Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.
CONTINUA
Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.
CONTINUA
Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.
CONTINUA
Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.
CONTINUA
Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.
CONTINUA
Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.
CONTINUA
Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.
CONTINUA
Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.
CONTINUA
Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.
CONTINUA
Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.
CONTINUA
Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.
CONTINUA
Capítulo 14
Brock não soube o que causou maior impacto, o calor estreito e úmido da fenda de Jenna prendendo seu membro enquanto ele se encaminhava para o clímax ou a mordida repentina e absolutamente inesperada em seu pescoço.
Juntas, as duas sensações se mostraram cataclísmicas.
Segurou Jenna pelas costas e arremeteu ao seu encontro enquanto a tensão endurecia, se tornava mais quente, até a explosão. Com as presas expostas e latejando, lançou a cabeça para trás num grito gutural ao gozar, o mais compacto, rápido e incessante, o gozo mais intenso de toda a sua vida.
E, mesmo enquanto cessava, seu gozo não satisfez o desejo que sentia por ela. Puxa vida, nem um pouco. Seu sexo permaneceu rígido dentro dela, ainda exaltando e impulsionando, funcionando por vontade própria enquanto a fragrância doce e terrena do corpo de Jenna se misturava ao cheiro do seu próprio sangue.
Ele tocou o ponto onde a mordida dela ainda latejava. As pontas dos seus dedos surgiram pegajosas por conta do filete de sangue que escorria em seu peito.
– Jesus Cristo – sibilou ele, a voz contraída por causa da surpresa e do excesso de excitação.
– Desculpe – murmurou ela, parecendo chocada. – Eu não quis...
Quando ele olhou para Jenna, a luz âmbar dos seus olhos transformados banhava o belo rosto e a boca. A linda boca inchada pelos beijos trocados. Seu sangue estava ali também, lustroso e rubro em seus lábios.
Tudo que era da Raça dentro dele se concentrou naquela mancha brilhante e escura, o desejo selvagem surgindo em seu íntimo. E ainda pior quando a ponta da língua rosada lambeu qualquer traço escarlate.
Uma fome o constringiu como um torno. Ele já estava perigoso por causa do desejo e agora, com essa avidez nova e crescente... Titubeou, ainda que cada impulso selvagem dentro dele clamasse de desejo para que tomasse aquela mulher de todas as maneiras que alguém da sua espécie tomaria.
Forçando-se a apaziguar as coisas antes que elas saíssem ainda mais do controle, deslizou para fora do seu calor e virou as pernas na beirada do colchão com uma imprecação oportuna. O chão estava gelado sob seus pés, frígido ao encontro da sua pele suave e avivada. Quando a mão de Jenna pousou em suas costas, seu toque o trespassou como uma chama.
– Brock, você está bem?
– Preciso ir – respondeu, palavras ríspidas que rasparam em sua língua.
Foi difícil demais fazer seu corpo se afastar da cama enquanto Jenna estava tão próxima, tão nua e linda. Tocando-o com preocupação encantadora, ainda que desnecessária.
Aquele encontro – o sexo que ele oferecera com tanta benevolência, pensando ter tudo sob controle – deveria ser para ela. Pelo menos foi disso que ele se convenceu quando a beijou na sala de guerra e percebeu que ela estava sozinha, intocada, há tempo demais. Mas fora um movimento egoísta da sua parte.
Ele a desejara, e esperou que só precisasse tê-la em sua cama para tirá-la da cabeça. Antecipara que ela seria como qualquer outra das suas parceiras humanas deliberadamente descomplicadas e agradavelmente prazerosas. Não poderia estar mais errado. Em vez de aplacar a atração que sentia por Jenna, fazer amor com ela só aumentou seu desejo. Ainda a desejava, agora ainda mais do que antes.
– Não posso ficar. – A declaração murmurada era mais um reforço para si mesmo do que uma explicação direcionada a ela. Sem fitá-la, sabendo que não conseguiria encontrar as forças para sair dali caso o fizesse, levantou-se. Esticou-se para pegar os jeans e os vestiu com rapidez. – O pôr do sol logo virá. Tenho que revisar as instruções da patrulha, preparar as armas e a munição...
– Tudo bem, não precisa me dar explicações – interrompeu-o atrás dele. – Eu não ia pedir que você ficasse aqui me abraçando nem nada assim.
Isso fez com que ele se virasse. Ficou aliviado em ver que não havia nem julgamento nem raiva em sua expressão, nem no olhar firme que prendeu o seu, mas não apostou muito na determinação do maxilar dela. Ela devia imaginar que aquilo a fazia parecer forte, imperturbável – a confiança ensaiada e impassível que dizia que ela nunca recuaria ante nenhum desafio.
Se tivesse acabado de conhecê-la, poderia ter acreditado naquela expressão. Mas só o que ele enxergava era a vulnerabilidade secreta e frágil que se escondia atrás daquela máscara de quem não leva desaforo para casa.
– Não pense que isto foi um erro, Jenna. Não quero que lamente o que aconteceu aqui.
Ela deu de ombros.
– O que há para lamentar? Foi só sexo.
Sexo enlouquecedoramente incrível, corrigiu-a mentalmente, mas conteve seu impulso de dizer, pois só de pensar nisso já ficava excitado novamente. Deus, ele precisava encontrar um chuveiro frio bem rápido. Ou, quem sabe, uma banheira de gelo. Por uma semana inteira.
– É. – Pigarreou. – Tenho que ir agora. Se a sua perna incomodar, ou se precisar de qualquer outra coisa... se eu puder fazer algo por você, é só dizer. Ok?
Ela assentiu, mas ele entendeu, pelo brilho desafiador em seus olhos e pelo elevar teimoso do queixo, que ela jamais o procuraria. Ela podia ter relutado em aceitar a sua ajuda antes, mas, agora, estava mais do que determinada a recusar tudo o que ele pudesse lhe oferecer.
Se ele tinha dúvidas de que aquele encontro fora um erro, a resposta estava bem ali na sua frente.
– Te vejo por aí – disse ele, sentindo-se tão inútil quanto soou.
Não esperou até que ela lhe dissesse para esperar sentado, ou algo ainda mais sucinto do que isso. Virou-se e saiu do quarto, apanhando a camiseta no meio do caminho, chamando-se de idiota de primeira classe ao fechar a porta atrás de si, seguindo pelo corredor vazio.
Com um gemido de autodepreciação, Jenna se deixou cair de novo na cama enquanto a porta do quarto se fechava atrás de Brock. Ela sempre levou jeito para assustar os homens, com ou sem uma pistola carregada na mão, mas fazer com que um homem formidável como Brock, um vampiro, pelo amor de Deus, fugisse correndo pela porta depois do sexo deveria valer algum tipo de prêmio.
Ele disse que não queria que ela pensasse que ficar nua com ele havia sido um erro. Não queria que ela se arrependesse. Contudo, a expressão do seu rosto ao fitá-la parecia contradizer tudo isso. E o modo como ele saíra em disparada tampouco deixava muito espaço para dúvidas.
– Foi apenas sexo – murmurou entredentes. – Vê se cresce.
Ela não sabia por que deveria se sentir magoada ou envergonhada. Se não por outro motivo, devia estar grata pela liberação da sua frustração sexual acumulada. Ficou muito claro que ela precisava daquilo. Não se lembrava de se sentir tão excitada e descontrolada como esteve com Brock. Por mais saciada que se sentisse, seu corpo ainda vibrava. Todos os seus sentidos pareciam sintonizados numa frequência acima do normal. Sua pele parecia viva, formigando com hipersensibilidade, apertada demais para o seu corpo.
E também havia a mais estranha das emoções. Deitou-se, tomada pela confusão a respeito da curiosidade que a fizera morder Brock, com tanta força que chegara a arrancar sangue. O estranho sabor doce e picante dele ainda pairava em sua língua, tão exótico e enigmático quanto ele próprio.
Ela tinha a leve sensação de que deveria estar chocada com o que fizera. Na verdade, sentira-se horrorizada logo em seguida, mas enquanto estava ali deitada, sozinha na cama que pertencia a ele, uma parte obscura e confusa sua desejava mais.
Que diabos estava pensando? Devia estar perdendo a cabeça ao pensar tais coisas, quanto mais ter se permitido agir por impulso.
Ou, talvez, o que a motivava era algo pior...
– Caramba. – Jenna se sentou quando uma preocupação repentina e doentia surgiu.
Seu sangue e seu DNA começaram a sofrer alterações depois que aquele implante fora colocado dentro dela. E se isso não fosse a única coisa que estivesse mudando?
Com o medo pesando como uma rocha fria em seu estômago, saltou da cama e se apressou para o banheiro, acendendo todas as luzes. Recostando-se na bancada, arreganhou o lábio superior e fitou seu reflexo.
Nada de presas.
Ainda bem.
Nada a não ser seu reflexo já conhecido, seus dentes humanos sem nada de especial. Nunca se sentiu tão feliz em vê-los desde o dia em que tirara o aparelho ortodôntico aos treze anos, quando era uma garota alta e valente que teve que chutar os traseiros de muitos dos colegas de ensino médio por todas as gozações que recebia por causa da sua boca metálica e do sutiã de sustentação esportivo. Teria sido poupada de muito esforço e muitos hematomas se tivesse podido mostrar um par de presas afiadas para os seus torturadores adolescentes.
Suspirou longamente e se recostou na pia. Ela parecia normal, o que era um alívio, mas, por dentro, estava diferente. Sabia disso, e não precisava dos resultados mais recentes dos exames de Gideon para lhe dizer que algo peculiar estava acontecendo debaixo da sua pele.
Em seus ossos.
No sangue que parecia correr como rios de lava em suas veias.
Levou uma mão por baixo dos cabelos, esfregando os dedos na nuca, onde o Antigo fizera a incisão e inserira o odioso pedaço biotecnológico dentro dela. Já havia cicatrizado, ela não sentia nenhum traço sob a superfície da pele como antes. Todavia, vira as radiografias; sabia que estava lá, infiltrando-se em seus nervos e na medula óssea. Misturando-se ao seu DNA.
Tornando-se uma parte sua.
– Droga – murmurou, uma onda de vertigem surgindo.
De que outras maneiras sua vida podia se complicar mais? Ela tinha algo monumental com que lidar, e, mesmo assim, ficara nua com Brock. Pensando bem, talvez ela tivesse precisado estar com ele exatamente por causa de todo o resto com que vinha lidando ultimamente. O que não precisava era complicar ainda mais uma situação já complicada.
Por certo, não precisava se sentar ali e se preocupar com o que ele poderia pensar dela agora. Não precisava de nada disso, mas ficar dizendo isso para si mesma não impedia que pensamentos sobre ele invadissem sua mente.
E, enquanto tirava o curativo que cobria o ferimento em sua coxa e ligava o chuveiro, disse a si mesma que não precisava que Brock, nem ninguém mais, a ajudasse a superar o que haveria adiante. Por muito tempo já, ela estava sozinha. Sabia o que era lutar por conta própria, superar dias sombrios.
Mas saber disso não a impedia de se lembrar da força de Brock – do poder calmante das suas palavras suaves e das mãos habilidosas. As promessas suavemente murmuradas de que ela não estava sozinha. De que, com ele, estava segura.
– Não preciso dele – sussurrou para o eco vazio do banheiro. – Não preciso de nada de ninguém.
Houve um leve tremor em sua voz, uma nota trêmula de medo que ela odiou ouvir. Inalou fundo e expirou um xingamento.
Entrou debaixo do chuveiro, debaixo da água quente, e fechou os olhos. Deixou que o vapor a envolvesse por completo, permitindo que o ritmo da água caindo engolisse seu choro suave e trêmulo.
Brock não deveria se surpreender por encontrar um dos outros guerreiros, já que a noite se aproximava e a maioria dos membros da Ordem logo sairia em patrulha pela cidade. Mas, muito provavelmente, a última pessoa que gostaria de ver ao sair do vestiário, onde passara pelo menos uma hora debaixo do jato frio, era Sterling Chase.
O antigo agente da Agência de Policiamento estava limpando suas pistolas numa das mesas da sala de armas. Ele ergueu os olhos do trabalho quando Brock entrou, já vestido de uniforme preto e coturnos, pronto para começar a missão da noite.
– Parece que você e eu somos parceiros hoje – anunciou Chase. – Lucan vai mandar Kade e Niko para Rhode Island. Algo relacionado com alguma informação que Reichen conseguiu em seu recente trabalho na Europa. Eles vão sair assim que escurecer.
Brock grunhiu. Ele e Chase, parceiros de patrulha? E por falar num dia ruim ficando ainda pior...
– Obrigado por avisar. Vou tentar não te matar acidentalmente enquanto procuramos pelos bandidos hoje.
Chase lhe lançou um olhar inexpressivo.
– Digo o mesmo.
– Droga – sibilou Brock num suspiro. – Qual de nós o irritou assim?
As sobrancelhas de Chase se ergueram debaixo do cabelo loiro curto.
– Lucan – explicou Brock. – Não entendo por que ele nos colocaria juntos, a menos que esteja tentando demonstrar alguma coisa para um de nós ou ambos.
– Na verdade, foi sugestão minha.
A admissão não melhorou muito as coisas. Brock ficou imóvel, a suspeita crispando sua testa.
– Você sugeriu que fôssemos parceiros na patrulha.
Chase inclinou a cabeça.
– Isso mesmo. Considere isto um ramo de oliveira. Saí da linha antes em relação a você e à humana. Eu não deveria ter dito o que disse.
Brock o encarou, incrédulo. Avaliou-o com atenção, mais do que disposto a esquentar as coisas se ele sentisse um mínimo de duplo sentido no macho arrogante.
– Deixa eu te dizer uma coisa, Harvard. Não sei que tipo de jogo você está fazendo, mas você não vai querer foder comigo.
– Jogo nenhum – disse Chase, os olhos azuis perfurantes impassíveis. Objetivos, francos, para assombro de Brock.
– Muito bem – disse devagar, cauteloso para que o outro não se sentisse confiante rápido demais.
Já estivera em missões com Sterling Chase. Já o vira trabalhar, e sabia que o macho podia ser uma serpente, tanto em combates armados como numa guerra de palavras. Ele era perigoso, e só porque estava estendendo a mão numa trégua aparente não significava que Brock devesse se mostrar disposto a confiar nele.
– Ok – murmurou. – Desculpas aceitas.
Chase assentiu, depois voltou a limpar as armas.
– A propósito, o corte no seu pescoço está sangrando.
Brock grunhiu uma imprecação ao levantar a mão e passar os dedos sobre a marca de mordida de Jenna. Só havia um leve traço de sangue ali, mas mesmo apenas uma fração bastaria para chamar a atenção de alguém pertencente à Raça. Quer estivesse numa trégua ou não, era bem a cara de Chase não deixar isso passar sem ao menos um comentário.
– Estarei pronto para sairmos ao anoitecer – disse Brock, os olhos cravados na cabeça loira que nem se mexeu em resposta, a atenção de Chase permanecendo fixa no trabalho disposto na mesa à sua frente.
Brock girou e saiu para o corredor. Não precisava do lembrete do ocorrido entre ele e Jenna. Ela esteve em sua mente, ocupando grande parte dos seus pensamentos, desde o momento em que saíra do seu antigo apartamento.
O pedido de desculpas de Chase o fez perceber que também devia um.
Não queria deixar as coisas como havia deixado com Jenna. Uma parte sua questionava se ele havia sido justo ao segui-la, indo atrás dela depois que saíra correndo, refreando as lágrimas. Arrancara sua tristeza com o toque, mas será que fazer isso também a deixou maleável às suas necessidades?
Não fora seu plano manipulá-la até sua cama, não importando o quanto a desejava. E, se a seduzira, não havia como confundir o desejo de Jenna depois que haviam começado. Não era muito difícil rememorar a sensação das mãos dela em sua pele, suaves e exigentes. A boca dela, quente e molhada, na sua, dando e recebendo, enlouquecendo-o. O corpo dela o embainhou, suave, uma seda cálida, uma lembrança que o fez enrijecer só de pensar.
E depois, quando ele sentiu a pressão cega dos seus dentes humanos em sua garganta...
Puta merda.
Nunca antes vivenciara nada tão sensual.
Jamais conheceu uma mulher tão desejável quanto Jenna, e ele não vivera exatamente a vida de um monge para não ter base de comparação. As fêmeas humanas há muito se tornaram seu tipo preferido, uma digressão agradável sem as ameaças de um relacionamento. E nunca se sentiu tentado a pensar além de poucas noites no que se referia às amantes humanas. Agora se questionava se não pensava em Jenna sob a mesma ótica. Bem no fundo, tinha que admitir que tivera esperanças de mantê-la naquele pequeno compartimento.
E, neste instante, estava determinado a abafar a atração que sentia por ela e se afastar enquanto ainda havia chance.
Mas ainda existia a questão de como as coisas tinham ficado entre eles.
Mesmo que ela estivesse chateada, e tinha todos os motivos para estar, queria que soubesse que ele lamentava muito. Não pelo sexo, que fora tão fenomenal que era um milagre os dois não terem entrado em combustão juntos, mas por ter saído sem enfrentar sua própria fraqueza. Ele queria consertar aquilo para que pudessem seguir em frente.
E serem o que, amigos?
Inferno, sequer tinha certeza se sabia como fazer isso. Podia contar seus amigos nos dedos de uma mão, e nenhum era humano. Nenhum deles era uma fêmea que o incendiava apenas estando no mesmo cômodo.
Apesar disso tudo, viu-se diante dos seus antigos aposentos, o punho cerrado pronto para bater à porta. Encostou as juntas dos dedos numa batida leve. Nenhuma resposta.
Por um momento, ponderou se devia simplesmente dar meia-volta e deixar as coisas como estavam. Catalogar o episódio com Jenna como um erro que jamais voltaria a se repetir. Mas, antes que conseguisse decidir o que seria pior, entrar sem ser convidado ou fugir novamente, ele abriu a porta.
O cômodo estava escuro, sem nenhuma luz acesa. Ele sentiu o cheiro de xampu e de vapor se dissipando do banheiro ao entrar silenciosamente no apartamento. Não emitiu som algum ao entrar no quarto, onde Jenna estava deitada na sua cama, adormecida, virada de lado, de costas para ele. Avançou na direção dela, observando-a por um momento, atento à respiração pausada e tranquila.
O desejo de se deitar ao seu lado foi muito forte, mas ele se conteve. Com dificuldade.
Seu cabelo escuro estava espalhado sobre o travesseiro, úmido, em mechas lustrosas. Esticou a mão e deixou os dedos passarem por aquela maciez, atento para não perturbá-la. Seu pedido de desculpas teria que esperar. Talvez ela não desejasse ouvi-lo.
Sim, talvez fosse melhor para ambos se ele simplesmente se afastasse de qualquer envolvimento pessoal e o mantivesse estritamente profissional pelo tempo em que ela permanecesse no complexo. Deus bem sabia, esse parecia um plano sensato. O mais seguro para ambos, mas especialmente para ela. Aproximar-se demais de alguém a quem fora designado para proteger significava tornar-se desatento no que estava treinado a fazer.
Já passara por isso, e uma jovem vibrante pagara o preço com a própria vida. Não estava disposto a colocar Jenna nesse tipo de perigo. Sim, claro, ela era durona e capaz, não a inocente ingênua que depositara sua confiança em Brock, morrendo por causa do erro. Mas, enquanto estivesse encarregado do bem-estar de Jenna, incumbido da sua proteção, teria que se manter distante. Essa promessa ele estava determinado a cumprir.
Muito provavelmente ela não discutiria, depois do modo como ele estragou as coisas entre eles naquele mesmo quarto.
Soltou a mecha úmida sobre o travesseiro. Sem dizer nada, sem nenhum som, afastou-se da cama. Saiu do apartamento tão sorrateiramente quanto havia entrado... Sem saber que, na quietude do quarto, os olhos de Jenna se abriram, a respiração suspensa enquanto ela o ouvia realizar uma fuga quase perfeita pela segunda vez naquela noite.
Capítulo 15
– Terra chamando Jenna. Está tudo bem com você?
– Hã? Ah, sim. Estou bem. – Jenna levantou o olhar para Alex, saindo do torpor que vinha roubando sua concentração a noite inteira. Desde a entrada e a saída sorrateiras de Brock em seu quarto há algumas horas. Sem falar no sexo incrível que precedeu aquilo. – Só estou perdida em pensamentos, acho.
– Foi exatamente o que perguntei – disse Alex. – Você está em outro lugar desde que se sentou aqui comigo hoje à noite.
– Desculpe. Não há com que se preocupar. Está tudo bem.
Jenna pegou o garfo e revirou um pedaço de salmão no prato. Não estava com fome, mas quando Alex a apanhara no quarto para jantarem juntas, não conseguiu negar que ficara feliz em ter a companhia da melhor amiga. Ela queria fingir, mesmo que por pouco tempo, que as coisas permaneciam como no Alasca, há poucas semanas, antes de ela tomar conhecimento da corrupção e da morte do irmão, antes de ela ficar sabendo sobre vampiros e biotecnologia alienígena e mutações aceleradas de DNA.
Antes de ela piorar seus problemas se deitando com Brock.
– Oooi! – Do outro lado da mesa, Alex a observava por sobre a borda do copo de cerveja. – Para a sua informação, você está fazendo aquilo de novo, Jen. O que está acontecendo?
– Está se referindo a algo além do óbvio? – Jenna replicou, deixando o prato de lado e se recostando na cadeira.
Olhou para a amiga, a pessoa mais compreensiva e incentivadora que ela conhecia, a única pessoa, além de Brock, que lhe dera o apoio de que precisava para superar a pior provação da sua vida. Jenna percebeu que devia a Alex mais do que o costumeiro “não se preocupe comigo”. Pouco importava que Alex tivesse a habilidade de saber de tudo por meio do seu detector de mentiras inato, cortesia da sua genética de Companheira de Raça.
Jenna respirou fundo e emitiu um suspiro.
– Uma coisa aconteceu. Entre mim e Brock.
– Uma coisa... aconteceu? – Alex a fitou em silêncio por um instante antes que suas sobrancelhas se unissem em sinal de confusão. – Está querendo dizer que...
– É. É isso mesmo o que estou querendo dizer. – Jenna se levantou da mesa e começou a pegar os pratos. – Eu estava sozinha na sala de guerra, depois que todos tinham ido descansar. Brock chegou e começamos a conversar, depois a nos beijar. As coisas ficaram bem intensas, bem rápidas. Acho que nenhum de nós planejou que isso acontecesse.
Alex a seguiu até a cozinha.
– Você e Brock... transaram? – perguntou. – Fizeram sexo na sala de guerra?
– Deus, não! Só nos beijamos lá. Na mesa de reuniões. O sexo veio depois, no quarto dele. Ou melhor, no meu quarto. – Jenna sentiu o rosto arder. Não estava acostumada a discutir sua vida íntima, basicamente porque fazia muito tempo que não tinha uma. E, por certo, nada tão descontrolado como o que ela e Brock partilharam. – Ah, pelo amor de Deus, não me faça entrar em detalhes. Diga alguma coisa, Alex.
Ela a fitou, meio que de boca aberta.
– Eu, hã... estou...
– Chocada? Desapontada? Pode falar – disse Jenna, tentando entender o que a amiga devia estar pensando dela, sabendo que estivera evitando qualquer coisa semelhante a um relacionamento ou intimidade nos anos desde o acidente, só para ir para a cama com um dos guerreiros da Ordem após poucos dias em sua companhia. – Você deve me achar patética. Deus bem sabe que eu acho.
– Jenna, não. – Alex a segurou pelos ombros, forçando-a a encará-la. – Não acho nada disso de você. Estou surpresa... Mas, pensando bem, nem tanto. Era meio óbvio para mim que você e Brock tinham uma conexão, antes mesmo de você ser trazida para o complexo. E Kade mencionou, algumas vezes, que Brock se sentia muito atraído por você e que estava preocupado mostrando-se protetor.
– Verdade? – A curiosidade ganhou vida dentro dela, contra a sua vontade. – Ele falou com Kade sobre mim? Quando? O que ele disse? – De repente, sentiu-se uma adolescente querendo saber detalhes de uma paixonite juvenil. – Meu Deus, deixa pra lá. Não quero saber. Não importa. O que aconteceu entre nós não significou nada. Na verdade, quero mesmo é esquecer isso tudo.
Se ao menos fosse fácil assim tirar tudo aquilo da cabeça.
O olhar de Alex se suavizou, as palavras foram cuidadosas.
– É isso o que Brock acha também? Que fazer amor não significou nada? Que vocês deveriam tentar fingir que nada aconteceu?
Jenna pensou na paixão que partilharam e nas palavras carinhosas dele depois. Ele lhe dissera que não queria que ela se arrependesse daquilo. Que não queria que ela pensasse que aquilo havia sido um erro. Palavras doces e atenciosas que lhe dissera pouco antes de sair em disparada do quarto deixando-a sozinha e confusa no escuro.
– Concordamos de cara que não haveria envolvimento emocional, que não haveria nada entre nós – ouviu-se murmurar ao desviar do olhar de Alex e se virar para pegar mais pratos. Não queria pensar em como fora bom estar nos braços de Brock, ou na avidez assustadora que ele lhe incitava. – Foi só sexo, Alex, e apenas uma vez. Quero dizer, tenho coisas mais importantes com que me preocupar, certo? Não vou piorar tudo me envolvendo com ele – fisicamente ou de qualquer outro modo.
Parecia um argumento bastante razoável, ainda que ela não estivesse totalmente segura se estava tentando convencer a si mesma ou a amiga.
Alex saiu da cozinha atrás dela.
– Acho que já gosta dele, Jenna. Acho que Brock começou a significar alguma coisa para você e isso a está aterrorizando.
Jenna virou, aflita por ouvir a verdade dita em voz alta.
– Não quero sentir nada por ele. Não posso, Alex.
– Seria tão ruim assim se sentisse?
– Sim – respondeu com ênfase. – A minha vida já é incerta o bastante. Eu não seria tola em me apaixonar por ele?
O sorriso de Alex foi sutilmente compassivo.
– Acho que existem coisas piores que poderia fazer. Brock é um bom homem.
Jenna meneou a cabeça.
– Ele nem é totalmente humano, para o caso de uma de nós se esquecer desse pequeno detalhe. Embora eu talvez devesse estar questionando a minha própria humanidade, depois que o mordi.
As sobrancelhas de Alex se arquearam.
– Você o mordeu?
Tarde demais para tentar esconder sua revelação, Jenna bateu o dedo na lateral do pescoço.
– Enquanto estávamos na cama. Não sei o que deu em mim. Acho que fui arrebatada pelo momento e... o mordi. Com força suficiente para extrair sangue.
– Puxa – Alex disse lentamente, avaliando-a. – E como você se sentiu mordendo-o? – Jenna bufou.
– Louca. Impulsiva. Como um trem desgovernado. Foi muito embaraçoso, se quer saber a verdade. Acho que Brock também achou isso. Ele mal conseguiu esperar para sair correndo dali.
– Falou com ele desde então?
– Não, e espero não ter que falar. Como já disse, vai ser melhor se ele e eu esquecermos disso tudo.
Mas, mesmo ao dizer isso, ela não conseguiu deixar de pensar no momento em que percebeu que ele voltara para o quarto depois que ela tomara banho e se deitara. Não conseguiu deixar de pensar no seu desespero para que ele falasse com ela, que dissesse alguma coisa, qualquer coisa, naqueles poucos minutos em que a observara no escuro, achando que ela estava adormecida sem notar sua presença.
E agora, depois de tentar convencer a si mesma e a Alex que estava no controle da situação com Brock, a lembrança da paixão deles fazia seu sangue correr inegavelmente mais rápido nas veias.
– Foi um erro – murmurou. – Não vou piorar tudo imaginando que há mais nisso. Só o que posso fazer é me esforçar para que isso não se repita.
Ela parecia tão segura de si que pensou que Alex acreditaria nela, mas, quando olhou para a amiga, sua melhor amiga, que sempre esteve ao seu lado, nas tragédias e nos triunfos, seus olhos estavam gentis, carregados de compreensão.
– Vamos, Jen. Vamos acabar de lavar a louça e depois ver como Dylan e as outras estão indo nas investigações.
– Faz 25 minutos que estamos sentados aqui, meu chapa. Acho que o seu cara não vai aparecer. – Brock, atrás do volante do Rover estacionado, olhou para Chase. – Quanto tempo mais vamos ter que ficar aqui esperando pelo idiota?
Chase observou o estacionamento deserto, coberto de neve em Dorchester, onde marcara um encontro com um dos seus antigos contatos da Agência.
– Deve ter acontecido alguma coisa. Mathias Rowan é um bom homem. Ele não é de marcar e não aparecer. Vamos esperar mais uns cinco minutos.
Brock emitiu um grunhido de impaciência e aumentou o aquecedor do utilitário. Ele não gostara da notícia de ter Chase como parceiro na patrulha da noite, mas ficou ainda menos animado que o trabalho na cidade incluísse a perspectiva de se encontrar com um membro da verdadeira organização policial da nação da Raça. A Agência e a Ordem mantinham um relacionamento de desconfiança de longa data, pois os dois lados discordavam de como crime e castigo deveriam ser lidados entre os membros da Raça.
Se a Agência foi um dia eficiente em algum momento no passado, Brock não sabia. Há muito tempo a organização se tornara mais política do que qualquer outra coisa, geralmente favorecendo a bajulação e a retórica como uma forma de solucionar os problemas, duas coisas que, por acaso, estavam ausentes nos registros da Ordem.
– Cara, como eu odeio o inverno – murmurou Brock quando outra nevasca começou a cair. Uma rajada de vento gélido bateu na lateral do veículo, uivando como uma banshee através do estacionamento vazio.
Verdade fosse dita, boa parte do seu mau humor tinha a ver com o modo com que havia estragado as coisas com Jenna. Não conseguia parar de pensar em como ela estaria, no que estaria pensando. Se o desprezava, o que, por certo, era direito dela. Estava ansioso para que a missão daquela noite chegasse ao fim, para poder voltar ao complexo e ver com seus próprios olhos se Jenna estava bem.
– O seu cara, esse Rowan, é melhor ele não estar tirando uma com a gente – resmungou. – Não fico gelando a minha bunda por qualquer um, muito menos por um virtuoso idiota da Agência.
Chase lançou-lhe um olhar significativo.
– Quer você acredite ou não, existem alguns bons indivíduos na Agência de Policiamento. Mathias Rowan é um deles. Ele tem sido meus olhos e meus ouvidos lá dentro há meses. Se quisermos alguma chance de descobrir os possíveis aliados de Dragos na Agência, precisamos de Rowan do nosso lado.
Brock assentiu com seriedade e voltou a se recostar para continuar na espera. Chase devia ter razão a respeito daquele aliado improvável. Poucos dentro da Agência gostavam de admitir que havia rupturas nas suas fundações, rupturas que permitiram que um câncer como Dragos operasse dentro da organização durante décadas. Dragos se escondera atrás de um nome falso, acumulando poder e informações, recrutando um número incalculável de seguidores que partilhavam suas opiniões e que não se importavam em matar por ele, em morrer por ele, se o dever assim o exigisse. Dragos subira na hierarquia, chegando ao nível da diretoria na Agência antes que a Ordem o desmascarasse há vários meses e o fizesse se refugiar no submundo.
Embora tivesse saído da Agência, a Ordem tinha certeza de que ele não rompera todos os seus laços. Havia aqueles que ainda estavam de acordo com seus planos perigosos. Aqueles que ainda se aliavam a ele numa conspiração silenciosa, escondendo-se sob as camadas de cretinice burocrática que impediam que Brock e os outros guerreiros entrassem à força, carregados de munição, para acabar com eles.
Um dos principais objetivos de Chase desde que Dragos batera em retirada e fugira era dissecar essas camadas dentro da Agência. Para se aproximar dele, a Ordem precisaria se aproximar dos seus tenentes sem disparar nenhum alarme. Um movimento em falso poderia fazer com que Dragos se escondesse ainda mais.
Uma operação mais do que secreta, e ainda mais delicada visto que a Ordem depositara suas esperanças de sucesso nas mãos voláteis e impulsivas de Sterling Chase, e a confiança deste num antigo amigo cuja lealdade só era atestada por sua palavra.
No painel do carro do lado do passageiro, o celular de Chase começou a vibrar.
– Deve ser Rowan – disse ele, pegando o aparelho e atendendo à chamada. – Sim. Estamos esperando. Onde você está?
Brock ficou observando a neve cair através do para-brisa, atento à parte da conversa de Chase que não pareciam boas notícias.
– Ah, merda, algum morto? – Chase ficou calado por um segundo, depois sibilou uma imprecação. Ante o olhar questionador de Brock, ele explicou: – Foi retido por outro chamado. Um garoto de um Refúgio Secreto deixou as coisas saírem do controle numa festa. Houve uma briga, depois alimentação na rua. Um humano morto, outro fugiu a pé, sangrando bastante.
– Jesus... – Brock murmurou.
Um humano morto e uma sangria acontecendo numa rua pública já era bastante ruim. O problema maior era a testemunha fugitiva. Não era difícil imaginar a histeria que um humano tresloucado poderia causar, correndo por aí gritando a palavra “vampiro”. Sem falar no que poderia provocar à espécie de Brock.
O cheiro de sangue fresco, dos glóbulos vermelhos escoando poderia ser um chamariz para qualquer membro da Raça num raio de cinco quilômetros. E Deus não permitisse que houvesse algum Renegado ainda na cidade. Uma fungadela de um ferimento bastaria para incitar a ralé da Raça viciada em sangue numa onda de loucura.
O maxilar de Chase ficou rijo ao voltar a falar com Mathias Rowan no celular.
– Me diga que os seus homens retiveram o fugitivo. – A julgar pelo xingamento que se seguiu, Brock deduziu que a resposta fora não. – Maldição, Mathias. Você sabe tão bem quanto eu que temos que tirar esse humano das ruas. Mesmo que seja necessário envolver a divisão inteira de Boston para rastreá-lo, faça isso. Quem da Agência está aí com você?
Brock viu e ouviu enquanto a conversa se estendia, observando um lado de Sterling Chase que não reconhecia. O antigo agente era frio e autoritário, lógico e preciso. O cabeça-quente imprevisível com que Brock acabara se acostumando como membro da Ordem parecia ter ficado atrás daquele líder capaz e incisivo ao seu lado no Rover.
Ouvira dizer que Chase fora um garoto de ouro na Agência antes de se unir à Ordem, ainda que isso não tivesse sido provado no ano em que Brock vinha trabalhando ao seu lado. Agora sentia o surgimento de um respeito novo pelo antigo agente, além de uma curiosidade crescente a respeito do outro lado obscuro dele, que nunca parecia estar muito longe da superfície.
– Onde você está, Mathias? – Chase gesticulou para Brock fazer o carro andar enquanto falava com seu contato na Agência. – Olha aqui, deixe que eu me preocupo se a Ordem precisa ou não se envolver nisso. Não estou pedindo permissão, e você e eu nunca tivemos esta conversa, entendeu? Poupe isso para quando eu chegar aí. Já estamos a caminho.
Brock virou o Rover e seguiu as instruções de Chase depois que ele interrompeu os protestos audíveis de Mathias Rowan e guardou o celular no bolso do casaco. Aceleraram dentro da cidade, na direção do cais industrial, onde muitos dos jovens – tanto humanos como da Raça – se reuniam em raves e festas particulares após outras festas.
Não foi difícil encontrar a cena do crime. Dois sedãs pretos sem identificação estavam estacionados junto a um depósito do cais. Diversos machos da Raça em seus casacos e ternos pretos de lã circundavam um objeto grande inerte na neve suja do estacionamento adjacente ao depósito.
– São eles – disse Chase. – Reconheço a maioria da Agência.
Brock conduziu o Rover até a área, olhando para o grupo quando diversas cabeças se viraram na direção do veículo que se aproximava.
– Sim, são eles mesmos. Inúteis e confusos – comentou Brock, avaliando-os num relance. – Qual deles é o Rowan?
Ele não precisava ter perguntado. Logo depois, um do grupo se afastou dos outros, apressando-se para se encontrar com Brock e Chase enquanto eles saíam do carro. O agente Mathias Rowan era alto e grande como qualquer outro guerreiro, os ombros largos como montes grossos debaixo do casaco de alfaiataria bem cortado. Olhos verde-claros revelavam inteligência e desagrado conforme se aproximava, a pele esticada nas maçãs do rosto.
– Pelo visto, vocês, garotos da Agência, estão com um probleminha esta noite – disse Chase, levantando a voz para que o resto dos agentes reunidos o ouvisse. – Pensamos que poderiam precisar de uma ajuda.
– Você ficou louco? – reclamou Rowan, bem baixinho, para só Chase ouvir. – Você deve saber que qualquer um desses agentes prefere arrancar as pernas a deixar que você se meta numa investigação.
– É mesmo? – respondeu Chase, a boca encurvada num sorriso arrogante. – A noite está meio devagar até agora. Seria interessante deixá-los tentar.
– Chase, mas que droga. – Rowan manteve a voz baixa. – Eu disse para você não vir.
Chase resmungou:
– Houve um tempo em que quem dava as ordens aqui era eu e você as seguia, Mathias.
– Não mais. – Rowan franziu o cenho, mas não havia animosidade na sua expressão. – Temos três agentes em perseguição ao fugitivo; eles o apanharão. O prédio foi esvaziado, não há mais humanos, e qualquer testemunha em potencial do incidente teve a memória apagada. Está tudo sob controle.
– Ora, ora... a merda do Sterling Chase. – A recepção mal-humorada foi trazida pelo vento invernal, atravessando o estacionamento industrial onde alguns outros homens haviam se afastado do grupo mais atrás.
Chase olhou naquela direção, estreitando os olhos ante o homenzarrão da frente.
– Freyne – grunhiu, quase cuspindo o nome, como se não suportasse seu sabor. – Eu deveria ter imaginado que o idiota estaria aqui.
– Estão interferindo em assuntos da Agência – disse o agente Rowan, mais alto agora, para que todos o ouvissem. Lançou um olhar de aviso para Chase, mas falou com a arrogância irritante que parecia ser padrão nos agentes assim como os ternos e os sapatos bem lustrados. – Este incidente não é da alçada da Ordem. É um problema de Refúgio Secreto, e temos a situação sob controle.
Sorrindo perigosamente para os dois que se aproximavam, Chase deu a volta no amigo com pouco mais do que uma olhada de esguelha. Brock o acompanhou, os músculos se preparando para uma luta, já que registrara o ar de ameaça nos dois agentes que se aproximaram para confrontá-los.
– Jesus Cristo, é você mesmo – disse aquele que se chamava Freyne, os lábios curvados para trás em sinal de desdém. – Pensei que não o veria mais depois que estourou os miolos do seu sobrinho Renegado no ano passado.
Brock ficou tenso, pego desprevenido pelo comentário e sua crueldade deliberada. O ultraje o atiçou, contudo, Chase pareceu não se surpreender ante o lembrete impiedoso. Ignorou a tirada, num esforço que deve ter lhe custado um controle incrível, pelo maxilar travado, quando ele passou pelos antigos colegas ao se encaminhar para o homicídio.
Brock acompanhou as passadas largas de Chase, atravessando o redemoinho de flocos de neve, ao longo de janelas escurecidas de um sedã parado onde o garoto do Refúgio Secreto, que permitira que a sede o controlasse, aguardava. Brock sentiu o peso do olhar do jovem enquanto ele e Chase passavam ao lado do carro, suas imagens – dois machos muito bem armados em uniformes pretos e longos casacos de couro, sem dúvida membros da Ordem – refletidas nos vidros.
No chão perto do prédio, a neve estava manchada de vermelho-escuro onde a briga acontecera. O cadáver de um humano assassinado agora estava fechado num saco com zíper, sendo carregado num carro da Agência estacionado ali perto. O sangue estava morto e não era nenhuma tentação, mas o cheiro metálico ainda permeava o ar, fazendo com que as gengivas de Brock formigassem com o surgimento das presas.
Atrás deles, passadas esmagaram a neve e os pedriscos. Freyne pigarreou, pelo visto sem vontade de deixar as coisas quietas.
– Sabe, Chase, vou ser franco. Ninguém o culparia por abater aquele garoto.
– Agente Freyne – alertou Mathias Rowan, um aviso que não foi atendido.
– Ele não tinha como não saber, certo, Chase? Quero dizer... O garoto era Renegado, e só existe uma maneira de lidar com isso. A mesma maneira com que se lida com um cão raivoso.
Por mais determinado a atormentar que o agente estivesse, Chase parecia igualmente determinado a não lhe dar ouvidos.
– Por aqui – disse ele para Brock, apontando para indicar uma trilha de pingos grossos a partir da cena do crime.
Brock assentiu. Já havia notado a trilha que o fugitivo fizera. E, por mais que ele mesmo desejasse pegar o agente Freyne e socá-lo até não poder mais, se Chase conseguia ignorá-lo, ele faria o mesmo.
– Parece que ele fugiu para o cais.
– É – concordou Chase. – A julgar pela quantidade de sangue que ele está derramando, está fraco demais para ir muito longe. O cansaço vai obrigá-lo a parar em menos de um quilômetro.
Brock olhou para Chase.
– Portanto, se a área foi vasculhada e ninguém o encontrou ainda...
– Ele deve estar se escondendo em algum lugar não muito longe daqui – Chase concluiu o pensamento por ele.
Estavam para seguir a trilha quando a risada de Freyne soou logo atrás deles.
– Botar uma bala no meio da cabeça do garoto foi um ato de misericórdia, se quer saber a minha opinião. Mas há quem fique se perguntando se a mãe dele acha o mesmo... já que você matou o filho bem na frente dela.
Com isso, Chase parou. Brock relanceou na sua direção, vendo um músculo latejando perigosamente no maxilar travado.
Enquanto o resto do pequeno grupo se afastou da área próxima, Mathias Rowan se postou na frente do agente, a fúria vibrando em cada centímetro dele.
– Droga, Freyne, eu disse para calar a boca, e isso é uma ordem!
Mas o filho da puta não se dispôs a parar. Deu a volta em seu superior, ficando bem na frente de Chase.
– É de Elise que eu sinto pena nisso tudo. Aquela pobre mulher adorável... Ter perdido seu irmão Quentin na linha de batalha há tantos anos, e agora você mata o único filho bem na frente dela. Acho que não é surpresa nenhuma que ela tenha procurado consolo em outro lugar, mesmo em meio à ralé da Ordem. – Freyne emitiu um som vulgar na base da garganta. – Uma fêmea bonitinha como ela poderia ter escolhido quem quisesse dentre os machos que queriam levá-la para a cama. Caramba, eu mesmo teria me deliciado com uma amostra. Fico surpreso que você não o tenha feito.
Chase soltou um urro que reverberou pelo chão. Num movimento borrado que nem mesmo Brock conseguiu acompanhar, Chase se lançou sobre Freyne. Os dois machos grandes bateram nos pedriscos e na neve no chão, Chase prendendo o agente debaixo dele, socando-o no rosto.
Freyne também bateu, mas não era páreo para a fúria de Chase. Observando de perto, Brock não sabia se alguém poderia suportar a fúria letal que parecia emanar dele enquanto desferia golpe atrás de golpe.
Nenhum dos agentes fez menção de deter a altercação, muito menos Mathias Rowan. Ele ficou para trás, calado, estoico, o resto dos seus subordinados parecendo imitar suas reações. Deixariam Chase matar Freyne, e, quer essa morte fosse ou não merecida, Brock não podia permitir que aquela cena brutal se desenrolasse à evidente conclusão.
Avançou um passo, pôs uma mão no ombro agitado do guerreiro.
– Chase, meu chapa. Já basta.
Chase continuou socando, apesar de Freyne já não estar se defendendo. Com as presas imensas expostas e o olhar âmbar reluzente, ele não parecia querer, nem conseguir, controlar a besta dentro de si.
Quando o punho ensanguentado se ergueu uma vez mais para dar mais um golpe, Brock segurou sua mão. Segurou firme e com todas as suas forças, recusando-se a deixar que aquele martelo caísse mais uma vez. Chase se virou com um olhar enfurecido para ele. Arreganhou os dentes e disse algo impetuoso.
Brock meneou a cabeça devagar.
– Vamos, Harvard. Deixe-o. Não vale a pena matá-lo, não assim.
Chase o encarou nos olhos, os lábios retraídos sobre as presas. Grunhiu de modo animalesco, depois virou a cabeça de novo para ver o macho ensanguentado ainda preso debaixo do seu corpo, inconsciente na neve suja.
Brock sentiu o punho em sua mão começar a relaxar.
– Isso mesmo, cara. Você é melhor do que isso. Melhor do que ele.
Um celular tocou por perto. Pelo canto do olho, Brock viu Rowan levar o aparelho ao ouvido e se virar para atender a ligação. Chase ainda arfava perigosamente, sem querer libertar Freyne.
– Nós o pegamos – anunciou o agente Rowan, a declaração tranquila diminuindo um pouco da tensão. – Dois dos meus agentes encontraram o fugitivo debaixo de um caminhão de entrega no cais. Apagaram a memória dele e vão deixá-lo perto de um hospital do outro lado da cidade.
Brock assentiu em reconhecimento.
– Ouviu isso, Chase? Acabou. Não temos mais o que fazer aqui. – Soltou o punho de Chase, confiando nele para que não voltasse a atacar Freyne ou enfrentar qualquer um dos agentes ainda ali reunidos, observando em silêncio ansioso. – Solte-o, Chase. Acabou.
– Por enquanto – murmurou, por fim, Chase, a voz rouca e sombria. Fungou, livrou-se da mão de Brock sobre seu ombro. Com raiva ainda borbulhando dentro de si, deu um último soco no rosto castigado de Freyne antes de se pôr de pé. – Da próxima vez que eu te vir – grasnou –, você é um homem morto.
– Venha, Harvard. – Brock o afastou da área, sem deixar de perceber o olhar que Mathias Rowan lhes lançou enquanto seguiam na direção do Rover. – E isso lá é algum tipo de relacionamento diplomático com a Agência, cara?
Chase não disse nada. Seguiu alguns passos mais atrás, a respiração entrando e saindo dos pulmões audivelmente, o corpo emanando agressão tal qual uma explosão nuclear.
– Espero que não precisemos desse contato aí, porque é bem possível que ele não exista mais – disse Brock ao alcançar o carro.
Chase não respondeu. Nada além do silêncio às costas de Brock. Silêncio demais, na verdade.
Virou-se. Só o que encontrou foi muito espaço vazio onde Chase estivera há não mais do que um segundo antes. Ele sumira, desaparecera sem dar explicações, em meio à neve daquela noite.
Capítulo 16
Algumas horas depois do jantar com Alex, Jenna estava sentada na sala de guerra das Companheiras de Raça, na mesma mesa de reuniões onde ela e Brock abriram uma porta pela qual muito provavelmente nenhum dos dois estava pronto para passar. Mas tentou não pensar a respeito. Tentou não pensar na boca sensual de Brock na sua, ou nas mãos habilidosas, que lhe deram um prazer tão intenso ao mesmo tempo em que afastaram seu sofrimento e suas inibições.
Em vez disso, concentrou sua atenção no debate entre as mulheres da Ordem, que estavam reunidas na sala para revisar a situação da missão de localização das mulheres mantidas em cativeiro por Dragos. Só faltava Tess, a Companheira de Raça gestante, que aparentemente ficara em seus aposentos para descansar e, ao mesmo tempo, fazer companhia a Mira.
– Ela não está se sentindo mal, está? – perguntou Alex. – Não estão achando que o bebê vai chegar antes da hora, estão?
Savannah balançou de leve a cabeça ao apoiar as mãos na mesa.
– Tess disse que está se sentindo ótima, apenas um pouco cansada. O que é compreensível, já que faltam poucas semanas.
Houve uma ligeira hesitação em sua voz, seguida subitamente por um olhar sutil na direção de Jenna. Uma curiosidade silenciosa pairou em seus olhos. Naquele instante, Jenna notou que as palmas de Savannah estavam apoiadas no tampo da mesa. As sobrancelhas escuras finas suspensas e o sorriso parcial em sua boca deixaram evidente que seu dom de ler os objetos pelo toque acabara de lhe contar – sem dúvida em detalhes vívidos – sobre o beijo apaixonado que Jenna e Brock partilharam ali mesmo naquela superfície.
Quando a vergonha começou a fazer com que Jenna desviasse o olhar, Savannah apenas sorriu num divertimento sereno e lhe deu um pequeno aceno, como que para dizer que aprovava.
– Sabe, Dante fez um bolão de apostas sobre a data do nascimento – disse Dylan. – Rio e eu apostamos num bebê de Natal.
Renata balançou a cabeça, os fios curtos do cabelo escuro balançando ao redor do queixo.
– Ano Novo, esperem e verão. O filho de Dante jamais deixaria escapar a oportunidade para uma festa.
Na cabeceira da mesa, Gabrielle riu.
– Lucan jamais vai admitir que está ansioso em ter um bebê no complexo, mas sei muito bem que cinco dólares foram apostados no dia vinte de dezembro há pouco tempo.
– Alguma coisa especial sobre essa data? – Jenna perguntou, capturada pela animação e genuinamente curiosa.
– É o aniversário de Lucan – disse Elise, partilhando do bom humor de Gabrielle. – E Tegan apostou cem dólares em quatro de fevereiro, apesar de saber muito bem que é uma data distante demais para valer alguma coisa.
– Quatro de fevereiro – repetiu Savannah, assentindo em compreensão serena.
O sorriso de Elise era afável, carregado de lembranças, de saudades.
– A noite em que Tegan me encontrou caçando Renegados em Boston e tentou me impedir.
Dylan esticou a mão e apertou a da outra Companheira de Raça.
– E o resto, como dizem, é história.
Em seguida, a conversa passou para tópicos mais sérios, como o rastreamento de pistas e a formulação de novas estratégias, e Jenna sentiu um respeito crescente pelas companheiras inteligentes e determinadas dos guerreiros da Ordem. E, a despeito dos comentários anteriores de que o cansaço de Tess não era nada preocupante, também se viu apreensiva por ela, sentindo como se um componente daquela reunião estivesse faltando.
Um pensamento lhe veio enquanto observava atenta, vendo as expressões das outras mulheres: de alguma maneira, começara a considerá-las todas suas amigas. Sentia aquelas mulheres como importantes, bem como os seus objetivos. Por mais determinada que estivesse em não se considerar parte daquele lugar, percebeu, em meio àquelas pessoas, que desejava que elas fossem bem-sucedidas.
Queria ver a Ordem vencer Dragos, e havia uma parte nela – uma parte bem determinada – que queria participar do processo.
Jenna ouviu atentamente enquanto Elise discorria sobre a situação dos retratos falados que ela e Claire Reichen vinham fazendo com o desenhista de um Refúgio Secreto local amigo seu.
– Em poucos dias devemos terminar os retratos. Claire é ótima, garantindo que cada detalhe esteja certo em relação às suas lembranças da vez em que entrou no laboratório de Dragos através dos sonhos. Tomou notas meticulosas e tem uma incrível memória.
– Isso é bom – disse Renata. – Vamos precisar de toda ajuda que conseguirmos. Infelizmente, Dylan e eu nos deparamos com um pequeno problema em relação à Irmã Margaret.
– Ela está morando num asilo para freiras aposentadas em Gloucester – explicou Dylan. – Falei com a administradora e lhe disse que minha mãe e a Irmã Margaret tinham trabalhado juntas num abrigo para mulheres em Nova York. Não revelei o que, exatamente, queremos saber, claro. Em vez disso, mencionei que seria uma questão particular, e perguntei se poderia visitar a freira algum dia para conversar sobre o trabalho voluntário dela. A boa notícia é que a Irmã Margaret adora ter companhia.
– Então qual é o problema? – perguntou Jenna, sem conseguir refrear o entusiasmo quanto a essa nova pista.
– Senilidade – respondeu Renata.
Dylan assentiu.
– A Irmã Margaret vem apresentando problemas nos últimos anos. A administradora do asilo disse que existem grandes chances de ela não se lembrar muito da minha mãe e do trabalho dela no abrigo.
– Mas vale a pena tentar, não? – Jenna relanceou para as outras mulheres. – Quero dizer, qualquer pista é melhor do que nenhuma a esta altura. Existem vidas em jogo; portanto, temos que fazer tudo o que pudermos. O que for necessário para levar essas mulheres de volta para casa.
Mais do que uma cabeça se voltou surpresa em sua direção. Se qualquer uma das mulheres da Ordem achou estranho que ela estivesse se incluindo nos esforços para localizar as Companheiras de Raça desaparecidas, nenhuma disse nada.
O olhar de Savannah foi o que mais se demorou, um olhar de gratidão – de amizade e de aceitação – reluzindo nos olhos gentis.
Foi essa aceitação fácil, essa sensação de comunidade e gentileza que sentiu por parte de cada uma daquelas mulheres especiais desde que despertara, que provocou o nó de emoção na garganta de Jenna. Sentir, mesmo que por um segundo, que poderia fazer parte de algo tão unido e reconfortante quanto aquela extraordinária família estendida que vivia e trabalhava naquele lugar foi algo tão forte que quase a sufocou.
– Muito bem. Mãos à obra. – Dylan disse após um momento. – Ainda há muito a ser feito.
Uma a uma, todas voltaram para as suas tarefas, algumas revisando arquivos, outras assumindo seus postos atrás dos monitores das estações de trabalho. Jenna foi até um computador que não estava sendo usado e entrou na internet.
Tinha quase se esquecido da mensagem para o amigo na divisão do FBI em Anchorage, mas, assim que acessou sua conta de e-mail, viu que havia uma resposta na caixa de entrada. Clicou na mensagem e passou os olhos rapidamente no que estava escrito.
– Hum... Meninas... – disse, sentindo uma pontada de animação e de triunfo ao ler a resposta do amigo. – Sabem aquelas informações que vêm procurando a respeito da Sociedade TerraGlobal?
– A corporação de fachada de Dragos – disse Dylan, já se aproximando para ver o que Jenna tinha para mostrar.
Alex e as outras também se aproximaram.
– O que está acontecendo, Jen?
– Não somos os únicos interessados na TerraGlobal. – Jenna fitou os rostos ansiosos ao seu redor. – Um velho amigo meu em Anchorage fez uma pesquisa superficial para mim. E encontrou uma coisa.
Savannah deu uma risada de descrença ao ler a mensagem no monitor.
– O FBI tem uma investigação em andamento sobre a TerraGlobal?
– De acordo com meu amigo, é uma investigação relativamente recente. Está sendo conduzida por alguém do escritório de Nova York.
Gabrielle lançou um olhar de aprovação para Jenna.
– Bom trabalho. É melhor informarmos Lucan sobre o que você descobriu.
A noite só estava na metade, mas ele já a considerava um sucesso triunfante.
Na escuridão do seu helicóptero particular, Dragos sorriu com profunda satisfação enquanto o piloto guiava a aeronave para longe do cenário invernal reluzente da Capital apinhada logo abaixo em direção às águas escuras do Atlântico, rumo ao norte, para o segundo encontro marcado daquela noite. Ele mal continha a ansiedade em chegar logo, a antecipação de mais uma vitória fazendo o sangue correr mais rápido em suas veias.
Já há algum tempo vinha cultivando seus aliados mais úteis, unindo seus recursos em preparação para a guerra que pretendia promover, não só contra os de sua espécie – os covardes impotentes e complacentes que mereciam ser pisoteados por suas botas –, mas também contra o resto do mundo.
As reuniões daquela noite eram cruciais aos seus objetivos, e apenas o início do que poderia vir a ser um ataque ofensivo surpreendente tanto para a Raça quanto para a humanidade. Se a Ordem temia que suas garras se estendessem perigosamente em meio aos poderosos apenas da raça vampírica, acabaria ouvindo um toque de despertar um tanto rude. Logo.
Muito em breve, pensou ele, rindo para si mesmo numa alegria impulsiva.
– Quanto tempo mais até chegarmos a Manhattan? – perguntou ao seu servo humano piloto.
– Cinquenta e dois minutos, Mestre. Estamos dentro do horário previsto.
Dragos grunhiu sua aprovação e relaxou no banco pelo restante do voo. Podia se sentir tentado a chamar a noite de impecável, se não fosse por um pequeno aborrecimento que teimosamente ardia em suas entranhas – uma notícia que lhe fora dada ainda naquele dia.
Ao que tudo levava a crer, um funcionariozinho de baixo escalão trabalhando para os Federais no Alasca começou a meter o nariz em seus negócios, fazendo perguntas sobre a TerraGlobal. Ele culpava a Ordem por isso. Sem dúvida, não era todo dia que uma empresa de mineração – falsa ou não – explodia em chamas, como a sua pequena operação no interior do Alasca por causa dos guerreiros de Lucan.
Agora Dragos tinha o irritante empecilho de ter que discutir com algum servidor público falastrão ou algum bom samaritano ambientalista tentando subir na carreira, indo atrás de uma corporação maligna por sabe lá Deus qual afronta.
Deixe-os procurar, pensou Dragos, muito seguro de estar livre de qualquer problema potencial. Havia um bom número de camadas entre ele e a TerraGlobal para mantê-lo afastado da força policial humana intrometida ou dos políticos caipiras. Se isso fracassasse, tinha recursos à disposição para garantir que seus interesses estivessem protegidos. Portanto, pensando grande, aquilo não era relevante.
Ele era intocável, e mais a cada dia.
Não demoraria muito e seria incontrolável.
Saber disso fez com que não mostrasse ansiedade quando seu celular tocou numa ligação de um dos seus principais tenentes.
– Conte em que pé está a operação.
– Está tudo em ordem, senhor. Meus homens estão posicionados conforme combinamos e prontos para colocar o plano em execução amanhã ao anoitecer.
– Excelente. Informe quando estiver terminado.
– Claro, senhor.
Dragos fechou o aparelho e o colocou de volta no bolso do casaco. Aquela noite seria um passo triunfante para a obtenção do futuro dourado que planejava há tanto tempo. Mas a missão do dia seguinte contra a Ordem – o bote de víbora que eles nunca antecipariam – seria uma vitória ainda mais doce.
Dragos deixou que tal pensamento se acomodasse dentro de si enquanto inclinava a cabeça para trás e fechava os olhos, saboreando a promessa da iminente derrocada final da Ordem.
Capítulo 17
Cerca de uma hora antes do nascer do sol, Brock voltou ao complexo sozinho. Odiou ter que deixar um parceiro de patrulha para trás numa missão, mas depois de uma noite de busca por Chase pela cidade sem resultado algum, ele não tinha muita escolha. Onde quer que Chase tivesse ido após sua altercação com o agente no início da noite, ficou claro que ele não queria ser encontrado. Não era a primeira vez que ele se ausentava sem permissão de uma patrulha, mas isso não fazia Brock aceitar seu desaparecimento com mais facilidade.
A preocupação com o desaparecimento do irmão de armas não o deixara no melhor dos humores ao abrir a porta do apartamento partilhado com Hunter e entrar no aposento escuro e silencioso. À vontade no escuro, já que sua visão ficava mais aguçada do que na claridade, Brock tirou o casaco e o dobrou sobre o sofá antes de atravessar a sala e entrar no quarto adjacente.
O lugar estava tão escuro e silencioso que ele deduzira que o colega de quarto ainda não havia voltado, até entrar no quarto e dar de cara com o corpo nu coberto de glifos dos pés à cabeça do Primeira Geração.
– Jesus Cristo – murmurou Brock, desviando o olhar da vista inesperada, absolutamente indesejada e totalmente frontal do seu colega de quarto. – Mas que diabos, cara?
Hunter estava encostado na parede oposta de olhos fechados. Estava tão imóvel quanto uma estátua, respirando tão superficialmente que quase não se ouvia, os musculosos braços grossos pensos ao longo do corpo. Embora suas pálpebras tremulassem ante a interrupção de Brock, o macho imenso e inescrutável não pareceu assustado nem remotamente abalado.
– Eu estava dormindo – disse de pronto. – Já estou descansado agora.
– Que bom – disse Brock, balançando a cabeça ao dar as costas para o guerreiro nu. – Que tal vestir umas roupas? Acho que acabei de descobrir algumas coisas a seu respeito que eu não precisava saber.
– O meu sono é mais eficaz sem roupas para me aprisionar – foi a resposta sucinta.
Brock bufou.
– Pois é, o meu também, mas duvido que goste de ficar olhando para a minha bunda pelada, ou qualquer outra coisa, do mesmo jeito que não gosto de ver a sua. Jesus, você não pode se cobrir?
Balançando a cabeça, Brock tirou o coldre e o deixou sobre uma das camas arrumadas. Relembrou o comentário inicial de Hunter quando lhe perguntou sobre qual cama preferia e relanceou por sobre o ombro para o Primeira Geração, que estava vestindo uma calça de moletom.
O macho da Raça que fora criado e educado para ser uma máquina letal para Dragos. Um indivíduo educado na mais absoluta solidão, privado de contato ou companhia, a não ser pela do servo humano que lhe fora designado.
De súbito, entendeu por que Hunter não dava a mínima para qual cama ele escolhesse.
– Você sempre dorme assim? – perguntou, indicando o lugar em que Hunter estivera apoiado.
O misterioso Primeira Geração deu de ombros.
– Às vezes no chão.
– Isso não deve ser muito confortável.
– O conforto de nada serve. A sua necessidade apenas indica e reforça uma fraqueza.
Brock absorveu a declaração franca, depois imprecou baixinho.
– O que Dragos e aqueles outros bastardos fizeram com você por todos aqueles anos em que você os serviu?
Olhos dourados resolutos se depararam com os seus na escuridão.
– Eles me deixaram forte.
Brock assentiu com solenidade, pensando na disciplina e na educação implacáveis que eram só o que Hunter conhecia.
– Forte o bastante para abatê-los.
– Até o último deles – respondeu Hunter, sem nenhuma inflexão, embora a promessa fosse tão implacável quanto uma lâmina afiada.
– Quer se vingar pelo que eles lhe fizeram?
A cabeça de Hunter se mexeu de leve em sinal de negação.
– Justiça – disse ele – pelo que fizeram com os que não podiam se defender.
Brock ficou ali por um bom tempo, compreendendo a determinação fria que emanava do outro macho. Ele partilhava dessa necessidade de justiça, e, como Hunter – como qualquer outro dos guerreiros jurados a serviço da Ordem –, ele não descansaria até que Dragos e todos os insanos leais à sua missão fossem eliminados.
– Você nos honra – disse ele, uma frase que a Raça reservava apenas para os parentes mais próximos ou eventos solenes. – A Ordem tem sorte de ter você do nosso lado.
Hunter pareceu se surpreender, mas Brock ficou sem saber se por causa do próprio elogio ou do elo implícito nele. Um tremeluzir de incerteza atravessou o olhar dourado, e quando Brock levantou a mão para segurar o ombro de Hunter, o Primeira Geração se esquivou, evitando o contato como se ele fosse capaz de queimá-lo.
Ele não explicou sua reação, nem Brock o pressionou para isso, ainda que a pergunta implorasse para ser respondida.
– Muito bem, vou sair. Preciso ir ver uma coisa com Gideon.
Hunter o encarou.
– Está preocupado com a sua fêmea?
– Eu deveria? – Brock teve a intenção de corrigir a referência de Jenna ser sua, mas ficou ocupado demais com o fato de seu sangue parecer subitamente gelado em suas veias. – Ela está bem? Conte o que está acontecendo. Alguma coisa aconteceu com ela enquanto eu estava fora patrulhando?
– Não estou ciente de nenhum problema físico com a humana – disse Hunter, enlouquecedor em sua calma. – Eu estava me referindo à investigação dela sobre a TerraGlobal.
– TerraGlobal – repetiu Brock, o medo se instalando em seu íntimo. – Essa é uma das empresas de Dragos.
– Correto.
– Jesus Cristo – murmurou Brock. – Está me dizendo que, de alguma forma, ela entrou em contato com eles?
Hunter meneou a cabeça de leve.
– Ela mandou um e-mail para alguém que conhece no Alasca, um agente federal, que fez uma pesquisa sobre a TerraGlobal a seu pedido. Uma unidade do FBI em Nova York respondeu às investigações. Estão a par da TerraGlobal e concordaram em se encontrar com ela para discutir as investigações atuais.
– Puta merda. Diga que está brincando.
Não havia humor algum nas feições do outro macho. Não que Brock se surpreendesse com isso.
– Pelo que sei, a reunião está marcada para hoje no fim do dia no escritório do FBI em Nova York. Lucan decidiu que Renata a acompanhará.
Quanto mais ouvia, mais Brock começava a se sentir inquieto e com necessidade de se movimentar. Andou de um lado para o outro, sem tentar disfarçar sua preocupação.
– Com quem Jenna vai se encontrar em Nova York? Sabemos se essa investigação do FBI sobre a TerraGlobal existe mesmo? Bom Deus, onde ela estava com a cabeça para se envolver com isso, para começo de conversa? Sabe de uma coisa? Deixa pra lá. Eu mesmo vou lá perguntar pra ela.
Como ele já estava andando pelo quarto, só precisou de três passadas largas para sair do apartamento e chegar ao corredor. Com a pulsação acelerada e a adrenalina correndo nas veias, ele não estava em condições mentais de se deparar com seu parceiro de patrulha errante.
Chase vinha pelo corredor exatamente naquela hora, parecendo infernal. Os olhos azuis ainda emitiam fachos âmbar, as pupilas mais fendas do que círculos. Ele arfava e cada inspiração revelava os dentes e as presas. Sujeira e sangue seco maculavam seu rosto em manchas sombrias, e havia mais ainda no cabelo cortado curto. A roupa estava rasgada em alguns lugares, manchada sabe lá Deus pelo quê.
Ele tinha a aparência e o cheiro de alguém que passara por uma zona de guerra.
– Onde diabos você se meteu? – Brock exigiu saber. – Procurei por você por Boston inteira depois que foi embora sem avisar.
Chase o encarou, os dentes num sorriso desdenhoso e feroz, mas sem dar explicação alguma. Passou por ele, batendo o ombro de propósito em Brock, praticamente desafiando-o a implicar com isso. Se Brock não estivesse tão preocupado com Jenna e a questão em que ela se metera, pegaria o arrogante filho da mãe de jeito.
– Idiota – grunhiu Brock, enquanto o ex-agente se afastava num silêncio sepulcral e carregado de segredos.
Jenna saltou do sofá quando ouviu a batida à porta do seu quarto. Ainda era bem cedo, pouco mais do que seis da manhã, de acordo com o relógio do sistema de som que tocava suavemente na sala de estar. Não que ela tivesse dormido no punhado de horas desde que falara com Lucan e Gideon.
E não que fosse capaz de dormir no tempo que restava até a importante reunião que teria mais tarde com o agente do FBI em Nova York.
O agente especial Phillip Cho parecera bem amigável ao telefone quando lhe ligara, e ela deveria se sentir grata por ele estar disponível e se mostrar disposto a se encontrar para falar da investigação sobre a TerraGlobal. Aquela não seria a primeira vez que ela teria uma reunião com alguém da alçada federal da força policial – portanto, não entendia muito bem por que se sentia nervosa. Claro, nada nunca antes dependera tanto de uma simples informação obtida numa reunião.
Ela queria fazer aquilo certo, e não conseguia deixar de sentir o peso do mundo – o do seu e o da Ordem – sobre os ombros. Já fazia tempo que ela não era policial, e agora tinha que fazer uma apresentação autoritária em questão de poucas horas. Portanto, era mais que natural que se sentisse um pouco ansiosa com tudo aquilo.
Mais uma batida à porta, mais firme dessa vez, mais exigente.
– Só um segundo.
Apertou o botão de mudo do controle remoto do estéreo, silenciando um antigo CD de jazz de Bessie Smith que já estava no aparelho quando ela o ligou um tempo atrás para ajudar a passar o tempo. Cruzou a sala e abriu a porta.
Brock aguardava no corredor, pegando-a completamente desprevenida. Ele devia ter acabado de voltar da patrulha na cidade. Vestido dos pés à cabeça em uniforme de combate preto, a camiseta justa agarrada ao peito e aos ombros, as mangas curtas prendendo os bíceps musculosos.
Ela não conseguiu conter-se e passou os olhos em toda a sua figura, descendo pelo abdômen, acentuado pela camiseta presa, pelo cós acinturado das calças pretas do uniforme, que tinha um corte largo, mas não a ponto de mascarar o formato delgado do quadril e as coxas musculosas. Foi fácil demais para ela se lembrar de como conhecia bem aquele corpo. Perturbador demais perceber o quanto o desejava, mesmo depois de ter se prometido que não seguiria mais aquele caminho com ele.
Foi só quando seu olhar voltou para o rosto belo, porém tenso, que ela percebeu que ele estava incomodado. De fato, bem irritado com alguma coisa.
Ela franziu o cenho ante a expressão tempestuosa dele.
– O que foi?
– Por que você não me conta? – Ele deu um passo à frente, o corpanzil tal qual uma parede móvel, forçando-a a recuar quarto adentro. – Acabei de ficar sabendo da sua investigação sobre a TerraGlobal junto ao maldito FBI. Que diabos passou pela sua cabeça, Jenna?
– Eu pensei que talvez a Ordem pudesse aproveitar minha ajuda – respondeu, a raiva se elevando ante o tom de confronto dele. – Pensei que poderia me valer das minhas ligações com a força policial para obter alguma informação sobre a TerraGlobal, já que o resto de vocês pareceu chegar a um beco sem saída.
– Dragos é a TerraGlobal – sibilou ele, ainda avançando, assomando-se sobre ela. Os olhos castanho-escuros deixaram passar umas centelhas de luz âmbar. – Faz alguma maldita ideia de como é arriscado você fazer isso?
– Eu não arrisquei nada – disse ela, ficando na defensiva. Estava ficando crescentemente irritada a cada passo dele que a fazia recuar ainda mais para o quarto. Parou de recuar e fincou os pés. – Fui muitíssimo discreta, e a pessoa para quem pedi ajuda é um amigo muito confiável. Acha mesmo que eu colocaria a Ordem, ou a sua missão, propositalmente em perigo?
– A Ordem? – ele escarneceu. – Estou me referindo a você, Jenna. Esta guerra não é sua. Você precisa se afastar, antes que se machuque.
– Escuta aqui, sei muito bem cuidar de mim. Sou uma policial, lembra?
– Era – ele a lembrou com gravidade, prendendo-a com um olhar inflexível. – E você nunca enfrentou nada como Dragos enquanto trabalhava.
– E também não vou enfrentá-lo agora – argumentou. – Estamos falando de uma inofensiva reunião num escritório com um agente do governo. Já estive envolvida nesse tipo de contenda territorial centenas de vezes. Os federais estão preocupados que uma caipira local possa saber mais do que eles num de seus casos. Querem saber o que eu sei, e vice-versa. Não é grande coisa.
Não deveria, ela considerou. Mas seus nervos ainda estavam abalados, e Brock também não parecia muito convencido.
– Isso pode ser pior do que você pensa, Jenna. Não podemos ter certeza de nada no que se refere a Dragos e os seus interesses. Não acho que você deva ir. – O rosto dele estava muito sério. – Vou falar com Lucan. Acho que é perigoso demais para que ele permita que você faça isso.
– Não me lembro de ter perguntado o que você acha disso – disse ela, tentando não permitir que a expressão séria e o tom sombrio dele a fizessem mudar de ideia. Ele estava preocupado, muito preocupado com ela – e uma parte sua reagiu a essa preocupação de tal forma que ela quis ignorar. – Também não me lembro de tê-lo encarregado do que faço ou do que não faço. Eu tomo as minhas decisões. Você e a Ordem podem acreditar que podem me manter numa espécie de coleira, ou debaixo de um maldito microscópio, pelo tempo que bem entenderem, mas não confunda consentimento com controle. Sou a única a me controlar.
Quando não conseguiu sustentar o olhar tempestuoso por mais tempo, afastou-se dele e voltou para junto do sofá, ocupando-se em recolher os livros que andara folheando nas últimas horas de inquietação.
– Cristo, você é muito teimosa, não é, moça? – Ele emitiu uma imprecação. – Esse é o seu maior problema.
– Que diabos isso quer dizer? – Lançou uma carranca na direção dele, surpresa em descobrir que ele havia se aproximado pelas suas costas. Estava perto o bastante para tocá-la. Perto o bastante para que ela sentisse o seu calor em cada terminação nervosa do seu corpo. Fortaleceu-se contra o poder másculo que irradiava da sua forma, odiando o fato de ainda se sentir atraída por ele, apesar do sangue que fervia de raiva.
O olhar dele era penetrante, parecendo atravessá-la.
– É tudo uma questão de controle com você, Jenna. Você não suporta ceder, não é?
– Você não sabe o que está falando.
– Não? Aposto como você já era assim bem pequena. – Ela se afastou enquanto ele falava, determinada a não deixá-lo cercá-la. Pegou uma braçada de livros e os levou até a estante. – Aposto como você tem sido assim a vida inteira, certo? Tudo tem que ser nos seus termos, não? Nunca deixa ninguém segurar as rédeas, pouco importando sobre o que seja. Você não cede um centímetro sequer a menos que tenha o seu lindo traseirinho plantado no banco do motorista.
Por mais que ela quisesse negar, ele estava chegando bem perto. Relembrou os anos de infância, todas as brigas de parquinho e os desafios que aceitara só para provar que não tinha medo. Seu período na força policial fora apenas mais do mesmo, ainda que numa escala maior, passando das brigas de socos para as balas, mas ainda assim esforçando-se para mostrar que era tão boa quanto qualquer homem, ou melhor.
O casamento e a maternidade se mostraram outro tipo de obstáculo a conquistar, e essa foi uma área na qual fracassou miseravelmente. Parada diante da estante, o desafio verbal de Brock pairando sobre ela, fechou os olhos e se lembrou da briga que teve com Mitch na noite do acidente. Ele também a acusara de ser teimosa. Tinha razão, mas ela só percebera isso quando despertara no leito hospitalar semanas mais tarde, sem sua família.
Mas aquilo era diferente. Brock não era seu marido. Só porque tiveram alguns momentos de prazer juntos, e apesar da atração que ainda existia entre eles toda vez que estavam próximos, isso não lhe dava permissão para se impor em suas decisões.
– Quer saber o que eu acho? – perguntou, os movimentos rápidos devido à irritação enquanto ela colocava cada livro de volta ao lugar original nas prateleiras. – Acho que é você que tem problemas. Você não saberia o que fazer com uma mulher que não precise que você tome conta dela. Uma mulher de verdade, que consegue sobreviver muito bem por conta própria e que não o deixe se responsabilizar caso ela se machuque. Você prefere se culpar por não corresponder a expectativas imaginárias que você mesmo se impôs, algum tipo de medida de honra e de valor inalcançáveis. Se quiser falar sobre problemas, tente dar uma bela olhada em si próprio.
Ele ficou tão calado e imóvel que Jenna chegou a pensar que tivesse saído. Mas, quando se virou para ver se ele havia ido embora, viu-o de pé ao lado do sofá, segurando a fotografia antiga que descobrira enfiada entre as páginas de um dos livros dele. Estava olhando fixamente para a imagem da bela jovem de cabelos escuros e olhos amendoados. O maxilar estava tenso, um tendão latejando sob a pele escura e macia.
– É, talvez esteja certa sobre mim, Jenna – disse ele, por fim, deixando a foto cair para a almofada. Quando a fitou, o rosto estava sério e composto, o mais absoluto guerreiro. – Nada disso muda o fato de que sou responsável por você. Lucan fez com que fosse meu dever protegê-la enquanto estivesse sob a custódia da Ordem...
– Sob custódia? – ela repetiu, mas ele continuou falando.
– ... e isso significa que, quer você goste ou não, quer aprove ou não, tenho poder de decisão em relação ao que você faz ou com quem vai se encontrar.
Ela zombou, ultrajada.
– Até parece.
Ele andou na sua direção, em três passadas largas, antes de parar diante dela, sua proximidade sugando todo o ar do cômodo. Seu olhar ferrenho deveria tê-la acovardado, mas ela estava indignada demais – e muito ciente dos seus sentidos desejosos percebendo-o apesar da raiva que a fazia empinar o queixo. Quando o encarou, procurando dentro de si a postura durona que poderia lhe dar as forças para repeli-lo com palavras ásperas ou rebeldia aguçada, não encontrou nada.
Só o que lhe restava fazer era prender o ar, que subitamente pareceu lhe faltar nos pulmões. Ele passou as pontas dos dedos na lateral do seu rosto, num toque suave e carinhoso. O polegar se demorou sobre os lábios, num ritmo lento, enquanto os olhos a fascinaram pelo que pareceu uma eternidade.
Então, ele a segurou pelo rosto e a atraiu para um beijo ardente, porém rápido demais.
Quando a soltou, ela viu que as centelhas de brilho em seus olhos agora eram como brasas quentes. O peito estava firme e quente contra o seu, sua ereção pressionando-a de maneira inequívoca no quadril. Ela cambaleou para trás, uma onda de desejo percorrendo suas veias.
– Você pode discutir comigo o quanto quiser, Jenna, estou pouco me importando. – Embora as palavras fossem muito direto ao ponto, a voz baixa vibrou nela como se surgisse de uma tempestade. – Você é minha para proteger e manter a salvo, portanto, não se engane: se for sair do complexo, você sai comigo.
Capítulo 18
Brock cumpriu sua promessa de acompanhá-la à reunião com o FBI em Nova York.
Jenna não ficou sabendo o que ele disse a Lucan para persuadi-lo, porém, mais tarde naquela mesma manhã, em vez de Renata dirigir o Range Rover da Ordem durante as quatro horas de estrada desconhecida de Boston a Manhattan, foi Jenna quem ficou atrás do volante, com o GPS sobre o console do carro e Brock tentando ajudá-la a navegar da parte de trás do veículo. Sua epiderme sensível aos raios solares, característica dos membros da Raça, e a preocupação com os raios ultravioletas o impediram sequer de considerar sentar-se no banco da frente durante a longa viagem, quanto menos ir dirigindo.
Embora talvez fosse muito mais do que imaturo para ela gostar disso, Jenna teve que admitir que ficara de certa forma satisfeita por ele ter sido banido para o banco de trás. Não se esquecera das acusações sobre ela precisar estar sempre no comando, mas, a julgar pelas indicações de caminho impacientes e pelos comentários resmungados sobre o peso do seu pé no acelerador, ficou evidente que ela não era a única ali que tinha dificuldade para entregar o controle.
E agora, enquanto estavam na caverna escura de uma garagem subterrânea do outro lado da rua do escritório do FBI em Nova York, Brock ainda lhe dava ordens do banco de trás.
– Mande uma mensagem assim que passar pela segurança. – Depois que ela assentiu, ele prosseguiu: – E assim que começar a reunião com o agente, mande outra mensagem. Quero mensagens periódicas, com um intervalo no máximo de quinze minutos entre uma e outra, ou vou atrás de você.
Jenna bufou em sinal de impaciência e lhe lançou um olhar do banco do motorista.
– Isto aqui não é um baile da escola. É um encontro profissional num prédio público. A menos que algo de estranho aconteça, eu mando uma mensagem quando entrar e quando a reunião acabar.
Ela sabia que ele estava zangado por trás dos óculos escuros.
– Se não levar isto a sério, vou entrar com você.
– Estou levando isso muito a sério. Mas você entrar no prédio governamental? Ora, por favor. Você está armado até os dentes e coberto dos pés à cabeça com Kevlar. Não passaria sequer pelos seguranças da entrada, isso se a luz do sol não o fritasse antes.
– Os seguranças não seriam problema. Eu não seria nada além de uma brisa forte nos cangotes deles quando entrasse lá.
Jenna deu uma gargalhada.
– Ok. E depois? Vai se esconder no corredor enquanto me encontro com o agente especial Cho?
– Faço o que for preciso – respondeu ele, muito sério. – Esta busca de informações, no fim, compete à Ordem. O que você está tentando descobrir são informações que nos interessam. E ainda não gosto da ideia de você entrar lá sozinha.
Ela se virou de costas para ele, magoada por ele não enxergá-la como parte da Ordem também. Olhou para uma luz amarela piscante pela janela do carro.
– Se está tão preocupado que não saberei lidar com essa reunião sozinha, talvez você devesse ter deixado que Renata viesse comigo.
Ele se inclinou para a frente, tirando os óculos e se colocando entre os bancos para segurá-la pelos ombros. Os dedos fortes a seguraram com firmeza, os olhos cintilando com um misto de castanho-escuro e âmbar ardente. Mas, quando ele falou, sua voz foi apenas veludo.
– Estou preocupado, Jenna. Não tanto com a maldita reunião, mas com você. Foda-se a reunião. Não há nada que seja tão importante que possamos conseguir dela quanto garantir que você esteja bem. Renata não está aqui porque, se alguém tem que ficar na sua retaguarda, esse alguém será eu.
Ela grunhiu de leve, sorrindo apesar da irritação que sentia.
– É melhor tomar cuidado. Está começando a se comportar muito como um parceiro.
Ela quis dizer parceiro de patrulha, mas a observação, que fez como zombaria, acabou pesando cheia de insinuações. Uma tensão silenciosa e carregada encheu o veículo enquanto Brock sustentava o seu olhar. Por fim, ele emitiu uma imprecação e a soltou. O rosto pulsava ao fitá-la em silêncio.
Voltou a se recostar, afastando-se da frente do carro, acomodando-se uma vez mais na parte mais escurecida atrás.
– Apenas me mantenha informado, Jenna. Pode fazer isso, pelo menos?
Ela soltou a respiração que nem sabia que estava prendendo e pousou a mão na maçaneta da porta do motorista.
– Mando uma mensagem de texto quando tiver entrado.
Sem esperar para ouvir uma resposta, ela saiu do SUV e seguiu para a entrada do prédio do FBI do lado oposto da rua.
O agente especial Phillip Cho não a fez esperar mais do que cinco minutos na recepção do décimo oitavo andar. Jenna havia acabado de mandar uma mensagem para Brock quando um agente de terno preto e gravata conservadora saiu de uma sala para cumprimentá-la. Depois de recusar uma xícara de café já morno, ela foi conduzida por um mar de cubículos até uma sala de reuniões afastada da parte central.
O agente Cho indicou que se sentasse numa cadeira de rodinhas na mesa oblonga no meio da sala. Fechou a porta e depois se sentou diante dela. Colocou um bloco de notas com capa de couro sobre a mesa e lhe lançou um sorriso educado.
– Então, há quanto tempo se afastou da polícia, senhora Darrow?
A pergunta a surpreendeu. Não tanto por sua franqueza, mas pelo fato de que seu amigo do FBI em Anchorage se oferecera para manter seu status de civil nos bastidores. Claro, o fato de Cho ter feito sua lição de casa em preparação para a reunião não deveria tê-la surpreendido.
Jenna pigarreou.
– Há quatro anos me desliguei da Polícia Estadual do Alasca. Devido a motivos pessoais.
Ele assentiu de maneira compreensiva, e ela percebeu que ele já sabia o que a levara a se demitir.
– Tenho que admitir, fiquei surpreso em saber que a sua investigação sobre a Sociedade TerraGlobal não era oficial – disse ele. – Caso eu soubesse, provavelmente não teria concordado com esta reunião, pois estou certo de que compreende que usar os recursos estaduais ou federais para questões pessoais é algo ilegal e pode trazer severas consequências.
Ela deu de ombros, sem se deixar intimidar pelas ameaças dos procedimentos e dos protocolos. Já participara daquele tipo de jogo vezes demais quando carregava seu distintivo.
– Pode me chamar de curiosa. Tivemos uma mineradora que virou fumaça, literalmente, e ninguém da empresa matriz se deu ao trabalho de sequer se desculpar com a cidade. A conta vai ser bem salgada para limpar aquilo tudo, e quero garantir que a cidade de Harmony tenha para quem mandar a conta.
Debaixo da luz fluorescente brilhante, o olhar fixo de Cho lhe pareceu estranho, provocando um zunido de alerta em suas veias.
– Então, o seu interesse na questão é o de uma cidadã preocupada. Entendi bem, senhora Darrow?
– Isso mesmo. E a policial dentro de mim não consegue deixar de imaginar que tipo de administração escusa um empreendimento como a TerraGlobal emprega. Nada além de fantasmas, pelo pouco que descobri.
Cho resmungou, ainda prendendo-a com aquele estranho olhar fixo.
– O que, exatamente, descobriu, senhora Darrow? Eu gostaria muito de ouvir mais detalhes.
Jenna levantou o queixo e lhe lançou um olhar desconfiado.
– Espera que eu partilhe as minhas informações quando está só sentado aí sem me dar nada em troca? Isso não vai acontecer. Comece você, agente especial Cho. Qual o seu interesse na TerraGlobal?
Ele se recostou na cadeira e cruzou os dedos diante do sorriso fino.
– Lamento, mas isso é informação confidencial.
O tom de dispensa foi inegável, mas ela não se permitiria ter ido até ali só para ser detida por um arrogante de terno que parecia se deliciar com o fato de estar brincando com ela. E, quanto mais olhava para ele, mais aquela expressão inflexível eriçava sua pele.
Forçando-se a ignorar seu desconforto, procurou uma tática mais conciliatória.
– Tudo bem, eu entendo. Você é obrigado a me dar a resposta oficial. Eu apenas tive esperanças de que dois profissionais pudessem ajudar um pouco um ao outro.
– Senhora Darrow, só vejo um profissional nesta mesa. E mesmo que ainda estivesse ligada à força policial, eu não poderia lhe dar nenhuma informação sobre a TerraGlobal.
– Vamos lá – disse ela, com uma frustração crescente. – Me dê um nome. Apenas um nome, ou endereço. Qualquer coisa.
– Quando, exatamente, a senhora saiu do Alasca, senhora Darrow? – perguntou com casualidade, ignorando as perguntas dela e inclinando a cabeça num ângulo estranho para observá-la. – Tem amigos aqui? Família, talvez?
Ela riu e balançou a cabeça.
– Não vai me dizer nada, vai? Só concordou com esta reunião porque pensou que poderia arrancar algo de útil de mim para os seus interesses próprios.
O fato de ele não responder foi significativo. Ele abriu o bloco de notas e começou a rabiscar alguma coisa no papel amarelo. Jenna ficou sentada, observando-o, sentindo em seu íntimo que o agente federal excêntrico tinha todas as respostas de que ela e a Ordem tão desesperadamente necessitavam para colocá-los no rastro de Dragos.
– Muito bem – disse ela, deduzindo que era hora de jogar a única carta que tinha em mãos. – Já que não vai me dar nenhum nome, eu lhe dou um. Gordon Fasso.
A mão de Cho parou de se mover no meio do que ele estava escrevendo. Foi o único indício de que aquele nome tinha algum significado para ele. Quando ele levantou o olhar, sua expressão era impassível, aqueles olhos estranhos, embotados, não revelando nada.
– O que disse?
– Gordon Fasso – repetiu o pseudônimo que Dragos usara enquanto se misturara à sociedade humana. Observou o rosto de Cho, tentando interpretar sua reação no olhar fixo, sem sucesso. – Já ouviu esse nome antes?
– Não. – Ele apoiou a caneta e a tampou devagar. – Deveria?
Jenna o encarou, medindo bem as palavras e o modo desinteressado com que ele se recostou na cadeira.
– Acredito que, se já realizou algum tipo de investigação na TerraGlobal, esse nome deve ter surgido uma ou duas vezes.
A boca de Cho formou uma linha fina.
– Sinto muito. Não me recordo.
– Tem certeza? – Ela aguardou em meio ao silêncio prolongado, mantendo os olhos fixos no olhar sombrio só para que ele entendesse que ela seria capaz de manter aquele impasse pelo mesmo tempo que ele.
A tática pareceu funcionar. Cho emitiu um longo suspiro, depois se levantou.
– Outro agente deste escritório está trabalhando nesta investigação comigo. Pode me dar licença por uns minutos enquanto converso com ele a respeito disso?
– Claro que sim – disse Jenna, relaxando um pouco. Talvez agora ela estivesse avançando.
Depois que Cho saiu da sala, ela aproveitou a chance para mandar uma mensagem rápida para Brock. Consegui uma coisa. Desço logo.
Assim que enviou a mensagem, Cho reapareceu na soleira.
– Senhora Darrow, pode vir comigo, por favor?
Ela se levantou e o seguiu ao longo de um corredor em meio a diversos cubículos, passando por inúmeros agentes que fitavam monitores e falavam baixo ao telefone. Cho seguiu em frente, na direção de algumas salas do outro lado do andar. Virou à direita e passou diante de portas com placas indicando nomes e departamentos.
Por fim, parou diante de uma porta de acesso a escadas e passou o crachá num leitor eletrônico. Quando a luz passou de vermelho a verde, o agente empurrou a porta de aço e a manteve aberta para ela.
– Por aqui, por favor. A força-tarefa fica em outro andar.
Por um instante, um alerta sombrio soou em seu subconsciente, um aviso silencioso que parecia vir de lugar nenhum. Ela hesitou, fitando os olhos imóveis de Cho.
Ele inclinou a cabeça, franzindo a testa de leve.
– Senhora Darrow?
Ela olhou ao redor, lembrando-se de que estava num edifício governamental, em meio a pelo menos cem pessoas que trabalhavam em seus cubículos e salas. Não havia motivo para se sentir ameaçada, garantiu-se, bem quando um desses muitos funcionários saiu de uma sala adjacente. O homem trajava um terno escuro e gravata, um profissional, assim como Cho e o resto das pessoas do departamento.
O homem acenou e também se aproximou da escadaria.
– Agente especial Cho – disse ele com um sorriso educado, que estendeu para Jenna em seguida.
– Boa tarde, agente especial Green – respondeu Cho, permitindo que o homem passasse diante deles pela porta aberta. – Vamos, senhora Darrow?
Jenna tentou se livrar daquela sensação estranha e passou por Cho. Ele a seguiu imediatamente. A porta de acesso às escadas se fechou num clique metálico que ecoou pelo espaço fechado.
E, de repente, lá estava o outro homem, Green, virando-se e prendendo-a entre ele e Cho. Seus olhos também eram sinistros. De perto, pareciam tão embotados e inexpressivos quanto os de Cho na sala de reuniões.
A adrenalina jorrou pelas veias de Jenna. Ela abriu a boca, pronta para gritar.
Não conseguiu.
Algo frio e metálico a atingiu debaixo da orelha. Ela sabia que não era uma arma, mesmo antes de sentir a corrente elétrica da Taser.
O pânico tomou conta dos seus sentidos. Tentou se libertar da corrente debilitante, mas o poder do choque era grande demais. Uma dor ferrenha a trespassou, zunindo como um milhão de abelhas em seu ouvido. Ela convulsionou e depois suas pernas cederam.
– Pegue as pernas dela – ouviu Cho dizer para o outro homem enquanto a segurava pelas axilas. – Vamos levá-la para o elevador de carga. Meu carro está estacionado na garagem do outro lado da rua. Podemos seguir pelo túnel do porão.
Jenna não tinha forças para empurrá-los, nem voz para pedir ajuda. Sentiu o corpo ser suspenso, carregado de qualquer jeito pelos lances de escada.
E logo perdeu a consciência por completo.
Ela estava demorando demais.
Brock consultou o celular e leu sua mensagem de novo. Ela dissera que logo desceria, mas a mensagem fora enviada há mais de quinze minutos. Nenhum sinal dela ainda. Nem outras mensagens para lhe dizer que estava atrasada.
– Droga – disse entredentes na parte de trás do Rover.
Espiou pela janela traseira, na direção da entrada da garagem subterrânea e para o brilho ofuscante do outro lado da rua. Jenna estava no prédio do outro lado. Talvez uns cem metros de onde ele estava, mas, em plena luz do dia, ela podia muito bem estar a centenas de quilômetros de distância.
Mandou uma mensagem breve: Onde vc está? Mande msg. Depois voltou à espera impaciente, sempre com o olhar fixo no fluxo de pessoas que entrava e saía do prédio federal, esperando que ela surgisse.
– Vamos, Jenna. Volte logo.
Alguns minutos mais sem uma resposta nem sinal dela do outro lado da rua e ele não conseguiu mais ficar sentado. Vestira-se com roupas de proteção contra raios ultravioleta ao sair do complexo naquela manhã, uma precaução que lhe daria um pouco mais de tempo se fosse louco de sair do Rover e atravessar a rua como estava pensando em fazer. Também contava com a ajuda da linhagem. Caso ele fosse um Primeira Geração, só teria, no máximo, dez minutos antes que o sol começasse a fritá-lo, com ou sem roupas especiais.
Brock, por estar muitas gerações afastado das linhagens puras, poderia contar com mais ou menos meia hora de exposição não letal aos raios UV. Não era um risco a que ninguém da sua espécie se exporia inconsequentemente. Tampouco ele agora, ao abrir a porta de trás do Rover e sair.
Mas algo não lhe parecia certo nessa reunião de Jenna. Apesar de não ter nada além dos instintos para se basear, e o medo profundo de ter permitido que uma mulher inocente batesse de frente com um perigo em potencial, não havia a mínima possibilidade de Brock ficar mais um segundo sem saber se Jenna estava bem.
Mesmo que tivesse que andar em plena luz do sol e enfrentar uma tropa de agentes federais humanos para averiguar isso.
Vestiu um par de luvas e ajeitou o capuz sobre a testa. Óculos escuros especiais já protegiam suas retinas ardidas ao atravessar o mar de carros estacionados, em direção à claridade além da abertura da garagem.
Preparando-se para o choque de tanta luz ao redor, fixou o olhar no prédio federal do outro lado da rua e saiu do abrigo do estacionamento.
Capítulo 19
A consciência retornou na forma de uma dor cega atravessando seu corpo. Os reflexos de Jenna voltaram num piscar de olhos, como se um botão tivesse sido ligado dentro dela. O instinto de acordar chutando e gritando foi forte, mas ela o sufocou. Melhor fingir que ainda estava abatida por causa do choque, até poder avaliar a situação.
Manteve os olhos quase fechados, levantando as pálpebras apenas o mínimo necessário para evitar alertar seus captores de que havia despertado. Pretendia enfrentar os filhos da mãe, mas primeiro tinha que se orientar. Saber onde estava e como sair dali.
A primeira parte foi fácil. O cheiro do banco de couro e o leve cheiro de mofo de tapetes asseguraram que ela estava na parte traseira de um carro, deitada de lado, com as costas apoiadas no banco de trás. Apesar de o motor estar ligado, o carro não estava se movendo. Estava escuro dentro do sedã, apenas uma luz amarelada do lado de fora dos vidros escurecidos da janela mais próxima à sua cabeça.
Caramba.
A esperança se acendeu dentro dela, forte e luminosa. Eles a haviam trazido para o estacionamento subterrâneo do lado oposto da rua do prédio federal.
A garagem em que Brock a esperava naquele instante.
Será que ele notara o que lhe acontecera?
Desconsiderou tal ideia assim que ela lhe ocorreu. Se Brock a tivesse visto em apuros, ele já estaria ali. Sabia disso com uma certeza que a abalou. Ele jamais permitiria que ela corresse perigo se pudesse evitar. Portanto, ele não tinha como saber que ela estava ali, aprisionada a poucos metros do Rover preto da Ordem.
Por enquanto, a menos que conseguisse atrair a atenção dele, ela estava por conta própria.
Suspendendo as pálpebras um pouco mais, viu que seus dois captores estavam sentados nos bancos da frente, Cho atrás do volante do Crown Victoria da frota federal, Green no banco do passageiro, com a mira do cano da sua Glock 23 de serviço apontada para o seu peito.
– Sim, Mestre. Estamos com a mulher no carro agora – informou Cho, no microfone do celular. – Não houve complicações. Claro, Mestre. Entendo, quer que a mantenhamos viva. Entrarei em contato assim que a tivermos no armazém à espera da sua chegada à noite.
Mestre? Mas o que era isso?
O medo se infiltrou pela coluna de Jenna enquanto ela ouvia a obediência robotizada no tom de voz estranho de Cho. Mesmo sem a conversa subserviente e estranha, ela sabia que, se permitisse que aqueles homens a levassem para outro local, estaria morta. Talvez algo ainda pior, se serviam ao indivíduo perigoso que seus instintos suspeitavam.
Cho terminou a ligação e acionou a marcha à ré.
Aquela era a sua chance; tinha que agir naquele instante.
Mudou de posição no banco com cuidado, erguendo os joelhos na direção do peito. Ignorando o leve repuxão da coxa ainda em recuperação, continuou retraindo as pernas aos poucos, até que os pés estivessem posicionados entre os bancos da frente. Assim que os alinhou, não hesitou mais.
Chutou com os dois pés, o direito batendo na lateral do rosto de Green, o esquerdo acertando o cotovelo do braço que segurava a arma. Green berrou, o queixo girando ao mesmo tempo em que a mão que segurava a pistola se levantou na direção do teto do carro. Um tiro foi disparado dentro do carro e a bala atravessou o tecido e o metal acima da cabeça dele.
Em meio ao caos do ataque-surpresa, o pé de Cho desceu pesado sobre o acelerador. O sedã derrapou de lado, batendo num pilar de concreto atrás deles, mas Cho se recobrou rapidamente. Colocou a primeira marcha e afundou o pé no acelerador de novo. A borracha dos pneus queimou quando o carro se moveu para a frente.
Onde diabos estava Brock?
Jenna segurou a maçaneta da porta de trás. Trancada. Chutou a porta oposta, fazendo o salto da bota atravessar o vidro da janela. Cacos de vidro choveram em suas pernas e no banco de couro. O ar frio entrou, trazendo o cheiro de óleo de motor e de fritura de um restaurante na esquina.
Jenna se arrastou até a janela aberta, mas parou quando Green se virou e encostou o cano da pistola na lateral da sua cabeça.
– Sente-se e comporte-se, senhora Darrow – disse ele de maneira agradável. – Não vai a parte alguma até que o Mestre permita.
Jenna se afastou lentamente da pistola carregada, o olhar fixo nos olhos emocionalmente vazios do agente especial Green.
Não havia mais dúvidas. Aqueles agentes do FBI – aqueles seres que se pareciam e agiam como homens, mas, de algum modo, não eram – faziam parte da organização de Dragos. Bom Deus, qual a extensão do seu alcance?
A pergunta instalou um nó de medo em seu estômago enquanto Cho acelerava e fazia o sedã disparar para fora da garagem, misturando-se ao trânsito pesado da tarde.
Brock havia atravessado a rua em meros segundos, usando a velocidade genética da Raça para atravessar a luz solar vespertina até a porta do edifício federal. Estava para entrar e passar correndo pelo controle de segurança quando sua audição aguçada percebeu o som de um tiro ao longe.
No estacionamento subterrâneo.
Soube antes mesmo de ouvir o som de metal retorcendo e de pneus cantando no concreto.
Jenna.
Apesar de não ter nenhuma ligação de sangue com ela para alertá-lo quando estivesse em perigo, sentiu a certeza contraindo-lhe o estômago. Ela não estava mais no prédio federal, mas na garagem, do outro lado da rua iluminada.
Algo de muito errado havia acontecido, e estava relacionado com a TerraGlobal, com Dragos.
Assim que o pensamento se formou, um Crown Victoria cinza sem identificação saiu da garagem. Enquanto o sedã passava, ele viu dois homens nos bancos da frente. O passageiro estava virado para a única ocupante da parte de trás.
Não, não eram homens. Eram servos humanos.
E Jenna estava no banco de trás, imóvel, na mira da pistola.
A fúria o trespassou tal qual uma onda de maré alta. Sem perder de vista o carro em que Jenna estava, correu em meio aos humanos da calçada abaixo do prédio, movendo-se tão rápido que ninguém o notaria.
Saltando no capô de um táxi parado na calçada, desviou de um caminhão de entrega que o teria atropelado caso ele não estivesse impulsionado pelas suas habilidades da Raça e pelo medo do que poderia acontecer com Jenna se não a alcançasse a tempo.
Com o coração acelerado, correu para o estacionamento e entrou no Rover.
Dois segundos mais tarde, corria pela rua, desafiando os raios ultravioleta que atravessavam o para-brisa enquanto acelerava na direção de Jenna, rezando para que a alcançasse antes que o mal representado por Dragos – ou o sol escaldante da tarde – lhe custassem a vida da mulher que deveria proteger.
Da sua mulher, pensou ferozmente, ao afundar o pé no acelerador e sair em perseguição.
Capítulo 20
O agente especial Green – ou quem, o que, quer que ele fosse – mantinha a Glock mirada em Jenna com uma mão firme enquanto o sedã ziguezagueava em meio ao trânsito pesado de Nova York. Jenna não fazia a mínima ideia de para onde estava sendo levada. Só lhe restava imaginar que seria para algum lugar fora da cidade quando deixaram o labirinto de arranha-céus para trás e subiram numa ponte de estilo gótico que passava por cima de um rio largo.
Jenna estava encostada no banco, sacudida para frente e para trás a cada freada e acelerada. Enquanto o sedã acelerava para ultrapassar um veículo mais lento, ela se desequilibrou o suficiente para ter um vislumbre do reflexo do espelho retrovisor lateral do Crown Vic.
Um Range Rover preto os acompanhava de perto, a apenas um carro de distância.
O coração de Jenna se apertou.
Brock. Tinha que ser ele.
Mas, ao mesmo tempo, desejou que não fosse. Não podia ser, ele seria tolo em se arriscar assim. O sol ainda era uma bola enorme no céu invernal, faltando pelo menos mais umas duas horas para se pôr. Dirigir em plena luz do dia seria suicídio para alguém da espécie de Brock.
Contudo, era ele.
Quando o sedã mudou rápido de pista de novo, Jenna verificou o espelho mais uma vez e viu a rigidez de seu maxilar em meio ao trânsito e à distância que os separava. Apesar de ele estar usando óculos escuros para proteger os olhos, as lentes opacas não eram densas o bastante para mascarar seu brilho âmbar.
Brock estava atrás deles, e estava furioso.
– Filho da mãe – murmurou Green, espiando sobre a cabeça dela para olhar pelo vidro de trás do veículo. – Estamos sendo seguidos.
– Tem certeza? – perguntou Cho, aproveitando para ultrapassar outro carro ao chegarem ao fim da ponte.
– Tenho – respondeu Green. Uma nota de preocupação se infiltrou em sua expressão de outro modo inescrutável. – É um vampiro. Um dos guerreiros.
Cho acelerou ainda mais.
– Informe o Mestre de que estamos quase chegando. Pergunte como devemos proceder.
Green assentiu e, ainda mantendo a mira da pistola em Jenna, pegou o celular do bolso e apertou um botão. Após apenas um toque, a voz de Dragos surgiu do outro lado:
– Situação?
– Estamos nos aproximando dos armazéns no Brooklin, Mestre, conforme instruído. Mas não estamos sozinhos. – Green falava apressado, como se pressentisse o descontentamento que se seguiria. – Há alguém nos seguindo na ponte. Ele é da Raça. Um guerreiro da Ordem.
Jenna não pôde refrear o contentamento ante a imprecação violenta que explodiu pelo viva-voz do celular. Por mais aterrorizante que fosse ouvir a voz do odiado inimigo da Ordem, também foi gratificante saber que ele temia os guerreiros. E devia mesmo.
– Despistem-no – ordenou Dragos, destilando veneno.
– Ele está logo atrás de nós – disse Cho, relanceando nervosamente pelo espelho retrovisor ao acelerar pela estrada que seguia o litoral em direção à zona industrial. – Apenas um carro atrás de nós e vem se aproximando. Acho que não conseguiremos mais despistá-lo.
Outra imprecação ríspida de Dragos, mais selvagem que a anterior.
– Muito bem – disse ele num tom baixo e controlado. – Abortem, então. Matem a vadia e saiam daí. Desovem o corpo nas docas ou na rua, não importa. Mas não deixem que o maldito vampiro chegue perto de vocês. Entenderam?
Green e Cho trocaram um rápido olhar de compreensão.
– Sim, Mestre – respondeu Green, encerrando a ligação.
Cho deu uma guinada para a esquerda ao fim da estrada, entrando num estacionamento junto do rio. Caminhões-baú gigantescos e diversos outros caminhões menores salpicavam o pavimento esburacado e coberto de neve. Mais próximo à margem do rio havia diversos armazéns, para onde Cho parecia estar se direcionando numa velocidade impressionante.
Green abaixou a pistola na direção de Jenna, até ela estar encarando o cano e o tambor de balas que logo seriam descarregadas. Sentiu um fluxo de força em suas veias – algo muito mais intenso que adrenalina – quando tudo pareceu se desenrolar em câmera lenta.
O dedo de Green apertou o gatilho. Houve um som de metal, os mecanismos de disparo sendo acionados como no meio da névoa de um sonho.
Jenna ouviu a bala começar a explodir dentro do cilindro. Sentiu o cheiro de pólvora e de fumaça. E viu o tremor de energia dissipada no ar enquanto a arma era disparada em sua direção.
Esquivou-se da trajetória. Não entendeu como conseguiu, como era possível que ela soubesse quando desviar da bala que Green mirou. Só sabia que devia dar ouvidos aos seus instintos, por mais sobrenaturais que lhe parecessem.
Foi para trás do banco de Green e virou seu braço, quebrando-lhe o osso apenas com as mãos. Ele gritou em agonia. A pistola disparou novamente, desta vez num tiro desgovernado, que atingiu a lateral do crânio de Cho, matando-o instantaneamente.
O sedã guinou e avançou, acelerando por causa do peso do pé de Cho apoiado no pedal. Atingiram o canto de um contêiner enferrujado, fazendo o Crown Vic deslizar de lado em meio à neve e ao gelo.
Jenna bateu no capô do carro quando ele capotou, as janelas estilhaçando, os airbags sendo acionados. Seu mundo inteiro virou com violência, uma vez e outra, antes de finalmente parar abruptamente de ponta-cabeça no asfalto.
Puta que o pariu.
Brock entrou no estacionamento industrial e pisou no freio, assistindo num misto de terror e raiva enquanto o Crown Victoria batia na lateral do contêiner e se lançava numa reviravolta de metal sendo esmagado no piso congelado.
– Jenna! – gritou, avançando o Rover no estacionamento e abrindo a porta.
A luz do dia tinha sido uma provação enquanto ele estava no veículo; do lado de fora, era infernal. Ele mal conseguia enxergar em meio à ofuscante luz branca ao correr através do gelo e do asfalto esburacado até o sedã acidentado. As rodas do carro ainda estavam girando, o motor se lamuriando, lançando fumaça e vapor no ar gélido.
Ao se aproximar, ouviu Jenna grunhindo, esforçando-se lá dentro. O primeiro instinto de Brock foi segurar o carro e endireitá-lo, mas ele não tinha como ter certeza se isso não a machucaria mais, e esse era um risco que ele não queria correr.
– Jenna, estou aqui – disse, ao puxar a porta do motorista, arrancando-a das dobradiças. Ele a largou de lado e se ajoelhou para espiar dentro do interior amassado.
Ah, Cristo.
Sangue e massa cinzenta para todos os lados, o fedor dos glóbulos vermelhos mortos, combinado com a fumaça do óleo e da gasolina que vazavam para atingir seus sentidos já afetados pelos raios solares. Olhou além do cadáver do motorista, cuja cabeça fora atingida por um tiro à queima-roupa. Toda a concentração de Brock estava centrada em Jenna.
O teto do sedã estava todo afundado, criando apenas um pequeno espaço para ela e o outro humano, que tentava segurá-la pelas pernas. Ela o combatia chutando-o com o pé, tentando sair pela janela mais próxima. O humano desistiu assim que seu olhar inerte notou Brock. Soltando o tornozelo de Jenna, ele resolveu sair por trás pelo para-brisa quebrado.
– Servo – Brock grunhiu, e o ódio pelo escravo sem alma fez seu sangue ferver ainda mais.
Aqueles dois homens eram definitivamente lacaios leais de Dragos. Sangrados por ele até quase a morte, serviriam a Dragos em tudo o que fosse requisitado, obedientes até o último respiro. Brock queria fazer com que o humano fugitivo chegasse a esse fim o mais rápido possível. Matá-lo com as próprias mãos.
E faria isso, mas só depois de garantir que Jenna estivesse a salvo.
– Você está bem? – perguntou, tirando as luvas de couro com os dentes e deixando-as de lado para tocar nela. Passou os dedos pelo rosto pálido e bonito, depois se esticou para segurá-la por debaixo dos braços. – Venha, vamos tirá-la daqui.
Ela balançou a cabeça vigorosamente.
– Estou bem, mas minha perna está presa entre os bancos. Vá atrás dele, Brock. Aquele homem está trabalhando para Dragos!
– Eu sei – disse ele. – Ele é um Servo Humano e não tem a mínima importância. Mas você sim. Segure-se em mim, querida. Vou soltar você.
Algo metálico estourou do lado de fora do carro. Um ping ecoando, depois um segundo e um terceiro.
Balas.
Os olhos de Jenna encontraram os dele através da fumaça e dos vapores que envolviam o carro acidentado.
– Ele deve ter outra arma. Está atirando em nós.
Brock não respondeu. Sabia que o Servo não estava tentando atingi-los em meio ao metal retorcido. Ele estava atirando no carro, tentando criar a faísca que explodiria o tanque de combustível exposto.
– Segure-se em mim – ele lhe disse, apoiando uma mão na coluna dela e esticando a outra entre os bancos retorcidos em que Jenna estava presa. Com um grunhido baixo, ele os afastou.
– Estou livre – disse ela, já saindo do carro.
Outra bala atingiu o carro. Brock ouviu um arquejo não natural do lado de fora, uma lufada de ar que precedeu o súbito fedor de fumaça preta e a rajada de calor que dizia que o Servo tinha finalmente acertado o alvo.
– Venha! – disse, agarrando Jenna pela mão.
Ele a puxou para longe do carro, os dois caindo rolando pelo chão. Uma bola de fogo se formou no carro virado quando o tanque explodiu, sacudindo o chão debaixo deles. O Servo continuou atirando, as balas zunindo perigosamente perto.
Brock cobriu o corpo de Jenna com o seu e pegou uma das semiautomáticas de seu coldre. Ajoelhou-se, pronto para atirar, e percebeu que seus óculos tinham caído quando se afastaram apressados do carro. Por causa da parede de calor, da coluna de fumaça e do brilho da luz do sol, sua visão era praticamente nula.
– Droga – sibilou, passando uma mão pelos olhos, esforçando-se para enxergar em meio à agonia da sua visão chamuscada. Jenna começou a se mexer debaixo dele, saindo do escudo que seu corpo formava. Ele tentou segurá-la, a mão se adiantando, mas sem conseguir pegar em nada. – Jenna, maldição! Fique abaixada!
Mas ela não ficou. Pegou a pistola da mão dele e abriu fogo, numa sucessão rápida de tiros que passaram acima das chamas e do metal retorcido ao lado deles. Do outro lado do estacionamento, o Servo gritou, depois se calou por completo.
– Te peguei, filho da mãe – disse Jenna. Um instante depois, Brock sentiu os dedos dela segurarem os seus. – Ele está morto. E você está queimando aqui. Venha, vamos sair deste lugar.
Brock correu com ela de mãos dadas pelo estacionamento deserto, em direção ao Rover. Por mais que seu orgulho exigisse que argumentasse dizendo que estava bem para dirigir, ele sabia que estava queimado demais para sequer tentar. Jenna não lhe deu oportunidade para protestar. Empurrou-o para a parte de trás do carro, depois se pôs atrás do volante. Ao longe, o som de sirenes de carros de polícia ecoou, as autoridades humanas sem dúvida atendendo ao aviso do acidente de carro nas docas.
– Segure firme – disse Jenna, colocando o Rover em movimento.
Ela pareceu imperturbada por tudo aquilo, fria e composta, uma absoluta profissional. Caramba, ele nunca vira nada mais sensual do que aquilo em todos aqueles anos. Brock se recostou contra o couro frio do banco, grato por tê-la ao seu lado enquanto ela pisava fundo no acelerador e disparava para longe da cena do crime.
Capítulo 21
A viagem de volta para Boston levou umas boas quatro horas, mas o coração de Jenna ainda batia descompassado – a preocupação por Brock ainda vívida e inexorável – enquanto conduzia o Rover pelos portões de ferro do complexo e dava a volta até a garagem da frota nos fundos da propriedade da Ordem.
– Chegamos – disse ela, estacionando o carro dentro da imensa garagem e desligando o motor.
Relanceou pelo espelho retrovisor, verificando como ele estava pela milésima vez desde que saíram de Nova York. Brock se mantivera quieto no banco de trás do SUV em boa parte do trajeto, apesar de se mexer um pouco em óbvia agonia ao tentar dormir e suportar os efeitos da exposição aos raios ultravioleta.
Virou-se no banco para examiná-lo melhor.
– Você vai ficar bem?
– Vou sobreviver. – Os olhos dele se encontraram com os dela no escuro, a boca larga se torcendo mais numa careta do que num sorriso. Ele tentou se erguer, gemendo com o esforço.
– Fique aí. Deixe-me ajudá-lo.
Ela foi para o banco de trás antes que ele dissesse que saberia se virar sozinho. Fitou-a num silêncio duradouro e significativo, os olhos ligados, se prendendo um ao outro. Todo o oxigênio pareceu abandonar o lugar em que estavam. Pareceu deixar seus pulmões também, o alívio e a preocupação colidindo dentro dela enquanto fitava o belo rosto de Brock. As queimaduras evidentes há poucas horas na testa, nas bochechas e no nariz já haviam sumido. Os olhos escuros ainda lacrimejavam, mas não estavam mais vermelhos nem inchados.
– Ai, meu Deus – sussurrou ela, sentindo as emoções fluindo descontroladas. – Fiquei com tanto medo hoje, Brock. Você não faz ideia.
– Você, com medo? – Ele ergueu a mão, deslizando-a com carinho ao longo do seu rosto. Curvou os lábios e balançou de leve a cabeça. – Vi você em ação hoje. Não acho que algo possa te assustar de verdade.
Ela franziu a testa, revivendo o momento em que percebera que ele a seguia no SUV, atrás do volante em plena luz do dia. Mas a preocupação por ele se transformara em terror quando, depois que o carro em que ela estava capotou, Brock estava lá também, disposto a andar sob os raios ultravioleta letais a fim de ajudá-la. Mesmo agora, sentia-se maravilhada e humilde pelo que ele fizera.
– Arriscou a vida por mim hoje – sussurrou, inclinando o rosto em direção à palma quente dele. – Você se arriscou demais, Brock.
Ele se ergueu, segurando-lhe o rosto entre as mãos. A expressão era solene, muito intensa.
– Éramos parceiros hoje. Se quer saber a minha opinião, formamos uma bela equipe.
Ela sorriu sem conseguir se conter.
– Teve que me salvar... de novo. No tocante a parceiros, detesto ter que informar, mas acho que você levou a pior.
– Não. Nada disso. – O olhar de Brock a atingia com tamanha profundidade que parecia capaz de chegar à sua alma. Afagou-lhe o rosto, passando a almofadinha do polegar sobre os lábios. – E, para que fique claro, foi você quem salvou a minha vida. Se aquele Servo Humano não nos matasse, a luz do sol seguramente teria acabado comigo. Você nos salvou hoje, Jenna. Meu Deus, você foi incrível.
Quando ela abriu a boca para negar, ele se aproximou e a beijou. Jenna derreteu ao seu encontro, perdendo-se na carícia da boca dele. A atração que sentia não diminuíra em nada desde que foram para a cama, mas agora havia algo ainda mais poderoso por trás da onda de calor que sentia dentro de si. Gostava dele, de verdade, e perceber o que estava sentindo a pegou completamente desprevenida.
Não deveria ser assim. Não podia sentir aquela ligação forte, ainda mais depois que ele deixara claro que não queria complicar a situação com emoções e expectativas de um relacionamento. Mas quando ele interrompeu o beijo e a fitou, pôde ver que ele também estava sentindo mais do que estava preparado para sentir. Havia mais do que simples desejo reluzindo na luz âmbar dos seus cativantes olhos castanhos.
– Quando vi aqueles Servos irem embora levando você junto, Jenna... – As palavras se perderam no silêncio. Exalou uma imprecação e a abraçou forte por um tempo. Aninhou o rosto entre o pescoço e o ombro dela. – Quando a vi com eles, pensei que tinha fracassado. Não sei o que faria se algo tivesse acontecido com você.
– Estou aqui – disse ela, acariciando-lhe as costas e a cabeça inclinada de leve. – Não me decepcionou de modo algum. Estou aqui, Brock, por sua causa.
Ele a beijou de novo, mais profundamente, numa união langorosa das bocas. Suas mãos eram carinhosas, misturando-se aos cabelos e movendo-se devagar pelos ombros e coluna. Ela se sentia tão amparada nos braços dele, tão pequena e feminina ao encontro da imensidade do peito de guerreiro e dos braços musculosos.
E gostou dessa sensação. Gostou da maneira com que ele fez com que ela se sentisse segura e feminina, coisas que nunca vivenciara antes, nem mesmo com o marido.
Mitch, ah, meu Deus...
Pensar nele apertou seu coração como se ele estivesse preso num torno. Não pela dor do luto ou pelas saudades que sentia, mas por que Brock a beijava e a abraçava, fazendo-a se sentir merecedora do seu afeto, enquanto ela não lhe contara tudo.
Ele podia se sentir de outro modo se soubesse que foram suas ações que causaram o acidente que matou seu marido e sua filha.
– O que foi? – perguntou Brock, sem dúvida sentindo a mudança que aconteceu dentro dela. – O que aconteceu?
Ela se afastou de seu abraço, desviando o olhar, sabendo que era tarde demais para fingir que estava tudo bem. Brock ainda a afagava com carinho, esperando que ela lhe contasse o que a incomodava.
– Você tinha razão a meu respeito – murmurou. – Disse que eu tenho um problema por precisar estar no comando, e estava certo.
Ele emitiu um som de desconsideração no fundo da garganta e levantou-lhe o rosto para que o fitasse.
– Nada disso importa.
– Importa – insistiu ela. – Importou hoje e importou há quatro anos no Alasca também.
– Está falando de quando perdeu Mitch e Libby – disse ele, mais numa afirmação do que numa pergunta. – Acha que, por algum motivo, tem culpa?
– Sei que tenho. – Um soluço de choro se forçou na garganta, mas ela o refreou. – O acidente não teria acontecido se eu não tivesse insistido para que voltássemos para casa naquela noite.
– Jenna, não pode pensar que...
– Deixe-me contar – ela o interrompeu. – Por favor... quero que saiba a verdade. E eu preciso dizer essas palavras, Brock. Não posso mais segurá-las.
Ele não disse mais nada, sério ao segurar-lhe as mãos entre as suas, permitindo que ela lhe contasse como sua teimosia – sua maldita necessidade de estar no controle de todas as situações – custara-lhe as vidas de Mitch e de Libby.
– Estávamos em Galena, uma cidade a algumas horas de Harmony, onde morávamos. Os policiais haviam organizado um evento de gala lá, um daqueles eventos maravilhosos onde se entregam medalhas de honra e se tiram fotos com o governador. Eu estava sendo reconhecida por minha excelência no departamento, pela primeira vez recebia um prêmio. Convenci-me de que seria bom para a minha carreira ser vista por tantas pessoas importantes, por isso insisti com Mitch para que fôssemos com Libby. – Inspirou fundo para se fortalecer e exalou lentamente. – Era novembro e as estradas estavam quase intransponíveis. Chegamos a Galena sem problemas, mas na viagem de volta para casa...
– Está tudo bem – disse Brock, erguendo a mão para afastar uma mecha de cabelo. – Como você está?
Ela fez sinal de positivo, movendo a cabeça com hesitação, apesar de saber que não estava nada bem. Seu peito pesava de angústia e de culpa, os olhos ardiam com as lágrimas represadas.
– Mitch e eu discutimos a viagem inteira. Ele achava que as estradas estavam muito perigosas. E estavam, mas outra tempestade se aproximava, o que só pioraria a situação. Eu não queria esperar até que o tempo melhorasse porque precisava me apresentar para o meu turno na manhã seguinte. Por isso, voltamos para casa. Mitch estava dirigindo a Blazer. Libby estava na sua cadeirinha atrás. Após algumas horas na estrada, um caminhão carregado de toras atravessou o nosso caminho. Não houve tempo para reagir. Não houve tempo de eu me desculpar, ou de lhes dizer o quanto eu os amava.
– Venha cá – disse Brock, levando-a para perto dele. Abraçou-a por bastante tempo, com sua força tão reconfortante e prazerosa.
– Mitch me acusou de me preocupar mais com a minha carreira do que com ele e com Libby – sussurrou, a voz entrecortada, as palavras saindo com dificuldade. – Ele costumava dizer que eu era controladora demais, teimosa demais para o meu próprio bem. Mas ele sempre cedia, e cedeu naquele dia também.
Brock a beijou no topo da cabeça.
– Você não sabia o que ia acontecer, Jenna. Não tinha como saber, portanto, não se culpe. Foi algo além do seu controle.
– Eu sinto culpa por ter sobrevivido. Por que não podia ser eu no lugar deles? – As lágrimas a estrangulavam, quentes e amargas, presas na garganta. – Nem tive a chance de me despedir. Fui levada de helicóptero até Fairbanks e induzida ao coma para que meu corpo se recuperasse. Quando despertei um mês depois, fiquei sabendo que os dois haviam morrido.
– Jesus... – sussurrou Brock, ainda a segurando no abrigo dos seus braços. – Sinto muito, Jenna. Deus, como você deve ter sofrido.
Ela engoliu em seco, tentando não se perder na agonia daqueles dias tenebrosos. A presença de Brock ali ajudou. Ele era uma rocha de força, mantendo-a firme e estável.
– Quando saí do hospital, eu me sentia perdida. Não queria viver. Não conseguia aceitar o fato de que nunca mais veria a minha família. Alex e meu irmão, Zach, cuidaram dos enterros, uma vez que ninguém sabia quando eu sairia do coma. Quando recebi alta do hospital, Mitch e Libby já haviam sido cremados. Nunca consegui juntar coragem para ir ao cemitério onde foram sepultados.
– Não foi nenhuma vez durante esse tempo todo? – perguntou ele com suavidade, os dedos afagando seus cabelos.
Ela balançou a cabeça.
– Não me senti preparada para ver seus túmulos logo após o acidente, e a cada ano que passava nunca encontrei forças para ir lá e lhes dar o meu adeus. Ninguém sabe disso, nem mesmo Alex. Tive vergonha demais de contar como sou fraca.
– Você não é fraca. – Brock a afastou um pouco, só para poder inclinar a cabeça para trás e fitá-la nos olhos. – Todos cometem erros, Jenna. Todos têm arrependimentos e se culpam por coisas que deveriam ter feito de modo diferente em suas vidas. As coisas acontecem, e fazemos o que é possível a cada vez. Não pode se culpar para sempre.
As palavras a tranquilizaram, mas ela não conseguia aceitar tudo o que ele dizia. Já o vira se agarrando demais à própria culpa para saber que só estava sendo bondoso.
– Só está me dizendo isso para que eu me sinta melhor. Sei que não acredita de verdade.
Ele crispou o rosto, um tormento calado atravessando sua expressão na escuridão do Rover.
– Qual era o nome dela? – Jenna passou a mão pelo maxilar dele, vendo o sofrimento relembrado em seus olhos. – A moça da fotografia no seu quarto, vi como olhou para sua foto ontem à noite. Você a conheceu, não conheceu?
Um aceno, quase imperceptível.
– O nome dela era Corinne. Fui contratado para ser o guarda-costas dessa jovem Companheira de Raça em Detroit.
– Aquela foto deve ter algumas décadas – Jenna comentou, lembrando-se das roupas da época da Depressão e do clube de jazz onde a jovem havia sido fotografada.
Jenna percebeu que Brock entendeu a pergunta que ela fazia por seu olhar.
– Foi tirada em julho de 1935. Sei disso porque fui eu quem tirou.
Jenna assentiu, percebendo que deveria estar mais do que atônita pelo lembrete de que Brock e os de sua espécie eram praticamente imortais. Naquele instante, e em todas as vezes em que estava perto, pensava nele apenas como um homem. Um homem honrado e extraordinário que ainda sofria pela antiga ferida que o marcara profundamente.
– Corinne é a mulher que você perdeu? – perguntou com suavidade.
– Sim. – Sua carranca se acentuou.
– E se considera responsável pela morte dela – disse com cuidado, precisando saber pelo que ele passara. Queria entendê-lo melhor. Se pudesse, gostaria de ajudá-lo a suportar um pouco daquela culpa e sofrimento. – Como aconteceu?
A princípio, achou que ele não fosse lhe contar. Ficou olhando para os dedos entrelaçados, esfregando à toa o polegar na mão dela. Quando, por fim, falou, havia uma pontada de agitação em sua voz, como se a dor de perder Corinne ainda estivesse fresca em seu coração.
– Na época em que morei em Detroit, as vacas eram magras. Não tanto para a Raça, mas nas cidades humanas em que vivíamos. O líder de um Refúgio Secreto local e sua companheira pegaram algumas meninas sem lar, Companheiras de Raça, para criar e educar como suas filhas. Fui designado para proteger Corinne. Ela era uma criança selvagem, mesmo quando pequena, cheia de vida, sempre rindo. Conforme foi crescendo, adolescente já, ela se tornou ainda mais impetuosa. Ressentia-se das precauções impostas pelo pai, acreditando que ele fosse protetor demais. Começou a tentar se livrar das regras e expectativas dele. Começou a forçar os limites, assumindo riscos para a sua segurança pessoal, testando a paciência de todos ao seu redor.
Jenna lhe lançou um sorriso meigo.
– Já consigo imaginar que isso não deu muito certo com você.
– Nem um pouco – disse ele, balançando a cabeça. – Corinne era inteligente, e tentava se livrar de mim sempre que podia, mas nunca me passou para trás. Até aquela última vez, na noite em que completava dezoito anos.
– O que aconteceu?
– Corinne amava música. Na época, o jazz era o que se destacava. Os melhores clubes de jazz em Detroit ficavam numa região chamada Paradise Valley. Acho que não havia uma semana em que ela não implorasse que eu a levasse lá. E acabava me convencendo muitas vezes. Fomos aos clubes na noite do seu aniversário também, não que isso fosse muito fácil, já que era o início do século e ela era uma mulher branca na companhia de um homem negro. – Exalou profundamente, emitindo uma risada sem humor. – A cor da pele pode ser algo secundário no meu mundo, entre os membros da Raça, mas não era o caso para a humanidade naquela época.
– Com muita frequência, ainda é assim hoje em dia – disse Jenna, prendendo mais os dedos nos dele e só vendo beleza no contraste entre as peles. – Houve confusão naquela noite no clube?
Ele assentiu de leve.
– Alguns olhares e sussurros. Uns homens brancos tomaram uns drinques a mais. Chegaram perto de Corinne e disseram alguns desaforos. Eu lhes disse para onde poderiam ir. Não me lembro quem desferiu o primeiro soco, mas a situação piorou depois disso.
– Os homens sabiam o que você era? Que você era da Raça?
– Não a princípio. Eu sabia que a minha raiva poderia me delatar, e sabia que tinha que sair de lá antes que o lugar todo visse as minhas transformações. Os homens me seguiram para o lado de fora. Corinne também teria saído, mas eu lhe disse para ficar dentro, que encontrasse um lugar para me esperar enquanto eu cuidava do assunto. – Inspirou fundo. – Não demorei nem dez minutos. Quando voltei ao clube, não havia nenhum sinal dela em parte alguma. Virei o lugar pelo avesso à procura dela. Procurei em cada canto da cidade e nas áreas dos Refúgios Secretos até o alvorecer. Continuei procurando todas as noites depois disso, até fora do Estado. Mas... Nada. Ela desapareceu em pleno ar.
Jenna ouvia a frustração em sua voz – o arrependimento – mesmo depois de todos aqueles anos. Ergueu a mão e tocou-o no rosto, sem saber o que fazer por ele.
– Eu queria ter o seu dom. Queria poder arrancar a sua dor.
Ele balançou a cabeça, depois levou a palma da mão dela à boca, depositando um beijo bem no centro.
– O que sinto é raiva... de mim mesmo. Eu jamais deveria ter permitido que ela saísse das minhas vistas, nem por um segundo. Quando a notícia de que o corpo de uma jovem brutalizada e carbonizada foi encontrado em uma cidade à beira de um rio não muito longe dos clubes, fiquei enjoado de tanto pavor. Não quis acreditar que fosse ela. Nem mesmo quando vi o cadáver com meus próprios olhos... ou o que restou dele, depois do que alguém lhe fez antes dos três meses em que ficou debaixo d’água.
Jenna se retraiu, sabendo muito bem como a morte podia ser horrenda, especialmente para aqueles que gostavam das vítimas. E mais especificamente para um homem que se considerava responsável pelo crime que não havia como ele ter previsto, quanto mais evitado.
– Ela estava irreconhecível, a não ser pelos restos de roupa e pelo colar que ainda usava quando foi retirada do rio. Queimá-la e cortar-lhe as mãos não foi suficiente para quem a matou. Ela também foi amarrada a um peso, a fim de garantir que demorassem para encontrá-la após o seu desaparecimento.
– Meu Deus – sussurrou Jenna. – Esse tipo de brutalidade e de premeditação não acontece por acaso. Quem quer que tenha feito isso fez por algum motivo.
Brock deu de ombros.
– Que motivo poderia haver para matar uma jovem indefesa? Ela não passava de uma criança. Uma linda e temerária criança que vivia a vida a cada momento. Havia algo de viciante em sua energia e personalidade. Corinne pouco se importava com que os outros diziam ou pensavam, ela apenas saboreava a vida sem pedir licença. Aproveitava cada dia como se não houvesse amanhã. Jesus, ah, se ela soubesse...
Jenna viu a profundidade de seu arrependimento na expressão calculada.
– Quando percebeu que a amava?
O olhar dele estava distante ali no banco de trás do carro.
– Não lembro como aconteceu. Esforcei-me para manter meus sentimentos em segredo. Não fiz nada, nem quando ela flertava e brincava comigo. Não seria certo. Para começar porque Corinne era jovem demais, e também porque seu pai confiava em mim para protegê-la.
Jenna sorriu ao se inclinar para afagar-lhe o maxilar rijo.
– Você é um homem de honra, Brock. Foi antes e ainda é.
Ele balançou a cabeça de leve, refletindo um instante.
– Fracassei. O que aconteceu com Corinne, meu Deus, o que os assassinos fizeram com seu corpo, foi além da minha compreensão. Jamais deveria ter acontecido. Eu deveria tê-la mantido a salvo. Demorou muito tempo para eu aceitar o fato de que ela se fora, que aqueles restos enegrecidos e profanados um dia haviam sido a mulher jovem e vibrante que eu conheci desde criança. Quis negar que ela estivesse morta. Inferno, neguei isso para mim mesmo por muito tempo, chegando a procurá-la país afora, convencido de que ela ainda estava por aí, de que eu poderia salvá-la. Nunca a trouxe de volta.
Jenna o observou, vendo o tormento que ainda residia dentro dele.
– Ainda deseja poder trazê-la de volta?
– Fui contratado para protegê-la. Esse era o meu trabalho, a promessa que eu fazia toda vez que ela saía do Refúgio Secreto do pai. Eu teria trocado a minha vida pela de Corinne sem hesitação.
– E agora? – Jenna perguntou baixinho, meio que temendo ouvir que ele ainda amava o lindo fantasma do seu passado.
Mas quando o olhar de Brock se ergueu, seus olhos fixos e sérios estavam completamente concentrados nela. Seu toque foi quente e se demorou em seu rosto, a boca muito próxima da dela.
– Não prefere saber como me sinto a seu respeito? – Resvalou o polegar em seus lábios num contato muito tênue que mesmo assim a acendeu por dentro. – Não consegui parar de pensar em você e, acredite, eu tentei. Envolver-me nunca fez parte dos meus planos.
– Eu sei – disse ela. – Alérgico a relacionamentos. Eu me lembro.
– Tomei cuidado por muito tempo, Jenna. – A voz dele soou grossa, com uma vibração que ecoou em seus ossos. – Eu me esforcei muito para não cometer erros. Ainda mais os que não podem ser consertados.
Ela engoliu em seco, subitamente ciente de que sua voz se tornara muito séria.
– Você não me deve nada, se é o que está pensando.
– É nisso que você está errada – disse ele. – Eu lhe devo uma coisa, um pedido de desculpas pelo que aconteceu entre nós na outra noite.
Ela balançou a cabeça em negação.
– Brock, não...
Ele segurou seu queixo e prendeu sua atenção com o olhar.
– Eu quero você, Jenna. A maneira como a levei para a cama provavelmente não foi justa. Por certo não foi honrada, usando meu dom para aplacar sua dor, quando também pode ter tirado um pouco do seu livre-arbítrio.
– Não. – Ela o tocou no rosto, lembrando-se muito bem como foi beijá-lo, tocá-lo, deitar-se nua com ele na cama. Ela esteve mais do que disposta a conhecer aquele tipo de prazer com ele, naquele dia e agora. – Não foi nada disso, Brock. E você não tem que se explicar...
– Mais do que tudo – disse ele, falando por cima das negações dela –, eu lhe devo um pedido de desculpas por ter sugerido que, com você, o sexo seria meramente físico, sem envolvimento nem expectativas além daquele momento. Eu estava errado. Você merece mais do que isso, Jenna. Você merece muito mais do que posso lhe oferecer.
– Eu não pedi nada mais. – Ela acariciou a linha do maxilar, depois deixou os dedos escorregarem pela coluna do pescoço dele. – E o desejo foi mútuo, Brock. Eu fui dona da minha vontade. E ainda sou. E faria tudo de novo com você.
O rosnado de resposta dele foi puramente másculo ao puxá-la para um beijo ardente. Segurou-a firme, o coração batendo forte, o calor do corpo entrando na pele dela tal qual um bálsamo. Quando se afastou, a respiração saía entrecortada entre os dentes e as pontas brilhantes das presas.
– Cristo, Jenna... o que mais quero fazer agora é pegar este carro e sair daqui, ir para qualquer lugar com você. Só nós dois. Só por um tempo, longe de todo o resto.
A ideia era mais do que tentadora, e ainda mais irresistível quando ele se inclinou e a capturou num beijo de derreter os ossos. Ela o envolveu com os braços, encontrando a língua dele com a sua, perdendo-se no encontro erótico das suas bocas. Brock emitiu um barulho baixo na base da garganta, um rosnado retumbante que reverberou nela quando ele a segurou com força, aprofundando ainda mais o beijo.
Jenna sentiu o resvalar afiado das presas em sua língua, a firmeza da ereção ao encontro do seu quadril quando ele a girou ao longo do banco e a cobriu com seu corpo.
– Gideon está nos esperando no laboratório de tecnologia – ela conseguiu sussurrar, quando afastou a boca para começar uma trilha de beijos pela pele sensível abaixo da orelha. Haviam telefonado da estrada uma hora antes de chegarem, alertando Lucan e Gideon da situação com que se depararam em Nova York e avisando que estavam a caminho do complexo. – Eles esperam que a gente se reporte assim que chegarmos.
– A-hã – grunhiu ele, sem parar de beijá-la.
Desceu o zíper do casaco dela e escorregou uma mão por baixo da camisa. Acariciou-lhe os seios por cima do tecido fino do sutiã, incitando os mamilos a ficarem rijos. Contorceu-se quando ele se moveu sobre ela, cravando a pélvis em movimentos lentos que fizeram seu corpo chorar com o desejo de sentir a pele nua dele contra a sua. Enterrada dentro dela.
– Brock... – arfou, faltando pouco para se perder na paixão que ele incitava. – Gideon sabe que estamos aqui. Deve haver alguma câmera de segurança apontada para nós neste exato instante.
– Janelas com película escura – explicou, rouco, olhando para ela com um sorriso sensual que revelava as pontas das presas e fazia seu estômago farfalhar. – Ninguém vai conseguir ver nada. Agora pare de pensar em Gideon e me beije.
Ele não precisava ter lhe dito para parar de pensar. As mãos e os lábios apagaram quaisquer pensamentos, exceto o desejo que sentia por ele. Brock a beijava com exigência, empurrando a língua na boca dela como se fosse devorá-la. Sua paixão era intoxicante e ela a sorveu, agarrando-se a ele, amaldiçoando internamente a inconveniência das roupas e o espaço diminuto do Rover.
Ela o desejava com ainda mais intensidade do que da primeira vez, seu desejo incendiado pela delicadeza do pedido de desculpas desnecessário e pela adrenalina que ainda corria em suas veias por tudo o que passaram naquele dia juntos. Murmurando seu nome em meio a arquejos entrecortados de prazer enquanto a boca dele trafegava ao longo do seu pescoço e as mãos acariciavam os montes doloridos dos seios, Jenna soube que, se ficassem mais um minuto dentro daquele carro, acabariam nus ali no banco de trás. Não que ela fosse reclamar. Mal tinha ar suficiente para fazer mais do que simplesmente gemer de prazer quando ele colocou a mão entre as suas pernas e a esfregou num ritmo habilidoso.
– Céus – sussurrou. – Por favor, não pare.
Mas ele parou, nem um segundo depois. Ficou absolutamente imóvel acima dela, a cabeça se erguendo. Foi então que ela também ouviu.
O ronco de um carro se aproximando em alta velocidade pelo lado de fora da garagem. O portão se abriu e um dos SUVs pretos da Ordem entrou com tudo. Rangeu os pneus ao frear a poucos passos deles, e um dos guerreiros saltou pela porta do motorista.
– É o Chase – murmurou Brock, com expressão preocupada ao observar pela janela de trás. – Droga. Alguma coisa está errada. Fique aqui, se não quer que ele saiba que estávamos juntos.
– Esquece. Vou com você – disse ela, arrumando-se para segui-lo para fora do Rover e se encontrar com o outro macho da Raça. Sterling Chase estava seguindo para o elevador do complexo a passos apressados. Relanceou para Brock e Jenna quando se aproximaram. Se imaginava o que interrompera, seus olhos azuis nada revelaram.
– O que está acontecendo? – perguntou Brock, num tom absolutamente profissional.
Chase se mostrou igualmente sério, sem desacelerar para falar.
– Não ouviu ainda?
Brock deu um meneio curto com a cabeça.
– Acabamos de chegar.
– Recebi um telefonema de Mathias Rowan há poucos minutos – disse Chase. – Aconteceu um sequestro num dos Refúgios Secretos da região de Boston hoje à noite.
– Ai, meu Deus – sussurrou Jenna, assolada. – Não me diga que foi outra Companheira de Raça.
Chase balançou a cabeça.
– Um macho jovem, de quatorze anos. Acontece que ele também é neto de um ancião da Primeira Geração chamado Lazaro Archer.
– Primeira Geração... – murmurou Brock, os instintos já alarmados. – Não pode ser coincidência.
– Não mesmo – concordou Chase. – A Agência de Policiamento está interrogando testemunhas, tentando obter alguma pista que possa levar até onde o garoto foi levado e por quê. Nesse meio-tempo, Lazaro Archer e o filho, Christophe, o pai do garoto, estão soltando boatos de que querem se encontrar com o sequestrador pessoalmente, quem quer que ele seja, para negociar a libertação dele.
– Merda. Péssima ideia – disse Brock, lançando um olhar tenso para Jenna enquanto seguiam Chase pela garagem. – Só consigo pensar em uma única pessoa que tenha um motivo para sequestrar um membro da família de um Primeira Geração. Isso é uma armadilha, Harvard. Sinto cheiro de Dragos nisso tudo.
– Eu também. Assim como Lucan. – Chase parou diante do elevador do hangar e pressionou o botão. – Ele marcou uma reunião com o Primeira Geração e o filho dele aqui no complexo. Tegan vai apanhá-los dentro de uma hora.