você é? Todos os homens da Raça têm de passar por esse tipo de tormento?
– Não – disse, soltando o tipo de sorriso de alguém que está zombando de si. – Não. Esse problema é apenas meu. Falta um parafuso na minha cabeça. Eu o perdi no verão passado e nunca mais o encontrei.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan gentilmente. – Foi isso que aconteceu com você?
– Foi um erro – ele respondeu com uma ponta de insegurança na voz. – Eu confiei em alguém em quem não deveria ter confiado.
Dylan olhou para o dano terrível que o corpo de Rio tinha sofrido. O rosto e o pescoço dele carregavam graves cicatrizes, mas seu ombro esquerdo e metade de seu torso musculoso pareciam ter ido e voltado do inferno. Seu coração apertou-se em seu peito quando ela pensou na dor que ele deveria ter suportado, tanto no acontecimento que ferira seu corpo daquela forma, quanto no que provavelmente foram meses e meses de recuperação.
Ele estava ali, sentado naquela cama tão rigidamente, tão solitário e tão inalcançável, apesar de estar a menos de um braço de distância dela. Para Dylan, Rio parecia sozinho. Sozinho e à deriva.
– Sinto muito, Rio – disse ela. E antes que pudesse se interromper, Dylan colocou sua mão sobre a mão dele, que ele agora descansava sobre a coxa. ele estremeceu como se carvão em brasa tivesse sido colocado sobre sua pele. Todavia, não se afastou.
Ele olhou fixamente para os dedos de Dylan que descansavam suavemente sobre os dele, branco pálido sobre um tom bronzeado. Quando olhou para ela, lançou-lhe um olhar rústico e másculo que preenchia seus olhos completamente. Ela se perguntava quanto tempo havia se passado desde a última vez em que ele fora tocado com algum tipo de ternura.
Dylan deslizou seus dedos sobre a mão máscula de Rio, estudando o incrível tamanho e a enorme força que ela tinha. A pele dele era tão quente e havia tanta força concentrada em seu corpo, mesmo quando ele parecia determinado a manter-se perfeitamente parado.
– Sinto muito por tudo o que você enfrentou, Rio. Sinto de verdade.
A mandíbula dele estava tão apertada que fez um músculo de seu rosto se contrair. Dylan colocou de lado a toalha umedecida que ele tinha lhe trazido e mal percebia que todos os seus sentidos estavam concentrados nele e na eletricidade que parecia emanar de suas mãos entrelaçadas.
Ela ouviu um ruído baixo se formar dentro de Rio, algo entre um grunhido e um gemido. O olhar dele deslizou para a boca de Dylan, e, por um segundo – um rápido, um breve segundo que teria durado o tempo de uma batida do coração – ela se perguntou se ele iria beijá-la.
Dylan sabia que devia retroceder. Sabia que devia tirar sua mão de cima da mão dele, colocá-la longe. Sabia que devia fazer alguma coisa – qualquer coisa – que não fosse ficar ali, parada, quase sem respiração enquanto esperava e desejava – desejava desesperadamente, incontrolavelmente – que ele se debruçasse sobre ela e apertasse seus lábios contra os dele.
E, de repente, ela não conseguia mais não tocá-lo. Foi quando estendeu a mão que estava livre e acariciou o rosto de Rio, sentindo um repentino sopro de ar gelado empurrá-la – com a imponência da Grande Muralha da China.
– Não quero sua compaixão – grunhiu Rio com uma voz que ela não reconheceu como sendo dele. O sotaque espanhol estava ali, como sempre, mas as sílabas eram ásperas e o timbre não era exatamente humano, o que imediatamente fez Dylan se lembrar de qual era a natureza daquele ser diante dela. Rio puxou a mão de debaixo da dela e se levantou da cama.
– O corte está sangrando. Você precisa de cuidados que não posso lhe oferecer.
– Tenho certeza de que não é nada grave – respondeu Dylan, sentindo-se uma idiota por se colocar em uma situação como aquela com ele. Depois, pegou novamente a toalha que descartara momentos antes e a pressionou outra vez contra o ferimento. – Não é nada. Vou ficar bem.
Não havia sentido algum em Dylan falar qualquer coisa que fosse, já que Rio não a ouviria, de qualquer forma. Ela o viu caminhar até a sala da frente, passando pelo espelho quebrado, e pegar um telefone sem fio, no qual imediatamente teclou uma sequência curta de números.
– Dante? Olá. Não, nenhum problema. Mas eu, é... Tess está por aí? Preciso que ela me faça um favor.
Rio parecia um animal enjaulado, andando de um lado para o outro durante os poucos minutos que se passaram até a ajuda chegar. Ele ficou do lado de fora do quarto, confinado a um espaço minúsculo perto da entrada principal. Ficou tão distante de Dylan quanto poderia ficar sem de fato ter de sair daquele maldito quarto e esperar do lado de fora.
Madre de Dios.
Ele quase lhe beijara.
E ele queria tê-la beijado. E admitir aquilo – mesmo que apenas para si – era como levar um soco no estômago. Beijar Dylan Alexander era uma maneira garantida de transformar uma situação que já era bastante ruim em algo que seria, de fato, catastrófico. Isso porque Rio sabia sem qualquer sombra de dúvida que, se beijasse aquela bela e ardente mulher, ele não conseguiria se conter, não conseguiria, de forma alguma, parar no beijo. Não, mesmo.
O simples pensamento da sensação que seria a de pressionar seus lábios contra os dela já fazia o sangue de Rio ferver e correr acelerado em suas veias. Seus dermoglifos pulsavam com as cores de seu desejo – agitando-se em tons de vermelho-escuro e negros. E também era impossível negar a outra evidência daquele desejo: seu pênis estava tão duro quanto granito, e estava daquele jeito desde o instante em que Dylan, inesperadamente, inadvertidamente, pousara a mão sobre sua coxa.
Jesus Cristo!
Ele sequer se atrevia a olhar para dentro do quarto, com medo de não ser capaz de impedir seus pés de marcharem de volta pelas portas fechadas e levarem-no diretamente para os braços de Dylan.
“Como ela provavelmente desejava” – ele pensou ardentemente.
Aquela carícia que Dylan fizera em sua mão tinha sido um gesto delicado, doce, do tipo que uma mãe faz em uma criança. Ou, pior do que isso, aquele gesto poderia ter sido um gesto de compaixão de um anjo caridoso que consola uma das criaturas mais infelizes criadas por Deus.
Maldecido.
Manos del diablo.
Monstruo.
Sim, Rio era todas essas coisas. E agora Dylan tinha visto como ele era realmente feio. Para seu crédito, ela não tinha recuado ao ver toda aquela carne retorcida e aquelas presas – o que queria dizer então que ela era muito mais forte do que aquilo tudo. Mas acreditar que ela poderia receber, poderia desejar seu toque? Que ela poderia aproximar-se o suficiente de seu rosto arruinado e permitir que ele a beijasse?
Jamais! E ele agradeceu a Deus por aquilo, pois aquilo lhe tinha poupado de ver a repugnância dela. Aquilo lhe tinha poupado de fazer algo realmente idiota, como se esquecer – ainda que por um segundo apenas – de que ela estava ali, no complexo – ali, em seu quarto – somente até que ele corrigisse o erro que cometera ao permitir que ela se aproximasse daquela maldita caverna em Jicín. Quanto mais rápido ele conseguisse fazer aquilo – consertar aquele erro – e mandar Dylan para casa, melhor.
Um golpe seco ecoou contra a porta.
Rio atendeu, com um grunhido de frustração.
– Você soava péssimo ao telefone, então decidi vir com Tess e ver com meus próprios olhos. – A boca de Dante curvou-se em um sorriso arrogante que só ele sabia dar enquanto seu corpo enorme permanecia parado na soleira da porta ao lado de sua bela Companheira de Raça. – E então, você não vai nos deixar entrar, cara?
– Claro.
Rio deu um passo para o lado, abrindo espaço para o casal entrar.
A companheira de Dante parecia ainda mais bela sob a luz daquele quarto. As longas ondas cor de mel de seus cabelos estavam presas em um rabo de cavalo frouxo e seus inquiridores olhos verde-mar eram suaves, mesmo quando encaravam Rio.
– É bom vê-lo novamente, Rio – disse ela, e, sem hesitação, deu um passo adiante e ficou na ponta dos dedos dos pés para dar um abraço rápido no guerreiro e beijar-lhe levemente a bochecha. – Dante e eu ficamos tão preocupados com você durante esses meses todos...
– Não precisava – respondeu Rio, embora não pudesse negar que aquela preocupação o deixava, de certa forma, feliz.
Tess e Dante estavam juntos desde o final do último outono. Ela tinha entrado para a Ordem com um extraordinário dom de curar e restaurar a vida com o simples toque de suas mãos macias. O toque de Tess tinha um poder inimaginável, mas nem mesmo ela fora capaz de consertar todos os danos que Rio tinha sofrido. Ele já estava muito longe quando ela chegou ao complexo, e as cicatrizes dele – tanto as interiores quanto as exteriores – eram permanentes, embora não fosse por falta de tentativas de Tess.
Dante passou o braço musculoso em volta de sua Companheira de Raça em um movimento que era protetor e respeitoso ao mesmo tempo. E foi então que Rio notou a leve protuberância no ventre dela. Tess percebeu o olhar de Rio e abriu um sorriso tão imaculado quanto o da própria Madonna de Botticelli.
– Estou nos primeiros três meses – ela disse, virando-se toda sorridente para Dante. – Alguém está usando isso como desculpa para me mimar.
Dante sorriu.
– Eu? Por favor...
– Felicidades – murmurou Rio, sinceramente sentindo os votos que desejava.
Não era comum guerreiros e Companheiras de Raça começarem uma família dentro da Ordem. Aliás, praticamente não se ouvia falar daquilo. Os homens da Raça que dedicavam suas vidas à luta contra os Renegados não eram tipos muito familiares, por assim dizer. Mas acontece que Dante nunca fora como esses guerreiros, então...
– Onde está Dylan? – perguntou Tess.
Rio gesticulou, apontando para as portas que estavam fechadas.
– Eu fui um idiota com ela. Tive uma crise e... Droga! Acabei quebrando o espelho. Um dos estilhaços acabou atingindo o rosto dela.
– Você ainda está tendo apagões? – perguntou novamente Tess, franzindo a testa. – As dores de cabeça ainda não passaram?
Rio recuou, obviamente não querendo falar sobre seus próprios problemas.
– Eu estou bem. – Foi tudo o que ele disse. – Apenas cuide dela, certo?
– Eu cuidarei. – Tess pegou uma pequena maleta médica das mãos de Dante, sob o olhar interrogativo de Rio, e completou:
– Desde que eu engravidei, minhas habilidades diminuíram. Eu entendo que, na gravidez, é normal a energia da Companheira de Raça se voltar para dentro do próprio corpo. As coisas vão voltar ao normal quando o bebê nascer. Até lá, terei de me apoiar na boa e velha medicina tradicional.
Rio lançou um olhar sobre seus ombros para dentro do quarto. Ele não conseguia ver Dylan, mas imaginou que ela estava lá dentro, precisando ver alguém gentil e carinhoso. Alguém que pudesse melhorar seu humor e conversar com ela como uma pessoa normal; alguém que pudesse tranquilizá-la, dizer-lhe que ela estava segura, que estava entre pessoas em quem ela podia confiar. Especialmente depois da espetacular demonstração de raiva psicótica e desregrada que ele, Rio, tinha feito para ela.
– Está tudo bem – disse Tess. – Não se preocupe, vou cuidar dela.
Com o punho fechado, Dante golpeou levemente o bíceps bem definido de Rio.
– Venha – disse –, vamos dar o fora daqui. Ainda falta uma hora para o amanhecer. E parece que você está precisando tomar um pouco de ar fresco, cara.
Capítulo 17
Dylan estava agachada perto do pé da cama, recolhendo cacos de vidro, quando as portas se abriram suavemente, abrindo caminho para o dormitório.
– Dylan?
Aquela era uma voz feminina. A mesma que, havia um minuto, ela tinha ouvido conversar baixinho com Rio e outro homem. Dylan olhou para cima e sentiu o calor instantâneo de um olhar brilhante que estava logo acima dela.
A mulher, jovem e bela, sorriu.
– Olá. Meu nome é Tess.
– Olá.
Dylan deixou um caco de vidro de lado e inclinou o corpo para recolher outro.
– Rio me pediu para vir ver se você estava bem.
Tess trazia consigo uma bolsa de couro preta quando entrou nos aposentos.
– Você está bem? – insistiu.
Dylan assentiu.
– É só um arranhão.
– Rio está se sentindo péssimo por causa disso. Ele anda passando por... problemas. Já faz algum tempo. Desde a explosão do armazém no verão passado. Ele tem sorte de estar vivo.
Meu Deus! Então isso explicava as queimaduras e as cicatrizes. Uma explosão havia feito aquilo? Quer dizer então que Rio realmente tinha feito uma viagem de ida e volta para o inferno, como Dylan havia suposto.
Tess continuou:
– Por causa do trauma cerebral causado pela explosão, ele tem blecautes de tempos em tempos. Além disso, Rio também tem fortes dores de cabeça, mudanças de humor... Bem, acredito que você deve ter visto com seus próprios olhos. Não é coisa para brincadeira. Mas ele não quis feri-la, disso eu tenho certeza.
– Estou bem – insistiu Dylan, sem se preocupar com o arranhão em sua bochecha. – Tentei dizer para ele que isto aqui não era nada. O corte nem está sangrando mais.
– É um alívio – disse Tess enquanto colocava a bolsa médica sob a escrivaninha. – Fico contente de saber que não é tão grave quanto Rio temia. Da forma como ele descreveu pelo telefone, pensei que teríamos que dar pelo menos meia dúzia de pontos. Mas pelo que vejo, um pouco de antisséptico e um curativo serão suficientes – Tess caminhou por onde Dylan recolhia os pedaços do espelho despedaçado. – Venha, deixe-me ajudá-la.
Quando Tess se aproximou, Dylan se deu conta de que a palma da mão de Tess estava apoiada sobre a curva na barriga. Ela estava grávida. E não foi apenas pela aparência física que Dylan percebeu, mas pelo fato de aquela mulher resplandecer com um brilho interior que não deixava dúvida alguma.
Além disso – e, talvez ainda mais estranho –, na mão que repousava sobre as primeiras fases de um bebê em desenvolvimento, havia uma pequena marca de nascença. Dylan não pôde deixar de olhar fixamente para a lágrima escarlate e a meia-lua na mão direita daquela mulher – a mesma marca com a qual ela tinha nascido, aquela que trazia no pescoço.
– Você vive aqui? – perguntou Dylan. – Com... eles?
Tess assentiu.
– Vivo com Dante. Ele é um guerreiro da Ordem, como Rio e os outros que vivem aqui no complexo.
Dylan acenou na direção da pequena marca de nascimento entre o polegar e o indicador de Tess:
– Você é a... Companheira de Raça dele? – perguntou, recordando o termo que Rio tinha usado depois de perceber que Dylan tinha uma marca idêntica àquela. – Você se casou com um deles?
– Dante e eu procriamos no ano passado – explicou Tess. – Fomos unidos por nosso sangue, o que nos liga de uma forma muito mais profunda do que o casamento. Imagino que Rio já tenha lhe dito algumas coisas sobre a Raça... Como eles vivem, de onde vêm. Depois do que aconteceu, estou segura de que você não tem dúvidas do que eles são.
Dylan assentiu, ainda sem acreditar que tudo aquilo poderia ser realmente verdade.
– Vampiros.
Tess sorriu gentilmente.
– Isso foi o que eu pensei a princípio. Porém, defini-los não é algo tão simples assim. A Raça é um pouco complicada. Eles vivem em um mundo complexo e cheio de inimigos. As coisas podem ser muito perigosas para eles e para quem os ama. Para os poucos homens que se comprometeram com a Ordem, cada noite é um risco para suas vidas.
– Foi um acidente? – perguntou Dylan com um tom que deixava transparecer seu espanto. – A explosão que feriu Rio... foi algum acidente terrível?
Uma expressão de dor tomou conta do rosto de Tess. Ela estudou Dylan por um momento, como se não estivesse segura do quanto poderia contar. No entanto, ela logo sacudiu ligeiramente a cabeça.
– Não. Não foi um acidente. Alguém próximo de Rio o traiu. A explosão aconteceu durante uma investida em um velho armazém da cidade. Rio e os demais membros da Ordem se viram em uma emboscada.
Dylan olhou para baixo e se deu conta de que estava observando o porta-retratos que Rio tinha jogado pelo quarto durante seu ataque de raiva. Cuidadosamente o recolheu. Tirou a teia de aranha de cima do vidro quebrado sobre a imagem e observou os exóticos olhos escuros e o sorriso triste e distante.
– Eva – confirmou Tess. – Ela era a Companheira de Raça de Rio.
– Mas ela o traiu?
– Sim – Tess respondeu depois de uma longa pausa. – Eva fez um acordo com um dos inimigos da Ordem, com um poderoso vampiro que também era o irmão do líder da Ordem, Lucan. Para que este vampiro obtivesse informação que o ajudasse a matar Lucan, algo que Eva queria tanto quanto o inimigo, ela pediu duas coisas: que Rio sobrevivesse e que fosse ferido o suficiente para nunca mais conseguir lutar.
– Meu Deus! – ofegou Dylan. – E ela conseguiu o que queria?
– Não exatamente. A Ordem caiu em uma emboscada, apoiada nas informações que Eva entregou, mas o vampiro com o qual ela negociou não tinha a menor intenção de manter sua parte do acordo. Ele colocou uma bomba no local. A explosão poderia ter matado a todos, mas, ironicamente, Rio foi o mais atingido. E posteriormente ele veio a descobrir que Eva tinha sido a responsável por tudo aquilo.
Dylan não conseguia falar. Ela tentava absorver o peso que tudo aquilo deveria ter para Rio. Não apenas a dor física causada por aquelas lesões, mas também a dor emocional da traição sofrida por ele.
– Eu a vi. – Dylan olhou para Tess e viu a testa da mulher franzir. A confusão se tornava evidente naquele olhar carregado de interrogações. Dylan conhecia Tess há poucos minutos e não estava acostumada a falar sobre si com ninguém, em especial falar de seu segredo, de seu dom, daquilo que a tornava tão diferente dos outros humanos. No entanto, havia algo nos olhos cheios de cuidado de Tess que levava Dylan a confiar que estava segura. Ela tinha sentido uma afinidade instantânea que a fez saber que estava com uma amiga.
– Os mortos aparecem para mim de vez em quando. Bem, mulheres mortas, melhor dizendo. Eva apareceu para mim alguns dias atrás, quando eu estava viajando com algumas pessoas pelos arredores de Praga.
– Ela... apareceu para você...? – perguntou Tess com cautela. – O que você quer dizer com isso?
– Eu vi o espírito dela, por assim se dizer. Ela me guiou até uma caverna oculta. Eu não sabia, mas Rio estava lá dentro. Ela... Eva me levou até lá e me pediu que o salvasse.
– Meu Deus! – Tess acenou lentamente com a cabeça. – Ele sabe?
Dylan olhou significativamente para a destruição ainda sob seus pés.
– Sim, Rio sabe. Quando eu contei para ele, ele ficou louco.
O olhar de Tess transformou-se quase em um pedido de desculpa.
– Ele tem muita raiva de tudo que seja relacionado à Eva.
– É compreensível – respondeu Dylan. – Ele está bem, Tess? Quer dizer, considerando o que viveu, Rio vai ficar... bem?
– É o que eu espero. É o que todos nós esperamos. – Tess inclinou a cabeça ligeiramente, estudando Dylan. – Você não tem medo dele?
Não, Dylan não o temia. Tinha curiosidade de saber mais sobre Rio, e incerteza com relação às intenções dele quanto a ela. Mas não tinha medo. Embora isso parecesse loucura, mesmo depois de vê-lo tendo aquela reação naquele mesmo cômodo, Dylan não o temia. Aliás, pensar em Rio provocava muitas coisas nela, mas nenhuma delas era medo. Não mesmo.
– Você acha que eu deveria temê-lo? – perguntou.
– Não, claro que não – disse Tess sem vacilar. – Quer dizer, as coisas não devem estar sendo fáceis para você. Deus sabe que não aceitei muito bem no início, quando ouvi pela primeira vez toda essa coisa de sangue, presas e guerra.
Dylan encolheu o ombro.
– Eu escrevo para uma publicação que é quase um tabloide. Acredite, já escutei muitas coisas bizarras. Não me assusto com facilidade.
Tess sorriu, mas não manteve o olhar cruzado com o de Dylan por muito tempo. As palavras que ela não disse estavam claras naqueles olhos que a evitavam: aquilo não era apenas uma história bizarra de um tabloide. Aquilo era a realidade.
– O que havia naquela caverna, Tess? Parecia ser algum tipo de cripta, uma “câmara de hibernação”, como escutei Rio chamá-la. Mas que diabos era aquilo? Há algo perdido naquela montanha?
Tess levantou o olhar, mas só negou levemente com a cabeça.
– Na verdade, eu não acho que você queira saber.
– Sim, eu quero – insistiu Dylan. – Independentemente do que for, é importante o suficiente para que Rio sentisse a necessidade de me sequestrar e me trancafiar para que não dissesse nada do que vi.
O silêncio de Tess fez o estômago de Dylan formar um nó de medo. A Companheira de Raça sabia o que havia na caverna, e aquilo parecia aterrorizá-la. O que, é claro, apenas aumentou a curiosidade de Dylan.
– Tess, havia algo dormindo naquela tumba oculta. E, pelo aspecto, eu diria que esse algo estava escondido ali há muito tempo. Que tipo de criatura era ou é aquilo?
Tess se levantou e jogou alguns cacos de vidro no cesto de papéis ao lado da mesa.
– Deixe-me ver seu corte. Temos de limpá-lo. Depois faremos um curativo para evitar que você fique com uma cicatriz.
Confinado dentro da cela de raios ultravioleta, o Antigo jogou a cabeça para trás e soltou um rugido infernal. Sangue gotejava por suas enormes presas e seu peito, enorme e nu, ostentava a cor pulsante de seus dermoglifos.
– Apertem essas malditas correntes – gritou o cuidador, falando com seus subordinados por meio de um alto-falante na sala de observação fora da cela. – E, por Deus, arrumem toda essa bagunça aí dentro.
As algemas cibernéticas serpentearam e seguraram fortemente as pernas e os braços grossos do Antigo. Com um comando programado, ajustaram-se. A criatura tentou se libertar, mas não chegaria a lugar algum. Feriu-se futilmente: cortou seus próprios lábios e berrou de novo. O urro era pura fúria enquanto o imenso corpo era dominado por titânio e aço.
Ele ainda estava com o pênis ereto por conta do cruzamento que tinha dado tão violentamente errado. Ainda estava sedento pelo sangue e pelo corpo sem vida da mulher que naquele momento era apressadamente retirada da jaula.
A Companheira de Raça tinha sido atacada. Unhas e presas fortes tinham marcado irreversivelmente – mortalmente – seu corpo. E, antes que o Antigo pudesse ser afastado, ela já estava morta. Ela não era a primeira; tampouco seria a última (não estava perto de sê-lo, aliás). Ao longo das cinco décadas em que o Antigo tinha sido despertado de sua hibernação e posto sob o controle de seu guardião, alimentá-lo – e fazê-lo procriar – tinha se mostrado uma tarefa custosa e frustrante.
Apesar de toda aquela tecnologia e de todo aquele dinheiro disponível, não havia ciência alguma que pudesse substituir o tipo de acasalamento que havia ocorrido na cela do prisioneiro alguns momentos atrás. Carne com carne, esse era o único meio de concepção para o Antigo. E também para os demais membros da Raça. Mas o sexo era apenas uma parte do processo. Era necessária a ejaculação, com um intercâmbio de sangue no exato momento, para que a vida de um vampiro se desenvolvesse no corpo de uma Companheira de Raça.
Normalmente, os casais que desejavam conceber se deleitavam em um ato deliberado e sensual de criar uma vida. Neste caso, não. Aqui embaixo, com a selvagem criatura alienígena levada à loucura por conta da fome, da dor e do confinamento, a concepção era um jogo de vida e morte. Baixas, como a de hoje, eram parte da equação. Mortes deviam ser esperadas.
Mas êxitos haviam sido alcançados. E isso fazia os riscos valerem a pena. Para cada Companheira de Raça morta no processo, duas outras tinham saído vivas... E com as sementes de uma nova geração plantada em seus úteros.
O cuidador do Antigo sorriu secretamente, apesar da perda do dia.
Aquela nova geração poderosa já estava florescendo, a maioria em segredo.
E a obediência daqueles novos seres pertencia inteiramente a ele.