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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Midnight Breed
Midnight Breed

                                                                                                                                               

  

 

 

 

 

 

 

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

CONTINUA

Capítulo 14

Lex e Edgar Fabien permaneceram de pé diante da janela da casa principal observando os Agentes da Lei deslizarem o corpo do guerreiro para a parte traseira de uma caminhonete preta sem placas.

- Quanto tempo vai durar o efeito dos sedativos? - perguntou Lex, decepcionado ao saber que a arma com que Fabien tinha ordenado abrir fogo sobre Nikolai continha dardos tranquilizantes no lugar de balas.

- Não espero que o prisioneiro desperte até que esteja na prisão de Terrabonne.

Lex olhou o líder do Refúgio.

- Uma prisão? Pensei que esses lugares eram usados para processar e reabilitar viciados em sangue, um tipo de lugar para depositar vampiros Renegados.

O sorriso de Fabien era tenso.

- Não há necessidade de você se envolver com os detalhes, Alexei. Fez bem em me avisar sobre o guerreiro. Obviamente, um indivíduo tão perigoso como ele merece um tratamento especial. Vou me certificar pessoalmente de que ele seja tratado da maneira adequada. Estou seguro de que você tem coisas suficientes para pensar neste momento trágico de perda.

Lex grunhiu.

- Ainda há um assunto de nosso... interesse.

- Sim - respondeu Fabien, deixando que a palavra saísse lentamente entre seus magros lábios. – Você me surpreendeu, Alexei, devo admitir. Gostaria de apresentá-lo para algumas pessoas. Pessoas muito importantes. Naturalmente, isso tudo irá exigir a mais completa discrição.

- Sim, é obvio – disse Lex, sem mal poder conter o entusiasmo e a cobiça por saber mais, por saber tudo o que tinha que saber, ali mesmo. - A quem preciso conhecer? Posso estar em sua casa na primeira hora amanhã à noite...

A risada condescendente de Fabien foi irritante.

- Não, não. Estou falando de algo tão público quanto o que acabou de acontecer aqui. Algo que exigirá uma reunião especial. Uma reunião secreta, com alguns de meus sócios. Nossos sócios – corrigiu-se, com um olhar conspiratório.

Uma audiência privada com Edgar Fabien e seus sócios. Lex estava praticamente salivando somente com a ideia daquilo.

- Onde? E quando?

- Dentro de três noites. Enviarei meu carro para apanhá-lo e o levarei para o lugar como meu convidado pessoal.

- Mal posso esperar - disse Lex.

Ele ofereceu a mão ao macho do Refúgio – seu poderoso e novo aliado -, mas o olhar de Fabien se desviou do ombro de Lex para a janela quebrada da grande sala do prédio. Aqueles ardilosos olhos estreitaram-se e a cabeça de Fabien moveu-se para os lados.

- Tem uma garota aqui? - perguntou, com algo sombrio brilhando em seu olhar avarento.

Lex girou, bem a tempo de ver Mira tentando colocar-se fora do alcance de sua visão, com seu curto véu negro agitando-se com o rápido movimento.

- A pirralha servia a meu pai. Ou pelo menos era isso que ele gostava de pensar - disse desdenhosamente. - Ignore-a. Não é nada.

As pálidas sobrancelhas de Fabien elevaram-se ligeiramente.

- Ela é uma Companheira de Raça?

- Sim - disse Lex. - Uma órfã que meu pai recolheu há alguns meses.

Fabien fez um ruído no fundo da garganta, algo entre um grunhido e um pigarro.

- Qual é o talento da garota?

Agora era Fabien quem parecia incapaz de ocultar seu ávido interesse. Estava ainda olhando a janela aberta, estirando seu pescoço e procurando como se Mira fosse aparecer ali de novo.

Lex considerou esse olhar entusiasta por um momento, então disse:

- Você gostaria de ver o que ela pode fazer?

O olhar brilhante de Fabien foi uma resposta suficiente. Lex liderou o caminho de volta à casa principal e encontrou Mira arrastando-se pelo corredor até seu dormitório. Subiu e agarrou-a pelo braço, empurrando-a para que ficasse com o rosto diante do líder do Refúgio. Ela choramingou um pouco por seu áspero tratamento, mas Lex ignorou suas queixas. Tirou-lhe o véu do rosto e empurrou-a para a frente de Edgar Fabien.

- Abra os olhos - ordenou ele. Quando ela não obedeceu imediatamente, Lex a persuadiu com um golpe em sua pequena nuca loira. - Abra, Mira.

Soube que ela o fez porque no momento seguinte, a expressão de Edgar Fabien passou de uma curiosidade moderada a uma de maravilha e surpresa. Ficou paralisado, com a mandíbula frouxa.

Então, sorriu. Um amplo e atemorizante sorriso.

- Meu Deus - respirou ele, incapaz de afastar seu olhar dos olhos enfeitiçados de Mira.

- O que está vendo? - perguntou Lex.

Fabien levou um tempo antes de responder.

- É isso... pode ser possível que esteja vendo meu futuro? Meu destino?

Lex afastou Mira para longe dele e Fabien manteve os olhos na garota, como se ainda não estivesse preparado para soltá-la.

- Os olhos de Mira de fato refletem fatos futuros - disse, colocando o curto véu de novo sobre a cabeça dela. - Ela é uma menina notável.

- Há um minuto disse que ela era ninguém - recordou Fabien. Os olhos estreitos e calculistas viajaram sobre a garota. - O que estaria disposto a aceitar por ela?

Lex viu a cabeça de Mira girar em sua direção, mas sua atenção estava fixa solidamente na transação rapidamente oferecida.

- Dois milhões - disse, soltando a cifra de forma casual, como se fosse um valor corriqueiro. - Dois milhões de dólares e ela é sua.

- Feito - disse Fabien. – Telefone para minha secretária e passe-lhe o número de sua conta bancária e a soma será depositada em uma hora.

Mira esticou-se e agarrou o braço de Lex.

- Mas não quero ir a lugar algum com ele. Não quero deixar a Rê.

- Acalme-se, acalme-se, agora, coração - disse Fabien, passando a palma pela parte alta de sua cabeça. - Vá dormir, menina. Sem barulho. Durma agora.

Mira caiu para trás, presa no transe do vampiro. Fabien pegou-a entre seus braços e embalou-a como um bebê.

- Um prazer fazer negócios com você, Alexei.

Lex assentiu.

- O mesmo digo eu - respondeu, seguindo o líder do Refúgio para fora da casa e esperando enquanto ele e a garota desapareciam em um sedan escuro que estava parado no caminho.

Enquanto a frota de carros virava, Lex considerou o giro surpreendente dos fatos da tarde. Seu pai estava morto, ele estava livre da culpa e preparado para tomar o controle de tudo que tinha merecido durante tanto tempo. Logo, faria parte do seleto círculo de poder de Edgar Fabien e, repentinamente, estava dois milhões de dólares mais rico.

Não estava mal para uma noite de trabalho.

Renata girou a cabeça no travesseiro e abriu um olho, uma pequena prova para ver se a repercussão tinha passado finalmente. Seu crânio parecia ter sido esvaziado e recheado de algodão úmido, mas havia, de fato, uma melhora da agonia que tinha sido sua companheira durante as últimas horas.

Uma pequena espetada de luz diurna brilhou através de um pequeno buraco na portinha de pinheiro. Era manhã. Fora de seu quarto, a casa estava tranquila. Tão tranquila que durante um segundo Renata se perguntou se acabava de despertar de um horrível pesadelo.

Mas em seu coração, sabia que tudo era real. Sergei Yakut estava morto, assassinado em um motim sangrento em sua própria cama. Todas as grotescas imagens embebidas de sangue dançavam na mente de Renata. E o mais inquietante de tudo era o fato de Nikolai ter sido acusado e detido pelo assassinato.

O arrependimento corroía a consciência de Renata. Com o benefício de uma cabeça clara e estando algumas horas longe do sangue e do caos do momento, ela tinha de se perguntar se havia sido muito precipitada ao duvidar dele. Possivelmente, todos tinham sido muito precipitados em condená-lo. Lex em particular. A suspeita de que Lex poderia ter tido algo a ver com a morte de seu pai - como Nikolai tinha insistido - criou um nó de mal-estar no estômago de Renata.

E, então, havia a pobre Mira, muito jovem para ser exposta a tanta violência e perigo. Uma parte mercenária dela se perguntava se ambas estariam melhores agora. A morte de Yakut tinha libertado Renata de seu controle sobre ela. Mira também estava livre. Possivelmente essa era a oportunidade que ambas precisavam - uma oportunidade de fugir daquele lugar e de seus horrores.

Ah, Deus. Será que ela podia se atrever a desejar isso?

Renata sentou-se, pendurando suas pernas sobre o lado da cama. A esperança aumentando em seu peito a mantinha flutuando.

Elas podiam partir. Sem Yakut para as seguir, sem ele vivo e capaz de usar sua conexão de sangue, ela estava finalmente livre. Podia pegar Mira e deixar aquele lugar de uma vez por todas.

- Maria Mãe de Deus! – ela suspirou, juntando as mãos em uma oração desesperada. - Por favor, nos dê essa oportunidade. Permita-nos ter essa oportunidade. Pelo destino dessa menina inocente.

Renata inclinou-se perto da parede que dividia com o dormitório de Mira. Ela golpeou os dedos ligeiramente sobre os painéis de madeira, esperando ouvir o golpe de resposta da garota.

Silêncio apenas.

Golpeou de novo.

- Mira, está acordada? Mira?

Não houve resposta. Apenas um longo silêncio, como uma sentença de morte.

Renata ainda usava as roupas da noite anterior - uma camiseta preta de manga larga, amassada pela noite de sono, e jeans escuros. Ela calçou um par de botas de cano alto e jogou-se para o corredor. A porta de Mira estava a apenas alguns passos... e permanecia entreaberta.

- Mira? - ela chamou, enquanto entrava e lançava um rápido olhar ao redor.

A cama estava desfeita e enrugada onde a menina tinha estado durante a noite, mas não havia sinal dela. Renata girou e correu para o banheiro que compartilhavam no outro lado do corredor.

- Mira? Está aí dentro, ratinha? - ela abriu a porta e encontrou o pequeno espaço vazio.

Para onde poderia ter ido? Renata olhou ao redor e dirigiu-se de novo pelo corredor de painéis rumo à janela do edifício, um terrível pânico começando a apoderar-se de sua garganta.

- Mira!

Lex e um par de guardas estavam sentados ao redor da mesa na grande sala enquanto Renata corria pelo corredor. Ele dirigiu um breve olhar para a mulher e continuou falando com os outros homens.

- Onde está ela? - exigiu Renata. - O que você fez com Mira? Juro por Deus, Lex, que se a machucou...

Ele lançou-lhe um olhar mordaz.

- Onde esta seu respeito, fêmea? Acabo de deixar o corpo de meu pai no sol. Este é um dia de luto. Não ouvirei suas palavras até que eu esteja bem e preparado para isso.

- Para o inferno você e o seu falso luto! - explodiu Renata, virando-se contra ele. Era quase impossível evitar que o golpeasse com uma rajada do poder de sua mente, mas os dois guardas que se levantaram de cada lado de Lex, dirigindo suas armas contra ela, ajudaram-na a controlar a ira.

- Diga o que fez, Lex. Onde ela está?

- Eu a vendi - a resposta foi tão casual que era como se Lex estivesse falando de um par de sapatos velhos.

- Você... você fez o quê? - os pulmões de Renata se retorceram, perdendo tanto ar que ela mal pôde respirar novamente. - Não pode estar falando sério! Vendeu para quem? Para aqueles homens que vieram buscar Nikolai?

Lex sorriu, dando um vago encolhimento de ombros em forma de concordância.

- Bastardo! Porco asqueroso!

A terrível realidade do que Lex tinha feito a golpeou. Não apenas o que havia feito a Mira, mas também a seu próprio pai. E Renata agora via com atroz claridade o que Lex havia feito a Nikolai.

- Meu Deus! Tudo o que o guerreiro disse sobre você era verdade, não é? Você foi responsável pela morte de Sergei, não Nikolai. Foi você quem trouxe o Renegado. Você planejou tudo.

- Tome cuidado com suas acusações, fêmea - a voz de Lex era um grunhido quebradiço. - Sou o único no comando agora. Não cometa erros, sua vida me pertence. Tente algo contra mim e posso acabar com sua existência tão rápido quanto enviei aquele guerreiro para a morte.

Ah, Deus... não. O choque percorreu-lhe o peito em uma dor aguda.

- Ele está morto?

- Estará em breve - disse Lex. - Ou desejará estar, já que os bons médicos em Terrabonne são famosos por gostarem de... diversão.

- Do que você está falando? Que médicos? Pensei que o tinham prendido.

Lex riu.

- O guerreiro está a caminho de um cárcere dirigido pela Agência. Estou seguro em dizer que ninguém ouvirá falar dele novamente.

O desprezo fervia dentro de Renata por tudo o que ela estava ouvindo e por sua própria atuação ao ter erroneamente acusado Nikolai. Agora tanto ele quanto Mira haviam partido, e Lex permanecia ali, sorrindo com petulante vaidade pelo plano que tinha orquestrado.

- Tenho nojo de você. Você não passa de um maldito monstro, Lex. Um covarde asqueroso.

Ela deu um passo em direção a ele, mas Lex acionou os guardas com um movimento de queixo e eles logo a bloquearam, dois enormes e ameaçadores vampiros que a obrigaram a recuar.

Renata olhou para eles, observando em seus duros olhares os anos de animosidade que eles sentiam por ela – animosidade que brilhava mais intensamente nos olhos de Lex. Odiavam-na. Odiavam sua força e estava claro que qualquer um deles adoraria ter a oportunidade de enfiar uma bala na cabeça dela.

- Tirem-na da minha frente - ordenou Lex. - Levem essa vadia para o quarto e tranquem-na durante o resto do dia. Ela poderá nos divertir durante a noite.

Renata não deixou que os guardas pusessem um dedo sobre ela. Enquanto se moviam para agarrá-la, ela os empurrou com um agudo golpe mental. Eles gritaram e saltaram longe, retrocedendo de dor.

Mas antes que caíssem, Lex surgiu sobre ela, completamente transformado e cuspindo fúria. Duros dedos curvaram-se sobre os ombros de Renata. Um pesado corpo jogou a mulher para trás. Ele estava furioso, empurrando-a como se ela não fosse nada além de um monte de plumas. A força e a velocidade do homem atiraram-na pelo chão e para a janela na parede oposta.

Madeira sólida e imóvel golpeou sua espinha dorsal e coxas. A cabeça de Renata bateu contra as grossas lâminas de madeira com o impacto. Sua respiração soltou um suspiro quebrado. Quando abriu os olhos, o rosto de Lex surgiu contra o seu, as finas pupilas girando ferozes na íris âmbar. Ele levantou uma mão e agarrou a mandíbula dela, forçando-lhe a cabeça para um lado. As presas eram enormes, afiadas como adagas, e estavam perigosamente próximas da garganta nua de Renata.

- O que você fez foi uma coisa muito estúpida - grunhiu, deixando aqueles dentes pontudos roçarem-lhe a pele feminina enquanto ele falava. – Eu deveria causar-lhe dor por causa disso. De fato, acho que vou fazer isso...

Renata reuniu cada pingo de poder que tinha e o transformou para soltá-lo sobre Lex em uma longa e implacável onda de angústia.

- Aaagh! - o uivo dele ecoou como o grito de um animal sendo sacrificado.

E, mesmo assim, Renata seguiu atacando-o, vertendo dor em sua cabeça até que ele a soltou e desmoronou no chão por completo.

- Agarrem-na! - ordenou aos guardas que ainda estavam se recuperando dos golpes menores que Renata havia descarregado.

Um deles ergueu uma pistola contra ela. Ela o bombardeou, também dando a um segundo guarda outra dose.

Maldição! Ela tinha de dar o fora dali. Não podia arriscar-se a usar mais de seu poder, já que pagaria por cada golpe. E ela não teria tempo diante da atroz onda que rugia sobre si.

Virou-se, vidros quebrados no caos da noite anterior estalavam sob suas botas. Ela sentiu uma pequena brisa através das lâminas fechadas da janela. Deu-se conta de que amanhecia: atrás dela, apenas a liberdade. Puxou o suporte dos painéis de madeira e deu um forte empurrão. As dobradiças gemeram, mas não cederam.

- Matem-na, malditos imbecis! - ofegou Lex. – Atirem nessa vadia!

Não, Renata pensou desesperada enquanto puxava o reboco da madeira.

Ela não podia deixar que a detivessem. Tinha de sair dali. Tinha de encontrar Mira e levá-la a algum lugar seguro. Afinal, ela havia prometido, havia feito uma promessa àquela garota, e Deus a ajudasse, mas ela não falharia.

Com um grito, Renata pôs toda a sua força e o seu peso para desmontar as portinhas que, finalmente, cederam. A adrenalina a acelerava de tal modo que as lâminas da madeira foram completamente arrancadas.

A luz do sol vertia sobre seu corpo feminino. Ofuscante e brilhante, enchendo a grande sala do edifício. Lex e os outros vampiros chiaram enquanto tentavam esconder seus sensíveis olhos e sair do caminho da luz.

Renata pulou para fora e golpeou o chão correndo. O carro de Lex estava no caminho de cascalho, estacionado e com as chaves no contato. Ela saltou dentro do automóvel, ligou o motor e dirigiu pela clara - porém temporária - segurança da luz do dia.


Capítulo 15

A sessão de tortura mais recente tinha terminado há algumas horas, mas o corpo de Nikolai enrijeceu em reflexo quando ele escutou o suave estalo da fechadura eletrônica na porta de sua cela. Não tinha que adivinhar onde estava - as paredes brancas e o conjunto de aparelhos médicos ao lado da maca eram pistas suficientes para lhe dizer que o tinham levado para uma das instalações de contenção da Agência.

As algemas de aço industrial, fechadas firmemente em seus pulsos, peito e tornozelos, eram, segundo disseram-lhe, a cortesia de ser tratado como um Renegado e instalado na casa de reabilitação. O que significava que era como se estivesse morto, uma vez que, tendo adentrado naquele lugar, dificilmente haveria retorno.

Não que seus captores tivessem a intenção de deixá-lo desfrutar da estadia por muito tempo. Nikolai tinha a clara impressão de que a paciência deles estava perto do fim. Tinham-no golpeado quase até a inconsciência depois que o efeito dos tranquilizantes havia passado, trabalhando para obter uma confissão de que ele tinha matado Sergei Yakut. Quando não conseguiram o que queriam, começaram a usar pistolas de choque e outros aparelhos criativos, mantendo-o o tempo todo suficientemente drogado para que ele pudesse sentir os golpes, mas fosse incapaz de lutar.

O pior de seus torturadores era o macho da Raça que agora entrava na cela. Niko tinha escutado um dos Agentes chamá-lo de Fabien, falando com bastante respeito, o que indicava que o vampiro ocupava um posto bastante alto na cadeia de comando. Alto e magro, com pequenas e distintas características, olhos agudos e cabelos penteados para trás, Fabien tinha uma desagradável veia sádica mal escondida sob a aparência de seu elegante traje e o comportamento de civil agradável. O fato de ter chegado sozinho desta vez não podia ser um bom sinal.

- Como foi seu descanso? - perguntou a Niko com um sorriso amável. - Talvez agora esteja preparado para conversar comigo. Apenas nós dois, o que diz?

- Vá se foder - Nikolai grunhiu através de suas presas estendidas. - Não matei Yakut. Já disse o que aconteceu. Você prendeu o homem errado, maldito.

Fabien sorriu enquanto caminhava para o lado da cama e olhava para baixo.

- Não houve engano, guerreiro. E, pessoalmente, não me importa se foi ou não você quem fez os miolos daquele Primeira Geração voarem por toda a parede. Tenho outras coisas mais importantes para perguntar. Perguntas que você responderá, se sua vida significar algo para você.

O fato daquele homem evidentemente saber que Niko era um membro da Ordem dava uma nova e perigosa perspectiva ao encarceramento. Isso e o brilho maligno naqueles olhos ardilosos que pareciam os de uma ave de rapina.

- O que a Ordem sabe exatamente sobre os assassinatos dos Primeira Geração?

Nikolai dirigiu-lhe o olhar enquanto, em silêncio, apertava a mandíbula.

- Realmente acredita que podem fazer algo para detê-los? Acredita que a Ordem seja tão poderosa que possa impedir que a roda gire quando ela já está secretamente em marcha há anos? - Os lábios do macho da Raça abriram-se na caricatura de um sorriso. - Vamos exterminar um por um, como estamos fazendo com os últimos membros da Primeira Geração. Tudo está em seu lugar, e esteve durante muito tempo. A revolução, como vê, já começou.

A raiva gritou no estômago de Nikolai quando ele se deu conta do que acabara de ouvir.

- Filho da mãe. Você está trabalhando com Dragos.

- Ah... agora você está começando a entender - disse Fabien agradavelmente.

- Você é um maldito traidor da própria Raça, isso é o que estou começando a entender.

A fachada da conduta civil caiu como uma máscara.

- Quero que me fale das missões atuais da Ordem. Quem são seus aliados? O que sabe sobre os assassinatos? Quais são os planos da Ordem no que se refere a Dragos?

Nikolai zombou.

- Vá se foder. E diga para seu chefe ir se foder também.

Os olhos cruéis de Fabien se reduziram.

- Você pôs minha paciência à prova por tempo suficiente.

Levantou-se e caminhou para a porta. Uma onda cortante de sua mão trouxe o oficial de guarda ao interior do recinto.

- Sim, senhor?

- Está na hora.

- Sim, senhor.

O guarda assentiu e desapareceu, para voltar um momento depois. Ele e um assistente trouxeram sobre rodas uma mulher atada a uma cama estreita. Ela também tinha sido sedada, estava usando apenas uma bata fina e sem mangas. Junto a ela, um torniquete, um pacote de agulhas grossas e um tubo em espiral.

Que diabos era aquilo?

Mas ele sabia. Sabia que o assistente levantaria o braço brando do ser humano e fixaria o torniquete ao redor da zona da artéria braquial. A agulha e o tubo do sifão viriam em seguida.

Nikolai tentou ignorar o processo clínico, mas o mais sutil aroma de sangue acendia seus sentidos como fogos de artifício em dias festivos. A saliva aumentou em sua boca. Suas presas estenderam-se mais em antecipação à alimentação. Não queria ter fome, não como aquela, não quando estava seguro de que a intenção de Fabien era utilizá-la contra ele. Tentou ignorar sua sede, mas o desejo já aumentava, respondendo à necessidade visceral de alimento.

Fabien e os outros dois vampiros na cela não eram imunes àquilo. O empregado trabalhou oportunamente, o guarda manteve distância perto da porta, enquanto Fabien via a Anfitriã de Sangue sendo preparada para a alimentação. Uma vez que tudo estava em seu lugar, Fabien dispensou o assistente e enviou o guarda de volta ao seu posto do lado de fora.

- Está com fome, não é mesmo? - perguntou a Niko quando os outros se foram. Sustentou o tubo de alimentação em uma mão, os dedos de sua outra mão pousados sobre a válvula que liberaria o fluxo de sangue do braço da mulher. - Sabe, essa é a única maneira de alimentar um vampiro Renegado em contenção. A ingestão de sangue deve ser estritamente monitorada, controlada por pessoal capacitado. Pouquíssimo sangue e morrerá de fome; muito sangue e seu vício ficará mais forte. A sede de sangue é uma coisa terrível, não parece?

Niko grunhiu, querendo saltar da cama e estrangular Fabien. Lutou para fazer exatamente isso, mas seu esforço foi inútil. A combinação de sedativos e as algemas de aço o seguravam.

- Vou matá-lo - murmurou, sem fôlego devido ao esforço. - Prometo que vou acabar com você, maldito.

- Não - disse Fabien. - É você quem vai morrer. A menos que comece a falar agora, vou pôr este tubo em sua garganta e abrir a válvula. E não vou fechar até que se mostre preparado para cooperar.

Jesus Cristo! Ele o estava ameaçando com uma overdose. Os vampiros da Raça não podem ingerir muito sangue de uma vez. Isto significaria sede de sangue certamente. O que o transformaria em um Renegado, uma passagem apenas de ida para a miséria, a loucura e a morte.

- Você gostaria de falar agora, ou podemos começar?

Niko não era idiota para pensar que Fabien ou seus capangas o liberariam, inclusive se cuspisse cada detalhe a respeito das táticas da Ordem e das missões em curso. Inferno! Mesmo se pudesse garantir sua liberdade, estaria condenado se traísse seus irmãos só para salvar seu próprio pescoço.

Então era isso. Frequentemente tinha se perguntado como seria. Tinha imaginado como ele acabaria: uma chuva de balas e metralhadoras, ele pensava. Nunca imaginou que seria algo tão lamentável como aquilo. A única honra era o fato de que morreria mantendo os segredos da Ordem.

- Está preparado para me dizer o que quero saber? - Fabien perguntou.

- Vá se foder! - Niko soltou, mais zangado que nunca. - Você e Dragos podem ir diretamente para o inferno.

O olhar de Fabien faiscou de raiva. Ele obrigou Nikolai a abrir a boca e enfiou o tubo de alimentação em sua garganta. O esôfago do guerreiro se contraiu, mas até mesmo seu reflexo nauseante era fraco por causa dos sedativos que lhe percorriam o corpo.

Houve um suave clique quando a válvula no braço da humana se abriu. O sangue se derramou na parte posterior da boca de Nikolai, engasgando-o enquanto ele tentava fechar a garganta e rejeitar aquele líquido precioso, mas, Niko percebia, também letal. Porém, havia muito - um fluxo interminável que bombeava rapidamente da artéria da Anfitriã de Sangue.

Niko não tinha outro remédio senão engolir.

Um gole. Depois outro.

E outro ainda. Mais e mais.

Andreas Reichen estava em seu escritório no Refúgio examinando as contas e os e-mails recebidos pela manhã quando viu a mensagem de Helene em sua caixa de entrada. O assunto era um simples punhado de palavras que fizeram seu pulso tamborilar com interesse: “Encontrei um nome para você”.

Ele abriu a mensagem e leu a breve nota.

Depois de algumas investigações, Helene tinha conseguido o nome do vampiro com quem sua desaparecida garota do clube vinha se encontrando recentemente.

Wilhelm Roth.

Reichen leu duas vezes, cada molécula em sua corrente sanguínea ficando mais fria enquanto o nome afundava em seu cérebro. O e-mail de Helene indicava que ainda estava em busca de mais informações e que entraria em contato tão logo as tivesse.

Jesus.

Ela não podia saber a verdadeira natureza da víbora que tinha descoberto, mas Reichen sabia bem.

Wilhelm Roth, o líder do Refúgio de Hamburgo e um dos indivíduos de maior poder na sociedade da Raça. Wilhelm Roth, um gângster de primeiro grau, e alguém a quem Reichen conhecia muito bem, ou tinha conhecido há muito tempo.

Wilhelm Roth, que estava emparelhado com uma ex-amante de Reichen - a mulher que tinha levado um pedaço do coração de Reichen quando o deixou para ficar com o rico macho de segunda geração da Raça que podia lhe oferecer todas as coisas que Reichen não podia.

Se a funcionária desaparecida de Helene estivesse ligada a Roth, certamente a moça estava morta. E Helene... Jesus Cristo. Estava muito perto do canalha apenas por saber seu nome. Se continuasse a buscar mais informações sobre ele...

Reichen pegou o telefone e discou. Não houve resposta. Tentou o apartamento na cidade, amaldiçoando quando a chamada foi para a caixa postal. Era muito cedo para que ela estivesse no clube, mas ele ligou para lá de todos os modos, amaldiçoando a luz do dia que o mantinha preso em seu Refúgio, e incapaz de procurá-la pessoalmente. Quando todas as opções fracassaram, Reichen devolveu uma resposta por correio eletrônico:

“Não faça nada mais referente a Roth. Ele é muito perigoso. Entre em contato comigo assim que receber esta mensagem. Helene, por favor... tome cuidado.”

Um caminhão carregado de equipamentos médicos parou na porta de entrada de uma modesta construção de dois andares a cerca de 45 minutos do centro de Montreal. O condutor apareceu na janela e digitou uma breve sequência em um teclado eletrônico situado na parte exterior do prédio. Depois de um minuto ou dois, a porta se abriu e o caminhão entrou.

Devia ser dia de entrega, já que era o segundo veículo que Renata tinha observado entrando ou saindo dali. Ela havia passado a maior parte do dia na cidade, escondida no carro de Lex enquanto se recuperava da terrível reverberação durante a manhã. Agora já era o fim da tarde e ela não tinha muito tempo - somente algumas horas antes que caísse a tarde e a densidade da noite aumentasse a presença de seus predadores. Não muito antes de transformar-se na presa.

Ela tinha que fazer a coisa certa dessa vez, por isso estava vigiando a porta monitorada por câmera de um edifício peculiar na cidade de Terrabonne. Não tinha janelas, nem sinalização frontal. Embora não estivesse certa, seu instinto dizia que a laje quadrada de concreto e tijolo no final do caminho de acesso privado era o lugar que Lex tinha mencionado como as instalações para onde Nikolai fora levado.

Ela rogou que fosse o local, pois naquele momento, o guerreiro era o único possível aliado que Renata tinha, e, se ela queria encontrar Mira, se tinha alguma possibilidade de recuperar a menina do vampiro que a tinha naquele momento, ela sabia que não podia fazê-lo sozinha. Isso significava primeiro encontrar Nikolai e rezar para encontrá-lo vivo.

E se estivesse morto? Ou estivesse vivo, mas se negasse a ajudá-la? Ou decidisse matá-la pelo papel que ela tivera em sua detenção ilícita?

Bem, Renata não queria considerar onde qualquer dessas possibilidades a levaria. Pior ainda, onde levaria uma menina inocente que dependia dela para manter-se a salvo.

Assim, ela esperou e observou, imaginando uma maneira de atravessar a porta de segurança. Outro caminhão de abastecimento entrou. Chegou a uma parada e Renata aproveitou a oportunidade.

Ela saltou do carro de Lex e caiu no chão, correndo ao longo da parte traseira do veículo. Enquanto o condutor teclava seu código de acesso, saltou no para-choque traseiro. As portas do reboque estavam fechadas, mas ela agarrou-se e manteve-se agarrada enquanto a porta se abria e, ruidosamente, o caminhão cambaleava. O condutor deu a volta na parte traseira do prédio, depois de um lance de asfalto que levava a um par de embarques e compartimento de recepção. Renata subiu no teto do veículo e segurou-se com força enquanto o caminhão dava outra volta e começava a retroceder. Ao aproximar-se da construção, um sensor de movimento fez a porta da entrada se levantar. Não havia ninguém esperando na luz do dia que enchia a abertura do hangar, mas se o lugar estivesse em poder da Raça, qualquer pessoa naquela área estaria assando depois de alguns minutos no trabalho.

Uma vez que o caminhão tinha entrado por completo, a grande porta começou a descer. Houve um segundo de escuridão entre o fechamento do compartimento e a revoada eletrônica das luzes fluorescentes vindas de cima.

Renata saltou do para-choque traseiro enquanto o condutor descia do caminhão. E agora, saindo de uma porta de aço no outro lado do espaço, estava um homem musculoso vestindo um uniforme escuro militar. O mesmo tipo de uniforme usado pelos Agentes que Lex tinha chamado para deter Nikolai na noite anterior. Ele trazia uma pistola semiautomática embainhada em seu quadril.

- Ei, como vai? - o condutor disse em voz alta ao guarda.

Renata deslizou pelo lado do caminhão antes que o vampiro ou o humano pudessem detectá-la. Esperou, escutando o som da fechadura sendo aberta. Quando o guarda se aproximou, Renata enviou um pouco de seu olá particular, dando uma sacudida mental que o fez balançar sobre os calcanhares. Outra pequena explosão o tinha atingido. Apertou as têmporas com as mãos e ofegou uma maldição viva.

O condutor humano voltou a ocupar-se dele.

- Ei. Está bem aí, amigo?

A breve distração era a oportunidade que Renata necessitava. Ela se precipitou em silêncio através do amplo compartimento e deslizou dentro da porta de acesso que o guarda tinha deixado sem segurança. Agachou-se diante de uma mesa vazia com uma estação de trabalho com monitores que podiam visualizar a porta de entrada. Para além dali, um estreito corredor oferecia-lhe duas possibilidades: uma curva que parecia conduzir para a frente da construção ou, mais abaixo no corredor, uma escada que levava ao segundo andar.

Renata optou pela escada. Correu para lá, além da ramificação de um lado. Outro guarda estava naquele lance do corredor.

Maldição.

Ele a viu correr. Suas botas retumbaram por perto.

- Pare aí! – gritou, vindo do canto do corredor. - Esta é uma área restrita.

Renata se voltou e lançou uma forte explosão mental. Enquanto ele se retorcia no chão, ela se lançou à escada e correu rumo ao andar superior.

Pela segunda vez, ela se repreendeu por ter deixado a casa de campo sem armas. Não podia deixar sua energia ser consumida antes de pelo menos saber se Nikolai estava ali. Tinha de operar só com menos da metade de sua resistência para recuperar-se plenamente da descarga que liberara em Lex desta manhã. Provavelmente seria necessário descansar o resto do dia.

Infelizmente, essa não era uma opção.

Olhou através do vidro reforçado da porta da escada para o local. Um punhado de machos da Raça em roupas brancas passeava em seu caminho a uma das muitas salas que se ramificavam do corredor principal. Muitos para que ela os detivesse, inclusive se estivesse em plenas condições.

E também tinha o agente armado no outro extremo do corredor. Renata apoiou-se contra a parede interior da escada, encostou a cabeça e em silêncio exalou uma maldição. Ela tinha chegado longe, mas que diabos a fazia pensar que podia entrar em uma instalação segura como aquela e sobreviver?

O desespero era a resposta a essa pergunta. A determinação de quem se negava a aceitar aquilo a fazia ir adiante e ver até onde tudo poderia chegar. Ela não tinha outra opção senão seguir em frente. Sob fogo, se fosse necessário.

Fogo, pensou. Seu olhar voltou-se para o corredor fora da escada. Montado na parede em frente a ela havia um alarme de emergência.

Talvez houvesse uma oportunidade, afinal...

Renata deslizou da escada e puxou a alavanca para baixo. Uma campainha pulsante cortou o ar, trazendo um caos instantâneo ao lugar. Deslizou no quarto do paciente mais próximo e viu como os assistentes e os médicos lidavam com a confusão. Quando parecia que todos estavam ocupados com a situação de falsa emergência, Renata saiu ao corredor vazio para começar a procurar pelo quarto de Nikolai. Não era difícil descobrir onde ele poderia estar. Só havia um quarto com um Agente armado na porta – que, aliás, permanecia em seu posto apesar do alarme que tinha feito o resto dos assistentes dispersar-se pelo andar.

Renata observou a arma no quadril do guarda e esperou que não estivesse cometendo um enorme engano.

- Ouça - disse, aproximando-se dele lentamente. Ela sorriu brilhantemente, embora, nesse mesmo instante, o guarda estivesse franzindo o cenho e alcançando sua arma. - Não ouviu o alarme? É hora de descansar.

Renata então o golpeou com uma explosão súbita, de tamanho considerável. Quando o grande macho desmoronou no chão, ela correu o olhar para dentro do quarto atrás dele.

Um vampiro loiro estava preso em uma cama, nu, convulsionando e lutando contra as algemas de metal que o seguravam. As marcas de pele da Raça formavam redemoinhos - formavam arcos no peito, nos grandes bíceps e nas coxas lívidas com cor vibrante, parecia quase viva a maneira com que as saturações se transformavam de tons carmesim e púrpura escuro a negro mais escuro. Seu rosto era quase animal, completamente transformado pela presença de suas presas e das brasas de seus olhos.

Poderia ser Nikolai? A princípio, Renata não estava certa. Mas logo aquela criatura levantou sua cabeça e seus olhos âmbar selvagens fixaram-se nela. Ela viu um brilho de reconhecimento neles, e uma miséria que era evidente, inclusive a distância. Seu coração retorceu e ardeu com pesar.

Santo Deus, o que tinham feito com ele?

Renata carregou o guarda inconsciente para dentro do quarto. Nikolai sacudia-se sobre a cama, grunhindo incompreensivelmente palavras que beiravam a loucura.

- Nikolai - disse, indo para seu lado. - Pode me ouvir? Sou eu, Renata. Vou tirá-lo daqui.

Se ele a compreendeu, ela não podia estar certa. Ele grunhiu e lutou com suas algemas, flexionando os dedos e empunhando-os, cada músculo de seu enorme corpo masculino estava retesado.

Renata inclinou-se para baixo para tirar um jogo de chaves do cinturão do guarda. Pegou também a pistola e xingou quando se deu conta de que era simplesmente uma pistola de tranquilizantes carregada somente até a metade da capacidade.

- Acredito que os mendigos não podem ser seletivos - murmurou, colocando a arma na cintura de seu jeans.

Voltou para Nikolai e começou a tirar suas algemas. Quando libertou sua mão, surpreendeu-se ao senti-la apertando a sua.

- Vá - ele rugiu ferozmente.

- Sim, é nisso que estamos trabalhando aqui - Renata replicou. – Solte-me para que eu possa abrir o resto dessas malditas coisas.

Ele tomou fôlego, um assobio baixo que fez os cabelos em sua nuca se eriçarem.

- Você... vai... eu não.

- O quê? - franzindo a testa, ela tirou sua mão livre e se inclinou sobre ele para afrouxar a outra algema. - Não tente falar. Não temos muito tempo.

Ele agarrou tão forte seu pulso que pensou que ele o romperia.

- Deixe-me... aqui.

- Não posso fazer isso. Preciso de sua ajuda.

Esses olhos âmbar e selvagens pareciam olhar através dela, quentes e mortais. Mas seu aperto afrouxou. Deixou-se cair sobre a cama quando outra convulsão o afligiu.

- Quase... - Renata assegurou, trabalhando rapidamente para abrir a última de suas algemas. - Vamos. Vou ajudá-lo.

Ela teve que colocá-lo de pé, e, ainda assim, ele não parecia suficientemente estável para permanecer naquela posição - e muito menos para a difícil corrida que a fuga exigiria. Renata lhe deu o ombro.

- Apoie-se em mim, Nikolai - ordenou. - Vou fazer a maior parte do trabalho. Agora vamos dar o fora daqui.

Ele grunhiu algo indecifrável quando ela mesma se colocou sob sua corpulência e começou a caminhar, precipitando-se na escada. Os degraus eram difíceis para Nikolai, mas eles conseguiram descê-los todos com apenas uns poucos tropeções.

- Fique aqui - disse ao chegar à parte inferior.

Sentou-o no último degrau e saiu correndo para averiguar se o caminho estava limpo. A mesa no extremo da sala estava vazia. Além da porta de acesso, entretanto, o condutor seguia falando com o guarda em turno, ambos ansiosos devido ao barulho do alarme de incêndio soando ao seu redor.

Renata saiu com a pistola tranquilizante na mão. O vampiro a viu. Antes que ela pudesse reagir, ele já tinha tirado sua pistola e disparado um tiro. Renata o golpeou com uma explosão mental, não antes de sentir um golpe de calor rasgar seu ombro esquerdo. Ela olhou o sangue, sentiu o jorro quente que escapava por seu braço.

Inferno! Ela tinha sido atingida!

Bem, agora estava realmente de saco cheio. Renata bombardeou o vampiro de novo e ele cambaleou, deixando cair sua arma. O motorista humano gritou e se lançou atrás do caminhão para cobrir-se enquanto Renata se adiantava e disparava contra o vampiro dois dardos tranquilizantes. Ele caiu com apenas um gemido. Renata caminhou e encontrou o motorista encolhido na roda.

- Ah, Jesus! - ele gritou quando ela parou diante dele. Colocou as mãos no alto, sua face tomada pelo medo. - Ah, Jesus! Por favor, não me mate!

- Não vou - respondeu Renata, e logo disparou na coxa com a arma tranquilizante.

Com ambos os homens caídos, ela voltou correndo para onde estava Nikolai. Ignorando a dor estridente em seu ombro, apressou-se na recepção e empurrou o enorme macho da Raça para a parte traseira do caminhão de abastecimento, onde estaria a salvo da luz do dia.

- Encontre algo para se proteger – disse para ele. - As coisas vão ficar agitadas agora.

Não lhe deu oportunidade para dizer qualquer coisa. Trabalhando rapidamente, fechou a porta e puxou o ferrolho, fechando Niko lá dentro. Em seguida, saltou para a cabine desocupada e pôs o veículo em movimento.

Enquanto conduzia o caminhão através da porta da recepção e acelerava para a fuga, teve de se perguntar se tinha acabado de salvar a vida de Nikolai ou se havia assinado uma sentença para ambos.


Capítulo 16

A cabeça dele estava pulsando como um tambor. O constante ritmo palpitante enchia-lhe os ouvidos de forma tão ensurdecedora que o arrastava pelo que parecia um sonho sem fim, incerto. Seu corpo doía. Estava deitado no chão em algum lugar? Sentia o metal frio debaixo de seu corpo nu, as pesadas caixas cravadas em sua coluna e nos ombros. Uma fina capa de plástico o cobria como um manto provisório.

Tentou erguer a cabeça, mas mal tinha forças. Sua pele estava dolorida, pulsando da cabeça aos pés. Cada centímetro de seu corpo parecia estar desvanecendo, estendido firmemente, quente de febre. Sua boca estava seca, sua garganta ressecada e crua.

Tinha sede.

Aquela necessidade era tudo em que poderia se concentrar, o único pensamento coerente nadando através de seu crânio.

Sangue.

Cristo, estava sedento por isso.

Ele podia saborear a fome – a loucura sombria e angustiante – em cada golpe de ar que atravessava-lhe os dentes. Suas presas encheram-lhe a boca. As gengivas pulsavam onde os enormes caninos descendiam, como se as presas tivessem estado ali durante horas. Em algum lugar distante, a parte sóbria de sua lógica notou o engano nesse cálculo, as presas de um vampiro de Raça normalmente saíam apenas em momentos de maior resposta física, fosse reagindo à presa, à paixão ou à pura raiva animal.

O tambor que seguia golpeando distante em sua cabeça apenas aumentava o pulsar de suas presas. Foi a palpitação que o despertou. A palpitação que não o deixava dormir agora.

Algo estava errado, pensou enquanto abria seus ardentes olhos e capturava os detalhes vivos banhados de âmbar.

Um pequeno e limitado espaço. Escuro. Uma caixa cheia de mais caixas.

E uma mulher.

Todo o resto desvaneceu uma vez que seu olhar encontrou o dela. Vestida em uma camisa negra de manga comprida e jeans escuros, ela estava em posição fetal na frente dele, os braços e pernas dobrados na curva de seu torso. A maior parte de seu queixo estava coberta pelo longo cabelo escuro.

Ele a conhecia... ou sentia que deveria.

Uma parte menos consciente dele sabia que ela era amável, saudável e indefesa. O ar estava tingido com um rastro de sândalo e chuva. O aroma do sangue dela despertou nele um instinto débil. Sabia instantaneamente quem era ela – com uma certeza que parecia gravada em sua própria medula. A boca seca dele repentinamente umedeceu pela possibilidade de alimentar-se. A necessidade acompanhada da oportunidade deu-lhe a força que não tinha há um momento. Silenciosamente, levantou-se do chão e moveu-se até ela.

Sentado sobre seus calcanhares, inclinou a cabeça, olhando a mulher adormecida. Aproximou-se mais, um lento avançar predador que o levou para cima dela. O brilho âmbar de sua íris a banhava em uma luz dourada enquanto ele deixava seu olhar faminto vagar sobre o corpo feminino.

E o tamborilar incessante era mais forte naquela posição, uma vibração tão clara que ele podia senti-la nas plantas dos pés descalços. Golpeando em sua cabeça, comandando toda a sua atenção. Levando-o mais perto, e logo mais perto ainda, e mais perto.

Era o pulso dela. Olhando-a, ele podia ver o suave tic-tac de seu palpitar tremendo ao lado do pescoço. Estável, forte.

O mesmo ponto em que ele queria enfiar suas presas.

Um estrondo – de um grunhido emanando de sua própria garganta – expandiu-se através da quietude do lugar.

A mulher moveu-se debaixo dele.

Suas pálpebras se abriram de repente, sobressaltadas, ficando rapidamente mais amplas.

- Nikolai.

A princípio, ele mal registrou o nome. A névoa em sua mente era tão espessa, sua sede tão completa que ele não sentia coisa alguma, exceto o desejo de alimentar-se. Era mais que um impulso – era uma obrigação insaciável. Certamente uma condenação.

Sede de sangue.

Como um fantasma, a palavra viajou por sua mente inundada em fome. Ele ouviu, soube instintivamente que devia temê-lo. Mas antes que pudesse compreender completamente o que a palavra significava, estava vendo dobrado e retornando às sombras.

- Nikolai - disse a mulher de novo. - Quanto tempo faz que está acordado?

Sua voz era familiar de algum modo, um peculiar alívio para ele, mas não podia realmente compreendê-la. Nada parecia fazer sentido para ele. Tudo o que tinha sentido era aquela tentadora batida de sua artéria e a completa fome que o obrigava a estender o braço e tomar o que necessitava.

- Você está a salvo aqui - disse ela. - Estamos na parte de trás do caminhão de fornecimento que tirei da instalação. Tive que parar e descansar por um tempo, mas estou bem para continuar agora. Vai escurecer logo. Devemos seguir antes que sejamos descobertos.

Enquanto ela falava, imagens passeavam pela memória de Niko. A instalação de contenção. A dor. A tortura. As perguntas. Um macho de Raça chamado Fabien. Um macho que ele queria matar. E essa valente mulher... ela também estava ali. Incrivelmente, ela o havia ajudado a escapar.

Renata.

Sim. Sabia seu nome, afinal. Mas não sabia por que ela tinha vindo por ele, ou por que tentaria salvá-lo. Tampouco importava.

Ela havia chegado muito tarde.

- Eles me forçaram - rugiu. Sua voz soava distante de seu corpo. Áspera como o cascalho. – Era muito sangue. Eles me forçaram a beber...

Ela o olhou fixamente.

- O que você quer dizer com forçaram?

- Tentaram... me causar uma overdose. Tentaram me viciar.

- Vício em sangue?

Assentiu levemente enquanto tossia, a dor atormentando-lhe o peito nu.

- Muito sangue... causando em mim a sede de sangue. Fizeram-me perguntas... queriam que eu traísse a Ordem. Neguei-me, e então eles me castigaram.

- Lex disse que eles matariam você - murmurou ela. - Nikolai, sinto muito.

Ela levantou a mão como se fosse tocá-lo.

- Não - grunhiu, agarrando-a pelo pulso. Ela ofegou, tentando soltar-se. Ele não a deixou ir. Sua cálida pele queimava a ponta dos dedos e as palmas das mãos masculinas dele. Podia sentir o movimento de seus ossos e músculos, o sangue correndo pelas veias de seus braços delicados de mulher.

Seria tão fácil levar aquele pulso sensível até sua boca.

Estava muito tentado a prendê-la debaixo de si e beber diretamente da sua veia.

Soube o momento preciso em que ela passou da surpresa à apreensão, quando seu pulso se acelerou e sua pele esticou-se sob suas mãos.

- Solte-me, Nikolai.

Ele esperou, a besta se perguntando se começava pelo pulso ou pelo pescoço da mulher. Sua boca salivando, suas presas ansiando perfurar aquela delicada carne. E teve fome dela de outra forma também. Sua forte necessidade não podia ser oculta. Sabia que era a sede de sangue o que o dirigia, mas isso não o fazia menos perigoso.

- Solte-me - disse ela de novo. E quando ele finalmente a soltou, ela recuou, mantendo distância entre eles. Não havia muito espaço para onde ela pudesse ir. As caixas empilhadas a limitavam por trás, além da parede do interior do caminhão. A maneira como ela se moveu, detendo-se e sendo cuidadosa, fez com que o predador notasse que estava debilitada.

Ela estaria com algum tipo de dor? Se fosse assim, seus olhos não o refletiram. Sua cor pálida parecia profunda enquanto ela o olhava fixamente. Desafiante.

Olhou para baixo e seus selvagens olhos pousaram no brilhante canhão da pistola.

- Faça – murmurou ele.

Ela sacudiu sua cabeça.

- Não quero machucá-lo. Preciso de sua ajuda, Nikolai.

Muito tarde para isso, pensou ele. Ela o havia tirado do purgatório e das mãos de seu captor, mas já tinha provado o sabor do inferno. A única saída do vício era passar fome, negar-se a tomar um sustento completo. Não sabia se era suficientemente forte para lutar contra sua sede.

Ele não queria que Renata estivesse perto dele.

- Faça... por favor. Não sei quanto mais posso resistir...

- Niko...

A besta nele explodiu. Com um rugido, ele liberou suas presas e se lançou sobre ela.

O disparo soou um instante depois, um estrondo atordoante que finalmente silenciou-lhe a miséria.

Renata sentou em seus calcanhares com a arma tranquilizante ainda empunhada em suas mãos. Seu coração palpitando a toda velocidade, parte de seu estômago ainda na garganta depois que Nikolai havia saltado sobre ela com suas enormes presas à vista. Agora ele jazia no chão, imóvel exceto por sua baixa e dificultosa respiração. Além das marcas superficiais na pele, com seus olhos fechados e suas presas ocultas atrás de sua boca fechada, não havia maneira de dizer que ele era a mesma criatura violenta que poderia ter rasgado sua jugular.

Inferno.

Que diabo ela estava fazendo aqui? Que demônios estava pensando, aliando-se com um vampiro, imaginando que realmente poderia ser capaz de confiar em um de sua classe? Ela sabia de primeira mão como eram traiçoeiros – como poderiam tornar-se letais em um instante. Ela poderia estar morta agora.

Houve um momento em que ela realmente pensou que morreria.

Mas Nikolai havia tentado avisá-la. Não queria machucá-la; ela tinha visto aquela tortura em seus olhos, ouvido aquela angústia em sua voz rasgada um momento antes de ele saltar sobre ela. Ele era diferente dos outros. Tinha honra, algo que ela havia assumido faltar na Raça inteira, dado que seus exemplos estavam limitados a Sergei Yakut, Lex e aqueles que os serviram.

Nikolai não sabia que sua arma não tinha balas, e mesmo assim a obrigou a disparar. Havia pedido isso. Ela tinha passado por algumas situações bastante difíceis em sua vida, mas não conhecia aquele tipo de tortura e sofrimento. Estava bastante segura de que esperava nunca conhecer.

A ferida em seu ombro queimava como o inferno. Estava sangrando de novo, pior ainda, depois daquele confronto físico. Ao menos a bala havia atravessado. O horrível buraco que deixou para trás ia requerer assistência médica, embora ela não visse um hospital em seu futuro próximo. Também pensou que não era sábio ficar perto de Nikolai agora, especialmente enquanto estivesse sangrando, e a única coisa que o mantinha afastado de sua artéria era aquela dose de sedativos.

A arma tranquilizante estava vazia.

A noite estava caindo, ela estava com uma ferida de bala sangrando e a vantagem adicional de sua reverberação persistente. E permanecer no caminhão roubado era como esconder-se tendo um grande alvo sobre suas próprias costas.

Precisava desfazer-se do veículo. Logo. Precisava encontrar algum lugar seguro onde pudesse fazer um curativo bom o suficiente para poder seguir adiante. Nikolai era um problema a mais. Não estava disposta a deixá-lo, mas ele era inútil para ela em sua condição atual. Se ainda pudesse superar as terríveis consequências de sua tortura...

E se não...?

Se não, ela acabava de perder um tempo mais precioso do que poderia considerar.

Movendo-se cautelosamente, Renata saiu pela parte traseira do caminhão e fechou as portas atrás de si. O sol havia se posto e o anoitecer aproximava-se rapidamente. Ao longe, as luzes de Montreal brilhavam.

Mira estava em algum lugar daquela cidade.

Desamparada, sozinha, assustada.

Renata subiu no caminhão e ligou o motor. Conduziu-o de volta à cidade, sem saber para onde ir até que finalmente se encontrou em terreno familiar. Nunca pensou que estaria de volta.

Nunca dessa forma, certamente.

O bairro da velha cidade não havia mudado muito nos anos que passaram. As residências grudadas umas nas outras, modestas casas pós-segunda guerra alinhadas na escura rua. Alguns dos jovens saindo das lojas 24 horas deram uma olhada no caminhão de fornecimentos médicos enquanto Renata passava conduzindo-o.

Não reconheceu nenhum deles, nem nenhum dos distraídos olhos adultos que vagaram de suas casas de concreto. Mas Renata não estava procurando rostos familiares ali fora. Havia apenas uma pessoa que ela rogava ainda estar por ali; uma pessoa de confiança, que poderia ajudá-la sem fazer muitas perguntas.

Enquanto ela passava por uma pequena casa amarela com sua grade de rosas crescendo na frente, uma estranha tensão nasceu em seu peito. Jack ainda estava aqui, as amada rosas de Anna, bem cuidadas e florescendo, eram uma grande evidência disso. E também havia o pequeno sinal da ferradura que Jack havia feito para pendurar ao lado da porta principal, nomeando o alegre lugar como Casa da Anna.

Renata reduziu a marcha do caminhão para parar na calçada e desligou o motor, olhando a conservada casa que ela havia estado tantas vezes, mas na qual, na verdade, nunca havia entrado. As luzes estavam acesas no interior, um acolhedor brilho dourado.

Deveria estar perto da hora de jantar porque através do grande marco da janela da frente podiam-se ver dois adolescentes – clientes de Jack, embora ele preferisse chamá-los de seus “pequenos” - pondo a mesa para o jantar.

- Maldição - murmurou ela sob sua respiração, fechando seus olhos e pousando a testa no volante.

Isso não era bom. Ela não deveria estar ali. Não agora, depois de todo esse tempo. Não com os problemas que estava enfrentando. E definitivamente não com o problema que estava levando na parte traseira do caminhão.

Não, ela tinha que lutar com isso por sua própria conta. Ligar o motor, virar o volante do caminhão e buscar outras possibilidades na rua. Demônios, ela não era uma amadora! Mas Nikolai estava em mal estado e ela não estava exatamente no auge de sua forma. Não sabia por quanto tempo mais poderia dirigir.

- Boa noite - o amistoso e inconfundível sotaque do Texas chegou diretamente ao lado dela, da janela aberta do lado do condutor. Ela não o viu aproximar-se, mas agora não havia forma de evitá-lo. - Posso ajudá-la... com... algo?

A voz de Jack apagou-se enquanto Renata levantava sua cabeça e girava para encará-lo. Estava um pouco mais grisalho do que ela se recordava, seu quase raspado corte estilo militar o fazia parecer mais magro, suas bochechas e queixo um pouco mais redondos do que a última vez que o havia visto. Mas ainda parecia um urso jovial, com mais de um metro e oitenta de altura e corpo robusto, apesar do fato de ele estar chegando facilmente aos setenta anos.

Renata esperava que seu sorriso parecesse melhor do que uma careta de dor.

- Olá, Jack.

Ele olhou-a fixamente – boquiaberto, de fato.

- Que diabos... - disse, sacudindo sua cabeça lentamente. – Já faz muito tempo, Renata. Esperava que tivesse encontrado uma boa vida em alguma parte... Quando deixou de vir faz alguns anos, preocupava-me que talvez – ele deteve-se e não completou o pensamento, dando em troca um grande e velho sorriso. - Bem, diabos, não importa o que me preocupava porque você está aqui.

- Não posso ficar - disse, seus dedos agarrando a chave na ignição, disposta a dar a volta. - Não deveria ter vindo.

Jack franziu a testa.

- Dois anos depois da última vez que a vi, você aparece como que caída do céu só para me dizer que não pode ficar?

- Sinto muito - murmurou ela. - Tenho que ir.

Ele colocou as mãos na janela aberta do caminhão, como se quisesse fisicamente retê-la ali. Ela olhou o bronzeado degradado nas mãos que tinham ajudado tantos jovens a saírem das ruas de Montreal – as mesmas mãos que tinham servido seu país de origem na guerra havia quatro décadas, e que agora cuidavam e protegiam aquele gradeado de rosas vermelhas como se fossem mais valiosas que ouro.

- O que está acontecendo, Renata? Sabe que pode falar comigo, que pode confiar em mim. Está bem?

- Sim - disse. - Sim, estou bem, sério. Estava só de passagem.

O olhar do homem disse-lhe que não acreditava nem por um segundo nela.

- Alguém mais está com problemas?

Ela sacudiu a cabeça.

- Por que pensa isso?

- Porque essa é a única maneira de você ter voltado. Nunca seria por você, que não se importaria se pessoalmente estivesse precisando de uma mão.

- Isso é diferente. Não é algo em que deveria estar envolvido – ela disse ligando o motor. - Por favor, Jack... Só esqueça que me viu esta noite, certo? Sinto muito. Tenho que ir.

Apenas pegou no câmbio para pôr o caminhão em marcha quando a forte mão de Jack descansou sobre seu ombro. Não foi um apertão forte, mas até mesmo a pequena pressão sobre sua ferida a fez virtualmente saltar de sua pele. Conteve o fôlego enquanto a dor a atravessava.

- Você está ferida - disse ele, e aquelas sobrancelhas grisalhas e grossas se uniram em uma.

- Não é nada.

- Não é nada uma ova. - Abriu a porta e subiu para ter uma melhor visão dela. Quando viu o sangue, murmurou uma forte maldição. - Que aconteceu? Alguém a feriu? Algum bandido tentou roubar seu caminhão ou sua carga? Jesus, isso parece uma ferida de bala. E esteve sangrando por algum tempo.

- Estou bem - insistiu ela. - Não é meu caminhão, e isso não é o que você está pensando.

- Então poderia me dizer o que é enquanto eu a levo ao hospital? - Entrou ainda mais na cabine, gesticulando para que lhe desse lugar. – Sai daí, eu dirijo.

- Jack – ela segurou o grosso antebraço do homem. - Não posso ir ao hospital, ou à polícia. Não estou sozinha aqui. Há alguém na parte de trás do caminhão que também está em más condições. Não posso deixá-lo.

Jack olhou para ela, incerto.

- Você fez alguma coisa fora da lei, Renata?

Ela soltou uma risada débil, cheia de coisas que não podia dizer. Coisas que ele não poderia saber e em que certamente não acreditaria se ela decidisse contar.

- Queria que fosse só a lei com que eu tivesse de lutar. Estou em perigo, Jack. Não posso dizer mais do que isso. Não quero que você se envolva.

- Precisa de ajuda. Essa é toda a informação de que preciso. – O rosto dele estava sério agora. E além das rugas, de sua cara magra e de seu cabelo grisalho, havia um brilho do marinheiro forte e viril que ele fora todos aqueles anos. - Venha para dentro e conseguirei que você e seu amigo descansem em algum lugar por um momento. Conseguirei algo para seu ombro também. Vamos, vamos, há muito espaço na casa. Deixe-me ajudá-la; pelo menos uma vez, Renata, deixe que alguém a ajude.

Ela queria aquilo infinitamente, queria ser ajudada em vez de enterrar-se naquela dor. Mas levar Nikolai a um lugar público era um risco muito grande, para ele e para qualquer um que pudesse vê-lo.

- Tem algum outro lugar em vez da casa? Um lugar tranquilo, com menos pessoas dentro e fora. Não precisa ser muito grande.

- Há um pequeno quarto na garagem lá atrás. Uso-o para guardar coisas desde que Anna se foi, mas vocês serão bem-vindos.

Jack saiu do caminhão e ofereceu sua mão para ajudá-la a descer.

- Vamos levar você e seu amigo para dentro para poder olhar a ferida.

Renata desceu do assento ao pavimento. E quanto a mover Nikolai? Estava segura de que ele ainda estava dormindo sob os efeitos do tranquilizante, o que ajudava a ocultar o que realmente era, mas não tinha como esperar que Jack não o achasse no mínimo incomum por estar nu, ensanguentado, golpeado e inconsciente.

- Meu, hum, amigo está realmente muito doente. Está mal e não acredito que seja capaz de caminhar por sua conta própria.

- Carreguei mais de um homem na selva em minhas costas - disse Jack. - Meus ombros podem ser um pouco fracos agora, mas são bastante largos. Tomarei conta dele.

Enquanto caminhavam juntos até a parte de trás do caminhão, Renata adicionou:

- Há uma coisa mais, Jack. O caminhão precisa desaparecer. Não importa onde, mas quanto antes melhor.

Ele inclinou a cabeça brevemente.

- Considere feito.


Capítulo 17

Quando Nikolai despertou, perguntou-se por que não estava morto. Sentia-se mal como o inferno, olhos lentos para abrir na escuridão, músculos preguiçosos enquanto fazia um inventário de seu estado atual. Lembrou-se do sangue e da agonia, da detenção e da tortura nas mãos de um bastardo chamado Fabien. Lembrou-se de correr, ou melhor, de outra pessoa correndo enquanto ele tropeçava e lutava para ficar em pé.

Lembrou-se da escuridão ao seu redor, do metal frio debaixo de seu corpo nu, do tamborilar golpeando sem descanso em sua cabeça. E lembrou-se claramente de uma pistola que apontava em sua direção. Uma pistola que atirou por sua própria ordem.

Renata.

Era ela quem sustentava a arma de fogo. Apontando para ele para evitar que um monstro a atacasse. Mas por que não o matou, como ele quis? E por falar nisso, por que ela tinha ido resgatá-lo na instalação? Não tinha se dado conta de que poderia ser assassinada com ele? Ele queria parecer furioso, ela tinha sido muito imprudente, mas uma parte mais razoável de si agradecia pelo fato de estar respirando. Mesmo que a respiração fosse tudo que ele era capaz de fazer naquele momento.

Gemeu e virou-se, esperando sentir o duro chão do caminhão sob o corpo. Em seu lugar sentiu um colchão suave e um travesseiro macio embalando-lhe a cabeça. Uma manta leve de algodão cobria-lhe a nudez.

Que diabos? Onde estava agora?

Saltou até ficar sentado e foi recompensado com uma violenta sacudida de suas vísceras.

- Inferno - murmurou, enjoado.

- Você está bem? - Renata estava ali com ele. Ele não a viu a princípio, mas agora ela se levantava da cadeira esfarrapada onde estava sentada há um momento. - Como se sente?

- Uma porcaria – disse com a língua grossa e a boca seca como o deserto. Estremeceu ao ver que ela acendeu um abajur na cabeceira.

- Parece melhor. Muito melhor, na verdade. Seus olhos voltaram ao estado normal e suas presas retrocederam.

- Onde estamos?

- Em um lugar seguro.

Ele observou a mistura eclética da sala ao seu redor: móveis revoltos, estantes de armazenamento em uma das paredes, uma pequena coleção de tecidos em diversas etapas de finalização apoiados entre dois arquivos, um pequeno armário de banheiro com toalhas de adornos florais e uma banheira com pés pitorescos. As persianas das janelas estavam abertas e mostravam a profundidade da noite no outro lado do vidro nesse momento, e de manhã a sala seria alagada pela luz e pelos raios ultravioleta.

- Esta é uma casa humana – ele não quis adotar um tom acusatório, sobretudo quando era sua própria maldita culpa estar naquela situação. - Onde diabos estamos, Renata? O que está acontecendo aqui?

- Você não estava bem. Não era seguro seguirmos viajando no caminhão quando a Agência, e possivelmente Lex, estariam nos procurando.

- Onde estamos? - exigiu.

- Em um refúgio para meninos de rua. Chama-se Casa da Anna. Conheço o homem que o administra. Ou o conhecia, quer dizer... antes... - alguns rasgos de emoção invadiram-lhe o rosto enternecido. - Jack é um bom homem, digno de confiança. Estamos a salvo aqui.

- Ele é humano.

- Sim.

Que maravilha.

- E sabe o que eu sou? Ele me viu... como eu estava?

- Não. Mantive você coberto o melhor que pude com a lona do caminhão. Jack me ajudou a trazê-lo aqui, mas você ainda estava sedado pelo tranquilizante que tive de... atirar em você. Eu disse que você estava desmaiado porque estava doente.

- Obrigado.

Bom, ao menos isso respondia à pergunta de por que ele não estava morto.

- Ele não viu suas presas ou seus olhos, e quando me perguntou a respeito de seus dermoglifos, eu disse que eram tatuagens. – Ela fez um gesto assinalando uma camisa e calças pretas dobradas sobre a mesinha de noite. - Ele também trouxe algumas roupas. Quando voltar depois de ter dado um sumiço no caminhão para nós, vai procurar um par de sapatos que caibam em você. Há um kit de limpeza de boas-vindas no banheiro para os recém-chegados. Só tem uma escova de dentes de sobra, assim espero que não se importe em compartilhar.

- Jesus - Niko resmungou. Aquilo só estava piorando. - Tenho que sair daqui.

Ele empurrou a manta e pegou a roupa da mesinha. Não estava muito seguro sobre seus pés quando tentava entrar nas calças de nylon. Caiu para trás, seu traseiro nu plantado na cama. A cabeça dava voltas.

- Maldição. Tenho que informar a Ordem. Acredita que seu bom amigo Jack tenha um computador ou um telefone que poderia emprestar?

- São duas da manhã - assinalou Renata. - Todos na casa estão dormindo. Além disso, eu sequer estou segura de que você está suficientemente bem para descer as escadas da garagem. Precisa descansar um pouco mais.

- Foda-se. O que preciso é voltar para Boston quanto antes. - Ainda sentado na cama, deslizou na calça e conseguiu subi-la por cima do quadril, puxando o cordão na cintura extragrande. - Perdi muito tempo já. Preciso que alguém venha e arraste meu traseiro daqui.

A mão de Renata caiu sobre ele, surpreendendo-o com o contato.

- Nikolai. Aconteceu uma coisa com Mira.

A voz dela soava tão sóbria como ele nunca tinha ouvido. Ela estava preocupada - preocupada até os ossos - e, pela primeira vez, ele se deu conta da pequena fissura na fachada outrora inquebrável e gélida que apresentava a todos.

- Mira está em perigo - disse. – Eles a levaram quando foram te prender na propriedade de Yakut. Lex a entregou a um vampiro chamado Fabien. Ele... ele a vendeu.

- Fabien - Niko fechou os olhos, exalando uma maldição. - Então provavelmente ela já está morta.

Ele não esperava um grito afogado de Renata, de modo que o som cru o fez sentir-se como um imbecil insensível ao falar em voz alta seus pensamentos sombrios. Apesar de toda força e independência resistente, Renata tinha um ponto sensível reservado para aquela criança inocente.

- Ela não pode estar morta - sua voz adquiriu um tom sólido, mas seus olhos estavam selvagens e desesperados. - Prometi a ela, entende? Disse que seria sua protetora. Que nunca deixaria que alguém lhe fizesse mal. E eu me referia a isso. Mataria para mantê-la segura, Nikolai. Morreria por ela.

Ele escutou e, Deus o ajude, ele conhecia aquela dor mais do que ela poderia adivinhar. Quando era garoto, havia feito um pacto similar com seu irmão menor - fazia muito, muiro tempo - e o fato de ter falhado quase o destruíra.

- É por isso que me seguiu nas instalações - disse, compreendendo a situação. - Você correu o risco de quebrar o pescoço ao me tirar de lá porque acredita que posso ajudar a encontrá-la?

Ela não respondeu, mas terminou sustentando seu olhar fixo em um silêncio que parecia prolongar-se para sempre.

- Tenho que recuperá-la, Nikolai. E não acredito que... que estou... simplesmente não estou segura de que posso fazê-lo sozinha.

Uma parte dele queria dizer que o destino de uma menina perdida não era problema seu. Não depois do que o bastardo do Fabien tinha-lhe feito nas instalações de contenção. E não quando a Ordem tinha muitas outras missões mais críticas. Vida e morte em escala maciça, lidar com a verdadeira morte, salvar a humanidade e essa baboseira toda.

Mas quando abriu a boca para responder, descobriu que não tinha coração para dizer isso para Renata. Não agora.

- Como está seu ombro? - perguntou, indicando a ferida que tinha sangrado horas no caminhão, levando seu já débil controle quase até o limite. Na superfície, parecia melhor, enfaixada em gaze branca, limpa e com um aroma ligeiro de antisséptico.

- Jack fez um curativo - disse ela. - Ele era médico da Marinha quando serviu no Vietnã.

Niko viu a ternura de sua expressão quando ela falou do humano, e se perguntou por que sentia uma pontada de ciúmes, em particular quando o serviço militar daquele macho humano demonstrava sua idade já avançada.

– Então, ele é um marinheiro, não é? Como pôde terminar em um refúgio para jovens aqui em Montreal?

Renata sorriu com um pouco de tristeza.

- Jack se apaixonou por uma moça daqui chamada Anna. Casaram-se, logo compraram esta casa juntos e viveram aqui por mais de quarenta anos... até que Anna morreu. Ela foi assassinada em um assalto. O menino sem lar que a apunhalou para roubar sua carteira o fez enquanto estava drogado. Heroína. Estava procurando dinheiro para sua dose seguinte, mas só encontrou cinco dólares na carteira de Anna.

- Jesus - Niko exalou. - Espero que esse merdinha não tenha se dado bem.

Renata sacudiu a cabeça.

- Foi detido e acusado, mas se enforcou no cárcere à espera de julgamento. Jack se inteirou das notícias e, então, decidiu fazer algo para ajudar a prevenir outras mortes como a de Anna. Ou que outro menino se perdesse nas ruas. Abriu sua casa – a Casa de Anna - a qualquer pessoa que precisasse de moradia e deu aos meninos comida e um lugar a que pertencer.

- Parece que Jack é um homem generoso - Niko disse. - Um perdão que ultrapassa a dívida.

O guerreiro tinha uma forte necessidade de tocá-la, de deixar que seus dedos se detivessem em sua pele macia e cremosa. Queria saber mais a respeito dela, mais de sua vida antes que ela se envolvesse com Sergei Yakut. Tinha a sensação de que as coisas não tinham sido fáceis para ela. Se Jack tinha contribuído para suavizar seu caminho, Nikolai não devia nada mais do que respeito pelo homem. E agora, se ela podia confiar no humano, ele também o faria. Ele esperava que Jack fosse tudo que Renata acreditava que era. Seria um inferno se ele se mostrasse diferente.

- Deixe-me dar uma olhada em seu ombro - disse ele, feliz por mudar de assunto.

Quando se aproximou dela, Renata vacilou.

- Tem certeza de que pode fazer isso? Porque acabou de sair do efeito do tranquilizante, e não parece boa ideia explodir a mente de um vampiro debilitado.

- Está brincando? - riu, surpreso pelo senso de humor, especialmente quando as coisas para ambos estavam tão... tristes. - Venha cá e deixe-me ver a obra de Jack.

Ela se inclinou para lhe dar melhor acesso ao ombro. Niko afastou a manta de algodão suave em que estava envolta, deixando a borda do tecido deslizar para baixo de seu braço. Com o mesmo cuidado, levantou o curativo e inspecionou a limpeza da sutura, sentindo ainda Renata estremecer com desconforto.

Ela se mostrava perfeitamente calma enquanto cuidadosamente controlava ambos os lados de seu ombro. A hemorragia era mínima, mas mesmo aquela pequena linha escarlate o golpeava com força. E ele ainda era da Raça, e o doce aroma de madeira, sândalo e chuva do sangue de Renata o intoxicava - sobretudo estando tão perto.

- No geral, parece bem - murmurou, obrigando-se a recuar. Ele trocou as ataduras e sentou na borda da cama. - A ferida provocada pela bala ainda está muito aberta.

- Jack disse que tive sorte de a bala ter atravessado e não atingido meus ossos.

Niko grunhiu. Ela tinha sorte de ter um laço de sangue com um Primeira Geração. Sergei Yakut podia ser um maldito filho da mãe inútil, mas a presença de seu sangue de raça pura no corpo de Renata deve ter acelerado a cura. De fato, surpreendeu-se ao vê-la tão cansada. Então, outra vez, deu-se conta de como tinha sido uma noite tão longa até o momento.

Baseado nos círculos escuros sob seus olhos manchados, não tinha dormido nada. Ela não tinha se alimentado bem. Uma bandeja de comida estava intacta na mesa perto deles.

Ele se perguntou se era a dor pela morte de Yakut que lhe causava fadiga. Era evidente que se tratava de Mira, mas de qualquer forma - e por mais duro que fosse para ele aceitar aquela ideia - ela também era uma mulher que recentemente tinha perdido seu companheiro. E ali estava ela, cuidando de uma ferida de bala em seu ombro, só por ter ido ajudá-lo.

- Por que não descansa um momento - sugeriu Nikolai. - Fique na cama. Tente dormir um pouco. É minha vez de vigiar.

Ela não discutiu, para sua grande surpresa. Levantou a manta para que ela subisse e lutou enquanto acomodava o tecido sob seu ombro ferido.

- A janela - murmurou, assinalando. - Eu ia cobrir para você.

- Eu me encarrego disso.

Ela dormiu em menos de um minuto. Niko observou-a durante um momento e, mais tarde, quando julgou que ela não ia sentir, não resistiu à necessidade de tocá-la. Só uma breve carícia em sua bochecha, seus dedos deslizando pela seda negra de seus cabelos.

Era um engano desejá-la e ele sabia disso.

Em sua condição, que era mais ou menos a pior das possíveis, era provavelmente estúpido que ele desejasse Renata da maneira e da forma que desejava desde praticamente o primeiro instante em que colocou os olhos nela naquele clube noturno no centro de Montreal.

Mas, naquele momento, se ela abrisse os olhos e o encontrasse ali, ao lado dela, nada o teria impedido de puxá-la para seus braços.

Alguns raios de halogênio perfuraram a manta de névoa que se derramava abaixo no caminho de Vermont Green Mountains. No assento traseiro, o passageiro do veículo olhava com impaciência a paisagem escura, seus olhos da Raça lançando reflexos âmbar no vidro opaco. Estava zangado, e depois de falar com Edgar Fabien, seu contato em Montreal, tinha motivos para sentir-se ainda mais irritado. O único raio de promessa tinha sido o fato de que, no meio de todas as circunstâncias recentes e dos desastres pouco isolados, de algum jeito Sergei Yakut estava morto e, no processo, Fabien tinha capturado um membro da Ordem.

Infelizmente, essa pequena vitória tinha sido de curta duração. Só umas poucas horas bastaram para Fabien timidamente informar que o guerreiro da Raça tinha escapado das instalações de contenção, e no momento estava com uma mulher que aparentemente lhe ajudou. Se Fabien não resolvesse o assunto importante que lhe tinha sido atribuído naquela noite, o líder do Refúgio de Montreal poderia receber uma inesperada visita.

Cuidaria disso mais tarde.

Aborrecido por esse desvio obrigatório através dos caminhos das vacas, o que mais o tinha enfurecido era o mau funcionamento de seu melhor e mais eficaz instrumento.

O fracasso simplesmente não podia ser tolerado. Um só engano já era muito e, como um organismo de controle que de repente se converte em proprietário, só havia uma solução viável para o problema que o esperava neste determinado ponto da travessia do caminho rural: a exterminação.

O veículo reduziu a marcha lentamente ao fazer contato com o asfalto, em uma terra cheia de buracos na área rural. Um labirinto colonial de pedra, com meia dúzia de carvalhos altos e costas alinhadas, que conduzia a uma casa de campo branca, com um largo pórtico circulante. O carro estacionou diante de um celeiro vermelho grande na parte traseira da casa. O condutor - um servo - saiu, e caminhou rumo à porta do passageiro. Abriu-a para seu mestre vampiro.

- Senhor - disse o escravo humano com uma respeitosa reverência de cabeça.

O macho da Raça no interior do carro saiu, cheirando maliciosamente a corrupção de gado no ar supostamente fresco da noite. Seus sentidos não se viram menos ofendidos quando girou sua cabeça para a casa e viu a luz de um abajur de mesa acesa em um dos quartos e o ruído de um programa de competição na TV, cujo som saía pelas janelas abertas.

- Espere aqui - disse, dando instruções ao motorista. - Não levará muito tempo.

As pedras rangiam em seus sapatos de couro macio enquanto ele se aproximava do cascalho dos degraus da varanda coberta, que conduzia à porta traseira da casa. Estava fechada com chave, mas de nada importava. Ele fez com que o ferrolho se abrisse e se dirigiu para dentro da cozinha azul e branca com adornos de couro cru. À medida que entrou, a porta chiou, fechando-se atrás dele, e um humano de meia-idade com uma escopeta em mãos entrou pelo corredor.

- Mestre - disse com voz entrecortada, pondo o rifle na bancada. – Perdoe-me. Não imaginava que fosse você, ah... que viria... - o Subordinado gaguejou, ansioso, e evidentemente sabendo que aquela não era uma visita social. - Em que posso servi-lo?

- Onde está o Caçador?

- No porão, senhor.

- Leve-me até ele.

- Certamente. - O ajudante se virou e abriu a porta atrás de si de par em par. Quando seu amo passou, lançou-se para levá-lo pelo corredor à entrada parecida com a porta de um porão. - Não sei o que pôde ter dado errado com ele, Mestre. Ele nunca falhou em missão alguma antes.

O certo é que apenas o fracasso atual, de tão perfeito, era até mais imperdoável.

- Não estou interessado no passado.

- Não, não. É obvio que não, senhor. Minhas desculpas.

Houve uma luta torpe com a chave e a fechadura, esta última tendo sido instalada para manter os mortais longe dos ocupantes da adega do outro lado da porta, além de ser também uma medida de segurança. As fechaduras eram desnecessárias quando havia outros métodos mais eficazes para assegurar que ele não ficasse tentado a se desviar do rumo.

- Por aqui - disse o Subordinado, abrindo as portas de aço para revelar uma fossa sem luz que se abria na terra debaixo da velha casa.

Um lance de escadas de madeira descia na escuridão úmida e mofada. O velho ajudante avançou, puxando uma corda atada a uma lâmpada de luz para ajudar a ver o caminho. O vampiro atrás dele via bastante bem sem ela, assim como o outro vampiro que estava naquele espaço vazio e sem janelas.

O porão não continha móveis. Não havia distrações. Não se observavam bens pessoais. Por mais deliberado que fosse o desenho, não continha comodidade de nenhum tipo. Estava cheio de nada – era uma espécie de aviso a seu inquilino de que ele também não era nada mais do que o que foi convocado para fazer aqui. Sua própria existência devia ser simplesmente servir, seguir ordens.

Atuar sem piedade ou erro.

Não revelar fontes, nem esperar mudança alguma.

Enquanto caminhavam para o centro do porão, o enorme macho da Raça sentado tranquilamente no chão de terra batida levantou os olhos. Estava nu, com seus cotovelos apoiados sobre os joelhos, a cabeça raspada. Não tinha nome, nem identidade, exceto a que lhe foi dada quando ele nasceu: Caçador. Usava um colar eletrônico negro ao redor do pescoço. Uma peça que esteve com ele durante toda a sua vida.

Na verdade, era sua vida. Se acaso alguma vez resistisse às instruções, ou manipulasse o dispositivo de vigilância de algum modo, um sensor digital disparava e a arma de raios ultravioleta contida no pescoço detonava.

O grande macho ficou de pé com seu controlador quando o ajudante fez um gesto para que levantasse. Ele era impressionante, um Primeira Geração de um metro e noventa e oito de altura, musculoso e com uma força formidável. Seu corpo estava coberto por uma rede de dermoglifos do pescoço aos tornozelos, as marcas da pele herdadas através do sangue, passadas de pai para filho na Raça.

Que ele e este vampiro tivessem em comum padrões similares era de se esperar; afinal, eles tinham nascido da mesma antiga linha paternal. Ambos tinham o sangue do mesmo guerreiro alienígena percorrendo suas veias, um dos pais originais da raça de vampiros sobre a terra. Eles eram parentes, embora apenas um deles soubesse – aquele que tinha esperado sua hora pacientemente, vivendo atrás de inúmeras máscaras e enganos, enquanto, cuidadosamente, arranjava as peças sobre um tabuleiro enorme e complexo. O momento de manipular a sorte era adequado para que, finalmente, com justiça, tomasse seu lugar de poder sobre a Raça e sobre a humanidade em geral.

Esse tempo se esgotava. Estava próximo, podia sentir em seus ossos. E não cometeria erros na escalada rumo ao trono.

Olhos dourados como um falcão sustentaram seu olhar fixo na luz variável do porão. Ele não apreciava o orgulho que viu ali - o rastro de desafio em quem tinha sido feito para servir.

- Explique-me por que você falhou em seu objetivo – exigiu. - Você foi enviado a Montreal com uma missão clara. Por que você foi incapaz de executá-la?

- Havia uma testemunha - foi a resposta fria.

- Isso nunca o deteve antes. Por que, então, agora?

Aqueles olhos de ouro não mostraram nenhuma emoção, mas ali estava o desafio no levantamento sutil da mandíbula quadrada do Caçador.

- Uma criança, uma garota.

- Uma criança – repetiu dando de ombros, indiferente. - Ainda mais fácil de eliminar, não acha?

O Caçador não respondeu, apenas olhou como se esperasse o julgamento. Como se esperasse para ser condenado e nada mais importasse.

- Você não foi treinado para questionar suas ordens ou afastar-se dos alvos. Você foi criado para uma única coisa, assim como foram os outros como você.

O rígido queixo do Caçador ergueu-se mais um pouco, interrogando o outro homem. Com desconfiança.

- Que outros?

Ele riu sob seu fôlego.

- Você na realidade não pensou que era o único, não é mesmo? Sim, há outros. Um exército de outros soldados, assassinos... objetos dispensáveis que criei por várias décadas, todos nascidos e feitos para me servir. Outros como você que vivem só porque desejo. - Ele lançou um significativo olhar ao anel que rodeava o pescoço do vampiro. - Você, como outros, vive só enquanto eu desejo.

- Mestre – interrompeu, vacilante, o servo. - Estou seguro de que este foi um pequeno erro. Quando o enviar na próxima vez, não haverá problemas, eu asseguro.

- Já ouvi o suficiente - explodiu inclinando o olhar para o humano que, por associação, também tinha falhado. - Não haverá próxima vez. E você já não é de utilidade alguma.

Em um momento de rapidez, girou sobre o servo, e afundou suas presas de um lado da garganta do homem. Não bebeu, apenas perfurou a artéria, liberando o sangue, observando com total indiferença como o homem desabava sobre o chão de terra do porão, sangrando profusamente. A presença de tanto sangue derramando era quase insuportável. Era difícil esperar que ficassem resíduos, mas estava mais interessado em provar seu ponto.

Olhou o vampiro Primeira Geração ao seu lado: seus glifos começaram a pulsar com as cores profundas da fome do macho, com os olhos de ouro, agora totalmente âmbar. Suas presas encheram-lhe a boca e era óbvio que todo o instinto dentro dele estava gritando para que se lançasse sobre a fonte do sangue do humano que acabara de morrer.

Mas não se moveu. Ficou ali, desafiante, negando-se a ceder ao seu instinto mais natural, ao seu lado mais selvagem.

Matá-lo seria bastante fácil – um simples telefonema e o rígido orgulho seria feito em pedaços. Mas seria muito mais agradável acabar com ele primeiro. Tão melhor se fazer isso pudesse servir como exemplo a Fabien e a qualquer outra pessoa que pudesse ser suficientemente estúpida para enganá-lo.

- Fora - ordenou ao servo assassino. – Ainda não terminei com você.


Capítulo 18

De pé diante da pia do banheiro, Renata cuspiu a pasta de dentes e enxaguou a boca com a água fria. Ela tinha despertado muito mais tarde do que pretendia. Nikolai disse-lhe que ela parecia precisar de descanso, de modo que a tinha deixado dormir até quase dez da manhã. Ela poderia ter dormido outros dez dias e provavelmente ainda estaria cansada.

Sentia-se terrível. Dor por toda parte do corpo formigante, instável em seus pés. Seu termostato interno parecia não conseguir se decidir entre o frio glacial e o calor gritante, deixando-a em uma atormentada alternância de calafrios e ondas de suor que lhe banhavam a testa e a parte de trás do pescoço.

Com a mão direita apoiada na pia, levou a outra mão sob a corrente da torneira e, depois, ao redor da fornalha que ardia na nuca. Um pequeno movimento do braço esquerdo lembrou-lhe da dor.

Seu ombro estava ardendo.

Ela fez uma careta quando, com cuidado, desabotoou a parte superior da grande camisa que pegara emprestada de Jack. Lentamente encolheu o ombro para tirar a manga esquerda e poder remover a atadura e examinar a ferida. O esparadrapo fisgou a pele sensível quando foi arrancado. Sangue coagulado e antisséptico cobriam a gaze, mas a ferida que se encontrava abaixo ainda estava aberta e sangrando.

Ela não precisava de um médico para lhe dizer que aquelas não eram boas notícias. Sangue grosso e um fluido amarelo saíam do círculo vermelho e inflamado que rodeava o ponto aberto por onde a bala tinha entrado. Nada, nada bom, mesmo. Tampouco era necessário um termômetro para lhe confirmar que estaria provavelmente com uma febre muito alta por causa da infecção.

- Inferno – ela sussurrou diante do espelho. - Não tenho tempo para isso, maldição.

Um golpe abrupto na porta do banheiro a fez saltar.

- Olá - Nikolai chamou. Mais dois golpes rápidos. - Tudo bem aí dentro?

- Sim. Sim, está tudo bem - a voz dela raspou como lixa a garganta dolorida, pouco mais que um som áspero. - Só estou escovando os dentes.

- Tem certeza de que está bem?

- Estou bem - Renata respondeu enquanto jogava a atadura suja na lixeira que estava ao lado da pia. - Sairei em poucos minutos.

A demora na resposta não deu a impressão de que Nikolai sairia da porta. Ela abriu a torneira para um maior volume de água e esperou, imóvel, com os olhos na porta fechada.

- Renata... seu ferimento - disse Nikolai através do painel de madeira. Havia uma gravidade em seu tom. - Não está curado ainda? Já deveria ter parado de sangrar...

Embora quisesse que ele soubesse o que estava passando, não havia motivo para negar agora. Todos os machos da Raça tinham sentidos absurdamente agudos, especialmente no que dizia respeito a sangue derramado. Renata limpou a garganta.

- Não é nada, não é grande coisa. Só preciso de uma nova gaze e uma atadura limpa.

- Vou entrar - ele disse, dando um giro no trinco da porta. Estava trancada. - Renata. Deixe-me entrar.

- Já disse, estou bem. Saio em alguns...

Ela não teve chance de terminar a frase. Usando o que só poderia ser o poder mental da Raça, Nikolai acionou a fechadura e abriu a porta.

Renata poderia tê-lo amaldiçoado por ter entrado como se fosse o dono do lugar, mas estava muito ocupada tentando puxar a manga solta da camisa para se cobrir. Não importava tanto se ele visse o estado de inflamação da ferida pela arma de fogo, eram as outras marcas que ela desejava esconder.

As cicatrizes de queimadura na pele de suas costas.

Ela conseguiu erguer o suave tecido de algodão, mas todos os movimentos e o puxão a fizeram gritar enquanto seu estômago revolvia diante da onda de náuseas que a dor lhe causava.

Ofegando, embebida em um suor frio, ela atirou-se de joelhos diante do vaso sanitário e tentou não parecer que estava a ponto de espalhar todo o estômago pelos diminutos azulejos pretos e brancos sob seus pés.

- Santo Deus! - Nikolai, com o torso nu e a calça caindo pelos quadris logo se aproximou dela. - Você está muito longe de estar bem. - Ela se sobressaltou quando ele tentou alcançar o frouxo colarinho aberto de sua camisa.

- Não.

- Só vou ver o ferimento. Algo não está bem. Já deveria estar curado a essa altura. - Ele afastou o tecido do ombro e franziu a testa.

- Inferno! Isso não está nada, nada bem. Como está o buraco?

Ele se levantou e se inclinou sobre ela, com os dedos cuidadosos enquanto deslizava mais a camisa. Apesar de estar ardendo, ela podia sentir o calor do corpo masculino dele perto demais naquele momento.

– Ah! Caramba. Esse lado está pior. Vou tirar essa camisa para ver exatamente com o que estamos lidando.

Renata congelou, seu corpo enrijeceu.

- Não, não posso.

- Claro que pode. Vou ajudá-la. - Quando ela não se moveu, sentada ali segurando a parte dianteira da camisa em um punho apertado, Nikolai sorriu. - Se pensa que tem que ser reservada comigo, relaxa. Caramba, você já me viu nu, portanto, é justo, certo?

Ela não riu. Não poderia. Era difícil manter o olhar fixo, difícil acreditar na preocupação que estava começando a obscurecer os olhos azuis dele enquanto ele esperava por uma resposta. Ela não queria ver repulsão; tampouco queria deparar-se com compaixão.

- Você poderia, por favor, sair agora? Por favor? Deixe-me cuidar disso sozinha.

- A ferida está infectada. Você está com febre por causa disso.

- Sei disso.

O rosto masculino de Nikolai voltou-se sóbrio, tomado por uma emoção que Renata não podia distinguir.

- Quando foi a última vez que se alimentou?

Ela deu de ombros.

- Jack me trouxe um pouco de comida ontem à noite, mas eu não tinha fome.

- Não comida, Renata. Estou falando de sangue. Quando foi a última vez que você se alimentou de Yakut?

- Se refere a beber o sangue dele? - ela não pôde ocultar a repulsa. - Nunca. Por que está perguntando isso? Por que pensa isso?

- Ele bebeu de você. Vi quando ele se alimentava de sua veia naquela noite. Supus que era um acordo mútuo.

Renata odiava pensar naquilo. E odiava mais ainda lembrar que Nikolai tinha sido testemunha de sua degradação.

- Sergei utilizava meu sangue cada vez que sentia necessidade. Ou cada vez que desejava fazer uma demonstração.

- Mas ele nunca lhe deu seu sangue em troca?

Renata negou com a cabeça.

- Não admira que não esteja curando rapidamente - murmurou Nikolai. Deu uma ligeira sacudida na cabeça. - Quando o vi beber de você... pensei que estava emparelhada com ele. Supus que vocês estavam unidos pelo laço de sangue. Pensei que talvez sentisse carinho por ele.

- Pensou que eu o amava - disse Renata, dando-se conta de para onde a conversa se dirigia. - Não era isso. Não era nem próximo disso.

Ela expirou um ar agudo que ressoou em sua garganta. Nikolai não a estava pressionando para procurar respostas, e talvez precisamente por causa isso ela queria que ele entendesse que o que ela sentia pelo vampiro ao qual servira era algo menos... nobre.

- Há dois anos Sergei Yakut me recolheu das ruas do centro da cidade e me levou para seu refúgio com vários outros jovens que tinha pego naquela noite. Nós não sabíamos quem ele era, ou para onde iríamos, ou por quê. Não sabíamos nada, porque ele nos tinha colocado em uma espécie de transe que não passou até que nos encontrássemos trancados dentro de uma grande jaula escura.

- O interior do celeiro da propriedade - disse Nikolai, com seu rosto sombrio. - Jesus Cristo! Ele a levou para usá-la no maldito clube de sangue?

- Não acredito que alguém de nós soubesse que os monstros realmente existiam até que Yakut, Lex e alguns outros vieram abrir a jaula. Eles nos mostraram o bosque, mandaram que corrêssemos - ela engoliu a amargura que nascia em sua garganta. - A matança começou tão logo o primeiro de nós correu para o bosque.

Em sua mente, Renata voltou a reviver o horror com detalhes. Ela ainda podia ouvir os gritos das vítimas quando fugiam e os uivos terríveis dos predadores que os caçavam com selvagem frenesi. Ela ainda podia sentir o cheiro forte do verão, dos pinheiros e do musgo, mas os aromas da natureza foram sufocados em breve pelo cheiro do sangue e das mortes. Ela ainda podia ver a imensa escuridão que rodeava o terreno desconhecido, com ramos escondidos que lhe golpeavam as bochechas, rasgando sua roupa enquanto ela tentava fugir.

- Nenhum de vocês tinha chance - murmurou Nikolai. - Eles lhes disseram que corressem somente para brincar com vocês. Para dar a ilusão de que os clubes de sangue têm algo a ver com esporte.

- Sei disso agora. - Renata ainda podia saborear a inutilidade de toda aquela correria. O terror tinha adquirido um rosto naquela funesta noite, uma forma nos olhos âmbar brilhantes e nas presas expostas e ensanguentadas apenas vistas em seus piores pesadelos. - Um deles me alcançou. Saiu do nada e começou a me rodear, preparando-se para o ataque. Nunca mais tive medo. Estava assustada e zangada e algo dentro de mim apenas... irrompeu. Senti um poder correr através de mim, um pouco mais intenso que a adrenalina que alagava meu corpo.

Nikolai assentiu com a cabeça.

- Você não sabia a respeito da habilidade que possuía.

- Eu não sabia a respeito de um monte de coisas até aquela noite. Tudo virou de cabeça para baixo. Eu só queria sobreviver, isso era a única coisa que eu queria. Assim, quando eu senti que a energia fluía através de mim, algum instinto visceral me indicou que eu o deixasse correr livre sobre meu atacante. Com minha mente, empurrei o vampiro e ele cambaleou para trás como se eu o tivesse golpeado fisicamente. Lancei mais daquilo nele, e ainda mais, até que ele caiu no chão gritando e seus olhos começaram a sangrar, com todo o corpo convulsionando de dor.

Renata se deteve, perguntando se o guerreiro da Raça a contemplava em silêncio julgando-a por sua total falta de remorso pelo que tinha feito. Ela não estava disposta a pedir desculpas. Ou a desculpar.

- Eu queria que ele sofresse, Nikolai. Queria matá-lo. E o fiz.

- Que outra opção você tinha? - disse ele, estendendo a mão e com muita ternura, deslizando as pontas de seus dedos ao longo da linha do maxilar dela. - E Yakut? Onde ele estava enquanto isso acontecia?

- Não muito longe. Eu tinha começado a correr novamente quando ele cruzou meu caminho e se dirigiu a mim. Tentei derrubá-lo também, mas ele resistiu. Enviei toda a força que tinha para ele, até o ponto do esgotamento, mas não foi o suficiente. Ele era muito forte.

- Porque era um Primeira Geração.

Renata assentiu com a cabeça.

- Ele me explicou isso mais tarde. Depois daquele combate inicial, as repercussões me deixaram inconsciente por três dias. Quando despertei, fui obrigada a trabalhar como guarda-costas pessoal de um vampiro.

- Alguma vez tentou partir?

- No princípio, sim. Mais de uma vez. Nunca levou muito tempo para ele me localizar. - Ela golpeou ligeiramente seu dedo indicador contra a veia situada ao lado de seu pescoço. - Difícil chegar muito longe quando seu próprio sangue é melhor que um GPS. Ele utilizava meu sangue para assegurar-se de minha lealdade. Era um grilhão que eu não podia romper. Nunca pude ficar livre dele.

- Agora você está livre, Renata.

- Sim, suponho que estou - disse ela, a resposta soando tão oca como parecia. – Mas, e Mira?

Nikolai a contemplou durante um longo momento sem dizer nada. Ela não queria ver a dúvida em seus olhos, assim como não queria garantias vãs de que havia algo que eles pudessem fazer por Mira agora que ela estava nas mãos do inimigo. Muito pior agora que estava debilitada pela ferida.

Nikolai recostou-se na banheira antiga com pés em forma de garras brancas e abriu as torneiras. Quando a água caiu, ele se voltou para onde Renata estava sentada.

- Um banho deve baixar sua temperatura. Vamos, vou ajudá-la a se lavar.

- Não, eu posso tomar meu próprio...

Mas ele levantou uma sobrancelha em resposta.

- A camisa, Renata. Deixe-me ajudá-la, assim posso ter uma visão melhor do que está acontecendo com essa ferida.

Obviamente, ele não estava disposto a deixá-la. Renata ficou quieta mesmo quando Nikolai desabotoou os últimos poucos botões da gigantesca camisa e gentilmente a removeu. O algodão caiu em uma aglomeração suave sobre seu colo e ao redor de seus quadris. Apesar de ela estar usando sutiã, a timidez arraigada desde seus primeiros anos no orfanato da igreja a fez levantar as mãos para resguardar os seios dos olhos dele.

Mas ele não a estava olhando de uma maneira sexual - não naquele momento. Toda sua atenção estava centrada no ombro dela.

Niko era terno e cuidadoso enquanto seus dedos grandes e másculos exploravam ligeiramente ao redor da região atingida. Ele seguiu a curva de seu ombro por cima e ao redor de onde a bala tinha abandonado sua carne.

- Dói quando toco aqui?

Mesmo que o toque dele fosse apenas um sutil contato que a roçava, a dor irradiava através dela. Ela fez uma careta, sugando para dentro seu fôlego.

- Desculpe. Há muito inchaço ao redor da ferida de saída - disse ele, com sua profunda voz que vibrou pelos ossos dela enquanto seu toque se movia ligeiramente sobre a pele sensível. - Isso não parece muito bom, mas acho que se lavarmos com água por fora e...

À medida que a voz dele se apagava, ela sabia o que ele estava vendo agora. Não o buraco do disparo, mas as outras duas marcas feitas de forma diferente na suave pele de suas costas. Ela sentia as marcas arderem tão acesas como na noite em que tinham sido postas ali.

- Inferno! - o fôlego de Nikolai saiu em um suspiro lento. - O que aconteceu? São marcas de queimaduras? Jesus... são marcas de...?

Renata fechou os olhos. Parte dela queria apenas encolher-se ali e desvanecer-se nos azulejos, mas ela se obrigou a permanecer quieta, a coluna vertebral rigidamente erguida.

- Elas não são nada.

- Mentira. – Ele ficou de pé diante dela e levantou o queixo de Renata com sua mão grande. Ela deixou que o olhar subisse até encontrar-se com o dele e fundir-se em seus agudos e pálidos olhos cheios de intensidade. Não havia rastro de compaixão naqueles olhos, apenas uma fria indignação que a desconcertou. – Conte-me: quem fez isso? Foi Yakut?

Ela deu de ombros.

- Só era uma de suas formas mais criativas de não me deixar esquecer que não era uma boa ideia incomodá-lo.

- Aquele maldito filho da mãe - disse Nikolai, furioso. - Ele merecia a morte. Só por isso. Só por tudo que fez a você. O bastardo maldito bem que mereceu.

Renata piscou, surpreendida por ouvir tal fúria, tão feroz sentido protetor procedente daquele guerreiro. Ainda mais quando Nikolai era um macho da Raça e ela era, como havia sido explicado bastante frequentemente nos dois últimos anos, simplesmente uma humana. Vivendo somente porque era útil.

- Você não se parece em nada com ele - ela murmurou. - Pensei que seria, mas não se parece com ele. Ou com Lex, ou com os outros. Você é... eu não sei... diferente.

- Diferente? - embora a intensidade não tivesse abandonado seus olhos, a boca de Nikolai se arqueou no canto. - É um elogio ou simplesmente efeito da febre?

Ela sorriu apesar de seu estado de miséria geral.

- Ambos, acredito.

- Bem, aceito a palavra diferente. Vamos baixar sua febre antes que diga a palavra com a.

- Palavra com a? - perguntou ela, observando-o enquanto pegava com a mão o frasco de sabonete líquido da pia e despejava um pouco dentro da grande banheira.

- Agradável - disse ele, lançando um olhar irônico sobre o ombro largo.

- Não aceitaria agradável?

- Essa nunca foi uma de minhas especialidades.

O sorriso dele formou mais de uma pequena e encantadora covinha onde aquelas bochechas se curvavam. Olhando-o assim, não era difícil imaginar que era um macho de muitas especialidades, nem todas referentes a balas e adagas. Renata sabia de primeira mão que ele tinha uma boca muito agradável e gostosa. Por mais que quisesse negar, uma parte dela ainda ardia pelo beijo que se deram no canil da mansão - e o calor que a acometia nada tinha a ver com a febre.

- Tire a roupa - disse Nikolai, e por um segundo ela se perguntou se ele tinha lido seus pensamentos.

Ele mexeu a mão na água espumosa da banheira, e logo a sacudiu.

- Está ótima. Vamos, entre.

Renata o observou colocar o frasco de sabonete na parte de trás da pia e logo começar a procurar na gaveta abaixo, da qual tirou uma esponja e uma grande toalha. Enquanto ele estava de costas para ela e distraído procurando os artigos de higiene como sabonete e xampu, ela rapidamente tirou o sutiã e a calcinha e entrou na banheira.

A água fria era um deleite. Ela mergulhou com um suspiro e seu fatigado corpo instantaneamente relaxou. Enquanto ela cuidadosamente se acomodava dentro da banheira e se inundava até os seios na espumosa banheira, Nikolai molhava a esponja sob a água fria da pia.

Dobrou-a e pressionou-a brandamente contra a testa de Renata.

- Está bom?

Ela assentiu com a cabeça, fechando os olhos enquanto ele sustentava a compressa em sua testa. O impulso de apoiar-se atrás na banheira era tentador, mas quando ela tentou fazer isso, a pressão em seu ombro a fez recuar, protestando de dor.

- Aqui - disse Nicolai, colocando a palma de sua mão livre no centro das costas dela. - Relaxe. Eu a sustentarei.

Renata lentamente deixou que seu peso descansasse sobre a mão forte dele. Ela não podia recordar a última vez em que alguém tinha cuidado dela como Niko fazia naquele momento. Deus, houve alguma vez em todo esse tempo? Seus olhos se fecharam em sinal de gratidão silenciosa. Com as mãos fortes de Nikolai em seu corpo cansado, uma desconhecida e completamente estranha sensação de segurança se espalhou sobre ela, tão reconfortante como uma manta.

- Melhor? - ele perguntou.

- Uhum. É... agradável - disse, abrindo uma fresta em um de seus olhos e erguendo o olhar para ele. - A palavra com a. Desculpe-me.

Ele grunhiu quando tirou a compressa fria de sua testa. Olhava-a com uma seriedade que fez o coração dela dar pequenos golpes dentro do peito.

- Quer me contar a respeito dessas marcas em suas costas?

- Não – a respiração de Renata se deteve diante da ideia de se expor mais do que já tinha feito. Ela não estava pronta para isso. Não com ele, não assim. Era uma humilhação que ela mal podia suportar recordar, que dirá pôr em palavras.

Ele não disse nada para romper o silêncio que se abateu sobre eles. Molhou a esponja dentro da água e colocou um pouco de espuma sobre o ombro bom. O frescor fluiu sobre ela, arrepios circulavam através das curvas de seus seios fartos e de seus braços. Nikolai lavou-lhe o pescoço e o ombro, tomando cuidado com a ferida que se encontrava no ombro esquerdo de Renata.

- Está tudo bem? – ele perguntou com um pequeno tremor na voz.

Renata assentiu com a cabeça, incapaz de falar quando seu toque era tão terno e bem-vindo. Ela o deixou lavá-la, enquanto seu olhar passeava sobre o belo padrão de cores que cobria o peito nu e os braços do guerreiro. Seus dermoglifos não eram tão numerosos ou tão densamente complicados como os de Yakut. As marcas da Raça de Nikolai eram um engenhoso entrelaçar de redemoinhos, floreados e de formas reluzentes que dançavam em sua pele dourada.

Curiosa, e antes que ela se desse conta do que estava fazendo, levantou a mão e percorreu com os dedos um dos desenhos de arco que se realçavam debaixo do volumoso bíceps. Ela escutou o leve inalar da respiração de Nikolai, a interrupção repentina de seus pulmões quando seus dedos brincaram ligeiramente por cima de sua pele, assim como o profundo estrondo de seu grunhido.

Quando ele a olhou, suas pequenas sobrancelhas estavam elevadas sobre seus olhos e suas pupilas reduzidas bruscamente enquanto a cor azul da íris começava a cintilar com faíscas de cor âmbar. Renata afastou a mão, com uma desculpa na ponta da língua.

Ela não teve a oportunidade de dizer uma palavra.

Movendo-se mais rápido do que poderia rastreá-lo, e com a graça suave de um predador, Nikolai pôs fim aos poucos centímetros que os separavam. No instante seguinte, sua boca esfregava-se brandamente contra a dela. Seus lábios eram tão suaves, tão quentes, tão persuasivos. Tudo o que precisou foi um tentador deslizar de sua língua ao longo do canto de sua boca e Renata ansiosamente o deixou entrar.

Ela sentiu que um novo calor voltava à vida dentro dela, um pouco mais forte que a dor de sua ferida, que se converteu em uma insignificância sob o prazer do beijo de Nikolai. Ele elevou sua mão fora da água atrás dela e a embalou em um abraço cuidadoso, enquanto sua boca nunca abandonava a de Renata.

Renata se fundiu com ele, muito cansada para considerar todas as razões pelas quais seria um engano permitir que aquilo fosse mais longe. Ela queria que aquilo fosse mais longe – desejava tanto que estava tremendo. Ela não podia sentir nada, salvo as mãos fortes de Nikolai, que a acariciavam. E ela escutava o martelar de seus corações, os batimentos pesados emparelhando-se em um mesmo ritmo. Ela somente tinha provado o sabor de sua sedutora boca reclamando-a... e só sabia que desejava mais. E mais.

Um golpe soou no exterior do apartamento da garagem.

Nikolai grunhiu contra sua boca e se afastou.

- Há alguém na porta.

- Deve ser Jack - disse Renata, sem fôlego, seu pulso ainda palpitante. - Verei o que ele quer.

Ela tentou mudar de posição na banheira para sair e sentiu que seu ombro ardia de dor.

- O inferno que vai - disse Nikolai, já ficando em pé. – Você vai permanecer aqui. Eu me encarregarei de Jack.

Nikolai era um homem grande para os padrões normais, mas agora parecia enorme, seus claros olhos azuis faiscavam com toques de brilhante âmbar e as marcas de seus dermoglifos nos braços musculosos e no torso estavam reanimados com a cor. Pelo visto, era grande também em outros lugares, um fato que mal podia ocultar nas folgadas calças de nylon.

Quando o golpe soou outra vez, ele amaldiçoou, com as pontas de suas presas brilhando.

- Alguém, além de Jack sabe que estamos aqui?

Renata negou com a cabeça.

- Pedi que não dissesse nada a ninguém. Podemos confiar nele.

- Suponho que é um bom momento para verificar isso, não é?

- Nikolai - ela disse enquanto ele pegava a camisa que ela tinha usado e encolhia os ombros dentro das mangas largas. - A propósito... Jack... ele é um bom homem. Um homem decente. Não quero que aconteça nada a ele.

Ele sorriu.

- Não se preocupe. Vou tentar ser agradável.

 

 

                                                      CONTINUA