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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


Midnight Breed
Midnight Breed

                                                                                                                                               

  

 

 

 

 

 

 

Capítulo quatro

Gabrielle podia contar com uma só mão os sonhos erótico que tinha tido durante toda sua vida, mas nunca tinha experiente nada tão quente —por não dizer real— como a fantasia de orgia sexual que tinha desfrutado da noite anterior, cortesia de um Lucan Thorne virtual. Seu fôlego tinha sido a brisa noturna que penetrava pela janela aberta de seu dormitório do piso de acima. Seu cabelo era a escuridão de obsidiana que enchia as clarabóias, sobre sua cama. Seus olhos chapeados, o brilho pálido da lua. Suas mãos eram as ligaduras de seda de sua colcha, que enredavam seus pulsos e tornozelos, abriam seu corpo debaixo do dele e a sujeitavam com força.
Sua boca era puro fogo que lhe queimava cada centímetro da pele e a consumia como uma chama invisível. «Jasmim», tinha-a chamado ele, e o suave som dessa palavra vibrava contra a umidade de sua pele, o quente fôlego dele formava redemoinhos os suaves cachos de pêlo de sua entre perna.
Ela se tinha retorcido e tinha gemido dominada pela habilidade da língua dele, que a tinha submetido a uma tortura que ela desejava que fosse infinito. Mas tinha terminado, e muito logo. Gabrielle se tinha despertado em sua cama, só na escuridão, pronunciando quase sem fôlego o nome de Lucan, com o corpo esgotado e inerte, dolorido pelo desejo.
Ainda lhe doía o desejo e o que mais lhe preocupava era o fato de que o misterioso detetive Thorne lhe tivesse dado plantão.
Não era que seu oferecimento de passar por seu apartamento essa noite fosse nada que se parecesse com um encontro, mas ela tinha estado esperando voltar a lhe ver. Tinha interesse em saber mais a respeito dele dado que se havia mostrado tão inclinado a decifrá-la com um simples olhar. Além de conseguir algumas respostas mais sobre o que tinha presenciado essa noite fora da discoteca, Gabrielle tinha desejado conversar de algo mais com Lucan, possivelmente tomar um pouco de vinho e algo para jantar. O fato de que se depilou as pernas duas vezes e de que se pôs uma roupa interior negra e atrativa sob a camisa de seda de manga larga e dos escuros jeans era puramente acidental.

Gabrielle lhe tinha esperado até bem passadas as nove e então abandonou a idéia e chamou Jamie para ver se ele queria jantar com ela no centro da cidade.
Agora, sentado diante dela, ao outro lado da mesa, nessa sala cheia de janelas do bistro Ciao Bela, Jamie deixou na mesa a taça de pinot noire e olhou o prato de frutos do mar que ela quase não havia tocado.
—Estiveste enjoando a mesma parte da comida pelo prato durante os últimos dez minutos, carinho. Você não gosta?
—Sim, é genial. A comida sempre é incrível aqui.
—Então, é a companhia o que te desagrada?
Ela levantou o olhar para ele e negou com a cabeça.
—Absolutamente. Você é meu melhor amigo, já sabe.
—Certo —assentiu ele.
— Mas não me posso comparar com seu sonho erótico.
Gabrielle se ruborizou ao dar-se conta de que um dos clientes que se encontrava na mesa do lado olhava para eles.
—Às vezes é horrível, sabe? —disse a Jamie em um sussurro.
— Não deveria haver lhe contado isso.
—OH, carinho. Não se sinta incômoda. Se me tivessem dado uma moeda cada vez que me despertei excitado, chiando o nome de algum cara sexy...
—Eu não chiei seu nome. —Não, tinha-o pronunciado com o folego entrecortado e em um gemido, tão enquanto estava na cama como enquanto estava na ducha ao cabo de pouco tempo, ainda incapaz de tirar do corpo a sensação de Lucan Thorne.
— Era como se ele estivesse ali, Jamie. Justo ali, em minha cama, tão real que eu podia lhe tocar.
Jamie suspirou.
—Algumas garotas têm toda a sorte do mundo. A próxima vez que te encontre com seu amante em sonhos, seja generosa e me manda isso quando tenha terminado.
Gabrielle sorriu, sabendo que seu amigo não andava escasso no apartado romântico. Durante os últimos quatro anos tinha tido uma feliz relação monógama com o David, um vendedor de antiguidades que se encontrava nesses momentos fora da cidade por motivos de trabalho.
—Quer saber o que é o mais estranho disso tudo , Jamie? Aos levantar, esta manhã, a porta de entrada não estava fechada com chave.
— E?
—E você me conhece, nunca a deixo aberta.
As cuidadas e depiladas sobrancelhas do Jamie se juntaram, franzindo o cenho.
—O que quer dizer, que cre que esse cara forçou a porta de sua casa enquanto dormia?
—Parece uma loucura, sei. Um detetive da polícia que vem a minha casa a meia-noite para me seduzir. Devo estar perdendo a cabeça.
Disse-o com tom despreocupado, mas não era a primeira vez que se questionava em silêncio sua própria prudência. Não era a primeira vez nem muito menos. Com gesto ausente, brincou um momento com a manga da blusa enquanto Jamie a observava. Ele se sentia preocupado nesse momento, o qual somente aumentava a inquietação que Gabrielle sentia sobre o tema de sua possível instabilidade mental.

—Olhe, carinho. Passaste muita tensão do fim de semana. Isso pode provocar coisas estranhas na cabeça. Estiveste preocupada e confundida. Possivelmente se esqueceu de fechar a porta.
—E o sonho?
—Somente isso... Um sonho. Somente se trata de sua mente curvada que tenta tranqüilizar-se, relaxar-se.
Gabrielle baixou a cabeça em um gesto automático de afirmação.
—Exato. Estou segura de que só é isso.
Se pudesse aceitar que a explicação de tudo era tão simples como seu amigo fazia que parecesse... Mas uma sensação na boca do estômago rechaçava a idéia de que ela tivesse esquecido de fechar a porta. Ela nunca faria uma coisa assim, simplesmente, por estressada e confundida que estivesse.
—Né. —Jamie alargou o braço por cima da mesa para tomar a mão.
— Vais estar bem, Gab. Já sabe que pode me chamar a qualquer hora, verdade? Estarei contigo, sempre o estarei.
—Obrigado.
Lhe soltou a mão, tomou o garfo e fez um gesto em direção a seu fruto do mar.
—Bom, vais comer um pouco mais ou posso começar a limpar seu prato agora?
Gabrielle trocou seu prato meio cheio pelo dele, completamente vaziu.
—Tudo para ti.

Enquanto Jamie se concentrava na comida fria, Gabrielle apoiou o queixo em uma mão e tomou um comprido gole de sua taça de vinho. Enquanto bebia, brincou com os dedos em cima das ligeiras marcas que descobriu no pescoço essa mesma manhã depois de tomar banho. A porta aberta não era o mais estranho que se encontrou essa manhã: as duas marca idênticas que se viu debaixo da orelha se levaram o prêmio, sem dúvida nenhuma.
Essas pequenas perfurações não tinham sido o bastante profundas para lhe transpassar a pele, mas aí estavam. Havia duas, a uma distância equitativa, no ponto onde o pulso lhe pulsava com mais força quando o apalpava com os dedos. Ao princípio se disse que possivelmente havia se arranado a si mesmo enquanto dormia, possivelmente a causa do sonho estranho que tinha tido.
Mas, entretanto, essas marcas não pareciam arranhões. Pareciam... outra coisa.
Como se alguém, ou algo, tivesse estado a ponto de lhe morder a carótida.
Uma loucura.
Isso era, e tinha que deixar de pensar dessa maneira antes de fazer-se mais mal a si mesmo. Viu-se obrigada a centrar-se e a deixar de recrear-se em fantasias delirantes sobre visitantes a meia-noite e monstros de filme de terror que não era possível que existissem na vida real. Se não tomava cuidado, acabaria como sua mãe biológica.
—OH, Meu deus, me dê uma bofetada agora mesmo porque sou um completo e profundo imbecil —exclamou Jamie de repente, interrompendo seus pensamentos.
— Continuo esquecendo-me de lhe dizer isso ontem recebi uma chamada na galeria sobre suas fotografias. Um peixe gordo do centro da cidade está interessado em uma amostra privada.
—Sério? De quem se trata?
Ele se encolheu de ombros.

—Não sei, carinho. A verdade é que não falei com o possível comprador, mas a partir da atitude estirada do ajudante do tipo, diria que seja quem é seu admirador, ele ou ela— nada na abundância do dinheiro. Tenho uma entrevista em um dos edifícios do distrito financeiro amanhã de noite. Falo-te de um escritório em uma cobertura, querida.
—OH, Meu deus —exclamou ela com incredulidade.
—Acredita. Super bom, amiga. Muito em breve será muito para um pequeno vendedor de arte como eu —brincou ele, compartilhando a excitação com ela.
Era difícil não sentir-se intrigada, especialmente depois de tudo o que lhe tinha passado durante os últimos dias. Gabrielle tinha conseguido uns fiéis e respeitáveis admiradores e ganhou uns quantos bons elogios por seu novo trabalho, mas uma amostra privada para um comprador desconhecido era o máximo.
—Que peças te pediu que levasse?
Jamie levantou a taça de vinho e brindou com a dela com um gesto burlesco de saudação.
—Todas, senhorita Importante. Cada uma das peças da coleção.
No telhado do um velho edifício de tijolos do ocupado distrito dos teatros da cidade, a lua se refletia na risada letal de um vampiro embelezado de negro. Agachado em sua posição perto da beirada, o guerreiro da raça girou a escura cabeça e levantou uma mão para fazer um sinal.
«Quatro renegados. Uma presa humana se dirige diretamente para eles.»
Lucan lhe dirigiu um gesto afirmativo com a cabeça a Dante e se afastou da saída de emergência do quinto piso, que tinha sido sua posição de vigilância durante a última meia hora. Baixou até a rua de abaixo com um ágil movimento, aterrissando em silêncio, como um gato. Levava uma dupla folha de combate nas costas que lhe sobressaía pelos ombros como os ossos das asas de um demônio. Lucan desencapou a arma de titânio quase sem emitir nenhum som e penetrou nas sombras da estreita rua lateral para esperar os acontecimentos dessa noite.

Eram ao redor das onze, várias mais tarde que a hora em que deveria ter passado pelo apartamento de Gabrielle Maxwell para lhe devolver o telefone celular, tal e como lhe disse que o faria. O aparelho ainda estava em posse de Gideon, no laboratório técnico, que estava processando as imagens para as contrastar com a Base de dados de Identificação Internacional da Raça.
Quanto a Lucan, não tinha nenhuma intenção de devolver o telefone celular a Gabrielle, nem em pessoa nem de nenhuma outra maneira. As imagens do ataque dos renegados não tinham que estar em mãos de nenhum ser humano, e depois da decepção que se levou no dormitório dela, quanto mais longe estivesse dessa mulher, melhor.
«Uma maldita companheira de raça.»
Deveria havê-lo sabido. Agora que o pensava, ela tinha certas características que deveriam lhe haver dado a pista disso desde o começo. Como sua habilidade de ver através do véu do controle mental vampírico que enchia essa noite a sala de baile da discoteca. Ela tinha visto os renegados —ávidos de sangue no beco, e nas imagens indecifráveis do telefone celular— quando outros seres humanos não os havia podido ver. Logo, em seu apartamento, tinha demonstrado que tinha resistência ante a sugestão mental de Lucan para dirigir seus pensamentos, e ele suspeitava que se tinha sucumbido, tinha-o feito mais por causa de um desejo consciente do prazer que ele supunha para ela que por nenhuma outra coisa.
Não era nenhum secredo que as fêmeas humanas com o código genético único de companheiras de raça possuíam uma inteligência aguda e uma saúde perfeita. Muitas delas tinham uns assombrosos talento paranormal que aumentariam quando a companheira de raça se unisse por sangue com um macho vampiro.
Quanto a Gabrielle Maxwell, parecia possuir o dom de ter uma vista especial que lhe permitia ver o que o resto de seres humanos não podia ver, mas até onde chegava essa capacidade de visão era algo que ele não podia adivinhar. Lucan queria sabê-lo. Seu instinto de guerreiro exigia chegar ao fundo do assunto sem nenhuma demora.

Mas envolver-se com essa mulher, da forma que fosse, era o último que ele necessitava.
Então, por que não podia tirar-se de cima seu doce aroma, a suavidade de sua pele... sua provocadora sensualidade? Odiava o fato de que essa mulher tivesse despertado nele tal fragilidade, e seu estado de ânimo atual dificilmente melhorava pelo fato de que todo seu corpo doía pela necessidade de alimentar-se.
O único ponto claro essa noite era o constante ritmo dos saltos das botas dos renegados no pavimento, em algum lugar perto da entrada da rua lateral, que se dirigiam para ele.
O ser humano girou a esquina: encontrava-se a vários passos a frente deles, e era um homem. Jovem, saudável, vestia uma calça negra e alvo e uma túnica branca manchada que cheirava a cozinha de restaurante e a um suor repentino de ansiedade. O cozinheiro olhou por cima do ombro e viu que os quatro vampiros foram ganhando terreno. Um palavrão pronunciado em tom nervoso e atravessou a escuridão.
O humano voltou a girar a cabeça e caminhou mais depressa, com os punhos apertados e ambos grudado no corpo e os olhos muito abertos e cravados na estreita greta do asfalto que havia sob seus pés.
—Não faz falta que corra, homenzinho —lhe provocou um dos Renegados em um tom rouco como o som da areia fina contra o chão.
Outro deles emitiu um chiado agudo e se colocou a cabeça de seus três companheiros.
—Sim, não te escape agora. Tampouco é que vás chegar muito longe.

As risadas dos renegados ressonaram nos edifícios que flanqueavam a estreita rua.
—Merda —sussurrou o ser humano quase sem respiração. Não se voltou somente continuou para frente a passo rápido, a ponto quase de lançar-se a uma frenética, mas inútil, carreira.
À medida que o aterrorizado ser humano lhe aproximava, Lucan saiu da escuridão dando um passo e ficou em pé com as pernas abertas com os braços abertos a ambos os lados de seu corpo, bloqueou a rua com seu corpo ameaçador e suas espadas as gema. Dirigiu um frio sorriso aos renegados com as presas ameaçadoras, antecipando a luta que se morava.
—Boa tarde, senhoritas.
—OH, Jesus! —exclamou o ser humano. Deteve-se de forma brusca e olhou a Lucan o rosto com expressão de horror. Os joelhos cederam e caiu no chão,
— Merda!
—Te levante. —Lucan lhe dirigiu um breve olhar enquanto o jovem se esforçava por ficar em pé.
— Vai daqui.
Esfregou uma das afiadas folhas contra a outra diante dele e encheu a rua em sombras com o áspero som metálico do aço endurecido e letal. Detrás dos quatro renegados, Dante caiu ao asfalto e se agachou antes de levantar seu metro noventa e oito de altura. Não levava nenhuma espada, mas ao redor da cintura levava um cinturão de pele no qual levava sujeitas uma série de armas de mão letais, entre elas um par de folhas curvadas e afiadas como folhas de barbear que se convertiam em uma extensão infernal de suas mãos, incrivelmente rápidas. Malebranche ou prolongações diabólicas as chamava, e efetivamente eram umas garras do diabo. Dante as teve colocadas nas mãos em um momento: era um vampiro que sempre estava a ponto para entrar em um combate corpo a corpo.
—OH, Meu deus —gritou o ser humano com voz trêmula ao dar-se conta do perigo que lhe rodeava. Olhou a Lucan com a boca aberta e, com mãos trementes, rebuscou entre suas roupas tirou uma carteira do bolso traseiro da calça e a atirou ao chão.
— Toma-a, cara! Pode ficar mas não me mate, suplico-lhe isso!

Lucan manteve os olhos fixos nos quatro renegados, que nesses momentos estavam tomando posições e preparavam as armas.
—Te largue daqui. Agora.
—É nosso —vaiou um dos renegados. Uns olhos amarelos se cravaram fixamente em Lucan com puro ódio, as pupilas se reduziram a duas famintas ranhuras verticais. De suas largas presas lhe gotejava a saliva, outra prova do grande vício do vampiro pelo sangue.
Ao igual que os seres humanos podiam acabar dependendo de um poderoso narcótico, a sede de sangue também era destrutivo para a raça. A fronteira entre a necessidade de satisfazer a fome e a constante overdose de sangue se cruzava com facilidade. Alguns vampiros entravam nesse abismo de forma voluntária, enquanto que outros sucumbiam a essa enfermidade por inexperiência ou por falta de disciplina pessoal. Se chegava muito longe, e durante muito tempo, um vampiro se convertia na categoria de renegado, igual a esses ferozes monstros que grunhiam frente a Lucan nesses momentos.
Ansioso por convertê-los em cinzas, Lucan juntou com um golpe seco as duas folhas e cheirou a faísca de fogo que se criou quando os dois aços se encontraram.
O ser humano ainda se encontrava ali, atordoado pelo medo, dirigindo primeiro a cabeça para os renegados, que avançavam para ele, e agora para Lucan, que lhes esperava com atitude inquebrável. Esse momento de dúvida ia custar lhe a vida, mas Lucan apartou esse pensamento com frieza. O ser humano não era assunto dele. Quão único importava era eliminar a esses chupadores aditivos de sangue e ao resto dos doentes de sua raça.
Um dos renegados se passou uma mão suja por cima dos lábios babantes.
—Te aparte, idiota. Deixa que nos alimentemos.

—Esta noite não —grunhiu Lucan.
— Não em minha cidade.


—Sua cidade? —O resto deles se burlou e o renegado que ia em cabeça cuspiu no chão, Aos pés de Lucan.
— Esta cidade nos pertenece . Dentro de muito pouco, possuiremo-la por completo.
—Exato —acrescentou outro dos quatro.
— Assim parece que é você quem entrou em um território alheio.
Finalmente, o ser humano recuperou certa inteligência e começou a retirar-se, mas não chegou muito longe. Com uma velocidade incrível, um dos renegados alargou uma mão e agarrou ao homem pela garganta. Ele levantou do chão e lhe segurou no ar: as botas altas do homem ficaram a dois centímetros do chão. O ser humano grunhiu e suplicou, lutando com ferocidade enquanto o renegado lhe apertava o pescoço com mais força, lhe estrangulando lentamente com a mão nua. Lucan o observou, imperturbável, inclusive quando o vampiro deixou cair sua retorcida presa e lhe fez um buraco no pescoço com os dentes.
Pela extremidade do olho, Lucan viu que Dante se aproximava sigilosamente aos renegados por detrás. Com as presas estendidas, o guerreiro se lambeu os lábios, ansioso por entrar na tarefa. Não ia sentir se defraudado. Lucan atacou primeiro, e logo a rua explodiu com um estrondo de metal e de ossos quebrados.
Enquanto Dante lutava como um demônio saído do inferno —com as diabólicas folhas extensíveis cintilando a cada movimento, soltando gritos de guerra que rasgavam a noite—, Lucan manteve um frio controle e uma precisão letal. Um a um, os quatro renegados sucumbiram sob os golpes de castigo dos guerreiros. O beijo das folhas de titânio se expandia como um veneno a toda velocidade pelo corrompido sistema sangüíneo dos renegados, acelerando sua morte e provocando as rápidas mudanças nos estados de decomposição característicos da morte dos renegados.
Quando tiveram terminado com seus inimigos, quando seus corpos se reduziram de carne a osso e de osso a cinza fumegante, Lucan e Dante foram ver os restos do outro açougue da rua.
O ser humano estava imovel e sangrava profundamente por uma ferida que tinha na garganta.

Dante se agachou ao lado do homem e cheirou seu destroçado corpo.

—Está morto. Ou o vai estar dentro de um minuto.
O aroma do sangue derramado encheu as fossas nasais de Lucan com a força de um murro no ventre. Suas presas, estendidas já por causa da ira, agora pulsavam pelo desejo de alimentar-se. Baixou a vista e observou com desgosto ao humano moribundo. Apesar de que tomar o sangue era necessário para ele, Lucan desprezava a idéia de aceitar os refugos dos renegados, tivessem a forma que tivessem. Preferia conseguir o seu sustento dos serviçais anfitriões que ele mesmo elegia ali onde podia, apesar de que esses escassos bocados somente conseguiam despertar uma fome mais profunda.
Antes ou depois, todo vampiro tinha que matar.
Lucan não tentava negar sua natureza, mas nas ocasiões em que matava, o fazia seguindo sua própria eleição, seguindo sua próprias regras. Quando procurava uma presa, elegia principalmente criminosos, traficantes de droga, assassinos e outra gente de má vida. Era judicioso e eficiente e nunca matava pelo prazer de fazê-lo. Todos os da raça seguiam um código de honra similar; isso era o que lhes distinguia de seus irmãos os renegados, que se tinha separado deles ao rebelar-se a essa lei.
Sentiu que lhe esticava o ventre: o aroma do sangue voltou a fazer-se presente em suas fossas nasais. A saliva lhe começou a gotejar da boca ressecada.
Quando se tinha alimentado pela última vez?
Não podia recordá-lo: fazia bastante tempo. Vários dias, pelo menos, e não o suficiente para que lhe durasse. Tinha pensado acalmar parte da fome —tão carnal como de sangue— com a Gabrielle Maxwell a outra noite, mas essa idéia tinha tomado um giro repentino. Agora tremia por causa da necessidade de alimento, e essa necessidade era muito forte para pensar em algo exceto em cobrir as necessidades básicas de seu corpo.

—Lucan. — Dante apertou os dedos no pescoço do homem, procurando o pulso. As presas do vampiro estavam estendidos, afiados depois da batalha e por causa da reação fisiológica ante o forte aroma desse líquido escarlate que emanava do homem.
— Se esperarmos muito mais, o sangue terá morrido também.
E não lhes serviria de nada, posto que somente o sangue fresco que emanava das veias dos seres humanos podia saciar a fome de um vampiro. Dante esperou, inclusive apesar de que era óbvio que quão único desejava era baixar a cabeça e tomar sua parte desse homem, que tinha sido muito idiota para escapar quando tinha tido a oportunidade de fazê-lo.
Mas Dante esperaria, inclusive embora tivesse que deixar esbanjar esse sangue, dado que era um protocolo não escrito que as gerações mais jovens de vampiros não se alimentavam na presença dos mais velhos, especialmente se esse vampiro mais velho pertencia a categoria de «primeira geração» da raça e estava faminto.
A diferencia de Dante, o pai de Lucan era um dos Antigos, um dos oito guerreiros extraterrestres que tinham chegado de um planeta escuro e distante e se estrelaram milhares de anos atrás contra a superfície inóspita e implacável do planeta Terra. Para sobreviver, alimentaram-se do sangue dos seres humanos e tinham dizimado populações inteiras por causa de sua fome e de sua bestialidade. Em alguns estranhos casos, esses conquistadores estrangeiros se haviam emparelhado com êxito com fêmeas humanas, as primeiras companheiras de raça, que tinham gerado uma nova geração da raça dos vampiros.
Esses selvagens antepassados de outro mundo tinham desaparecido por completo, mas sua origem ainda continuava vivendo, como Lucan e uns quantos mais disseminados pelo mundo. Representavam o estádo mais próximo a realeza na sociedade dos vampiros: eram respeitados e não pouco temidos. A grande maioria dos da raça eram jovens, nascidos de uma segunda, terceira e, alguns, de uma décima geração.
A fome era mais urgente nos de «primeira geração». Também o era a propensão a ceder ante a sede de sangue e a converter-se em um renegado. A raça tinha aprendido a viver com esse perigo. A maioria deles tinha aprendido a dirigi-lo: tomavam sangue somente quando o necessitavam e nas mínimas quantidades necessárias para a sustentação. Tinham que fazê-lo assim, porque uma vez apanhados pela sede de sangue, não havia maneira de voltar atrás.

Os olhos afiados de Lucan caíram sobre a retorcida figura humana que ainda respirava ligeiramente, tombada no pavimento do chão. Ouviu um grunhido animal que provinha de sua própria garganta. Quando Lucan se aproximou com compridos passados em direção ao aroma do sangue vivo vertido no chão, Dante fez uma ligeira saudação com a cabeça e se apartou para permitir a seu superior que se alimentasse.


Capítulo cinco
Ele nem sequer se preocupou de chamá-la e lhe deixar uma mensagem a outra noite.
Típico.
Provavelmente tinha um encontro muito importante com seu mando à distancia e seu programa de poderes paranormais. Ou possivelmente, quando se houve marchado de seu apartamento a outra tarde, tinha conhecido a alguém mais e tinha recebido uma oferta mais interessante que devolver o telefone celular a Gabrielle no Beacon Hill.
Diabos, inclusive era possível que estivesse casado, ou que tivesse alguma relação com alguém. Não o tinha perguntado, e se o houvesse preguntado, isso não tivesse garantido que lhe houvesse dito a verdade. Lucan Throne, certamente, não era distinto a nenhum homem. Exceto pelo fato de que era... diferente.
Pareceu-lhe que era muito diferente a qualquer a quem houvesse conhecido até esse momento. Um homem muito reservado, quase fechado, que dava uma sensação extranhamente perigosa. Ela não podia imaginar sentado em uma poltrona diante do televisor, igual que tampouco lhe podia imaginar junto em uma relação séria de namoro, por não falar de uma esposa e uma família. O qual voltava a recordar a idéia de que seguramente ele teria recebido uma oferta mais interessante e tinha decidido desprezar a ela. E essa idéia lhe doía muito mais do que deveria.
«te esqueça dele», repreendeu-se Gabrielle quase sem fôlego enquanto aproximava o Cooper Mini negro à uma lateral da tranqüila rua local e desligava o motor. A bolsa com sua câmara e seu equipamento fotográfico se encontrava no assento do co-piloto. Agarrou-a, e tomou tambem uma pequena lanterna do porta-luvas, guardou as chaves na jaqueta e saiu do carro.

Fechou a porta sem fazer ruído e jogou uma rápida olhada ao seu redor. Não havia nem uma alma a vista, o qual não era surpreendente dado que eram quase as seis da manhã e que o edifício, no qual estava a ponto de entrar de forma ilegal e de fotografar, fazia vinte anos que estava fechado. Andou seguindo o caminho de pavimento gretado e girou a direita, cruzou uma sarjeta e subiu até um terreno cheio de carvalhos que formavam como uma densa cortina ao redor do velho hospital psiquiátrico.
O amanhecer começava a elevar-se pelo horizonte. A luz era fantasmagórica e etérea, como uma neblina úmida rosada e azulada que amortalhava essa estrutura gótica com um brilho de outro mundo. Apesar de estar pintado em tons claros, esse lugar tinha um ar ameaçador.
O contraste era o que a tinha atraído até essa localização essa manhã. Tomar as imagens ao anoitecer tivesse sido a eleição mais natural para concentrar-se na qualidade ameaçadora dessa estrutura abandonada. Mas era a justaposição da cálida luz do amanhecer com o tema frio e sinistro o que atraía a Gabrielle enquanto se detinha para tirar a câmara da bolsa que tinha pendurada do ombro. Tirou umas seis fotos e logo voltou a pôr a tampa a lente para continuar a caminhada em direção ao fantasmagórico edifício.
Uma alta cerca de arame apareceu diante dela, impedindo que os exploradores curiosos como ela entrassem na propriedade. Mas Gabrielle sabia que tinha um ponto débil escondido. Tinha-o descoberto a primeira vez que tinha vindo ao lugar para tirar umas fotos de exterior. Se apressou seguindo a linha da cerca até que chegou ao extremo sudoeste da mesma, onde se agachou até o chão. Ali, alguém tinha talhado discretamente o arame e tinha formado uma abertura o bastante grande para que um adolescente curioso pudesse abrir-se passo, ou para que uma fotógrafa decidida, e que tinha tendência a interpretar os sinais de «Não passar» e «Só pessoal autorizado» como sugestões amistosas em lugar de leis inquebráveis, penetrasse por ela.
Gabrielle abriu a parte de arame talhado, lançou o equipamento para o outro lado e se arrastou como uma aranha, sobre o ventre, Através da baixa abertura. Quando ficou em pé, ao outro lado da cerca, sentiu que as pernas lhe tremiam por causa de uma repentina apreensão. Deveria estar acostumada a este tipo de operações encobertas, de explorações em solitário: muito freqüentemente, sua arte dependia de sua coragem para encontrar lugares desolados, que alguns qualificariam de perigosos. Esse arrepiante psiquiátrico podia, certamente, qualificar-se como perigoso,
pensou enquanto deixava vagar o olhar por um grafite pintado com aerosol ao lado da porta de entrada que dizia más vibrações.
—Já pode dizê-lo —sussurrou em voz muito baixa. Enquanto se sacudia as agulhas de pinheiro e a terra da roupa, com gesto automático levou uma mão até o bolso dianteiro de seu jeans em busca do celular. Não estava ali, é obvio, já que ainda estava em poder do detetive Thorne. Outra razão para sentir-se aborrecida com ele por havê-la feito esperar a outra noite.
Possivelmente não deveria ser tão dura com o menino, pensou, repentinamente desejosa de concentrar-se em algo distinto ao mau pressentimento que a atendia agora que se encontrava dentro do terreno do psiquiátrico. Possivelmente Thorne não se apresentou porque algo lhe tinha acontecido no trabalho.
E se tinha sido ferido em cumprimento do dever e não acudiu tal e como tinha prometido porque se encontrava de alguma forma encapacitado de chamar ? Possivelmente não tinha chamado para desculpar-se nem para explicar sua ausência porque não podia fazê-lo fisicamente.
Exato. E possivelmente ela tinha comprovado seu próprio cérebro com as bra-gás do mesmo segundo em que tinha posto os olhos nesse homem.
Burlando-se de si mesmo, Gabrielle recolheu suas coisas e caminhou em direção a imponente arquitetura do edifício principal. Uma pálida pedra calcária se elevava para o céu em uma levantada torre central, remota em uns picos e agulhas dignos da melhor catedral gótica. Ao seu redor havia um extenso recinto de paredes de tijolo vermelho, cujo teto estava composto por telhas ordenadas em um desenho como de asas de morcego, comunicado entre eles por passarelas e arcos que formavam um claustro coberto.
Mas por impressionante que fosse essa estrutura, não havia forma de tirar-se de cima a sensação de uma ameaça latente, como se mil pecados e mil segredos se apertassem detrás dessas descascadas paredes e janelas com parte de cristais quebrados. Gabrielle caminhou até o ponto onde a luz era melhor e tomou umas quantas fotos. Não havia nenhuma maneira de entrar por aí: a porta principal estava fechada com ferrolho e com travessas de madeira. Se queria entrar para realizar algumas fotos do interior —e, definitivamente, sim queria—, tinha que dar a volta até a parte traseira e provar sorte com alguma janela que estivesse a pé de rua ou com alguma porta do porão.
Baixou deslizando-se por um aterro em pendente para a parte posterior do edifício e encontrou o que estava procurando: umas portinhas de madeira ocultavam três janelas que era muito provável que se abrissem a uma zona de serviço ou a um armazém. Os ferrolhos estavam oxidados, mas não estavam fechados e se abriram com facilidade quando se serve de ajuda de uma pedra que encontrou ali ao lado. Atirou da coberta de madera das janelas, levantou o pesado painel de cristal e o escorou, aberto, com os ferrolhos.
Fez uma varredura geral iluminando-se com a lanterna para assegurar-se de que o lugar estava vazio e de que não ia desabar sobre sua cabeça imediatamente, e penetrou através da abertura. Ao saltar do marco da janela, o solado de suas botas pisaram em cristais quebrados e pó e lixo acumulados durante anos. Esse porão de blocos de concreto tinha uns três metros e meio de comprimento e desaparecia na escura zona que ficava sem iluminar. Gabrielle dirigiu o magro feixe de luz de sua lanterna para as sombras do outro extremo do espaço. Percorreu com ele a parede e o deteve sobre uma velha porta de serviço em cuja superfície se podia ler o seguinte pôster: acesso restringido.
—O que te aposta? —sussurrou enquanto se aproximava da porta. Efetivamente, não estava fechada com chave.
Abriu-a e projetou a luz para o outro lado da porta, onde se abria um comprido corredor parecido a um túnel. Uns suportes de fluorescente quebrados penduravam do teto; alguns dos painéis que os haviam coberto tinham caido sobre o chão de qualidade industrial, onde jaziam quebrados e cobertos de pó. Gabrielle entrou nesse espaço escuro, insegura do que estava procurando e com certo temor do que poderia encontrar nas desertas tripas desse psiquiátrico.
Passou por diante de uma porta aberta do corredor e a luz do flash iluminóu uma cadeira de dentista de vinil vermelho, um pouco gasta, que se encontrava colocada no centro da habitação, como se esperasse ao próximo paciente. Gabrielle tirou a câmara de sua capa e tomou um par de rápidas fotos. Logo continuou para diante e passou ante uma série de habitações de revisão e de tratamento. Devia encontrar-se na ala médica do edifício.

Encontrou uma escada e subiu dois lances até que chegou, para sua complacencia, a torre central onde umas grandes janelas deixavam entrar a luz da manhã em generosas quantidades.
Através da lente da câmara olhou por cima de amplos terrenos e pátios flanqueados por elegantes edifícios de tijolo e de pedra calcária. Realizou umas quantas fotos do lugar, apreciando tanto sua arquitetura como o quente jogo que a luz do sol fazia contra tantas sombras fantasmagóricas. Resultava estranho olhar para fora do confinamento de um edifício que antigamente tinha albergado a tantas almas perturbadas. Nesse inquietante silêncio, Gabrielle quase podia ouvir as vozes dos pacientes, de gente que, simplesmente, não tinha a possibilidade de marchar-se caminhando dali como ela faria então.
Gente como sua mãe biológica, uma mulher a quem Gabrielle não tinha conhecido nunca e da qual não sabia nada mais que o que tinha ouvido de menina nas conversações apagadas que os trabalhadores sociais e as famílias de acolhida mantiveram e que ao final, uma por uma, devolveram ao sistema como se fosse um animal doméstico que houvesse demonstrado ser mais problemático do que se podia suportar. Tinha perdido a conta do número de lugares aonde a tinham enviado a viver, mas as queixa contra ela quando a devolviam sempre eram as mesmas: inquieta e introvertida, fechada e desconfiada, socialmente disfuncional com tendência a atitudes autodestrutivas. Tinha ouvido os mesmos qualificativos dirigidos para sua mãe, aos quais acrescentavam as categorias de paranóica e delirante.
Quando os Maxwell apareceram em sua vida, Gabrielle tinha passado dezenove dias em uma casa de acolhida sob a supervisão de um psicólogo designado pelo Estado. Não tinha nenhuma expectativa e ainda menos esperanças de que fora capaz de conseguir que outra situação de acolhida funcionasse. Francamente, já não lhe importava. Mas seus tutores tinham sido pacientes e bondosos. Acreditando que possivelmente a ajudasse a dirigir a confusão emocional, tinham-na ajudado a conseguir um punhado de documentos judiciais que tinham que ver com sua mãe.
Essa mulher tinha sido uma adolescente anônima, acreditava-se que era uma sem teto, que não tinha identificação, não lhe conhecia família nem conhecidos exceto pela menina recém-nascida que tinha abandonado, chorando e angustiada, em um contêiner de lixo da cidade em uma noite de agosto. A mãe de Gabrielle tinha sido maltratada, e sangrava por umas profundas feridas no pescoço que ela mesma se piorou rasgando-a, vítima da histeria e do pânico.

Em lugar de persegui-la pelo crime de haver abandonado seu bebê, o tribunal a tinha considerado incapacitada e a tinham enviado a umas instalações que certamente não eram muito diferentes a esta em que se encontrava ela agora. Quando ainda não levava nem um mês no centro institucional, pendurou-se com um lençol deixando detrás dela inumeráveis pergunta que nunca teriam resposta.
Gabrielle tentou tirar-se de cima o peso dessas velhas feridas, mas enquanto estava ali em pé e olhava através dos brumosos cristais das janelas, todo seu passado apareceu em primeiro plano em sua mente. Não queria pensar em sua mãe, nem na desgraçada circunstância de seu nascimento, nem nos escuros e solitários anos que lhe seguiram. Precisava concentrar-se em seu trabalho. Isso era o que lhe tinha permitido continuar para diante, depois de tudo. Era o único constante em sua vida, e as vezes tinha sido quão único de verdade tinha neste mundo.
E era suficiente.
Durante a maior parte do tempo, era suficiente.
«Toma umas quantas fotos e te largue daqui», disse a si mesmo, como brigando-se.
Levantou a câmara e tomou um par de fotos mais através do delicado trabalho de metal que se entrelaçava entre as duas janelas de cristal.
Pensou em partir pelo mesmo caminho por onde tinha entrado, mas se perguntou se possivelmente poderia encontrar outra saída em algum ponto do piso de abaixo do edifício central. Voltar a baixar ao escuro porão não lhe resultava especialmente atrativo.
Estava inquietando a si mesmo pensando em coisas sobre a loucura de sua mãe, e quanto mais momento se entretivera nesse velho psiquiátrico, mais lhe foram pôr os cabelos de ponta. Abriu a porta da escada e se sentiu um pouco melhor ao ver a tênue luz que se filtrava para dentro pelas janelas em algumas das habitações e nos corredores adjacentes.

Era óbvio que o artista do grafite de más vibrações tinha chegado até ali também. Em cada uma das quatro janelas havia uns extranhos símbolos realizados com pintura negra. Provavelmente eram os marcos de alguma turma, ou as assinaturas estilizadas dos meninos que tinham estado ali antes que ela. Em uma esquina havia uma lata de aerosol atirada, ao lado de umas bitucas de cigarros, de umas garrafas de cerveja quebrada e outros restos.
Gabrielle tomou a câmara e procurou um ângulo adequado para a fotografia que tinha em mente. A luz não era muito boa, mas com um lente diferente possivelmente resultasse interessante. Rebuscou na bolsa à procura das lentes e nesse momento ficou gelada ao ouvir um zumbido distante que procedia de algum ponto por debaixo de seus pés. Era muito frouxo, mas soava como o de um elevador, o qual era impossível. Gabrielle voltou a introduzir o equipamento na bolsa sem deixar de prestar atenção aos vagos sons que sentia ao seu redor. Todos os nervos de seu corpo se haviam esticado com uma gelada sensação de apreensão.
Não se encontrava sozinha ali dentro.
Agora que o pensava, notou que uns olhos a olhavam desde algum ponto próximo. Essa inquietante tira de consciência lhe pôs os cabelos de ponta na nuca e nos braços. Devagar, girou a cabeça e olhou para trás. Foi então quando o viu: uma pequena câmara de vídeo de circuito fechado montada em uma sombria esquina elevada do corredor, e que vigiava a porta da escada que ela tinha atravessado fazia somente uns minutos.
Possivelmente não estivesse em funcionamento e fosse somente algo que tinha ficado ali dos dias em que o psiquiátrico estava ainda em funcionamento. Essa teria sido uma idéia consoladora se a câmara não tivesse um aspecto tão cuidado e compacto, tão de tecnologia de vanguarda em segurança. Para comprová-lo, Gabrielle se aproximou dela e se colocou quase diretamente diante da câmara. Sem fazer nenhum ruído, a base da câmara girou e colocou a lente no ângulo adequado até que ficou enfocado no rosto de Gabrielle.

«Merda — disse, olhando esse olhos negro que não piscava.
—Pega.»
Das profundidades do edifício vazio, ouviu um rangido metálico e o estrondo de uma porta pesada. Era evidente que esse psiquiátrico abandonado não estava tão abandonado depois de tudo. Pelo menos tinham sistema de segurança, e a polícia de Boston poderia aprender algo dessa lição sobre o rápido tempo de reação dessa gente.
Soaram uns passos a um ritmo compassado: alguém que se encontrava vigiando tinha começado a dirigir-se para ela. Gabrielle se dirigiu para a escada e saiu disparada escada abaixo enquanto a bolsa a golpeava no quadril. À medida que baixava, a luz diminuía. Tomou a lanterna com a mão, mas não queria utilizá-la por medo de que funcionasse como um aviso de onde estava e o segurança pudesse segui-la. Chegou ao final da escada, empurrou a porta de metal e se precipitou para a escuridão do corredor do piso inferior.
Ouviu que a porta monitorada da escada se abria com um rangido e que seu perseguidor se precipitava para baixo, detrás dela, correndo com rapidez e ganhando terreno rapidamente.
Finalmente, chegou a porta de serviço do final do corredor. Lançou-se contra o aço frio e correu pelo escuro porão até a pequena janela que se encontrava aberta em uma das laterais. A corrente de ar frio lhe deu força: apoiou as mãos no marco da janela e se elevou. Deixou-se cair ao outro lado da janela, aterrissando fora na terra cheia de pedras.
Agora não podia ouvir seu perseguidor. Possivelmente lhe tinha avoado nos escuros de labirínticos corredores. Deus, isso esperava.
Gabrielle ficou em pé ao momento e correu em direção a abertura da cerca de arame. Encontrou-a rapidamente. colocou-se engatinhando e se introduziu pela fenda no arame com o coração desbocado e a adrenalina lhe correndo pelas veias.

Tinha muito pânico: em sua precipitação por escapar, arranhou-se um lado do rosto com um arame afiado da cerca. O corte lhe queimava na bochecha e sentiu o rastro quente de sangue que lhe baixava ao lado da orelha. Mas não fez caso da abrasadora ardência nem do golpe que se deu com a bolsa da equipamento fotográfica enquanto se inclinava sobre seu ventre para sair, através da cerca, para a liberdade.
Quando a teve atravessado, Gabrielle ficou em pé e correu enlouquecida pelo largo e escarpado terreno dos subúrbios. Somente se permitiu jogar uma rápida olhada para trás: o suficiente para ver que o enorme guarda de segurança ainda estava ali. Teria saído por algum lugar do piso principal e agora corria detrás dela como uma besta recém saída do inferno. Gabrielle tragou saliva de puro pânico ao lhe ver. O tipo parecia um tanque, facilmente pesava cento e dez quilogramas de puro músculo, e tinha uma cabeça grande e quadrada com o cabelo talhado ao estilo militar. Esse tipo enorme correu até a alta cerca e se deteve ao chegar a ela: golpeou-a com os punhos enquanto Gabrielle entrava correndo pela densa cortina de árvores que separava a propriedade da estrada.
O carro se encontrava a um lado do tranqüilo asfalto, justo onde o tinha deixado. Com mãos trementes, Gabrielle se esforçou por abrir a porta. sentia-se petrificada de pensar que esse tipo carregado de esteroides pudesse apanhá-la. Seu medo parecia irracional, mas isso não impedia que a adrenalina lhe corresse por todo o corpo. Afundou-se no acento de pele do Mini, pôs a chave no contato e ligou o motor. Com o coração acelerado, pôs em marcha o pequeno carro, apertou a fundo o pedal de aceleração e se precipitou para a estrada, escapando com um chiado de pneumáticos sobre o asfalto e o conseguinte aroma de queimado dos mesmos.


Capítulo seis
A metade da semana, em plena temporada turística, os parques e avenidas de Boston estavam coalhados de humanidade. Os trens traziam as pessoas a toda velocidade dos subúrbios, a seus lugares de trabalho ou aos museus, ou aos inumeráveis pontos históricos que se encontravam por toda a cidade. Olheiros carregados com câmeras subiam aos ônibus que lhes levavam de excursão ou se colocavam em fila para subir as Ferris sobrecarregados que lhes levariam mais à frente do cabo.
Não muito longe da agitação do dia, oculto a uns nove metros sob uma mansão dos subúrbios da cidade, Lucan Thorne se inclinou sobre um monitor de tela plaina, no edifício dos guerreiros da raça, e pronunciou uma maldição. Os registros de identificação dos vampiros apareciam em tela a velocidade vertiginosa enquanto o programa de computador realizava uma busca na enorme base de dados internacional procurando coincidências com as fotos que Gabrielle Maxwell tinha tomado.
—Ainda nada? —perguntou, olhando de soslaio e com expressão impaciente a Gideon, o operador informático.
—Nada até o momento. Mas ainda se está realizando a busca. A Base de dados de Identificação Internacional tem uns quantos milhões de registros para comprovar. —Os agudos olhos azuis do Gideon cintilaram por cima da arreios dos elegantes óculos de sol— Lhes jogarei o laço a esses burros, não se preocupe.
—Não me preocupo nunca —repôs Lucan, e o disse de verdade. Gideon tinha um coeficiente intelectual que rompia todas as estatísticas e ao que se acrescentava uma tenacidade enorme. Esse vampiro era tanto um caçador incansavel como um gênio e Lucan se alegrava de lhe ter ao seu lado.
_Se você não for capaz de tirá-los a luz, Gideon, ninguém pode fazê-lo.
O gurú informático da raça, com sua coroa de cabelo curto e encrespado, dirigiu-lhe um sorriso fanfarrão e confiado.
—É por isso que levo os verdes grandes.

—Sim, um pouco parecido —disse Lucan enquanto se separava da tela, onde os dados não deixavam de aparecer sem parar.
Nenhum dos guerreiros da raça que se comprometeram a proteger a estirpe frente ao açoite dos renegados o fazia por nenhuma compensação. Nunca a tinham tido, desde que se organizaram pela primeira vez nessa aliança durante o que para os humanos foi a idade medieval. Cada um dos guerreiros tinha seus próprios motivos para ter eleito esse perigoso modo de vida, e alguns deles eram, tinha-se que admitir, mais nobres que outros. Como Gideon, que tinha trabalhado nesse campo de forma independente até que seus dois irmãos, que eram pouco mais que uns meninos, foram assassinados pelos renegados aos subúrbios do Refúgio Escuro de Londres. Então Gideon procurou a Lucan. Disso fazia três séculos, umas décadas mais ou menos. Incluso então a habilidade do Gideon com a espada somente encontrava rival na afiada estocada de sua mente. Tinha matado a muitos renegados em seus tempos, mas mais tarde, a devoção e a promessa íntima que fez a sua companheira de raça, Savannah, tinham-lhe feito abandonar o combate e empunhar a arma da tecnologia ao serviço da raça.
Cada um dos seis guerreiros que lutavam ao lado de Lucan tinha seu talento pessoal. Também tinham seus demônios pessoais, mas nenhum deles era do tipo muito sensível que permitiria que um louco lhes colocasse uma lanterna pelo traseiro. Algumas costumes estavam melhor se deixavam na escuridão e, provavelmente, o único que estava mais convencido disso que o próprio Lucan era um guerreiro da raça conhecido como Dante.
Lucan saudou o jovem vampiro quando este entrou no laboratório técnico de uma das numerosas habitações do edifício. Dante, ataviado com sua habitual vestimenta negra, levava umas calças de ciclista e uma camiseta ajustada que mostrava tanto as tatuagens a tinta como suas intrincadas marcas de pertençer a raça. Seus avultados bíceps mostravam uns sinais afiligranados que a olhos de qualquer humano pareciam símbolos e desenhos geométricos realizados em profundas tonalidades terra. Mas os olhos de um vampiro distinguiam esses símbolos claramente: eram dermoglifos, umas marcas naturais herdadas dos antepasados da raça, cuja pele sem cabelo se havia recoberto de uma pigmentação cambiante e de camuflagem.

Normalmente, esses glifos eram motivo de orgulho para a raça e eram seus únicos sinais de linhagem e de fila social. Os membros da primera geração, como Lucan, luziam essas marca em maior número e seus tons eram mais saturados. Os dermoglifos de Lucan lhe cobriam o torso, por diante e por detrás, descendiam até suas coxas e se extendíam pela parte superior dos braços, além de subir pela nuca e lhe cobrir o crânio. Como tatuagens viventes, os glifos trocavam de tom segundo o estado emocional de um vampiro.
Os glifos de Dante, nesse momento, tinham um tom bronze, avermelhado, que indicava que se alimentou recentemente e que se sentia saciado. Sem dúvida, depois de que ele e Lucan se separaram ao cabo de ter dado caça aos renegados a noite anterior, Dante tinha ido em busca da cama e da amadurecida e suculenta veia da nádega de uma fêmea anfitriã.
—Que tal vai? —perguntou enquanto se deixava cair em cima de uma cadeira e colocava um pé embainhado em uma bota em cima do escritório, diante dele.
—Acreditei que já teria caçado e classificado a esses bastardos, Gid.
O acento de Dante tinha restos da musicalidade de seus ancestrais Italianos ate do século XVIII, mas essa noite, o educado tom de voz de Dante delatava um timbre afiado que indicava que o vampiro se sentia inquieto e ansioso por entrar em ação. Para sublinhar esse fato, tirou uma de suas típicas facas de folha curvada da cilha que levava no quadril e começou a jogar com o gentil aço.
Chamava a essas folhas curvadas Malebranche ou prolongações diabólicas, em referência Aos demônios que habitam um dos nove níveis do inferno, embora as vezes Dante adotava esse nome como pseudónimo para si mesmo quando se encontrava entre os humanos. Essa era quase toda a poesia que esse vampiro tinha em sua alma. Em todo o resto era impenitente, frio e escuramente ameaçador.
Lucan admirava isso dele, e tinha que admitir que observar a Dante durante o combate, com essas folhas inclementes, era algo belo, o bastante formoso para deixar em ridículo a qualquer artista.

—Bom trabalho o da noite passada —disse Lucan, consciente de que uma adulação emitida por ele era algo estranho, inclusive embora estivesse merecendo.
— Me salvou o pescoço aí.
Não falava da confrontação que tinham tido com os renegados, mas sim do que tinha acontecido depois disso. Lucan tinha passado demasiado tempo sem alimentar-se e a fome era quase tão perigosa para os seus como o vício que açoitava aos renegados. O olhar de Dante denotava que compreendia o que lhe estava dizendo, mas deixou acontecer o tema com sua habitual e fria elegância.
—Merda —repôs, com uma sonora e profunda gargalhada.
—.Depois de todas as vezes que você me há coberto as costas? Esquece-o, cara. Só te devolvia um favor.
Nesse momento, as portas de cristal da entrada do laboratório se abriram com um zumbido surdo e dois mais dos irmãos de Lucan entraram. Eram um bom par. Nikolai, alto e atlético, de cabelo loiro como a areia, uns rasgos angulares e impactantes e uns olhos penetrantes e azuis como o gelo, que só eram um tom mais frios que o céu de sua Siberia natal. O mais jovem do grupo e com diferença, Niko, havia-se feito homem durante o que os humanos chamavam a Guerra Fria. Do berço tinha sido imparavel e agora se converteu em um buscador de sensações de alta voltagem e se encontrava em primeira fila da raça no que tinha que ver com armas, aparelhos, e tudo o que ficava no meio.
Conlan, pelo contrário, falava com suavidade e era sério: era um perito em tática. Ao lado da excessiva fanfarronice do Niko, resultava elegante como um gato grande. Seu corpo era como um muro de músculos, e o cabelo loiro, de cor areia, brilhava por debaixo do triangulo de seda negra com que se envolvia a cabeça. Esse vampiro pertencia a uma das últimas gerações da raça, era um jovem segundo o critério de Lucan, e sua mãe era uma humana filha de um capitão escocês. O guerreiro se movia com um porte quase de realeza.
Inclusive sua amada companheira de raça, Danika, dirigia-se a esse habitante das terras altas afetuosamente lhe chamando, com freqüência, «meu senhor» e essa fêmea não era precisamente servil.

—Rio está de caminho —anunciou Nikolai com um amplo sorriso que lhe formava duas covinhas nas bochechas. Olhou a Lucan e assentiu com a cabeça.
— Eva me há dito que te diga que poderemos dispor de seu homem somente quando ela tenha terminado com ele.
—Se é que fica algo —disse Dê, arrastando as palavras enquanto levantava uma mão para saudar outros com um suave roce das palmas prévio a um choque de nódulos.
Lucan saudou Niko e a Conlan da mesma maneira, mas se sentiu algo molesto pelo atraso de Rio. Não invejava a nenhum dos vampiros pela companheira de raça que tinham eleito, mas, pessoalmente, Lucan não encontrava nenhum sentido atar-se as demandas e responsabilidades de um vínculo de sangue com uma fêmea. Esperava-se que, em geral, a população da raça aceitasse a uma mulher para aparear-se e dar nascimento a seguinte geração, mas para a classe dos guerreros —para esses escassos machos que, de forma voluntária, haviam abandonado o santuário dos Refúgios Escuros para levar uma vida de luta processo de vincular-se por sangue era, para Lucan, uma frescura no melhor dos casos.
E no pior, era um convite ao desastre quando um guerreiro sentia a tentação de antepor os sentimentos para sua companheira por cima de seu dever para a raça.
—Onde está Tegan? —perguntou, ao dirigir seus pensamentos de forma natural para o último deles que faltava no edifício.
—Ainda não retornou —respondeu Conlan.
—Chamou de onde se encontra?
Conlan e Niko intercambiaram um olhar, e Conlan negou rapidamente com a cabeça:
—Nenhuma palavra.

—Esta é a vez que esteve mais tempo desaparecido em ação — assinalou Dê sem dirigir-se a ninguém em especial enquanto passava o dedo polegar pelo fio da folha curvada de sua faca.
—Quanto faz? Três, quatro dias?
Quatro dias, quase cinco.
Quem deles levava a conta?
Resposta: todos eles a levavam, mas ninguém pronunciou em voz alta a preocupação que se estendeu ultimamente em suas filas. Tal como estava o tema, Lucan tinha que esforçar-se para controlar a raiva que despertava nele cada vez que pensava no membro mais introvertido dos membros de seu quadro.
Tegan sempre preferia caçar em solitário, mas seu caráter afastado começava a resultar uma carga para outros. Era como um curinga, adquiria um valor diferente em função de cada ação e, ultimamente, cada vez mais. E Lucan, tinha que ser franco, encontrava difícil confiar nesse menino, embora a desconfiança não fosse nada novo no que concernia a Tegan. Havia uma má relação entre ambos, sem dúvida, mas essa era uma história antiga.
Tinha que ser assim. A guerra em que ambos se comprometeram desde fazia tanto tempo era mais importante que qualquer aversão que pudesse sentir um para o outro.
Apesar disso, o vampiro levava a cabo uma vigilância estreita. Lucan conhecia as debilidades de Tegan melhor que nenhum de outros e não duvidaria em responder se esse macho punha embora fosse o dedo gordo do pé no outro extremo da linha.
Por fim, as portas do laboratório se abriram e Rio entrou na hábitação enquanto se colocava as abas de sua elegante camisa branca de desenho dentro da calça negra feita a medida. Faltavam alguns botões na camisa de seda, mas Rio levava a má compostura depois do sexo com a mesma elegância desenvolvida com que se movia em todas as demais circunstâncias. Sob a densa franja de cabelo escuro que lhe pendurava por cima das sobrancelhas, os olhos de cor topázio do espanhol parecia que dançavam. Quando sorria, brilhavam-lhe as pontas das presas que, nesses momentos, ainda não se haviam retratados depois de que a paixão por sua dama os tivesse desdobrado.

—Espero que me tenham guardado alguns renegados, meus amigos. — esfregou-se as mãos:—Me sinto bem e tenho vontades de festa.
— Sente-se disse Lucan— e tenta não manchar de sangue os computadores do Gideon.
Gideon se levou os largos dedos da mão até a marca vermelha que Eva tinha feito na garganta, evidentemente ao lhe morder com seus dentes romos de humana para lhe chupar a veia. Apesar de que era uma companheira de raça, continuava sendo geneticamente Homo sapiens. Embora fazia muitos anos que ela e outras como ela mantinham vínculos de sangue com seus companheiros, nenhuma delas teria presas nem adquiriría as demais características dos machos vampiro. Era uma prática ampliamente aceita que um vampiro alimentasse a sua companheira através de uma ferida que ele mesmo se infligia no pulso ou no antebraço, mas as paixões eram selvagens nas filas dos guerreiros da raça. E também o eram com as mulheres que escolhiam. O sexo e o sangue era uma combinação muito potente: Às vezes, muito potente.
Com um sorriso impenitente, Rio se moveu na cadeira giratória com gesto alegre e desenvolvido e se recostou no respaldo para colocar os pés nus em cima do console . Ele e os outros guerreiros começaram a recordar os fatos da noite anterior e riram sem deixar de mostrar-se superiores uns com os outros enquanto discutiam as técnicas de sua profissão.
Caçar a seus inimigos era motivo de prazer para alguns membros da raça, mas a motivação íntima de Lucan era o ódio, puro e simples. Não tentava ocultá-lo. Desprezava tudo aquilo que os renegados representavam e tinha jurado, fazia muito tempo, que os aniquilaria ou que morreria no intento. Havia dias nos que não lhe importava qual das duas coisas pudesse acontecer.
—Aí está —disse Gideon por fim ao ver que os registros que apareciam em tela se detinham.
— Parece que encontramos um filão.

—O que obtiveste?
Lucan e outros dirigiram a atenção para a tela plaina extra grande que se encontrava em cima da mesa dos microprocessadores do laboratório. Os rostos dos quatro renegados a quem Lucan matou apareceram ao lado dos das fotos do celular de Gabrielle: eram os mesmos indivíduos.
—Os registros da Base de dados de Identificação Internacional os têm qualificados como desaparecidos. Dois desapareceram do Refúgio Escuro de Connecticut o mês passado, e outro do Fall River, e este último é daqui. Todos são da geração atual, e o mais jovem nem sequer tem trinta anos.
—Merda —exclamou Rio antes de assobiar com suavidade.
— Meninos estúpidos.
Lucan não disse nada, não sentia nada, pela perda dessas vidas jovens ao converter-se em renegados. Não eram os primeiros, e seguro que não seriam os últimos. Viver nos Refúgios Escuros podia resultar bastante aborrecido para um macho imaturo que tivesse alguma coisa que demostrar. O atrativo do sangue e da conquista se encontrava profunda-mente enraizado inclusive entre as últimas gerações, que eram as que se encontravam mais distantes de seus selvagens antepassados. Se um vampiro ia em busca de problemas, especialmente em uma cidade do tamanho da de Boston, normalmente os encontrava em abundância.
Gideon introduziu uma rápida série de ordens através do teclado do computador e abriu mais fotos procedentes da base de dados.
—Aqui estão os últimos dois registros. Este primeiro indivíduo é um renegado conhecido, um agressor reincidente em Boston, apesar de que parece que se manteve um tanto à margem durante os últimos três meses. Quer dizer, tem-no feito até que Lucan o reduziu a cinzas no beco este fim de semana.
—E o que sabemos deste? —perguntou Lucan, olhando a última imagem que ficava, a do único renegado que tinha conseguido escapar depois do ataque fora da discoteca. Sua foto no registro era uma imagem tomada de um fotograma de um vídeo que, presumivelmente, fez-se durante uma espécie de sessão de interrogatório conforme se deduzia pelas ataduras e os eletrodos que levava em cima.

—Quanto tempo tem esta imagem?
—Uns seis meses —respondeu Gideon, abrindo a data da imagem— Sai de uma das operações na Costa Oeste.
—Los Angeles?
—Seattle. Mas segundo o relatório, em Los Angeles tem uma ordem de arresto também.
—Ordens de arresto —disse Dê em tom zombador.
— Uma fodida perda de tempo.
Lucan não podia não estar de acordo com ele. Para quase toda a nação de vampiros nos Estados Unidos e no estrangeiro, o cumprimento da lei e a detenção dos indivíduos que se converteram em renegados se governavam por umas regras e procedimentos específicos. Redigiam-se ordens de arresto, realizavam-se as detenções, realizavam-se os enterrogatorios e se transmitiam as condenações. Tudo era muito civilizado e estranhamente resultava efetivo.
Enquanto que a raça e a população dos Refúgios Escuros estavam organizados, motivados e envoltos por capas de burocracia, seus inimigos eram imprevisíveis e impetuosos. E, a não ser que a intuição de Lucan fora errônea, os renegados, depois de séculos de anarquia e de caos geral, estavam começando a organizar-se.
Se é que não levavam já meses nesse processo.
Lucan observou a imagem que tinha aparecido em tela. Na imagen de vídeo, o renegado a quem tinham capturado se encontrava preso em uma prancha de metal colocada em vertical, nu e com a cabeça barbeada por completo, provavelmente para que as descargas elétricas que lhe enviavam lhe chegassem com maior facilidade enquanto lhe interrogavam. Lucan não sentia nenhuma compaixão pela tortura que o renegado tinha suportado. Freqüentemente era necessário realizar interrogatórios desse tipo, e igual que acontece com um ser humano enganchado a heroína, um vampiro que sofria de sede de sangue podia suportar dez vezes mais e sem fraquejar a dor que outro de seus irmãos de raça podia agüentar.

Esse renegado era grande, com umas sobrancelhas densas e uns rasgos fortes e primitivos. Nessa imagem lhe via rir com ironia. Os largos dentes brilhavam e tinha uma expressão selvagem nos olhos da cor do ámbar e de pupilas alargadas e verticais. Encontrava-se envolto por cabos da cabeça enorme até o musculoso peito e os braços firmes como martelos.
—Dando por entendido que ser feio não é um crime, por que motivo lhe pilharam em Seattle?
—Vamos ver o que temos. —Gideon voltou a colocar-se ante os computadores e abriu um registro em outra das telas.
—Lhe hão arrestado por tráfico: armas, explosivos, substâncias químicas. Vá, este tipo é um encanto. Colocou-se em uma merda verdadeiramente feia.
—Alguma idéia sobre de quem eram as armas que levava?
—Aqui não diz nada. Não conseguiram grande coisa com ele, é evidente. O registro informa que escapou justo depois de que tomassem estas imagens. Matou a dois dos guardas durante a fuga.
E agora havia tornado a escapar, pensou Lucan, desalentado e desejando ferventemente ter decapitado ao filho de puta quando o tinha diante. Não suportava o fracasso com facilidade, e muito menos quando se tratava do seu próprio.
Lucan olhou a Niko.
—Cruzaste-te alguma vez com este tipo?
—Não —repôs o russo—, mas consultarei com meus contatos, a ver o que posso averiguar.

—Ponha nisso.
Nikolai assentiu com a cabeça com gesto rápido e se dirigiu para a saida do laboratório técnico enquanto já marcava o número de telefone de alguém no celular.
—Estas fotos são uma merda —disse Conlan, olhando por cima do ombro do Gideon em direção as fotos que Gabrielle tinha tomado durante o assassinato, fora da discoteca. O guerreiro pronunciou uma maldição.
— Já é bastante mau que os humanos tenham presenciado alguns dos assassinatos dos renegados durante os últimos anos, mas agora se dedicam a deter-se e a tomar fotos?
Dante deixou cair os pés ao chão com um ruído surdo, ficou em pé e começou a caminhar pela habitação, como se começasse a sentir-se cada vez mais inquieto pela falta de atividade nessa reunião.
—Todo mundo acredita que são uns fodidos paparazzi.
—O tipo que fez essas fotos deveu cagar-se de medo ao encontrar-se com noventa quilogramas de guerreiro salivando por ele —acrescentou Rio. E, olhou a Lucan—. Lhe apagou primeiro a memória, ou simplesmente o eliminou ali mesmo?
—O humano que presenciou o ataque essa noite era uma mulher. —Lucan olhou fixamente os rostos de seus irmãos sem mostrar o que sentia em relação a informação que estava a ponto de lhes dar.
— Resulta que é uma companheira de raça.
—Mãe de Deus —exclamou Rio, passando a mão pelo cabelo—. Uma companheira de raça. Está seguro?
—Leva o sinal. Vi-a com meus próprios olhos.
—O que fez com ela? Transou, não...?

—Não —repôs com secura Lucan, inquieto pelo que o espanhol havia insinuado com o tom de voz.
—Não fiz nenhum mal a essa mulher. Existe uma linha que nunca vou cruzar.
Tampouco tinha reclamado a Gabrielle para si, embora tinha estado muito perto de fazê-lo essa noite no apartamento dela. Lucan apertou a mandíbula: uma onda de escuro desejo lhe invadiu ao pensar em quão tentadora Gabrielle estava, enroscada e dormida na cama. No malditamente doce que era seu sabor em sua língua...
—O que vais fazer com ela, Lucan? —Esta vez, a expressão de preocupação proveio de onde se encontrava Gideon.
— Não podemos deixar que os renegados a encontrem. Seguro que ela chamou a atenção deles quando realizou essas fotos.
—E se os renegados se dão conta de que é uma companheira de raça... —acrescentou Dê, interrompendo-se A metade da frase. Outros assentiram com a cabeça.
—Ela estará mais segura aqui —disse Gideon—, sob o amparo da raça. Melhor ainda: deveria ser oficialmente admitida em um dos Refúgios Escuros.
—Conheço o protocolo —repôs Lucan, pronunciando cada palavra com lentidão. Sentia muita raiva ao pensar em que Gabrielle pudesse acabar nas mãos dos renegados, ou nas de outro membro da raça se fazia o que era devido e a mandava a um dos Refúgios Escuros da nação. Nenhuma das duas opções lhe parecia aceitável nesse momento a causa do sentimento possessivo que lhe bulia nas veias, irreprimivel embora não desejado.
Olhou a seus irmãos guerreiros com frieza.
—Essa mulher é responsabilidade minha a partir de agora mesmo. Decidirei qual é a melhor atuação neste tema.
Nenhum dos guerreiros lhe contradisse. Lucan não esperava que o fizessem. Em qualidade de membro de primeira geração, ele era mais antigo; em qualidade de guerreiro fundador dos de sua classe na raça, era quem mais coisas tinha demonstrado, com sangue e também com o aço. Sua palavra era lei, e todos os que se encontravam nessa habitação o respeitavam.

Dante ficou em pé, brincou com a Malebranche entre seus compridos e hábeis dedos e a embainhou com um ágil gesto.
—Faltam quatro horas para que caia o sol. Vou. —Olhou de soslaio a Rio e a Conlan.
— Alguém tem vontades de treinar antes de que as coisas fiquem interessantes?
Os dois machos se levantaram rapidamente, animados pela idéia, e detrás dirigir uma respeitosa saudação a Lucan, os três grandes guerreiros sairam do laboratório técnico e percorreram o corredor em direção a zona de treinamento do edifício.
—Tem algo mais sobre esse renegado de Seattle? —perguntou- Lucan a Gideon enquanto as portas de cristal se fechavam, quando ambos ficaram sozinhos no laboratório.
— Agora mesmo estou realizando uma comparação cruzada de todas as bases de registros. Só demorará um minuto em dar algum resultado. — Teclou umas ordens no computador.
— Bingo. Tenho uma coincidência procedente de uma informação GPS da Costa Oeste. Parece informação reunida anteriormente ao arresto. Joga uma olhada.
A tela do monitor se encheu com uma série de imagens noturnas por satélite de uma embarcação de pesca comercial aos subúrbios de Puget Sound. A imagem se centrava em um Sedan comprido e negro que se encontrava detrás de um maltratado edifício situado ao final do dique. Apoiado contra a porta posterior se encontrava o renegado que tinha conseguido escapar de Lucan fazia uns dias. Gideon passou rapidamente uma série de imagens que lhe mostravam conversando longamente, ou isso parecia, com alguém que se encontrava oculto detrás dos cristais negros dos guichês. À medida que as imagens avançavam, viram que a porta traseira do carro se abria e o renegado entrava no carro.
—Detenha —disse Lucan, fixando o olhar na mão do passageiro oculto.
— Pode deter todo este fotograma? Aumenta a zona da porta aberta do carro.

—Vou tentar .
A imagem aumentou de tamanho, mas Lucan quase não necessitava um aumento da imagem para confirmar o que via. Quase não se distinguia, mas aí estava. Na parte de pele exposta entre a grande mão do passageiro e o punho francês da camisa de manga larga se viam uns impressionantes dermoglifos que lhe delatavam como um membro de primeira geração.
Gideon também os tinha visto nesse momento.
—Maldição, olhe isso —disse, cravando a vista no monitor—. Nosso imbécil de Seattle desfrutava de uma companhia interessante.
—Possivelmente ainda o está fazendo —repôs Lucan.
Não havia nada pior que um renegado que tivesse sangue de primeira geração nas veias. Os membros de primeira geração caíam vitima da sede de sangue com maior rapidez que as últimas geração da raça, e eram uns temíveis inimigos. Se algum deles tinha intenção de liderar aos renegados e lhes conduzir a um levantamento, isso significaria o princípio de uma guerra infernal. Lucan já havia lutado em uma batalha assim uma vez, fazia muito tempo. Não desejava voltar a fazê-lo.
—Imprime tudo o que conseguiste, incluídos as ampliações de eroglifos.
—Já estão.
—Qualquer outra coisa que encontre sobre esses dois indivíduos, passa-me diretamente. Encarregarei-me disto pessoalmente.
Gideon assentiu com a cabeça, mas o olhar que lhe dirigiu por cima da arreios dos óculos expressava dúvida.

—Não pode pretender te encarregar de tudo isto você sozinho, já sabe.
Lucan lhe cravou um olhar escuro.
—Quem o diz?
Sem dúvida, o vampiro tinha em sua cabeça de gênio todo um discurso aberto da probabilidade e da lei da estatística, mas Lucan não se sentia de humor para lhe escutar. A noite se aproximava, e com ela se aproximava outra oportunidade de caçar a seus inimigos. Precisava empregar as horas que ficavam para esclarecer a cabeça, preparar as armas e decidir onde era melhor atacar. O depredador que havia nele se sentia impaciente e faminto, mas não por causa da batalha contra os Renegados.
Em lugar disso, Lucan se deu conta de que seus pensamentos se desviavam para um tranqüilo apartamento do Beacon Hill, para uma visita que nunca deveria ter realizado. Ao igual que o aroma de jasmim, o recordava da suavidade e a calidez da pele de Gabrielle, enredava-se com seus sentidos. Ficou tenso e seu sexo ficou em ereção somente pensando nela.
Foder.
Essa era a razão pela qual não a tinha posto sob o amparo da raça, aqui, no edifício. A certa distancia, ela era uma distração. Mas se encontrava em uma habitação próxima, seria um maldito desastre.
—Está bem? —perguntou-lhe Gideon, dando-a volta com a cadeira e ficando de cara a Lucan.
— É uma fúria muito grande a que tem em topo, amigo.
Lucan se arrancou da cabeça esses escuros pensamentos e se deu conta de que as presas lhe tinham alargado e que a visão lhe havia agudizado com o fechamento das pupilas. Mas não era a fúria o que lhe transformava. Era a luxúria, e tinha que saciá-la, antes ou depois. Com essa idéia lhe pulsando nas têmporas, Lucan tomou o telefone celular de Gabrielle, que se encontrava em cima de uma das mesas, e saiu do laboratório.

 

 

CONTINUA

Capítulo quatro

Gabrielle podia contar com uma só mão os sonhos erótico que tinha tido durante toda sua vida, mas nunca tinha experiente nada tão quente —por não dizer real— como a fantasia de orgia sexual que tinha desfrutado da noite anterior, cortesia de um Lucan Thorne virtual. Seu fôlego tinha sido a brisa noturna que penetrava pela janela aberta de seu dormitório do piso de acima. Seu cabelo era a escuridão de obsidiana que enchia as clarabóias, sobre sua cama. Seus olhos chapeados, o brilho pálido da lua. Suas mãos eram as ligaduras de seda de sua colcha, que enredavam seus pulsos e tornozelos, abriam seu corpo debaixo do dele e a sujeitavam com força.
Sua boca era puro fogo que lhe queimava cada centímetro da pele e a consumia como uma chama invisível. «Jasmim», tinha-a chamado ele, e o suave som dessa palavra vibrava contra a umidade de sua pele, o quente fôlego dele formava redemoinhos os suaves cachos de pêlo de sua entre perna.
Ela se tinha retorcido e tinha gemido dominada pela habilidade da língua dele, que a tinha submetido a uma tortura que ela desejava que fosse infinito. Mas tinha terminado, e muito logo. Gabrielle se tinha despertado em sua cama, só na escuridão, pronunciando quase sem fôlego o nome de Lucan, com o corpo esgotado e inerte, dolorido pelo desejo.
Ainda lhe doía o desejo e o que mais lhe preocupava era o fato de que o misterioso detetive Thorne lhe tivesse dado plantão.
Não era que seu oferecimento de passar por seu apartamento essa noite fosse nada que se parecesse com um encontro, mas ela tinha estado esperando voltar a lhe ver. Tinha interesse em saber mais a respeito dele dado que se havia mostrado tão inclinado a decifrá-la com um simples olhar. Além de conseguir algumas respostas mais sobre o que tinha presenciado essa noite fora da discoteca, Gabrielle tinha desejado conversar de algo mais com Lucan, possivelmente tomar um pouco de vinho e algo para jantar. O fato de que se depilou as pernas duas vezes e de que se pôs uma roupa interior negra e atrativa sob a camisa de seda de manga larga e dos escuros jeans era puramente acidental.

Gabrielle lhe tinha esperado até bem passadas as nove e então abandonou a idéia e chamou Jamie para ver se ele queria jantar com ela no centro da cidade.
Agora, sentado diante dela, ao outro lado da mesa, nessa sala cheia de janelas do bistro Ciao Bela, Jamie deixou na mesa a taça de pinot noire e olhou o prato de frutos do mar que ela quase não havia tocado.
—Estiveste enjoando a mesma parte da comida pelo prato durante os últimos dez minutos, carinho. Você não gosta?
—Sim, é genial. A comida sempre é incrível aqui.
—Então, é a companhia o que te desagrada?
Ela levantou o olhar para ele e negou com a cabeça.
—Absolutamente. Você é meu melhor amigo, já sabe.
—Certo —assentiu ele.
— Mas não me posso comparar com seu sonho erótico.
Gabrielle se ruborizou ao dar-se conta de que um dos clientes que se encontrava na mesa do lado olhava para eles.
—Às vezes é horrível, sabe? —disse a Jamie em um sussurro.
— Não deveria haver lhe contado isso.
—OH, carinho. Não se sinta incômoda. Se me tivessem dado uma moeda cada vez que me despertei excitado, chiando o nome de algum cara sexy...
—Eu não chiei seu nome. —Não, tinha-o pronunciado com o folego entrecortado e em um gemido, tão enquanto estava na cama como enquanto estava na ducha ao cabo de pouco tempo, ainda incapaz de tirar do corpo a sensação de Lucan Thorne.
— Era como se ele estivesse ali, Jamie. Justo ali, em minha cama, tão real que eu podia lhe tocar.
Jamie suspirou.
—Algumas garotas têm toda a sorte do mundo. A próxima vez que te encontre com seu amante em sonhos, seja generosa e me manda isso quando tenha terminado.
Gabrielle sorriu, sabendo que seu amigo não andava escasso no apartado romântico. Durante os últimos quatro anos tinha tido uma feliz relação monógama com o David, um vendedor de antiguidades que se encontrava nesses momentos fora da cidade por motivos de trabalho.
—Quer saber o que é o mais estranho disso tudo , Jamie? Aos levantar, esta manhã, a porta de entrada não estava fechada com chave.
— E?
—E você me conhece, nunca a deixo aberta.
As cuidadas e depiladas sobrancelhas do Jamie se juntaram, franzindo o cenho.
—O que quer dizer, que cre que esse cara forçou a porta de sua casa enquanto dormia?
—Parece uma loucura, sei. Um detetive da polícia que vem a minha casa a meia-noite para me seduzir. Devo estar perdendo a cabeça.
Disse-o com tom despreocupado, mas não era a primeira vez que se questionava em silêncio sua própria prudência. Não era a primeira vez nem muito menos. Com gesto ausente, brincou um momento com a manga da blusa enquanto Jamie a observava. Ele se sentia preocupado nesse momento, o qual somente aumentava a inquietação que Gabrielle sentia sobre o tema de sua possível instabilidade mental.

—Olhe, carinho. Passaste muita tensão do fim de semana. Isso pode provocar coisas estranhas na cabeça. Estiveste preocupada e confundida. Possivelmente se esqueceu de fechar a porta.
—E o sonho?
—Somente isso... Um sonho. Somente se trata de sua mente curvada que tenta tranqüilizar-se, relaxar-se.
Gabrielle baixou a cabeça em um gesto automático de afirmação.
—Exato. Estou segura de que só é isso.
Se pudesse aceitar que a explicação de tudo era tão simples como seu amigo fazia que parecesse... Mas uma sensação na boca do estômago rechaçava a idéia de que ela tivesse esquecido de fechar a porta. Ela nunca faria uma coisa assim, simplesmente, por estressada e confundida que estivesse.
—Né. —Jamie alargou o braço por cima da mesa para tomar a mão.
— Vais estar bem, Gab. Já sabe que pode me chamar a qualquer hora, verdade? Estarei contigo, sempre o estarei.
—Obrigado.
Lhe soltou a mão, tomou o garfo e fez um gesto em direção a seu fruto do mar.
—Bom, vais comer um pouco mais ou posso começar a limpar seu prato agora?
Gabrielle trocou seu prato meio cheio pelo dele, completamente vaziu.
—Tudo para ti.

Enquanto Jamie se concentrava na comida fria, Gabrielle apoiou o queixo em uma mão e tomou um comprido gole de sua taça de vinho. Enquanto bebia, brincou com os dedos em cima das ligeiras marcas que descobriu no pescoço essa mesma manhã depois de tomar banho. A porta aberta não era o mais estranho que se encontrou essa manhã: as duas marca idênticas que se viu debaixo da orelha se levaram o prêmio, sem dúvida nenhuma.
Essas pequenas perfurações não tinham sido o bastante profundas para lhe transpassar a pele, mas aí estavam. Havia duas, a uma distância equitativa, no ponto onde o pulso lhe pulsava com mais força quando o apalpava com os dedos. Ao princípio se disse que possivelmente havia se arranado a si mesmo enquanto dormia, possivelmente a causa do sonho estranho que tinha tido.
Mas, entretanto, essas marcas não pareciam arranhões. Pareciam... outra coisa.
Como se alguém, ou algo, tivesse estado a ponto de lhe morder a carótida.
Uma loucura.
Isso era, e tinha que deixar de pensar dessa maneira antes de fazer-se mais mal a si mesmo. Viu-se obrigada a centrar-se e a deixar de recrear-se em fantasias delirantes sobre visitantes a meia-noite e monstros de filme de terror que não era possível que existissem na vida real. Se não tomava cuidado, acabaria como sua mãe biológica.
—OH, Meu deus, me dê uma bofetada agora mesmo porque sou um completo e profundo imbecil —exclamou Jamie de repente, interrompendo seus pensamentos.
— Continuo esquecendo-me de lhe dizer isso ontem recebi uma chamada na galeria sobre suas fotografias. Um peixe gordo do centro da cidade está interessado em uma amostra privada.
—Sério? De quem se trata?
Ele se encolheu de ombros.

—Não sei, carinho. A verdade é que não falei com o possível comprador, mas a partir da atitude estirada do ajudante do tipo, diria que seja quem é seu admirador, ele ou ela— nada na abundância do dinheiro. Tenho uma entrevista em um dos edifícios do distrito financeiro amanhã de noite. Falo-te de um escritório em uma cobertura, querida.
—OH, Meu deus —exclamou ela com incredulidade.
—Acredita. Super bom, amiga. Muito em breve será muito para um pequeno vendedor de arte como eu —brincou ele, compartilhando a excitação com ela.
Era difícil não sentir-se intrigada, especialmente depois de tudo o que lhe tinha passado durante os últimos dias. Gabrielle tinha conseguido uns fiéis e respeitáveis admiradores e ganhou uns quantos bons elogios por seu novo trabalho, mas uma amostra privada para um comprador desconhecido era o máximo.
—Que peças te pediu que levasse?
Jamie levantou a taça de vinho e brindou com a dela com um gesto burlesco de saudação.
—Todas, senhorita Importante. Cada uma das peças da coleção.
No telhado do um velho edifício de tijolos do ocupado distrito dos teatros da cidade, a lua se refletia na risada letal de um vampiro embelezado de negro. Agachado em sua posição perto da beirada, o guerreiro da raça girou a escura cabeça e levantou uma mão para fazer um sinal.
«Quatro renegados. Uma presa humana se dirige diretamente para eles.»
Lucan lhe dirigiu um gesto afirmativo com a cabeça a Dante e se afastou da saída de emergência do quinto piso, que tinha sido sua posição de vigilância durante a última meia hora. Baixou até a rua de abaixo com um ágil movimento, aterrissando em silêncio, como um gato. Levava uma dupla folha de combate nas costas que lhe sobressaía pelos ombros como os ossos das asas de um demônio. Lucan desencapou a arma de titânio quase sem emitir nenhum som e penetrou nas sombras da estreita rua lateral para esperar os acontecimentos dessa noite.

Eram ao redor das onze, várias mais tarde que a hora em que deveria ter passado pelo apartamento de Gabrielle Maxwell para lhe devolver o telefone celular, tal e como lhe disse que o faria. O aparelho ainda estava em posse de Gideon, no laboratório técnico, que estava processando as imagens para as contrastar com a Base de dados de Identificação Internacional da Raça.
Quanto a Lucan, não tinha nenhuma intenção de devolver o telefone celular a Gabrielle, nem em pessoa nem de nenhuma outra maneira. As imagens do ataque dos renegados não tinham que estar em mãos de nenhum ser humano, e depois da decepção que se levou no dormitório dela, quanto mais longe estivesse dessa mulher, melhor.
«Uma maldita companheira de raça.»
Deveria havê-lo sabido. Agora que o pensava, ela tinha certas características que deveriam lhe haver dado a pista disso desde o começo. Como sua habilidade de ver através do véu do controle mental vampírico que enchia essa noite a sala de baile da discoteca. Ela tinha visto os renegados —ávidos de sangue no beco, e nas imagens indecifráveis do telefone celular— quando outros seres humanos não os havia podido ver. Logo, em seu apartamento, tinha demonstrado que tinha resistência ante a sugestão mental de Lucan para dirigir seus pensamentos, e ele suspeitava que se tinha sucumbido, tinha-o feito mais por causa de um desejo consciente do prazer que ele supunha para ela que por nenhuma outra coisa.
Não era nenhum secredo que as fêmeas humanas com o código genético único de companheiras de raça possuíam uma inteligência aguda e uma saúde perfeita. Muitas delas tinham uns assombrosos talento paranormal que aumentariam quando a companheira de raça se unisse por sangue com um macho vampiro.
Quanto a Gabrielle Maxwell, parecia possuir o dom de ter uma vista especial que lhe permitia ver o que o resto de seres humanos não podia ver, mas até onde chegava essa capacidade de visão era algo que ele não podia adivinhar. Lucan queria sabê-lo. Seu instinto de guerreiro exigia chegar ao fundo do assunto sem nenhuma demora.

Mas envolver-se com essa mulher, da forma que fosse, era o último que ele necessitava.
Então, por que não podia tirar-se de cima seu doce aroma, a suavidade de sua pele... sua provocadora sensualidade? Odiava o fato de que essa mulher tivesse despertado nele tal fragilidade, e seu estado de ânimo atual dificilmente melhorava pelo fato de que todo seu corpo doía pela necessidade de alimentar-se.
O único ponto claro essa noite era o constante ritmo dos saltos das botas dos renegados no pavimento, em algum lugar perto da entrada da rua lateral, que se dirigiam para ele.
O ser humano girou a esquina: encontrava-se a vários passos a frente deles, e era um homem. Jovem, saudável, vestia uma calça negra e alvo e uma túnica branca manchada que cheirava a cozinha de restaurante e a um suor repentino de ansiedade. O cozinheiro olhou por cima do ombro e viu que os quatro vampiros foram ganhando terreno. Um palavrão pronunciado em tom nervoso e atravessou a escuridão.
O humano voltou a girar a cabeça e caminhou mais depressa, com os punhos apertados e ambos grudado no corpo e os olhos muito abertos e cravados na estreita greta do asfalto que havia sob seus pés.
—Não faz falta que corra, homenzinho —lhe provocou um dos Renegados em um tom rouco como o som da areia fina contra o chão.
Outro deles emitiu um chiado agudo e se colocou a cabeça de seus três companheiros.
—Sim, não te escape agora. Tampouco é que vás chegar muito longe.

As risadas dos renegados ressonaram nos edifícios que flanqueavam a estreita rua.
—Merda —sussurrou o ser humano quase sem respiração. Não se voltou somente continuou para frente a passo rápido, a ponto quase de lançar-se a uma frenética, mas inútil, carreira.
À medida que o aterrorizado ser humano lhe aproximava, Lucan saiu da escuridão dando um passo e ficou em pé com as pernas abertas com os braços abertos a ambos os lados de seu corpo, bloqueou a rua com seu corpo ameaçador e suas espadas as gema. Dirigiu um frio sorriso aos renegados com as presas ameaçadoras, antecipando a luta que se morava.
—Boa tarde, senhoritas.
—OH, Jesus! —exclamou o ser humano. Deteve-se de forma brusca e olhou a Lucan o rosto com expressão de horror. Os joelhos cederam e caiu no chão,
— Merda!
—Te levante. —Lucan lhe dirigiu um breve olhar enquanto o jovem se esforçava por ficar em pé.
— Vai daqui.
Esfregou uma das afiadas folhas contra a outra diante dele e encheu a rua em sombras com o áspero som metálico do aço endurecido e letal. Detrás dos quatro renegados, Dante caiu ao asfalto e se agachou antes de levantar seu metro noventa e oito de altura. Não levava nenhuma espada, mas ao redor da cintura levava um cinturão de pele no qual levava sujeitas uma série de armas de mão letais, entre elas um par de folhas curvadas e afiadas como folhas de barbear que se convertiam em uma extensão infernal de suas mãos, incrivelmente rápidas. Malebranche ou prolongações diabólicas as chamava, e efetivamente eram umas garras do diabo. Dante as teve colocadas nas mãos em um momento: era um vampiro que sempre estava a ponto para entrar em um combate corpo a corpo.
—OH, Meu deus —gritou o ser humano com voz trêmula ao dar-se conta do perigo que lhe rodeava. Olhou a Lucan com a boca aberta e, com mãos trementes, rebuscou entre suas roupas tirou uma carteira do bolso traseiro da calça e a atirou ao chão.
— Toma-a, cara! Pode ficar mas não me mate, suplico-lhe isso!

Lucan manteve os olhos fixos nos quatro renegados, que nesses momentos estavam tomando posições e preparavam as armas.
—Te largue daqui. Agora.
—É nosso —vaiou um dos renegados. Uns olhos amarelos se cravaram fixamente em Lucan com puro ódio, as pupilas se reduziram a duas famintas ranhuras verticais. De suas largas presas lhe gotejava a saliva, outra prova do grande vício do vampiro pelo sangue.
Ao igual que os seres humanos podiam acabar dependendo de um poderoso narcótico, a sede de sangue também era destrutivo para a raça. A fronteira entre a necessidade de satisfazer a fome e a constante overdose de sangue se cruzava com facilidade. Alguns vampiros entravam nesse abismo de forma voluntária, enquanto que outros sucumbiam a essa enfermidade por inexperiência ou por falta de disciplina pessoal. Se chegava muito longe, e durante muito tempo, um vampiro se convertia na categoria de renegado, igual a esses ferozes monstros que grunhiam frente a Lucan nesses momentos.
Ansioso por convertê-los em cinzas, Lucan juntou com um golpe seco as duas folhas e cheirou a faísca de fogo que se criou quando os dois aços se encontraram.
O ser humano ainda se encontrava ali, atordoado pelo medo, dirigindo primeiro a cabeça para os renegados, que avançavam para ele, e agora para Lucan, que lhes esperava com atitude inquebrável. Esse momento de dúvida ia custar lhe a vida, mas Lucan apartou esse pensamento com frieza. O ser humano não era assunto dele. Quão único importava era eliminar a esses chupadores aditivos de sangue e ao resto dos doentes de sua raça.
Um dos renegados se passou uma mão suja por cima dos lábios babantes.
—Te aparte, idiota. Deixa que nos alimentemos.

—Esta noite não —grunhiu Lucan.
— Não em minha cidade.


—Sua cidade? —O resto deles se burlou e o renegado que ia em cabeça cuspiu no chão, Aos pés de Lucan.
— Esta cidade nos pertenece . Dentro de muito pouco, possuiremo-la por completo.
—Exato —acrescentou outro dos quatro.
— Assim parece que é você quem entrou em um território alheio.
Finalmente, o ser humano recuperou certa inteligência e começou a retirar-se, mas não chegou muito longe. Com uma velocidade incrível, um dos renegados alargou uma mão e agarrou ao homem pela garganta. Ele levantou do chão e lhe segurou no ar: as botas altas do homem ficaram a dois centímetros do chão. O ser humano grunhiu e suplicou, lutando com ferocidade enquanto o renegado lhe apertava o pescoço com mais força, lhe estrangulando lentamente com a mão nua. Lucan o observou, imperturbável, inclusive quando o vampiro deixou cair sua retorcida presa e lhe fez um buraco no pescoço com os dentes.
Pela extremidade do olho, Lucan viu que Dante se aproximava sigilosamente aos renegados por detrás. Com as presas estendidas, o guerreiro se lambeu os lábios, ansioso por entrar na tarefa. Não ia sentir se defraudado. Lucan atacou primeiro, e logo a rua explodiu com um estrondo de metal e de ossos quebrados.
Enquanto Dante lutava como um demônio saído do inferno —com as diabólicas folhas extensíveis cintilando a cada movimento, soltando gritos de guerra que rasgavam a noite—, Lucan manteve um frio controle e uma precisão letal. Um a um, os quatro renegados sucumbiram sob os golpes de castigo dos guerreiros. O beijo das folhas de titânio se expandia como um veneno a toda velocidade pelo corrompido sistema sangüíneo dos renegados, acelerando sua morte e provocando as rápidas mudanças nos estados de decomposição característicos da morte dos renegados.
Quando tiveram terminado com seus inimigos, quando seus corpos se reduziram de carne a osso e de osso a cinza fumegante, Lucan e Dante foram ver os restos do outro açougue da rua.
O ser humano estava imovel e sangrava profundamente por uma ferida que tinha na garganta.

Dante se agachou ao lado do homem e cheirou seu destroçado corpo.

—Está morto. Ou o vai estar dentro de um minuto.
O aroma do sangue derramado encheu as fossas nasais de Lucan com a força de um murro no ventre. Suas presas, estendidas já por causa da ira, agora pulsavam pelo desejo de alimentar-se. Baixou a vista e observou com desgosto ao humano moribundo. Apesar de que tomar o sangue era necessário para ele, Lucan desprezava a idéia de aceitar os refugos dos renegados, tivessem a forma que tivessem. Preferia conseguir o seu sustento dos serviçais anfitriões que ele mesmo elegia ali onde podia, apesar de que esses escassos bocados somente conseguiam despertar uma fome mais profunda.
Antes ou depois, todo vampiro tinha que matar.
Lucan não tentava negar sua natureza, mas nas ocasiões em que matava, o fazia seguindo sua própria eleição, seguindo sua próprias regras. Quando procurava uma presa, elegia principalmente criminosos, traficantes de droga, assassinos e outra gente de má vida. Era judicioso e eficiente e nunca matava pelo prazer de fazê-lo. Todos os da raça seguiam um código de honra similar; isso era o que lhes distinguia de seus irmãos os renegados, que se tinha separado deles ao rebelar-se a essa lei.
Sentiu que lhe esticava o ventre: o aroma do sangue voltou a fazer-se presente em suas fossas nasais. A saliva lhe começou a gotejar da boca ressecada.
Quando se tinha alimentado pela última vez?
Não podia recordá-lo: fazia bastante tempo. Vários dias, pelo menos, e não o suficiente para que lhe durasse. Tinha pensado acalmar parte da fome —tão carnal como de sangue— com a Gabrielle Maxwell a outra noite, mas essa idéia tinha tomado um giro repentino. Agora tremia por causa da necessidade de alimento, e essa necessidade era muito forte para pensar em algo exceto em cobrir as necessidades básicas de seu corpo.

—Lucan. — Dante apertou os dedos no pescoço do homem, procurando o pulso. As presas do vampiro estavam estendidos, afiados depois da batalha e por causa da reação fisiológica ante o forte aroma desse líquido escarlate que emanava do homem.
— Se esperarmos muito mais, o sangue terá morrido também.
E não lhes serviria de nada, posto que somente o sangue fresco que emanava das veias dos seres humanos podia saciar a fome de um vampiro. Dante esperou, inclusive apesar de que era óbvio que quão único desejava era baixar a cabeça e tomar sua parte desse homem, que tinha sido muito idiota para escapar quando tinha tido a oportunidade de fazê-lo.
Mas Dante esperaria, inclusive embora tivesse que deixar esbanjar esse sangue, dado que era um protocolo não escrito que as gerações mais jovens de vampiros não se alimentavam na presença dos mais velhos, especialmente se esse vampiro mais velho pertencia a categoria de «primeira geração» da raça e estava faminto.
A diferencia de Dante, o pai de Lucan era um dos Antigos, um dos oito guerreiros extraterrestres que tinham chegado de um planeta escuro e distante e se estrelaram milhares de anos atrás contra a superfície inóspita e implacável do planeta Terra. Para sobreviver, alimentaram-se do sangue dos seres humanos e tinham dizimado populações inteiras por causa de sua fome e de sua bestialidade. Em alguns estranhos casos, esses conquistadores estrangeiros se haviam emparelhado com êxito com fêmeas humanas, as primeiras companheiras de raça, que tinham gerado uma nova geração da raça dos vampiros.
Esses selvagens antepassados de outro mundo tinham desaparecido por completo, mas sua origem ainda continuava vivendo, como Lucan e uns quantos mais disseminados pelo mundo. Representavam o estádo mais próximo a realeza na sociedade dos vampiros: eram respeitados e não pouco temidos. A grande maioria dos da raça eram jovens, nascidos de uma segunda, terceira e, alguns, de uma décima geração.
A fome era mais urgente nos de «primeira geração». Também o era a propensão a ceder ante a sede de sangue e a converter-se em um renegado. A raça tinha aprendido a viver com esse perigo. A maioria deles tinha aprendido a dirigi-lo: tomavam sangue somente quando o necessitavam e nas mínimas quantidades necessárias para a sustentação. Tinham que fazê-lo assim, porque uma vez apanhados pela sede de sangue, não havia maneira de voltar atrás.

Os olhos afiados de Lucan caíram sobre a retorcida figura humana que ainda respirava ligeiramente, tombada no pavimento do chão. Ouviu um grunhido animal que provinha de sua própria garganta. Quando Lucan se aproximou com compridos passados em direção ao aroma do sangue vivo vertido no chão, Dante fez uma ligeira saudação com a cabeça e se apartou para permitir a seu superior que se alimentasse.


Capítulo cinco
Ele nem sequer se preocupou de chamá-la e lhe deixar uma mensagem a outra noite.
Típico.
Provavelmente tinha um encontro muito importante com seu mando à distancia e seu programa de poderes paranormais. Ou possivelmente, quando se houve marchado de seu apartamento a outra tarde, tinha conhecido a alguém mais e tinha recebido uma oferta mais interessante que devolver o telefone celular a Gabrielle no Beacon Hill.
Diabos, inclusive era possível que estivesse casado, ou que tivesse alguma relação com alguém. Não o tinha perguntado, e se o houvesse preguntado, isso não tivesse garantido que lhe houvesse dito a verdade. Lucan Throne, certamente, não era distinto a nenhum homem. Exceto pelo fato de que era... diferente.
Pareceu-lhe que era muito diferente a qualquer a quem houvesse conhecido até esse momento. Um homem muito reservado, quase fechado, que dava uma sensação extranhamente perigosa. Ela não podia imaginar sentado em uma poltrona diante do televisor, igual que tampouco lhe podia imaginar junto em uma relação séria de namoro, por não falar de uma esposa e uma família. O qual voltava a recordar a idéia de que seguramente ele teria recebido uma oferta mais interessante e tinha decidido desprezar a ela. E essa idéia lhe doía muito mais do que deveria.
«te esqueça dele», repreendeu-se Gabrielle quase sem fôlego enquanto aproximava o Cooper Mini negro à uma lateral da tranqüila rua local e desligava o motor. A bolsa com sua câmara e seu equipamento fotográfico se encontrava no assento do co-piloto. Agarrou-a, e tomou tambem uma pequena lanterna do porta-luvas, guardou as chaves na jaqueta e saiu do carro.

Fechou a porta sem fazer ruído e jogou uma rápida olhada ao seu redor. Não havia nem uma alma a vista, o qual não era surpreendente dado que eram quase as seis da manhã e que o edifício, no qual estava a ponto de entrar de forma ilegal e de fotografar, fazia vinte anos que estava fechado. Andou seguindo o caminho de pavimento gretado e girou a direita, cruzou uma sarjeta e subiu até um terreno cheio de carvalhos que formavam como uma densa cortina ao redor do velho hospital psiquiátrico.
O amanhecer começava a elevar-se pelo horizonte. A luz era fantasmagórica e etérea, como uma neblina úmida rosada e azulada que amortalhava essa estrutura gótica com um brilho de outro mundo. Apesar de estar pintado em tons claros, esse lugar tinha um ar ameaçador.
O contraste era o que a tinha atraído até essa localização essa manhã. Tomar as imagens ao anoitecer tivesse sido a eleição mais natural para concentrar-se na qualidade ameaçadora dessa estrutura abandonada. Mas era a justaposição da cálida luz do amanhecer com o tema frio e sinistro o que atraía a Gabrielle enquanto se detinha para tirar a câmara da bolsa que tinha pendurada do ombro. Tirou umas seis fotos e logo voltou a pôr a tampa a lente para continuar a caminhada em direção ao fantasmagórico edifício.
Uma alta cerca de arame apareceu diante dela, impedindo que os exploradores curiosos como ela entrassem na propriedade. Mas Gabrielle sabia que tinha um ponto débil escondido. Tinha-o descoberto a primeira vez que tinha vindo ao lugar para tirar umas fotos de exterior. Se apressou seguindo a linha da cerca até que chegou ao extremo sudoeste da mesma, onde se agachou até o chão. Ali, alguém tinha talhado discretamente o arame e tinha formado uma abertura o bastante grande para que um adolescente curioso pudesse abrir-se passo, ou para que uma fotógrafa decidida, e que tinha tendência a interpretar os sinais de «Não passar» e «Só pessoal autorizado» como sugestões amistosas em lugar de leis inquebráveis, penetrasse por ela.
Gabrielle abriu a parte de arame talhado, lançou o equipamento para o outro lado e se arrastou como uma aranha, sobre o ventre, Através da baixa abertura. Quando ficou em pé, ao outro lado da cerca, sentiu que as pernas lhe tremiam por causa de uma repentina apreensão. Deveria estar acostumada a este tipo de operações encobertas, de explorações em solitário: muito freqüentemente, sua arte dependia de sua coragem para encontrar lugares desolados, que alguns qualificariam de perigosos. Esse arrepiante psiquiátrico podia, certamente, qualificar-se como perigoso,
pensou enquanto deixava vagar o olhar por um grafite pintado com aerosol ao lado da porta de entrada que dizia más vibrações.
—Já pode dizê-lo —sussurrou em voz muito baixa. Enquanto se sacudia as agulhas de pinheiro e a terra da roupa, com gesto automático levou uma mão até o bolso dianteiro de seu jeans em busca do celular. Não estava ali, é obvio, já que ainda estava em poder do detetive Thorne. Outra razão para sentir-se aborrecida com ele por havê-la feito esperar a outra noite.
Possivelmente não deveria ser tão dura com o menino, pensou, repentinamente desejosa de concentrar-se em algo distinto ao mau pressentimento que a atendia agora que se encontrava dentro do terreno do psiquiátrico. Possivelmente Thorne não se apresentou porque algo lhe tinha acontecido no trabalho.
E se tinha sido ferido em cumprimento do dever e não acudiu tal e como tinha prometido porque se encontrava de alguma forma encapacitado de chamar ? Possivelmente não tinha chamado para desculpar-se nem para explicar sua ausência porque não podia fazê-lo fisicamente.
Exato. E possivelmente ela tinha comprovado seu próprio cérebro com as bra-gás do mesmo segundo em que tinha posto os olhos nesse homem.
Burlando-se de si mesmo, Gabrielle recolheu suas coisas e caminhou em direção a imponente arquitetura do edifício principal. Uma pálida pedra calcária se elevava para o céu em uma levantada torre central, remota em uns picos e agulhas dignos da melhor catedral gótica. Ao seu redor havia um extenso recinto de paredes de tijolo vermelho, cujo teto estava composto por telhas ordenadas em um desenho como de asas de morcego, comunicado entre eles por passarelas e arcos que formavam um claustro coberto.
Mas por impressionante que fosse essa estrutura, não havia forma de tirar-se de cima a sensação de uma ameaça latente, como se mil pecados e mil segredos se apertassem detrás dessas descascadas paredes e janelas com parte de cristais quebrados. Gabrielle caminhou até o ponto onde a luz era melhor e tomou umas quantas fotos. Não havia nenhuma maneira de entrar por aí: a porta principal estava fechada com ferrolho e com travessas de madeira. Se queria entrar para realizar algumas fotos do interior —e, definitivamente, sim queria—, tinha que dar a volta até a parte traseira e provar sorte com alguma janela que estivesse a pé de rua ou com alguma porta do porão.
Baixou deslizando-se por um aterro em pendente para a parte posterior do edifício e encontrou o que estava procurando: umas portinhas de madeira ocultavam três janelas que era muito provável que se abrissem a uma zona de serviço ou a um armazém. Os ferrolhos estavam oxidados, mas não estavam fechados e se abriram com facilidade quando se serve de ajuda de uma pedra que encontrou ali ao lado. Atirou da coberta de madera das janelas, levantou o pesado painel de cristal e o escorou, aberto, com os ferrolhos.
Fez uma varredura geral iluminando-se com a lanterna para assegurar-se de que o lugar estava vazio e de que não ia desabar sobre sua cabeça imediatamente, e penetrou através da abertura. Ao saltar do marco da janela, o solado de suas botas pisaram em cristais quebrados e pó e lixo acumulados durante anos. Esse porão de blocos de concreto tinha uns três metros e meio de comprimento e desaparecia na escura zona que ficava sem iluminar. Gabrielle dirigiu o magro feixe de luz de sua lanterna para as sombras do outro extremo do espaço. Percorreu com ele a parede e o deteve sobre uma velha porta de serviço em cuja superfície se podia ler o seguinte pôster: acesso restringido.
—O que te aposta? —sussurrou enquanto se aproximava da porta. Efetivamente, não estava fechada com chave.
Abriu-a e projetou a luz para o outro lado da porta, onde se abria um comprido corredor parecido a um túnel. Uns suportes de fluorescente quebrados penduravam do teto; alguns dos painéis que os haviam coberto tinham caido sobre o chão de qualidade industrial, onde jaziam quebrados e cobertos de pó. Gabrielle entrou nesse espaço escuro, insegura do que estava procurando e com certo temor do que poderia encontrar nas desertas tripas desse psiquiátrico.
Passou por diante de uma porta aberta do corredor e a luz do flash iluminóu uma cadeira de dentista de vinil vermelho, um pouco gasta, que se encontrava colocada no centro da habitação, como se esperasse ao próximo paciente. Gabrielle tirou a câmara de sua capa e tomou um par de rápidas fotos. Logo continuou para diante e passou ante uma série de habitações de revisão e de tratamento. Devia encontrar-se na ala médica do edifício.

Encontrou uma escada e subiu dois lances até que chegou, para sua complacencia, a torre central onde umas grandes janelas deixavam entrar a luz da manhã em generosas quantidades.
Através da lente da câmara olhou por cima de amplos terrenos e pátios flanqueados por elegantes edifícios de tijolo e de pedra calcária. Realizou umas quantas fotos do lugar, apreciando tanto sua arquitetura como o quente jogo que a luz do sol fazia contra tantas sombras fantasmagóricas. Resultava estranho olhar para fora do confinamento de um edifício que antigamente tinha albergado a tantas almas perturbadas. Nesse inquietante silêncio, Gabrielle quase podia ouvir as vozes dos pacientes, de gente que, simplesmente, não tinha a possibilidade de marchar-se caminhando dali como ela faria então.
Gente como sua mãe biológica, uma mulher a quem Gabrielle não tinha conhecido nunca e da qual não sabia nada mais que o que tinha ouvido de menina nas conversações apagadas que os trabalhadores sociais e as famílias de acolhida mantiveram e que ao final, uma por uma, devolveram ao sistema como se fosse um animal doméstico que houvesse demonstrado ser mais problemático do que se podia suportar. Tinha perdido a conta do número de lugares aonde a tinham enviado a viver, mas as queixa contra ela quando a devolviam sempre eram as mesmas: inquieta e introvertida, fechada e desconfiada, socialmente disfuncional com tendência a atitudes autodestrutivas. Tinha ouvido os mesmos qualificativos dirigidos para sua mãe, aos quais acrescentavam as categorias de paranóica e delirante.
Quando os Maxwell apareceram em sua vida, Gabrielle tinha passado dezenove dias em uma casa de acolhida sob a supervisão de um psicólogo designado pelo Estado. Não tinha nenhuma expectativa e ainda menos esperanças de que fora capaz de conseguir que outra situação de acolhida funcionasse. Francamente, já não lhe importava. Mas seus tutores tinham sido pacientes e bondosos. Acreditando que possivelmente a ajudasse a dirigir a confusão emocional, tinham-na ajudado a conseguir um punhado de documentos judiciais que tinham que ver com sua mãe.
Essa mulher tinha sido uma adolescente anônima, acreditava-se que era uma sem teto, que não tinha identificação, não lhe conhecia família nem conhecidos exceto pela menina recém-nascida que tinha abandonado, chorando e angustiada, em um contêiner de lixo da cidade em uma noite de agosto. A mãe de Gabrielle tinha sido maltratada, e sangrava por umas profundas feridas no pescoço que ela mesma se piorou rasgando-a, vítima da histeria e do pânico.

Em lugar de persegui-la pelo crime de haver abandonado seu bebê, o tribunal a tinha considerado incapacitada e a tinham enviado a umas instalações que certamente não eram muito diferentes a esta em que se encontrava ela agora. Quando ainda não levava nem um mês no centro institucional, pendurou-se com um lençol deixando detrás dela inumeráveis pergunta que nunca teriam resposta.
Gabrielle tentou tirar-se de cima o peso dessas velhas feridas, mas enquanto estava ali em pé e olhava através dos brumosos cristais das janelas, todo seu passado apareceu em primeiro plano em sua mente. Não queria pensar em sua mãe, nem na desgraçada circunstância de seu nascimento, nem nos escuros e solitários anos que lhe seguiram. Precisava concentrar-se em seu trabalho. Isso era o que lhe tinha permitido continuar para diante, depois de tudo. Era o único constante em sua vida, e as vezes tinha sido quão único de verdade tinha neste mundo.
E era suficiente.
Durante a maior parte do tempo, era suficiente.
«Toma umas quantas fotos e te largue daqui», disse a si mesmo, como brigando-se.
Levantou a câmara e tomou um par de fotos mais através do delicado trabalho de metal que se entrelaçava entre as duas janelas de cristal.
Pensou em partir pelo mesmo caminho por onde tinha entrado, mas se perguntou se possivelmente poderia encontrar outra saída em algum ponto do piso de abaixo do edifício central. Voltar a baixar ao escuro porão não lhe resultava especialmente atrativo.
Estava inquietando a si mesmo pensando em coisas sobre a loucura de sua mãe, e quanto mais momento se entretivera nesse velho psiquiátrico, mais lhe foram pôr os cabelos de ponta. Abriu a porta da escada e se sentiu um pouco melhor ao ver a tênue luz que se filtrava para dentro pelas janelas em algumas das habitações e nos corredores adjacentes.

Era óbvio que o artista do grafite de más vibrações tinha chegado até ali também. Em cada uma das quatro janelas havia uns extranhos símbolos realizados com pintura negra. Provavelmente eram os marcos de alguma turma, ou as assinaturas estilizadas dos meninos que tinham estado ali antes que ela. Em uma esquina havia uma lata de aerosol atirada, ao lado de umas bitucas de cigarros, de umas garrafas de cerveja quebrada e outros restos.
Gabrielle tomou a câmara e procurou um ângulo adequado para a fotografia que tinha em mente. A luz não era muito boa, mas com um lente diferente possivelmente resultasse interessante. Rebuscou na bolsa à procura das lentes e nesse momento ficou gelada ao ouvir um zumbido distante que procedia de algum ponto por debaixo de seus pés. Era muito frouxo, mas soava como o de um elevador, o qual era impossível. Gabrielle voltou a introduzir o equipamento na bolsa sem deixar de prestar atenção aos vagos sons que sentia ao seu redor. Todos os nervos de seu corpo se haviam esticado com uma gelada sensação de apreensão.
Não se encontrava sozinha ali dentro.
Agora que o pensava, notou que uns olhos a olhavam desde algum ponto próximo. Essa inquietante tira de consciência lhe pôs os cabelos de ponta na nuca e nos braços. Devagar, girou a cabeça e olhou para trás. Foi então quando o viu: uma pequena câmara de vídeo de circuito fechado montada em uma sombria esquina elevada do corredor, e que vigiava a porta da escada que ela tinha atravessado fazia somente uns minutos.
Possivelmente não estivesse em funcionamento e fosse somente algo que tinha ficado ali dos dias em que o psiquiátrico estava ainda em funcionamento. Essa teria sido uma idéia consoladora se a câmara não tivesse um aspecto tão cuidado e compacto, tão de tecnologia de vanguarda em segurança. Para comprová-lo, Gabrielle se aproximou dela e se colocou quase diretamente diante da câmara. Sem fazer nenhum ruído, a base da câmara girou e colocou a lente no ângulo adequado até que ficou enfocado no rosto de Gabrielle.

«Merda — disse, olhando esse olhos negro que não piscava.
—Pega.»
Das profundidades do edifício vazio, ouviu um rangido metálico e o estrondo de uma porta pesada. Era evidente que esse psiquiátrico abandonado não estava tão abandonado depois de tudo. Pelo menos tinham sistema de segurança, e a polícia de Boston poderia aprender algo dessa lição sobre o rápido tempo de reação dessa gente.
Soaram uns passos a um ritmo compassado: alguém que se encontrava vigiando tinha começado a dirigir-se para ela. Gabrielle se dirigiu para a escada e saiu disparada escada abaixo enquanto a bolsa a golpeava no quadril. À medida que baixava, a luz diminuía. Tomou a lanterna com a mão, mas não queria utilizá-la por medo de que funcionasse como um aviso de onde estava e o segurança pudesse segui-la. Chegou ao final da escada, empurrou a porta de metal e se precipitou para a escuridão do corredor do piso inferior.
Ouviu que a porta monitorada da escada se abria com um rangido e que seu perseguidor se precipitava para baixo, detrás dela, correndo com rapidez e ganhando terreno rapidamente.
Finalmente, chegou a porta de serviço do final do corredor. Lançou-se contra o aço frio e correu pelo escuro porão até a pequena janela que se encontrava aberta em uma das laterais. A corrente de ar frio lhe deu força: apoiou as mãos no marco da janela e se elevou. Deixou-se cair ao outro lado da janela, aterrissando fora na terra cheia de pedras.
Agora não podia ouvir seu perseguidor. Possivelmente lhe tinha avoado nos escuros de labirínticos corredores. Deus, isso esperava.
Gabrielle ficou em pé ao momento e correu em direção a abertura da cerca de arame. Encontrou-a rapidamente. colocou-se engatinhando e se introduziu pela fenda no arame com o coração desbocado e a adrenalina lhe correndo pelas veias.

Tinha muito pânico: em sua precipitação por escapar, arranhou-se um lado do rosto com um arame afiado da cerca. O corte lhe queimava na bochecha e sentiu o rastro quente de sangue que lhe baixava ao lado da orelha. Mas não fez caso da abrasadora ardência nem do golpe que se deu com a bolsa da equipamento fotográfica enquanto se inclinava sobre seu ventre para sair, através da cerca, para a liberdade.
Quando a teve atravessado, Gabrielle ficou em pé e correu enlouquecida pelo largo e escarpado terreno dos subúrbios. Somente se permitiu jogar uma rápida olhada para trás: o suficiente para ver que o enorme guarda de segurança ainda estava ali. Teria saído por algum lugar do piso principal e agora corria detrás dela como uma besta recém saída do inferno. Gabrielle tragou saliva de puro pânico ao lhe ver. O tipo parecia um tanque, facilmente pesava cento e dez quilogramas de puro músculo, e tinha uma cabeça grande e quadrada com o cabelo talhado ao estilo militar. Esse tipo enorme correu até a alta cerca e se deteve ao chegar a ela: golpeou-a com os punhos enquanto Gabrielle entrava correndo pela densa cortina de árvores que separava a propriedade da estrada.
O carro se encontrava a um lado do tranqüilo asfalto, justo onde o tinha deixado. Com mãos trementes, Gabrielle se esforçou por abrir a porta. sentia-se petrificada de pensar que esse tipo carregado de esteroides pudesse apanhá-la. Seu medo parecia irracional, mas isso não impedia que a adrenalina lhe corresse por todo o corpo. Afundou-se no acento de pele do Mini, pôs a chave no contato e ligou o motor. Com o coração acelerado, pôs em marcha o pequeno carro, apertou a fundo o pedal de aceleração e se precipitou para a estrada, escapando com um chiado de pneumáticos sobre o asfalto e o conseguinte aroma de queimado dos mesmos.


Capítulo seis
A metade da semana, em plena temporada turística, os parques e avenidas de Boston estavam coalhados de humanidade. Os trens traziam as pessoas a toda velocidade dos subúrbios, a seus lugares de trabalho ou aos museus, ou aos inumeráveis pontos históricos que se encontravam por toda a cidade. Olheiros carregados com câmeras subiam aos ônibus que lhes levavam de excursão ou se colocavam em fila para subir as Ferris sobrecarregados que lhes levariam mais à frente do cabo.
Não muito longe da agitação do dia, oculto a uns nove metros sob uma mansão dos subúrbios da cidade, Lucan Thorne se inclinou sobre um monitor de tela plaina, no edifício dos guerreiros da raça, e pronunciou uma maldição. Os registros de identificação dos vampiros apareciam em tela a velocidade vertiginosa enquanto o programa de computador realizava uma busca na enorme base de dados internacional procurando coincidências com as fotos que Gabrielle Maxwell tinha tomado.
—Ainda nada? —perguntou, olhando de soslaio e com expressão impaciente a Gideon, o operador informático.
—Nada até o momento. Mas ainda se está realizando a busca. A Base de dados de Identificação Internacional tem uns quantos milhões de registros para comprovar. —Os agudos olhos azuis do Gideon cintilaram por cima da arreios dos elegantes óculos de sol— Lhes jogarei o laço a esses burros, não se preocupe.
—Não me preocupo nunca —repôs Lucan, e o disse de verdade. Gideon tinha um coeficiente intelectual que rompia todas as estatísticas e ao que se acrescentava uma tenacidade enorme. Esse vampiro era tanto um caçador incansavel como um gênio e Lucan se alegrava de lhe ter ao seu lado.
_Se você não for capaz de tirá-los a luz, Gideon, ninguém pode fazê-lo.
O gurú informático da raça, com sua coroa de cabelo curto e encrespado, dirigiu-lhe um sorriso fanfarrão e confiado.
—É por isso que levo os verdes grandes.

—Sim, um pouco parecido —disse Lucan enquanto se separava da tela, onde os dados não deixavam de aparecer sem parar.
Nenhum dos guerreiros da raça que se comprometeram a proteger a estirpe frente ao açoite dos renegados o fazia por nenhuma compensação. Nunca a tinham tido, desde que se organizaram pela primeira vez nessa aliança durante o que para os humanos foi a idade medieval. Cada um dos guerreiros tinha seus próprios motivos para ter eleito esse perigoso modo de vida, e alguns deles eram, tinha-se que admitir, mais nobres que outros. Como Gideon, que tinha trabalhado nesse campo de forma independente até que seus dois irmãos, que eram pouco mais que uns meninos, foram assassinados pelos renegados aos subúrbios do Refúgio Escuro de Londres. Então Gideon procurou a Lucan. Disso fazia três séculos, umas décadas mais ou menos. Incluso então a habilidade do Gideon com a espada somente encontrava rival na afiada estocada de sua mente. Tinha matado a muitos renegados em seus tempos, mas mais tarde, a devoção e a promessa íntima que fez a sua companheira de raça, Savannah, tinham-lhe feito abandonar o combate e empunhar a arma da tecnologia ao serviço da raça.
Cada um dos seis guerreiros que lutavam ao lado de Lucan tinha seu talento pessoal. Também tinham seus demônios pessoais, mas nenhum deles era do tipo muito sensível que permitiria que um louco lhes colocasse uma lanterna pelo traseiro. Algumas costumes estavam melhor se deixavam na escuridão e, provavelmente, o único que estava mais convencido disso que o próprio Lucan era um guerreiro da raça conhecido como Dante.
Lucan saudou o jovem vampiro quando este entrou no laboratório técnico de uma das numerosas habitações do edifício. Dante, ataviado com sua habitual vestimenta negra, levava umas calças de ciclista e uma camiseta ajustada que mostrava tanto as tatuagens a tinta como suas intrincadas marcas de pertençer a raça. Seus avultados bíceps mostravam uns sinais afiligranados que a olhos de qualquer humano pareciam símbolos e desenhos geométricos realizados em profundas tonalidades terra. Mas os olhos de um vampiro distinguiam esses símbolos claramente: eram dermoglifos, umas marcas naturais herdadas dos antepasados da raça, cuja pele sem cabelo se havia recoberto de uma pigmentação cambiante e de camuflagem.

Normalmente, esses glifos eram motivo de orgulho para a raça e eram seus únicos sinais de linhagem e de fila social. Os membros da primera geração, como Lucan, luziam essas marca em maior número e seus tons eram mais saturados. Os dermoglifos de Lucan lhe cobriam o torso, por diante e por detrás, descendiam até suas coxas e se extendíam pela parte superior dos braços, além de subir pela nuca e lhe cobrir o crânio. Como tatuagens viventes, os glifos trocavam de tom segundo o estado emocional de um vampiro.
Os glifos de Dante, nesse momento, tinham um tom bronze, avermelhado, que indicava que se alimentou recentemente e que se sentia saciado. Sem dúvida, depois de que ele e Lucan se separaram ao cabo de ter dado caça aos renegados a noite anterior, Dante tinha ido em busca da cama e da amadurecida e suculenta veia da nádega de uma fêmea anfitriã.
—Que tal vai? —perguntou enquanto se deixava cair em cima de uma cadeira e colocava um pé embainhado em uma bota em cima do escritório, diante dele.
—Acreditei que já teria caçado e classificado a esses bastardos, Gid.
O acento de Dante tinha restos da musicalidade de seus ancestrais Italianos ate do século XVIII, mas essa noite, o educado tom de voz de Dante delatava um timbre afiado que indicava que o vampiro se sentia inquieto e ansioso por entrar em ação. Para sublinhar esse fato, tirou uma de suas típicas facas de folha curvada da cilha que levava no quadril e começou a jogar com o gentil aço.
Chamava a essas folhas curvadas Malebranche ou prolongações diabólicas, em referência Aos demônios que habitam um dos nove níveis do inferno, embora as vezes Dante adotava esse nome como pseudónimo para si mesmo quando se encontrava entre os humanos. Essa era quase toda a poesia que esse vampiro tinha em sua alma. Em todo o resto era impenitente, frio e escuramente ameaçador.
Lucan admirava isso dele, e tinha que admitir que observar a Dante durante o combate, com essas folhas inclementes, era algo belo, o bastante formoso para deixar em ridículo a qualquer artista.

—Bom trabalho o da noite passada —disse Lucan, consciente de que uma adulação emitida por ele era algo estranho, inclusive embora estivesse merecendo.
— Me salvou o pescoço aí.
Não falava da confrontação que tinham tido com os renegados, mas sim do que tinha acontecido depois disso. Lucan tinha passado demasiado tempo sem alimentar-se e a fome era quase tão perigosa para os seus como o vício que açoitava aos renegados. O olhar de Dante denotava que compreendia o que lhe estava dizendo, mas deixou acontecer o tema com sua habitual e fria elegância.
—Merda —repôs, com uma sonora e profunda gargalhada.
—.Depois de todas as vezes que você me há coberto as costas? Esquece-o, cara. Só te devolvia um favor.
Nesse momento, as portas de cristal da entrada do laboratório se abriram com um zumbido surdo e dois mais dos irmãos de Lucan entraram. Eram um bom par. Nikolai, alto e atlético, de cabelo loiro como a areia, uns rasgos angulares e impactantes e uns olhos penetrantes e azuis como o gelo, que só eram um tom mais frios que o céu de sua Siberia natal. O mais jovem do grupo e com diferença, Niko, havia-se feito homem durante o que os humanos chamavam a Guerra Fria. Do berço tinha sido imparavel e agora se converteu em um buscador de sensações de alta voltagem e se encontrava em primeira fila da raça no que tinha que ver com armas, aparelhos, e tudo o que ficava no meio.
Conlan, pelo contrário, falava com suavidade e era sério: era um perito em tática. Ao lado da excessiva fanfarronice do Niko, resultava elegante como um gato grande. Seu corpo era como um muro de músculos, e o cabelo loiro, de cor areia, brilhava por debaixo do triangulo de seda negra com que se envolvia a cabeça. Esse vampiro pertencia a uma das últimas gerações da raça, era um jovem segundo o critério de Lucan, e sua mãe era uma humana filha de um capitão escocês. O guerreiro se movia com um porte quase de realeza.
Inclusive sua amada companheira de raça, Danika, dirigia-se a esse habitante das terras altas afetuosamente lhe chamando, com freqüência, «meu senhor» e essa fêmea não era precisamente servil.

—Rio está de caminho —anunciou Nikolai com um amplo sorriso que lhe formava duas covinhas nas bochechas. Olhou a Lucan e assentiu com a cabeça.
— Eva me há dito que te diga que poderemos dispor de seu homem somente quando ela tenha terminado com ele.
—Se é que fica algo —disse Dê, arrastando as palavras enquanto levantava uma mão para saudar outros com um suave roce das palmas prévio a um choque de nódulos.
Lucan saudou Niko e a Conlan da mesma maneira, mas se sentiu algo molesto pelo atraso de Rio. Não invejava a nenhum dos vampiros pela companheira de raça que tinham eleito, mas, pessoalmente, Lucan não encontrava nenhum sentido atar-se as demandas e responsabilidades de um vínculo de sangue com uma fêmea. Esperava-se que, em geral, a população da raça aceitasse a uma mulher para aparear-se e dar nascimento a seguinte geração, mas para a classe dos guerreros —para esses escassos machos que, de forma voluntária, haviam abandonado o santuário dos Refúgios Escuros para levar uma vida de luta processo de vincular-se por sangue era, para Lucan, uma frescura no melhor dos casos.
E no pior, era um convite ao desastre quando um guerreiro sentia a tentação de antepor os sentimentos para sua companheira por cima de seu dever para a raça.
—Onde está Tegan? —perguntou, ao dirigir seus pensamentos de forma natural para o último deles que faltava no edifício.
—Ainda não retornou —respondeu Conlan.
—Chamou de onde se encontra?
Conlan e Niko intercambiaram um olhar, e Conlan negou rapidamente com a cabeça:
—Nenhuma palavra.

—Esta é a vez que esteve mais tempo desaparecido em ação — assinalou Dê sem dirigir-se a ninguém em especial enquanto passava o dedo polegar pelo fio da folha curvada de sua faca.
—Quanto faz? Três, quatro dias?
Quatro dias, quase cinco.
Quem deles levava a conta?
Resposta: todos eles a levavam, mas ninguém pronunciou em voz alta a preocupação que se estendeu ultimamente em suas filas. Tal como estava o tema, Lucan tinha que esforçar-se para controlar a raiva que despertava nele cada vez que pensava no membro mais introvertido dos membros de seu quadro.
Tegan sempre preferia caçar em solitário, mas seu caráter afastado começava a resultar uma carga para outros. Era como um curinga, adquiria um valor diferente em função de cada ação e, ultimamente, cada vez mais. E Lucan, tinha que ser franco, encontrava difícil confiar nesse menino, embora a desconfiança não fosse nada novo no que concernia a Tegan. Havia uma má relação entre ambos, sem dúvida, mas essa era uma história antiga.
Tinha que ser assim. A guerra em que ambos se comprometeram desde fazia tanto tempo era mais importante que qualquer aversão que pudesse sentir um para o outro.
Apesar disso, o vampiro levava a cabo uma vigilância estreita. Lucan conhecia as debilidades de Tegan melhor que nenhum de outros e não duvidaria em responder se esse macho punha embora fosse o dedo gordo do pé no outro extremo da linha.
Por fim, as portas do laboratório se abriram e Rio entrou na hábitação enquanto se colocava as abas de sua elegante camisa branca de desenho dentro da calça negra feita a medida. Faltavam alguns botões na camisa de seda, mas Rio levava a má compostura depois do sexo com a mesma elegância desenvolvida com que se movia em todas as demais circunstâncias. Sob a densa franja de cabelo escuro que lhe pendurava por cima das sobrancelhas, os olhos de cor topázio do espanhol parecia que dançavam. Quando sorria, brilhavam-lhe as pontas das presas que, nesses momentos, ainda não se haviam retratados depois de que a paixão por sua dama os tivesse desdobrado.

—Espero que me tenham guardado alguns renegados, meus amigos. — esfregou-se as mãos:—Me sinto bem e tenho vontades de festa.
— Sente-se disse Lucan— e tenta não manchar de sangue os computadores do Gideon.
Gideon se levou os largos dedos da mão até a marca vermelha que Eva tinha feito na garganta, evidentemente ao lhe morder com seus dentes romos de humana para lhe chupar a veia. Apesar de que era uma companheira de raça, continuava sendo geneticamente Homo sapiens. Embora fazia muitos anos que ela e outras como ela mantinham vínculos de sangue com seus companheiros, nenhuma delas teria presas nem adquiriría as demais características dos machos vampiro. Era uma prática ampliamente aceita que um vampiro alimentasse a sua companheira através de uma ferida que ele mesmo se infligia no pulso ou no antebraço, mas as paixões eram selvagens nas filas dos guerreiros da raça. E também o eram com as mulheres que escolhiam. O sexo e o sangue era uma combinação muito potente: Às vezes, muito potente.
Com um sorriso impenitente, Rio se moveu na cadeira giratória com gesto alegre e desenvolvido e se recostou no respaldo para colocar os pés nus em cima do console . Ele e os outros guerreiros começaram a recordar os fatos da noite anterior e riram sem deixar de mostrar-se superiores uns com os outros enquanto discutiam as técnicas de sua profissão.
Caçar a seus inimigos era motivo de prazer para alguns membros da raça, mas a motivação íntima de Lucan era o ódio, puro e simples. Não tentava ocultá-lo. Desprezava tudo aquilo que os renegados representavam e tinha jurado, fazia muito tempo, que os aniquilaria ou que morreria no intento. Havia dias nos que não lhe importava qual das duas coisas pudesse acontecer.
—Aí está —disse Gideon por fim ao ver que os registros que apareciam em tela se detinham.
— Parece que encontramos um filão.

—O que obtiveste?
Lucan e outros dirigiram a atenção para a tela plaina extra grande que se encontrava em cima da mesa dos microprocessadores do laboratório. Os rostos dos quatro renegados a quem Lucan matou apareceram ao lado dos das fotos do celular de Gabrielle: eram os mesmos indivíduos.
—Os registros da Base de dados de Identificação Internacional os têm qualificados como desaparecidos. Dois desapareceram do Refúgio Escuro de Connecticut o mês passado, e outro do Fall River, e este último é daqui. Todos são da geração atual, e o mais jovem nem sequer tem trinta anos.
—Merda —exclamou Rio antes de assobiar com suavidade.
— Meninos estúpidos.
Lucan não disse nada, não sentia nada, pela perda dessas vidas jovens ao converter-se em renegados. Não eram os primeiros, e seguro que não seriam os últimos. Viver nos Refúgios Escuros podia resultar bastante aborrecido para um macho imaturo que tivesse alguma coisa que demostrar. O atrativo do sangue e da conquista se encontrava profunda-mente enraizado inclusive entre as últimas gerações, que eram as que se encontravam mais distantes de seus selvagens antepassados. Se um vampiro ia em busca de problemas, especialmente em uma cidade do tamanho da de Boston, normalmente os encontrava em abundância.
Gideon introduziu uma rápida série de ordens através do teclado do computador e abriu mais fotos procedentes da base de dados.
—Aqui estão os últimos dois registros. Este primeiro indivíduo é um renegado conhecido, um agressor reincidente em Boston, apesar de que parece que se manteve um tanto à margem durante os últimos três meses. Quer dizer, tem-no feito até que Lucan o reduziu a cinzas no beco este fim de semana.
—E o que sabemos deste? —perguntou Lucan, olhando a última imagem que ficava, a do único renegado que tinha conseguido escapar depois do ataque fora da discoteca. Sua foto no registro era uma imagem tomada de um fotograma de um vídeo que, presumivelmente, fez-se durante uma espécie de sessão de interrogatório conforme se deduzia pelas ataduras e os eletrodos que levava em cima.

—Quanto tempo tem esta imagem?
—Uns seis meses —respondeu Gideon, abrindo a data da imagem— Sai de uma das operações na Costa Oeste.
—Los Angeles?
—Seattle. Mas segundo o relatório, em Los Angeles tem uma ordem de arresto também.
—Ordens de arresto —disse Dê em tom zombador.
— Uma fodida perda de tempo.
Lucan não podia não estar de acordo com ele. Para quase toda a nação de vampiros nos Estados Unidos e no estrangeiro, o cumprimento da lei e a detenção dos indivíduos que se converteram em renegados se governavam por umas regras e procedimentos específicos. Redigiam-se ordens de arresto, realizavam-se as detenções, realizavam-se os enterrogatorios e se transmitiam as condenações. Tudo era muito civilizado e estranhamente resultava efetivo.
Enquanto que a raça e a população dos Refúgios Escuros estavam organizados, motivados e envoltos por capas de burocracia, seus inimigos eram imprevisíveis e impetuosos. E, a não ser que a intuição de Lucan fora errônea, os renegados, depois de séculos de anarquia e de caos geral, estavam começando a organizar-se.
Se é que não levavam já meses nesse processo.
Lucan observou a imagem que tinha aparecido em tela. Na imagen de vídeo, o renegado a quem tinham capturado se encontrava preso em uma prancha de metal colocada em vertical, nu e com a cabeça barbeada por completo, provavelmente para que as descargas elétricas que lhe enviavam lhe chegassem com maior facilidade enquanto lhe interrogavam. Lucan não sentia nenhuma compaixão pela tortura que o renegado tinha suportado. Freqüentemente era necessário realizar interrogatórios desse tipo, e igual que acontece com um ser humano enganchado a heroína, um vampiro que sofria de sede de sangue podia suportar dez vezes mais e sem fraquejar a dor que outro de seus irmãos de raça podia agüentar.

Esse renegado era grande, com umas sobrancelhas densas e uns rasgos fortes e primitivos. Nessa imagem lhe via rir com ironia. Os largos dentes brilhavam e tinha uma expressão selvagem nos olhos da cor do ámbar e de pupilas alargadas e verticais. Encontrava-se envolto por cabos da cabeça enorme até o musculoso peito e os braços firmes como martelos.
—Dando por entendido que ser feio não é um crime, por que motivo lhe pilharam em Seattle?
—Vamos ver o que temos. —Gideon voltou a colocar-se ante os computadores e abriu um registro em outra das telas.
—Lhe hão arrestado por tráfico: armas, explosivos, substâncias químicas. Vá, este tipo é um encanto. Colocou-se em uma merda verdadeiramente feia.
—Alguma idéia sobre de quem eram as armas que levava?
—Aqui não diz nada. Não conseguiram grande coisa com ele, é evidente. O registro informa que escapou justo depois de que tomassem estas imagens. Matou a dois dos guardas durante a fuga.
E agora havia tornado a escapar, pensou Lucan, desalentado e desejando ferventemente ter decapitado ao filho de puta quando o tinha diante. Não suportava o fracasso com facilidade, e muito menos quando se tratava do seu próprio.
Lucan olhou a Niko.
—Cruzaste-te alguma vez com este tipo?
—Não —repôs o russo—, mas consultarei com meus contatos, a ver o que posso averiguar.

—Ponha nisso.
Nikolai assentiu com a cabeça com gesto rápido e se dirigiu para a saida do laboratório técnico enquanto já marcava o número de telefone de alguém no celular.
—Estas fotos são uma merda —disse Conlan, olhando por cima do ombro do Gideon em direção as fotos que Gabrielle tinha tomado durante o assassinato, fora da discoteca. O guerreiro pronunciou uma maldição.
— Já é bastante mau que os humanos tenham presenciado alguns dos assassinatos dos renegados durante os últimos anos, mas agora se dedicam a deter-se e a tomar fotos?
Dante deixou cair os pés ao chão com um ruído surdo, ficou em pé e começou a caminhar pela habitação, como se começasse a sentir-se cada vez mais inquieto pela falta de atividade nessa reunião.
—Todo mundo acredita que são uns fodidos paparazzi.
—O tipo que fez essas fotos deveu cagar-se de medo ao encontrar-se com noventa quilogramas de guerreiro salivando por ele —acrescentou Rio. E, olhou a Lucan—. Lhe apagou primeiro a memória, ou simplesmente o eliminou ali mesmo?
—O humano que presenciou o ataque essa noite era uma mulher. —Lucan olhou fixamente os rostos de seus irmãos sem mostrar o que sentia em relação a informação que estava a ponto de lhes dar.
— Resulta que é uma companheira de raça.
—Mãe de Deus —exclamou Rio, passando a mão pelo cabelo—. Uma companheira de raça. Está seguro?
—Leva o sinal. Vi-a com meus próprios olhos.
—O que fez com ela? Transou, não...?

—Não —repôs com secura Lucan, inquieto pelo que o espanhol havia insinuado com o tom de voz.
—Não fiz nenhum mal a essa mulher. Existe uma linha que nunca vou cruzar.
Tampouco tinha reclamado a Gabrielle para si, embora tinha estado muito perto de fazê-lo essa noite no apartamento dela. Lucan apertou a mandíbula: uma onda de escuro desejo lhe invadiu ao pensar em quão tentadora Gabrielle estava, enroscada e dormida na cama. No malditamente doce que era seu sabor em sua língua...
—O que vais fazer com ela, Lucan? —Esta vez, a expressão de preocupação proveio de onde se encontrava Gideon.
— Não podemos deixar que os renegados a encontrem. Seguro que ela chamou a atenção deles quando realizou essas fotos.
—E se os renegados se dão conta de que é uma companheira de raça... —acrescentou Dê, interrompendo-se A metade da frase. Outros assentiram com a cabeça.
—Ela estará mais segura aqui —disse Gideon—, sob o amparo da raça. Melhor ainda: deveria ser oficialmente admitida em um dos Refúgios Escuros.
—Conheço o protocolo —repôs Lucan, pronunciando cada palavra com lentidão. Sentia muita raiva ao pensar em que Gabrielle pudesse acabar nas mãos dos renegados, ou nas de outro membro da raça se fazia o que era devido e a mandava a um dos Refúgios Escuros da nação. Nenhuma das duas opções lhe parecia aceitável nesse momento a causa do sentimento possessivo que lhe bulia nas veias, irreprimivel embora não desejado.
Olhou a seus irmãos guerreiros com frieza.
—Essa mulher é responsabilidade minha a partir de agora mesmo. Decidirei qual é a melhor atuação neste tema.
Nenhum dos guerreiros lhe contradisse. Lucan não esperava que o fizessem. Em qualidade de membro de primeira geração, ele era mais antigo; em qualidade de guerreiro fundador dos de sua classe na raça, era quem mais coisas tinha demonstrado, com sangue e também com o aço. Sua palavra era lei, e todos os que se encontravam nessa habitação o respeitavam.

Dante ficou em pé, brincou com a Malebranche entre seus compridos e hábeis dedos e a embainhou com um ágil gesto.
—Faltam quatro horas para que caia o sol. Vou. —Olhou de soslaio a Rio e a Conlan.
— Alguém tem vontades de treinar antes de que as coisas fiquem interessantes?
Os dois machos se levantaram rapidamente, animados pela idéia, e detrás dirigir uma respeitosa saudação a Lucan, os três grandes guerreiros sairam do laboratório técnico e percorreram o corredor em direção a zona de treinamento do edifício.
—Tem algo mais sobre esse renegado de Seattle? —perguntou- Lucan a Gideon enquanto as portas de cristal se fechavam, quando ambos ficaram sozinhos no laboratório.
— Agora mesmo estou realizando uma comparação cruzada de todas as bases de registros. Só demorará um minuto em dar algum resultado. — Teclou umas ordens no computador.
— Bingo. Tenho uma coincidência procedente de uma informação GPS da Costa Oeste. Parece informação reunida anteriormente ao arresto. Joga uma olhada.
A tela do monitor se encheu com uma série de imagens noturnas por satélite de uma embarcação de pesca comercial aos subúrbios de Puget Sound. A imagem se centrava em um Sedan comprido e negro que se encontrava detrás de um maltratado edifício situado ao final do dique. Apoiado contra a porta posterior se encontrava o renegado que tinha conseguido escapar de Lucan fazia uns dias. Gideon passou rapidamente uma série de imagens que lhe mostravam conversando longamente, ou isso parecia, com alguém que se encontrava oculto detrás dos cristais negros dos guichês. À medida que as imagens avançavam, viram que a porta traseira do carro se abria e o renegado entrava no carro.
—Detenha —disse Lucan, fixando o olhar na mão do passageiro oculto.
— Pode deter todo este fotograma? Aumenta a zona da porta aberta do carro.

—Vou tentar .
A imagem aumentou de tamanho, mas Lucan quase não necessitava um aumento da imagem para confirmar o que via. Quase não se distinguia, mas aí estava. Na parte de pele exposta entre a grande mão do passageiro e o punho francês da camisa de manga larga se viam uns impressionantes dermoglifos que lhe delatavam como um membro de primeira geração.
Gideon também os tinha visto nesse momento.
—Maldição, olhe isso —disse, cravando a vista no monitor—. Nosso imbécil de Seattle desfrutava de uma companhia interessante.
—Possivelmente ainda o está fazendo —repôs Lucan.
Não havia nada pior que um renegado que tivesse sangue de primeira geração nas veias. Os membros de primeira geração caíam vitima da sede de sangue com maior rapidez que as últimas geração da raça, e eram uns temíveis inimigos. Se algum deles tinha intenção de liderar aos renegados e lhes conduzir a um levantamento, isso significaria o princípio de uma guerra infernal. Lucan já havia lutado em uma batalha assim uma vez, fazia muito tempo. Não desejava voltar a fazê-lo.
—Imprime tudo o que conseguiste, incluídos as ampliações de eroglifos.
—Já estão.
—Qualquer outra coisa que encontre sobre esses dois indivíduos, passa-me diretamente. Encarregarei-me disto pessoalmente.
Gideon assentiu com a cabeça, mas o olhar que lhe dirigiu por cima da arreios dos óculos expressava dúvida.

—Não pode pretender te encarregar de tudo isto você sozinho, já sabe.
Lucan lhe cravou um olhar escuro.
—Quem o diz?
Sem dúvida, o vampiro tinha em sua cabeça de gênio todo um discurso aberto da probabilidade e da lei da estatística, mas Lucan não se sentia de humor para lhe escutar. A noite se aproximava, e com ela se aproximava outra oportunidade de caçar a seus inimigos. Precisava empregar as horas que ficavam para esclarecer a cabeça, preparar as armas e decidir onde era melhor atacar. O depredador que havia nele se sentia impaciente e faminto, mas não por causa da batalha contra os Renegados.
Em lugar disso, Lucan se deu conta de que seus pensamentos se desviavam para um tranqüilo apartamento do Beacon Hill, para uma visita que nunca deveria ter realizado. Ao igual que o aroma de jasmim, o recordava da suavidade e a calidez da pele de Gabrielle, enredava-se com seus sentidos. Ficou tenso e seu sexo ficou em ereção somente pensando nela.
Foder.
Essa era a razão pela qual não a tinha posto sob o amparo da raça, aqui, no edifício. A certa distancia, ela era uma distração. Mas se encontrava em uma habitação próxima, seria um maldito desastre.
—Está bem? —perguntou-lhe Gideon, dando-a volta com a cadeira e ficando de cara a Lucan.
— É uma fúria muito grande a que tem em topo, amigo.
Lucan se arrancou da cabeça esses escuros pensamentos e se deu conta de que as presas lhe tinham alargado e que a visão lhe havia agudizado com o fechamento das pupilas. Mas não era a fúria o que lhe transformava. Era a luxúria, e tinha que saciá-la, antes ou depois. Com essa idéia lhe pulsando nas têmporas, Lucan tomou o telefone celular de Gabrielle, que se encontrava em cima de uma das mesas, e saiu do laboratório.

 

 

CONTINUA

Capítulo quatro

Gabrielle podia contar com uma só mão os sonhos erótico que tinha tido durante toda sua vida, mas nunca tinha experiente nada tão quente —por não dizer real— como a fantasia de orgia sexual que tinha desfrutado da noite anterior, cortesia de um Lucan Thorne virtual. Seu fôlego tinha sido a brisa noturna que penetrava pela janela aberta de seu dormitório do piso de acima. Seu cabelo era a escuridão de obsidiana que enchia as clarabóias, sobre sua cama. Seus olhos chapeados, o brilho pálido da lua. Suas mãos eram as ligaduras de seda de sua colcha, que enredavam seus pulsos e tornozelos, abriam seu corpo debaixo do dele e a sujeitavam com força.
Sua boca era puro fogo que lhe queimava cada centímetro da pele e a consumia como uma chama invisível. «Jasmim», tinha-a chamado ele, e o suave som dessa palavra vibrava contra a umidade de sua pele, o quente fôlego dele formava redemoinhos os suaves cachos de pêlo de sua entre perna.
Ela se tinha retorcido e tinha gemido dominada pela habilidade da língua dele, que a tinha submetido a uma tortura que ela desejava que fosse infinito. Mas tinha terminado, e muito logo. Gabrielle se tinha despertado em sua cama, só na escuridão, pronunciando quase sem fôlego o nome de Lucan, com o corpo esgotado e inerte, dolorido pelo desejo.
Ainda lhe doía o desejo e o que mais lhe preocupava era o fato de que o misterioso detetive Thorne lhe tivesse dado plantão.
Não era que seu oferecimento de passar por seu apartamento essa noite fosse nada que se parecesse com um encontro, mas ela tinha estado esperando voltar a lhe ver. Tinha interesse em saber mais a respeito dele dado que se havia mostrado tão inclinado a decifrá-la com um simples olhar. Além de conseguir algumas respostas mais sobre o que tinha presenciado essa noite fora da discoteca, Gabrielle tinha desejado conversar de algo mais com Lucan, possivelmente tomar um pouco de vinho e algo para jantar. O fato de que se depilou as pernas duas vezes e de que se pôs uma roupa interior negra e atrativa sob a camisa de seda de manga larga e dos escuros jeans era puramente acidental.

Gabrielle lhe tinha esperado até bem passadas as nove e então abandonou a idéia e chamou Jamie para ver se ele queria jantar com ela no centro da cidade.
Agora, sentado diante dela, ao outro lado da mesa, nessa sala cheia de janelas do bistro Ciao Bela, Jamie deixou na mesa a taça de pinot noire e olhou o prato de frutos do mar que ela quase não havia tocado.
—Estiveste enjoando a mesma parte da comida pelo prato durante os últimos dez minutos, carinho. Você não gosta?
—Sim, é genial. A comida sempre é incrível aqui.
—Então, é a companhia o que te desagrada?
Ela levantou o olhar para ele e negou com a cabeça.
—Absolutamente. Você é meu melhor amigo, já sabe.
—Certo —assentiu ele.
— Mas não me posso comparar com seu sonho erótico.
Gabrielle se ruborizou ao dar-se conta de que um dos clientes que se encontrava na mesa do lado olhava para eles.
—Às vezes é horrível, sabe? —disse a Jamie em um sussurro.
— Não deveria haver lhe contado isso.
—OH, carinho. Não se sinta incômoda. Se me tivessem dado uma moeda cada vez que me despertei excitado, chiando o nome de algum cara sexy...
—Eu não chiei seu nome. —Não, tinha-o pronunciado com o folego entrecortado e em um gemido, tão enquanto estava na cama como enquanto estava na ducha ao cabo de pouco tempo, ainda incapaz de tirar do corpo a sensação de Lucan Thorne.
— Era como se ele estivesse ali, Jamie. Justo ali, em minha cama, tão real que eu podia lhe tocar.
Jamie suspirou.
—Algumas garotas têm toda a sorte do mundo. A próxima vez que te encontre com seu amante em sonhos, seja generosa e me manda isso quando tenha terminado.
Gabrielle sorriu, sabendo que seu amigo não andava escasso no apartado romântico. Durante os últimos quatro anos tinha tido uma feliz relação monógama com o David, um vendedor de antiguidades que se encontrava nesses momentos fora da cidade por motivos de trabalho.
—Quer saber o que é o mais estranho disso tudo , Jamie? Aos levantar, esta manhã, a porta de entrada não estava fechada com chave.
— E?
—E você me conhece, nunca a deixo aberta.
As cuidadas e depiladas sobrancelhas do Jamie se juntaram, franzindo o cenho.
—O que quer dizer, que cre que esse cara forçou a porta de sua casa enquanto dormia?
—Parece uma loucura, sei. Um detetive da polícia que vem a minha casa a meia-noite para me seduzir. Devo estar perdendo a cabeça.
Disse-o com tom despreocupado, mas não era a primeira vez que se questionava em silêncio sua própria prudência. Não era a primeira vez nem muito menos. Com gesto ausente, brincou um momento com a manga da blusa enquanto Jamie a observava. Ele se sentia preocupado nesse momento, o qual somente aumentava a inquietação que Gabrielle sentia sobre o tema de sua possível instabilidade mental.

—Olhe, carinho. Passaste muita tensão do fim de semana. Isso pode provocar coisas estranhas na cabeça. Estiveste preocupada e confundida. Possivelmente se esqueceu de fechar a porta.
—E o sonho?
—Somente isso... Um sonho. Somente se trata de sua mente curvada que tenta tranqüilizar-se, relaxar-se.
Gabrielle baixou a cabeça em um gesto automático de afirmação.
—Exato. Estou segura de que só é isso.
Se pudesse aceitar que a explicação de tudo era tão simples como seu amigo fazia que parecesse... Mas uma sensação na boca do estômago rechaçava a idéia de que ela tivesse esquecido de fechar a porta. Ela nunca faria uma coisa assim, simplesmente, por estressada e confundida que estivesse.
—Né. —Jamie alargou o braço por cima da mesa para tomar a mão.
— Vais estar bem, Gab. Já sabe que pode me chamar a qualquer hora, verdade? Estarei contigo, sempre o estarei.
—Obrigado.
Lhe soltou a mão, tomou o garfo e fez um gesto em direção a seu fruto do mar.
—Bom, vais comer um pouco mais ou posso começar a limpar seu prato agora?
Gabrielle trocou seu prato meio cheio pelo dele, completamente vaziu.
—Tudo para ti.

Enquanto Jamie se concentrava na comida fria, Gabrielle apoiou o queixo em uma mão e tomou um comprido gole de sua taça de vinho. Enquanto bebia, brincou com os dedos em cima das ligeiras marcas que descobriu no pescoço essa mesma manhã depois de tomar banho. A porta aberta não era o mais estranho que se encontrou essa manhã: as duas marca idênticas que se viu debaixo da orelha se levaram o prêmio, sem dúvida nenhuma.
Essas pequenas perfurações não tinham sido o bastante profundas para lhe transpassar a pele, mas aí estavam. Havia duas, a uma distância equitativa, no ponto onde o pulso lhe pulsava com mais força quando o apalpava com os dedos. Ao princípio se disse que possivelmente havia se arranado a si mesmo enquanto dormia, possivelmente a causa do sonho estranho que tinha tido.
Mas, entretanto, essas marcas não pareciam arranhões. Pareciam... outra coisa.
Como se alguém, ou algo, tivesse estado a ponto de lhe morder a carótida.
Uma loucura.
Isso era, e tinha que deixar de pensar dessa maneira antes de fazer-se mais mal a si mesmo. Viu-se obrigada a centrar-se e a deixar de recrear-se em fantasias delirantes sobre visitantes a meia-noite e monstros de filme de terror que não era possível que existissem na vida real. Se não tomava cuidado, acabaria como sua mãe biológica.
—OH, Meu deus, me dê uma bofetada agora mesmo porque sou um completo e profundo imbecil —exclamou Jamie de repente, interrompendo seus pensamentos.
— Continuo esquecendo-me de lhe dizer isso ontem recebi uma chamada na galeria sobre suas fotografias. Um peixe gordo do centro da cidade está interessado em uma amostra privada.
—Sério? De quem se trata?
Ele se encolheu de ombros.

—Não sei, carinho. A verdade é que não falei com o possível comprador, mas a partir da atitude estirada do ajudante do tipo, diria que seja quem é seu admirador, ele ou ela— nada na abundância do dinheiro. Tenho uma entrevista em um dos edifícios do distrito financeiro amanhã de noite. Falo-te de um escritório em uma cobertura, querida.
—OH, Meu deus —exclamou ela com incredulidade.
—Acredita. Super bom, amiga. Muito em breve será muito para um pequeno vendedor de arte como eu —brincou ele, compartilhando a excitação com ela.
Era difícil não sentir-se intrigada, especialmente depois de tudo o que lhe tinha passado durante os últimos dias. Gabrielle tinha conseguido uns fiéis e respeitáveis admiradores e ganhou uns quantos bons elogios por seu novo trabalho, mas uma amostra privada para um comprador desconhecido era o máximo.
—Que peças te pediu que levasse?
Jamie levantou a taça de vinho e brindou com a dela com um gesto burlesco de saudação.
—Todas, senhorita Importante. Cada uma das peças da coleção.
No telhado do um velho edifício de tijolos do ocupado distrito dos teatros da cidade, a lua se refletia na risada letal de um vampiro embelezado de negro. Agachado em sua posição perto da beirada, o guerreiro da raça girou a escura cabeça e levantou uma mão para fazer um sinal.
«Quatro renegados. Uma presa humana se dirige diretamente para eles.»
Lucan lhe dirigiu um gesto afirmativo com a cabeça a Dante e se afastou da saída de emergência do quinto piso, que tinha sido sua posição de vigilância durante a última meia hora. Baixou até a rua de abaixo com um ágil movimento, aterrissando em silêncio, como um gato. Levava uma dupla folha de combate nas costas que lhe sobressaía pelos ombros como os ossos das asas de um demônio. Lucan desencapou a arma de titânio quase sem emitir nenhum som e penetrou nas sombras da estreita rua lateral para esperar os acontecimentos dessa noite.

Eram ao redor das onze, várias mais tarde que a hora em que deveria ter passado pelo apartamento de Gabrielle Maxwell para lhe devolver o telefone celular, tal e como lhe disse que o faria. O aparelho ainda estava em posse de Gideon, no laboratório técnico, que estava processando as imagens para as contrastar com a Base de dados de Identificação Internacional da Raça.
Quanto a Lucan, não tinha nenhuma intenção de devolver o telefone celular a Gabrielle, nem em pessoa nem de nenhuma outra maneira. As imagens do ataque dos renegados não tinham que estar em mãos de nenhum ser humano, e depois da decepção que se levou no dormitório dela, quanto mais longe estivesse dessa mulher, melhor.
«Uma maldita companheira de raça.»
Deveria havê-lo sabido. Agora que o pensava, ela tinha certas características que deveriam lhe haver dado a pista disso desde o começo. Como sua habilidade de ver através do véu do controle mental vampírico que enchia essa noite a sala de baile da discoteca. Ela tinha visto os renegados —ávidos de sangue no beco, e nas imagens indecifráveis do telefone celular— quando outros seres humanos não os havia podido ver. Logo, em seu apartamento, tinha demonstrado que tinha resistência ante a sugestão mental de Lucan para dirigir seus pensamentos, e ele suspeitava que se tinha sucumbido, tinha-o feito mais por causa de um desejo consciente do prazer que ele supunha para ela que por nenhuma outra coisa.
Não era nenhum secredo que as fêmeas humanas com o código genético único de companheiras de raça possuíam uma inteligência aguda e uma saúde perfeita. Muitas delas tinham uns assombrosos talento paranormal que aumentariam quando a companheira de raça se unisse por sangue com um macho vampiro.
Quanto a Gabrielle Maxwell, parecia possuir o dom de ter uma vista especial que lhe permitia ver o que o resto de seres humanos não podia ver, mas até onde chegava essa capacidade de visão era algo que ele não podia adivinhar. Lucan queria sabê-lo. Seu instinto de guerreiro exigia chegar ao fundo do assunto sem nenhuma demora.

Mas envolver-se com essa mulher, da forma que fosse, era o último que ele necessitava.
Então, por que não podia tirar-se de cima seu doce aroma, a suavidade de sua pele... sua provocadora sensualidade? Odiava o fato de que essa mulher tivesse despertado nele tal fragilidade, e seu estado de ânimo atual dificilmente melhorava pelo fato de que todo seu corpo doía pela necessidade de alimentar-se.
O único ponto claro essa noite era o constante ritmo dos saltos das botas dos renegados no pavimento, em algum lugar perto da entrada da rua lateral, que se dirigiam para ele.
O ser humano girou a esquina: encontrava-se a vários passos a frente deles, e era um homem. Jovem, saudável, vestia uma calça negra e alvo e uma túnica branca manchada que cheirava a cozinha de restaurante e a um suor repentino de ansiedade. O cozinheiro olhou por cima do ombro e viu que os quatro vampiros foram ganhando terreno. Um palavrão pronunciado em tom nervoso e atravessou a escuridão.
O humano voltou a girar a cabeça e caminhou mais depressa, com os punhos apertados e ambos grudado no corpo e os olhos muito abertos e cravados na estreita greta do asfalto que havia sob seus pés.
—Não faz falta que corra, homenzinho —lhe provocou um dos Renegados em um tom rouco como o som da areia fina contra o chão.
Outro deles emitiu um chiado agudo e se colocou a cabeça de seus três companheiros.
—Sim, não te escape agora. Tampouco é que vás chegar muito longe.

As risadas dos renegados ressonaram nos edifícios que flanqueavam a estreita rua.
—Merda —sussurrou o ser humano quase sem respiração. Não se voltou somente continuou para frente a passo rápido, a ponto quase de lançar-se a uma frenética, mas inútil, carreira.
À medida que o aterrorizado ser humano lhe aproximava, Lucan saiu da escuridão dando um passo e ficou em pé com as pernas abertas com os braços abertos a ambos os lados de seu corpo, bloqueou a rua com seu corpo ameaçador e suas espadas as gema. Dirigiu um frio sorriso aos renegados com as presas ameaçadoras, antecipando a luta que se morava.
—Boa tarde, senhoritas.
—OH, Jesus! —exclamou o ser humano. Deteve-se de forma brusca e olhou a Lucan o rosto com expressão de horror. Os joelhos cederam e caiu no chão,
— Merda!
—Te levante. —Lucan lhe dirigiu um breve olhar enquanto o jovem se esforçava por ficar em pé.
— Vai daqui.
Esfregou uma das afiadas folhas contra a outra diante dele e encheu a rua em sombras com o áspero som metálico do aço endurecido e letal. Detrás dos quatro renegados, Dante caiu ao asfalto e se agachou antes de levantar seu metro noventa e oito de altura. Não levava nenhuma espada, mas ao redor da cintura levava um cinturão de pele no qual levava sujeitas uma série de armas de mão letais, entre elas um par de folhas curvadas e afiadas como folhas de barbear que se convertiam em uma extensão infernal de suas mãos, incrivelmente rápidas. Malebranche ou prolongações diabólicas as chamava, e efetivamente eram umas garras do diabo. Dante as teve colocadas nas mãos em um momento: era um vampiro que sempre estava a ponto para entrar em um combate corpo a corpo.
—OH, Meu deus —gritou o ser humano com voz trêmula ao dar-se conta do perigo que lhe rodeava. Olhou a Lucan com a boca aberta e, com mãos trementes, rebuscou entre suas roupas tirou uma carteira do bolso traseiro da calça e a atirou ao chão.
— Toma-a, cara! Pode ficar mas não me mate, suplico-lhe isso!

Lucan manteve os olhos fixos nos quatro renegados, que nesses momentos estavam tomando posições e preparavam as armas.
—Te largue daqui. Agora.
—É nosso —vaiou um dos renegados. Uns olhos amarelos se cravaram fixamente em Lucan com puro ódio, as pupilas se reduziram a duas famintas ranhuras verticais. De suas largas presas lhe gotejava a saliva, outra prova do grande vício do vampiro pelo sangue.
Ao igual que os seres humanos podiam acabar dependendo de um poderoso narcótico, a sede de sangue também era destrutivo para a raça. A fronteira entre a necessidade de satisfazer a fome e a constante overdose de sangue se cruzava com facilidade. Alguns vampiros entravam nesse abismo de forma voluntária, enquanto que outros sucumbiam a essa enfermidade por inexperiência ou por falta de disciplina pessoal. Se chegava muito longe, e durante muito tempo, um vampiro se convertia na categoria de renegado, igual a esses ferozes monstros que grunhiam frente a Lucan nesses momentos.
Ansioso por convertê-los em cinzas, Lucan juntou com um golpe seco as duas folhas e cheirou a faísca de fogo que se criou quando os dois aços se encontraram.
O ser humano ainda se encontrava ali, atordoado pelo medo, dirigindo primeiro a cabeça para os renegados, que avançavam para ele, e agora para Lucan, que lhes esperava com atitude inquebrável. Esse momento de dúvida ia custar lhe a vida, mas Lucan apartou esse pensamento com frieza. O ser humano não era assunto dele. Quão único importava era eliminar a esses chupadores aditivos de sangue e ao resto dos doentes de sua raça.
Um dos renegados se passou uma mão suja por cima dos lábios babantes.
—Te aparte, idiota. Deixa que nos alimentemos.

—Esta noite não —grunhiu Lucan.
— Não em minha cidade.


—Sua cidade? —O resto deles se burlou e o renegado que ia em cabeça cuspiu no chão, Aos pés de Lucan.
— Esta cidade nos pertenece . Dentro de muito pouco, possuiremo-la por completo.
—Exato —acrescentou outro dos quatro.
— Assim parece que é você quem entrou em um território alheio.
Finalmente, o ser humano recuperou certa inteligência e começou a retirar-se, mas não chegou muito longe. Com uma velocidade incrível, um dos renegados alargou uma mão e agarrou ao homem pela garganta. Ele levantou do chão e lhe segurou no ar: as botas altas do homem ficaram a dois centímetros do chão. O ser humano grunhiu e suplicou, lutando com ferocidade enquanto o renegado lhe apertava o pescoço com mais força, lhe estrangulando lentamente com a mão nua. Lucan o observou, imperturbável, inclusive quando o vampiro deixou cair sua retorcida presa e lhe fez um buraco no pescoço com os dentes.
Pela extremidade do olho, Lucan viu que Dante se aproximava sigilosamente aos renegados por detrás. Com as presas estendidas, o guerreiro se lambeu os lábios, ansioso por entrar na tarefa. Não ia sentir se defraudado. Lucan atacou primeiro, e logo a rua explodiu com um estrondo de metal e de ossos quebrados.
Enquanto Dante lutava como um demônio saído do inferno —com as diabólicas folhas extensíveis cintilando a cada movimento, soltando gritos de guerra que rasgavam a noite—, Lucan manteve um frio controle e uma precisão letal. Um a um, os quatro renegados sucumbiram sob os golpes de castigo dos guerreiros. O beijo das folhas de titânio se expandia como um veneno a toda velocidade pelo corrompido sistema sangüíneo dos renegados, acelerando sua morte e provocando as rápidas mudanças nos estados de decomposição característicos da morte dos renegados.
Quando tiveram terminado com seus inimigos, quando seus corpos se reduziram de carne a osso e de osso a cinza fumegante, Lucan e Dante foram ver os restos do outro açougue da rua.
O ser humano estava imovel e sangrava profundamente por uma ferida que tinha na garganta.

Dante se agachou ao lado do homem e cheirou seu destroçado corpo.

—Está morto. Ou o vai estar dentro de um minuto.
O aroma do sangue derramado encheu as fossas nasais de Lucan com a força de um murro no ventre. Suas presas, estendidas já por causa da ira, agora pulsavam pelo desejo de alimentar-se. Baixou a vista e observou com desgosto ao humano moribundo. Apesar de que tomar o sangue era necessário para ele, Lucan desprezava a idéia de aceitar os refugos dos renegados, tivessem a forma que tivessem. Preferia conseguir o seu sustento dos serviçais anfitriões que ele mesmo elegia ali onde podia, apesar de que esses escassos bocados somente conseguiam despertar uma fome mais profunda.
Antes ou depois, todo vampiro tinha que matar.
Lucan não tentava negar sua natureza, mas nas ocasiões em que matava, o fazia seguindo sua própria eleição, seguindo sua próprias regras. Quando procurava uma presa, elegia principalmente criminosos, traficantes de droga, assassinos e outra gente de má vida. Era judicioso e eficiente e nunca matava pelo prazer de fazê-lo. Todos os da raça seguiam um código de honra similar; isso era o que lhes distinguia de seus irmãos os renegados, que se tinha separado deles ao rebelar-se a essa lei.
Sentiu que lhe esticava o ventre: o aroma do sangue voltou a fazer-se presente em suas fossas nasais. A saliva lhe começou a gotejar da boca ressecada.
Quando se tinha alimentado pela última vez?
Não podia recordá-lo: fazia bastante tempo. Vários dias, pelo menos, e não o suficiente para que lhe durasse. Tinha pensado acalmar parte da fome —tão carnal como de sangue— com a Gabrielle Maxwell a outra noite, mas essa idéia tinha tomado um giro repentino. Agora tremia por causa da necessidade de alimento, e essa necessidade era muito forte para pensar em algo exceto em cobrir as necessidades básicas de seu corpo.

—Lucan. — Dante apertou os dedos no pescoço do homem, procurando o pulso. As presas do vampiro estavam estendidos, afiados depois da batalha e por causa da reação fisiológica ante o forte aroma desse líquido escarlate que emanava do homem.
— Se esperarmos muito mais, o sangue terá morrido também.
E não lhes serviria de nada, posto que somente o sangue fresco que emanava das veias dos seres humanos podia saciar a fome de um vampiro. Dante esperou, inclusive apesar de que era óbvio que quão único desejava era baixar a cabeça e tomar sua parte desse homem, que tinha sido muito idiota para escapar quando tinha tido a oportunidade de fazê-lo.
Mas Dante esperaria, inclusive embora tivesse que deixar esbanjar esse sangue, dado que era um protocolo não escrito que as gerações mais jovens de vampiros não se alimentavam na presença dos mais velhos, especialmente se esse vampiro mais velho pertencia a categoria de «primeira geração» da raça e estava faminto.
A diferencia de Dante, o pai de Lucan era um dos Antigos, um dos oito guerreiros extraterrestres que tinham chegado de um planeta escuro e distante e se estrelaram milhares de anos atrás contra a superfície inóspita e implacável do planeta Terra. Para sobreviver, alimentaram-se do sangue dos seres humanos e tinham dizimado populações inteiras por causa de sua fome e de sua bestialidade. Em alguns estranhos casos, esses conquistadores estrangeiros se haviam emparelhado com êxito com fêmeas humanas, as primeiras companheiras de raça, que tinham gerado uma nova geração da raça dos vampiros.
Esses selvagens antepassados de outro mundo tinham desaparecido por completo, mas sua origem ainda continuava vivendo, como Lucan e uns quantos mais disseminados pelo mundo. Representavam o estádo mais próximo a realeza na sociedade dos vampiros: eram respeitados e não pouco temidos. A grande maioria dos da raça eram jovens, nascidos de uma segunda, terceira e, alguns, de uma décima geração.
A fome era mais urgente nos de «primeira geração». Também o era a propensão a ceder ante a sede de sangue e a converter-se em um renegado. A raça tinha aprendido a viver com esse perigo. A maioria deles tinha aprendido a dirigi-lo: tomavam sangue somente quando o necessitavam e nas mínimas quantidades necessárias para a sustentação. Tinham que fazê-lo assim, porque uma vez apanhados pela sede de sangue, não havia maneira de voltar atrás.

Os olhos afiados de Lucan caíram sobre a retorcida figura humana que ainda respirava ligeiramente, tombada no pavimento do chão. Ouviu um grunhido animal que provinha de sua própria garganta. Quando Lucan se aproximou com compridos passados em direção ao aroma do sangue vivo vertido no chão, Dante fez uma ligeira saudação com a cabeça e se apartou para permitir a seu superior que se alimentasse.


Capítulo cinco
Ele nem sequer se preocupou de chamá-la e lhe deixar uma mensagem a outra noite.
Típico.
Provavelmente tinha um encontro muito importante com seu mando à distancia e seu programa de poderes paranormais. Ou possivelmente, quando se houve marchado de seu apartamento a outra tarde, tinha conhecido a alguém mais e tinha recebido uma oferta mais interessante que devolver o telefone celular a Gabrielle no Beacon Hill.
Diabos, inclusive era possível que estivesse casado, ou que tivesse alguma relação com alguém. Não o tinha perguntado, e se o houvesse preguntado, isso não tivesse garantido que lhe houvesse dito a verdade. Lucan Throne, certamente, não era distinto a nenhum homem. Exceto pelo fato de que era... diferente.
Pareceu-lhe que era muito diferente a qualquer a quem houvesse conhecido até esse momento. Um homem muito reservado, quase fechado, que dava uma sensação extranhamente perigosa. Ela não podia imaginar sentado em uma poltrona diante do televisor, igual que tampouco lhe podia imaginar junto em uma relação séria de namoro, por não falar de uma esposa e uma família. O qual voltava a recordar a idéia de que seguramente ele teria recebido uma oferta mais interessante e tinha decidido desprezar a ela. E essa idéia lhe doía muito mais do que deveria.
«te esqueça dele», repreendeu-se Gabrielle quase sem fôlego enquanto aproximava o Cooper Mini negro à uma lateral da tranqüila rua local e desligava o motor. A bolsa com sua câmara e seu equipamento fotográfico se encontrava no assento do co-piloto. Agarrou-a, e tomou tambem uma pequena lanterna do porta-luvas, guardou as chaves na jaqueta e saiu do carro.

Fechou a porta sem fazer ruído e jogou uma rápida olhada ao seu redor. Não havia nem uma alma a vista, o qual não era surpreendente dado que eram quase as seis da manhã e que o edifício, no qual estava a ponto de entrar de forma ilegal e de fotografar, fazia vinte anos que estava fechado. Andou seguindo o caminho de pavimento gretado e girou a direita, cruzou uma sarjeta e subiu até um terreno cheio de carvalhos que formavam como uma densa cortina ao redor do velho hospital psiquiátrico.
O amanhecer começava a elevar-se pelo horizonte. A luz era fantasmagórica e etérea, como uma neblina úmida rosada e azulada que amortalhava essa estrutura gótica com um brilho de outro mundo. Apesar de estar pintado em tons claros, esse lugar tinha um ar ameaçador.
O contraste era o que a tinha atraído até essa localização essa manhã. Tomar as imagens ao anoitecer tivesse sido a eleição mais natural para concentrar-se na qualidade ameaçadora dessa estrutura abandonada. Mas era a justaposição da cálida luz do amanhecer com o tema frio e sinistro o que atraía a Gabrielle enquanto se detinha para tirar a câmara da bolsa que tinha pendurada do ombro. Tirou umas seis fotos e logo voltou a pôr a tampa a lente para continuar a caminhada em direção ao fantasmagórico edifício.
Uma alta cerca de arame apareceu diante dela, impedindo que os exploradores curiosos como ela entrassem na propriedade. Mas Gabrielle sabia que tinha um ponto débil escondido. Tinha-o descoberto a primeira vez que tinha vindo ao lugar para tirar umas fotos de exterior. Se apressou seguindo a linha da cerca até que chegou ao extremo sudoeste da mesma, onde se agachou até o chão. Ali, alguém tinha talhado discretamente o arame e tinha formado uma abertura o bastante grande para que um adolescente curioso pudesse abrir-se passo, ou para que uma fotógrafa decidida, e que tinha tendência a interpretar os sinais de «Não passar» e «Só pessoal autorizado» como sugestões amistosas em lugar de leis inquebráveis, penetrasse por ela.
Gabrielle abriu a parte de arame talhado, lançou o equipamento para o outro lado e se arrastou como uma aranha, sobre o ventre, Através da baixa abertura. Quando ficou em pé, ao outro lado da cerca, sentiu que as pernas lhe tremiam por causa de uma repentina apreensão. Deveria estar acostumada a este tipo de operações encobertas, de explorações em solitário: muito freqüentemente, sua arte dependia de sua coragem para encontrar lugares desolados, que alguns qualificariam de perigosos. Esse arrepiante psiquiátrico podia, certamente, qualificar-se como perigoso,
pensou enquanto deixava vagar o olhar por um grafite pintado com aerosol ao lado da porta de entrada que dizia más vibrações.
—Já pode dizê-lo —sussurrou em voz muito baixa. Enquanto se sacudia as agulhas de pinheiro e a terra da roupa, com gesto automático levou uma mão até o bolso dianteiro de seu jeans em busca do celular. Não estava ali, é obvio, já que ainda estava em poder do detetive Thorne. Outra razão para sentir-se aborrecida com ele por havê-la feito esperar a outra noite.
Possivelmente não deveria ser tão dura com o menino, pensou, repentinamente desejosa de concentrar-se em algo distinto ao mau pressentimento que a atendia agora que se encontrava dentro do terreno do psiquiátrico. Possivelmente Thorne não se apresentou porque algo lhe tinha acontecido no trabalho.
E se tinha sido ferido em cumprimento do dever e não acudiu tal e como tinha prometido porque se encontrava de alguma forma encapacitado de chamar ? Possivelmente não tinha chamado para desculpar-se nem para explicar sua ausência porque não podia fazê-lo fisicamente.
Exato. E possivelmente ela tinha comprovado seu próprio cérebro com as bra-gás do mesmo segundo em que tinha posto os olhos nesse homem.
Burlando-se de si mesmo, Gabrielle recolheu suas coisas e caminhou em direção a imponente arquitetura do edifício principal. Uma pálida pedra calcária se elevava para o céu em uma levantada torre central, remota em uns picos e agulhas dignos da melhor catedral gótica. Ao seu redor havia um extenso recinto de paredes de tijolo vermelho, cujo teto estava composto por telhas ordenadas em um desenho como de asas de morcego, comunicado entre eles por passarelas e arcos que formavam um claustro coberto.
Mas por impressionante que fosse essa estrutura, não havia forma de tirar-se de cima a sensação de uma ameaça latente, como se mil pecados e mil segredos se apertassem detrás dessas descascadas paredes e janelas com parte de cristais quebrados. Gabrielle caminhou até o ponto onde a luz era melhor e tomou umas quantas fotos. Não havia nenhuma maneira de entrar por aí: a porta principal estava fechada com ferrolho e com travessas de madeira. Se queria entrar para realizar algumas fotos do interior —e, definitivamente, sim queria—, tinha que dar a volta até a parte traseira e provar sorte com alguma janela que estivesse a pé de rua ou com alguma porta do porão.
Baixou deslizando-se por um aterro em pendente para a parte posterior do edifício e encontrou o que estava procurando: umas portinhas de madeira ocultavam três janelas que era muito provável que se abrissem a uma zona de serviço ou a um armazém. Os ferrolhos estavam oxidados, mas não estavam fechados e se abriram com facilidade quando se serve de ajuda de uma pedra que encontrou ali ao lado. Atirou da coberta de madera das janelas, levantou o pesado painel de cristal e o escorou, aberto, com os ferrolhos.
Fez uma varredura geral iluminando-se com a lanterna para assegurar-se de que o lugar estava vazio e de que não ia desabar sobre sua cabeça imediatamente, e penetrou através da abertura. Ao saltar do marco da janela, o solado de suas botas pisaram em cristais quebrados e pó e lixo acumulados durante anos. Esse porão de blocos de concreto tinha uns três metros e meio de comprimento e desaparecia na escura zona que ficava sem iluminar. Gabrielle dirigiu o magro feixe de luz de sua lanterna para as sombras do outro extremo do espaço. Percorreu com ele a parede e o deteve sobre uma velha porta de serviço em cuja superfície se podia ler o seguinte pôster: acesso restringido.
—O que te aposta? —sussurrou enquanto se aproximava da porta. Efetivamente, não estava fechada com chave.
Abriu-a e projetou a luz para o outro lado da porta, onde se abria um comprido corredor parecido a um túnel. Uns suportes de fluorescente quebrados penduravam do teto; alguns dos painéis que os haviam coberto tinham caido sobre o chão de qualidade industrial, onde jaziam quebrados e cobertos de pó. Gabrielle entrou nesse espaço escuro, insegura do que estava procurando e com certo temor do que poderia encontrar nas desertas tripas desse psiquiátrico.
Passou por diante de uma porta aberta do corredor e a luz do flash iluminóu uma cadeira de dentista de vinil vermelho, um pouco gasta, que se encontrava colocada no centro da habitação, como se esperasse ao próximo paciente. Gabrielle tirou a câmara de sua capa e tomou um par de rápidas fotos. Logo continuou para diante e passou ante uma série de habitações de revisão e de tratamento. Devia encontrar-se na ala médica do edifício.

Encontrou uma escada e subiu dois lances até que chegou, para sua complacencia, a torre central onde umas grandes janelas deixavam entrar a luz da manhã em generosas quantidades.
Através da lente da câmara olhou por cima de amplos terrenos e pátios flanqueados por elegantes edifícios de tijolo e de pedra calcária. Realizou umas quantas fotos do lugar, apreciando tanto sua arquitetura como o quente jogo que a luz do sol fazia contra tantas sombras fantasmagóricas. Resultava estranho olhar para fora do confinamento de um edifício que antigamente tinha albergado a tantas almas perturbadas. Nesse inquietante silêncio, Gabrielle quase podia ouvir as vozes dos pacientes, de gente que, simplesmente, não tinha a possibilidade de marchar-se caminhando dali como ela faria então.
Gente como sua mãe biológica, uma mulher a quem Gabrielle não tinha conhecido nunca e da qual não sabia nada mais que o que tinha ouvido de menina nas conversações apagadas que os trabalhadores sociais e as famílias de acolhida mantiveram e que ao final, uma por uma, devolveram ao sistema como se fosse um animal doméstico que houvesse demonstrado ser mais problemático do que se podia suportar. Tinha perdido a conta do número de lugares aonde a tinham enviado a viver, mas as queixa contra ela quando a devolviam sempre eram as mesmas: inquieta e introvertida, fechada e desconfiada, socialmente disfuncional com tendência a atitudes autodestrutivas. Tinha ouvido os mesmos qualificativos dirigidos para sua mãe, aos quais acrescentavam as categorias de paranóica e delirante.
Quando os Maxwell apareceram em sua vida, Gabrielle tinha passado dezenove dias em uma casa de acolhida sob a supervisão de um psicólogo designado pelo Estado. Não tinha nenhuma expectativa e ainda menos esperanças de que fora capaz de conseguir que outra situação de acolhida funcionasse. Francamente, já não lhe importava. Mas seus tutores tinham sido pacientes e bondosos. Acreditando que possivelmente a ajudasse a dirigir a confusão emocional, tinham-na ajudado a conseguir um punhado de documentos judiciais que tinham que ver com sua mãe.
Essa mulher tinha sido uma adolescente anônima, acreditava-se que era uma sem teto, que não tinha identificação, não lhe conhecia família nem conhecidos exceto pela menina recém-nascida que tinha abandonado, chorando e angustiada, em um contêiner de lixo da cidade em uma noite de agosto. A mãe de Gabrielle tinha sido maltratada, e sangrava por umas profundas feridas no pescoço que ela mesma se piorou rasgando-a, vítima da histeria e do pânico.

Em lugar de persegui-la pelo crime de haver abandonado seu bebê, o tribunal a tinha considerado incapacitada e a tinham enviado a umas instalações que certamente não eram muito diferentes a esta em que se encontrava ela agora. Quando ainda não levava nem um mês no centro institucional, pendurou-se com um lençol deixando detrás dela inumeráveis pergunta que nunca teriam resposta.
Gabrielle tentou tirar-se de cima o peso dessas velhas feridas, mas enquanto estava ali em pé e olhava através dos brumosos cristais das janelas, todo seu passado apareceu em primeiro plano em sua mente. Não queria pensar em sua mãe, nem na desgraçada circunstância de seu nascimento, nem nos escuros e solitários anos que lhe seguiram. Precisava concentrar-se em seu trabalho. Isso era o que lhe tinha permitido continuar para diante, depois de tudo. Era o único constante em sua vida, e as vezes tinha sido quão único de verdade tinha neste mundo.
E era suficiente.
Durante a maior parte do tempo, era suficiente.
«Toma umas quantas fotos e te largue daqui», disse a si mesmo, como brigando-se.
Levantou a câmara e tomou um par de fotos mais através do delicado trabalho de metal que se entrelaçava entre as duas janelas de cristal.
Pensou em partir pelo mesmo caminho por onde tinha entrado, mas se perguntou se possivelmente poderia encontrar outra saída em algum ponto do piso de abaixo do edifício central. Voltar a baixar ao escuro porão não lhe resultava especialmente atrativo.
Estava inquietando a si mesmo pensando em coisas sobre a loucura de sua mãe, e quanto mais momento se entretivera nesse velho psiquiátrico, mais lhe foram pôr os cabelos de ponta. Abriu a porta da escada e se sentiu um pouco melhor ao ver a tênue luz que se filtrava para dentro pelas janelas em algumas das habitações e nos corredores adjacentes.

Era óbvio que o artista do grafite de más vibrações tinha chegado até ali também. Em cada uma das quatro janelas havia uns extranhos símbolos realizados com pintura negra. Provavelmente eram os marcos de alguma turma, ou as assinaturas estilizadas dos meninos que tinham estado ali antes que ela. Em uma esquina havia uma lata de aerosol atirada, ao lado de umas bitucas de cigarros, de umas garrafas de cerveja quebrada e outros restos.
Gabrielle tomou a câmara e procurou um ângulo adequado para a fotografia que tinha em mente. A luz não era muito boa, mas com um lente diferente possivelmente resultasse interessante. Rebuscou na bolsa à procura das lentes e nesse momento ficou gelada ao ouvir um zumbido distante que procedia de algum ponto por debaixo de seus pés. Era muito frouxo, mas soava como o de um elevador, o qual era impossível. Gabrielle voltou a introduzir o equipamento na bolsa sem deixar de prestar atenção aos vagos sons que sentia ao seu redor. Todos os nervos de seu corpo se haviam esticado com uma gelada sensação de apreensão.
Não se encontrava sozinha ali dentro.
Agora que o pensava, notou que uns olhos a olhavam desde algum ponto próximo. Essa inquietante tira de consciência lhe pôs os cabelos de ponta na nuca e nos braços. Devagar, girou a cabeça e olhou para trás. Foi então quando o viu: uma pequena câmara de vídeo de circuito fechado montada em uma sombria esquina elevada do corredor, e que vigiava a porta da escada que ela tinha atravessado fazia somente uns minutos.
Possivelmente não estivesse em funcionamento e fosse somente algo que tinha ficado ali dos dias em que o psiquiátrico estava ainda em funcionamento. Essa teria sido uma idéia consoladora se a câmara não tivesse um aspecto tão cuidado e compacto, tão de tecnologia de vanguarda em segurança. Para comprová-lo, Gabrielle se aproximou dela e se colocou quase diretamente diante da câmara. Sem fazer nenhum ruído, a base da câmara girou e colocou a lente no ângulo adequado até que ficou enfocado no rosto de Gabrielle.

«Merda — disse, olhando esse olhos negro que não piscava.
—Pega.»
Das profundidades do edifício vazio, ouviu um rangido metálico e o estrondo de uma porta pesada. Era evidente que esse psiquiátrico abandonado não estava tão abandonado depois de tudo. Pelo menos tinham sistema de segurança, e a polícia de Boston poderia aprender algo dessa lição sobre o rápido tempo de reação dessa gente.
Soaram uns passos a um ritmo compassado: alguém que se encontrava vigiando tinha começado a dirigir-se para ela. Gabrielle se dirigiu para a escada e saiu disparada escada abaixo enquanto a bolsa a golpeava no quadril. À medida que baixava, a luz diminuía. Tomou a lanterna com a mão, mas não queria utilizá-la por medo de que funcionasse como um aviso de onde estava e o segurança pudesse segui-la. Chegou ao final da escada, empurrou a porta de metal e se precipitou para a escuridão do corredor do piso inferior.
Ouviu que a porta monitorada da escada se abria com um rangido e que seu perseguidor se precipitava para baixo, detrás dela, correndo com rapidez e ganhando terreno rapidamente.
Finalmente, chegou a porta de serviço do final do corredor. Lançou-se contra o aço frio e correu pelo escuro porão até a pequena janela que se encontrava aberta em uma das laterais. A corrente de ar frio lhe deu força: apoiou as mãos no marco da janela e se elevou. Deixou-se cair ao outro lado da janela, aterrissando fora na terra cheia de pedras.
Agora não podia ouvir seu perseguidor. Possivelmente lhe tinha avoado nos escuros de labirínticos corredores. Deus, isso esperava.
Gabrielle ficou em pé ao momento e correu em direção a abertura da cerca de arame. Encontrou-a rapidamente. colocou-se engatinhando e se introduziu pela fenda no arame com o coração desbocado e a adrenalina lhe correndo pelas veias.

Tinha muito pânico: em sua precipitação por escapar, arranhou-se um lado do rosto com um arame afiado da cerca. O corte lhe queimava na bochecha e sentiu o rastro quente de sangue que lhe baixava ao lado da orelha. Mas não fez caso da abrasadora ardência nem do golpe que se deu com a bolsa da equipamento fotográfica enquanto se inclinava sobre seu ventre para sair, através da cerca, para a liberdade.
Quando a teve atravessado, Gabrielle ficou em pé e correu enlouquecida pelo largo e escarpado terreno dos subúrbios. Somente se permitiu jogar uma rápida olhada para trás: o suficiente para ver que o enorme guarda de segurança ainda estava ali. Teria saído por algum lugar do piso principal e agora corria detrás dela como uma besta recém saída do inferno. Gabrielle tragou saliva de puro pânico ao lhe ver. O tipo parecia um tanque, facilmente pesava cento e dez quilogramas de puro músculo, e tinha uma cabeça grande e quadrada com o cabelo talhado ao estilo militar. Esse tipo enorme correu até a alta cerca e se deteve ao chegar a ela: golpeou-a com os punhos enquanto Gabrielle entrava correndo pela densa cortina de árvores que separava a propriedade da estrada.
O carro se encontrava a um lado do tranqüilo asfalto, justo onde o tinha deixado. Com mãos trementes, Gabrielle se esforçou por abrir a porta. sentia-se petrificada de pensar que esse tipo carregado de esteroides pudesse apanhá-la. Seu medo parecia irracional, mas isso não impedia que a adrenalina lhe corresse por todo o corpo. Afundou-se no acento de pele do Mini, pôs a chave no contato e ligou o motor. Com o coração acelerado, pôs em marcha o pequeno carro, apertou a fundo o pedal de aceleração e se precipitou para a estrada, escapando com um chiado de pneumáticos sobre o asfalto e o conseguinte aroma de queimado dos mesmos.


Capítulo seis
A metade da semana, em plena temporada turística, os parques e avenidas de Boston estavam coalhados de humanidade. Os trens traziam as pessoas a toda velocidade dos subúrbios, a seus lugares de trabalho ou aos museus, ou aos inumeráveis pontos históricos que se encontravam por toda a cidade. Olheiros carregados com câmeras subiam aos ônibus que lhes levavam de excursão ou se colocavam em fila para subir as Ferris sobrecarregados que lhes levariam mais à frente do cabo.
Não muito longe da agitação do dia, oculto a uns nove metros sob uma mansão dos subúrbios da cidade, Lucan Thorne se inclinou sobre um monitor de tela plaina, no edifício dos guerreiros da raça, e pronunciou uma maldição. Os registros de identificação dos vampiros apareciam em tela a velocidade vertiginosa enquanto o programa de computador realizava uma busca na enorme base de dados internacional procurando coincidências com as fotos que Gabrielle Maxwell tinha tomado.
—Ainda nada? —perguntou, olhando de soslaio e com expressão impaciente a Gideon, o operador informático.
—Nada até o momento. Mas ainda se está realizando a busca. A Base de dados de Identificação Internacional tem uns quantos milhões de registros para comprovar. —Os agudos olhos azuis do Gideon cintilaram por cima da arreios dos elegantes óculos de sol— Lhes jogarei o laço a esses burros, não se preocupe.
—Não me preocupo nunca —repôs Lucan, e o disse de verdade. Gideon tinha um coeficiente intelectual que rompia todas as estatísticas e ao que se acrescentava uma tenacidade enorme. Esse vampiro era tanto um caçador incansavel como um gênio e Lucan se alegrava de lhe ter ao seu lado.
_Se você não for capaz de tirá-los a luz, Gideon, ninguém pode fazê-lo.
O gurú informático da raça, com sua coroa de cabelo curto e encrespado, dirigiu-lhe um sorriso fanfarrão e confiado.
—É por isso que levo os verdes grandes.

—Sim, um pouco parecido —disse Lucan enquanto se separava da tela, onde os dados não deixavam de aparecer sem parar.
Nenhum dos guerreiros da raça que se comprometeram a proteger a estirpe frente ao açoite dos renegados o fazia por nenhuma compensação. Nunca a tinham tido, desde que se organizaram pela primeira vez nessa aliança durante o que para os humanos foi a idade medieval. Cada um dos guerreiros tinha seus próprios motivos para ter eleito esse perigoso modo de vida, e alguns deles eram, tinha-se que admitir, mais nobres que outros. Como Gideon, que tinha trabalhado nesse campo de forma independente até que seus dois irmãos, que eram pouco mais que uns meninos, foram assassinados pelos renegados aos subúrbios do Refúgio Escuro de Londres. Então Gideon procurou a Lucan. Disso fazia três séculos, umas décadas mais ou menos. Incluso então a habilidade do Gideon com a espada somente encontrava rival na afiada estocada de sua mente. Tinha matado a muitos renegados em seus tempos, mas mais tarde, a devoção e a promessa íntima que fez a sua companheira de raça, Savannah, tinham-lhe feito abandonar o combate e empunhar a arma da tecnologia ao serviço da raça.
Cada um dos seis guerreiros que lutavam ao lado de Lucan tinha seu talento pessoal. Também tinham seus demônios pessoais, mas nenhum deles era do tipo muito sensível que permitiria que um louco lhes colocasse uma lanterna pelo traseiro. Algumas costumes estavam melhor se deixavam na escuridão e, provavelmente, o único que estava mais convencido disso que o próprio Lucan era um guerreiro da raça conhecido como Dante.
Lucan saudou o jovem vampiro quando este entrou no laboratório técnico de uma das numerosas habitações do edifício. Dante, ataviado com sua habitual vestimenta negra, levava umas calças de ciclista e uma camiseta ajustada que mostrava tanto as tatuagens a tinta como suas intrincadas marcas de pertençer a raça. Seus avultados bíceps mostravam uns sinais afiligranados que a olhos de qualquer humano pareciam símbolos e desenhos geométricos realizados em profundas tonalidades terra. Mas os olhos de um vampiro distinguiam esses símbolos claramente: eram dermoglifos, umas marcas naturais herdadas dos antepasados da raça, cuja pele sem cabelo se havia recoberto de uma pigmentação cambiante e de camuflagem.

Normalmente, esses glifos eram motivo de orgulho para a raça e eram seus únicos sinais de linhagem e de fila social. Os membros da primera geração, como Lucan, luziam essas marca em maior número e seus tons eram mais saturados. Os dermoglifos de Lucan lhe cobriam o torso, por diante e por detrás, descendiam até suas coxas e se extendíam pela parte superior dos braços, além de subir pela nuca e lhe cobrir o crânio. Como tatuagens viventes, os glifos trocavam de tom segundo o estado emocional de um vampiro.
Os glifos de Dante, nesse momento, tinham um tom bronze, avermelhado, que indicava que se alimentou recentemente e que se sentia saciado. Sem dúvida, depois de que ele e Lucan se separaram ao cabo de ter dado caça aos renegados a noite anterior, Dante tinha ido em busca da cama e da amadurecida e suculenta veia da nádega de uma fêmea anfitriã.
—Que tal vai? —perguntou enquanto se deixava cair em cima de uma cadeira e colocava um pé embainhado em uma bota em cima do escritório, diante dele.
—Acreditei que já teria caçado e classificado a esses bastardos, Gid.
O acento de Dante tinha restos da musicalidade de seus ancestrais Italianos ate do século XVIII, mas essa noite, o educado tom de voz de Dante delatava um timbre afiado que indicava que o vampiro se sentia inquieto e ansioso por entrar em ação. Para sublinhar esse fato, tirou uma de suas típicas facas de folha curvada da cilha que levava no quadril e começou a jogar com o gentil aço.
Chamava a essas folhas curvadas Malebranche ou prolongações diabólicas, em referência Aos demônios que habitam um dos nove níveis do inferno, embora as vezes Dante adotava esse nome como pseudónimo para si mesmo quando se encontrava entre os humanos. Essa era quase toda a poesia que esse vampiro tinha em sua alma. Em todo o resto era impenitente, frio e escuramente ameaçador.
Lucan admirava isso dele, e tinha que admitir que observar a Dante durante o combate, com essas folhas inclementes, era algo belo, o bastante formoso para deixar em ridículo a qualquer artista.

—Bom trabalho o da noite passada —disse Lucan, consciente de que uma adulação emitida por ele era algo estranho, inclusive embora estivesse merecendo.
— Me salvou o pescoço aí.
Não falava da confrontação que tinham tido com os renegados, mas sim do que tinha acontecido depois disso. Lucan tinha passado demasiado tempo sem alimentar-se e a fome era quase tão perigosa para os seus como o vício que açoitava aos renegados. O olhar de Dante denotava que compreendia o que lhe estava dizendo, mas deixou acontecer o tema com sua habitual e fria elegância.
—Merda —repôs, com uma sonora e profunda gargalhada.
—.Depois de todas as vezes que você me há coberto as costas? Esquece-o, cara. Só te devolvia um favor.
Nesse momento, as portas de cristal da entrada do laboratório se abriram com um zumbido surdo e dois mais dos irmãos de Lucan entraram. Eram um bom par. Nikolai, alto e atlético, de cabelo loiro como a areia, uns rasgos angulares e impactantes e uns olhos penetrantes e azuis como o gelo, que só eram um tom mais frios que o céu de sua Siberia natal. O mais jovem do grupo e com diferença, Niko, havia-se feito homem durante o que os humanos chamavam a Guerra Fria. Do berço tinha sido imparavel e agora se converteu em um buscador de sensações de alta voltagem e se encontrava em primeira fila da raça no que tinha que ver com armas, aparelhos, e tudo o que ficava no meio.
Conlan, pelo contrário, falava com suavidade e era sério: era um perito em tática. Ao lado da excessiva fanfarronice do Niko, resultava elegante como um gato grande. Seu corpo era como um muro de músculos, e o cabelo loiro, de cor areia, brilhava por debaixo do triangulo de seda negra com que se envolvia a cabeça. Esse vampiro pertencia a uma das últimas gerações da raça, era um jovem segundo o critério de Lucan, e sua mãe era uma humana filha de um capitão escocês. O guerreiro se movia com um porte quase de realeza.
Inclusive sua amada companheira de raça, Danika, dirigia-se a esse habitante das terras altas afetuosamente lhe chamando, com freqüência, «meu senhor» e essa fêmea não era precisamente servil.

—Rio está de caminho —anunciou Nikolai com um amplo sorriso que lhe formava duas covinhas nas bochechas. Olhou a Lucan e assentiu com a cabeça.
— Eva me há dito que te diga que poderemos dispor de seu homem somente quando ela tenha terminado com ele.
—Se é que fica algo —disse Dê, arrastando as palavras enquanto levantava uma mão para saudar outros com um suave roce das palmas prévio a um choque de nódulos.
Lucan saudou Niko e a Conlan da mesma maneira, mas se sentiu algo molesto pelo atraso de Rio. Não invejava a nenhum dos vampiros pela companheira de raça que tinham eleito, mas, pessoalmente, Lucan não encontrava nenhum sentido atar-se as demandas e responsabilidades de um vínculo de sangue com uma fêmea. Esperava-se que, em geral, a população da raça aceitasse a uma mulher para aparear-se e dar nascimento a seguinte geração, mas para a classe dos guerreros —para esses escassos machos que, de forma voluntária, haviam abandonado o santuário dos Refúgios Escuros para levar uma vida de luta processo de vincular-se por sangue era, para Lucan, uma frescura no melhor dos casos.
E no pior, era um convite ao desastre quando um guerreiro sentia a tentação de antepor os sentimentos para sua companheira por cima de seu dever para a raça.
—Onde está Tegan? —perguntou, ao dirigir seus pensamentos de forma natural para o último deles que faltava no edifício.
—Ainda não retornou —respondeu Conlan.
—Chamou de onde se encontra?
Conlan e Niko intercambiaram um olhar, e Conlan negou rapidamente com a cabeça:
—Nenhuma palavra.

—Esta é a vez que esteve mais tempo desaparecido em ação — assinalou Dê sem dirigir-se a ninguém em especial enquanto passava o dedo polegar pelo fio da folha curvada de sua faca.
—Quanto faz? Três, quatro dias?
Quatro dias, quase cinco.
Quem deles levava a conta?
Resposta: todos eles a levavam, mas ninguém pronunciou em voz alta a preocupação que se estendeu ultimamente em suas filas. Tal como estava o tema, Lucan tinha que esforçar-se para controlar a raiva que despertava nele cada vez que pensava no membro mais introvertido dos membros de seu quadro.
Tegan sempre preferia caçar em solitário, mas seu caráter afastado começava a resultar uma carga para outros. Era como um curinga, adquiria um valor diferente em função de cada ação e, ultimamente, cada vez mais. E Lucan, tinha que ser franco, encontrava difícil confiar nesse menino, embora a desconfiança não fosse nada novo no que concernia a Tegan. Havia uma má relação entre ambos, sem dúvida, mas essa era uma história antiga.
Tinha que ser assim. A guerra em que ambos se comprometeram desde fazia tanto tempo era mais importante que qualquer aversão que pudesse sentir um para o outro.
Apesar disso, o vampiro levava a cabo uma vigilância estreita. Lucan conhecia as debilidades de Tegan melhor que nenhum de outros e não duvidaria em responder se esse macho punha embora fosse o dedo gordo do pé no outro extremo da linha.
Por fim, as portas do laboratório se abriram e Rio entrou na hábitação enquanto se colocava as abas de sua elegante camisa branca de desenho dentro da calça negra feita a medida. Faltavam alguns botões na camisa de seda, mas Rio levava a má compostura depois do sexo com a mesma elegância desenvolvida com que se movia em todas as demais circunstâncias. Sob a densa franja de cabelo escuro que lhe pendurava por cima das sobrancelhas, os olhos de cor topázio do espanhol parecia que dançavam. Quando sorria, brilhavam-lhe as pontas das presas que, nesses momentos, ainda não se haviam retratados depois de que a paixão por sua dama os tivesse desdobrado.

—Espero que me tenham guardado alguns renegados, meus amigos. — esfregou-se as mãos:—Me sinto bem e tenho vontades de festa.
— Sente-se disse Lucan— e tenta não manchar de sangue os computadores do Gideon.
Gideon se levou os largos dedos da mão até a marca vermelha que Eva tinha feito na garganta, evidentemente ao lhe morder com seus dentes romos de humana para lhe chupar a veia. Apesar de que era uma companheira de raça, continuava sendo geneticamente Homo sapiens. Embora fazia muitos anos que ela e outras como ela mantinham vínculos de sangue com seus companheiros, nenhuma delas teria presas nem adquiriría as demais características dos machos vampiro. Era uma prática ampliamente aceita que um vampiro alimentasse a sua companheira através de uma ferida que ele mesmo se infligia no pulso ou no antebraço, mas as paixões eram selvagens nas filas dos guerreiros da raça. E também o eram com as mulheres que escolhiam. O sexo e o sangue era uma combinação muito potente: Às vezes, muito potente.
Com um sorriso impenitente, Rio se moveu na cadeira giratória com gesto alegre e desenvolvido e se recostou no respaldo para colocar os pés nus em cima do console . Ele e os outros guerreiros começaram a recordar os fatos da noite anterior e riram sem deixar de mostrar-se superiores uns com os outros enquanto discutiam as técnicas de sua profissão.
Caçar a seus inimigos era motivo de prazer para alguns membros da raça, mas a motivação íntima de Lucan era o ódio, puro e simples. Não tentava ocultá-lo. Desprezava tudo aquilo que os renegados representavam e tinha jurado, fazia muito tempo, que os aniquilaria ou que morreria no intento. Havia dias nos que não lhe importava qual das duas coisas pudesse acontecer.
—Aí está —disse Gideon por fim ao ver que os registros que apareciam em tela se detinham.
— Parece que encontramos um filão.

—O que obtiveste?
Lucan e outros dirigiram a atenção para a tela plaina extra grande que se encontrava em cima da mesa dos microprocessadores do laboratório. Os rostos dos quatro renegados a quem Lucan matou apareceram ao lado dos das fotos do celular de Gabrielle: eram os mesmos indivíduos.
—Os registros da Base de dados de Identificação Internacional os têm qualificados como desaparecidos. Dois desapareceram do Refúgio Escuro de Connecticut o mês passado, e outro do Fall River, e este último é daqui. Todos são da geração atual, e o mais jovem nem sequer tem trinta anos.
—Merda —exclamou Rio antes de assobiar com suavidade.
— Meninos estúpidos.
Lucan não disse nada, não sentia nada, pela perda dessas vidas jovens ao converter-se em renegados. Não eram os primeiros, e seguro que não seriam os últimos. Viver nos Refúgios Escuros podia resultar bastante aborrecido para um macho imaturo que tivesse alguma coisa que demostrar. O atrativo do sangue e da conquista se encontrava profunda-mente enraizado inclusive entre as últimas gerações, que eram as que se encontravam mais distantes de seus selvagens antepassados. Se um vampiro ia em busca de problemas, especialmente em uma cidade do tamanho da de Boston, normalmente os encontrava em abundância.
Gideon introduziu uma rápida série de ordens através do teclado do computador e abriu mais fotos procedentes da base de dados.
—Aqui estão os últimos dois registros. Este primeiro indivíduo é um renegado conhecido, um agressor reincidente em Boston, apesar de que parece que se manteve um tanto à margem durante os últimos três meses. Quer dizer, tem-no feito até que Lucan o reduziu a cinzas no beco este fim de semana.
—E o que sabemos deste? —perguntou Lucan, olhando a última imagem que ficava, a do único renegado que tinha conseguido escapar depois do ataque fora da discoteca. Sua foto no registro era uma imagem tomada de um fotograma de um vídeo que, presumivelmente, fez-se durante uma espécie de sessão de interrogatório conforme se deduzia pelas ataduras e os eletrodos que levava em cima.

—Quanto tempo tem esta imagem?
—Uns seis meses —respondeu Gideon, abrindo a data da imagem— Sai de uma das operações na Costa Oeste.
—Los Angeles?
—Seattle. Mas segundo o relatório, em Los Angeles tem uma ordem de arresto também.
—Ordens de arresto —disse Dê em tom zombador.
— Uma fodida perda de tempo.
Lucan não podia não estar de acordo com ele. Para quase toda a nação de vampiros nos Estados Unidos e no estrangeiro, o cumprimento da lei e a detenção dos indivíduos que se converteram em renegados se governavam por umas regras e procedimentos específicos. Redigiam-se ordens de arresto, realizavam-se as detenções, realizavam-se os enterrogatorios e se transmitiam as condenações. Tudo era muito civilizado e estranhamente resultava efetivo.
Enquanto que a raça e a população dos Refúgios Escuros estavam organizados, motivados e envoltos por capas de burocracia, seus inimigos eram imprevisíveis e impetuosos. E, a não ser que a intuição de Lucan fora errônea, os renegados, depois de séculos de anarquia e de caos geral, estavam começando a organizar-se.
Se é que não levavam já meses nesse processo.
Lucan observou a imagem que tinha aparecido em tela. Na imagen de vídeo, o renegado a quem tinham capturado se encontrava preso em uma prancha de metal colocada em vertical, nu e com a cabeça barbeada por completo, provavelmente para que as descargas elétricas que lhe enviavam lhe chegassem com maior facilidade enquanto lhe interrogavam. Lucan não sentia nenhuma compaixão pela tortura que o renegado tinha suportado. Freqüentemente era necessário realizar interrogatórios desse tipo, e igual que acontece com um ser humano enganchado a heroína, um vampiro que sofria de sede de sangue podia suportar dez vezes mais e sem fraquejar a dor que outro de seus irmãos de raça podia agüentar.

Esse renegado era grande, com umas sobrancelhas densas e uns rasgos fortes e primitivos. Nessa imagem lhe via rir com ironia. Os largos dentes brilhavam e tinha uma expressão selvagem nos olhos da cor do ámbar e de pupilas alargadas e verticais. Encontrava-se envolto por cabos da cabeça enorme até o musculoso peito e os braços firmes como martelos.
—Dando por entendido que ser feio não é um crime, por que motivo lhe pilharam em Seattle?
—Vamos ver o que temos. —Gideon voltou a colocar-se ante os computadores e abriu um registro em outra das telas.
—Lhe hão arrestado por tráfico: armas, explosivos, substâncias químicas. Vá, este tipo é um encanto. Colocou-se em uma merda verdadeiramente feia.
—Alguma idéia sobre de quem eram as armas que levava?
—Aqui não diz nada. Não conseguiram grande coisa com ele, é evidente. O registro informa que escapou justo depois de que tomassem estas imagens. Matou a dois dos guardas durante a fuga.
E agora havia tornado a escapar, pensou Lucan, desalentado e desejando ferventemente ter decapitado ao filho de puta quando o tinha diante. Não suportava o fracasso com facilidade, e muito menos quando se tratava do seu próprio.
Lucan olhou a Niko.
—Cruzaste-te alguma vez com este tipo?
—Não —repôs o russo—, mas consultarei com meus contatos, a ver o que posso averiguar.

—Ponha nisso.
Nikolai assentiu com a cabeça com gesto rápido e se dirigiu para a saida do laboratório técnico enquanto já marcava o número de telefone de alguém no celular.
—Estas fotos são uma merda —disse Conlan, olhando por cima do ombro do Gideon em direção as fotos que Gabrielle tinha tomado durante o assassinato, fora da discoteca. O guerreiro pronunciou uma maldição.
— Já é bastante mau que os humanos tenham presenciado alguns dos assassinatos dos renegados durante os últimos anos, mas agora se dedicam a deter-se e a tomar fotos?
Dante deixou cair os pés ao chão com um ruído surdo, ficou em pé e começou a caminhar pela habitação, como se começasse a sentir-se cada vez mais inquieto pela falta de atividade nessa reunião.
—Todo mundo acredita que são uns fodidos paparazzi.
—O tipo que fez essas fotos deveu cagar-se de medo ao encontrar-se com noventa quilogramas de guerreiro salivando por ele —acrescentou Rio. E, olhou a Lucan—. Lhe apagou primeiro a memória, ou simplesmente o eliminou ali mesmo?
—O humano que presenciou o ataque essa noite era uma mulher. —Lucan olhou fixamente os rostos de seus irmãos sem mostrar o que sentia em relação a informação que estava a ponto de lhes dar.
— Resulta que é uma companheira de raça.
—Mãe de Deus —exclamou Rio, passando a mão pelo cabelo—. Uma companheira de raça. Está seguro?
—Leva o sinal. Vi-a com meus próprios olhos.
—O que fez com ela? Transou, não...?

—Não —repôs com secura Lucan, inquieto pelo que o espanhol havia insinuado com o tom de voz.
—Não fiz nenhum mal a essa mulher. Existe uma linha que nunca vou cruzar.
Tampouco tinha reclamado a Gabrielle para si, embora tinha estado muito perto de fazê-lo essa noite no apartamento dela. Lucan apertou a mandíbula: uma onda de escuro desejo lhe invadiu ao pensar em quão tentadora Gabrielle estava, enroscada e dormida na cama. No malditamente doce que era seu sabor em sua língua...
—O que vais fazer com ela, Lucan? —Esta vez, a expressão de preocupação proveio de onde se encontrava Gideon.
— Não podemos deixar que os renegados a encontrem. Seguro que ela chamou a atenção deles quando realizou essas fotos.
—E se os renegados se dão conta de que é uma companheira de raça... —acrescentou Dê, interrompendo-se A metade da frase. Outros assentiram com a cabeça.
—Ela estará mais segura aqui —disse Gideon—, sob o amparo da raça. Melhor ainda: deveria ser oficialmente admitida em um dos Refúgios Escuros.
—Conheço o protocolo —repôs Lucan, pronunciando cada palavra com lentidão. Sentia muita raiva ao pensar em que Gabrielle pudesse acabar nas mãos dos renegados, ou nas de outro membro da raça se fazia o que era devido e a mandava a um dos Refúgios Escuros da nação. Nenhuma das duas opções lhe parecia aceitável nesse momento a causa do sentimento possessivo que lhe bulia nas veias, irreprimivel embora não desejado.
Olhou a seus irmãos guerreiros com frieza.
—Essa mulher é responsabilidade minha a partir de agora mesmo. Decidirei qual é a melhor atuação neste tema.
Nenhum dos guerreiros lhe contradisse. Lucan não esperava que o fizessem. Em qualidade de membro de primeira geração, ele era mais antigo; em qualidade de guerreiro fundador dos de sua classe na raça, era quem mais coisas tinha demonstrado, com sangue e também com o aço. Sua palavra era lei, e todos os que se encontravam nessa habitação o respeitavam.

Dante ficou em pé, brincou com a Malebranche entre seus compridos e hábeis dedos e a embainhou com um ágil gesto.
—Faltam quatro horas para que caia o sol. Vou. —Olhou de soslaio a Rio e a Conlan.
— Alguém tem vontades de treinar antes de que as coisas fiquem interessantes?
Os dois machos se levantaram rapidamente, animados pela idéia, e detrás dirigir uma respeitosa saudação a Lucan, os três grandes guerreiros sairam do laboratório técnico e percorreram o corredor em direção a zona de treinamento do edifício.
—Tem algo mais sobre esse renegado de Seattle? —perguntou- Lucan a Gideon enquanto as portas de cristal se fechavam, quando ambos ficaram sozinhos no laboratório.
— Agora mesmo estou realizando uma comparação cruzada de todas as bases de registros. Só demorará um minuto em dar algum resultado. — Teclou umas ordens no computador.
— Bingo. Tenho uma coincidência procedente de uma informação GPS da Costa Oeste. Parece informação reunida anteriormente ao arresto. Joga uma olhada.
A tela do monitor se encheu com uma série de imagens noturnas por satélite de uma embarcação de pesca comercial aos subúrbios de Puget Sound. A imagem se centrava em um Sedan comprido e negro que se encontrava detrás de um maltratado edifício situado ao final do dique. Apoiado contra a porta posterior se encontrava o renegado que tinha conseguido escapar de Lucan fazia uns dias. Gideon passou rapidamente uma série de imagens que lhe mostravam conversando longamente, ou isso parecia, com alguém que se encontrava oculto detrás dos cristais negros dos guichês. À medida que as imagens avançavam, viram que a porta traseira do carro se abria e o renegado entrava no carro.
—Detenha —disse Lucan, fixando o olhar na mão do passageiro oculto.
— Pode deter todo este fotograma? Aumenta a zona da porta aberta do carro.

—Vou tentar .
A imagem aumentou de tamanho, mas Lucan quase não necessitava um aumento da imagem para confirmar o que via. Quase não se distinguia, mas aí estava. Na parte de pele exposta entre a grande mão do passageiro e o punho francês da camisa de manga larga se viam uns impressionantes dermoglifos que lhe delatavam como um membro de primeira geração.
Gideon também os tinha visto nesse momento.
—Maldição, olhe isso —disse, cravando a vista no monitor—. Nosso imbécil de Seattle desfrutava de uma companhia interessante.
—Possivelmente ainda o está fazendo —repôs Lucan.
Não havia nada pior que um renegado que tivesse sangue de primeira geração nas veias. Os membros de primeira geração caíam vitima da sede de sangue com maior rapidez que as últimas geração da raça, e eram uns temíveis inimigos. Se algum deles tinha intenção de liderar aos renegados e lhes conduzir a um levantamento, isso significaria o princípio de uma guerra infernal. Lucan já havia lutado em uma batalha assim uma vez, fazia muito tempo. Não desejava voltar a fazê-lo.
—Imprime tudo o que conseguiste, incluídos as ampliações de eroglifos.
—Já estão.
—Qualquer outra coisa que encontre sobre esses dois indivíduos, passa-me diretamente. Encarregarei-me disto pessoalmente.
Gideon assentiu com a cabeça, mas o olhar que lhe dirigiu por cima da arreios dos óculos expressava dúvida.

—Não pode pretender te encarregar de tudo isto você sozinho, já sabe.
Lucan lhe cravou um olhar escuro.
—Quem o diz?
Sem dúvida, o vampiro tinha em sua cabeça de gênio todo um discurso aberto da probabilidade e da lei da estatística, mas Lucan não se sentia de humor para lhe escutar. A noite se aproximava, e com ela se aproximava outra oportunidade de caçar a seus inimigos. Precisava empregar as horas que ficavam para esclarecer a cabeça, preparar as armas e decidir onde era melhor atacar. O depredador que havia nele se sentia impaciente e faminto, mas não por causa da batalha contra os Renegados.
Em lugar disso, Lucan se deu conta de que seus pensamentos se desviavam para um tranqüilo apartamento do Beacon Hill, para uma visita que nunca deveria ter realizado. Ao igual que o aroma de jasmim, o recordava da suavidade e a calidez da pele de Gabrielle, enredava-se com seus sentidos. Ficou tenso e seu sexo ficou em ereção somente pensando nela.
Foder.
Essa era a razão pela qual não a tinha posto sob o amparo da raça, aqui, no edifício. A certa distancia, ela era uma distração. Mas se encontrava em uma habitação próxima, seria um maldito desastre.
—Está bem? —perguntou-lhe Gideon, dando-a volta com a cadeira e ficando de cara a Lucan.
— É uma fúria muito grande a que tem em topo, amigo.
Lucan se arrancou da cabeça esses escuros pensamentos e se deu conta de que as presas lhe tinham alargado e que a visão lhe havia agudizado com o fechamento das pupilas. Mas não era a fúria o que lhe transformava. Era a luxúria, e tinha que saciá-la, antes ou depois. Com essa idéia lhe pulsando nas têmporas, Lucan tomou o telefone celular de Gabrielle, que se encontrava em cima de uma das mesas, e saiu do laboratório.

 

 

CONTINUA

Capítulo quatro

Gabrielle podia contar com uma só mão os sonhos erótico que tinha tido durante toda sua vida, mas nunca tinha experiente nada tão quente —por não dizer real— como a fantasia de orgia sexual que tinha desfrutado da noite anterior, cortesia de um Lucan Thorne virtual. Seu fôlego tinha sido a brisa noturna que penetrava pela janela aberta de seu dormitório do piso de acima. Seu cabelo era a escuridão de obsidiana que enchia as clarabóias, sobre sua cama. Seus olhos chapeados, o brilho pálido da lua. Suas mãos eram as ligaduras de seda de sua colcha, que enredavam seus pulsos e tornozelos, abriam seu corpo debaixo do dele e a sujeitavam com força.
Sua boca era puro fogo que lhe queimava cada centímetro da pele e a consumia como uma chama invisível. «Jasmim», tinha-a chamado ele, e o suave som dessa palavra vibrava contra a umidade de sua pele, o quente fôlego dele formava redemoinhos os suaves cachos de pêlo de sua entre perna.
Ela se tinha retorcido e tinha gemido dominada pela habilidade da língua dele, que a tinha submetido a uma tortura que ela desejava que fosse infinito. Mas tinha terminado, e muito logo. Gabrielle se tinha despertado em sua cama, só na escuridão, pronunciando quase sem fôlego o nome de Lucan, com o corpo esgotado e inerte, dolorido pelo desejo.
Ainda lhe doía o desejo e o que mais lhe preocupava era o fato de que o misterioso detetive Thorne lhe tivesse dado plantão.
Não era que seu oferecimento de passar por seu apartamento essa noite fosse nada que se parecesse com um encontro, mas ela tinha estado esperando voltar a lhe ver. Tinha interesse em saber mais a respeito dele dado que se havia mostrado tão inclinado a decifrá-la com um simples olhar. Além de conseguir algumas respostas mais sobre o que tinha presenciado essa noite fora da discoteca, Gabrielle tinha desejado conversar de algo mais com Lucan, possivelmente tomar um pouco de vinho e algo para jantar. O fato de que se depilou as pernas duas vezes e de que se pôs uma roupa interior negra e atrativa sob a camisa de seda de manga larga e dos escuros jeans era puramente acidental.

Gabrielle lhe tinha esperado até bem passadas as nove e então abandonou a idéia e chamou Jamie para ver se ele queria jantar com ela no centro da cidade.
Agora, sentado diante dela, ao outro lado da mesa, nessa sala cheia de janelas do bistro Ciao Bela, Jamie deixou na mesa a taça de pinot noire e olhou o prato de frutos do mar que ela quase não havia tocado.
—Estiveste enjoando a mesma parte da comida pelo prato durante os últimos dez minutos, carinho. Você não gosta?
—Sim, é genial. A comida sempre é incrível aqui.
—Então, é a companhia o que te desagrada?
Ela levantou o olhar para ele e negou com a cabeça.
—Absolutamente. Você é meu melhor amigo, já sabe.
—Certo —assentiu ele.
— Mas não me posso comparar com seu sonho erótico.
Gabrielle se ruborizou ao dar-se conta de que um dos clientes que se encontrava na mesa do lado olhava para eles.
—Às vezes é horrível, sabe? —disse a Jamie em um sussurro.
— Não deveria haver lhe contado isso.
—OH, carinho. Não se sinta incômoda. Se me tivessem dado uma moeda cada vez que me despertei excitado, chiando o nome de algum cara sexy...
—Eu não chiei seu nome. —Não, tinha-o pronunciado com o folego entrecortado e em um gemido, tão enquanto estava na cama como enquanto estava na ducha ao cabo de pouco tempo, ainda incapaz de tirar do corpo a sensação de Lucan Thorne.
— Era como se ele estivesse ali, Jamie. Justo ali, em minha cama, tão real que eu podia lhe tocar.
Jamie suspirou.
—Algumas garotas têm toda a sorte do mundo. A próxima vez que te encontre com seu amante em sonhos, seja generosa e me manda isso quando tenha terminado.
Gabrielle sorriu, sabendo que seu amigo não andava escasso no apartado romântico. Durante os últimos quatro anos tinha tido uma feliz relação monógama com o David, um vendedor de antiguidades que se encontrava nesses momentos fora da cidade por motivos de trabalho.
—Quer saber o que é o mais estranho disso tudo , Jamie? Aos levantar, esta manhã, a porta de entrada não estava fechada com chave.
— E?
—E você me conhece, nunca a deixo aberta.
As cuidadas e depiladas sobrancelhas do Jamie se juntaram, franzindo o cenho.
—O que quer dizer, que cre que esse cara forçou a porta de sua casa enquanto dormia?
—Parece uma loucura, sei. Um detetive da polícia que vem a minha casa a meia-noite para me seduzir. Devo estar perdendo a cabeça.
Disse-o com tom despreocupado, mas não era a primeira vez que se questionava em silêncio sua própria prudência. Não era a primeira vez nem muito menos. Com gesto ausente, brincou um momento com a manga da blusa enquanto Jamie a observava. Ele se sentia preocupado nesse momento, o qual somente aumentava a inquietação que Gabrielle sentia sobre o tema de sua possível instabilidade mental.

—Olhe, carinho. Passaste muita tensão do fim de semana. Isso pode provocar coisas estranhas na cabeça. Estiveste preocupada e confundida. Possivelmente se esqueceu de fechar a porta.
—E o sonho?
—Somente isso... Um sonho. Somente se trata de sua mente curvada que tenta tranqüilizar-se, relaxar-se.
Gabrielle baixou a cabeça em um gesto automático de afirmação.
—Exato. Estou segura de que só é isso.
Se pudesse aceitar que a explicação de tudo era tão simples como seu amigo fazia que parecesse... Mas uma sensação na boca do estômago rechaçava a idéia de que ela tivesse esquecido de fechar a porta. Ela nunca faria uma coisa assim, simplesmente, por estressada e confundida que estivesse.
—Né. —Jamie alargou o braço por cima da mesa para tomar a mão.
— Vais estar bem, Gab. Já sabe que pode me chamar a qualquer hora, verdade? Estarei contigo, sempre o estarei.
—Obrigado.
Lhe soltou a mão, tomou o garfo e fez um gesto em direção a seu fruto do mar.
—Bom, vais comer um pouco mais ou posso começar a limpar seu prato agora?
Gabrielle trocou seu prato meio cheio pelo dele, completamente vaziu.
—Tudo para ti.

Enquanto Jamie se concentrava na comida fria, Gabrielle apoiou o queixo em uma mão e tomou um comprido gole de sua taça de vinho. Enquanto bebia, brincou com os dedos em cima das ligeiras marcas que descobriu no pescoço essa mesma manhã depois de tomar banho. A porta aberta não era o mais estranho que se encontrou essa manhã: as duas marca idênticas que se viu debaixo da orelha se levaram o prêmio, sem dúvida nenhuma.
Essas pequenas perfurações não tinham sido o bastante profundas para lhe transpassar a pele, mas aí estavam. Havia duas, a uma distância equitativa, no ponto onde o pulso lhe pulsava com mais força quando o apalpava com os dedos. Ao princípio se disse que possivelmente havia se arranado a si mesmo enquanto dormia, possivelmente a causa do sonho estranho que tinha tido.
Mas, entretanto, essas marcas não pareciam arranhões. Pareciam... outra coisa.
Como se alguém, ou algo, tivesse estado a ponto de lhe morder a carótida.
Uma loucura.
Isso era, e tinha que deixar de pensar dessa maneira antes de fazer-se mais mal a si mesmo. Viu-se obrigada a centrar-se e a deixar de recrear-se em fantasias delirantes sobre visitantes a meia-noite e monstros de filme de terror que não era possível que existissem na vida real. Se não tomava cuidado, acabaria como sua mãe biológica.
—OH, Meu deus, me dê uma bofetada agora mesmo porque sou um completo e profundo imbecil —exclamou Jamie de repente, interrompendo seus pensamentos.
— Continuo esquecendo-me de lhe dizer isso ontem recebi uma chamada na galeria sobre suas fotografias. Um peixe gordo do centro da cidade está interessado em uma amostra privada.
—Sério? De quem se trata?
Ele se encolheu de ombros.

—Não sei, carinho. A verdade é que não falei com o possível comprador, mas a partir da atitude estirada do ajudante do tipo, diria que seja quem é seu admirador, ele ou ela— nada na abundância do dinheiro. Tenho uma entrevista em um dos edifícios do distrito financeiro amanhã de noite. Falo-te de um escritório em uma cobertura, querida.
—OH, Meu deus —exclamou ela com incredulidade.
—Acredita. Super bom, amiga. Muito em breve será muito para um pequeno vendedor de arte como eu —brincou ele, compartilhando a excitação com ela.
Era difícil não sentir-se intrigada, especialmente depois de tudo o que lhe tinha passado durante os últimos dias. Gabrielle tinha conseguido uns fiéis e respeitáveis admiradores e ganhou uns quantos bons elogios por seu novo trabalho, mas uma amostra privada para um comprador desconhecido era o máximo.
—Que peças te pediu que levasse?
Jamie levantou a taça de vinho e brindou com a dela com um gesto burlesco de saudação.
—Todas, senhorita Importante. Cada uma das peças da coleção.
No telhado do um velho edifício de tijolos do ocupado distrito dos teatros da cidade, a lua se refletia na risada letal de um vampiro embelezado de negro. Agachado em sua posição perto da beirada, o guerreiro da raça girou a escura cabeça e levantou uma mão para fazer um sinal.
«Quatro renegados. Uma presa humana se dirige diretamente para eles.»
Lucan lhe dirigiu um gesto afirmativo com a cabeça a Dante e se afastou da saída de emergência do quinto piso, que tinha sido sua posição de vigilância durante a última meia hora. Baixou até a rua de abaixo com um ágil movimento, aterrissando em silêncio, como um gato. Levava uma dupla folha de combate nas costas que lhe sobressaía pelos ombros como os ossos das asas de um demônio. Lucan desencapou a arma de titânio quase sem emitir nenhum som e penetrou nas sombras da estreita rua lateral para esperar os acontecimentos dessa noite.

Eram ao redor das onze, várias mais tarde que a hora em que deveria ter passado pelo apartamento de Gabrielle Maxwell para lhe devolver o telefone celular, tal e como lhe disse que o faria. O aparelho ainda estava em posse de Gideon, no laboratório técnico, que estava processando as imagens para as contrastar com a Base de dados de Identificação Internacional da Raça.
Quanto a Lucan, não tinha nenhuma intenção de devolver o telefone celular a Gabrielle, nem em pessoa nem de nenhuma outra maneira. As imagens do ataque dos renegados não tinham que estar em mãos de nenhum ser humano, e depois da decepção que se levou no dormitório dela, quanto mais longe estivesse dessa mulher, melhor.
«Uma maldita companheira de raça.»
Deveria havê-lo sabido. Agora que o pensava, ela tinha certas características que deveriam lhe haver dado a pista disso desde o começo. Como sua habilidade de ver através do véu do controle mental vampírico que enchia essa noite a sala de baile da discoteca. Ela tinha visto os renegados —ávidos de sangue no beco, e nas imagens indecifráveis do telefone celular— quando outros seres humanos não os havia podido ver. Logo, em seu apartamento, tinha demonstrado que tinha resistência ante a sugestão mental de Lucan para dirigir seus pensamentos, e ele suspeitava que se tinha sucumbido, tinha-o feito mais por causa de um desejo consciente do prazer que ele supunha para ela que por nenhuma outra coisa.
Não era nenhum secredo que as fêmeas humanas com o código genético único de companheiras de raça possuíam uma inteligência aguda e uma saúde perfeita. Muitas delas tinham uns assombrosos talento paranormal que aumentariam quando a companheira de raça se unisse por sangue com um macho vampiro.
Quanto a Gabrielle Maxwell, parecia possuir o dom de ter uma vista especial que lhe permitia ver o que o resto de seres humanos não podia ver, mas até onde chegava essa capacidade de visão era algo que ele não podia adivinhar. Lucan queria sabê-lo. Seu instinto de guerreiro exigia chegar ao fundo do assunto sem nenhuma demora.

Mas envolver-se com essa mulher, da forma que fosse, era o último que ele necessitava.
Então, por que não podia tirar-se de cima seu doce aroma, a suavidade de sua pele... sua provocadora sensualidade? Odiava o fato de que essa mulher tivesse despertado nele tal fragilidade, e seu estado de ânimo atual dificilmente melhorava pelo fato de que todo seu corpo doía pela necessidade de alimentar-se.
O único ponto claro essa noite era o constante ritmo dos saltos das botas dos renegados no pavimento, em algum lugar perto da entrada da rua lateral, que se dirigiam para ele.
O ser humano girou a esquina: encontrava-se a vários passos a frente deles, e era um homem. Jovem, saudável, vestia uma calça negra e alvo e uma túnica branca manchada que cheirava a cozinha de restaurante e a um suor repentino de ansiedade. O cozinheiro olhou por cima do ombro e viu que os quatro vampiros foram ganhando terreno. Um palavrão pronunciado em tom nervoso e atravessou a escuridão.
O humano voltou a girar a cabeça e caminhou mais depressa, com os punhos apertados e ambos grudado no corpo e os olhos muito abertos e cravados na estreita greta do asfalto que havia sob seus pés.
—Não faz falta que corra, homenzinho —lhe provocou um dos Renegados em um tom rouco como o som da areia fina contra o chão.
Outro deles emitiu um chiado agudo e se colocou a cabeça de seus três companheiros.
—Sim, não te escape agora. Tampouco é que vás chegar muito longe.

As risadas dos renegados ressonaram nos edifícios que flanqueavam a estreita rua.
—Merda —sussurrou o ser humano quase sem respiração. Não se voltou somente continuou para frente a passo rápido, a ponto quase de lançar-se a uma frenética, mas inútil, carreira.
À medida que o aterrorizado ser humano lhe aproximava, Lucan saiu da escuridão dando um passo e ficou em pé com as pernas abertas com os braços abertos a ambos os lados de seu corpo, bloqueou a rua com seu corpo ameaçador e suas espadas as gema. Dirigiu um frio sorriso aos renegados com as presas ameaçadoras, antecipando a luta que se morava.
—Boa tarde, senhoritas.
—OH, Jesus! —exclamou o ser humano. Deteve-se de forma brusca e olhou a Lucan o rosto com expressão de horror. Os joelhos cederam e caiu no chão,
— Merda!
—Te levante. —Lucan lhe dirigiu um breve olhar enquanto o jovem se esforçava por ficar em pé.
— Vai daqui.
Esfregou uma das afiadas folhas contra a outra diante dele e encheu a rua em sombras com o áspero som metálico do aço endurecido e letal. Detrás dos quatro renegados, Dante caiu ao asfalto e se agachou antes de levantar seu metro noventa e oito de altura. Não levava nenhuma espada, mas ao redor da cintura levava um cinturão de pele no qual levava sujeitas uma série de armas de mão letais, entre elas um par de folhas curvadas e afiadas como folhas de barbear que se convertiam em uma extensão infernal de suas mãos, incrivelmente rápidas. Malebranche ou prolongações diabólicas as chamava, e efetivamente eram umas garras do diabo. Dante as teve colocadas nas mãos em um momento: era um vampiro que sempre estava a ponto para entrar em um combate corpo a corpo.
—OH, Meu deus —gritou o ser humano com voz trêmula ao dar-se conta do perigo que lhe rodeava. Olhou a Lucan com a boca aberta e, com mãos trementes, rebuscou entre suas roupas tirou uma carteira do bolso traseiro da calça e a atirou ao chão.
— Toma-a, cara! Pode ficar mas não me mate, suplico-lhe isso!

Lucan manteve os olhos fixos nos quatro renegados, que nesses momentos estavam tomando posições e preparavam as armas.
—Te largue daqui. Agora.
—É nosso —vaiou um dos renegados. Uns olhos amarelos se cravaram fixamente em Lucan com puro ódio, as pupilas se reduziram a duas famintas ranhuras verticais. De suas largas presas lhe gotejava a saliva, outra prova do grande vício do vampiro pelo sangue.
Ao igual que os seres humanos podiam acabar dependendo de um poderoso narcótico, a sede de sangue também era destrutivo para a raça. A fronteira entre a necessidade de satisfazer a fome e a constante overdose de sangue se cruzava com facilidade. Alguns vampiros entravam nesse abismo de forma voluntária, enquanto que outros sucumbiam a essa enfermidade por inexperiência ou por falta de disciplina pessoal. Se chegava muito longe, e durante muito tempo, um vampiro se convertia na categoria de renegado, igual a esses ferozes monstros que grunhiam frente a Lucan nesses momentos.
Ansioso por convertê-los em cinzas, Lucan juntou com um golpe seco as duas folhas e cheirou a faísca de fogo que se criou quando os dois aços se encontraram.
O ser humano ainda se encontrava ali, atordoado pelo medo, dirigindo primeiro a cabeça para os renegados, que avançavam para ele, e agora para Lucan, que lhes esperava com atitude inquebrável. Esse momento de dúvida ia custar lhe a vida, mas Lucan apartou esse pensamento com frieza. O ser humano não era assunto dele. Quão único importava era eliminar a esses chupadores aditivos de sangue e ao resto dos doentes de sua raça.
Um dos renegados se passou uma mão suja por cima dos lábios babantes.
—Te aparte, idiota. Deixa que nos alimentemos.

—Esta noite não —grunhiu Lucan.
— Não em minha cidade.


—Sua cidade? —O resto deles se burlou e o renegado que ia em cabeça cuspiu no chão, Aos pés de Lucan.
— Esta cidade nos pertenece . Dentro de muito pouco, possuiremo-la por completo.
—Exato —acrescentou outro dos quatro.
— Assim parece que é você quem entrou em um território alheio.
Finalmente, o ser humano recuperou certa inteligência e começou a retirar-se, mas não chegou muito longe. Com uma velocidade incrível, um dos renegados alargou uma mão e agarrou ao homem pela garganta. Ele levantou do chão e lhe segurou no ar: as botas altas do homem ficaram a dois centímetros do chão. O ser humano grunhiu e suplicou, lutando com ferocidade enquanto o renegado lhe apertava o pescoço com mais força, lhe estrangulando lentamente com a mão nua. Lucan o observou, imperturbável, inclusive quando o vampiro deixou cair sua retorcida presa e lhe fez um buraco no pescoço com os dentes.
Pela extremidade do olho, Lucan viu que Dante se aproximava sigilosamente aos renegados por detrás. Com as presas estendidas, o guerreiro se lambeu os lábios, ansioso por entrar na tarefa. Não ia sentir se defraudado. Lucan atacou primeiro, e logo a rua explodiu com um estrondo de metal e de ossos quebrados.
Enquanto Dante lutava como um demônio saído do inferno —com as diabólicas folhas extensíveis cintilando a cada movimento, soltando gritos de guerra que rasgavam a noite—, Lucan manteve um frio controle e uma precisão letal. Um a um, os quatro renegados sucumbiram sob os golpes de castigo dos guerreiros. O beijo das folhas de titânio se expandia como um veneno a toda velocidade pelo corrompido sistema sangüíneo dos renegados, acelerando sua morte e provocando as rápidas mudanças nos estados de decomposição característicos da morte dos renegados.
Quando tiveram terminado com seus inimigos, quando seus corpos se reduziram de carne a osso e de osso a cinza fumegante, Lucan e Dante foram ver os restos do outro açougue da rua.
O ser humano estava imovel e sangrava profundamente por uma ferida que tinha na garganta.

Dante se agachou ao lado do homem e cheirou seu destroçado corpo.

—Está morto. Ou o vai estar dentro de um minuto.
O aroma do sangue derramado encheu as fossas nasais de Lucan com a força de um murro no ventre. Suas presas, estendidas já por causa da ira, agora pulsavam pelo desejo de alimentar-se. Baixou a vista e observou com desgosto ao humano moribundo. Apesar de que tomar o sangue era necessário para ele, Lucan desprezava a idéia de aceitar os refugos dos renegados, tivessem a forma que tivessem. Preferia conseguir o seu sustento dos serviçais anfitriões que ele mesmo elegia ali onde podia, apesar de que esses escassos bocados somente conseguiam despertar uma fome mais profunda.
Antes ou depois, todo vampiro tinha que matar.
Lucan não tentava negar sua natureza, mas nas ocasiões em que matava, o fazia seguindo sua própria eleição, seguindo sua próprias regras. Quando procurava uma presa, elegia principalmente criminosos, traficantes de droga, assassinos e outra gente de má vida. Era judicioso e eficiente e nunca matava pelo prazer de fazê-lo. Todos os da raça seguiam um código de honra similar; isso era o que lhes distinguia de seus irmãos os renegados, que se tinha separado deles ao rebelar-se a essa lei.
Sentiu que lhe esticava o ventre: o aroma do sangue voltou a fazer-se presente em suas fossas nasais. A saliva lhe começou a gotejar da boca ressecada.
Quando se tinha alimentado pela última vez?
Não podia recordá-lo: fazia bastante tempo. Vários dias, pelo menos, e não o suficiente para que lhe durasse. Tinha pensado acalmar parte da fome —tão carnal como de sangue— com a Gabrielle Maxwell a outra noite, mas essa idéia tinha tomado um giro repentino. Agora tremia por causa da necessidade de alimento, e essa necessidade era muito forte para pensar em algo exceto em cobrir as necessidades básicas de seu corpo.

—Lucan. — Dante apertou os dedos no pescoço do homem, procurando o pulso. As presas do vampiro estavam estendidos, afiados depois da batalha e por causa da reação fisiológica ante o forte aroma desse líquido escarlate que emanava do homem.
— Se esperarmos muito mais, o sangue terá morrido também.
E não lhes serviria de nada, posto que somente o sangue fresco que emanava das veias dos seres humanos podia saciar a fome de um vampiro. Dante esperou, inclusive apesar de que era óbvio que quão único desejava era baixar a cabeça e tomar sua parte desse homem, que tinha sido muito idiota para escapar quando tinha tido a oportunidade de fazê-lo.
Mas Dante esperaria, inclusive embora tivesse que deixar esbanjar esse sangue, dado que era um protocolo não escrito que as gerações mais jovens de vampiros não se alimentavam na presença dos mais velhos, especialmente se esse vampiro mais velho pertencia a categoria de «primeira geração» da raça e estava faminto.
A diferencia de Dante, o pai de Lucan era um dos Antigos, um dos oito guerreiros extraterrestres que tinham chegado de um planeta escuro e distante e se estrelaram milhares de anos atrás contra a superfície inóspita e implacável do planeta Terra. Para sobreviver, alimentaram-se do sangue dos seres humanos e tinham dizimado populações inteiras por causa de sua fome e de sua bestialidade. Em alguns estranhos casos, esses conquistadores estrangeiros se haviam emparelhado com êxito com fêmeas humanas, as primeiras companheiras de raça, que tinham gerado uma nova geração da raça dos vampiros.
Esses selvagens antepassados de outro mundo tinham desaparecido por completo, mas sua origem ainda continuava vivendo, como Lucan e uns quantos mais disseminados pelo mundo. Representavam o estádo mais próximo a realeza na sociedade dos vampiros: eram respeitados e não pouco temidos. A grande maioria dos da raça eram jovens, nascidos de uma segunda, terceira e, alguns, de uma décima geração.
A fome era mais urgente nos de «primeira geração». Também o era a propensão a ceder ante a sede de sangue e a converter-se em um renegado. A raça tinha aprendido a viver com esse perigo. A maioria deles tinha aprendido a dirigi-lo: tomavam sangue somente quando o necessitavam e nas mínimas quantidades necessárias para a sustentação. Tinham que fazê-lo assim, porque uma vez apanhados pela sede de sangue, não havia maneira de voltar atrás.

Os olhos afiados de Lucan caíram sobre a retorcida figura humana que ainda respirava ligeiramente, tombada no pavimento do chão. Ouviu um grunhido animal que provinha de sua própria garganta. Quando Lucan se aproximou com compridos passados em direção ao aroma do sangue vivo vertido no chão, Dante fez uma ligeira saudação com a cabeça e se apartou para permitir a seu superior que se alimentasse.


Capítulo cinco
Ele nem sequer se preocupou de chamá-la e lhe deixar uma mensagem a outra noite.
Típico.
Provavelmente tinha um encontro muito importante com seu mando à distancia e seu programa de poderes paranormais. Ou possivelmente, quando se houve marchado de seu apartamento a outra tarde, tinha conhecido a alguém mais e tinha recebido uma oferta mais interessante que devolver o telefone celular a Gabrielle no Beacon Hill.
Diabos, inclusive era possível que estivesse casado, ou que tivesse alguma relação com alguém. Não o tinha perguntado, e se o houvesse preguntado, isso não tivesse garantido que lhe houvesse dito a verdade. Lucan Throne, certamente, não era distinto a nenhum homem. Exceto pelo fato de que era... diferente.
Pareceu-lhe que era muito diferente a qualquer a quem houvesse conhecido até esse momento. Um homem muito reservado, quase fechado, que dava uma sensação extranhamente perigosa. Ela não podia imaginar sentado em uma poltrona diante do televisor, igual que tampouco lhe podia imaginar junto em uma relação séria de namoro, por não falar de uma esposa e uma família. O qual voltava a recordar a idéia de que seguramente ele teria recebido uma oferta mais interessante e tinha decidido desprezar a ela. E essa idéia lhe doía muito mais do que deveria.
«te esqueça dele», repreendeu-se Gabrielle quase sem fôlego enquanto aproximava o Cooper Mini negro à uma lateral da tranqüila rua local e desligava o motor. A bolsa com sua câmara e seu equipamento fotográfico se encontrava no assento do co-piloto. Agarrou-a, e tomou tambem uma pequena lanterna do porta-luvas, guardou as chaves na jaqueta e saiu do carro.

Fechou a porta sem fazer ruído e jogou uma rápida olhada ao seu redor. Não havia nem uma alma a vista, o qual não era surpreendente dado que eram quase as seis da manhã e que o edifício, no qual estava a ponto de entrar de forma ilegal e de fotografar, fazia vinte anos que estava fechado. Andou seguindo o caminho de pavimento gretado e girou a direita, cruzou uma sarjeta e subiu até um terreno cheio de carvalhos que formavam como uma densa cortina ao redor do velho hospital psiquiátrico.
O amanhecer começava a elevar-se pelo horizonte. A luz era fantasmagórica e etérea, como uma neblina úmida rosada e azulada que amortalhava essa estrutura gótica com um brilho de outro mundo. Apesar de estar pintado em tons claros, esse lugar tinha um ar ameaçador.
O contraste era o que a tinha atraído até essa localização essa manhã. Tomar as imagens ao anoitecer tivesse sido a eleição mais natural para concentrar-se na qualidade ameaçadora dessa estrutura abandonada. Mas era a justaposição da cálida luz do amanhecer com o tema frio e sinistro o que atraía a Gabrielle enquanto se detinha para tirar a câmara da bolsa que tinha pendurada do ombro. Tirou umas seis fotos e logo voltou a pôr a tampa a lente para continuar a caminhada em direção ao fantasmagórico edifício.
Uma alta cerca de arame apareceu diante dela, impedindo que os exploradores curiosos como ela entrassem na propriedade. Mas Gabrielle sabia que tinha um ponto débil escondido. Tinha-o descoberto a primeira vez que tinha vindo ao lugar para tirar umas fotos de exterior. Se apressou seguindo a linha da cerca até que chegou ao extremo sudoeste da mesma, onde se agachou até o chão. Ali, alguém tinha talhado discretamente o arame e tinha formado uma abertura o bastante grande para que um adolescente curioso pudesse abrir-se passo, ou para que uma fotógrafa decidida, e que tinha tendência a interpretar os sinais de «Não passar» e «Só pessoal autorizado» como sugestões amistosas em lugar de leis inquebráveis, penetrasse por ela.
Gabrielle abriu a parte de arame talhado, lançou o equipamento para o outro lado e se arrastou como uma aranha, sobre o ventre, Através da baixa abertura. Quando ficou em pé, ao outro lado da cerca, sentiu que as pernas lhe tremiam por causa de uma repentina apreensão. Deveria estar acostumada a este tipo de operações encobertas, de explorações em solitário: muito freqüentemente, sua arte dependia de sua coragem para encontrar lugares desolados, que alguns qualificariam de perigosos. Esse arrepiante psiquiátrico podia, certamente, qualificar-se como perigoso,
pensou enquanto deixava vagar o olhar por um grafite pintado com aerosol ao lado da porta de entrada que dizia más vibrações.
—Já pode dizê-lo —sussurrou em voz muito baixa. Enquanto se sacudia as agulhas de pinheiro e a terra da roupa, com gesto automático levou uma mão até o bolso dianteiro de seu jeans em busca do celular. Não estava ali, é obvio, já que ainda estava em poder do detetive Thorne. Outra razão para sentir-se aborrecida com ele por havê-la feito esperar a outra noite.
Possivelmente não deveria ser tão dura com o menino, pensou, repentinamente desejosa de concentrar-se em algo distinto ao mau pressentimento que a atendia agora que se encontrava dentro do terreno do psiquiátrico. Possivelmente Thorne não se apresentou porque algo lhe tinha acontecido no trabalho.
E se tinha sido ferido em cumprimento do dever e não acudiu tal e como tinha prometido porque se encontrava de alguma forma encapacitado de chamar ? Possivelmente não tinha chamado para desculpar-se nem para explicar sua ausência porque não podia fazê-lo fisicamente.
Exato. E possivelmente ela tinha comprovado seu próprio cérebro com as bra-gás do mesmo segundo em que tinha posto os olhos nesse homem.
Burlando-se de si mesmo, Gabrielle recolheu suas coisas e caminhou em direção a imponente arquitetura do edifício principal. Uma pálida pedra calcária se elevava para o céu em uma levantada torre central, remota em uns picos e agulhas dignos da melhor catedral gótica. Ao seu redor havia um extenso recinto de paredes de tijolo vermelho, cujo teto estava composto por telhas ordenadas em um desenho como de asas de morcego, comunicado entre eles por passarelas e arcos que formavam um claustro coberto.
Mas por impressionante que fosse essa estrutura, não havia forma de tirar-se de cima a sensação de uma ameaça latente, como se mil pecados e mil segredos se apertassem detrás dessas descascadas paredes e janelas com parte de cristais quebrados. Gabrielle caminhou até o ponto onde a luz era melhor e tomou umas quantas fotos. Não havia nenhuma maneira de entrar por aí: a porta principal estava fechada com ferrolho e com travessas de madeira. Se queria entrar para realizar algumas fotos do interior —e, definitivamente, sim queria—, tinha que dar a volta até a parte traseira e provar sorte com alguma janela que estivesse a pé de rua ou com alguma porta do porão.
Baixou deslizando-se por um aterro em pendente para a parte posterior do edifício e encontrou o que estava procurando: umas portinhas de madeira ocultavam três janelas que era muito provável que se abrissem a uma zona de serviço ou a um armazém. Os ferrolhos estavam oxidados, mas não estavam fechados e se abriram com facilidade quando se serve de ajuda de uma pedra que encontrou ali ao lado. Atirou da coberta de madera das janelas, levantou o pesado painel de cristal e o escorou, aberto, com os ferrolhos.
Fez uma varredura geral iluminando-se com a lanterna para assegurar-se de que o lugar estava vazio e de que não ia desabar sobre sua cabeça imediatamente, e penetrou através da abertura. Ao saltar do marco da janela, o solado de suas botas pisaram em cristais quebrados e pó e lixo acumulados durante anos. Esse porão de blocos de concreto tinha uns três metros e meio de comprimento e desaparecia na escura zona que ficava sem iluminar. Gabrielle dirigiu o magro feixe de luz de sua lanterna para as sombras do outro extremo do espaço. Percorreu com ele a parede e o deteve sobre uma velha porta de serviço em cuja superfície se podia ler o seguinte pôster: acesso restringido.
—O que te aposta? —sussurrou enquanto se aproximava da porta. Efetivamente, não estava fechada com chave.
Abriu-a e projetou a luz para o outro lado da porta, onde se abria um comprido corredor parecido a um túnel. Uns suportes de fluorescente quebrados penduravam do teto; alguns dos painéis que os haviam coberto tinham caido sobre o chão de qualidade industrial, onde jaziam quebrados e cobertos de pó. Gabrielle entrou nesse espaço escuro, insegura do que estava procurando e com certo temor do que poderia encontrar nas desertas tripas desse psiquiátrico.
Passou por diante de uma porta aberta do corredor e a luz do flash iluminóu uma cadeira de dentista de vinil vermelho, um pouco gasta, que se encontrava colocada no centro da habitação, como se esperasse ao próximo paciente. Gabrielle tirou a câmara de sua capa e tomou um par de rápidas fotos. Logo continuou para diante e passou ante uma série de habitações de revisão e de tratamento. Devia encontrar-se na ala médica do edifício.

Encontrou uma escada e subiu dois lances até que chegou, para sua complacencia, a torre central onde umas grandes janelas deixavam entrar a luz da manhã em generosas quantidades.
Através da lente da câmara olhou por cima de amplos terrenos e pátios flanqueados por elegantes edifícios de tijolo e de pedra calcária. Realizou umas quantas fotos do lugar, apreciando tanto sua arquitetura como o quente jogo que a luz do sol fazia contra tantas sombras fantasmagóricas. Resultava estranho olhar para fora do confinamento de um edifício que antigamente tinha albergado a tantas almas perturbadas. Nesse inquietante silêncio, Gabrielle quase podia ouvir as vozes dos pacientes, de gente que, simplesmente, não tinha a possibilidade de marchar-se caminhando dali como ela faria então.
Gente como sua mãe biológica, uma mulher a quem Gabrielle não tinha conhecido nunca e da qual não sabia nada mais que o que tinha ouvido de menina nas conversações apagadas que os trabalhadores sociais e as famílias de acolhida mantiveram e que ao final, uma por uma, devolveram ao sistema como se fosse um animal doméstico que houvesse demonstrado ser mais problemático do que se podia suportar. Tinha perdido a conta do número de lugares aonde a tinham enviado a viver, mas as queixa contra ela quando a devolviam sempre eram as mesmas: inquieta e introvertida, fechada e desconfiada, socialmente disfuncional com tendência a atitudes autodestrutivas. Tinha ouvido os mesmos qualificativos dirigidos para sua mãe, aos quais acrescentavam as categorias de paranóica e delirante.
Quando os Maxwell apareceram em sua vida, Gabrielle tinha passado dezenove dias em uma casa de acolhida sob a supervisão de um psicólogo designado pelo Estado. Não tinha nenhuma expectativa e ainda menos esperanças de que fora capaz de conseguir que outra situação de acolhida funcionasse. Francamente, já não lhe importava. Mas seus tutores tinham sido pacientes e bondosos. Acreditando que possivelmente a ajudasse a dirigir a confusão emocional, tinham-na ajudado a conseguir um punhado de documentos judiciais que tinham que ver com sua mãe.
Essa mulher tinha sido uma adolescente anônima, acreditava-se que era uma sem teto, que não tinha identificação, não lhe conhecia família nem conhecidos exceto pela menina recém-nascida que tinha abandonado, chorando e angustiada, em um contêiner de lixo da cidade em uma noite de agosto. A mãe de Gabrielle tinha sido maltratada, e sangrava por umas profundas feridas no pescoço que ela mesma se piorou rasgando-a, vítima da histeria e do pânico.

Em lugar de persegui-la pelo crime de haver abandonado seu bebê, o tribunal a tinha considerado incapacitada e a tinham enviado a umas instalações que certamente não eram muito diferentes a esta em que se encontrava ela agora. Quando ainda não levava nem um mês no centro institucional, pendurou-se com um lençol deixando detrás dela inumeráveis pergunta que nunca teriam resposta.
Gabrielle tentou tirar-se de cima o peso dessas velhas feridas, mas enquanto estava ali em pé e olhava através dos brumosos cristais das janelas, todo seu passado apareceu em primeiro plano em sua mente. Não queria pensar em sua mãe, nem na desgraçada circunstância de seu nascimento, nem nos escuros e solitários anos que lhe seguiram. Precisava concentrar-se em seu trabalho. Isso era o que lhe tinha permitido continuar para diante, depois de tudo. Era o único constante em sua vida, e as vezes tinha sido quão único de verdade tinha neste mundo.
E era suficiente.
Durante a maior parte do tempo, era suficiente.
«Toma umas quantas fotos e te largue daqui», disse a si mesmo, como brigando-se.
Levantou a câmara e tomou um par de fotos mais através do delicado trabalho de metal que se entrelaçava entre as duas janelas de cristal.
Pensou em partir pelo mesmo caminho por onde tinha entrado, mas se perguntou se possivelmente poderia encontrar outra saída em algum ponto do piso de abaixo do edifício central. Voltar a baixar ao escuro porão não lhe resultava especialmente atrativo.
Estava inquietando a si mesmo pensando em coisas sobre a loucura de sua mãe, e quanto mais momento se entretivera nesse velho psiquiátrico, mais lhe foram pôr os cabelos de ponta. Abriu a porta da escada e se sentiu um pouco melhor ao ver a tênue luz que se filtrava para dentro pelas janelas em algumas das habitações e nos corredores adjacentes.

Era óbvio que o artista do grafite de más vibrações tinha chegado até ali também. Em cada uma das quatro janelas havia uns extranhos símbolos realizados com pintura negra. Provavelmente eram os marcos de alguma turma, ou as assinaturas estilizadas dos meninos que tinham estado ali antes que ela. Em uma esquina havia uma lata de aerosol atirada, ao lado de umas bitucas de cigarros, de umas garrafas de cerveja quebrada e outros restos.
Gabrielle tomou a câmara e procurou um ângulo adequado para a fotografia que tinha em mente. A luz não era muito boa, mas com um lente diferente possivelmente resultasse interessante. Rebuscou na bolsa à procura das lentes e nesse momento ficou gelada ao ouvir um zumbido distante que procedia de algum ponto por debaixo de seus pés. Era muito frouxo, mas soava como o de um elevador, o qual era impossível. Gabrielle voltou a introduzir o equipamento na bolsa sem deixar de prestar atenção aos vagos sons que sentia ao seu redor. Todos os nervos de seu corpo se haviam esticado com uma gelada sensação de apreensão.
Não se encontrava sozinha ali dentro.
Agora que o pensava, notou que uns olhos a olhavam desde algum ponto próximo. Essa inquietante tira de consciência lhe pôs os cabelos de ponta na nuca e nos braços. Devagar, girou a cabeça e olhou para trás. Foi então quando o viu: uma pequena câmara de vídeo de circuito fechado montada em uma sombria esquina elevada do corredor, e que vigiava a porta da escada que ela tinha atravessado fazia somente uns minutos.
Possivelmente não estivesse em funcionamento e fosse somente algo que tinha ficado ali dos dias em que o psiquiátrico estava ainda em funcionamento. Essa teria sido uma idéia consoladora se a câmara não tivesse um aspecto tão cuidado e compacto, tão de tecnologia de vanguarda em segurança. Para comprová-lo, Gabrielle se aproximou dela e se colocou quase diretamente diante da câmara. Sem fazer nenhum ruído, a base da câmara girou e colocou a lente no ângulo adequado até que ficou enfocado no rosto de Gabrielle.

«Merda — disse, olhando esse olhos negro que não piscava.
—Pega.»
Das profundidades do edifício vazio, ouviu um rangido metálico e o estrondo de uma porta pesada. Era evidente que esse psiquiátrico abandonado não estava tão abandonado depois de tudo. Pelo menos tinham sistema de segurança, e a polícia de Boston poderia aprender algo dessa lição sobre o rápido tempo de reação dessa gente.
Soaram uns passos a um ritmo compassado: alguém que se encontrava vigiando tinha começado a dirigir-se para ela. Gabrielle se dirigiu para a escada e saiu disparada escada abaixo enquanto a bolsa a golpeava no quadril. À medida que baixava, a luz diminuía. Tomou a lanterna com a mão, mas não queria utilizá-la por medo de que funcionasse como um aviso de onde estava e o segurança pudesse segui-la. Chegou ao final da escada, empurrou a porta de metal e se precipitou para a escuridão do corredor do piso inferior.
Ouviu que a porta monitorada da escada se abria com um rangido e que seu perseguidor se precipitava para baixo, detrás dela, correndo com rapidez e ganhando terreno rapidamente.
Finalmente, chegou a porta de serviço do final do corredor. Lançou-se contra o aço frio e correu pelo escuro porão até a pequena janela que se encontrava aberta em uma das laterais. A corrente de ar frio lhe deu força: apoiou as mãos no marco da janela e se elevou. Deixou-se cair ao outro lado da janela, aterrissando fora na terra cheia de pedras.
Agora não podia ouvir seu perseguidor. Possivelmente lhe tinha avoado nos escuros de labirínticos corredores. Deus, isso esperava.
Gabrielle ficou em pé ao momento e correu em direção a abertura da cerca de arame. Encontrou-a rapidamente. colocou-se engatinhando e se introduziu pela fenda no arame com o coração desbocado e a adrenalina lhe correndo pelas veias.

Tinha muito pânico: em sua precipitação por escapar, arranhou-se um lado do rosto com um arame afiado da cerca. O corte lhe queimava na bochecha e sentiu o rastro quente de sangue que lhe baixava ao lado da orelha. Mas não fez caso da abrasadora ardência nem do golpe que se deu com a bolsa da equipamento fotográfica enquanto se inclinava sobre seu ventre para sair, através da cerca, para a liberdade.
Quando a teve atravessado, Gabrielle ficou em pé e correu enlouquecida pelo largo e escarpado terreno dos subúrbios. Somente se permitiu jogar uma rápida olhada para trás: o suficiente para ver que o enorme guarda de segurança ainda estava ali. Teria saído por algum lugar do piso principal e agora corria detrás dela como uma besta recém saída do inferno. Gabrielle tragou saliva de puro pânico ao lhe ver. O tipo parecia um tanque, facilmente pesava cento e dez quilogramas de puro músculo, e tinha uma cabeça grande e quadrada com o cabelo talhado ao estilo militar. Esse tipo enorme correu até a alta cerca e se deteve ao chegar a ela: golpeou-a com os punhos enquanto Gabrielle entrava correndo pela densa cortina de árvores que separava a propriedade da estrada.
O carro se encontrava a um lado do tranqüilo asfalto, justo onde o tinha deixado. Com mãos trementes, Gabrielle se esforçou por abrir a porta. sentia-se petrificada de pensar que esse tipo carregado de esteroides pudesse apanhá-la. Seu medo parecia irracional, mas isso não impedia que a adrenalina lhe corresse por todo o corpo. Afundou-se no acento de pele do Mini, pôs a chave no contato e ligou o motor. Com o coração acelerado, pôs em marcha o pequeno carro, apertou a fundo o pedal de aceleração e se precipitou para a estrada, escapando com um chiado de pneumáticos sobre o asfalto e o conseguinte aroma de queimado dos mesmos.


Capítulo seis
A metade da semana, em plena temporada turística, os parques e avenidas de Boston estavam coalhados de humanidade. Os trens traziam as pessoas a toda velocidade dos subúrbios, a seus lugares de trabalho ou aos museus, ou aos inumeráveis pontos históricos que se encontravam por toda a cidade. Olheiros carregados com câmeras subiam aos ônibus que lhes levavam de excursão ou se colocavam em fila para subir as Ferris sobrecarregados que lhes levariam mais à frente do cabo.
Não muito longe da agitação do dia, oculto a uns nove metros sob uma mansão dos subúrbios da cidade, Lucan Thorne se inclinou sobre um monitor de tela plaina, no edifício dos guerreiros da raça, e pronunciou uma maldição. Os registros de identificação dos vampiros apareciam em tela a velocidade vertiginosa enquanto o programa de computador realizava uma busca na enorme base de dados internacional procurando coincidências com as fotos que Gabrielle Maxwell tinha tomado.
—Ainda nada? —perguntou, olhando de soslaio e com expressão impaciente a Gideon, o operador informático.
—Nada até o momento. Mas ainda se está realizando a busca. A Base de dados de Identificação Internacional tem uns quantos milhões de registros para comprovar. —Os agudos olhos azuis do Gideon cintilaram por cima da arreios dos elegantes óculos de sol— Lhes jogarei o laço a esses burros, não se preocupe.
—Não me preocupo nunca —repôs Lucan, e o disse de verdade. Gideon tinha um coeficiente intelectual que rompia todas as estatísticas e ao que se acrescentava uma tenacidade enorme. Esse vampiro era tanto um caçador incansavel como um gênio e Lucan se alegrava de lhe ter ao seu lado.
_Se você não for capaz de tirá-los a luz, Gideon, ninguém pode fazê-lo.
O gurú informático da raça, com sua coroa de cabelo curto e encrespado, dirigiu-lhe um sorriso fanfarrão e confiado.
—É por isso que levo os verdes grandes.

—Sim, um pouco parecido —disse Lucan enquanto se separava da tela, onde os dados não deixavam de aparecer sem parar.
Nenhum dos guerreiros da raça que se comprometeram a proteger a estirpe frente ao açoite dos renegados o fazia por nenhuma compensação. Nunca a tinham tido, desde que se organizaram pela primeira vez nessa aliança durante o que para os humanos foi a idade medieval. Cada um dos guerreiros tinha seus próprios motivos para ter eleito esse perigoso modo de vida, e alguns deles eram, tinha-se que admitir, mais nobres que outros. Como Gideon, que tinha trabalhado nesse campo de forma independente até que seus dois irmãos, que eram pouco mais que uns meninos, foram assassinados pelos renegados aos subúrbios do Refúgio Escuro de Londres. Então Gideon procurou a Lucan. Disso fazia três séculos, umas décadas mais ou menos. Incluso então a habilidade do Gideon com a espada somente encontrava rival na afiada estocada de sua mente. Tinha matado a muitos renegados em seus tempos, mas mais tarde, a devoção e a promessa íntima que fez a sua companheira de raça, Savannah, tinham-lhe feito abandonar o combate e empunhar a arma da tecnologia ao serviço da raça.
Cada um dos seis guerreiros que lutavam ao lado de Lucan tinha seu talento pessoal. Também tinham seus demônios pessoais, mas nenhum deles era do tipo muito sensível que permitiria que um louco lhes colocasse uma lanterna pelo traseiro. Algumas costumes estavam melhor se deixavam na escuridão e, provavelmente, o único que estava mais convencido disso que o próprio Lucan era um guerreiro da raça conhecido como Dante.
Lucan saudou o jovem vampiro quando este entrou no laboratório técnico de uma das numerosas habitações do edifício. Dante, ataviado com sua habitual vestimenta negra, levava umas calças de ciclista e uma camiseta ajustada que mostrava tanto as tatuagens a tinta como suas intrincadas marcas de pertençer a raça. Seus avultados bíceps mostravam uns sinais afiligranados que a olhos de qualquer humano pareciam símbolos e desenhos geométricos realizados em profundas tonalidades terra. Mas os olhos de um vampiro distinguiam esses símbolos claramente: eram dermoglifos, umas marcas naturais herdadas dos antepasados da raça, cuja pele sem cabelo se havia recoberto de uma pigmentação cambiante e de camuflagem.

Normalmente, esses glifos eram motivo de orgulho para a raça e eram seus únicos sinais de linhagem e de fila social. Os membros da primera geração, como Lucan, luziam essas marca em maior número e seus tons eram mais saturados. Os dermoglifos de Lucan lhe cobriam o torso, por diante e por detrás, descendiam até suas coxas e se extendíam pela parte superior dos braços, além de subir pela nuca e lhe cobrir o crânio. Como tatuagens viventes, os glifos trocavam de tom segundo o estado emocional de um vampiro.
Os glifos de Dante, nesse momento, tinham um tom bronze, avermelhado, que indicava que se alimentou recentemente e que se sentia saciado. Sem dúvida, depois de que ele e Lucan se separaram ao cabo de ter dado caça aos renegados a noite anterior, Dante tinha ido em busca da cama e da amadurecida e suculenta veia da nádega de uma fêmea anfitriã.
—Que tal vai? —perguntou enquanto se deixava cair em cima de uma cadeira e colocava um pé embainhado em uma bota em cima do escritório, diante dele.
—Acreditei que já teria caçado e classificado a esses bastardos, Gid.
O acento de Dante tinha restos da musicalidade de seus ancestrais Italianos ate do século XVIII, mas essa noite, o educado tom de voz de Dante delatava um timbre afiado que indicava que o vampiro se sentia inquieto e ansioso por entrar em ação. Para sublinhar esse fato, tirou uma de suas típicas facas de folha curvada da cilha que levava no quadril e começou a jogar com o gentil aço.
Chamava a essas folhas curvadas Malebranche ou prolongações diabólicas, em referência Aos demônios que habitam um dos nove níveis do inferno, embora as vezes Dante adotava esse nome como pseudónimo para si mesmo quando se encontrava entre os humanos. Essa era quase toda a poesia que esse vampiro tinha em sua alma. Em todo o resto era impenitente, frio e escuramente ameaçador.
Lucan admirava isso dele, e tinha que admitir que observar a Dante durante o combate, com essas folhas inclementes, era algo belo, o bastante formoso para deixar em ridículo a qualquer artista.

—Bom trabalho o da noite passada —disse Lucan, consciente de que uma adulação emitida por ele era algo estranho, inclusive embora estivesse merecendo.
— Me salvou o pescoço aí.
Não falava da confrontação que tinham tido com os renegados, mas sim do que tinha acontecido depois disso. Lucan tinha passado demasiado tempo sem alimentar-se e a fome era quase tão perigosa para os seus como o vício que açoitava aos renegados. O olhar de Dante denotava que compreendia o que lhe estava dizendo, mas deixou acontecer o tema com sua habitual e fria elegância.
—Merda —repôs, com uma sonora e profunda gargalhada.
—.Depois de todas as vezes que você me há coberto as costas? Esquece-o, cara. Só te devolvia um favor.
Nesse momento, as portas de cristal da entrada do laboratório se abriram com um zumbido surdo e dois mais dos irmãos de Lucan entraram. Eram um bom par. Nikolai, alto e atlético, de cabelo loiro como a areia, uns rasgos angulares e impactantes e uns olhos penetrantes e azuis como o gelo, que só eram um tom mais frios que o céu de sua Siberia natal. O mais jovem do grupo e com diferença, Niko, havia-se feito homem durante o que os humanos chamavam a Guerra Fria. Do berço tinha sido imparavel e agora se converteu em um buscador de sensações de alta voltagem e se encontrava em primeira fila da raça no que tinha que ver com armas, aparelhos, e tudo o que ficava no meio.
Conlan, pelo contrário, falava com suavidade e era sério: era um perito em tática. Ao lado da excessiva fanfarronice do Niko, resultava elegante como um gato grande. Seu corpo era como um muro de músculos, e o cabelo loiro, de cor areia, brilhava por debaixo do triangulo de seda negra com que se envolvia a cabeça. Esse vampiro pertencia a uma das últimas gerações da raça, era um jovem segundo o critério de Lucan, e sua mãe era uma humana filha de um capitão escocês. O guerreiro se movia com um porte quase de realeza.
Inclusive sua amada companheira de raça, Danika, dirigia-se a esse habitante das terras altas afetuosamente lhe chamando, com freqüência, «meu senhor» e essa fêmea não era precisamente servil.

—Rio está de caminho —anunciou Nikolai com um amplo sorriso que lhe formava duas covinhas nas bochechas. Olhou a Lucan e assentiu com a cabeça.
— Eva me há dito que te diga que poderemos dispor de seu homem somente quando ela tenha terminado com ele.
—Se é que fica algo —disse Dê, arrastando as palavras enquanto levantava uma mão para saudar outros com um suave roce das palmas prévio a um choque de nódulos.
Lucan saudou Niko e a Conlan da mesma maneira, mas se sentiu algo molesto pelo atraso de Rio. Não invejava a nenhum dos vampiros pela companheira de raça que tinham eleito, mas, pessoalmente, Lucan não encontrava nenhum sentido atar-se as demandas e responsabilidades de um vínculo de sangue com uma fêmea. Esperava-se que, em geral, a população da raça aceitasse a uma mulher para aparear-se e dar nascimento a seguinte geração, mas para a classe dos guerreros —para esses escassos machos que, de forma voluntária, haviam abandonado o santuário dos Refúgios Escuros para levar uma vida de luta processo de vincular-se por sangue era, para Lucan, uma frescura no melhor dos casos.
E no pior, era um convite ao desastre quando um guerreiro sentia a tentação de antepor os sentimentos para sua companheira por cima de seu dever para a raça.
—Onde está Tegan? —perguntou, ao dirigir seus pensamentos de forma natural para o último deles que faltava no edifício.
—Ainda não retornou —respondeu Conlan.
—Chamou de onde se encontra?
Conlan e Niko intercambiaram um olhar, e Conlan negou rapidamente com a cabeça:
—Nenhuma palavra.

—Esta é a vez que esteve mais tempo desaparecido em ação — assinalou Dê sem dirigir-se a ninguém em especial enquanto passava o dedo polegar pelo fio da folha curvada de sua faca.
—Quanto faz? Três, quatro dias?
Quatro dias, quase cinco.
Quem deles levava a conta?
Resposta: todos eles a levavam, mas ninguém pronunciou em voz alta a preocupação que se estendeu ultimamente em suas filas. Tal como estava o tema, Lucan tinha que esforçar-se para controlar a raiva que despertava nele cada vez que pensava no membro mais introvertido dos membros de seu quadro.
Tegan sempre preferia caçar em solitário, mas seu caráter afastado começava a resultar uma carga para outros. Era como um curinga, adquiria um valor diferente em função de cada ação e, ultimamente, cada vez mais. E Lucan, tinha que ser franco, encontrava difícil confiar nesse menino, embora a desconfiança não fosse nada novo no que concernia a Tegan. Havia uma má relação entre ambos, sem dúvida, mas essa era uma história antiga.
Tinha que ser assim. A guerra em que ambos se comprometeram desde fazia tanto tempo era mais importante que qualquer aversão que pudesse sentir um para o outro.
Apesar disso, o vampiro levava a cabo uma vigilância estreita. Lucan conhecia as debilidades de Tegan melhor que nenhum de outros e não duvidaria em responder se esse macho punha embora fosse o dedo gordo do pé no outro extremo da linha.
Por fim, as portas do laboratório se abriram e Rio entrou na hábitação enquanto se colocava as abas de sua elegante camisa branca de desenho dentro da calça negra feita a medida. Faltavam alguns botões na camisa de seda, mas Rio levava a má compostura depois do sexo com a mesma elegância desenvolvida com que se movia em todas as demais circunstâncias. Sob a densa franja de cabelo escuro que lhe pendurava por cima das sobrancelhas, os olhos de cor topázio do espanhol parecia que dançavam. Quando sorria, brilhavam-lhe as pontas das presas que, nesses momentos, ainda não se haviam retratados depois de que a paixão por sua dama os tivesse desdobrado.

—Espero que me tenham guardado alguns renegados, meus amigos. — esfregou-se as mãos:—Me sinto bem e tenho vontades de festa.
— Sente-se disse Lucan— e tenta não manchar de sangue os computadores do Gideon.
Gideon se levou os largos dedos da mão até a marca vermelha que Eva tinha feito na garganta, evidentemente ao lhe morder com seus dentes romos de humana para lhe chupar a veia. Apesar de que era uma companheira de raça, continuava sendo geneticamente Homo sapiens. Embora fazia muitos anos que ela e outras como ela mantinham vínculos de sangue com seus companheiros, nenhuma delas teria presas nem adquiriría as demais características dos machos vampiro. Era uma prática ampliamente aceita que um vampiro alimentasse a sua companheira através de uma ferida que ele mesmo se infligia no pulso ou no antebraço, mas as paixões eram selvagens nas filas dos guerreiros da raça. E também o eram com as mulheres que escolhiam. O sexo e o sangue era uma combinação muito potente: Às vezes, muito potente.
Com um sorriso impenitente, Rio se moveu na cadeira giratória com gesto alegre e desenvolvido e se recostou no respaldo para colocar os pés nus em cima do console . Ele e os outros guerreiros começaram a recordar os fatos da noite anterior e riram sem deixar de mostrar-se superiores uns com os outros enquanto discutiam as técnicas de sua profissão.
Caçar a seus inimigos era motivo de prazer para alguns membros da raça, mas a motivação íntima de Lucan era o ódio, puro e simples. Não tentava ocultá-lo. Desprezava tudo aquilo que os renegados representavam e tinha jurado, fazia muito tempo, que os aniquilaria ou que morreria no intento. Havia dias nos que não lhe importava qual das duas coisas pudesse acontecer.
—Aí está —disse Gideon por fim ao ver que os registros que apareciam em tela se detinham.
— Parece que encontramos um filão.

—O que obtiveste?
Lucan e outros dirigiram a atenção para a tela plaina extra grande que se encontrava em cima da mesa dos microprocessadores do laboratório. Os rostos dos quatro renegados a quem Lucan matou apareceram ao lado dos das fotos do celular de Gabrielle: eram os mesmos indivíduos.
—Os registros da Base de dados de Identificação Internacional os têm qualificados como desaparecidos. Dois desapareceram do Refúgio Escuro de Connecticut o mês passado, e outro do Fall River, e este último é daqui. Todos são da geração atual, e o mais jovem nem sequer tem trinta anos.
—Merda —exclamou Rio antes de assobiar com suavidade.
— Meninos estúpidos.
Lucan não disse nada, não sentia nada, pela perda dessas vidas jovens ao converter-se em renegados. Não eram os primeiros, e seguro que não seriam os últimos. Viver nos Refúgios Escuros podia resultar bastante aborrecido para um macho imaturo que tivesse alguma coisa que demostrar. O atrativo do sangue e da conquista se encontrava profunda-mente enraizado inclusive entre as últimas gerações, que eram as que se encontravam mais distantes de seus selvagens antepassados. Se um vampiro ia em busca de problemas, especialmente em uma cidade do tamanho da de Boston, normalmente os encontrava em abundância.
Gideon introduziu uma rápida série de ordens através do teclado do computador e abriu mais fotos procedentes da base de dados.
—Aqui estão os últimos dois registros. Este primeiro indivíduo é um renegado conhecido, um agressor reincidente em Boston, apesar de que parece que se manteve um tanto à margem durante os últimos três meses. Quer dizer, tem-no feito até que Lucan o reduziu a cinzas no beco este fim de semana.
—E o que sabemos deste? —perguntou Lucan, olhando a última imagem que ficava, a do único renegado que tinha conseguido escapar depois do ataque fora da discoteca. Sua foto no registro era uma imagem tomada de um fotograma de um vídeo que, presumivelmente, fez-se durante uma espécie de sessão de interrogatório conforme se deduzia pelas ataduras e os eletrodos que levava em cima.

—Quanto tempo tem esta imagem?
—Uns seis meses —respondeu Gideon, abrindo a data da imagem— Sai de uma das operações na Costa Oeste.
—Los Angeles?
—Seattle. Mas segundo o relatório, em Los Angeles tem uma ordem de arresto também.
—Ordens de arresto —disse Dê em tom zombador.
— Uma fodida perda de tempo.
Lucan não podia não estar de acordo com ele. Para quase toda a nação de vampiros nos Estados Unidos e no estrangeiro, o cumprimento da lei e a detenção dos indivíduos que se converteram em renegados se governavam por umas regras e procedimentos específicos. Redigiam-se ordens de arresto, realizavam-se as detenções, realizavam-se os enterrogatorios e se transmitiam as condenações. Tudo era muito civilizado e estranhamente resultava efetivo.
Enquanto que a raça e a população dos Refúgios Escuros estavam organizados, motivados e envoltos por capas de burocracia, seus inimigos eram imprevisíveis e impetuosos. E, a não ser que a intuição de Lucan fora errônea, os renegados, depois de séculos de anarquia e de caos geral, estavam começando a organizar-se.
Se é que não levavam já meses nesse processo.
Lucan observou a imagem que tinha aparecido em tela. Na imagen de vídeo, o renegado a quem tinham capturado se encontrava preso em uma prancha de metal colocada em vertical, nu e com a cabeça barbeada por completo, provavelmente para que as descargas elétricas que lhe enviavam lhe chegassem com maior facilidade enquanto lhe interrogavam. Lucan não sentia nenhuma compaixão pela tortura que o renegado tinha suportado. Freqüentemente era necessário realizar interrogatórios desse tipo, e igual que acontece com um ser humano enganchado a heroína, um vampiro que sofria de sede de sangue podia suportar dez vezes mais e sem fraquejar a dor que outro de seus irmãos de raça podia agüentar.

Esse renegado era grande, com umas sobrancelhas densas e uns rasgos fortes e primitivos. Nessa imagem lhe via rir com ironia. Os largos dentes brilhavam e tinha uma expressão selvagem nos olhos da cor do ámbar e de pupilas alargadas e verticais. Encontrava-se envolto por cabos da cabeça enorme até o musculoso peito e os braços firmes como martelos.
—Dando por entendido que ser feio não é um crime, por que motivo lhe pilharam em Seattle?
—Vamos ver o que temos. —Gideon voltou a colocar-se ante os computadores e abriu um registro em outra das telas.
—Lhe hão arrestado por tráfico: armas, explosivos, substâncias químicas. Vá, este tipo é um encanto. Colocou-se em uma merda verdadeiramente feia.
—Alguma idéia sobre de quem eram as armas que levava?
—Aqui não diz nada. Não conseguiram grande coisa com ele, é evidente. O registro informa que escapou justo depois de que tomassem estas imagens. Matou a dois dos guardas durante a fuga.
E agora havia tornado a escapar, pensou Lucan, desalentado e desejando ferventemente ter decapitado ao filho de puta quando o tinha diante. Não suportava o fracasso com facilidade, e muito menos quando se tratava do seu próprio.
Lucan olhou a Niko.
—Cruzaste-te alguma vez com este tipo?
—Não —repôs o russo—, mas consultarei com meus contatos, a ver o que posso averiguar.

—Ponha nisso.
Nikolai assentiu com a cabeça com gesto rápido e se dirigiu para a saida do laboratório técnico enquanto já marcava o número de telefone de alguém no celular.
—Estas fotos são uma merda —disse Conlan, olhando por cima do ombro do Gideon em direção as fotos que Gabrielle tinha tomado durante o assassinato, fora da discoteca. O guerreiro pronunciou uma maldição.
— Já é bastante mau que os humanos tenham presenciado alguns dos assassinatos dos renegados durante os últimos anos, mas agora se dedicam a deter-se e a tomar fotos?
Dante deixou cair os pés ao chão com um ruído surdo, ficou em pé e começou a caminhar pela habitação, como se começasse a sentir-se cada vez mais inquieto pela falta de atividade nessa reunião.
—Todo mundo acredita que são uns fodidos paparazzi.
—O tipo que fez essas fotos deveu cagar-se de medo ao encontrar-se com noventa quilogramas de guerreiro salivando por ele —acrescentou Rio. E, olhou a Lucan—. Lhe apagou primeiro a memória, ou simplesmente o eliminou ali mesmo?
—O humano que presenciou o ataque essa noite era uma mulher. —Lucan olhou fixamente os rostos de seus irmãos sem mostrar o que sentia em relação a informação que estava a ponto de lhes dar.
— Resulta que é uma companheira de raça.
—Mãe de Deus —exclamou Rio, passando a mão pelo cabelo—. Uma companheira de raça. Está seguro?
—Leva o sinal. Vi-a com meus próprios olhos.
—O que fez com ela? Transou, não...?

—Não —repôs com secura Lucan, inquieto pelo que o espanhol havia insinuado com o tom de voz.
—Não fiz nenhum mal a essa mulher. Existe uma linha que nunca vou cruzar.
Tampouco tinha reclamado a Gabrielle para si, embora tinha estado muito perto de fazê-lo essa noite no apartamento dela. Lucan apertou a mandíbula: uma onda de escuro desejo lhe invadiu ao pensar em quão tentadora Gabrielle estava, enroscada e dormida na cama. No malditamente doce que era seu sabor em sua língua...
—O que vais fazer com ela, Lucan? —Esta vez, a expressão de preocupação proveio de onde se encontrava Gideon.
— Não podemos deixar que os renegados a encontrem. Seguro que ela chamou a atenção deles quando realizou essas fotos.
—E se os renegados se dão conta de que é uma companheira de raça... —acrescentou Dê, interrompendo-se A metade da frase. Outros assentiram com a cabeça.
—Ela estará mais segura aqui —disse Gideon—, sob o amparo da raça. Melhor ainda: deveria ser oficialmente admitida em um dos Refúgios Escuros.
—Conheço o protocolo —repôs Lucan, pronunciando cada palavra com lentidão. Sentia muita raiva ao pensar em que Gabrielle pudesse acabar nas mãos dos renegados, ou nas de outro membro da raça se fazia o que era devido e a mandava a um dos Refúgios Escuros da nação. Nenhuma das duas opções lhe parecia aceitável nesse momento a causa do sentimento possessivo que lhe bulia nas veias, irreprimivel embora não desejado.
Olhou a seus irmãos guerreiros com frieza.
—Essa mulher é responsabilidade minha a partir de agora mesmo. Decidirei qual é a melhor atuação neste tema.
Nenhum dos guerreiros lhe contradisse. Lucan não esperava que o fizessem. Em qualidade de membro de primeira geração, ele era mais antigo; em qualidade de guerreiro fundador dos de sua classe na raça, era quem mais coisas tinha demonstrado, com sangue e também com o aço. Sua palavra era lei, e todos os que se encontravam nessa habitação o respeitavam.

Dante ficou em pé, brincou com a Malebranche entre seus compridos e hábeis dedos e a embainhou com um ágil gesto.
—Faltam quatro horas para que caia o sol. Vou. —Olhou de soslaio a Rio e a Conlan.
— Alguém tem vontades de treinar antes de que as coisas fiquem interessantes?
Os dois machos se levantaram rapidamente, animados pela idéia, e detrás dirigir uma respeitosa saudação a Lucan, os três grandes guerreiros sairam do laboratório técnico e percorreram o corredor em direção a zona de treinamento do edifício.
—Tem algo mais sobre esse renegado de Seattle? —perguntou- Lucan a Gideon enquanto as portas de cristal se fechavam, quando ambos ficaram sozinhos no laboratório.
— Agora mesmo estou realizando uma comparação cruzada de todas as bases de registros. Só demorará um minuto em dar algum resultado. — Teclou umas ordens no computador.
— Bingo. Tenho uma coincidência procedente de uma informação GPS da Costa Oeste. Parece informação reunida anteriormente ao arresto. Joga uma olhada.
A tela do monitor se encheu com uma série de imagens noturnas por satélite de uma embarcação de pesca comercial aos subúrbios de Puget Sound. A imagem se centrava em um Sedan comprido e negro que se encontrava detrás de um maltratado edifício situado ao final do dique. Apoiado contra a porta posterior se encontrava o renegado que tinha conseguido escapar de Lucan fazia uns dias. Gideon passou rapidamente uma série de imagens que lhe mostravam conversando longamente, ou isso parecia, com alguém que se encontrava oculto detrás dos cristais negros dos guichês. À medida que as imagens avançavam, viram que a porta traseira do carro se abria e o renegado entrava no carro.
—Detenha —disse Lucan, fixando o olhar na mão do passageiro oculto.
— Pode deter todo este fotograma? Aumenta a zona da porta aberta do carro.

—Vou tentar .
A imagem aumentou de tamanho, mas Lucan quase não necessitava um aumento da imagem para confirmar o que via. Quase não se distinguia, mas aí estava. Na parte de pele exposta entre a grande mão do passageiro e o punho francês da camisa de manga larga se viam uns impressionantes dermoglifos que lhe delatavam como um membro de primeira geração.
Gideon também os tinha visto nesse momento.
—Maldição, olhe isso —disse, cravando a vista no monitor—. Nosso imbécil de Seattle desfrutava de uma companhia interessante.
—Possivelmente ainda o está fazendo —repôs Lucan.
Não havia nada pior que um renegado que tivesse sangue de primeira geração nas veias. Os membros de primeira geração caíam vitima da sede de sangue com maior rapidez que as últimas geração da raça, e eram uns temíveis inimigos. Se algum deles tinha intenção de liderar aos renegados e lhes conduzir a um levantamento, isso significaria o princípio de uma guerra infernal. Lucan já havia lutado em uma batalha assim uma vez, fazia muito tempo. Não desejava voltar a fazê-lo.
—Imprime tudo o que conseguiste, incluídos as ampliações de eroglifos.
—Já estão.
—Qualquer outra coisa que encontre sobre esses dois indivíduos, passa-me diretamente. Encarregarei-me disto pessoalmente.
Gideon assentiu com a cabeça, mas o olhar que lhe dirigiu por cima da arreios dos óculos expressava dúvida.

—Não pode pretender te encarregar de tudo isto você sozinho, já sabe.
Lucan lhe cravou um olhar escuro.
—Quem o diz?
Sem dúvida, o vampiro tinha em sua cabeça de gênio todo um discurso aberto da probabilidade e da lei da estatística, mas Lucan não se sentia de humor para lhe escutar. A noite se aproximava, e com ela se aproximava outra oportunidade de caçar a seus inimigos. Precisava empregar as horas que ficavam para esclarecer a cabeça, preparar as armas e decidir onde era melhor atacar. O depredador que havia nele se sentia impaciente e faminto, mas não por causa da batalha contra os Renegados.
Em lugar disso, Lucan se deu conta de que seus pensamentos se desviavam para um tranqüilo apartamento do Beacon Hill, para uma visita que nunca deveria ter realizado. Ao igual que o aroma de jasmim, o recordava da suavidade e a calidez da pele de Gabrielle, enredava-se com seus sentidos. Ficou tenso e seu sexo ficou em ereção somente pensando nela.
Foder.
Essa era a razão pela qual não a tinha posto sob o amparo da raça, aqui, no edifício. A certa distancia, ela era uma distração. Mas se encontrava em uma habitação próxima, seria um maldito desastre.
—Está bem? —perguntou-lhe Gideon, dando-a volta com a cadeira e ficando de cara a Lucan.
— É uma fúria muito grande a que tem em topo, amigo.
Lucan se arrancou da cabeça esses escuros pensamentos e se deu conta de que as presas lhe tinham alargado e que a visão lhe havia agudizado com o fechamento das pupilas. Mas não era a fúria o que lhe transformava. Era a luxúria, e tinha que saciá-la, antes ou depois. Com essa idéia lhe pulsando nas têmporas, Lucan tomou o telefone celular de Gabrielle, que se encontrava em cima de uma das mesas, e saiu do laboratório.

 

 

CONTINUA

Capítulo quatro

Gabrielle podia contar com uma só mão os sonhos erótico que tinha tido durante toda sua vida, mas nunca tinha experiente nada tão quente —por não dizer real— como a fantasia de orgia sexual que tinha desfrutado da noite anterior, cortesia de um Lucan Thorne virtual. Seu fôlego tinha sido a brisa noturna que penetrava pela janela aberta de seu dormitório do piso de acima. Seu cabelo era a escuridão de obsidiana que enchia as clarabóias, sobre sua cama. Seus olhos chapeados, o brilho pálido da lua. Suas mãos eram as ligaduras de seda de sua colcha, que enredavam seus pulsos e tornozelos, abriam seu corpo debaixo do dele e a sujeitavam com força.
Sua boca era puro fogo que lhe queimava cada centímetro da pele e a consumia como uma chama invisível. «Jasmim», tinha-a chamado ele, e o suave som dessa palavra vibrava contra a umidade de sua pele, o quente fôlego dele formava redemoinhos os suaves cachos de pêlo de sua entre perna.
Ela se tinha retorcido e tinha gemido dominada pela habilidade da língua dele, que a tinha submetido a uma tortura que ela desejava que fosse infinito. Mas tinha terminado, e muito logo. Gabrielle se tinha despertado em sua cama, só na escuridão, pronunciando quase sem fôlego o nome de Lucan, com o corpo esgotado e inerte, dolorido pelo desejo.
Ainda lhe doía o desejo e o que mais lhe preocupava era o fato de que o misterioso detetive Thorne lhe tivesse dado plantão.
Não era que seu oferecimento de passar por seu apartamento essa noite fosse nada que se parecesse com um encontro, mas ela tinha estado esperando voltar a lhe ver. Tinha interesse em saber mais a respeito dele dado que se havia mostrado tão inclinado a decifrá-la com um simples olhar. Além de conseguir algumas respostas mais sobre o que tinha presenciado essa noite fora da discoteca, Gabrielle tinha desejado conversar de algo mais com Lucan, possivelmente tomar um pouco de vinho e algo para jantar. O fato de que se depilou as pernas duas vezes e de que se pôs uma roupa interior negra e atrativa sob a camisa de seda de manga larga e dos escuros jeans era puramente acidental.

Gabrielle lhe tinha esperado até bem passadas as nove e então abandonou a idéia e chamou Jamie para ver se ele queria jantar com ela no centro da cidade.
Agora, sentado diante dela, ao outro lado da mesa, nessa sala cheia de janelas do bistro Ciao Bela, Jamie deixou na mesa a taça de pinot noire e olhou o prato de frutos do mar que ela quase não havia tocado.
—Estiveste enjoando a mesma parte da comida pelo prato durante os últimos dez minutos, carinho. Você não gosta?
—Sim, é genial. A comida sempre é incrível aqui.
—Então, é a companhia o que te desagrada?
Ela levantou o olhar para ele e negou com a cabeça.
—Absolutamente. Você é meu melhor amigo, já sabe.
—Certo —assentiu ele.
— Mas não me posso comparar com seu sonho erótico.
Gabrielle se ruborizou ao dar-se conta de que um dos clientes que se encontrava na mesa do lado olhava para eles.
—Às vezes é horrível, sabe? —disse a Jamie em um sussurro.
— Não deveria haver lhe contado isso.
—OH, carinho. Não se sinta incômoda. Se me tivessem dado uma moeda cada vez que me despertei excitado, chiando o nome de algum cara sexy...
—Eu não chiei seu nome. —Não, tinha-o pronunciado com o folego entrecortado e em um gemido, tão enquanto estava na cama como enquanto estava na ducha ao cabo de pouco tempo, ainda incapaz de tirar do corpo a sensação de Lucan Thorne.
— Era como se ele estivesse ali, Jamie. Justo ali, em minha cama, tão real que eu podia lhe tocar.
Jamie suspirou.
—Algumas garotas têm toda a sorte do mundo. A próxima vez que te encontre com seu amante em sonhos, seja generosa e me manda isso quando tenha terminado.
Gabrielle sorriu, sabendo que seu amigo não andava escasso no apartado romântico. Durante os últimos quatro anos tinha tido uma feliz relação monógama com o David, um vendedor de antiguidades que se encontrava nesses momentos fora da cidade por motivos de trabalho.
—Quer saber o que é o mais estranho disso tudo , Jamie? Aos levantar, esta manhã, a porta de entrada não estava fechada com chave.
— E?
—E você me conhece, nunca a deixo aberta.
As cuidadas e depiladas sobrancelhas do Jamie se juntaram, franzindo o cenho.
—O que quer dizer, que cre que esse cara forçou a porta de sua casa enquanto dormia?
—Parece uma loucura, sei. Um detetive da polícia que vem a minha casa a meia-noite para me seduzir. Devo estar perdendo a cabeça.
Disse-o com tom despreocupado, mas não era a primeira vez que se questionava em silêncio sua própria prudência. Não era a primeira vez nem muito menos. Com gesto ausente, brincou um momento com a manga da blusa enquanto Jamie a observava. Ele se sentia preocupado nesse momento, o qual somente aumentava a inquietação que Gabrielle sentia sobre o tema de sua possível instabilidade mental.

—Olhe, carinho. Passaste muita tensão do fim de semana. Isso pode provocar coisas estranhas na cabeça. Estiveste preocupada e confundida. Possivelmente se esqueceu de fechar a porta.
—E o sonho?
—Somente isso... Um sonho. Somente se trata de sua mente curvada que tenta tranqüilizar-se, relaxar-se.
Gabrielle baixou a cabeça em um gesto automático de afirmação.
—Exato. Estou segura de que só é isso.
Se pudesse aceitar que a explicação de tudo era tão simples como seu amigo fazia que parecesse... Mas uma sensação na boca do estômago rechaçava a idéia de que ela tivesse esquecido de fechar a porta. Ela nunca faria uma coisa assim, simplesmente, por estressada e confundida que estivesse.
—Né. —Jamie alargou o braço por cima da mesa para tomar a mão.
— Vais estar bem, Gab. Já sabe que pode me chamar a qualquer hora, verdade? Estarei contigo, sempre o estarei.
—Obrigado.
Lhe soltou a mão, tomou o garfo e fez um gesto em direção a seu fruto do mar.
—Bom, vais comer um pouco mais ou posso começar a limpar seu prato agora?
Gabrielle trocou seu prato meio cheio pelo dele, completamente vaziu.
—Tudo para ti.

Enquanto Jamie se concentrava na comida fria, Gabrielle apoiou o queixo em uma mão e tomou um comprido gole de sua taça de vinho. Enquanto bebia, brincou com os dedos em cima das ligeiras marcas que descobriu no pescoço essa mesma manhã depois de tomar banho. A porta aberta não era o mais estranho que se encontrou essa manhã: as duas marca idênticas que se viu debaixo da orelha se levaram o prêmio, sem dúvida nenhuma.
Essas pequenas perfurações não tinham sido o bastante profundas para lhe transpassar a pele, mas aí estavam. Havia duas, a uma distância equitativa, no ponto onde o pulso lhe pulsava com mais força quando o apalpava com os dedos. Ao princípio se disse que possivelmente havia se arranado a si mesmo enquanto dormia, possivelmente a causa do sonho estranho que tinha tido.
Mas, entretanto, essas marcas não pareciam arranhões. Pareciam... outra coisa.
Como se alguém, ou algo, tivesse estado a ponto de lhe morder a carótida.
Uma loucura.
Isso era, e tinha que deixar de pensar dessa maneira antes de fazer-se mais mal a si mesmo. Viu-se obrigada a centrar-se e a deixar de recrear-se em fantasias delirantes sobre visitantes a meia-noite e monstros de filme de terror que não era possível que existissem na vida real. Se não tomava cuidado, acabaria como sua mãe biológica.
—OH, Meu deus, me dê uma bofetada agora mesmo porque sou um completo e profundo imbecil —exclamou Jamie de repente, interrompendo seus pensamentos.
— Continuo esquecendo-me de lhe dizer isso ontem recebi uma chamada na galeria sobre suas fotografias. Um peixe gordo do centro da cidade está interessado em uma amostra privada.
—Sério? De quem se trata?
Ele se encolheu de ombros.

—Não sei, carinho. A verdade é que não falei com o possível comprador, mas a partir da atitude estirada do ajudante do tipo, diria que seja quem é seu admirador, ele ou ela— nada na abundância do dinheiro. Tenho uma entrevista em um dos edifícios do distrito financeiro amanhã de noite. Falo-te de um escritório em uma cobertura, querida.
—OH, Meu deus —exclamou ela com incredulidade.
—Acredita. Super bom, amiga. Muito em breve será muito para um pequeno vendedor de arte como eu —brincou ele, compartilhando a excitação com ela.
Era difícil não sentir-se intrigada, especialmente depois de tudo o que lhe tinha passado durante os últimos dias. Gabrielle tinha conseguido uns fiéis e respeitáveis admiradores e ganhou uns quantos bons elogios por seu novo trabalho, mas uma amostra privada para um comprador desconhecido era o máximo.
—Que peças te pediu que levasse?
Jamie levantou a taça de vinho e brindou com a dela com um gesto burlesco de saudação.
—Todas, senhorita Importante. Cada uma das peças da coleção.
No telhado do um velho edifício de tijolos do ocupado distrito dos teatros da cidade, a lua se refletia na risada letal de um vampiro embelezado de negro. Agachado em sua posição perto da beirada, o guerreiro da raça girou a escura cabeça e levantou uma mão para fazer um sinal.
«Quatro renegados. Uma presa humana se dirige diretamente para eles.»
Lucan lhe dirigiu um gesto afirmativo com a cabeça a Dante e se afastou da saída de emergência do quinto piso, que tinha sido sua posição de vigilância durante a última meia hora. Baixou até a rua de abaixo com um ágil movimento, aterrissando em silêncio, como um gato. Levava uma dupla folha de combate nas costas que lhe sobressaía pelos ombros como os ossos das asas de um demônio. Lucan desencapou a arma de titânio quase sem emitir nenhum som e penetrou nas sombras da estreita rua lateral para esperar os acontecimentos dessa noite.

Eram ao redor das onze, várias mais tarde que a hora em que deveria ter passado pelo apartamento de Gabrielle Maxwell para lhe devolver o telefone celular, tal e como lhe disse que o faria. O aparelho ainda estava em posse de Gideon, no laboratório técnico, que estava processando as imagens para as contrastar com a Base de dados de Identificação Internacional da Raça.
Quanto a Lucan, não tinha nenhuma intenção de devolver o telefone celular a Gabrielle, nem em pessoa nem de nenhuma outra maneira. As imagens do ataque dos renegados não tinham que estar em mãos de nenhum ser humano, e depois da decepção que se levou no dormitório dela, quanto mais longe estivesse dessa mulher, melhor.
«Uma maldita companheira de raça.»
Deveria havê-lo sabido. Agora que o pensava, ela tinha certas características que deveriam lhe haver dado a pista disso desde o começo. Como sua habilidade de ver através do véu do controle mental vampírico que enchia essa noite a sala de baile da discoteca. Ela tinha visto os renegados —ávidos de sangue no beco, e nas imagens indecifráveis do telefone celular— quando outros seres humanos não os havia podido ver. Logo, em seu apartamento, tinha demonstrado que tinha resistência ante a sugestão mental de Lucan para dirigir seus pensamentos, e ele suspeitava que se tinha sucumbido, tinha-o feito mais por causa de um desejo consciente do prazer que ele supunha para ela que por nenhuma outra coisa.
Não era nenhum secredo que as fêmeas humanas com o código genético único de companheiras de raça possuíam uma inteligência aguda e uma saúde perfeita. Muitas delas tinham uns assombrosos talento paranormal que aumentariam quando a companheira de raça se unisse por sangue com um macho vampiro.
Quanto a Gabrielle Maxwell, parecia possuir o dom de ter uma vista especial que lhe permitia ver o que o resto de seres humanos não podia ver, mas até onde chegava essa capacidade de visão era algo que ele não podia adivinhar. Lucan queria sabê-lo. Seu instinto de guerreiro exigia chegar ao fundo do assunto sem nenhuma demora.

Mas envolver-se com essa mulher, da forma que fosse, era o último que ele necessitava.
Então, por que não podia tirar-se de cima seu doce aroma, a suavidade de sua pele... sua provocadora sensualidade? Odiava o fato de que essa mulher tivesse despertado nele tal fragilidade, e seu estado de ânimo atual dificilmente melhorava pelo fato de que todo seu corpo doía pela necessidade de alimentar-se.
O único ponto claro essa noite era o constante ritmo dos saltos das botas dos renegados no pavimento, em algum lugar perto da entrada da rua lateral, que se dirigiam para ele.
O ser humano girou a esquina: encontrava-se a vários passos a frente deles, e era um homem. Jovem, saudável, vestia uma calça negra e alvo e uma túnica branca manchada que cheirava a cozinha de restaurante e a um suor repentino de ansiedade. O cozinheiro olhou por cima do ombro e viu que os quatro vampiros foram ganhando terreno. Um palavrão pronunciado em tom nervoso e atravessou a escuridão.
O humano voltou a girar a cabeça e caminhou mais depressa, com os punhos apertados e ambos grudado no corpo e os olhos muito abertos e cravados na estreita greta do asfalto que havia sob seus pés.
—Não faz falta que corra, homenzinho —lhe provocou um dos Renegados em um tom rouco como o som da areia fina contra o chão.
Outro deles emitiu um chiado agudo e se colocou a cabeça de seus três companheiros.
—Sim, não te escape agora. Tampouco é que vás chegar muito longe.

As risadas dos renegados ressonaram nos edifícios que flanqueavam a estreita rua.
—Merda —sussurrou o ser humano quase sem respiração. Não se voltou somente continuou para frente a passo rápido, a ponto quase de lançar-se a uma frenética, mas inútil, carreira.
À medida que o aterrorizado ser humano lhe aproximava, Lucan saiu da escuridão dando um passo e ficou em pé com as pernas abertas com os braços abertos a ambos os lados de seu corpo, bloqueou a rua com seu corpo ameaçador e suas espadas as gema. Dirigiu um frio sorriso aos renegados com as presas ameaçadoras, antecipando a luta que se morava.
—Boa tarde, senhoritas.
—OH, Jesus! —exclamou o ser humano. Deteve-se de forma brusca e olhou a Lucan o rosto com expressão de horror. Os joelhos cederam e caiu no chão,
— Merda!
—Te levante. —Lucan lhe dirigiu um breve olhar enquanto o jovem se esforçava por ficar em pé.
— Vai daqui.
Esfregou uma das afiadas folhas contra a outra diante dele e encheu a rua em sombras com o áspero som metálico do aço endurecido e letal. Detrás dos quatro renegados, Dante caiu ao asfalto e se agachou antes de levantar seu metro noventa e oito de altura. Não levava nenhuma espada, mas ao redor da cintura levava um cinturão de pele no qual levava sujeitas uma série de armas de mão letais, entre elas um par de folhas curvadas e afiadas como folhas de barbear que se convertiam em uma extensão infernal de suas mãos, incrivelmente rápidas. Malebranche ou prolongações diabólicas as chamava, e efetivamente eram umas garras do diabo. Dante as teve colocadas nas mãos em um momento: era um vampiro que sempre estava a ponto para entrar em um combate corpo a corpo.
—OH, Meu deus —gritou o ser humano com voz trêmula ao dar-se conta do perigo que lhe rodeava. Olhou a Lucan com a boca aberta e, com mãos trementes, rebuscou entre suas roupas tirou uma carteira do bolso traseiro da calça e a atirou ao chão.
— Toma-a, cara! Pode ficar mas não me mate, suplico-lhe isso!

Lucan manteve os olhos fixos nos quatro renegados, que nesses momentos estavam tomando posições e preparavam as armas.
—Te largue daqui. Agora.
—É nosso —vaiou um dos renegados. Uns olhos amarelos se cravaram fixamente em Lucan com puro ódio, as pupilas se reduziram a duas famintas ranhuras verticais. De suas largas presas lhe gotejava a saliva, outra prova do grande vício do vampiro pelo sangue.
Ao igual que os seres humanos podiam acabar dependendo de um poderoso narcótico, a sede de sangue também era destrutivo para a raça. A fronteira entre a necessidade de satisfazer a fome e a constante overdose de sangue se cruzava com facilidade. Alguns vampiros entravam nesse abismo de forma voluntária, enquanto que outros sucumbiam a essa enfermidade por inexperiência ou por falta de disciplina pessoal. Se chegava muito longe, e durante muito tempo, um vampiro se convertia na categoria de renegado, igual a esses ferozes monstros que grunhiam frente a Lucan nesses momentos.
Ansioso por convertê-los em cinzas, Lucan juntou com um golpe seco as duas folhas e cheirou a faísca de fogo que se criou quando os dois aços se encontraram.
O ser humano ainda se encontrava ali, atordoado pelo medo, dirigindo primeiro a cabeça para os renegados, que avançavam para ele, e agora para Lucan, que lhes esperava com atitude inquebrável. Esse momento de dúvida ia custar lhe a vida, mas Lucan apartou esse pensamento com frieza. O ser humano não era assunto dele. Quão único importava era eliminar a esses chupadores aditivos de sangue e ao resto dos doentes de sua raça.
Um dos renegados se passou uma mão suja por cima dos lábios babantes.
—Te aparte, idiota. Deixa que nos alimentemos.

—Esta noite não —grunhiu Lucan.
— Não em minha cidade.


—Sua cidade? —O resto deles se burlou e o renegado que ia em cabeça cuspiu no chão, Aos pés de Lucan.
— Esta cidade nos pertenece . Dentro de muito pouco, possuiremo-la por completo.
—Exato —acrescentou outro dos quatro.
— Assim parece que é você quem entrou em um território alheio.
Finalmente, o ser humano recuperou certa inteligência e começou a retirar-se, mas não chegou muito longe. Com uma velocidade incrível, um dos renegados alargou uma mão e agarrou ao homem pela garganta. Ele levantou do chão e lhe segurou no ar: as botas altas do homem ficaram a dois centímetros do chão. O ser humano grunhiu e suplicou, lutando com ferocidade enquanto o renegado lhe apertava o pescoço com mais força, lhe estrangulando lentamente com a mão nua. Lucan o observou, imperturbável, inclusive quando o vampiro deixou cair sua retorcida presa e lhe fez um buraco no pescoço com os dentes.
Pela extremidade do olho, Lucan viu que Dante se aproximava sigilosamente aos renegados por detrás. Com as presas estendidas, o guerreiro se lambeu os lábios, ansioso por entrar na tarefa. Não ia sentir se defraudado. Lucan atacou primeiro, e logo a rua explodiu com um estrondo de metal e de ossos quebrados.
Enquanto Dante lutava como um demônio saído do inferno —com as diabólicas folhas extensíveis cintilando a cada movimento, soltando gritos de guerra que rasgavam a noite—, Lucan manteve um frio controle e uma precisão letal. Um a um, os quatro renegados sucumbiram sob os golpes de castigo dos guerreiros. O beijo das folhas de titânio se expandia como um veneno a toda velocidade pelo corrompido sistema sangüíneo dos renegados, acelerando sua morte e provocando as rápidas mudanças nos estados de decomposição característicos da morte dos renegados.
Quando tiveram terminado com seus inimigos, quando seus corpos se reduziram de carne a osso e de osso a cinza fumegante, Lucan e Dante foram ver os restos do outro açougue da rua.
O ser humano estava imovel e sangrava profundamente por uma ferida que tinha na garganta.

Dante se agachou ao lado do homem e cheirou seu destroçado corpo.

—Está morto. Ou o vai estar dentro de um minuto.
O aroma do sangue derramado encheu as fossas nasais de Lucan com a força de um murro no ventre. Suas presas, estendidas já por causa da ira, agora pulsavam pelo desejo de alimentar-se. Baixou a vista e observou com desgosto ao humano moribundo. Apesar de que tomar o sangue era necessário para ele, Lucan desprezava a idéia de aceitar os refugos dos renegados, tivessem a forma que tivessem. Preferia conseguir o seu sustento dos serviçais anfitriões que ele mesmo elegia ali onde podia, apesar de que esses escassos bocados somente conseguiam despertar uma fome mais profunda.
Antes ou depois, todo vampiro tinha que matar.
Lucan não tentava negar sua natureza, mas nas ocasiões em que matava, o fazia seguindo sua própria eleição, seguindo sua próprias regras. Quando procurava uma presa, elegia principalmente criminosos, traficantes de droga, assassinos e outra gente de má vida. Era judicioso e eficiente e nunca matava pelo prazer de fazê-lo. Todos os da raça seguiam um código de honra similar; isso era o que lhes distinguia de seus irmãos os renegados, que se tinha separado deles ao rebelar-se a essa lei.
Sentiu que lhe esticava o ventre: o aroma do sangue voltou a fazer-se presente em suas fossas nasais. A saliva lhe começou a gotejar da boca ressecada.
Quando se tinha alimentado pela última vez?
Não podia recordá-lo: fazia bastante tempo. Vários dias, pelo menos, e não o suficiente para que lhe durasse. Tinha pensado acalmar parte da fome —tão carnal como de sangue— com a Gabrielle Maxwell a outra noite, mas essa idéia tinha tomado um giro repentino. Agora tremia por causa da necessidade de alimento, e essa necessidade era muito forte para pensar em algo exceto em cobrir as necessidades básicas de seu corpo.

—Lucan. — Dante apertou os dedos no pescoço do homem, procurando o pulso. As presas do vampiro estavam estendidos, afiados depois da batalha e por causa da reação fisiológica ante o forte aroma desse líquido escarlate que emanava do homem.
— Se esperarmos muito mais, o sangue terá morrido também.
E não lhes serviria de nada, posto que somente o sangue fresco que emanava das veias dos seres humanos podia saciar a fome de um vampiro. Dante esperou, inclusive apesar de que era óbvio que quão único desejava era baixar a cabeça e tomar sua parte desse homem, que tinha sido muito idiota para escapar quando tinha tido a oportunidade de fazê-lo.
Mas Dante esperaria, inclusive embora tivesse que deixar esbanjar esse sangue, dado que era um protocolo não escrito que as gerações mais jovens de vampiros não se alimentavam na presença dos mais velhos, especialmente se esse vampiro mais velho pertencia a categoria de «primeira geração» da raça e estava faminto.
A diferencia de Dante, o pai de Lucan era um dos Antigos, um dos oito guerreiros extraterrestres que tinham chegado de um planeta escuro e distante e se estrelaram milhares de anos atrás contra a superfície inóspita e implacável do planeta Terra. Para sobreviver, alimentaram-se do sangue dos seres humanos e tinham dizimado populações inteiras por causa de sua fome e de sua bestialidade. Em alguns estranhos casos, esses conquistadores estrangeiros se haviam emparelhado com êxito com fêmeas humanas, as primeiras companheiras de raça, que tinham gerado uma nova geração da raça dos vampiros.
Esses selvagens antepassados de outro mundo tinham desaparecido por completo, mas sua origem ainda continuava vivendo, como Lucan e uns quantos mais disseminados pelo mundo. Representavam o estádo mais próximo a realeza na sociedade dos vampiros: eram respeitados e não pouco temidos. A grande maioria dos da raça eram jovens, nascidos de uma segunda, terceira e, alguns, de uma décima geração.
A fome era mais urgente nos de «primeira geração». Também o era a propensão a ceder ante a sede de sangue e a converter-se em um renegado. A raça tinha aprendido a viver com esse perigo. A maioria deles tinha aprendido a dirigi-lo: tomavam sangue somente quando o necessitavam e nas mínimas quantidades necessárias para a sustentação. Tinham que fazê-lo assim, porque uma vez apanhados pela sede de sangue, não havia maneira de voltar atrás.

Os olhos afiados de Lucan caíram sobre a retorcida figura humana que ainda respirava ligeiramente, tombada no pavimento do chão. Ouviu um grunhido animal que provinha de sua própria garganta. Quando Lucan se aproximou com compridos passados em direção ao aroma do sangue vivo vertido no chão, Dante fez uma ligeira saudação com a cabeça e se apartou para permitir a seu superior que se alimentasse.


Capítulo cinco
Ele nem sequer se preocupou de chamá-la e lhe deixar uma mensagem a outra noite.
Típico.
Provavelmente tinha um encontro muito importante com seu mando à distancia e seu programa de poderes paranormais. Ou possivelmente, quando se houve marchado de seu apartamento a outra tarde, tinha conhecido a alguém mais e tinha recebido uma oferta mais interessante que devolver o telefone celular a Gabrielle no Beacon Hill.
Diabos, inclusive era possível que estivesse casado, ou que tivesse alguma relação com alguém. Não o tinha perguntado, e se o houvesse preguntado, isso não tivesse garantido que lhe houvesse dito a verdade. Lucan Throne, certamente, não era distinto a nenhum homem. Exceto pelo fato de que era... diferente.
Pareceu-lhe que era muito diferente a qualquer a quem houvesse conhecido até esse momento. Um homem muito reservado, quase fechado, que dava uma sensação extranhamente perigosa. Ela não podia imaginar sentado em uma poltrona diante do televisor, igual que tampouco lhe podia imaginar junto em uma relação séria de namoro, por não falar de uma esposa e uma família. O qual voltava a recordar a idéia de que seguramente ele teria recebido uma oferta mais interessante e tinha decidido desprezar a ela. E essa idéia lhe doía muito mais do que deveria.
«te esqueça dele», repreendeu-se Gabrielle quase sem fôlego enquanto aproximava o Cooper Mini negro à uma lateral da tranqüila rua local e desligava o motor. A bolsa com sua câmara e seu equipamento fotográfico se encontrava no assento do co-piloto. Agarrou-a, e tomou tambem uma pequena lanterna do porta-luvas, guardou as chaves na jaqueta e saiu do carro.

Fechou a porta sem fazer ruído e jogou uma rápida olhada ao seu redor. Não havia nem uma alma a vista, o qual não era surpreendente dado que eram quase as seis da manhã e que o edifício, no qual estava a ponto de entrar de forma ilegal e de fotografar, fazia vinte anos que estava fechado. Andou seguindo o caminho de pavimento gretado e girou a direita, cruzou uma sarjeta e subiu até um terreno cheio de carvalhos que formavam como uma densa cortina ao redor do velho hospital psiquiátrico.
O amanhecer começava a elevar-se pelo horizonte. A luz era fantasmagórica e etérea, como uma neblina úmida rosada e azulada que amortalhava essa estrutura gótica com um brilho de outro mundo. Apesar de estar pintado em tons claros, esse lugar tinha um ar ameaçador.
O contraste era o que a tinha atraído até essa localização essa manhã. Tomar as imagens ao anoitecer tivesse sido a eleição mais natural para concentrar-se na qualidade ameaçadora dessa estrutura abandonada. Mas era a justaposição da cálida luz do amanhecer com o tema frio e sinistro o que atraía a Gabrielle enquanto se detinha para tirar a câmara da bolsa que tinha pendurada do ombro. Tirou umas seis fotos e logo voltou a pôr a tampa a lente para continuar a caminhada em direção ao fantasmagórico edifício.
Uma alta cerca de arame apareceu diante dela, impedindo que os exploradores curiosos como ela entrassem na propriedade. Mas Gabrielle sabia que tinha um ponto débil escondido. Tinha-o descoberto a primeira vez que tinha vindo ao lugar para tirar umas fotos de exterior. Se apressou seguindo a linha da cerca até que chegou ao extremo sudoeste da mesma, onde se agachou até o chão. Ali, alguém tinha talhado discretamente o arame e tinha formado uma abertura o bastante grande para que um adolescente curioso pudesse abrir-se passo, ou para que uma fotógrafa decidida, e que tinha tendência a interpretar os sinais de «Não passar» e «Só pessoal autorizado» como sugestões amistosas em lugar de leis inquebráveis, penetrasse por ela.
Gabrielle abriu a parte de arame talhado, lançou o equipamento para o outro lado e se arrastou como uma aranha, sobre o ventre, Através da baixa abertura. Quando ficou em pé, ao outro lado da cerca, sentiu que as pernas lhe tremiam por causa de uma repentina apreensão. Deveria estar acostumada a este tipo de operações encobertas, de explorações em solitário: muito freqüentemente, sua arte dependia de sua coragem para encontrar lugares desolados, que alguns qualificariam de perigosos. Esse arrepiante psiquiátrico podia, certamente, qualificar-se como perigoso,
pensou enquanto deixava vagar o olhar por um grafite pintado com aerosol ao lado da porta de entrada que dizia más vibrações.
—Já pode dizê-lo —sussurrou em voz muito baixa. Enquanto se sacudia as agulhas de pinheiro e a terra da roupa, com gesto automático levou uma mão até o bolso dianteiro de seu jeans em busca do celular. Não estava ali, é obvio, já que ainda estava em poder do detetive Thorne. Outra razão para sentir-se aborrecida com ele por havê-la feito esperar a outra noite.
Possivelmente não deveria ser tão dura com o menino, pensou, repentinamente desejosa de concentrar-se em algo distinto ao mau pressentimento que a atendia agora que se encontrava dentro do terreno do psiquiátrico. Possivelmente Thorne não se apresentou porque algo lhe tinha acontecido no trabalho.
E se tinha sido ferido em cumprimento do dever e não acudiu tal e como tinha prometido porque se encontrava de alguma forma encapacitado de chamar ? Possivelmente não tinha chamado para desculpar-se nem para explicar sua ausência porque não podia fazê-lo fisicamente.
Exato. E possivelmente ela tinha comprovado seu próprio cérebro com as bra-gás do mesmo segundo em que tinha posto os olhos nesse homem.
Burlando-se de si mesmo, Gabrielle recolheu suas coisas e caminhou em direção a imponente arquitetura do edifício principal. Uma pálida pedra calcária se elevava para o céu em uma levantada torre central, remota em uns picos e agulhas dignos da melhor catedral gótica. Ao seu redor havia um extenso recinto de paredes de tijolo vermelho, cujo teto estava composto por telhas ordenadas em um desenho como de asas de morcego, comunicado entre eles por passarelas e arcos que formavam um claustro coberto.
Mas por impressionante que fosse essa estrutura, não havia forma de tirar-se de cima a sensação de uma ameaça latente, como se mil pecados e mil segredos se apertassem detrás dessas descascadas paredes e janelas com parte de cristais quebrados. Gabrielle caminhou até o ponto onde a luz era melhor e tomou umas quantas fotos. Não havia nenhuma maneira de entrar por aí: a porta principal estava fechada com ferrolho e com travessas de madeira. Se queria entrar para realizar algumas fotos do interior —e, definitivamente, sim queria—, tinha que dar a volta até a parte traseira e provar sorte com alguma janela que estivesse a pé de rua ou com alguma porta do porão.
Baixou deslizando-se por um aterro em pendente para a parte posterior do edifício e encontrou o que estava procurando: umas portinhas de madeira ocultavam três janelas que era muito provável que se abrissem a uma zona de serviço ou a um armazém. Os ferrolhos estavam oxidados, mas não estavam fechados e se abriram com facilidade quando se serve de ajuda de uma pedra que encontrou ali ao lado. Atirou da coberta de madera das janelas, levantou o pesado painel de cristal e o escorou, aberto, com os ferrolhos.
Fez uma varredura geral iluminando-se com a lanterna para assegurar-se de que o lugar estava vazio e de que não ia desabar sobre sua cabeça imediatamente, e penetrou através da abertura. Ao saltar do marco da janela, o solado de suas botas pisaram em cristais quebrados e pó e lixo acumulados durante anos. Esse porão de blocos de concreto tinha uns três metros e meio de comprimento e desaparecia na escura zona que ficava sem iluminar. Gabrielle dirigiu o magro feixe de luz de sua lanterna para as sombras do outro extremo do espaço. Percorreu com ele a parede e o deteve sobre uma velha porta de serviço em cuja superfície se podia ler o seguinte pôster: acesso restringido.
—O que te aposta? —sussurrou enquanto se aproximava da porta. Efetivamente, não estava fechada com chave.
Abriu-a e projetou a luz para o outro lado da porta, onde se abria um comprido corredor parecido a um túnel. Uns suportes de fluorescente quebrados penduravam do teto; alguns dos painéis que os haviam coberto tinham caido sobre o chão de qualidade industrial, onde jaziam quebrados e cobertos de pó. Gabrielle entrou nesse espaço escuro, insegura do que estava procurando e com certo temor do que poderia encontrar nas desertas tripas desse psiquiátrico.
Passou por diante de uma porta aberta do corredor e a luz do flash iluminóu uma cadeira de dentista de vinil vermelho, um pouco gasta, que se encontrava colocada no centro da habitação, como se esperasse ao próximo paciente. Gabrielle tirou a câmara de sua capa e tomou um par de rápidas fotos. Logo continuou para diante e passou ante uma série de habitações de revisão e de tratamento. Devia encontrar-se na ala médica do edifício.

Encontrou uma escada e subiu dois lances até que chegou, para sua complacencia, a torre central onde umas grandes janelas deixavam entrar a luz da manhã em generosas quantidades.
Através da lente da câmara olhou por cima de amplos terrenos e pátios flanqueados por elegantes edifícios de tijolo e de pedra calcária. Realizou umas quantas fotos do lugar, apreciando tanto sua arquitetura como o quente jogo que a luz do sol fazia contra tantas sombras fantasmagóricas. Resultava estranho olhar para fora do confinamento de um edifício que antigamente tinha albergado a tantas almas perturbadas. Nesse inquietante silêncio, Gabrielle quase podia ouvir as vozes dos pacientes, de gente que, simplesmente, não tinha a possibilidade de marchar-se caminhando dali como ela faria então.
Gente como sua mãe biológica, uma mulher a quem Gabrielle não tinha conhecido nunca e da qual não sabia nada mais que o que tinha ouvido de menina nas conversações apagadas que os trabalhadores sociais e as famílias de acolhida mantiveram e que ao final, uma por uma, devolveram ao sistema como se fosse um animal doméstico que houvesse demonstrado ser mais problemático do que se podia suportar. Tinha perdido a conta do número de lugares aonde a tinham enviado a viver, mas as queixa contra ela quando a devolviam sempre eram as mesmas: inquieta e introvertida, fechada e desconfiada, socialmente disfuncional com tendência a atitudes autodestrutivas. Tinha ouvido os mesmos qualificativos dirigidos para sua mãe, aos quais acrescentavam as categorias de paranóica e delirante.
Quando os Maxwell apareceram em sua vida, Gabrielle tinha passado dezenove dias em uma casa de acolhida sob a supervisão de um psicólogo designado pelo Estado. Não tinha nenhuma expectativa e ainda menos esperanças de que fora capaz de conseguir que outra situação de acolhida funcionasse. Francamente, já não lhe importava. Mas seus tutores tinham sido pacientes e bondosos. Acreditando que possivelmente a ajudasse a dirigir a confusão emocional, tinham-na ajudado a conseguir um punhado de documentos judiciais que tinham que ver com sua mãe.
Essa mulher tinha sido uma adolescente anônima, acreditava-se que era uma sem teto, que não tinha identificação, não lhe conhecia família nem conhecidos exceto pela menina recém-nascida que tinha abandonado, chorando e angustiada, em um contêiner de lixo da cidade em uma noite de agosto. A mãe de Gabrielle tinha sido maltratada, e sangrava por umas profundas feridas no pescoço que ela mesma se piorou rasgando-a, vítima da histeria e do pânico.

Em lugar de persegui-la pelo crime de haver abandonado seu bebê, o tribunal a tinha considerado incapacitada e a tinham enviado a umas instalações que certamente não eram muito diferentes a esta em que se encontrava ela agora. Quando ainda não levava nem um mês no centro institucional, pendurou-se com um lençol deixando detrás dela inumeráveis pergunta que nunca teriam resposta.
Gabrielle tentou tirar-se de cima o peso dessas velhas feridas, mas enquanto estava ali em pé e olhava através dos brumosos cristais das janelas, todo seu passado apareceu em primeiro plano em sua mente. Não queria pensar em sua mãe, nem na desgraçada circunstância de seu nascimento, nem nos escuros e solitários anos que lhe seguiram. Precisava concentrar-se em seu trabalho. Isso era o que lhe tinha permitido continuar para diante, depois de tudo. Era o único constante em sua vida, e as vezes tinha sido quão único de verdade tinha neste mundo.
E era suficiente.
Durante a maior parte do tempo, era suficiente.
«Toma umas quantas fotos e te largue daqui», disse a si mesmo, como brigando-se.
Levantou a câmara e tomou um par de fotos mais através do delicado trabalho de metal que se entrelaçava entre as duas janelas de cristal.
Pensou em partir pelo mesmo caminho por onde tinha entrado, mas se perguntou se possivelmente poderia encontrar outra saída em algum ponto do piso de abaixo do edifício central. Voltar a baixar ao escuro porão não lhe resultava especialmente atrativo.
Estava inquietando a si mesmo pensando em coisas sobre a loucura de sua mãe, e quanto mais momento se entretivera nesse velho psiquiátrico, mais lhe foram pôr os cabelos de ponta. Abriu a porta da escada e se sentiu um pouco melhor ao ver a tênue luz que se filtrava para dentro pelas janelas em algumas das habitações e nos corredores adjacentes.

Era óbvio que o artista do grafite de más vibrações tinha chegado até ali também. Em cada uma das quatro janelas havia uns extranhos símbolos realizados com pintura negra. Provavelmente eram os marcos de alguma turma, ou as assinaturas estilizadas dos meninos que tinham estado ali antes que ela. Em uma esquina havia uma lata de aerosol atirada, ao lado de umas bitucas de cigarros, de umas garrafas de cerveja quebrada e outros restos.
Gabrielle tomou a câmara e procurou um ângulo adequado para a fotografia que tinha em mente. A luz não era muito boa, mas com um lente diferente possivelmente resultasse interessante. Rebuscou na bolsa à procura das lentes e nesse momento ficou gelada ao ouvir um zumbido distante que procedia de algum ponto por debaixo de seus pés. Era muito frouxo, mas soava como o de um elevador, o qual era impossível. Gabrielle voltou a introduzir o equipamento na bolsa sem deixar de prestar atenção aos vagos sons que sentia ao seu redor. Todos os nervos de seu corpo se haviam esticado com uma gelada sensação de apreensão.
Não se encontrava sozinha ali dentro.
Agora que o pensava, notou que uns olhos a olhavam desde algum ponto próximo. Essa inquietante tira de consciência lhe pôs os cabelos de ponta na nuca e nos braços. Devagar, girou a cabeça e olhou para trás. Foi então quando o viu: uma pequena câmara de vídeo de circuito fechado montada em uma sombria esquina elevada do corredor, e que vigiava a porta da escada que ela tinha atravessado fazia somente uns minutos.
Possivelmente não estivesse em funcionamento e fosse somente algo que tinha ficado ali dos dias em que o psiquiátrico estava ainda em funcionamento. Essa teria sido uma idéia consoladora se a câmara não tivesse um aspecto tão cuidado e compacto, tão de tecnologia de vanguarda em segurança. Para comprová-lo, Gabrielle se aproximou dela e se colocou quase diretamente diante da câmara. Sem fazer nenhum ruído, a base da câmara girou e colocou a lente no ângulo adequado até que ficou enfocado no rosto de Gabrielle.

«Merda — disse, olhando esse olhos negro que não piscava.
—Pega.»
Das profundidades do edifício vazio, ouviu um rangido metálico e o estrondo de uma porta pesada. Era evidente que esse psiquiátrico abandonado não estava tão abandonado depois de tudo. Pelo menos tinham sistema de segurança, e a polícia de Boston poderia aprender algo dessa lição sobre o rápido tempo de reação dessa gente.
Soaram uns passos a um ritmo compassado: alguém que se encontrava vigiando tinha começado a dirigir-se para ela. Gabrielle se dirigiu para a escada e saiu disparada escada abaixo enquanto a bolsa a golpeava no quadril. À medida que baixava, a luz diminuía. Tomou a lanterna com a mão, mas não queria utilizá-la por medo de que funcionasse como um aviso de onde estava e o segurança pudesse segui-la. Chegou ao final da escada, empurrou a porta de metal e se precipitou para a escuridão do corredor do piso inferior.
Ouviu que a porta monitorada da escada se abria com um rangido e que seu perseguidor se precipitava para baixo, detrás dela, correndo com rapidez e ganhando terreno rapidamente.
Finalmente, chegou a porta de serviço do final do corredor. Lançou-se contra o aço frio e correu pelo escuro porão até a pequena janela que se encontrava aberta em uma das laterais. A corrente de ar frio lhe deu força: apoiou as mãos no marco da janela e se elevou. Deixou-se cair ao outro lado da janela, aterrissando fora na terra cheia de pedras.
Agora não podia ouvir seu perseguidor. Possivelmente lhe tinha avoado nos escuros de labirínticos corredores. Deus, isso esperava.
Gabrielle ficou em pé ao momento e correu em direção a abertura da cerca de arame. Encontrou-a rapidamente. colocou-se engatinhando e se introduziu pela fenda no arame com o coração desbocado e a adrenalina lhe correndo pelas veias.

Tinha muito pânico: em sua precipitação por escapar, arranhou-se um lado do rosto com um arame afiado da cerca. O corte lhe queimava na bochecha e sentiu o rastro quente de sangue que lhe baixava ao lado da orelha. Mas não fez caso da abrasadora ardência nem do golpe que se deu com a bolsa da equipamento fotográfica enquanto se inclinava sobre seu ventre para sair, através da cerca, para a liberdade.
Quando a teve atravessado, Gabrielle ficou em pé e correu enlouquecida pelo largo e escarpado terreno dos subúrbios. Somente se permitiu jogar uma rápida olhada para trás: o suficiente para ver que o enorme guarda de segurança ainda estava ali. Teria saído por algum lugar do piso principal e agora corria detrás dela como uma besta recém saída do inferno. Gabrielle tragou saliva de puro pânico ao lhe ver. O tipo parecia um tanque, facilmente pesava cento e dez quilogramas de puro músculo, e tinha uma cabeça grande e quadrada com o cabelo talhado ao estilo militar. Esse tipo enorme correu até a alta cerca e se deteve ao chegar a ela: golpeou-a com os punhos enquanto Gabrielle entrava correndo pela densa cortina de árvores que separava a propriedade da estrada.
O carro se encontrava a um lado do tranqüilo asfalto, justo onde o tinha deixado. Com mãos trementes, Gabrielle se esforçou por abrir a porta. sentia-se petrificada de pensar que esse tipo carregado de esteroides pudesse apanhá-la. Seu medo parecia irracional, mas isso não impedia que a adrenalina lhe corresse por todo o corpo. Afundou-se no acento de pele do Mini, pôs a chave no contato e ligou o motor. Com o coração acelerado, pôs em marcha o pequeno carro, apertou a fundo o pedal de aceleração e se precipitou para a estrada, escapando com um chiado de pneumáticos sobre o asfalto e o conseguinte aroma de queimado dos mesmos.


Capítulo seis
A metade da semana, em plena temporada turística, os parques e avenidas de Boston estavam coalhados de humanidade. Os trens traziam as pessoas a toda velocidade dos subúrbios, a seus lugares de trabalho ou aos museus, ou aos inumeráveis pontos históricos que se encontravam por toda a cidade. Olheiros carregados com câmeras subiam aos ônibus que lhes levavam de excursão ou se colocavam em fila para subir as Ferris sobrecarregados que lhes levariam mais à frente do cabo.
Não muito longe da agitação do dia, oculto a uns nove metros sob uma mansão dos subúrbios da cidade, Lucan Thorne se inclinou sobre um monitor de tela plaina, no edifício dos guerreiros da raça, e pronunciou uma maldição. Os registros de identificação dos vampiros apareciam em tela a velocidade vertiginosa enquanto o programa de computador realizava uma busca na enorme base de dados internacional procurando coincidências com as fotos que Gabrielle Maxwell tinha tomado.
—Ainda nada? —perguntou, olhando de soslaio e com expressão impaciente a Gideon, o operador informático.
—Nada até o momento. Mas ainda se está realizando a busca. A Base de dados de Identificação Internacional tem uns quantos milhões de registros para comprovar. —Os agudos olhos azuis do Gideon cintilaram por cima da arreios dos elegantes óculos de sol— Lhes jogarei o laço a esses burros, não se preocupe.
—Não me preocupo nunca —repôs Lucan, e o disse de verdade. Gideon tinha um coeficiente intelectual que rompia todas as estatísticas e ao que se acrescentava uma tenacidade enorme. Esse vampiro era tanto um caçador incansavel como um gênio e Lucan se alegrava de lhe ter ao seu lado.
_Se você não for capaz de tirá-los a luz, Gideon, ninguém pode fazê-lo.
O gurú informático da raça, com sua coroa de cabelo curto e encrespado, dirigiu-lhe um sorriso fanfarrão e confiado.
—É por isso que levo os verdes grandes.

—Sim, um pouco parecido —disse Lucan enquanto se separava da tela, onde os dados não deixavam de aparecer sem parar.
Nenhum dos guerreiros da raça que se comprometeram a proteger a estirpe frente ao açoite dos renegados o fazia por nenhuma compensação. Nunca a tinham tido, desde que se organizaram pela primeira vez nessa aliança durante o que para os humanos foi a idade medieval. Cada um dos guerreiros tinha seus próprios motivos para ter eleito esse perigoso modo de vida, e alguns deles eram, tinha-se que admitir, mais nobres que outros. Como Gideon, que tinha trabalhado nesse campo de forma independente até que seus dois irmãos, que eram pouco mais que uns meninos, foram assassinados pelos renegados aos subúrbios do Refúgio Escuro de Londres. Então Gideon procurou a Lucan. Disso fazia três séculos, umas décadas mais ou menos. Incluso então a habilidade do Gideon com a espada somente encontrava rival na afiada estocada de sua mente. Tinha matado a muitos renegados em seus tempos, mas mais tarde, a devoção e a promessa íntima que fez a sua companheira de raça, Savannah, tinham-lhe feito abandonar o combate e empunhar a arma da tecnologia ao serviço da raça.
Cada um dos seis guerreiros que lutavam ao lado de Lucan tinha seu talento pessoal. Também tinham seus demônios pessoais, mas nenhum deles era do tipo muito sensível que permitiria que um louco lhes colocasse uma lanterna pelo traseiro. Algumas costumes estavam melhor se deixavam na escuridão e, provavelmente, o único que estava mais convencido disso que o próprio Lucan era um guerreiro da raça conhecido como Dante.
Lucan saudou o jovem vampiro quando este entrou no laboratório técnico de uma das numerosas habitações do edifício. Dante, ataviado com sua habitual vestimenta negra, levava umas calças de ciclista e uma camiseta ajustada que mostrava tanto as tatuagens a tinta como suas intrincadas marcas de pertençer a raça. Seus avultados bíceps mostravam uns sinais afiligranados que a olhos de qualquer humano pareciam símbolos e desenhos geométricos realizados em profundas tonalidades terra. Mas os olhos de um vampiro distinguiam esses símbolos claramente: eram dermoglifos, umas marcas naturais herdadas dos antepasados da raça, cuja pele sem cabelo se havia recoberto de uma pigmentação cambiante e de camuflagem.

Normalmente, esses glifos eram motivo de orgulho para a raça e eram seus únicos sinais de linhagem e de fila social. Os membros da primera geração, como Lucan, luziam essas marca em maior número e seus tons eram mais saturados. Os dermoglifos de Lucan lhe cobriam o torso, por diante e por detrás, descendiam até suas coxas e se extendíam pela parte superior dos braços, além de subir pela nuca e lhe cobrir o crânio. Como tatuagens viventes, os glifos trocavam de tom segundo o estado emocional de um vampiro.
Os glifos de Dante, nesse momento, tinham um tom bronze, avermelhado, que indicava que se alimentou recentemente e que se sentia saciado. Sem dúvida, depois de que ele e Lucan se separaram ao cabo de ter dado caça aos renegados a noite anterior, Dante tinha ido em busca da cama e da amadurecida e suculenta veia da nádega de uma fêmea anfitriã.
—Que tal vai? —perguntou enquanto se deixava cair em cima de uma cadeira e colocava um pé embainhado em uma bota em cima do escritório, diante dele.
—Acreditei que já teria caçado e classificado a esses bastardos, Gid.
O acento de Dante tinha restos da musicalidade de seus ancestrais Italianos ate do século XVIII, mas essa noite, o educado tom de voz de Dante delatava um timbre afiado que indicava que o vampiro se sentia inquieto e ansioso por entrar em ação. Para sublinhar esse fato, tirou uma de suas típicas facas de folha curvada da cilha que levava no quadril e começou a jogar com o gentil aço.
Chamava a essas folhas curvadas Malebranche ou prolongações diabólicas, em referência Aos demônios que habitam um dos nove níveis do inferno, embora as vezes Dante adotava esse nome como pseudónimo para si mesmo quando se encontrava entre os humanos. Essa era quase toda a poesia que esse vampiro tinha em sua alma. Em todo o resto era impenitente, frio e escuramente ameaçador.
Lucan admirava isso dele, e tinha que admitir que observar a Dante durante o combate, com essas folhas inclementes, era algo belo, o bastante formoso para deixar em ridículo a qualquer artista.

—Bom trabalho o da noite passada —disse Lucan, consciente de que uma adulação emitida por ele era algo estranho, inclusive embora estivesse merecendo.
— Me salvou o pescoço aí.
Não falava da confrontação que tinham tido com os renegados, mas sim do que tinha acontecido depois disso. Lucan tinha passado demasiado tempo sem alimentar-se e a fome era quase tão perigosa para os seus como o vício que açoitava aos renegados. O olhar de Dante denotava que compreendia o que lhe estava dizendo, mas deixou acontecer o tema com sua habitual e fria elegância.
—Merda —repôs, com uma sonora e profunda gargalhada.
—.Depois de todas as vezes que você me há coberto as costas? Esquece-o, cara. Só te devolvia um favor.
Nesse momento, as portas de cristal da entrada do laboratório se abriram com um zumbido surdo e dois mais dos irmãos de Lucan entraram. Eram um bom par. Nikolai, alto e atlético, de cabelo loiro como a areia, uns rasgos angulares e impactantes e uns olhos penetrantes e azuis como o gelo, que só eram um tom mais frios que o céu de sua Siberia natal. O mais jovem do grupo e com diferença, Niko, havia-se feito homem durante o que os humanos chamavam a Guerra Fria. Do berço tinha sido imparavel e agora se converteu em um buscador de sensações de alta voltagem e se encontrava em primeira fila da raça no que tinha que ver com armas, aparelhos, e tudo o que ficava no meio.
Conlan, pelo contrário, falava com suavidade e era sério: era um perito em tática. Ao lado da excessiva fanfarronice do Niko, resultava elegante como um gato grande. Seu corpo era como um muro de músculos, e o cabelo loiro, de cor areia, brilhava por debaixo do triangulo de seda negra com que se envolvia a cabeça. Esse vampiro pertencia a uma das últimas gerações da raça, era um jovem segundo o critério de Lucan, e sua mãe era uma humana filha de um capitão escocês. O guerreiro se movia com um porte quase de realeza.
Inclusive sua amada companheira de raça, Danika, dirigia-se a esse habitante das terras altas afetuosamente lhe chamando, com freqüência, «meu senhor» e essa fêmea não era precisamente servil.

—Rio está de caminho —anunciou Nikolai com um amplo sorriso que lhe formava duas covinhas nas bochechas. Olhou a Lucan e assentiu com a cabeça.
— Eva me há dito que te diga que poderemos dispor de seu homem somente quando ela tenha terminado com ele.
—Se é que fica algo —disse Dê, arrastando as palavras enquanto levantava uma mão para saudar outros com um suave roce das palmas prévio a um choque de nódulos.
Lucan saudou Niko e a Conlan da mesma maneira, mas se sentiu algo molesto pelo atraso de Rio. Não invejava a nenhum dos vampiros pela companheira de raça que tinham eleito, mas, pessoalmente, Lucan não encontrava nenhum sentido atar-se as demandas e responsabilidades de um vínculo de sangue com uma fêmea. Esperava-se que, em geral, a população da raça aceitasse a uma mulher para aparear-se e dar nascimento a seguinte geração, mas para a classe dos guerreros —para esses escassos machos que, de forma voluntária, haviam abandonado o santuário dos Refúgios Escuros para levar uma vida de luta processo de vincular-se por sangue era, para Lucan, uma frescura no melhor dos casos.
E no pior, era um convite ao desastre quando um guerreiro sentia a tentação de antepor os sentimentos para sua companheira por cima de seu dever para a raça.
—Onde está Tegan? —perguntou, ao dirigir seus pensamentos de forma natural para o último deles que faltava no edifício.
—Ainda não retornou —respondeu Conlan.
—Chamou de onde se encontra?
Conlan e Niko intercambiaram um olhar, e Conlan negou rapidamente com a cabeça:
—Nenhuma palavra.

—Esta é a vez que esteve mais tempo desaparecido em ação — assinalou Dê sem dirigir-se a ninguém em especial enquanto passava o dedo polegar pelo fio da folha curvada de sua faca.
—Quanto faz? Três, quatro dias?
Quatro dias, quase cinco.
Quem deles levava a conta?
Resposta: todos eles a levavam, mas ninguém pronunciou em voz alta a preocupação que se estendeu ultimamente em suas filas. Tal como estava o tema, Lucan tinha que esforçar-se para controlar a raiva que despertava nele cada vez que pensava no membro mais introvertido dos membros de seu quadro.
Tegan sempre preferia caçar em solitário, mas seu caráter afastado começava a resultar uma carga para outros. Era como um curinga, adquiria um valor diferente em função de cada ação e, ultimamente, cada vez mais. E Lucan, tinha que ser franco, encontrava difícil confiar nesse menino, embora a desconfiança não fosse nada novo no que concernia a Tegan. Havia uma má relação entre ambos, sem dúvida, mas essa era uma história antiga.
Tinha que ser assim. A guerra em que ambos se comprometeram desde fazia tanto tempo era mais importante que qualquer aversão que pudesse sentir um para o outro.
Apesar disso, o vampiro levava a cabo uma vigilância estreita. Lucan conhecia as debilidades de Tegan melhor que nenhum de outros e não duvidaria em responder se esse macho punha embora fosse o dedo gordo do pé no outro extremo da linha.
Por fim, as portas do laboratório se abriram e Rio entrou na hábitação enquanto se colocava as abas de sua elegante camisa branca de desenho dentro da calça negra feita a medida. Faltavam alguns botões na camisa de seda, mas Rio levava a má compostura depois do sexo com a mesma elegância desenvolvida com que se movia em todas as demais circunstâncias. Sob a densa franja de cabelo escuro que lhe pendurava por cima das sobrancelhas, os olhos de cor topázio do espanhol parecia que dançavam. Quando sorria, brilhavam-lhe as pontas das presas que, nesses momentos, ainda não se haviam retratados depois de que a paixão por sua dama os tivesse desdobrado.

—Espero que me tenham guardado alguns renegados, meus amigos. — esfregou-se as mãos:—Me sinto bem e tenho vontades de festa.
— Sente-se disse Lucan— e tenta não manchar de sangue os computadores do Gideon.
Gideon se levou os largos dedos da mão até a marca vermelha que Eva tinha feito na garganta, evidentemente ao lhe morder com seus dentes romos de humana para lhe chupar a veia. Apesar de que era uma companheira de raça, continuava sendo geneticamente Homo sapiens. Embora fazia muitos anos que ela e outras como ela mantinham vínculos de sangue com seus companheiros, nenhuma delas teria presas nem adquiriría as demais características dos machos vampiro. Era uma prática ampliamente aceita que um vampiro alimentasse a sua companheira através de uma ferida que ele mesmo se infligia no pulso ou no antebraço, mas as paixões eram selvagens nas filas dos guerreiros da raça. E também o eram com as mulheres que escolhiam. O sexo e o sangue era uma combinação muito potente: Às vezes, muito potente.
Com um sorriso impenitente, Rio se moveu na cadeira giratória com gesto alegre e desenvolvido e se recostou no respaldo para colocar os pés nus em cima do console . Ele e os outros guerreiros começaram a recordar os fatos da noite anterior e riram sem deixar de mostrar-se superiores uns com os outros enquanto discutiam as técnicas de sua profissão.
Caçar a seus inimigos era motivo de prazer para alguns membros da raça, mas a motivação íntima de Lucan era o ódio, puro e simples. Não tentava ocultá-lo. Desprezava tudo aquilo que os renegados representavam e tinha jurado, fazia muito tempo, que os aniquilaria ou que morreria no intento. Havia dias nos que não lhe importava qual das duas coisas pudesse acontecer.
—Aí está —disse Gideon por fim ao ver que os registros que apareciam em tela se detinham.
— Parece que encontramos um filão.

—O que obtiveste?
Lucan e outros dirigiram a atenção para a tela plaina extra grande que se encontrava em cima da mesa dos microprocessadores do laboratório. Os rostos dos quatro renegados a quem Lucan matou apareceram ao lado dos das fotos do celular de Gabrielle: eram os mesmos indivíduos.
—Os registros da Base de dados de Identificação Internacional os têm qualificados como desaparecidos. Dois desapareceram do Refúgio Escuro de Connecticut o mês passado, e outro do Fall River, e este último é daqui. Todos são da geração atual, e o mais jovem nem sequer tem trinta anos.
—Merda —exclamou Rio antes de assobiar com suavidade.
— Meninos estúpidos.
Lucan não disse nada, não sentia nada, pela perda dessas vidas jovens ao converter-se em renegados. Não eram os primeiros, e seguro que não seriam os últimos. Viver nos Refúgios Escuros podia resultar bastante aborrecido para um macho imaturo que tivesse alguma coisa que demostrar. O atrativo do sangue e da conquista se encontrava profunda-mente enraizado inclusive entre as últimas gerações, que eram as que se encontravam mais distantes de seus selvagens antepassados. Se um vampiro ia em busca de problemas, especialmente em uma cidade do tamanho da de Boston, normalmente os encontrava em abundância.
Gideon introduziu uma rápida série de ordens através do teclado do computador e abriu mais fotos procedentes da base de dados.
—Aqui estão os últimos dois registros. Este primeiro indivíduo é um renegado conhecido, um agressor reincidente em Boston, apesar de que parece que se manteve um tanto à margem durante os últimos três meses. Quer dizer, tem-no feito até que Lucan o reduziu a cinzas no beco este fim de semana.
—E o que sabemos deste? —perguntou Lucan, olhando a última imagem que ficava, a do único renegado que tinha conseguido escapar depois do ataque fora da discoteca. Sua foto no registro era uma imagem tomada de um fotograma de um vídeo que, presumivelmente, fez-se durante uma espécie de sessão de interrogatório conforme se deduzia pelas ataduras e os eletrodos que levava em cima.

—Quanto tempo tem esta imagem?
—Uns seis meses —respondeu Gideon, abrindo a data da imagem— Sai de uma das operações na Costa Oeste.
—Los Angeles?
—Seattle. Mas segundo o relatório, em Los Angeles tem uma ordem de arresto também.
—Ordens de arresto —disse Dê em tom zombador.
— Uma fodida perda de tempo.
Lucan não podia não estar de acordo com ele. Para quase toda a nação de vampiros nos Estados Unidos e no estrangeiro, o cumprimento da lei e a detenção dos indivíduos que se converteram em renegados se governavam por umas regras e procedimentos específicos. Redigiam-se ordens de arresto, realizavam-se as detenções, realizavam-se os enterrogatorios e se transmitiam as condenações. Tudo era muito civilizado e estranhamente resultava efetivo.
Enquanto que a raça e a população dos Refúgios Escuros estavam organizados, motivados e envoltos por capas de burocracia, seus inimigos eram imprevisíveis e impetuosos. E, a não ser que a intuição de Lucan fora errônea, os renegados, depois de séculos de anarquia e de caos geral, estavam começando a organizar-se.
Se é que não levavam já meses nesse processo.
Lucan observou a imagem que tinha aparecido em tela. Na imagen de vídeo, o renegado a quem tinham capturado se encontrava preso em uma prancha de metal colocada em vertical, nu e com a cabeça barbeada por completo, provavelmente para que as descargas elétricas que lhe enviavam lhe chegassem com maior facilidade enquanto lhe interrogavam. Lucan não sentia nenhuma compaixão pela tortura que o renegado tinha suportado. Freqüentemente era necessário realizar interrogatórios desse tipo, e igual que acontece com um ser humano enganchado a heroína, um vampiro que sofria de sede de sangue podia suportar dez vezes mais e sem fraquejar a dor que outro de seus irmãos de raça podia agüentar.

Esse renegado era grande, com umas sobrancelhas densas e uns rasgos fortes e primitivos. Nessa imagem lhe via rir com ironia. Os largos dentes brilhavam e tinha uma expressão selvagem nos olhos da cor do ámbar e de pupilas alargadas e verticais. Encontrava-se envolto por cabos da cabeça enorme até o musculoso peito e os braços firmes como martelos.
—Dando por entendido que ser feio não é um crime, por que motivo lhe pilharam em Seattle?
—Vamos ver o que temos. —Gideon voltou a colocar-se ante os computadores e abriu um registro em outra das telas.
—Lhe hão arrestado por tráfico: armas, explosivos, substâncias químicas. Vá, este tipo é um encanto. Colocou-se em uma merda verdadeiramente feia.
—Alguma idéia sobre de quem eram as armas que levava?
—Aqui não diz nada. Não conseguiram grande coisa com ele, é evidente. O registro informa que escapou justo depois de que tomassem estas imagens. Matou a dois dos guardas durante a fuga.
E agora havia tornado a escapar, pensou Lucan, desalentado e desejando ferventemente ter decapitado ao filho de puta quando o tinha diante. Não suportava o fracasso com facilidade, e muito menos quando se tratava do seu próprio.
Lucan olhou a Niko.
—Cruzaste-te alguma vez com este tipo?
—Não —repôs o russo—, mas consultarei com meus contatos, a ver o que posso averiguar.

—Ponha nisso.
Nikolai assentiu com a cabeça com gesto rápido e se dirigiu para a saida do laboratório técnico enquanto já marcava o número de telefone de alguém no celular.
—Estas fotos são uma merda —disse Conlan, olhando por cima do ombro do Gideon em direção as fotos que Gabrielle tinha tomado durante o assassinato, fora da discoteca. O guerreiro pronunciou uma maldição.
— Já é bastante mau que os humanos tenham presenciado alguns dos assassinatos dos renegados durante os últimos anos, mas agora se dedicam a deter-se e a tomar fotos?
Dante deixou cair os pés ao chão com um ruído surdo, ficou em pé e começou a caminhar pela habitação, como se começasse a sentir-se cada vez mais inquieto pela falta de atividade nessa reunião.
—Todo mundo acredita que são uns fodidos paparazzi.
—O tipo que fez essas fotos deveu cagar-se de medo ao encontrar-se com noventa quilogramas de guerreiro salivando por ele —acrescentou Rio. E, olhou a Lucan—. Lhe apagou primeiro a memória, ou simplesmente o eliminou ali mesmo?
—O humano que presenciou o ataque essa noite era uma mulher. —Lucan olhou fixamente os rostos de seus irmãos sem mostrar o que sentia em relação a informação que estava a ponto de lhes dar.
— Resulta que é uma companheira de raça.
—Mãe de Deus —exclamou Rio, passando a mão pelo cabelo—. Uma companheira de raça. Está seguro?
—Leva o sinal. Vi-a com meus próprios olhos.
—O que fez com ela? Transou, não...?

—Não —repôs com secura Lucan, inquieto pelo que o espanhol havia insinuado com o tom de voz.
—Não fiz nenhum mal a essa mulher. Existe uma linha que nunca vou cruzar.
Tampouco tinha reclamado a Gabrielle para si, embora tinha estado muito perto de fazê-lo essa noite no apartamento dela. Lucan apertou a mandíbula: uma onda de escuro desejo lhe invadiu ao pensar em quão tentadora Gabrielle estava, enroscada e dormida na cama. No malditamente doce que era seu sabor em sua língua...
—O que vais fazer com ela, Lucan? —Esta vez, a expressão de preocupação proveio de onde se encontrava Gideon.
— Não podemos deixar que os renegados a encontrem. Seguro que ela chamou a atenção deles quando realizou essas fotos.
—E se os renegados se dão conta de que é uma companheira de raça... —acrescentou Dê, interrompendo-se A metade da frase. Outros assentiram com a cabeça.
—Ela estará mais segura aqui —disse Gideon—, sob o amparo da raça. Melhor ainda: deveria ser oficialmente admitida em um dos Refúgios Escuros.
—Conheço o protocolo —repôs Lucan, pronunciando cada palavra com lentidão. Sentia muita raiva ao pensar em que Gabrielle pudesse acabar nas mãos dos renegados, ou nas de outro membro da raça se fazia o que era devido e a mandava a um dos Refúgios Escuros da nação. Nenhuma das duas opções lhe parecia aceitável nesse momento a causa do sentimento possessivo que lhe bulia nas veias, irreprimivel embora não desejado.
Olhou a seus irmãos guerreiros com frieza.
—Essa mulher é responsabilidade minha a partir de agora mesmo. Decidirei qual é a melhor atuação neste tema.
Nenhum dos guerreiros lhe contradisse. Lucan não esperava que o fizessem. Em qualidade de membro de primeira geração, ele era mais antigo; em qualidade de guerreiro fundador dos de sua classe na raça, era quem mais coisas tinha demonstrado, com sangue e também com o aço. Sua palavra era lei, e todos os que se encontravam nessa habitação o respeitavam.

Dante ficou em pé, brincou com a Malebranche entre seus compridos e hábeis dedos e a embainhou com um ágil gesto.
—Faltam quatro horas para que caia o sol. Vou. —Olhou de soslaio a Rio e a Conlan.
— Alguém tem vontades de treinar antes de que as coisas fiquem interessantes?
Os dois machos se levantaram rapidamente, animados pela idéia, e detrás dirigir uma respeitosa saudação a Lucan, os três grandes guerreiros sairam do laboratório técnico e percorreram o corredor em direção a zona de treinamento do edifício.
—Tem algo mais sobre esse renegado de Seattle? —perguntou- Lucan a Gideon enquanto as portas de cristal se fechavam, quando ambos ficaram sozinhos no laboratório.
— Agora mesmo estou realizando uma comparação cruzada de todas as bases de registros. Só demorará um minuto em dar algum resultado. — Teclou umas ordens no computador.
— Bingo. Tenho uma coincidência procedente de uma informação GPS da Costa Oeste. Parece informação reunida anteriormente ao arresto. Joga uma olhada.
A tela do monitor se encheu com uma série de imagens noturnas por satélite de uma embarcação de pesca comercial aos subúrbios de Puget Sound. A imagem se centrava em um Sedan comprido e negro que se encontrava detrás de um maltratado edifício situado ao final do dique. Apoiado contra a porta posterior se encontrava o renegado que tinha conseguido escapar de Lucan fazia uns dias. Gideon passou rapidamente uma série de imagens que lhe mostravam conversando longamente, ou isso parecia, com alguém que se encontrava oculto detrás dos cristais negros dos guichês. À medida que as imagens avançavam, viram que a porta traseira do carro se abria e o renegado entrava no carro.
—Detenha —disse Lucan, fixando o olhar na mão do passageiro oculto.
— Pode deter todo este fotograma? Aumenta a zona da porta aberta do carro.

—Vou tentar .
A imagem aumentou de tamanho, mas Lucan quase não necessitava um aumento da imagem para confirmar o que via. Quase não se distinguia, mas aí estava. Na parte de pele exposta entre a grande mão do passageiro e o punho francês da camisa de manga larga se viam uns impressionantes dermoglifos que lhe delatavam como um membro de primeira geração.
Gideon também os tinha visto nesse momento.
—Maldição, olhe isso —disse, cravando a vista no monitor—. Nosso imbécil de Seattle desfrutava de uma companhia interessante.
—Possivelmente ainda o está fazendo —repôs Lucan.
Não havia nada pior que um renegado que tivesse sangue de primeira geração nas veias. Os membros de primeira geração caíam vitima da sede de sangue com maior rapidez que as últimas geração da raça, e eram uns temíveis inimigos. Se algum deles tinha intenção de liderar aos renegados e lhes conduzir a um levantamento, isso significaria o princípio de uma guerra infernal. Lucan já havia lutado em uma batalha assim uma vez, fazia muito tempo. Não desejava voltar a fazê-lo.
—Imprime tudo o que conseguiste, incluídos as ampliações de eroglifos.
—Já estão.
—Qualquer outra coisa que encontre sobre esses dois indivíduos, passa-me diretamente. Encarregarei-me disto pessoalmente.
Gideon assentiu com a cabeça, mas o olhar que lhe dirigiu por cima da arreios dos óculos expressava dúvida.

—Não pode pretender te encarregar de tudo isto você sozinho, já sabe.
Lucan lhe cravou um olhar escuro.
—Quem o diz?
Sem dúvida, o vampiro tinha em sua cabeça de gênio todo um discurso aberto da probabilidade e da lei da estatística, mas Lucan não se sentia de humor para lhe escutar. A noite se aproximava, e com ela se aproximava outra oportunidade de caçar a seus inimigos. Precisava empregar as horas que ficavam para esclarecer a cabeça, preparar as armas e decidir onde era melhor atacar. O depredador que havia nele se sentia impaciente e faminto, mas não por causa da batalha contra os Renegados.
Em lugar disso, Lucan se deu conta de que seus pensamentos se desviavam para um tranqüilo apartamento do Beacon Hill, para uma visita que nunca deveria ter realizado. Ao igual que o aroma de jasmim, o recordava da suavidade e a calidez da pele de Gabrielle, enredava-se com seus sentidos. Ficou tenso e seu sexo ficou em ereção somente pensando nela.
Foder.
Essa era a razão pela qual não a tinha posto sob o amparo da raça, aqui, no edifício. A certa distancia, ela era uma distração. Mas se encontrava em uma habitação próxima, seria um maldito desastre.
—Está bem? —perguntou-lhe Gideon, dando-a volta com a cadeira e ficando de cara a Lucan.
— É uma fúria muito grande a que tem em topo, amigo.
Lucan se arrancou da cabeça esses escuros pensamentos e se deu conta de que as presas lhe tinham alargado e que a visão lhe havia agudizado com o fechamento das pupilas. Mas não era a fúria o que lhe transformava. Era a luxúria, e tinha que saciá-la, antes ou depois. Com essa idéia lhe pulsando nas têmporas, Lucan tomou o telefone celular de Gabrielle, que se encontrava em cima de uma das mesas, e saiu do laboratório.

 

 

CONTINUA

Capítulo quatro

Gabrielle podia contar com uma só mão os sonhos erótico que tinha tido durante toda sua vida, mas nunca tinha experiente nada tão quente —por não dizer real— como a fantasia de orgia sexual que tinha desfrutado da noite anterior, cortesia de um Lucan Thorne virtual. Seu fôlego tinha sido a brisa noturna que penetrava pela janela aberta de seu dormitório do piso de acima. Seu cabelo era a escuridão de obsidiana que enchia as clarabóias, sobre sua cama. Seus olhos chapeados, o brilho pálido da lua. Suas mãos eram as ligaduras de seda de sua colcha, que enredavam seus pulsos e tornozelos, abriam seu corpo debaixo do dele e a sujeitavam com força.
Sua boca era puro fogo que lhe queimava cada centímetro da pele e a consumia como uma chama invisível. «Jasmim», tinha-a chamado ele, e o suave som dessa palavra vibrava contra a umidade de sua pele, o quente fôlego dele formava redemoinhos os suaves cachos de pêlo de sua entre perna.
Ela se tinha retorcido e tinha gemido dominada pela habilidade da língua dele, que a tinha submetido a uma tortura que ela desejava que fosse infinito. Mas tinha terminado, e muito logo. Gabrielle se tinha despertado em sua cama, só na escuridão, pronunciando quase sem fôlego o nome de Lucan, com o corpo esgotado e inerte, dolorido pelo desejo.
Ainda lhe doía o desejo e o que mais lhe preocupava era o fato de que o misterioso detetive Thorne lhe tivesse dado plantão.
Não era que seu oferecimento de passar por seu apartamento essa noite fosse nada que se parecesse com um encontro, mas ela tinha estado esperando voltar a lhe ver. Tinha interesse em saber mais a respeito dele dado que se havia mostrado tão inclinado a decifrá-la com um simples olhar. Além de conseguir algumas respostas mais sobre o que tinha presenciado essa noite fora da discoteca, Gabrielle tinha desejado conversar de algo mais com Lucan, possivelmente tomar um pouco de vinho e algo para jantar. O fato de que se depilou as pernas duas vezes e de que se pôs uma roupa interior negra e atrativa sob a camisa de seda de manga larga e dos escuros jeans era puramente acidental.

Gabrielle lhe tinha esperado até bem passadas as nove e então abandonou a idéia e chamou Jamie para ver se ele queria jantar com ela no centro da cidade.
Agora, sentado diante dela, ao outro lado da mesa, nessa sala cheia de janelas do bistro Ciao Bela, Jamie deixou na mesa a taça de pinot noire e olhou o prato de frutos do mar que ela quase não havia tocado.
—Estiveste enjoando a mesma parte da comida pelo prato durante os últimos dez minutos, carinho. Você não gosta?
—Sim, é genial. A comida sempre é incrível aqui.
—Então, é a companhia o que te desagrada?
Ela levantou o olhar para ele e negou com a cabeça.
—Absolutamente. Você é meu melhor amigo, já sabe.
—Certo —assentiu ele.
— Mas não me posso comparar com seu sonho erótico.
Gabrielle se ruborizou ao dar-se conta de que um dos clientes que se encontrava na mesa do lado olhava para eles.
—Às vezes é horrível, sabe? —disse a Jamie em um sussurro.
— Não deveria haver lhe contado isso.
—OH, carinho. Não se sinta incômoda. Se me tivessem dado uma moeda cada vez que me despertei excitado, chiando o nome de algum cara sexy...
—Eu não chiei seu nome. —Não, tinha-o pronunciado com o folego entrecortado e em um gemido, tão enquanto estava na cama como enquanto estava na ducha ao cabo de pouco tempo, ainda incapaz de tirar do corpo a sensação de Lucan Thorne.
— Era como se ele estivesse ali, Jamie. Justo ali, em minha cama, tão real que eu podia lhe tocar.
Jamie suspirou.
—Algumas garotas têm toda a sorte do mundo. A próxima vez que te encontre com seu amante em sonhos, seja generosa e me manda isso quando tenha terminado.
Gabrielle sorriu, sabendo que seu amigo não andava escasso no apartado romântico. Durante os últimos quatro anos tinha tido uma feliz relação monógama com o David, um vendedor de antiguidades que se encontrava nesses momentos fora da cidade por motivos de trabalho.
—Quer saber o que é o mais estranho disso tudo , Jamie? Aos levantar, esta manhã, a porta de entrada não estava fechada com chave.
— E?
—E você me conhece, nunca a deixo aberta.
As cuidadas e depiladas sobrancelhas do Jamie se juntaram, franzindo o cenho.
—O que quer dizer, que cre que esse cara forçou a porta de sua casa enquanto dormia?
—Parece uma loucura, sei. Um detetive da polícia que vem a minha casa a meia-noite para me seduzir. Devo estar perdendo a cabeça.
Disse-o com tom despreocupado, mas não era a primeira vez que se questionava em silêncio sua própria prudência. Não era a primeira vez nem muito menos. Com gesto ausente, brincou um momento com a manga da blusa enquanto Jamie a observava. Ele se sentia preocupado nesse momento, o qual somente aumentava a inquietação que Gabrielle sentia sobre o tema de sua possível instabilidade mental.

—Olhe, carinho. Passaste muita tensão do fim de semana. Isso pode provocar coisas estranhas na cabeça. Estiveste preocupada e confundida. Possivelmente se esqueceu de fechar a porta.
—E o sonho?
—Somente isso... Um sonho. Somente se trata de sua mente curvada que tenta tranqüilizar-se, relaxar-se.
Gabrielle baixou a cabeça em um gesto automático de afirmação.
—Exato. Estou segura de que só é isso.
Se pudesse aceitar que a explicação de tudo era tão simples como seu amigo fazia que parecesse... Mas uma sensação na boca do estômago rechaçava a idéia de que ela tivesse esquecido de fechar a porta. Ela nunca faria uma coisa assim, simplesmente, por estressada e confundida que estivesse.
—Né. —Jamie alargou o braço por cima da mesa para tomar a mão.
— Vais estar bem, Gab. Já sabe que pode me chamar a qualquer hora, verdade? Estarei contigo, sempre o estarei.
—Obrigado.
Lhe soltou a mão, tomou o garfo e fez um gesto em direção a seu fruto do mar.
—Bom, vais comer um pouco mais ou posso começar a limpar seu prato agora?
Gabrielle trocou seu prato meio cheio pelo dele, completamente vaziu.
—Tudo para ti.

Enquanto Jamie se concentrava na comida fria, Gabrielle apoiou o queixo em uma mão e tomou um comprido gole de sua taça de vinho. Enquanto bebia, brincou com os dedos em cima das ligeiras marcas que descobriu no pescoço essa mesma manhã depois de tomar banho. A porta aberta não era o mais estranho que se encontrou essa manhã: as duas marca idênticas que se viu debaixo da orelha se levaram o prêmio, sem dúvida nenhuma.
Essas pequenas perfurações não tinham sido o bastante profundas para lhe transpassar a pele, mas aí estavam. Havia duas, a uma distância equitativa, no ponto onde o pulso lhe pulsava com mais força quando o apalpava com os dedos. Ao princípio se disse que possivelmente havia se arranado a si mesmo enquanto dormia, possivelmente a causa do sonho estranho que tinha tido.
Mas, entretanto, essas marcas não pareciam arranhões. Pareciam... outra coisa.
Como se alguém, ou algo, tivesse estado a ponto de lhe morder a carótida.
Uma loucura.
Isso era, e tinha que deixar de pensar dessa maneira antes de fazer-se mais mal a si mesmo. Viu-se obrigada a centrar-se e a deixar de recrear-se em fantasias delirantes sobre visitantes a meia-noite e monstros de filme de terror que não era possível que existissem na vida real. Se não tomava cuidado, acabaria como sua mãe biológica.
—OH, Meu deus, me dê uma bofetada agora mesmo porque sou um completo e profundo imbecil —exclamou Jamie de repente, interrompendo seus pensamentos.
— Continuo esquecendo-me de lhe dizer isso ontem recebi uma chamada na galeria sobre suas fotografias. Um peixe gordo do centro da cidade está interessado em uma amostra privada.
—Sério? De quem se trata?
Ele se encolheu de ombros.

—Não sei, carinho. A verdade é que não falei com o possível comprador, mas a partir da atitude estirada do ajudante do tipo, diria que seja quem é seu admirador, ele ou ela— nada na abundância do dinheiro. Tenho uma entrevista em um dos edifícios do distrito financeiro amanhã de noite. Falo-te de um escritório em uma cobertura, querida.
—OH, Meu deus —exclamou ela com incredulidade.
—Acredita. Super bom, amiga. Muito em breve será muito para um pequeno vendedor de arte como eu —brincou ele, compartilhando a excitação com ela.
Era difícil não sentir-se intrigada, especialmente depois de tudo o que lhe tinha passado durante os últimos dias. Gabrielle tinha conseguido uns fiéis e respeitáveis admiradores e ganhou uns quantos bons elogios por seu novo trabalho, mas uma amostra privada para um comprador desconhecido era o máximo.
—Que peças te pediu que levasse?
Jamie levantou a taça de vinho e brindou com a dela com um gesto burlesco de saudação.
—Todas, senhorita Importante. Cada uma das peças da coleção.
No telhado do um velho edifício de tijolos do ocupado distrito dos teatros da cidade, a lua se refletia na risada letal de um vampiro embelezado de negro. Agachado em sua posição perto da beirada, o guerreiro da raça girou a escura cabeça e levantou uma mão para fazer um sinal.
«Quatro renegados. Uma presa humana se dirige diretamente para eles.»
Lucan lhe dirigiu um gesto afirmativo com a cabeça a Dante e se afastou da saída de emergência do quinto piso, que tinha sido sua posição de vigilância durante a última meia hora. Baixou até a rua de abaixo com um ágil movimento, aterrissando em silêncio, como um gato. Levava uma dupla folha de combate nas costas que lhe sobressaía pelos ombros como os ossos das asas de um demônio. Lucan desencapou a arma de titânio quase sem emitir nenhum som e penetrou nas sombras da estreita rua lateral para esperar os acontecimentos dessa noite.

Eram ao redor das onze, várias mais tarde que a hora em que deveria ter passado pelo apartamento de Gabrielle Maxwell para lhe devolver o telefone celular, tal e como lhe disse que o faria. O aparelho ainda estava em posse de Gideon, no laboratório técnico, que estava processando as imagens para as contrastar com a Base de dados de Identificação Internacional da Raça.
Quanto a Lucan, não tinha nenhuma intenção de devolver o telefone celular a Gabrielle, nem em pessoa nem de nenhuma outra maneira. As imagens do ataque dos renegados não tinham que estar em mãos de nenhum ser humano, e depois da decepção que se levou no dormitório dela, quanto mais longe estivesse dessa mulher, melhor.
«Uma maldita companheira de raça.»
Deveria havê-lo sabido. Agora que o pensava, ela tinha certas características que deveriam lhe haver dado a pista disso desde o começo. Como sua habilidade de ver através do véu do controle mental vampírico que enchia essa noite a sala de baile da discoteca. Ela tinha visto os renegados —ávidos de sangue no beco, e nas imagens indecifráveis do telefone celular— quando outros seres humanos não os havia podido ver. Logo, em seu apartamento, tinha demonstrado que tinha resistência ante a sugestão mental de Lucan para dirigir seus pensamentos, e ele suspeitava que se tinha sucumbido, tinha-o feito mais por causa de um desejo consciente do prazer que ele supunha para ela que por nenhuma outra coisa.
Não era nenhum secredo que as fêmeas humanas com o código genético único de companheiras de raça possuíam uma inteligência aguda e uma saúde perfeita. Muitas delas tinham uns assombrosos talento paranormal que aumentariam quando a companheira de raça se unisse por sangue com um macho vampiro.
Quanto a Gabrielle Maxwell, parecia possuir o dom de ter uma vista especial que lhe permitia ver o que o resto de seres humanos não podia ver, mas até onde chegava essa capacidade de visão era algo que ele não podia adivinhar. Lucan queria sabê-lo. Seu instinto de guerreiro exigia chegar ao fundo do assunto sem nenhuma demora.

Mas envolver-se com essa mulher, da forma que fosse, era o último que ele necessitava.
Então, por que não podia tirar-se de cima seu doce aroma, a suavidade de sua pele... sua provocadora sensualidade? Odiava o fato de que essa mulher tivesse despertado nele tal fragilidade, e seu estado de ânimo atual dificilmente melhorava pelo fato de que todo seu corpo doía pela necessidade de alimentar-se.
O único ponto claro essa noite era o constante ritmo dos saltos das botas dos renegados no pavimento, em algum lugar perto da entrada da rua lateral, que se dirigiam para ele.
O ser humano girou a esquina: encontrava-se a vários passos a frente deles, e era um homem. Jovem, saudável, vestia uma calça negra e alvo e uma túnica branca manchada que cheirava a cozinha de restaurante e a um suor repentino de ansiedade. O cozinheiro olhou por cima do ombro e viu que os quatro vampiros foram ganhando terreno. Um palavrão pronunciado em tom nervoso e atravessou a escuridão.
O humano voltou a girar a cabeça e caminhou mais depressa, com os punhos apertados e ambos grudado no corpo e os olhos muito abertos e cravados na estreita greta do asfalto que havia sob seus pés.
—Não faz falta que corra, homenzinho —lhe provocou um dos Renegados em um tom rouco como o som da areia fina contra o chão.
Outro deles emitiu um chiado agudo e se colocou a cabeça de seus três companheiros.
—Sim, não te escape agora. Tampouco é que vás chegar muito longe.

As risadas dos renegados ressonaram nos edifícios que flanqueavam a estreita rua.
—Merda —sussurrou o ser humano quase sem respiração. Não se voltou somente continuou para frente a passo rápido, a ponto quase de lançar-se a uma frenética, mas inútil, carreira.
À medida que o aterrorizado ser humano lhe aproximava, Lucan saiu da escuridão dando um passo e ficou em pé com as pernas abertas com os braços abertos a ambos os lados de seu corpo, bloqueou a rua com seu corpo ameaçador e suas espadas as gema. Dirigiu um frio sorriso aos renegados com as presas ameaçadoras, antecipando a luta que se morava.
—Boa tarde, senhoritas.
—OH, Jesus! —exclamou o ser humano. Deteve-se de forma brusca e olhou a Lucan o rosto com expressão de horror. Os joelhos cederam e caiu no chão,
— Merda!
—Te levante. —Lucan lhe dirigiu um breve olhar enquanto o jovem se esforçava por ficar em pé.
— Vai daqui.
Esfregou uma das afiadas folhas contra a outra diante dele e encheu a rua em sombras com o áspero som metálico do aço endurecido e letal. Detrás dos quatro renegados, Dante caiu ao asfalto e se agachou antes de levantar seu metro noventa e oito de altura. Não levava nenhuma espada, mas ao redor da cintura levava um cinturão de pele no qual levava sujeitas uma série de armas de mão letais, entre elas um par de folhas curvadas e afiadas como folhas de barbear que se convertiam em uma extensão infernal de suas mãos, incrivelmente rápidas. Malebranche ou prolongações diabólicas as chamava, e efetivamente eram umas garras do diabo. Dante as teve colocadas nas mãos em um momento: era um vampiro que sempre estava a ponto para entrar em um combate corpo a corpo.
—OH, Meu deus —gritou o ser humano com voz trêmula ao dar-se conta do perigo que lhe rodeava. Olhou a Lucan com a boca aberta e, com mãos trementes, rebuscou entre suas roupas tirou uma carteira do bolso traseiro da calça e a atirou ao chão.
— Toma-a, cara! Pode ficar mas não me mate, suplico-lhe isso!

Lucan manteve os olhos fixos nos quatro renegados, que nesses momentos estavam tomando posições e preparavam as armas.
—Te largue daqui. Agora.
—É nosso —vaiou um dos renegados. Uns olhos amarelos se cravaram fixamente em Lucan com puro ódio, as pupilas se reduziram a duas famintas ranhuras verticais. De suas largas presas lhe gotejava a saliva, outra prova do grande vício do vampiro pelo sangue.
Ao igual que os seres humanos podiam acabar dependendo de um poderoso narcótico, a sede de sangue também era destrutivo para a raça. A fronteira entre a necessidade de satisfazer a fome e a constante overdose de sangue se cruzava com facilidade. Alguns vampiros entravam nesse abismo de forma voluntária, enquanto que outros sucumbiam a essa enfermidade por inexperiência ou por falta de disciplina pessoal. Se chegava muito longe, e durante muito tempo, um vampiro se convertia na categoria de renegado, igual a esses ferozes monstros que grunhiam frente a Lucan nesses momentos.
Ansioso por convertê-los em cinzas, Lucan juntou com um golpe seco as duas folhas e cheirou a faísca de fogo que se criou quando os dois aços se encontraram.
O ser humano ainda se encontrava ali, atordoado pelo medo, dirigindo primeiro a cabeça para os renegados, que avançavam para ele, e agora para Lucan, que lhes esperava com atitude inquebrável. Esse momento de dúvida ia custar lhe a vida, mas Lucan apartou esse pensamento com frieza. O ser humano não era assunto dele. Quão único importava era eliminar a esses chupadores aditivos de sangue e ao resto dos doentes de sua raça.
Um dos renegados se passou uma mão suja por cima dos lábios babantes.
—Te aparte, idiota. Deixa que nos alimentemos.

—Esta noite não —grunhiu Lucan.
— Não em minha cidade.


—Sua cidade? —O resto deles se burlou e o renegado que ia em cabeça cuspiu no chão, Aos pés de Lucan.
— Esta cidade nos pertenece . Dentro de muito pouco, possuiremo-la por completo.
—Exato —acrescentou outro dos quatro.
— Assim parece que é você quem entrou em um território alheio.
Finalmente, o ser humano recuperou certa inteligência e começou a retirar-se, mas não chegou muito longe. Com uma velocidade incrível, um dos renegados alargou uma mão e agarrou ao homem pela garganta. Ele levantou do chão e lhe segurou no ar: as botas altas do homem ficaram a dois centímetros do chão. O ser humano grunhiu e suplicou, lutando com ferocidade enquanto o renegado lhe apertava o pescoço com mais força, lhe estrangulando lentamente com a mão nua. Lucan o observou, imperturbável, inclusive quando o vampiro deixou cair sua retorcida presa e lhe fez um buraco no pescoço com os dentes.
Pela extremidade do olho, Lucan viu que Dante se aproximava sigilosamente aos renegados por detrás. Com as presas estendidas, o guerreiro se lambeu os lábios, ansioso por entrar na tarefa. Não ia sentir se defraudado. Lucan atacou primeiro, e logo a rua explodiu com um estrondo de metal e de ossos quebrados.
Enquanto Dante lutava como um demônio saído do inferno —com as diabólicas folhas extensíveis cintilando a cada movimento, soltando gritos de guerra que rasgavam a noite—, Lucan manteve um frio controle e uma precisão letal. Um a um, os quatro renegados sucumbiram sob os golpes de castigo dos guerreiros. O beijo das folhas de titânio se expandia como um veneno a toda velocidade pelo corrompido sistema sangüíneo dos renegados, acelerando sua morte e provocando as rápidas mudanças nos estados de decomposição característicos da morte dos renegados.
Quando tiveram terminado com seus inimigos, quando seus corpos se reduziram de carne a osso e de osso a cinza fumegante, Lucan e Dante foram ver os restos do outro açougue da rua.
O ser humano estava imovel e sangrava profundamente por uma ferida que tinha na garganta.

Dante se agachou ao lado do homem e cheirou seu destroçado corpo.

—Está morto. Ou o vai estar dentro de um minuto.
O aroma do sangue derramado encheu as fossas nasais de Lucan com a força de um murro no ventre. Suas presas, estendidas já por causa da ira, agora pulsavam pelo desejo de alimentar-se. Baixou a vista e observou com desgosto ao humano moribundo. Apesar de que tomar o sangue era necessário para ele, Lucan desprezava a idéia de aceitar os refugos dos renegados, tivessem a forma que tivessem. Preferia conseguir o seu sustento dos serviçais anfitriões que ele mesmo elegia ali onde podia, apesar de que esses escassos bocados somente conseguiam despertar uma fome mais profunda.
Antes ou depois, todo vampiro tinha que matar.
Lucan não tentava negar sua natureza, mas nas ocasiões em que matava, o fazia seguindo sua própria eleição, seguindo sua próprias regras. Quando procurava uma presa, elegia principalmente criminosos, traficantes de droga, assassinos e outra gente de má vida. Era judicioso e eficiente e nunca matava pelo prazer de fazê-lo. Todos os da raça seguiam um código de honra similar; isso era o que lhes distinguia de seus irmãos os renegados, que se tinha separado deles ao rebelar-se a essa lei.
Sentiu que lhe esticava o ventre: o aroma do sangue voltou a fazer-se presente em suas fossas nasais. A saliva lhe começou a gotejar da boca ressecada.
Quando se tinha alimentado pela última vez?
Não podia recordá-lo: fazia bastante tempo. Vários dias, pelo menos, e não o suficiente para que lhe durasse. Tinha pensado acalmar parte da fome —tão carnal como de sangue— com a Gabrielle Maxwell a outra noite, mas essa idéia tinha tomado um giro repentino. Agora tremia por causa da necessidade de alimento, e essa necessidade era muito forte para pensar em algo exceto em cobrir as necessidades básicas de seu corpo.

—Lucan. — Dante apertou os dedos no pescoço do homem, procurando o pulso. As presas do vampiro estavam estendidos, afiados depois da batalha e por causa da reação fisiológica ante o forte aroma desse líquido escarlate que emanava do homem.
— Se esperarmos muito mais, o sangue terá morrido também.
E não lhes serviria de nada, posto que somente o sangue fresco que emanava das veias dos seres humanos podia saciar a fome de um vampiro. Dante esperou, inclusive apesar de que era óbvio que quão único desejava era baixar a cabeça e tomar sua parte desse homem, que tinha sido muito idiota para escapar quando tinha tido a oportunidade de fazê-lo.
Mas Dante esperaria, inclusive embora tivesse que deixar esbanjar esse sangue, dado que era um protocolo não escrito que as gerações mais jovens de vampiros não se alimentavam na presença dos mais velhos, especialmente se esse vampiro mais velho pertencia a categoria de «primeira geração» da raça e estava faminto.
A diferencia de Dante, o pai de Lucan era um dos Antigos, um dos oito guerreiros extraterrestres que tinham chegado de um planeta escuro e distante e se estrelaram milhares de anos atrás contra a superfície inóspita e implacável do planeta Terra. Para sobreviver, alimentaram-se do sangue dos seres humanos e tinham dizimado populações inteiras por causa de sua fome e de sua bestialidade. Em alguns estranhos casos, esses conquistadores estrangeiros se haviam emparelhado com êxito com fêmeas humanas, as primeiras companheiras de raça, que tinham gerado uma nova geração da raça dos vampiros.
Esses selvagens antepassados de outro mundo tinham desaparecido por completo, mas sua origem ainda continuava vivendo, como Lucan e uns quantos mais disseminados pelo mundo. Representavam o estádo mais próximo a realeza na sociedade dos vampiros: eram respeitados e não pouco temidos. A grande maioria dos da raça eram jovens, nascidos de uma segunda, terceira e, alguns, de uma décima geração.
A fome era mais urgente nos de «primeira geração». Também o era a propensão a ceder ante a sede de sangue e a converter-se em um renegado. A raça tinha aprendido a viver com esse perigo. A maioria deles tinha aprendido a dirigi-lo: tomavam sangue somente quando o necessitavam e nas mínimas quantidades necessárias para a sustentação. Tinham que fazê-lo assim, porque uma vez apanhados pela sede de sangue, não havia maneira de voltar atrás.

Os olhos afiados de Lucan caíram sobre a retorcida figura humana que ainda respirava ligeiramente, tombada no pavimento do chão. Ouviu um grunhido animal que provinha de sua própria garganta. Quando Lucan se aproximou com compridos passados em direção ao aroma do sangue vivo vertido no chão, Dante fez uma ligeira saudação com a cabeça e se apartou para permitir a seu superior que se alimentasse.


Capítulo cinco
Ele nem sequer se preocupou de chamá-la e lhe deixar uma mensagem a outra noite.
Típico.
Provavelmente tinha um encontro muito importante com seu mando à distancia e seu programa de poderes paranormais. Ou possivelmente, quando se houve marchado de seu apartamento a outra tarde, tinha conhecido a alguém mais e tinha recebido uma oferta mais interessante que devolver o telefone celular a Gabrielle no Beacon Hill.
Diabos, inclusive era possível que estivesse casado, ou que tivesse alguma relação com alguém. Não o tinha perguntado, e se o houvesse preguntado, isso não tivesse garantido que lhe houvesse dito a verdade. Lucan Throne, certamente, não era distinto a nenhum homem. Exceto pelo fato de que era... diferente.
Pareceu-lhe que era muito diferente a qualquer a quem houvesse conhecido até esse momento. Um homem muito reservado, quase fechado, que dava uma sensação extranhamente perigosa. Ela não podia imaginar sentado em uma poltrona diante do televisor, igual que tampouco lhe podia imaginar junto em uma relação séria de namoro, por não falar de uma esposa e uma família. O qual voltava a recordar a idéia de que seguramente ele teria recebido uma oferta mais interessante e tinha decidido desprezar a ela. E essa idéia lhe doía muito mais do que deveria.
«te esqueça dele», repreendeu-se Gabrielle quase sem fôlego enquanto aproximava o Cooper Mini negro à uma lateral da tranqüila rua local e desligava o motor. A bolsa com sua câmara e seu equipamento fotográfico se encontrava no assento do co-piloto. Agarrou-a, e tomou tambem uma pequena lanterna do porta-luvas, guardou as chaves na jaqueta e saiu do carro.

Fechou a porta sem fazer ruído e jogou uma rápida olhada ao seu redor. Não havia nem uma alma a vista, o qual não era surpreendente dado que eram quase as seis da manhã e que o edifício, no qual estava a ponto de entrar de forma ilegal e de fotografar, fazia vinte anos que estava fechado. Andou seguindo o caminho de pavimento gretado e girou a direita, cruzou uma sarjeta e subiu até um terreno cheio de carvalhos que formavam como uma densa cortina ao redor do velho hospital psiquiátrico.
O amanhecer começava a elevar-se pelo horizonte. A luz era fantasmagórica e etérea, como uma neblina úmida rosada e azulada que amortalhava essa estrutura gótica com um brilho de outro mundo. Apesar de estar pintado em tons claros, esse lugar tinha um ar ameaçador.
O contraste era o que a tinha atraído até essa localização essa manhã. Tomar as imagens ao anoitecer tivesse sido a eleição mais natural para concentrar-se na qualidade ameaçadora dessa estrutura abandonada. Mas era a justaposição da cálida luz do amanhecer com o tema frio e sinistro o que atraía a Gabrielle enquanto se detinha para tirar a câmara da bolsa que tinha pendurada do ombro. Tirou umas seis fotos e logo voltou a pôr a tampa a lente para continuar a caminhada em direção ao fantasmagórico edifício.
Uma alta cerca de arame apareceu diante dela, impedindo que os exploradores curiosos como ela entrassem na propriedade. Mas Gabrielle sabia que tinha um ponto débil escondido. Tinha-o descoberto a primeira vez que tinha vindo ao lugar para tirar umas fotos de exterior. Se apressou seguindo a linha da cerca até que chegou ao extremo sudoeste da mesma, onde se agachou até o chão. Ali, alguém tinha talhado discretamente o arame e tinha formado uma abertura o bastante grande para que um adolescente curioso pudesse abrir-se passo, ou para que uma fotógrafa decidida, e que tinha tendência a interpretar os sinais de «Não passar» e «Só pessoal autorizado» como sugestões amistosas em lugar de leis inquebráveis, penetrasse por ela.
Gabrielle abriu a parte de arame talhado, lançou o equipamento para o outro lado e se arrastou como uma aranha, sobre o ventre, Através da baixa abertura. Quando ficou em pé, ao outro lado da cerca, sentiu que as pernas lhe tremiam por causa de uma repentina apreensão. Deveria estar acostumada a este tipo de operações encobertas, de explorações em solitário: muito freqüentemente, sua arte dependia de sua coragem para encontrar lugares desolados, que alguns qualificariam de perigosos. Esse arrepiante psiquiátrico podia, certamente, qualificar-se como perigoso,
pensou enquanto deixava vagar o olhar por um grafite pintado com aerosol ao lado da porta de entrada que dizia más vibrações.
—Já pode dizê-lo —sussurrou em voz muito baixa. Enquanto se sacudia as agulhas de pinheiro e a terra da roupa, com gesto automático levou uma mão até o bolso dianteiro de seu jeans em busca do celular. Não estava ali, é obvio, já que ainda estava em poder do detetive Thorne. Outra razão para sentir-se aborrecida com ele por havê-la feito esperar a outra noite.
Possivelmente não deveria ser tão dura com o menino, pensou, repentinamente desejosa de concentrar-se em algo distinto ao mau pressentimento que a atendia agora que se encontrava dentro do terreno do psiquiátrico. Possivelmente Thorne não se apresentou porque algo lhe tinha acontecido no trabalho.
E se tinha sido ferido em cumprimento do dever e não acudiu tal e como tinha prometido porque se encontrava de alguma forma encapacitado de chamar ? Possivelmente não tinha chamado para desculpar-se nem para explicar sua ausência porque não podia fazê-lo fisicamente.
Exato. E possivelmente ela tinha comprovado seu próprio cérebro com as bra-gás do mesmo segundo em que tinha posto os olhos nesse homem.
Burlando-se de si mesmo, Gabrielle recolheu suas coisas e caminhou em direção a imponente arquitetura do edifício principal. Uma pálida pedra calcária se elevava para o céu em uma levantada torre central, remota em uns picos e agulhas dignos da melhor catedral gótica. Ao seu redor havia um extenso recinto de paredes de tijolo vermelho, cujo teto estava composto por telhas ordenadas em um desenho como de asas de morcego, comunicado entre eles por passarelas e arcos que formavam um claustro coberto.
Mas por impressionante que fosse essa estrutura, não havia forma de tirar-se de cima a sensação de uma ameaça latente, como se mil pecados e mil segredos se apertassem detrás dessas descascadas paredes e janelas com parte de cristais quebrados. Gabrielle caminhou até o ponto onde a luz era melhor e tomou umas quantas fotos. Não havia nenhuma maneira de entrar por aí: a porta principal estava fechada com ferrolho e com travessas de madeira. Se queria entrar para realizar algumas fotos do interior —e, definitivamente, sim queria—, tinha que dar a volta até a parte traseira e provar sorte com alguma janela que estivesse a pé de rua ou com alguma porta do porão.
Baixou deslizando-se por um aterro em pendente para a parte posterior do edifício e encontrou o que estava procurando: umas portinhas de madeira ocultavam três janelas que era muito provável que se abrissem a uma zona de serviço ou a um armazém. Os ferrolhos estavam oxidados, mas não estavam fechados e se abriram com facilidade quando se serve de ajuda de uma pedra que encontrou ali ao lado. Atirou da coberta de madera das janelas, levantou o pesado painel de cristal e o escorou, aberto, com os ferrolhos.
Fez uma varredura geral iluminando-se com a lanterna para assegurar-se de que o lugar estava vazio e de que não ia desabar sobre sua cabeça imediatamente, e penetrou através da abertura. Ao saltar do marco da janela, o solado de suas botas pisaram em cristais quebrados e pó e lixo acumulados durante anos. Esse porão de blocos de concreto tinha uns três metros e meio de comprimento e desaparecia na escura zona que ficava sem iluminar. Gabrielle dirigiu o magro feixe de luz de sua lanterna para as sombras do outro extremo do espaço. Percorreu com ele a parede e o deteve sobre uma velha porta de serviço em cuja superfície se podia ler o seguinte pôster: acesso restringido.
—O que te aposta? —sussurrou enquanto se aproximava da porta. Efetivamente, não estava fechada com chave.
Abriu-a e projetou a luz para o outro lado da porta, onde se abria um comprido corredor parecido a um túnel. Uns suportes de fluorescente quebrados penduravam do teto; alguns dos painéis que os haviam coberto tinham caido sobre o chão de qualidade industrial, onde jaziam quebrados e cobertos de pó. Gabrielle entrou nesse espaço escuro, insegura do que estava procurando e com certo temor do que poderia encontrar nas desertas tripas desse psiquiátrico.
Passou por diante de uma porta aberta do corredor e a luz do flash iluminóu uma cadeira de dentista de vinil vermelho, um pouco gasta, que se encontrava colocada no centro da habitação, como se esperasse ao próximo paciente. Gabrielle tirou a câmara de sua capa e tomou um par de rápidas fotos. Logo continuou para diante e passou ante uma série de habitações de revisão e de tratamento. Devia encontrar-se na ala médica do edifício.

Encontrou uma escada e subiu dois lances até que chegou, para sua complacencia, a torre central onde umas grandes janelas deixavam entrar a luz da manhã em generosas quantidades.
Através da lente da câmara olhou por cima de amplos terrenos e pátios flanqueados por elegantes edifícios de tijolo e de pedra calcária. Realizou umas quantas fotos do lugar, apreciando tanto sua arquitetura como o quente jogo que a luz do sol fazia contra tantas sombras fantasmagóricas. Resultava estranho olhar para fora do confinamento de um edifício que antigamente tinha albergado a tantas almas perturbadas. Nesse inquietante silêncio, Gabrielle quase podia ouvir as vozes dos pacientes, de gente que, simplesmente, não tinha a possibilidade de marchar-se caminhando dali como ela faria então.
Gente como sua mãe biológica, uma mulher a quem Gabrielle não tinha conhecido nunca e da qual não sabia nada mais que o que tinha ouvido de menina nas conversações apagadas que os trabalhadores sociais e as famílias de acolhida mantiveram e que ao final, uma por uma, devolveram ao sistema como se fosse um animal doméstico que houvesse demonstrado ser mais problemático do que se podia suportar. Tinha perdido a conta do número de lugares aonde a tinham enviado a viver, mas as queixa contra ela quando a devolviam sempre eram as mesmas: inquieta e introvertida, fechada e desconfiada, socialmente disfuncional com tendência a atitudes autodestrutivas. Tinha ouvido os mesmos qualificativos dirigidos para sua mãe, aos quais acrescentavam as categorias de paranóica e delirante.
Quando os Maxwell apareceram em sua vida, Gabrielle tinha passado dezenove dias em uma casa de acolhida sob a supervisão de um psicólogo designado pelo Estado. Não tinha nenhuma expectativa e ainda menos esperanças de que fora capaz de conseguir que outra situação de acolhida funcionasse. Francamente, já não lhe importava. Mas seus tutores tinham sido pacientes e bondosos. Acreditando que possivelmente a ajudasse a dirigir a confusão emocional, tinham-na ajudado a conseguir um punhado de documentos judiciais que tinham que ver com sua mãe.
Essa mulher tinha sido uma adolescente anônima, acreditava-se que era uma sem teto, que não tinha identificação, não lhe conhecia família nem conhecidos exceto pela menina recém-nascida que tinha abandonado, chorando e angustiada, em um contêiner de lixo da cidade em uma noite de agosto. A mãe de Gabrielle tinha sido maltratada, e sangrava por umas profundas feridas no pescoço que ela mesma se piorou rasgando-a, vítima da histeria e do pânico.

Em lugar de persegui-la pelo crime de haver abandonado seu bebê, o tribunal a tinha considerado incapacitada e a tinham enviado a umas instalações que certamente não eram muito diferentes a esta em que se encontrava ela agora. Quando ainda não levava nem um mês no centro institucional, pendurou-se com um lençol deixando detrás dela inumeráveis pergunta que nunca teriam resposta.
Gabrielle tentou tirar-se de cima o peso dessas velhas feridas, mas enquanto estava ali em pé e olhava através dos brumosos cristais das janelas, todo seu passado apareceu em primeiro plano em sua mente. Não queria pensar em sua mãe, nem na desgraçada circunstância de seu nascimento, nem nos escuros e solitários anos que lhe seguiram. Precisava concentrar-se em seu trabalho. Isso era o que lhe tinha permitido continuar para diante, depois de tudo. Era o único constante em sua vida, e as vezes tinha sido quão único de verdade tinha neste mundo.
E era suficiente.
Durante a maior parte do tempo, era suficiente.
«Toma umas quantas fotos e te largue daqui», disse a si mesmo, como brigando-se.
Levantou a câmara e tomou um par de fotos mais através do delicado trabalho de metal que se entrelaçava entre as duas janelas de cristal.
Pensou em partir pelo mesmo caminho por onde tinha entrado, mas se perguntou se possivelmente poderia encontrar outra saída em algum ponto do piso de abaixo do edifício central. Voltar a baixar ao escuro porão não lhe resultava especialmente atrativo.
Estava inquietando a si mesmo pensando em coisas sobre a loucura de sua mãe, e quanto mais momento se entretivera nesse velho psiquiátrico, mais lhe foram pôr os cabelos de ponta. Abriu a porta da escada e se sentiu um pouco melhor ao ver a tênue luz que se filtrava para dentro pelas janelas em algumas das habitações e nos corredores adjacentes.

Era óbvio que o artista do grafite de más vibrações tinha chegado até ali também. Em cada uma das quatro janelas havia uns extranhos símbolos realizados com pintura negra. Provavelmente eram os marcos de alguma turma, ou as assinaturas estilizadas dos meninos que tinham estado ali antes que ela. Em uma esquina havia uma lata de aerosol atirada, ao lado de umas bitucas de cigarros, de umas garrafas de cerveja quebrada e outros restos.
Gabrielle tomou a câmara e procurou um ângulo adequado para a fotografia que tinha em mente. A luz não era muito boa, mas com um lente diferente possivelmente resultasse interessante. Rebuscou na bolsa à procura das lentes e nesse momento ficou gelada ao ouvir um zumbido distante que procedia de algum ponto por debaixo de seus pés. Era muito frouxo, mas soava como o de um elevador, o qual era impossível. Gabrielle voltou a introduzir o equipamento na bolsa sem deixar de prestar atenção aos vagos sons que sentia ao seu redor. Todos os nervos de seu corpo se haviam esticado com uma gelada sensação de apreensão.
Não se encontrava sozinha ali dentro.
Agora que o pensava, notou que uns olhos a olhavam desde algum ponto próximo. Essa inquietante tira de consciência lhe pôs os cabelos de ponta na nuca e nos braços. Devagar, girou a cabeça e olhou para trás. Foi então quando o viu: uma pequena câmara de vídeo de circuito fechado montada em uma sombria esquina elevada do corredor, e que vigiava a porta da escada que ela tinha atravessado fazia somente uns minutos.
Possivelmente não estivesse em funcionamento e fosse somente algo que tinha ficado ali dos dias em que o psiquiátrico estava ainda em funcionamento. Essa teria sido uma idéia consoladora se a câmara não tivesse um aspecto tão cuidado e compacto, tão de tecnologia de vanguarda em segurança. Para comprová-lo, Gabrielle se aproximou dela e se colocou quase diretamente diante da câmara. Sem fazer nenhum ruído, a base da câmara girou e colocou a lente no ângulo adequado até que ficou enfocado no rosto de Gabrielle.

«Merda — disse, olhando esse olhos negro que não piscava.
—Pega.»
Das profundidades do edifício vazio, ouviu um rangido metálico e o estrondo de uma porta pesada. Era evidente que esse psiquiátrico abandonado não estava tão abandonado depois de tudo. Pelo menos tinham sistema de segurança, e a polícia de Boston poderia aprender algo dessa lição sobre o rápido tempo de reação dessa gente.
Soaram uns passos a um ritmo compassado: alguém que se encontrava vigiando tinha começado a dirigir-se para ela. Gabrielle se dirigiu para a escada e saiu disparada escada abaixo enquanto a bolsa a golpeava no quadril. À medida que baixava, a luz diminuía. Tomou a lanterna com a mão, mas não queria utilizá-la por medo de que funcionasse como um aviso de onde estava e o segurança pudesse segui-la. Chegou ao final da escada, empurrou a porta de metal e se precipitou para a escuridão do corredor do piso inferior.
Ouviu que a porta monitorada da escada se abria com um rangido e que seu perseguidor se precipitava para baixo, detrás dela, correndo com rapidez e ganhando terreno rapidamente.
Finalmente, chegou a porta de serviço do final do corredor. Lançou-se contra o aço frio e correu pelo escuro porão até a pequena janela que se encontrava aberta em uma das laterais. A corrente de ar frio lhe deu força: apoiou as mãos no marco da janela e se elevou. Deixou-se cair ao outro lado da janela, aterrissando fora na terra cheia de pedras.
Agora não podia ouvir seu perseguidor. Possivelmente lhe tinha avoado nos escuros de labirínticos corredores. Deus, isso esperava.
Gabrielle ficou em pé ao momento e correu em direção a abertura da cerca de arame. Encontrou-a rapidamente. colocou-se engatinhando e se introduziu pela fenda no arame com o coração desbocado e a adrenalina lhe correndo pelas veias.

Tinha muito pânico: em sua precipitação por escapar, arranhou-se um lado do rosto com um arame afiado da cerca. O corte lhe queimava na bochecha e sentiu o rastro quente de sangue que lhe baixava ao lado da orelha. Mas não fez caso da abrasadora ardência nem do golpe que se deu com a bolsa da equipamento fotográfica enquanto se inclinava sobre seu ventre para sair, através da cerca, para a liberdade.
Quando a teve atravessado, Gabrielle ficou em pé e correu enlouquecida pelo largo e escarpado terreno dos subúrbios. Somente se permitiu jogar uma rápida olhada para trás: o suficiente para ver que o enorme guarda de segurança ainda estava ali. Teria saído por algum lugar do piso principal e agora corria detrás dela como uma besta recém saída do inferno. Gabrielle tragou saliva de puro pânico ao lhe ver. O tipo parecia um tanque, facilmente pesava cento e dez quilogramas de puro músculo, e tinha uma cabeça grande e quadrada com o cabelo talhado ao estilo militar. Esse tipo enorme correu até a alta cerca e se deteve ao chegar a ela: golpeou-a com os punhos enquanto Gabrielle entrava correndo pela densa cortina de árvores que separava a propriedade da estrada.
O carro se encontrava a um lado do tranqüilo asfalto, justo onde o tinha deixado. Com mãos trementes, Gabrielle se esforçou por abrir a porta. sentia-se petrificada de pensar que esse tipo carregado de esteroides pudesse apanhá-la. Seu medo parecia irracional, mas isso não impedia que a adrenalina lhe corresse por todo o corpo. Afundou-se no acento de pele do Mini, pôs a chave no contato e ligou o motor. Com o coração acelerado, pôs em marcha o pequeno carro, apertou a fundo o pedal de aceleração e se precipitou para a estrada, escapando com um chiado de pneumáticos sobre o asfalto e o conseguinte aroma de queimado dos mesmos.


Capítulo seis
A metade da semana, em plena temporada turística, os parques e avenidas de Boston estavam coalhados de humanidade. Os trens traziam as pessoas a toda velocidade dos subúrbios, a seus lugares de trabalho ou aos museus, ou aos inumeráveis pontos históricos que se encontravam por toda a cidade. Olheiros carregados com câmeras subiam aos ônibus que lhes levavam de excursão ou se colocavam em fila para subir as Ferris sobrecarregados que lhes levariam mais à frente do cabo.
Não muito longe da agitação do dia, oculto a uns nove metros sob uma mansão dos subúrbios da cidade, Lucan Thorne se inclinou sobre um monitor de tela plaina, no edifício dos guerreiros da raça, e pronunciou uma maldição. Os registros de identificação dos vampiros apareciam em tela a velocidade vertiginosa enquanto o programa de computador realizava uma busca na enorme base de dados internacional procurando coincidências com as fotos que Gabrielle Maxwell tinha tomado.
—Ainda nada? —perguntou, olhando de soslaio e com expressão impaciente a Gideon, o operador informático.
—Nada até o momento. Mas ainda se está realizando a busca. A Base de dados de Identificação Internacional tem uns quantos milhões de registros para comprovar. —Os agudos olhos azuis do Gideon cintilaram por cima da arreios dos elegantes óculos de sol— Lhes jogarei o laço a esses burros, não se preocupe.
—Não me preocupo nunca —repôs Lucan, e o disse de verdade. Gideon tinha um coeficiente intelectual que rompia todas as estatísticas e ao que se acrescentava uma tenacidade enorme. Esse vampiro era tanto um caçador incansavel como um gênio e Lucan se alegrava de lhe ter ao seu lado.
_Se você não for capaz de tirá-los a luz, Gideon, ninguém pode fazê-lo.
O gurú informático da raça, com sua coroa de cabelo curto e encrespado, dirigiu-lhe um sorriso fanfarrão e confiado.
—É por isso que levo os verdes grandes.

—Sim, um pouco parecido —disse Lucan enquanto se separava da tela, onde os dados não deixavam de aparecer sem parar.
Nenhum dos guerreiros da raça que se comprometeram a proteger a estirpe frente ao açoite dos renegados o fazia por nenhuma compensação. Nunca a tinham tido, desde que se organizaram pela primeira vez nessa aliança durante o que para os humanos foi a idade medieval. Cada um dos guerreiros tinha seus próprios motivos para ter eleito esse perigoso modo de vida, e alguns deles eram, tinha-se que admitir, mais nobres que outros. Como Gideon, que tinha trabalhado nesse campo de forma independente até que seus dois irmãos, que eram pouco mais que uns meninos, foram assassinados pelos renegados aos subúrbios do Refúgio Escuro de Londres. Então Gideon procurou a Lucan. Disso fazia três séculos, umas décadas mais ou menos. Incluso então a habilidade do Gideon com a espada somente encontrava rival na afiada estocada de sua mente. Tinha matado a muitos renegados em seus tempos, mas mais tarde, a devoção e a promessa íntima que fez a sua companheira de raça, Savannah, tinham-lhe feito abandonar o combate e empunhar a arma da tecnologia ao serviço da raça.
Cada um dos seis guerreiros que lutavam ao lado de Lucan tinha seu talento pessoal. Também tinham seus demônios pessoais, mas nenhum deles era do tipo muito sensível que permitiria que um louco lhes colocasse uma lanterna pelo traseiro. Algumas costumes estavam melhor se deixavam na escuridão e, provavelmente, o único que estava mais convencido disso que o próprio Lucan era um guerreiro da raça conhecido como Dante.
Lucan saudou o jovem vampiro quando este entrou no laboratório técnico de uma das numerosas habitações do edifício. Dante, ataviado com sua habitual vestimenta negra, levava umas calças de ciclista e uma camiseta ajustada que mostrava tanto as tatuagens a tinta como suas intrincadas marcas de pertençer a raça. Seus avultados bíceps mostravam uns sinais afiligranados que a olhos de qualquer humano pareciam símbolos e desenhos geométricos realizados em profundas tonalidades terra. Mas os olhos de um vampiro distinguiam esses símbolos claramente: eram dermoglifos, umas marcas naturais herdadas dos antepasados da raça, cuja pele sem cabelo se havia recoberto de uma pigmentação cambiante e de camuflagem.

Normalmente, esses glifos eram motivo de orgulho para a raça e eram seus únicos sinais de linhagem e de fila social. Os membros da primera geração, como Lucan, luziam essas marca em maior número e seus tons eram mais saturados. Os dermoglifos de Lucan lhe cobriam o torso, por diante e por detrás, descendiam até suas coxas e se extendíam pela parte superior dos braços, além de subir pela nuca e lhe cobrir o crânio. Como tatuagens viventes, os glifos trocavam de tom segundo o estado emocional de um vampiro.
Os glifos de Dante, nesse momento, tinham um tom bronze, avermelhado, que indicava que se alimentou recentemente e que se sentia saciado. Sem dúvida, depois de que ele e Lucan se separaram ao cabo de ter dado caça aos renegados a noite anterior, Dante tinha ido em busca da cama e da amadurecida e suculenta veia da nádega de uma fêmea anfitriã.
—Que tal vai? —perguntou enquanto se deixava cair em cima de uma cadeira e colocava um pé embainhado em uma bota em cima do escritório, diante dele.
—Acreditei que já teria caçado e classificado a esses bastardos, Gid.
O acento de Dante tinha restos da musicalidade de seus ancestrais Italianos ate do século XVIII, mas essa noite, o educado tom de voz de Dante delatava um timbre afiado que indicava que o vampiro se sentia inquieto e ansioso por entrar em ação. Para sublinhar esse fato, tirou uma de suas típicas facas de folha curvada da cilha que levava no quadril e começou a jogar com o gentil aço.
Chamava a essas folhas curvadas Malebranche ou prolongações diabólicas, em referência Aos demônios que habitam um dos nove níveis do inferno, embora as vezes Dante adotava esse nome como pseudónimo para si mesmo quando se encontrava entre os humanos. Essa era quase toda a poesia que esse vampiro tinha em sua alma. Em todo o resto era impenitente, frio e escuramente ameaçador.
Lucan admirava isso dele, e tinha que admitir que observar a Dante durante o combate, com essas folhas inclementes, era algo belo, o bastante formoso para deixar em ridículo a qualquer artista.

—Bom trabalho o da noite passada —disse Lucan, consciente de que uma adulação emitida por ele era algo estranho, inclusive embora estivesse merecendo.
— Me salvou o pescoço aí.
Não falava da confrontação que tinham tido com os renegados, mas sim do que tinha acontecido depois disso. Lucan tinha passado demasiado tempo sem alimentar-se e a fome era quase tão perigosa para os seus como o vício que açoitava aos renegados. O olhar de Dante denotava que compreendia o que lhe estava dizendo, mas deixou acontecer o tema com sua habitual e fria elegância.
—Merda —repôs, com uma sonora e profunda gargalhada.
—.Depois de todas as vezes que você me há coberto as costas? Esquece-o, cara. Só te devolvia um favor.
Nesse momento, as portas de cristal da entrada do laboratório se abriram com um zumbido surdo e dois mais dos irmãos de Lucan entraram. Eram um bom par. Nikolai, alto e atlético, de cabelo loiro como a areia, uns rasgos angulares e impactantes e uns olhos penetrantes e azuis como o gelo, que só eram um tom mais frios que o céu de sua Siberia natal. O mais jovem do grupo e com diferença, Niko, havia-se feito homem durante o que os humanos chamavam a Guerra Fria. Do berço tinha sido imparavel e agora se converteu em um buscador de sensações de alta voltagem e se encontrava em primeira fila da raça no que tinha que ver com armas, aparelhos, e tudo o que ficava no meio.
Conlan, pelo contrário, falava com suavidade e era sério: era um perito em tática. Ao lado da excessiva fanfarronice do Niko, resultava elegante como um gato grande. Seu corpo era como um muro de músculos, e o cabelo loiro, de cor areia, brilhava por debaixo do triangulo de seda negra com que se envolvia a cabeça. Esse vampiro pertencia a uma das últimas gerações da raça, era um jovem segundo o critério de Lucan, e sua mãe era uma humana filha de um capitão escocês. O guerreiro se movia com um porte quase de realeza.
Inclusive sua amada companheira de raça, Danika, dirigia-se a esse habitante das terras altas afetuosamente lhe chamando, com freqüência, «meu senhor» e essa fêmea não era precisamente servil.

—Rio está de caminho —anunciou Nikolai com um amplo sorriso que lhe formava duas covinhas nas bochechas. Olhou a Lucan e assentiu com a cabeça.
— Eva me há dito que te diga que poderemos dispor de seu homem somente quando ela tenha terminado com ele.
—Se é que fica algo —disse Dê, arrastando as palavras enquanto levantava uma mão para saudar outros com um suave roce das palmas prévio a um choque de nódulos.
Lucan saudou Niko e a Conlan da mesma maneira, mas se sentiu algo molesto pelo atraso de Rio. Não invejava a nenhum dos vampiros pela companheira de raça que tinham eleito, mas, pessoalmente, Lucan não encontrava nenhum sentido atar-se as demandas e responsabilidades de um vínculo de sangue com uma fêmea. Esperava-se que, em geral, a população da raça aceitasse a uma mulher para aparear-se e dar nascimento a seguinte geração, mas para a classe dos guerreros —para esses escassos machos que, de forma voluntária, haviam abandonado o santuário dos Refúgios Escuros para levar uma vida de luta processo de vincular-se por sangue era, para Lucan, uma frescura no melhor dos casos.
E no pior, era um convite ao desastre quando um guerreiro sentia a tentação de antepor os sentimentos para sua companheira por cima de seu dever para a raça.
—Onde está Tegan? —perguntou, ao dirigir seus pensamentos de forma natural para o último deles que faltava no edifício.
—Ainda não retornou —respondeu Conlan.
—Chamou de onde se encontra?
Conlan e Niko intercambiaram um olhar, e Conlan negou rapidamente com a cabeça:
—Nenhuma palavra.

—Esta é a vez que esteve mais tempo desaparecido em ação — assinalou Dê sem dirigir-se a ninguém em especial enquanto passava o dedo polegar pelo fio da folha curvada de sua faca.
—Quanto faz? Três, quatro dias?
Quatro dias, quase cinco.
Quem deles levava a conta?
Resposta: todos eles a levavam, mas ninguém pronunciou em voz alta a preocupação que se estendeu ultimamente em suas filas. Tal como estava o tema, Lucan tinha que esforçar-se para controlar a raiva que despertava nele cada vez que pensava no membro mais introvertido dos membros de seu quadro.
Tegan sempre preferia caçar em solitário, mas seu caráter afastado começava a resultar uma carga para outros. Era como um curinga, adquiria um valor diferente em função de cada ação e, ultimamente, cada vez mais. E Lucan, tinha que ser franco, encontrava difícil confiar nesse menino, embora a desconfiança não fosse nada novo no que concernia a Tegan. Havia uma má relação entre ambos, sem dúvida, mas essa era uma história antiga.
Tinha que ser assim. A guerra em que ambos se comprometeram desde fazia tanto tempo era mais importante que qualquer aversão que pudesse sentir um para o outro.
Apesar disso, o vampiro levava a cabo uma vigilância estreita. Lucan conhecia as debilidades de Tegan melhor que nenhum de outros e não duvidaria em responder se esse macho punha embora fosse o dedo gordo do pé no outro extremo da linha.
Por fim, as portas do laboratório se abriram e Rio entrou na hábitação enquanto se colocava as abas de sua elegante camisa branca de desenho dentro da calça negra feita a medida. Faltavam alguns botões na camisa de seda, mas Rio levava a má compostura depois do sexo com a mesma elegância desenvolvida com que se movia em todas as demais circunstâncias. Sob a densa franja de cabelo escuro que lhe pendurava por cima das sobrancelhas, os olhos de cor topázio do espanhol parecia que dançavam. Quando sorria, brilhavam-lhe as pontas das presas que, nesses momentos, ainda não se haviam retratados depois de que a paixão por sua dama os tivesse desdobrado.

—Espero que me tenham guardado alguns renegados, meus amigos. — esfregou-se as mãos:—Me sinto bem e tenho vontades de festa.
— Sente-se disse Lucan— e tenta não manchar de sangue os computadores do Gideon.
Gideon se levou os largos dedos da mão até a marca vermelha que Eva tinha feito na garganta, evidentemente ao lhe morder com seus dentes romos de humana para lhe chupar a veia. Apesar de que era uma companheira de raça, continuava sendo geneticamente Homo sapiens. Embora fazia muitos anos que ela e outras como ela mantinham vínculos de sangue com seus companheiros, nenhuma delas teria presas nem adquiriría as demais características dos machos vampiro. Era uma prática ampliamente aceita que um vampiro alimentasse a sua companheira através de uma ferida que ele mesmo se infligia no pulso ou no antebraço, mas as paixões eram selvagens nas filas dos guerreiros da raça. E também o eram com as mulheres que escolhiam. O sexo e o sangue era uma combinação muito potente: Às vezes, muito potente.
Com um sorriso impenitente, Rio se moveu na cadeira giratória com gesto alegre e desenvolvido e se recostou no respaldo para colocar os pés nus em cima do console . Ele e os outros guerreiros começaram a recordar os fatos da noite anterior e riram sem deixar de mostrar-se superiores uns com os outros enquanto discutiam as técnicas de sua profissão.
Caçar a seus inimigos era motivo de prazer para alguns membros da raça, mas a motivação íntima de Lucan era o ódio, puro e simples. Não tentava ocultá-lo. Desprezava tudo aquilo que os renegados representavam e tinha jurado, fazia muito tempo, que os aniquilaria ou que morreria no intento. Havia dias nos que não lhe importava qual das duas coisas pudesse acontecer.
—Aí está —disse Gideon por fim ao ver que os registros que apareciam em tela se detinham.
— Parece que encontramos um filão.

—O que obtiveste?
Lucan e outros dirigiram a atenção para a tela plaina extra grande que se encontrava em cima da mesa dos microprocessadores do laboratório. Os rostos dos quatro renegados a quem Lucan matou apareceram ao lado dos das fotos do celular de Gabrielle: eram os mesmos indivíduos.
—Os registros da Base de dados de Identificação Internacional os têm qualificados como desaparecidos. Dois desapareceram do Refúgio Escuro de Connecticut o mês passado, e outro do Fall River, e este último é daqui. Todos são da geração atual, e o mais jovem nem sequer tem trinta anos.
—Merda —exclamou Rio antes de assobiar com suavidade.
— Meninos estúpidos.
Lucan não disse nada, não sentia nada, pela perda dessas vidas jovens ao converter-se em renegados. Não eram os primeiros, e seguro que não seriam os últimos. Viver nos Refúgios Escuros podia resultar bastante aborrecido para um macho imaturo que tivesse alguma coisa que demostrar. O atrativo do sangue e da conquista se encontrava profunda-mente enraizado inclusive entre as últimas gerações, que eram as que se encontravam mais distantes de seus selvagens antepassados. Se um vampiro ia em busca de problemas, especialmente em uma cidade do tamanho da de Boston, normalmente os encontrava em abundância.
Gideon introduziu uma rápida série de ordens através do teclado do computador e abriu mais fotos procedentes da base de dados.
—Aqui estão os últimos dois registros. Este primeiro indivíduo é um renegado conhecido, um agressor reincidente em Boston, apesar de que parece que se manteve um tanto à margem durante os últimos três meses. Quer dizer, tem-no feito até que Lucan o reduziu a cinzas no beco este fim de semana.
—E o que sabemos deste? —perguntou Lucan, olhando a última imagem que ficava, a do único renegado que tinha conseguido escapar depois do ataque fora da discoteca. Sua foto no registro era uma imagem tomada de um fotograma de um vídeo que, presumivelmente, fez-se durante uma espécie de sessão de interrogatório conforme se deduzia pelas ataduras e os eletrodos que levava em cima.

—Quanto tempo tem esta imagem?
—Uns seis meses —respondeu Gideon, abrindo a data da imagem— Sai de uma das operações na Costa Oeste.
—Los Angeles?
—Seattle. Mas segundo o relatório, em Los Angeles tem uma ordem de arresto também.
—Ordens de arresto —disse Dê em tom zombador.
— Uma fodida perda de tempo.
Lucan não podia não estar de acordo com ele. Para quase toda a nação de vampiros nos Estados Unidos e no estrangeiro, o cumprimento da lei e a detenção dos indivíduos que se converteram em renegados se governavam por umas regras e procedimentos específicos. Redigiam-se ordens de arresto, realizavam-se as detenções, realizavam-se os enterrogatorios e se transmitiam as condenações. Tudo era muito civilizado e estranhamente resultava efetivo.
Enquanto que a raça e a população dos Refúgios Escuros estavam organizados, motivados e envoltos por capas de burocracia, seus inimigos eram imprevisíveis e impetuosos. E, a não ser que a intuição de Lucan fora errônea, os renegados, depois de séculos de anarquia e de caos geral, estavam começando a organizar-se.
Se é que não levavam já meses nesse processo.
Lucan observou a imagem que tinha aparecido em tela. Na imagen de vídeo, o renegado a quem tinham capturado se encontrava preso em uma prancha de metal colocada em vertical, nu e com a cabeça barbeada por completo, provavelmente para que as descargas elétricas que lhe enviavam lhe chegassem com maior facilidade enquanto lhe interrogavam. Lucan não sentia nenhuma compaixão pela tortura que o renegado tinha suportado. Freqüentemente era necessário realizar interrogatórios desse tipo, e igual que acontece com um ser humano enganchado a heroína, um vampiro que sofria de sede de sangue podia suportar dez vezes mais e sem fraquejar a dor que outro de seus irmãos de raça podia agüentar.

Esse renegado era grande, com umas sobrancelhas densas e uns rasgos fortes e primitivos. Nessa imagem lhe via rir com ironia. Os largos dentes brilhavam e tinha uma expressão selvagem nos olhos da cor do ámbar e de pupilas alargadas e verticais. Encontrava-se envolto por cabos da cabeça enorme até o musculoso peito e os braços firmes como martelos.
—Dando por entendido que ser feio não é um crime, por que motivo lhe pilharam em Seattle?
—Vamos ver o que temos. —Gideon voltou a colocar-se ante os computadores e abriu um registro em outra das telas.
—Lhe hão arrestado por tráfico: armas, explosivos, substâncias químicas. Vá, este tipo é um encanto. Colocou-se em uma merda verdadeiramente feia.
—Alguma idéia sobre de quem eram as armas que levava?
—Aqui não diz nada. Não conseguiram grande coisa com ele, é evidente. O registro informa que escapou justo depois de que tomassem estas imagens. Matou a dois dos guardas durante a fuga.
E agora havia tornado a escapar, pensou Lucan, desalentado e desejando ferventemente ter decapitado ao filho de puta quando o tinha diante. Não suportava o fracasso com facilidade, e muito menos quando se tratava do seu próprio.
Lucan olhou a Niko.
—Cruzaste-te alguma vez com este tipo?
—Não —repôs o russo—, mas consultarei com meus contatos, a ver o que posso averiguar.

—Ponha nisso.
Nikolai assentiu com a cabeça com gesto rápido e se dirigiu para a saida do laboratório técnico enquanto já marcava o número de telefone de alguém no celular.
—Estas fotos são uma merda —disse Conlan, olhando por cima do ombro do Gideon em direção as fotos que Gabrielle tinha tomado durante o assassinato, fora da discoteca. O guerreiro pronunciou uma maldição.
— Já é bastante mau que os humanos tenham presenciado alguns dos assassinatos dos renegados durante os últimos anos, mas agora se dedicam a deter-se e a tomar fotos?
Dante deixou cair os pés ao chão com um ruído surdo, ficou em pé e começou a caminhar pela habitação, como se começasse a sentir-se cada vez mais inquieto pela falta de atividade nessa reunião.
—Todo mundo acredita que são uns fodidos paparazzi.
—O tipo que fez essas fotos deveu cagar-se de medo ao encontrar-se com noventa quilogramas de guerreiro salivando por ele —acrescentou Rio. E, olhou a Lucan—. Lhe apagou primeiro a memória, ou simplesmente o eliminou ali mesmo?
—O humano que presenciou o ataque essa noite era uma mulher. —Lucan olhou fixamente os rostos de seus irmãos sem mostrar o que sentia em relação a informação que estava a ponto de lhes dar.
— Resulta que é uma companheira de raça.
—Mãe de Deus —exclamou Rio, passando a mão pelo cabelo—. Uma companheira de raça. Está seguro?
—Leva o sinal. Vi-a com meus próprios olhos.
—O que fez com ela? Transou, não...?

—Não —repôs com secura Lucan, inquieto pelo que o espanhol havia insinuado com o tom de voz.
—Não fiz nenhum mal a essa mulher. Existe uma linha que nunca vou cruzar.
Tampouco tinha reclamado a Gabrielle para si, embora tinha estado muito perto de fazê-lo essa noite no apartamento dela. Lucan apertou a mandíbula: uma onda de escuro desejo lhe invadiu ao pensar em quão tentadora Gabrielle estava, enroscada e dormida na cama. No malditamente doce que era seu sabor em sua língua...
—O que vais fazer com ela, Lucan? —Esta vez, a expressão de preocupação proveio de onde se encontrava Gideon.
— Não podemos deixar que os renegados a encontrem. Seguro que ela chamou a atenção deles quando realizou essas fotos.
—E se os renegados se dão conta de que é uma companheira de raça... —acrescentou Dê, interrompendo-se A metade da frase. Outros assentiram com a cabeça.
—Ela estará mais segura aqui —disse Gideon—, sob o amparo da raça. Melhor ainda: deveria ser oficialmente admitida em um dos Refúgios Escuros.
—Conheço o protocolo —repôs Lucan, pronunciando cada palavra com lentidão. Sentia muita raiva ao pensar em que Gabrielle pudesse acabar nas mãos dos renegados, ou nas de outro membro da raça se fazia o que era devido e a mandava a um dos Refúgios Escuros da nação. Nenhuma das duas opções lhe parecia aceitável nesse momento a causa do sentimento possessivo que lhe bulia nas veias, irreprimivel embora não desejado.
Olhou a seus irmãos guerreiros com frieza.
—Essa mulher é responsabilidade minha a partir de agora mesmo. Decidirei qual é a melhor atuação neste tema.
Nenhum dos guerreiros lhe contradisse. Lucan não esperava que o fizessem. Em qualidade de membro de primeira geração, ele era mais antigo; em qualidade de guerreiro fundador dos de sua classe na raça, era quem mais coisas tinha demonstrado, com sangue e também com o aço. Sua palavra era lei, e todos os que se encontravam nessa habitação o respeitavam.

Dante ficou em pé, brincou com a Malebranche entre seus compridos e hábeis dedos e a embainhou com um ágil gesto.
—Faltam quatro horas para que caia o sol. Vou. —Olhou de soslaio a Rio e a Conlan.
— Alguém tem vontades de treinar antes de que as coisas fiquem interessantes?
Os dois machos se levantaram rapidamente, animados pela idéia, e detrás dirigir uma respeitosa saudação a Lucan, os três grandes guerreiros sairam do laboratório técnico e percorreram o corredor em direção a zona de treinamento do edifício.
—Tem algo mais sobre esse renegado de Seattle? —perguntou- Lucan a Gideon enquanto as portas de cristal se fechavam, quando ambos ficaram sozinhos no laboratório.
— Agora mesmo estou realizando uma comparação cruzada de todas as bases de registros. Só demorará um minuto em dar algum resultado. — Teclou umas ordens no computador.
— Bingo. Tenho uma coincidência procedente de uma informação GPS da Costa Oeste. Parece informação reunida anteriormente ao arresto. Joga uma olhada.
A tela do monitor se encheu com uma série de imagens noturnas por satélite de uma embarcação de pesca comercial aos subúrbios de Puget Sound. A imagem se centrava em um Sedan comprido e negro que se encontrava detrás de um maltratado edifício situado ao final do dique. Apoiado contra a porta posterior se encontrava o renegado que tinha conseguido escapar de Lucan fazia uns dias. Gideon passou rapidamente uma série de imagens que lhe mostravam conversando longamente, ou isso parecia, com alguém que se encontrava oculto detrás dos cristais negros dos guichês. À medida que as imagens avançavam, viram que a porta traseira do carro se abria e o renegado entrava no carro.
—Detenha —disse Lucan, fixando o olhar na mão do passageiro oculto.
— Pode deter todo este fotograma? Aumenta a zona da porta aberta do carro.

—Vou tentar .
A imagem aumentou de tamanho, mas Lucan quase não necessitava um aumento da imagem para confirmar o que via. Quase não se distinguia, mas aí estava. Na parte de pele exposta entre a grande mão do passageiro e o punho francês da camisa de manga larga se viam uns impressionantes dermoglifos que lhe delatavam como um membro de primeira geração.
Gideon também os tinha visto nesse momento.
—Maldição, olhe isso —disse, cravando a vista no monitor—. Nosso imbécil de Seattle desfrutava de uma companhia interessante.
—Possivelmente ainda o está fazendo —repôs Lucan.
Não havia nada pior que um renegado que tivesse sangue de primeira geração nas veias. Os membros de primeira geração caíam vitima da sede de sangue com maior rapidez que as últimas geração da raça, e eram uns temíveis inimigos. Se algum deles tinha intenção de liderar aos renegados e lhes conduzir a um levantamento, isso significaria o princípio de uma guerra infernal. Lucan já havia lutado em uma batalha assim uma vez, fazia muito tempo. Não desejava voltar a fazê-lo.
—Imprime tudo o que conseguiste, incluídos as ampliações de eroglifos.
—Já estão.
—Qualquer outra coisa que encontre sobre esses dois indivíduos, passa-me diretamente. Encarregarei-me disto pessoalmente.
Gideon assentiu com a cabeça, mas o olhar que lhe dirigiu por cima da arreios dos óculos expressava dúvida.

—Não pode pretender te encarregar de tudo isto você sozinho, já sabe.
Lucan lhe cravou um olhar escuro.
—Quem o diz?
Sem dúvida, o vampiro tinha em sua cabeça de gênio todo um discurso aberto da probabilidade e da lei da estatística, mas Lucan não se sentia de humor para lhe escutar. A noite se aproximava, e com ela se aproximava outra oportunidade de caçar a seus inimigos. Precisava empregar as horas que ficavam para esclarecer a cabeça, preparar as armas e decidir onde era melhor atacar. O depredador que havia nele se sentia impaciente e faminto, mas não por causa da batalha contra os Renegados.
Em lugar disso, Lucan se deu conta de que seus pensamentos se desviavam para um tranqüilo apartamento do Beacon Hill, para uma visita que nunca deveria ter realizado. Ao igual que o aroma de jasmim, o recordava da suavidade e a calidez da pele de Gabrielle, enredava-se com seus sentidos. Ficou tenso e seu sexo ficou em ereção somente pensando nela.
Foder.
Essa era a razão pela qual não a tinha posto sob o amparo da raça, aqui, no edifício. A certa distancia, ela era uma distração. Mas se encontrava em uma habitação próxima, seria um maldito desastre.
—Está bem? —perguntou-lhe Gideon, dando-a volta com a cadeira e ficando de cara a Lucan.
— É uma fúria muito grande a que tem em topo, amigo.
Lucan se arrancou da cabeça esses escuros pensamentos e se deu conta de que as presas lhe tinham alargado e que a visão lhe havia agudizado com o fechamento das pupilas. Mas não era a fúria o que lhe transformava. Era a luxúria, e tinha que saciá-la, antes ou depois. Com essa idéia lhe pulsando nas têmporas, Lucan tomou o telefone celular de Gabrielle, que se encontrava em cima de uma das mesas, e saiu do laboratório.

 

 

CONTINUA

Capítulo quatro

Gabrielle podia contar com uma só mão os sonhos erótico que tinha tido durante toda sua vida, mas nunca tinha experiente nada tão quente —por não dizer real— como a fantasia de orgia sexual que tinha desfrutado da noite anterior, cortesia de um Lucan Thorne virtual. Seu fôlego tinha sido a brisa noturna que penetrava pela janela aberta de seu dormitório do piso de acima. Seu cabelo era a escuridão de obsidiana que enchia as clarabóias, sobre sua cama. Seus olhos chapeados, o brilho pálido da lua. Suas mãos eram as ligaduras de seda de sua colcha, que enredavam seus pulsos e tornozelos, abriam seu corpo debaixo do dele e a sujeitavam com força.
Sua boca era puro fogo que lhe queimava cada centímetro da pele e a consumia como uma chama invisível. «Jasmim», tinha-a chamado ele, e o suave som dessa palavra vibrava contra a umidade de sua pele, o quente fôlego dele formava redemoinhos os suaves cachos de pêlo de sua entre perna.
Ela se tinha retorcido e tinha gemido dominada pela habilidade da língua dele, que a tinha submetido a uma tortura que ela desejava que fosse infinito. Mas tinha terminado, e muito logo. Gabrielle se tinha despertado em sua cama, só na escuridão, pronunciando quase sem fôlego o nome de Lucan, com o corpo esgotado e inerte, dolorido pelo desejo.
Ainda lhe doía o desejo e o que mais lhe preocupava era o fato de que o misterioso detetive Thorne lhe tivesse dado plantão.
Não era que seu oferecimento de passar por seu apartamento essa noite fosse nada que se parecesse com um encontro, mas ela tinha estado esperando voltar a lhe ver. Tinha interesse em saber mais a respeito dele dado que se havia mostrado tão inclinado a decifrá-la com um simples olhar. Além de conseguir algumas respostas mais sobre o que tinha presenciado essa noite fora da discoteca, Gabrielle tinha desejado conversar de algo mais com Lucan, possivelmente tomar um pouco de vinho e algo para jantar. O fato de que se depilou as pernas duas vezes e de que se pôs uma roupa interior negra e atrativa sob a camisa de seda de manga larga e dos escuros jeans era puramente acidental.

Gabrielle lhe tinha esperado até bem passadas as nove e então abandonou a idéia e chamou Jamie para ver se ele queria jantar com ela no centro da cidade.
Agora, sentado diante dela, ao outro lado da mesa, nessa sala cheia de janelas do bistro Ciao Bela, Jamie deixou na mesa a taça de pinot noire e olhou o prato de frutos do mar que ela quase não havia tocado.
—Estiveste enjoando a mesma parte da comida pelo prato durante os últimos dez minutos, carinho. Você não gosta?
—Sim, é genial. A comida sempre é incrível aqui.
—Então, é a companhia o que te desagrada?
Ela levantou o olhar para ele e negou com a cabeça.
—Absolutamente. Você é meu melhor amigo, já sabe.
—Certo —assentiu ele.
— Mas não me posso comparar com seu sonho erótico.
Gabrielle se ruborizou ao dar-se conta de que um dos clientes que se encontrava na mesa do lado olhava para eles.
—Às vezes é horrível, sabe? —disse a Jamie em um sussurro.
— Não deveria haver lhe contado isso.
—OH, carinho. Não se sinta incômoda. Se me tivessem dado uma moeda cada vez que me despertei excitado, chiando o nome de algum cara sexy...
—Eu não chiei seu nome. —Não, tinha-o pronunciado com o folego entrecortado e em um gemido, tão enquanto estava na cama como enquanto estava na ducha ao cabo de pouco tempo, ainda incapaz de tirar do corpo a sensação de Lucan Thorne.
— Era como se ele estivesse ali, Jamie. Justo ali, em minha cama, tão real que eu podia lhe tocar.
Jamie suspirou.
—Algumas garotas têm toda a sorte do mundo. A próxima vez que te encontre com seu amante em sonhos, seja generosa e me manda isso quando tenha terminado.
Gabrielle sorriu, sabendo que seu amigo não andava escasso no apartado romântico. Durante os últimos quatro anos tinha tido uma feliz relação monógama com o David, um vendedor de antiguidades que se encontrava nesses momentos fora da cidade por motivos de trabalho.
—Quer saber o que é o mais estranho disso tudo , Jamie? Aos levantar, esta manhã, a porta de entrada não estava fechada com chave.
— E?
—E você me conhece, nunca a deixo aberta.
As cuidadas e depiladas sobrancelhas do Jamie se juntaram, franzindo o cenho.
—O que quer dizer, que cre que esse cara forçou a porta de sua casa enquanto dormia?
—Parece uma loucura, sei. Um detetive da polícia que vem a minha casa a meia-noite para me seduzir. Devo estar perdendo a cabeça.
Disse-o com tom despreocupado, mas não era a primeira vez que se questionava em silêncio sua própria prudência. Não era a primeira vez nem muito menos. Com gesto ausente, brincou um momento com a manga da blusa enquanto Jamie a observava. Ele se sentia preocupado nesse momento, o qual somente aumentava a inquietação que Gabrielle sentia sobre o tema de sua possível instabilidade mental.

—Olhe, carinho. Passaste muita tensão do fim de semana. Isso pode provocar coisas estranhas na cabeça. Estiveste preocupada e confundida. Possivelmente se esqueceu de fechar a porta.
—E o sonho?
—Somente isso... Um sonho. Somente se trata de sua mente curvada que tenta tranqüilizar-se, relaxar-se.
Gabrielle baixou a cabeça em um gesto automático de afirmação.
—Exato. Estou segura de que só é isso.
Se pudesse aceitar que a explicação de tudo era tão simples como seu amigo fazia que parecesse... Mas uma sensação na boca do estômago rechaçava a idéia de que ela tivesse esquecido de fechar a porta. Ela nunca faria uma coisa assim, simplesmente, por estressada e confundida que estivesse.
—Né. —Jamie alargou o braço por cima da mesa para tomar a mão.
— Vais estar bem, Gab. Já sabe que pode me chamar a qualquer hora, verdade? Estarei contigo, sempre o estarei.
—Obrigado.
Lhe soltou a mão, tomou o garfo e fez um gesto em direção a seu fruto do mar.
—Bom, vais comer um pouco mais ou posso começar a limpar seu prato agora?
Gabrielle trocou seu prato meio cheio pelo dele, completamente vaziu.
—Tudo para ti.

Enquanto Jamie se concentrava na comida fria, Gabrielle apoiou o queixo em uma mão e tomou um comprido gole de sua taça de vinho. Enquanto bebia, brincou com os dedos em cima das ligeiras marcas que descobriu no pescoço essa mesma manhã depois de tomar banho. A porta aberta não era o mais estranho que se encontrou essa manhã: as duas marca idênticas que se viu debaixo da orelha se levaram o prêmio, sem dúvida nenhuma.
Essas pequenas perfurações não tinham sido o bastante profundas para lhe transpassar a pele, mas aí estavam. Havia duas, a uma distância equitativa, no ponto onde o pulso lhe pulsava com mais força quando o apalpava com os dedos. Ao princípio se disse que possivelmente havia se arranado a si mesmo enquanto dormia, possivelmente a causa do sonho estranho que tinha tido.
Mas, entretanto, essas marcas não pareciam arranhões. Pareciam... outra coisa.
Como se alguém, ou algo, tivesse estado a ponto de lhe morder a carótida.
Uma loucura.
Isso era, e tinha que deixar de pensar dessa maneira antes de fazer-se mais mal a si mesmo. Viu-se obrigada a centrar-se e a deixar de recrear-se em fantasias delirantes sobre visitantes a meia-noite e monstros de filme de terror que não era possível que existissem na vida real. Se não tomava cuidado, acabaria como sua mãe biológica.
—OH, Meu deus, me dê uma bofetada agora mesmo porque sou um completo e profundo imbecil —exclamou Jamie de repente, interrompendo seus pensamentos.
— Continuo esquecendo-me de lhe dizer isso ontem recebi uma chamada na galeria sobre suas fotografias. Um peixe gordo do centro da cidade está interessado em uma amostra privada.
—Sério? De quem se trata?
Ele se encolheu de ombros.

—Não sei, carinho. A verdade é que não falei com o possível comprador, mas a partir da atitude estirada do ajudante do tipo, diria que seja quem é seu admirador, ele ou ela— nada na abundância do dinheiro. Tenho uma entrevista em um dos edifícios do distrito financeiro amanhã de noite. Falo-te de um escritório em uma cobertura, querida.
—OH, Meu deus —exclamou ela com incredulidade.
—Acredita. Super bom, amiga. Muito em breve será muito para um pequeno vendedor de arte como eu —brincou ele, compartilhando a excitação com ela.
Era difícil não sentir-se intrigada, especialmente depois de tudo o que lhe tinha passado durante os últimos dias. Gabrielle tinha conseguido uns fiéis e respeitáveis admiradores e ganhou uns quantos bons elogios por seu novo trabalho, mas uma amostra privada para um comprador desconhecido era o máximo.
—Que peças te pediu que levasse?
Jamie levantou a taça de vinho e brindou com a dela com um gesto burlesco de saudação.
—Todas, senhorita Importante. Cada uma das peças da coleção.
No telhado do um velho edifício de tijolos do ocupado distrito dos teatros da cidade, a lua se refletia na risada letal de um vampiro embelezado de negro. Agachado em sua posição perto da beirada, o guerreiro da raça girou a escura cabeça e levantou uma mão para fazer um sinal.
«Quatro renegados. Uma presa humana se dirige diretamente para eles.»
Lucan lhe dirigiu um gesto afirmativo com a cabeça a Dante e se afastou da saída de emergência do quinto piso, que tinha sido sua posição de vigilância durante a última meia hora. Baixou até a rua de abaixo com um ágil movimento, aterrissando em silêncio, como um gato. Levava uma dupla folha de combate nas costas que lhe sobressaía pelos ombros como os ossos das asas de um demônio. Lucan desencapou a arma de titânio quase sem emitir nenhum som e penetrou nas sombras da estreita rua lateral para esperar os acontecimentos dessa noite.

Eram ao redor das onze, várias mais tarde que a hora em que deveria ter passado pelo apartamento de Gabrielle Maxwell para lhe devolver o telefone celular, tal e como lhe disse que o faria. O aparelho ainda estava em posse de Gideon, no laboratório técnico, que estava processando as imagens para as contrastar com a Base de dados de Identificação Internacional da Raça.
Quanto a Lucan, não tinha nenhuma intenção de devolver o telefone celular a Gabrielle, nem em pessoa nem de nenhuma outra maneira. As imagens do ataque dos renegados não tinham que estar em mãos de nenhum ser humano, e depois da decepção que se levou no dormitório dela, quanto mais longe estivesse dessa mulher, melhor.
«Uma maldita companheira de raça.»
Deveria havê-lo sabido. Agora que o pensava, ela tinha certas características que deveriam lhe haver dado a pista disso desde o começo. Como sua habilidade de ver através do véu do controle mental vampírico que enchia essa noite a sala de baile da discoteca. Ela tinha visto os renegados —ávidos de sangue no beco, e nas imagens indecifráveis do telefone celular— quando outros seres humanos não os havia podido ver. Logo, em seu apartamento, tinha demonstrado que tinha resistência ante a sugestão mental de Lucan para dirigir seus pensamentos, e ele suspeitava que se tinha sucumbido, tinha-o feito mais por causa de um desejo consciente do prazer que ele supunha para ela que por nenhuma outra coisa.
Não era nenhum secredo que as fêmeas humanas com o código genético único de companheiras de raça possuíam uma inteligência aguda e uma saúde perfeita. Muitas delas tinham uns assombrosos talento paranormal que aumentariam quando a companheira de raça se unisse por sangue com um macho vampiro.
Quanto a Gabrielle Maxwell, parecia possuir o dom de ter uma vista especial que lhe permitia ver o que o resto de seres humanos não podia ver, mas até onde chegava essa capacidade de visão era algo que ele não podia adivinhar. Lucan queria sabê-lo. Seu instinto de guerreiro exigia chegar ao fundo do assunto sem nenhuma demora.

Mas envolver-se com essa mulher, da forma que fosse, era o último que ele necessitava.
Então, por que não podia tirar-se de cima seu doce aroma, a suavidade de sua pele... sua provocadora sensualidade? Odiava o fato de que essa mulher tivesse despertado nele tal fragilidade, e seu estado de ânimo atual dificilmente melhorava pelo fato de que todo seu corpo doía pela necessidade de alimentar-se.
O único ponto claro essa noite era o constante ritmo dos saltos das botas dos renegados no pavimento, em algum lugar perto da entrada da rua lateral, que se dirigiam para ele.
O ser humano girou a esquina: encontrava-se a vários passos a frente deles, e era um homem. Jovem, saudável, vestia uma calça negra e alvo e uma túnica branca manchada que cheirava a cozinha de restaurante e a um suor repentino de ansiedade. O cozinheiro olhou por cima do ombro e viu que os quatro vampiros foram ganhando terreno. Um palavrão pronunciado em tom nervoso e atravessou a escuridão.
O humano voltou a girar a cabeça e caminhou mais depressa, com os punhos apertados e ambos grudado no corpo e os olhos muito abertos e cravados na estreita greta do asfalto que havia sob seus pés.
—Não faz falta que corra, homenzinho —lhe provocou um dos Renegados em um tom rouco como o som da areia fina contra o chão.
Outro deles emitiu um chiado agudo e se colocou a cabeça de seus três companheiros.
—Sim, não te escape agora. Tampouco é que vás chegar muito longe.

As risadas dos renegados ressonaram nos edifícios que flanqueavam a estreita rua.
—Merda —sussurrou o ser humano quase sem respiração. Não se voltou somente continuou para frente a passo rápido, a ponto quase de lançar-se a uma frenética, mas inútil, carreira.
À medida que o aterrorizado ser humano lhe aproximava, Lucan saiu da escuridão dando um passo e ficou em pé com as pernas abertas com os braços abertos a ambos os lados de seu corpo, bloqueou a rua com seu corpo ameaçador e suas espadas as gema. Dirigiu um frio sorriso aos renegados com as presas ameaçadoras, antecipando a luta que se morava.
—Boa tarde, senhoritas.
—OH, Jesus! —exclamou o ser humano. Deteve-se de forma brusca e olhou a Lucan o rosto com expressão de horror. Os joelhos cederam e caiu no chão,
— Merda!
—Te levante. —Lucan lhe dirigiu um breve olhar enquanto o jovem se esforçava por ficar em pé.
— Vai daqui.
Esfregou uma das afiadas folhas contra a outra diante dele e encheu a rua em sombras com o áspero som metálico do aço endurecido e letal. Detrás dos quatro renegados, Dante caiu ao asfalto e se agachou antes de levantar seu metro noventa e oito de altura. Não levava nenhuma espada, mas ao redor da cintura levava um cinturão de pele no qual levava sujeitas uma série de armas de mão letais, entre elas um par de folhas curvadas e afiadas como folhas de barbear que se convertiam em uma extensão infernal de suas mãos, incrivelmente rápidas. Malebranche ou prolongações diabólicas as chamava, e efetivamente eram umas garras do diabo. Dante as teve colocadas nas mãos em um momento: era um vampiro que sempre estava a ponto para entrar em um combate corpo a corpo.
—OH, Meu deus —gritou o ser humano com voz trêmula ao dar-se conta do perigo que lhe rodeava. Olhou a Lucan com a boca aberta e, com mãos trementes, rebuscou entre suas roupas tirou uma carteira do bolso traseiro da calça e a atirou ao chão.
— Toma-a, cara! Pode ficar mas não me mate, suplico-lhe isso!

Lucan manteve os olhos fixos nos quatro renegados, que nesses momentos estavam tomando posições e preparavam as armas.
—Te largue daqui. Agora.
—É nosso —vaiou um dos renegados. Uns olhos amarelos se cravaram fixamente em Lucan com puro ódio, as pupilas se reduziram a duas famintas ranhuras verticais. De suas largas presas lhe gotejava a saliva, outra prova do grande vício do vampiro pelo sangue.
Ao igual que os seres humanos podiam acabar dependendo de um poderoso narcótico, a sede de sangue também era destrutivo para a raça. A fronteira entre a necessidade de satisfazer a fome e a constante overdose de sangue se cruzava com facilidade. Alguns vampiros entravam nesse abismo de forma voluntária, enquanto que outros sucumbiam a essa enfermidade por inexperiência ou por falta de disciplina pessoal. Se chegava muito longe, e durante muito tempo, um vampiro se convertia na categoria de renegado, igual a esses ferozes monstros que grunhiam frente a Lucan nesses momentos.
Ansioso por convertê-los em cinzas, Lucan juntou com um golpe seco as duas folhas e cheirou a faísca de fogo que se criou quando os dois aços se encontraram.
O ser humano ainda se encontrava ali, atordoado pelo medo, dirigindo primeiro a cabeça para os renegados, que avançavam para ele, e agora para Lucan, que lhes esperava com atitude inquebrável. Esse momento de dúvida ia custar lhe a vida, mas Lucan apartou esse pensamento com frieza. O ser humano não era assunto dele. Quão único importava era eliminar a esses chupadores aditivos de sangue e ao resto dos doentes de sua raça.
Um dos renegados se passou uma mão suja por cima dos lábios babantes.
—Te aparte, idiota. Deixa que nos alimentemos.

—Esta noite não —grunhiu Lucan.
— Não em minha cidade.


—Sua cidade? —O resto deles se burlou e o renegado que ia em cabeça cuspiu no chão, Aos pés de Lucan.
— Esta cidade nos pertenece . Dentro de muito pouco, possuiremo-la por completo.
—Exato —acrescentou outro dos quatro.
— Assim parece que é você quem entrou em um território alheio.
Finalmente, o ser humano recuperou certa inteligência e começou a retirar-se, mas não chegou muito longe. Com uma velocidade incrível, um dos renegados alargou uma mão e agarrou ao homem pela garganta. Ele levantou do chão e lhe segurou no ar: as botas altas do homem ficaram a dois centímetros do chão. O ser humano grunhiu e suplicou, lutando com ferocidade enquanto o renegado lhe apertava o pescoço com mais força, lhe estrangulando lentamente com a mão nua. Lucan o observou, imperturbável, inclusive quando o vampiro deixou cair sua retorcida presa e lhe fez um buraco no pescoço com os dentes.
Pela extremidade do olho, Lucan viu que Dante se aproximava sigilosamente aos renegados por detrás. Com as presas estendidas, o guerreiro se lambeu os lábios, ansioso por entrar na tarefa. Não ia sentir se defraudado. Lucan atacou primeiro, e logo a rua explodiu com um estrondo de metal e de ossos quebrados.
Enquanto Dante lutava como um demônio saído do inferno —com as diabólicas folhas extensíveis cintilando a cada movimento, soltando gritos de guerra que rasgavam a noite—, Lucan manteve um frio controle e uma precisão letal. Um a um, os quatro renegados sucumbiram sob os golpes de castigo dos guerreiros. O beijo das folhas de titânio se expandia como um veneno a toda velocidade pelo corrompido sistema sangüíneo dos renegados, acelerando sua morte e provocando as rápidas mudanças nos estados de decomposição característicos da morte dos renegados.
Quando tiveram terminado com seus inimigos, quando seus corpos se reduziram de carne a osso e de osso a cinza fumegante, Lucan e Dante foram ver os restos do outro açougue da rua.
O ser humano estava imovel e sangrava profundamente por uma ferida que tinha na garganta.

Dante se agachou ao lado do homem e cheirou seu destroçado corpo.

—Está morto. Ou o vai estar dentro de um minuto.
O aroma do sangue derramado encheu as fossas nasais de Lucan com a força de um murro no ventre. Suas presas, estendidas já por causa da ira, agora pulsavam pelo desejo de alimentar-se. Baixou a vista e observou com desgosto ao humano moribundo. Apesar de que tomar o sangue era necessário para ele, Lucan desprezava a idéia de aceitar os refugos dos renegados, tivessem a forma que tivessem. Preferia conseguir o seu sustento dos serviçais anfitriões que ele mesmo elegia ali onde podia, apesar de que esses escassos bocados somente conseguiam despertar uma fome mais profunda.
Antes ou depois, todo vampiro tinha que matar.
Lucan não tentava negar sua natureza, mas nas ocasiões em que matava, o fazia seguindo sua própria eleição, seguindo sua próprias regras. Quando procurava uma presa, elegia principalmente criminosos, traficantes de droga, assassinos e outra gente de má vida. Era judicioso e eficiente e nunca matava pelo prazer de fazê-lo. Todos os da raça seguiam um código de honra similar; isso era o que lhes distinguia de seus irmãos os renegados, que se tinha separado deles ao rebelar-se a essa lei.
Sentiu que lhe esticava o ventre: o aroma do sangue voltou a fazer-se presente em suas fossas nasais. A saliva lhe começou a gotejar da boca ressecada.
Quando se tinha alimentado pela última vez?
Não podia recordá-lo: fazia bastante tempo. Vários dias, pelo menos, e não o suficiente para que lhe durasse. Tinha pensado acalmar parte da fome —tão carnal como de sangue— com a Gabrielle Maxwell a outra noite, mas essa idéia tinha tomado um giro repentino. Agora tremia por causa da necessidade de alimento, e essa necessidade era muito forte para pensar em algo exceto em cobrir as necessidades básicas de seu corpo.

—Lucan. — Dante apertou os dedos no pescoço do homem, procurando o pulso. As presas do vampiro estavam estendidos, afiados depois da batalha e por causa da reação fisiológica ante o forte aroma desse líquido escarlate que emanava do homem.
— Se esperarmos muito mais, o sangue terá morrido também.
E não lhes serviria de nada, posto que somente o sangue fresco que emanava das veias dos seres humanos podia saciar a fome de um vampiro. Dante esperou, inclusive apesar de que era óbvio que quão único desejava era baixar a cabeça e tomar sua parte desse homem, que tinha sido muito idiota para escapar quando tinha tido a oportunidade de fazê-lo.
Mas Dante esperaria, inclusive embora tivesse que deixar esbanjar esse sangue, dado que era um protocolo não escrito que as gerações mais jovens de vampiros não se alimentavam na presença dos mais velhos, especialmente se esse vampiro mais velho pertencia a categoria de «primeira geração» da raça e estava faminto.
A diferencia de Dante, o pai de Lucan era um dos Antigos, um dos oito guerreiros extraterrestres que tinham chegado de um planeta escuro e distante e se estrelaram milhares de anos atrás contra a superfície inóspita e implacável do planeta Terra. Para sobreviver, alimentaram-se do sangue dos seres humanos e tinham dizimado populações inteiras por causa de sua fome e de sua bestialidade. Em alguns estranhos casos, esses conquistadores estrangeiros se haviam emparelhado com êxito com fêmeas humanas, as primeiras companheiras de raça, que tinham gerado uma nova geração da raça dos vampiros.
Esses selvagens antepassados de outro mundo tinham desaparecido por completo, mas sua origem ainda continuava vivendo, como Lucan e uns quantos mais disseminados pelo mundo. Representavam o estádo mais próximo a realeza na sociedade dos vampiros: eram respeitados e não pouco temidos. A grande maioria dos da raça eram jovens, nascidos de uma segunda, terceira e, alguns, de uma décima geração.
A fome era mais urgente nos de «primeira geração». Também o era a propensão a ceder ante a sede de sangue e a converter-se em um renegado. A raça tinha aprendido a viver com esse perigo. A maioria deles tinha aprendido a dirigi-lo: tomavam sangue somente quando o necessitavam e nas mínimas quantidades necessárias para a sustentação. Tinham que fazê-lo assim, porque uma vez apanhados pela sede de sangue, não havia maneira de voltar atrás.

Os olhos afiados de Lucan caíram sobre a retorcida figura humana que ainda respirava ligeiramente, tombada no pavimento do chão. Ouviu um grunhido animal que provinha de sua própria garganta. Quando Lucan se aproximou com compridos passados em direção ao aroma do sangue vivo vertido no chão, Dante fez uma ligeira saudação com a cabeça e se apartou para permitir a seu superior que se alimentasse.


Capítulo cinco
Ele nem sequer se preocupou de chamá-la e lhe deixar uma mensagem a outra noite.
Típico.
Provavelmente tinha um encontro muito importante com seu mando à distancia e seu programa de poderes paranormais. Ou possivelmente, quando se houve marchado de seu apartamento a outra tarde, tinha conhecido a alguém mais e tinha recebido uma oferta mais interessante que devolver o telefone celular a Gabrielle no Beacon Hill.
Diabos, inclusive era possível que estivesse casado, ou que tivesse alguma relação com alguém. Não o tinha perguntado, e se o houvesse preguntado, isso não tivesse garantido que lhe houvesse dito a verdade. Lucan Throne, certamente, não era distinto a nenhum homem. Exceto pelo fato de que era... diferente.
Pareceu-lhe que era muito diferente a qualquer a quem houvesse conhecido até esse momento. Um homem muito reservado, quase fechado, que dava uma sensação extranhamente perigosa. Ela não podia imaginar sentado em uma poltrona diante do televisor, igual que tampouco lhe podia imaginar junto em uma relação séria de namoro, por não falar de uma esposa e uma família. O qual voltava a recordar a idéia de que seguramente ele teria recebido uma oferta mais interessante e tinha decidido desprezar a ela. E essa idéia lhe doía muito mais do que deveria.
«te esqueça dele», repreendeu-se Gabrielle quase sem fôlego enquanto aproximava o Cooper Mini negro à uma lateral da tranqüila rua local e desligava o motor. A bolsa com sua câmara e seu equipamento fotográfico se encontrava no assento do co-piloto. Agarrou-a, e tomou tambem uma pequena lanterna do porta-luvas, guardou as chaves na jaqueta e saiu do carro.

Fechou a porta sem fazer ruído e jogou uma rápida olhada ao seu redor. Não havia nem uma alma a vista, o qual não era surpreendente dado que eram quase as seis da manhã e que o edifício, no qual estava a ponto de entrar de forma ilegal e de fotografar, fazia vinte anos que estava fechado. Andou seguindo o caminho de pavimento gretado e girou a direita, cruzou uma sarjeta e subiu até um terreno cheio de carvalhos que formavam como uma densa cortina ao redor do velho hospital psiquiátrico.
O amanhecer começava a elevar-se pelo horizonte. A luz era fantasmagórica e etérea, como uma neblina úmida rosada e azulada que amortalhava essa estrutura gótica com um brilho de outro mundo. Apesar de estar pintado em tons claros, esse lugar tinha um ar ameaçador.
O contraste era o que a tinha atraído até essa localização essa manhã. Tomar as imagens ao anoitecer tivesse sido a eleição mais natural para concentrar-se na qualidade ameaçadora dessa estrutura abandonada. Mas era a justaposição da cálida luz do amanhecer com o tema frio e sinistro o que atraía a Gabrielle enquanto se detinha para tirar a câmara da bolsa que tinha pendurada do ombro. Tirou umas seis fotos e logo voltou a pôr a tampa a lente para continuar a caminhada em direção ao fantasmagórico edifício.
Uma alta cerca de arame apareceu diante dela, impedindo que os exploradores curiosos como ela entrassem na propriedade. Mas Gabrielle sabia que tinha um ponto débil escondido. Tinha-o descoberto a primeira vez que tinha vindo ao lugar para tirar umas fotos de exterior. Se apressou seguindo a linha da cerca até que chegou ao extremo sudoeste da mesma, onde se agachou até o chão. Ali, alguém tinha talhado discretamente o arame e tinha formado uma abertura o bastante grande para que um adolescente curioso pudesse abrir-se passo, ou para que uma fotógrafa decidida, e que tinha tendência a interpretar os sinais de «Não passar» e «Só pessoal autorizado» como sugestões amistosas em lugar de leis inquebráveis, penetrasse por ela.
Gabrielle abriu a parte de arame talhado, lançou o equipamento para o outro lado e se arrastou como uma aranha, sobre o ventre, Através da baixa abertura. Quando ficou em pé, ao outro lado da cerca, sentiu que as pernas lhe tremiam por causa de uma repentina apreensão. Deveria estar acostumada a este tipo de operações encobertas, de explorações em solitário: muito freqüentemente, sua arte dependia de sua coragem para encontrar lugares desolados, que alguns qualificariam de perigosos. Esse arrepiante psiquiátrico podia, certamente, qualificar-se como perigoso,
pensou enquanto deixava vagar o olhar por um grafite pintado com aerosol ao lado da porta de entrada que dizia más vibrações.
—Já pode dizê-lo —sussurrou em voz muito baixa. Enquanto se sacudia as agulhas de pinheiro e a terra da roupa, com gesto automático levou uma mão até o bolso dianteiro de seu jeans em busca do celular. Não estava ali, é obvio, já que ainda estava em poder do detetive Thorne. Outra razão para sentir-se aborrecida com ele por havê-la feito esperar a outra noite.
Possivelmente não deveria ser tão dura com o menino, pensou, repentinamente desejosa de concentrar-se em algo distinto ao mau pressentimento que a atendia agora que se encontrava dentro do terreno do psiquiátrico. Possivelmente Thorne não se apresentou porque algo lhe tinha acontecido no trabalho.
E se tinha sido ferido em cumprimento do dever e não acudiu tal e como tinha prometido porque se encontrava de alguma forma encapacitado de chamar ? Possivelmente não tinha chamado para desculpar-se nem para explicar sua ausência porque não podia fazê-lo fisicamente.
Exato. E possivelmente ela tinha comprovado seu próprio cérebro com as bra-gás do mesmo segundo em que tinha posto os olhos nesse homem.
Burlando-se de si mesmo, Gabrielle recolheu suas coisas e caminhou em direção a imponente arquitetura do edifício principal. Uma pálida pedra calcária se elevava para o céu em uma levantada torre central, remota em uns picos e agulhas dignos da melhor catedral gótica. Ao seu redor havia um extenso recinto de paredes de tijolo vermelho, cujo teto estava composto por telhas ordenadas em um desenho como de asas de morcego, comunicado entre eles por passarelas e arcos que formavam um claustro coberto.
Mas por impressionante que fosse essa estrutura, não havia forma de tirar-se de cima a sensação de uma ameaça latente, como se mil pecados e mil segredos se apertassem detrás dessas descascadas paredes e janelas com parte de cristais quebrados. Gabrielle caminhou até o ponto onde a luz era melhor e tomou umas quantas fotos. Não havia nenhuma maneira de entrar por aí: a porta principal estava fechada com ferrolho e com travessas de madeira. Se queria entrar para realizar algumas fotos do interior —e, definitivamente, sim queria—, tinha que dar a volta até a parte traseira e provar sorte com alguma janela que estivesse a pé de rua ou com alguma porta do porão.
Baixou deslizando-se por um aterro em pendente para a parte posterior do edifício e encontrou o que estava procurando: umas portinhas de madeira ocultavam três janelas que era muito provável que se abrissem a uma zona de serviço ou a um armazém. Os ferrolhos estavam oxidados, mas não estavam fechados e se abriram com facilidade quando se serve de ajuda de uma pedra que encontrou ali ao lado. Atirou da coberta de madera das janelas, levantou o pesado painel de cristal e o escorou, aberto, com os ferrolhos.
Fez uma varredura geral iluminando-se com a lanterna para assegurar-se de que o lugar estava vazio e de que não ia desabar sobre sua cabeça imediatamente, e penetrou através da abertura. Ao saltar do marco da janela, o solado de suas botas pisaram em cristais quebrados e pó e lixo acumulados durante anos. Esse porão de blocos de concreto tinha uns três metros e meio de comprimento e desaparecia na escura zona que ficava sem iluminar. Gabrielle dirigiu o magro feixe de luz de sua lanterna para as sombras do outro extremo do espaço. Percorreu com ele a parede e o deteve sobre uma velha porta de serviço em cuja superfície se podia ler o seguinte pôster: acesso restringido.
—O que te aposta? —sussurrou enquanto se aproximava da porta. Efetivamente, não estava fechada com chave.
Abriu-a e projetou a luz para o outro lado da porta, onde se abria um comprido corredor parecido a um túnel. Uns suportes de fluorescente quebrados penduravam do teto; alguns dos painéis que os haviam coberto tinham caido sobre o chão de qualidade industrial, onde jaziam quebrados e cobertos de pó. Gabrielle entrou nesse espaço escuro, insegura do que estava procurando e com certo temor do que poderia encontrar nas desertas tripas desse psiquiátrico.
Passou por diante de uma porta aberta do corredor e a luz do flash iluminóu uma cadeira de dentista de vinil vermelho, um pouco gasta, que se encontrava colocada no centro da habitação, como se esperasse ao próximo paciente. Gabrielle tirou a câmara de sua capa e tomou um par de rápidas fotos. Logo continuou para diante e passou ante uma série de habitações de revisão e de tratamento. Devia encontrar-se na ala médica do edifício.

Encontrou uma escada e subiu dois lances até que chegou, para sua complacencia, a torre central onde umas grandes janelas deixavam entrar a luz da manhã em generosas quantidades.
Através da lente da câmara olhou por cima de amplos terrenos e pátios flanqueados por elegantes edifícios de tijolo e de pedra calcária. Realizou umas quantas fotos do lugar, apreciando tanto sua arquitetura como o quente jogo que a luz do sol fazia contra tantas sombras fantasmagóricas. Resultava estranho olhar para fora do confinamento de um edifício que antigamente tinha albergado a tantas almas perturbadas. Nesse inquietante silêncio, Gabrielle quase podia ouvir as vozes dos pacientes, de gente que, simplesmente, não tinha a possibilidade de marchar-se caminhando dali como ela faria então.
Gente como sua mãe biológica, uma mulher a quem Gabrielle não tinha conhecido nunca e da qual não sabia nada mais que o que tinha ouvido de menina nas conversações apagadas que os trabalhadores sociais e as famílias de acolhida mantiveram e que ao final, uma por uma, devolveram ao sistema como se fosse um animal doméstico que houvesse demonstrado ser mais problemático do que se podia suportar. Tinha perdido a conta do número de lugares aonde a tinham enviado a viver, mas as queixa contra ela quando a devolviam sempre eram as mesmas: inquieta e introvertida, fechada e desconfiada, socialmente disfuncional com tendência a atitudes autodestrutivas. Tinha ouvido os mesmos qualificativos dirigidos para sua mãe, aos quais acrescentavam as categorias de paranóica e delirante.
Quando os Maxwell apareceram em sua vida, Gabrielle tinha passado dezenove dias em uma casa de acolhida sob a supervisão de um psicólogo designado pelo Estado. Não tinha nenhuma expectativa e ainda menos esperanças de que fora capaz de conseguir que outra situação de acolhida funcionasse. Francamente, já não lhe importava. Mas seus tutores tinham sido pacientes e bondosos. Acreditando que possivelmente a ajudasse a dirigir a confusão emocional, tinham-na ajudado a conseguir um punhado de documentos judiciais que tinham que ver com sua mãe.
Essa mulher tinha sido uma adolescente anônima, acreditava-se que era uma sem teto, que não tinha identificação, não lhe conhecia família nem conhecidos exceto pela menina recém-nascida que tinha abandonado, chorando e angustiada, em um contêiner de lixo da cidade em uma noite de agosto. A mãe de Gabrielle tinha sido maltratada, e sangrava por umas profundas feridas no pescoço que ela mesma se piorou rasgando-a, vítima da histeria e do pânico.

Em lugar de persegui-la pelo crime de haver abandonado seu bebê, o tribunal a tinha considerado incapacitada e a tinham enviado a umas instalações que certamente não eram muito diferentes a esta em que se encontrava ela agora. Quando ainda não levava nem um mês no centro institucional, pendurou-se com um lençol deixando detrás dela inumeráveis pergunta que nunca teriam resposta.
Gabrielle tentou tirar-se de cima o peso dessas velhas feridas, mas enquanto estava ali em pé e olhava através dos brumosos cristais das janelas, todo seu passado apareceu em primeiro plano em sua mente. Não queria pensar em sua mãe, nem na desgraçada circunstância de seu nascimento, nem nos escuros e solitários anos que lhe seguiram. Precisava concentrar-se em seu trabalho. Isso era o que lhe tinha permitido continuar para diante, depois de tudo. Era o único constante em sua vida, e as vezes tinha sido quão único de verdade tinha neste mundo.
E era suficiente.
Durante a maior parte do tempo, era suficiente.
«Toma umas quantas fotos e te largue daqui», disse a si mesmo, como brigando-se.
Levantou a câmara e tomou um par de fotos mais através do delicado trabalho de metal que se entrelaçava entre as duas janelas de cristal.
Pensou em partir pelo mesmo caminho por onde tinha entrado, mas se perguntou se possivelmente poderia encontrar outra saída em algum ponto do piso de abaixo do edifício central. Voltar a baixar ao escuro porão não lhe resultava especialmente atrativo.
Estava inquietando a si mesmo pensando em coisas sobre a loucura de sua mãe, e quanto mais momento se entretivera nesse velho psiquiátrico, mais lhe foram pôr os cabelos de ponta. Abriu a porta da escada e se sentiu um pouco melhor ao ver a tênue luz que se filtrava para dentro pelas janelas em algumas das habitações e nos corredores adjacentes.

Era óbvio que o artista do grafite de más vibrações tinha chegado até ali também. Em cada uma das quatro janelas havia uns extranhos símbolos realizados com pintura negra. Provavelmente eram os marcos de alguma turma, ou as assinaturas estilizadas dos meninos que tinham estado ali antes que ela. Em uma esquina havia uma lata de aerosol atirada, ao lado de umas bitucas de cigarros, de umas garrafas de cerveja quebrada e outros restos.
Gabrielle tomou a câmara e procurou um ângulo adequado para a fotografia que tinha em mente. A luz não era muito boa, mas com um lente diferente possivelmente resultasse interessante. Rebuscou na bolsa à procura das lentes e nesse momento ficou gelada ao ouvir um zumbido distante que procedia de algum ponto por debaixo de seus pés. Era muito frouxo, mas soava como o de um elevador, o qual era impossível. Gabrielle voltou a introduzir o equipamento na bolsa sem deixar de prestar atenção aos vagos sons que sentia ao seu redor. Todos os nervos de seu corpo se haviam esticado com uma gelada sensação de apreensão.
Não se encontrava sozinha ali dentro.
Agora que o pensava, notou que uns olhos a olhavam desde algum ponto próximo. Essa inquietante tira de consciência lhe pôs os cabelos de ponta na nuca e nos braços. Devagar, girou a cabeça e olhou para trás. Foi então quando o viu: uma pequena câmara de vídeo de circuito fechado montada em uma sombria esquina elevada do corredor, e que vigiava a porta da escada que ela tinha atravessado fazia somente uns minutos.
Possivelmente não estivesse em funcionamento e fosse somente algo que tinha ficado ali dos dias em que o psiquiátrico estava ainda em funcionamento. Essa teria sido uma idéia consoladora se a câmara não tivesse um aspecto tão cuidado e compacto, tão de tecnologia de vanguarda em segurança. Para comprová-lo, Gabrielle se aproximou dela e se colocou quase diretamente diante da câmara. Sem fazer nenhum ruído, a base da câmara girou e colocou a lente no ângulo adequado até que ficou enfocado no rosto de Gabrielle.

«Merda — disse, olhando esse olhos negro que não piscava.
—Pega.»
Das profundidades do edifício vazio, ouviu um rangido metálico e o estrondo de uma porta pesada. Era evidente que esse psiquiátrico abandonado não estava tão abandonado depois de tudo. Pelo menos tinham sistema de segurança, e a polícia de Boston poderia aprender algo dessa lição sobre o rápido tempo de reação dessa gente.
Soaram uns passos a um ritmo compassado: alguém que se encontrava vigiando tinha começado a dirigir-se para ela. Gabrielle se dirigiu para a escada e saiu disparada escada abaixo enquanto a bolsa a golpeava no quadril. À medida que baixava, a luz diminuía. Tomou a lanterna com a mão, mas não queria utilizá-la por medo de que funcionasse como um aviso de onde estava e o segurança pudesse segui-la. Chegou ao final da escada, empurrou a porta de metal e se precipitou para a escuridão do corredor do piso inferior.
Ouviu que a porta monitorada da escada se abria com um rangido e que seu perseguidor se precipitava para baixo, detrás dela, correndo com rapidez e ganhando terreno rapidamente.
Finalmente, chegou a porta de serviço do final do corredor. Lançou-se contra o aço frio e correu pelo escuro porão até a pequena janela que se encontrava aberta em uma das laterais. A corrente de ar frio lhe deu força: apoiou as mãos no marco da janela e se elevou. Deixou-se cair ao outro lado da janela, aterrissando fora na terra cheia de pedras.
Agora não podia ouvir seu perseguidor. Possivelmente lhe tinha avoado nos escuros de labirínticos corredores. Deus, isso esperava.
Gabrielle ficou em pé ao momento e correu em direção a abertura da cerca de arame. Encontrou-a rapidamente. colocou-se engatinhando e se introduziu pela fenda no arame com o coração desbocado e a adrenalina lhe correndo pelas veias.

Tinha muito pânico: em sua precipitação por escapar, arranhou-se um lado do rosto com um arame afiado da cerca. O corte lhe queimava na bochecha e sentiu o rastro quente de sangue que lhe baixava ao lado da orelha. Mas não fez caso da abrasadora ardência nem do golpe que se deu com a bolsa da equipamento fotográfica enquanto se inclinava sobre seu ventre para sair, através da cerca, para a liberdade.
Quando a teve atravessado, Gabrielle ficou em pé e correu enlouquecida pelo largo e escarpado terreno dos subúrbios. Somente se permitiu jogar uma rápida olhada para trás: o suficiente para ver que o enorme guarda de segurança ainda estava ali. Teria saído por algum lugar do piso principal e agora corria detrás dela como uma besta recém saída do inferno. Gabrielle tragou saliva de puro pânico ao lhe ver. O tipo parecia um tanque, facilmente pesava cento e dez quilogramas de puro músculo, e tinha uma cabeça grande e quadrada com o cabelo talhado ao estilo militar. Esse tipo enorme correu até a alta cerca e se deteve ao chegar a ela: golpeou-a com os punhos enquanto Gabrielle entrava correndo pela densa cortina de árvores que separava a propriedade da estrada.
O carro se encontrava a um lado do tranqüilo asfalto, justo onde o tinha deixado. Com mãos trementes, Gabrielle se esforçou por abrir a porta. sentia-se petrificada de pensar que esse tipo carregado de esteroides pudesse apanhá-la. Seu medo parecia irracional, mas isso não impedia que a adrenalina lhe corresse por todo o corpo. Afundou-se no acento de pele do Mini, pôs a chave no contato e ligou o motor. Com o coração acelerado, pôs em marcha o pequeno carro, apertou a fundo o pedal de aceleração e se precipitou para a estrada, escapando com um chiado de pneumáticos sobre o asfalto e o conseguinte aroma de queimado dos mesmos.


Capítulo seis
A metade da semana, em plena temporada turística, os parques e avenidas de Boston estavam coalhados de humanidade. Os trens traziam as pessoas a toda velocidade dos subúrbios, a seus lugares de trabalho ou aos museus, ou aos inumeráveis pontos históricos que se encontravam por toda a cidade. Olheiros carregados com câmeras subiam aos ônibus que lhes levavam de excursão ou se colocavam em fila para subir as Ferris sobrecarregados que lhes levariam mais à frente do cabo.
Não muito longe da agitação do dia, oculto a uns nove metros sob uma mansão dos subúrbios da cidade, Lucan Thorne se inclinou sobre um monitor de tela plaina, no edifício dos guerreiros da raça, e pronunciou uma maldição. Os registros de identificação dos vampiros apareciam em tela a velocidade vertiginosa enquanto o programa de computador realizava uma busca na enorme base de dados internacional procurando coincidências com as fotos que Gabrielle Maxwell tinha tomado.
—Ainda nada? —perguntou, olhando de soslaio e com expressão impaciente a Gideon, o operador informático.
—Nada até o momento. Mas ainda se está realizando a busca. A Base de dados de Identificação Internacional tem uns quantos milhões de registros para comprovar. —Os agudos olhos azuis do Gideon cintilaram por cima da arreios dos elegantes óculos de sol— Lhes jogarei o laço a esses burros, não se preocupe.
—Não me preocupo nunca —repôs Lucan, e o disse de verdade. Gideon tinha um coeficiente intelectual que rompia todas as estatísticas e ao que se acrescentava uma tenacidade enorme. Esse vampiro era tanto um caçador incansavel como um gênio e Lucan se alegrava de lhe ter ao seu lado.
_Se você não for capaz de tirá-los a luz, Gideon, ninguém pode fazê-lo.
O gurú informático da raça, com sua coroa de cabelo curto e encrespado, dirigiu-lhe um sorriso fanfarrão e confiado.
—É por isso que levo os verdes grandes.

—Sim, um pouco parecido —disse Lucan enquanto se separava da tela, onde os dados não deixavam de aparecer sem parar.
Nenhum dos guerreiros da raça que se comprometeram a proteger a estirpe frente ao açoite dos renegados o fazia por nenhuma compensação. Nunca a tinham tido, desde que se organizaram pela primeira vez nessa aliança durante o que para os humanos foi a idade medieval. Cada um dos guerreiros tinha seus próprios motivos para ter eleito esse perigoso modo de vida, e alguns deles eram, tinha-se que admitir, mais nobres que outros. Como Gideon, que tinha trabalhado nesse campo de forma independente até que seus dois irmãos, que eram pouco mais que uns meninos, foram assassinados pelos renegados aos subúrbios do Refúgio Escuro de Londres. Então Gideon procurou a Lucan. Disso fazia três séculos, umas décadas mais ou menos. Incluso então a habilidade do Gideon com a espada somente encontrava rival na afiada estocada de sua mente. Tinha matado a muitos renegados em seus tempos, mas mais tarde, a devoção e a promessa íntima que fez a sua companheira de raça, Savannah, tinham-lhe feito abandonar o combate e empunhar a arma da tecnologia ao serviço da raça.
Cada um dos seis guerreiros que lutavam ao lado de Lucan tinha seu talento pessoal. Também tinham seus demônios pessoais, mas nenhum deles era do tipo muito sensível que permitiria que um louco lhes colocasse uma lanterna pelo traseiro. Algumas costumes estavam melhor se deixavam na escuridão e, provavelmente, o único que estava mais convencido disso que o próprio Lucan era um guerreiro da raça conhecido como Dante.
Lucan saudou o jovem vampiro quando este entrou no laboratório técnico de uma das numerosas habitações do edifício. Dante, ataviado com sua habitual vestimenta negra, levava umas calças de ciclista e uma camiseta ajustada que mostrava tanto as tatuagens a tinta como suas intrincadas marcas de pertençer a raça. Seus avultados bíceps mostravam uns sinais afiligranados que a olhos de qualquer humano pareciam símbolos e desenhos geométricos realizados em profundas tonalidades terra. Mas os olhos de um vampiro distinguiam esses símbolos claramente: eram dermoglifos, umas marcas naturais herdadas dos antepasados da raça, cuja pele sem cabelo se havia recoberto de uma pigmentação cambiante e de camuflagem.

Normalmente, esses glifos eram motivo de orgulho para a raça e eram seus únicos sinais de linhagem e de fila social. Os membros da primera geração, como Lucan, luziam essas marca em maior número e seus tons eram mais saturados. Os dermoglifos de Lucan lhe cobriam o torso, por diante e por detrás, descendiam até suas coxas e se extendíam pela parte superior dos braços, além de subir pela nuca e lhe cobrir o crânio. Como tatuagens viventes, os glifos trocavam de tom segundo o estado emocional de um vampiro.
Os glifos de Dante, nesse momento, tinham um tom bronze, avermelhado, que indicava que se alimentou recentemente e que se sentia saciado. Sem dúvida, depois de que ele e Lucan se separaram ao cabo de ter dado caça aos renegados a noite anterior, Dante tinha ido em busca da cama e da amadurecida e suculenta veia da nádega de uma fêmea anfitriã.
—Que tal vai? —perguntou enquanto se deixava cair em cima de uma cadeira e colocava um pé embainhado em uma bota em cima do escritório, diante dele.
—Acreditei que já teria caçado e classificado a esses bastardos, Gid.
O acento de Dante tinha restos da musicalidade de seus ancestrais Italianos ate do século XVIII, mas essa noite, o educado tom de voz de Dante delatava um timbre afiado que indicava que o vampiro se sentia inquieto e ansioso por entrar em ação. Para sublinhar esse fato, tirou uma de suas típicas facas de folha curvada da cilha que levava no quadril e começou a jogar com o gentil aço.
Chamava a essas folhas curvadas Malebranche ou prolongações diabólicas, em referência Aos demônios que habitam um dos nove níveis do inferno, embora as vezes Dante adotava esse nome como pseudónimo para si mesmo quando se encontrava entre os humanos. Essa era quase toda a poesia que esse vampiro tinha em sua alma. Em todo o resto era impenitente, frio e escuramente ameaçador.
Lucan admirava isso dele, e tinha que admitir que observar a Dante durante o combate, com essas folhas inclementes, era algo belo, o bastante formoso para deixar em ridículo a qualquer artista.

—Bom trabalho o da noite passada —disse Lucan, consciente de que uma adulação emitida por ele era algo estranho, inclusive embora estivesse merecendo.
— Me salvou o pescoço aí.
Não falava da confrontação que tinham tido com os renegados, mas sim do que tinha acontecido depois disso. Lucan tinha passado demasiado tempo sem alimentar-se e a fome era quase tão perigosa para os seus como o vício que açoitava aos renegados. O olhar de Dante denotava que compreendia o que lhe estava dizendo, mas deixou acontecer o tema com sua habitual e fria elegância.
—Merda —repôs, com uma sonora e profunda gargalhada.
—.Depois de todas as vezes que você me há coberto as costas? Esquece-o, cara. Só te devolvia um favor.
Nesse momento, as portas de cristal da entrada do laboratório se abriram com um zumbido surdo e dois mais dos irmãos de Lucan entraram. Eram um bom par. Nikolai, alto e atlético, de cabelo loiro como a areia, uns rasgos angulares e impactantes e uns olhos penetrantes e azuis como o gelo, que só eram um tom mais frios que o céu de sua Siberia natal. O mais jovem do grupo e com diferença, Niko, havia-se feito homem durante o que os humanos chamavam a Guerra Fria. Do berço tinha sido imparavel e agora se converteu em um buscador de sensações de alta voltagem e se encontrava em primeira fila da raça no que tinha que ver com armas, aparelhos, e tudo o que ficava no meio.
Conlan, pelo contrário, falava com suavidade e era sério: era um perito em tática. Ao lado da excessiva fanfarronice do Niko, resultava elegante como um gato grande. Seu corpo era como um muro de músculos, e o cabelo loiro, de cor areia, brilhava por debaixo do triangulo de seda negra com que se envolvia a cabeça. Esse vampiro pertencia a uma das últimas gerações da raça, era um jovem segundo o critério de Lucan, e sua mãe era uma humana filha de um capitão escocês. O guerreiro se movia com um porte quase de realeza.
Inclusive sua amada companheira de raça, Danika, dirigia-se a esse habitante das terras altas afetuosamente lhe chamando, com freqüência, «meu senhor» e essa fêmea não era precisamente servil.

—Rio está de caminho —anunciou Nikolai com um amplo sorriso que lhe formava duas covinhas nas bochechas. Olhou a Lucan e assentiu com a cabeça.
— Eva me há dito que te diga que poderemos dispor de seu homem somente quando ela tenha terminado com ele.
—Se é que fica algo —disse Dê, arrastando as palavras enquanto levantava uma mão para saudar outros com um suave roce das palmas prévio a um choque de nódulos.
Lucan saudou Niko e a Conlan da mesma maneira, mas se sentiu algo molesto pelo atraso de Rio. Não invejava a nenhum dos vampiros pela companheira de raça que tinham eleito, mas, pessoalmente, Lucan não encontrava nenhum sentido atar-se as demandas e responsabilidades de um vínculo de sangue com uma fêmea. Esperava-se que, em geral, a população da raça aceitasse a uma mulher para aparear-se e dar nascimento a seguinte geração, mas para a classe dos guerreros —para esses escassos machos que, de forma voluntária, haviam abandonado o santuário dos Refúgios Escuros para levar uma vida de luta processo de vincular-se por sangue era, para Lucan, uma frescura no melhor dos casos.
E no pior, era um convite ao desastre quando um guerreiro sentia a tentação de antepor os sentimentos para sua companheira por cima de seu dever para a raça.
—Onde está Tegan? —perguntou, ao dirigir seus pensamentos de forma natural para o último deles que faltava no edifício.
—Ainda não retornou —respondeu Conlan.
—Chamou de onde se encontra?
Conlan e Niko intercambiaram um olhar, e Conlan negou rapidamente com a cabeça:
—Nenhuma palavra.

—Esta é a vez que esteve mais tempo desaparecido em ação — assinalou Dê sem dirigir-se a ninguém em especial enquanto passava o dedo polegar pelo fio da folha curvada de sua faca.
—Quanto faz? Três, quatro dias?
Quatro dias, quase cinco.
Quem deles levava a conta?
Resposta: todos eles a levavam, mas ninguém pronunciou em voz alta a preocupação que se estendeu ultimamente em suas filas. Tal como estava o tema, Lucan tinha que esforçar-se para controlar a raiva que despertava nele cada vez que pensava no membro mais introvertido dos membros de seu quadro.
Tegan sempre preferia caçar em solitário, mas seu caráter afastado começava a resultar uma carga para outros. Era como um curinga, adquiria um valor diferente em função de cada ação e, ultimamente, cada vez mais. E Lucan, tinha que ser franco, encontrava difícil confiar nesse menino, embora a desconfiança não fosse nada novo no que concernia a Tegan. Havia uma má relação entre ambos, sem dúvida, mas essa era uma história antiga.
Tinha que ser assim. A guerra em que ambos se comprometeram desde fazia tanto tempo era mais importante que qualquer aversão que pudesse sentir um para o outro.
Apesar disso, o vampiro levava a cabo uma vigilância estreita. Lucan conhecia as debilidades de Tegan melhor que nenhum de outros e não duvidaria em responder se esse macho punha embora fosse o dedo gordo do pé no outro extremo da linha.
Por fim, as portas do laboratório se abriram e Rio entrou na hábitação enquanto se colocava as abas de sua elegante camisa branca de desenho dentro da calça negra feita a medida. Faltavam alguns botões na camisa de seda, mas Rio levava a má compostura depois do sexo com a mesma elegância desenvolvida com que se movia em todas as demais circunstâncias. Sob a densa franja de cabelo escuro que lhe pendurava por cima das sobrancelhas, os olhos de cor topázio do espanhol parecia que dançavam. Quando sorria, brilhavam-lhe as pontas das presas que, nesses momentos, ainda não se haviam retratados depois de que a paixão por sua dama os tivesse desdobrado.

—Espero que me tenham guardado alguns renegados, meus amigos. — esfregou-se as mãos:—Me sinto bem e tenho vontades de festa.
— Sente-se disse Lucan— e tenta não manchar de sangue os computadores do Gideon.
Gideon se levou os largos dedos da mão até a marca vermelha que Eva tinha feito na garganta, evidentemente ao lhe morder com seus dentes romos de humana para lhe chupar a veia. Apesar de que era uma companheira de raça, continuava sendo geneticamente Homo sapiens. Embora fazia muitos anos que ela e outras como ela mantinham vínculos de sangue com seus companheiros, nenhuma delas teria presas nem adquiriría as demais características dos machos vampiro. Era uma prática ampliamente aceita que um vampiro alimentasse a sua companheira através de uma ferida que ele mesmo se infligia no pulso ou no antebraço, mas as paixões eram selvagens nas filas dos guerreiros da raça. E também o eram com as mulheres que escolhiam. O sexo e o sangue era uma combinação muito potente: Às vezes, muito potente.
Com um sorriso impenitente, Rio se moveu na cadeira giratória com gesto alegre e desenvolvido e se recostou no respaldo para colocar os pés nus em cima do console . Ele e os outros guerreiros começaram a recordar os fatos da noite anterior e riram sem deixar de mostrar-se superiores uns com os outros enquanto discutiam as técnicas de sua profissão.
Caçar a seus inimigos era motivo de prazer para alguns membros da raça, mas a motivação íntima de Lucan era o ódio, puro e simples. Não tentava ocultá-lo. Desprezava tudo aquilo que os renegados representavam e tinha jurado, fazia muito tempo, que os aniquilaria ou que morreria no intento. Havia dias nos que não lhe importava qual das duas coisas pudesse acontecer.
—Aí está —disse Gideon por fim ao ver que os registros que apareciam em tela se detinham.
— Parece que encontramos um filão.

—O que obtiveste?
Lucan e outros dirigiram a atenção para a tela plaina extra grande que se encontrava em cima da mesa dos microprocessadores do laboratório. Os rostos dos quatro renegados a quem Lucan matou apareceram ao lado dos das fotos do celular de Gabrielle: eram os mesmos indivíduos.
—Os registros da Base de dados de Identificação Internacional os têm qualificados como desaparecidos. Dois desapareceram do Refúgio Escuro de Connecticut o mês passado, e outro do Fall River, e este último é daqui. Todos são da geração atual, e o mais jovem nem sequer tem trinta anos.
—Merda —exclamou Rio antes de assobiar com suavidade.
— Meninos estúpidos.
Lucan não disse nada, não sentia nada, pela perda dessas vidas jovens ao converter-se em renegados. Não eram os primeiros, e seguro que não seriam os últimos. Viver nos Refúgios Escuros podia resultar bastante aborrecido para um macho imaturo que tivesse alguma coisa que demostrar. O atrativo do sangue e da conquista se encontrava profunda-mente enraizado inclusive entre as últimas gerações, que eram as que se encontravam mais distantes de seus selvagens antepassados. Se um vampiro ia em busca de problemas, especialmente em uma cidade do tamanho da de Boston, normalmente os encontrava em abundância.
Gideon introduziu uma rápida série de ordens através do teclado do computador e abriu mais fotos procedentes da base de dados.
—Aqui estão os últimos dois registros. Este primeiro indivíduo é um renegado conhecido, um agressor reincidente em Boston, apesar de que parece que se manteve um tanto à margem durante os últimos três meses. Quer dizer, tem-no feito até que Lucan o reduziu a cinzas no beco este fim de semana.
—E o que sabemos deste? —perguntou Lucan, olhando a última imagem que ficava, a do único renegado que tinha conseguido escapar depois do ataque fora da discoteca. Sua foto no registro era uma imagem tomada de um fotograma de um vídeo que, presumivelmente, fez-se durante uma espécie de sessão de interrogatório conforme se deduzia pelas ataduras e os eletrodos que levava em cima.

—Quanto tempo tem esta imagem?
—Uns seis meses —respondeu Gideon, abrindo a data da imagem— Sai de uma das operações na Costa Oeste.
—Los Angeles?
—Seattle. Mas segundo o relatório, em Los Angeles tem uma ordem de arresto também.
—Ordens de arresto —disse Dê em tom zombador.
— Uma fodida perda de tempo.
Lucan não podia não estar de acordo com ele. Para quase toda a nação de vampiros nos Estados Unidos e no estrangeiro, o cumprimento da lei e a detenção dos indivíduos que se converteram em renegados se governavam por umas regras e procedimentos específicos. Redigiam-se ordens de arresto, realizavam-se as detenções, realizavam-se os enterrogatorios e se transmitiam as condenações. Tudo era muito civilizado e estranhamente resultava efetivo.
Enquanto que a raça e a população dos Refúgios Escuros estavam organizados, motivados e envoltos por capas de burocracia, seus inimigos eram imprevisíveis e impetuosos. E, a não ser que a intuição de Lucan fora errônea, os renegados, depois de séculos de anarquia e de caos geral, estavam começando a organizar-se.
Se é que não levavam já meses nesse processo.
Lucan observou a imagem que tinha aparecido em tela. Na imagen de vídeo, o renegado a quem tinham capturado se encontrava preso em uma prancha de metal colocada em vertical, nu e com a cabeça barbeada por completo, provavelmente para que as descargas elétricas que lhe enviavam lhe chegassem com maior facilidade enquanto lhe interrogavam. Lucan não sentia nenhuma compaixão pela tortura que o renegado tinha suportado. Freqüentemente era necessário realizar interrogatórios desse tipo, e igual que acontece com um ser humano enganchado a heroína, um vampiro que sofria de sede de sangue podia suportar dez vezes mais e sem fraquejar a dor que outro de seus irmãos de raça podia agüentar.

Esse renegado era grande, com umas sobrancelhas densas e uns rasgos fortes e primitivos. Nessa imagem lhe via rir com ironia. Os largos dentes brilhavam e tinha uma expressão selvagem nos olhos da cor do ámbar e de pupilas alargadas e verticais. Encontrava-se envolto por cabos da cabeça enorme até o musculoso peito e os braços firmes como martelos.
—Dando por entendido que ser feio não é um crime, por que motivo lhe pilharam em Seattle?
—Vamos ver o que temos. —Gideon voltou a colocar-se ante os computadores e abriu um registro em outra das telas.
—Lhe hão arrestado por tráfico: armas, explosivos, substâncias químicas. Vá, este tipo é um encanto. Colocou-se em uma merda verdadeiramente feia.
—Alguma idéia sobre de quem eram as armas que levava?
—Aqui não diz nada. Não conseguiram grande coisa com ele, é evidente. O registro informa que escapou justo depois de que tomassem estas imagens. Matou a dois dos guardas durante a fuga.
E agora havia tornado a escapar, pensou Lucan, desalentado e desejando ferventemente ter decapitado ao filho de puta quando o tinha diante. Não suportava o fracasso com facilidade, e muito menos quando se tratava do seu próprio.
Lucan olhou a Niko.
—Cruzaste-te alguma vez com este tipo?
—Não —repôs o russo—, mas consultarei com meus contatos, a ver o que posso averiguar.

—Ponha nisso.
Nikolai assentiu com a cabeça com gesto rápido e se dirigiu para a saida do laboratório técnico enquanto já marcava o número de telefone de alguém no celular.
—Estas fotos são uma merda —disse Conlan, olhando por cima do ombro do Gideon em direção as fotos que Gabrielle tinha tomado durante o assassinato, fora da discoteca. O guerreiro pronunciou uma maldição.
— Já é bastante mau que os humanos tenham presenciado alguns dos assassinatos dos renegados durante os últimos anos, mas agora se dedicam a deter-se e a tomar fotos?
Dante deixou cair os pés ao chão com um ruído surdo, ficou em pé e começou a caminhar pela habitação, como se começasse a sentir-se cada vez mais inquieto pela falta de atividade nessa reunião.
—Todo mundo acredita que são uns fodidos paparazzi.
—O tipo que fez essas fotos deveu cagar-se de medo ao encontrar-se com noventa quilogramas de guerreiro salivando por ele —acrescentou Rio. E, olhou a Lucan—. Lhe apagou primeiro a memória, ou simplesmente o eliminou ali mesmo?
—O humano que presenciou o ataque essa noite era uma mulher. —Lucan olhou fixamente os rostos de seus irmãos sem mostrar o que sentia em relação a informação que estava a ponto de lhes dar.
— Resulta que é uma companheira de raça.
—Mãe de Deus —exclamou Rio, passando a mão pelo cabelo—. Uma companheira de raça. Está seguro?
—Leva o sinal. Vi-a com meus próprios olhos.
—O que fez com ela? Transou, não...?

—Não —repôs com secura Lucan, inquieto pelo que o espanhol havia insinuado com o tom de voz.
—Não fiz nenhum mal a essa mulher. Existe uma linha que nunca vou cruzar.
Tampouco tinha reclamado a Gabrielle para si, embora tinha estado muito perto de fazê-lo essa noite no apartamento dela. Lucan apertou a mandíbula: uma onda de escuro desejo lhe invadiu ao pensar em quão tentadora Gabrielle estava, enroscada e dormida na cama. No malditamente doce que era seu sabor em sua língua...
—O que vais fazer com ela, Lucan? —Esta vez, a expressão de preocupação proveio de onde se encontrava Gideon.
— Não podemos deixar que os renegados a encontrem. Seguro que ela chamou a atenção deles quando realizou essas fotos.
—E se os renegados se dão conta de que é uma companheira de raça... —acrescentou Dê, interrompendo-se A metade da frase. Outros assentiram com a cabeça.
—Ela estará mais segura aqui —disse Gideon—, sob o amparo da raça. Melhor ainda: deveria ser oficialmente admitida em um dos Refúgios Escuros.
—Conheço o protocolo —repôs Lucan, pronunciando cada palavra com lentidão. Sentia muita raiva ao pensar em que Gabrielle pudesse acabar nas mãos dos renegados, ou nas de outro membro da raça se fazia o que era devido e a mandava a um dos Refúgios Escuros da nação. Nenhuma das duas opções lhe parecia aceitável nesse momento a causa do sentimento possessivo que lhe bulia nas veias, irreprimivel embora não desejado.
Olhou a seus irmãos guerreiros com frieza.
—Essa mulher é responsabilidade minha a partir de agora mesmo. Decidirei qual é a melhor atuação neste tema.
Nenhum dos guerreiros lhe contradisse. Lucan não esperava que o fizessem. Em qualidade de membro de primeira geração, ele era mais antigo; em qualidade de guerreiro fundador dos de sua classe na raça, era quem mais coisas tinha demonstrado, com sangue e também com o aço. Sua palavra era lei, e todos os que se encontravam nessa habitação o respeitavam.

Dante ficou em pé, brincou com a Malebranche entre seus compridos e hábeis dedos e a embainhou com um ágil gesto.
—Faltam quatro horas para que caia o sol. Vou. —Olhou de soslaio a Rio e a Conlan.
— Alguém tem vontades de treinar antes de que as coisas fiquem interessantes?
Os dois machos se levantaram rapidamente, animados pela idéia, e detrás dirigir uma respeitosa saudação a Lucan, os três grandes guerreiros sairam do laboratório técnico e percorreram o corredor em direção a zona de treinamento do edifício.
—Tem algo mais sobre esse renegado de Seattle? —perguntou- Lucan a Gideon enquanto as portas de cristal se fechavam, quando ambos ficaram sozinhos no laboratório.
— Agora mesmo estou realizando uma comparação cruzada de todas as bases de registros. Só demorará um minuto em dar algum resultado. — Teclou umas ordens no computador.
— Bingo. Tenho uma coincidência procedente de uma informação GPS da Costa Oeste. Parece informação reunida anteriormente ao arresto. Joga uma olhada.
A tela do monitor se encheu com uma série de imagens noturnas por satélite de uma embarcação de pesca comercial aos subúrbios de Puget Sound. A imagem se centrava em um Sedan comprido e negro que se encontrava detrás de um maltratado edifício situado ao final do dique. Apoiado contra a porta posterior se encontrava o renegado que tinha conseguido escapar de Lucan fazia uns dias. Gideon passou rapidamente uma série de imagens que lhe mostravam conversando longamente, ou isso parecia, com alguém que se encontrava oculto detrás dos cristais negros dos guichês. À medida que as imagens avançavam, viram que a porta traseira do carro se abria e o renegado entrava no carro.
—Detenha —disse Lucan, fixando o olhar na mão do passageiro oculto.
— Pode deter todo este fotograma? Aumenta a zona da porta aberta do carro.

—Vou tentar .
A imagem aumentou de tamanho, mas Lucan quase não necessitava um aumento da imagem para confirmar o que via. Quase não se distinguia, mas aí estava. Na parte de pele exposta entre a grande mão do passageiro e o punho francês da camisa de manga larga se viam uns impressionantes dermoglifos que lhe delatavam como um membro de primeira geração.
Gideon também os tinha visto nesse momento.
—Maldição, olhe isso —disse, cravando a vista no monitor—. Nosso imbécil de Seattle desfrutava de uma companhia interessante.
—Possivelmente ainda o está fazendo —repôs Lucan.
Não havia nada pior que um renegado que tivesse sangue de primeira geração nas veias. Os membros de primeira geração caíam vitima da sede de sangue com maior rapidez que as últimas geração da raça, e eram uns temíveis inimigos. Se algum deles tinha intenção de liderar aos renegados e lhes conduzir a um levantamento, isso significaria o princípio de uma guerra infernal. Lucan já havia lutado em uma batalha assim uma vez, fazia muito tempo. Não desejava voltar a fazê-lo.
—Imprime tudo o que conseguiste, incluídos as ampliações de eroglifos.
—Já estão.
—Qualquer outra coisa que encontre sobre esses dois indivíduos, passa-me diretamente. Encarregarei-me disto pessoalmente.
Gideon assentiu com a cabeça, mas o olhar que lhe dirigiu por cima da arreios dos óculos expressava dúvida.

—Não pode pretender te encarregar de tudo isto você sozinho, já sabe.
Lucan lhe cravou um olhar escuro.
—Quem o diz?
Sem dúvida, o vampiro tinha em sua cabeça de gênio todo um discurso aberto da probabilidade e da lei da estatística, mas Lucan não se sentia de humor para lhe escutar. A noite se aproximava, e com ela se aproximava outra oportunidade de caçar a seus inimigos. Precisava empregar as horas que ficavam para esclarecer a cabeça, preparar as armas e decidir onde era melhor atacar. O depredador que havia nele se sentia impaciente e faminto, mas não por causa da batalha contra os Renegados.
Em lugar disso, Lucan se deu conta de que seus pensamentos se desviavam para um tranqüilo apartamento do Beacon Hill, para uma visita que nunca deveria ter realizado. Ao igual que o aroma de jasmim, o recordava da suavidade e a calidez da pele de Gabrielle, enredava-se com seus sentidos. Ficou tenso e seu sexo ficou em ereção somente pensando nela.
Foder.
Essa era a razão pela qual não a tinha posto sob o amparo da raça, aqui, no edifício. A certa distancia, ela era uma distração. Mas se encontrava em uma habitação próxima, seria um maldito desastre.
—Está bem? —perguntou-lhe Gideon, dando-a volta com a cadeira e ficando de cara a Lucan.
— É uma fúria muito grande a que tem em topo, amigo.
Lucan se arrancou da cabeça esses escuros pensamentos e se deu conta de que as presas lhe tinham alargado e que a visão lhe havia agudizado com o fechamento das pupilas. Mas não era a fúria o que lhe transformava. Era a luxúria, e tinha que saciá-la, antes ou depois. Com essa idéia lhe pulsando nas têmporas, Lucan tomou o telefone celular de Gabrielle, que se encontrava em cima de uma das mesas, e saiu do laboratório.

 

 

CONTINUA

Capítulo quatro

Gabrielle podia contar com uma só mão os sonhos erótico que tinha tido durante toda sua vida, mas nunca tinha experiente nada tão quente —por não dizer real— como a fantasia de orgia sexual que tinha desfrutado da noite anterior, cortesia de um Lucan Thorne virtual. Seu fôlego tinha sido a brisa noturna que penetrava pela janela aberta de seu dormitório do piso de acima. Seu cabelo era a escuridão de obsidiana que enchia as clarabóias, sobre sua cama. Seus olhos chapeados, o brilho pálido da lua. Suas mãos eram as ligaduras de seda de sua colcha, que enredavam seus pulsos e tornozelos, abriam seu corpo debaixo do dele e a sujeitavam com força.
Sua boca era puro fogo que lhe queimava cada centímetro da pele e a consumia como uma chama invisível. «Jasmim», tinha-a chamado ele, e o suave som dessa palavra vibrava contra a umidade de sua pele, o quente fôlego dele formava redemoinhos os suaves cachos de pêlo de sua entre perna.
Ela se tinha retorcido e tinha gemido dominada pela habilidade da língua dele, que a tinha submetido a uma tortura que ela desejava que fosse infinito. Mas tinha terminado, e muito logo. Gabrielle se tinha despertado em sua cama, só na escuridão, pronunciando quase sem fôlego o nome de Lucan, com o corpo esgotado e inerte, dolorido pelo desejo.
Ainda lhe doía o desejo e o que mais lhe preocupava era o fato de que o misterioso detetive Thorne lhe tivesse dado plantão.
Não era que seu oferecimento de passar por seu apartamento essa noite fosse nada que se parecesse com um encontro, mas ela tinha estado esperando voltar a lhe ver. Tinha interesse em saber mais a respeito dele dado que se havia mostrado tão inclinado a decifrá-la com um simples olhar. Além de conseguir algumas respostas mais sobre o que tinha presenciado essa noite fora da discoteca, Gabrielle tinha desejado conversar de algo mais com Lucan, possivelmente tomar um pouco de vinho e algo para jantar. O fato de que se depilou as pernas duas vezes e de que se pôs uma roupa interior negra e atrativa sob a camisa de seda de manga larga e dos escuros jeans era puramente acidental.

Gabrielle lhe tinha esperado até bem passadas as nove e então abandonou a idéia e chamou Jamie para ver se ele queria jantar com ela no centro da cidade.
Agora, sentado diante dela, ao outro lado da mesa, nessa sala cheia de janelas do bistro Ciao Bela, Jamie deixou na mesa a taça de pinot noire e olhou o prato de frutos do mar que ela quase não havia tocado.
—Estiveste enjoando a mesma parte da comida pelo prato durante os últimos dez minutos, carinho. Você não gosta?
—Sim, é genial. A comida sempre é incrível aqui.
—Então, é a companhia o que te desagrada?
Ela levantou o olhar para ele e negou com a cabeça.
—Absolutamente. Você é meu melhor amigo, já sabe.
—Certo —assentiu ele.
— Mas não me posso comparar com seu sonho erótico.
Gabrielle se ruborizou ao dar-se conta de que um dos clientes que se encontrava na mesa do lado olhava para eles.
—Às vezes é horrível, sabe? —disse a Jamie em um sussurro.
— Não deveria haver lhe contado isso.
—OH, carinho. Não se sinta incômoda. Se me tivessem dado uma moeda cada vez que me despertei excitado, chiando o nome de algum cara sexy...
—Eu não chiei seu nome. —Não, tinha-o pronunciado com o folego entrecortado e em um gemido, tão enquanto estava na cama como enquanto estava na ducha ao cabo de pouco tempo, ainda incapaz de tirar do corpo a sensação de Lucan Thorne.
— Era como se ele estivesse ali, Jamie. Justo ali, em minha cama, tão real que eu podia lhe tocar.
Jamie suspirou.
—Algumas garotas têm toda a sorte do mundo. A próxima vez que te encontre com seu amante em sonhos, seja generosa e me manda isso quando tenha terminado.
Gabrielle sorriu, sabendo que seu amigo não andava escasso no apartado romântico. Durante os últimos quatro anos tinha tido uma feliz relação monógama com o David, um vendedor de antiguidades que se encontrava nesses momentos fora da cidade por motivos de trabalho.
—Quer saber o que é o mais estranho disso tudo , Jamie? Aos levantar, esta manhã, a porta de entrada não estava fechada com chave.
— E?
—E você me conhece, nunca a deixo aberta.
As cuidadas e depiladas sobrancelhas do Jamie se juntaram, franzindo o cenho.
—O que quer dizer, que cre que esse cara forçou a porta de sua casa enquanto dormia?
—Parece uma loucura, sei. Um detetive da polícia que vem a minha casa a meia-noite para me seduzir. Devo estar perdendo a cabeça.
Disse-o com tom despreocupado, mas não era a primeira vez que se questionava em silêncio sua própria prudência. Não era a primeira vez nem muito menos. Com gesto ausente, brincou um momento com a manga da blusa enquanto Jamie a observava. Ele se sentia preocupado nesse momento, o qual somente aumentava a inquietação que Gabrielle sentia sobre o tema de sua possível instabilidade mental.

—Olhe, carinho. Passaste muita tensão do fim de semana. Isso pode provocar coisas estranhas na cabeça. Estiveste preocupada e confundida. Possivelmente se esqueceu de fechar a porta.
—E o sonho?
—Somente isso... Um sonho. Somente se trata de sua mente curvada que tenta tranqüilizar-se, relaxar-se.
Gabrielle baixou a cabeça em um gesto automático de afirmação.
—Exato. Estou segura de que só é isso.
Se pudesse aceitar que a explicação de tudo era tão simples como seu amigo fazia que parecesse... Mas uma sensação na boca do estômago rechaçava a idéia de que ela tivesse esquecido de fechar a porta. Ela nunca faria uma coisa assim, simplesmente, por estressada e confundida que estivesse.
—Né. —Jamie alargou o braço por cima da mesa para tomar a mão.
— Vais estar bem, Gab. Já sabe que pode me chamar a qualquer hora, verdade? Estarei contigo, sempre o estarei.
—Obrigado.
Lhe soltou a mão, tomou o garfo e fez um gesto em direção a seu fruto do mar.
—Bom, vais comer um pouco mais ou posso começar a limpar seu prato agora?
Gabrielle trocou seu prato meio cheio pelo dele, completamente vaziu.
—Tudo para ti.

Enquanto Jamie se concentrava na comida fria, Gabrielle apoiou o queixo em uma mão e tomou um comprido gole de sua taça de vinho. Enquanto bebia, brincou com os dedos em cima das ligeiras marcas que descobriu no pescoço essa mesma manhã depois de tomar banho. A porta aberta não era o mais estranho que se encontrou essa manhã: as duas marca idênticas que se viu debaixo da orelha se levaram o prêmio, sem dúvida nenhuma.
Essas pequenas perfurações não tinham sido o bastante profundas para lhe transpassar a pele, mas aí estavam. Havia duas, a uma distância equitativa, no ponto onde o pulso lhe pulsava com mais força quando o apalpava com os dedos. Ao princípio se disse que possivelmente havia se arranado a si mesmo enquanto dormia, possivelmente a causa do sonho estranho que tinha tido.
Mas, entretanto, essas marcas não pareciam arranhões. Pareciam... outra coisa.
Como se alguém, ou algo, tivesse estado a ponto de lhe morder a carótida.
Uma loucura.
Isso era, e tinha que deixar de pensar dessa maneira antes de fazer-se mais mal a si mesmo. Viu-se obrigada a centrar-se e a deixar de recrear-se em fantasias delirantes sobre visitantes a meia-noite e monstros de filme de terror que não era possível que existissem na vida real. Se não tomava cuidado, acabaria como sua mãe biológica.
—OH, Meu deus, me dê uma bofetada agora mesmo porque sou um completo e profundo imbecil —exclamou Jamie de repente, interrompendo seus pensamentos.
— Continuo esquecendo-me de lhe dizer isso ontem recebi uma chamada na galeria sobre suas fotografias. Um peixe gordo do centro da cidade está interessado em uma amostra privada.
—Sério? De quem se trata?
Ele se encolheu de ombros.

—Não sei, carinho. A verdade é que não falei com o possível comprador, mas a partir da atitude estirada do ajudante do tipo, diria que seja quem é seu admirador, ele ou ela— nada na abundância do dinheiro. Tenho uma entrevista em um dos edifícios do distrito financeiro amanhã de noite. Falo-te de um escritório em uma cobertura, querida.
—OH, Meu deus —exclamou ela com incredulidade.
—Acredita. Super bom, amiga. Muito em breve será muito para um pequeno vendedor de arte como eu —brincou ele, compartilhando a excitação com ela.
Era difícil não sentir-se intrigada, especialmente depois de tudo o que lhe tinha passado durante os últimos dias. Gabrielle tinha conseguido uns fiéis e respeitáveis admiradores e ganhou uns quantos bons elogios por seu novo trabalho, mas uma amostra privada para um comprador desconhecido era o máximo.
—Que peças te pediu que levasse?
Jamie levantou a taça de vinho e brindou com a dela com um gesto burlesco de saudação.
—Todas, senhorita Importante. Cada uma das peças da coleção.
No telhado do um velho edifício de tijolos do ocupado distrito dos teatros da cidade, a lua se refletia na risada letal de um vampiro embelezado de negro. Agachado em sua posição perto da beirada, o guerreiro da raça girou a escura cabeça e levantou uma mão para fazer um sinal.
«Quatro renegados. Uma presa humana se dirige diretamente para eles.»
Lucan lhe dirigiu um gesto afirmativo com a cabeça a Dante e se afastou da saída de emergência do quinto piso, que tinha sido sua posição de vigilância durante a última meia hora. Baixou até a rua de abaixo com um ágil movimento, aterrissando em silêncio, como um gato. Levava uma dupla folha de combate nas costas que lhe sobressaía pelos ombros como os ossos das asas de um demônio. Lucan desencapou a arma de titânio quase sem emitir nenhum som e penetrou nas sombras da estreita rua lateral para esperar os acontecimentos dessa noite.

Eram ao redor das onze, várias mais tarde que a hora em que deveria ter passado pelo apartamento de Gabrielle Maxwell para lhe devolver o telefone celular, tal e como lhe disse que o faria. O aparelho ainda estava em posse de Gideon, no laboratório técnico, que estava processando as imagens para as contrastar com a Base de dados de Identificação Internacional da Raça.
Quanto a Lucan, não tinha nenhuma intenção de devolver o telefone celular a Gabrielle, nem em pessoa nem de nenhuma outra maneira. As imagens do ataque dos renegados não tinham que estar em mãos de nenhum ser humano, e depois da decepção que se levou no dormitório dela, quanto mais longe estivesse dessa mulher, melhor.
«Uma maldita companheira de raça.»
Deveria havê-lo sabido. Agora que o pensava, ela tinha certas características que deveriam lhe haver dado a pista disso desde o começo. Como sua habilidade de ver através do véu do controle mental vampírico que enchia essa noite a sala de baile da discoteca. Ela tinha visto os renegados —ávidos de sangue no beco, e nas imagens indecifráveis do telefone celular— quando outros seres humanos não os havia podido ver. Logo, em seu apartamento, tinha demonstrado que tinha resistência ante a sugestão mental de Lucan para dirigir seus pensamentos, e ele suspeitava que se tinha sucumbido, tinha-o feito mais por causa de um desejo consciente do prazer que ele supunha para ela que por nenhuma outra coisa.
Não era nenhum secredo que as fêmeas humanas com o código genético único de companheiras de raça possuíam uma inteligência aguda e uma saúde perfeita. Muitas delas tinham uns assombrosos talento paranormal que aumentariam quando a companheira de raça se unisse por sangue com um macho vampiro.
Quanto a Gabrielle Maxwell, parecia possuir o dom de ter uma vista especial que lhe permitia ver o que o resto de seres humanos não podia ver, mas até onde chegava essa capacidade de visão era algo que ele não podia adivinhar. Lucan queria sabê-lo. Seu instinto de guerreiro exigia chegar ao fundo do assunto sem nenhuma demora.

Mas envolver-se com essa mulher, da forma que fosse, era o último que ele necessitava.
Então, por que não podia tirar-se de cima seu doce aroma, a suavidade de sua pele... sua provocadora sensualidade? Odiava o fato de que essa mulher tivesse despertado nele tal fragilidade, e seu estado de ânimo atual dificilmente melhorava pelo fato de que todo seu corpo doía pela necessidade de alimentar-se.
O único ponto claro essa noite era o constante ritmo dos saltos das botas dos renegados no pavimento, em algum lugar perto da entrada da rua lateral, que se dirigiam para ele.
O ser humano girou a esquina: encontrava-se a vários passos a frente deles, e era um homem. Jovem, saudável, vestia uma calça negra e alvo e uma túnica branca manchada que cheirava a cozinha de restaurante e a um suor repentino de ansiedade. O cozinheiro olhou por cima do ombro e viu que os quatro vampiros foram ganhando terreno. Um palavrão pronunciado em tom nervoso e atravessou a escuridão.
O humano voltou a girar a cabeça e caminhou mais depressa, com os punhos apertados e ambos grudado no corpo e os olhos muito abertos e cravados na estreita greta do asfalto que havia sob seus pés.
—Não faz falta que corra, homenzinho —lhe provocou um dos Renegados em um tom rouco como o som da areia fina contra o chão.
Outro deles emitiu um chiado agudo e se colocou a cabeça de seus três companheiros.
—Sim, não te escape agora. Tampouco é que vás chegar muito longe.

As risadas dos renegados ressonaram nos edifícios que flanqueavam a estreita rua.
—Merda —sussurrou o ser humano quase sem respiração. Não se voltou somente continuou para frente a passo rápido, a ponto quase de lançar-se a uma frenética, mas inútil, carreira.
À medida que o aterrorizado ser humano lhe aproximava, Lucan saiu da escuridão dando um passo e ficou em pé com as pernas abertas com os braços abertos a ambos os lados de seu corpo, bloqueou a rua com seu corpo ameaçador e suas espadas as gema. Dirigiu um frio sorriso aos renegados com as presas ameaçadoras, antecipando a luta que se morava.
—Boa tarde, senhoritas.
—OH, Jesus! —exclamou o ser humano. Deteve-se de forma brusca e olhou a Lucan o rosto com expressão de horror. Os joelhos cederam e caiu no chão,
— Merda!
—Te levante. —Lucan lhe dirigiu um breve olhar enquanto o jovem se esforçava por ficar em pé.
— Vai daqui.
Esfregou uma das afiadas folhas contra a outra diante dele e encheu a rua em sombras com o áspero som metálico do aço endurecido e letal. Detrás dos quatro renegados, Dante caiu ao asfalto e se agachou antes de levantar seu metro noventa e oito de altura. Não levava nenhuma espada, mas ao redor da cintura levava um cinturão de pele no qual levava sujeitas uma série de armas de mão letais, entre elas um par de folhas curvadas e afiadas como folhas de barbear que se convertiam em uma extensão infernal de suas mãos, incrivelmente rápidas. Malebranche ou prolongações diabólicas as chamava, e efetivamente eram umas garras do diabo. Dante as teve colocadas nas mãos em um momento: era um vampiro que sempre estava a ponto para entrar em um combate corpo a corpo.
—OH, Meu deus —gritou o ser humano com voz trêmula ao dar-se conta do perigo que lhe rodeava. Olhou a Lucan com a boca aberta e, com mãos trementes, rebuscou entre suas roupas tirou uma carteira do bolso traseiro da calça e a atirou ao chão.
— Toma-a, cara! Pode ficar mas não me mate, suplico-lhe isso!

Lucan manteve os olhos fixos nos quatro renegados, que nesses momentos estavam tomando posições e preparavam as armas.
—Te largue daqui. Agora.
—É nosso —vaiou um dos renegados. Uns olhos amarelos se cravaram fixamente em Lucan com puro ódio, as pupilas se reduziram a duas famintas ranhuras verticais. De suas largas presas lhe gotejava a saliva, outra prova do grande vício do vampiro pelo sangue.
Ao igual que os seres humanos podiam acabar dependendo de um poderoso narcótico, a sede de sangue também era destrutivo para a raça. A fronteira entre a necessidade de satisfazer a fome e a constante overdose de sangue se cruzava com facilidade. Alguns vampiros entravam nesse abismo de forma voluntária, enquanto que outros sucumbiam a essa enfermidade por inexperiência ou por falta de disciplina pessoal. Se chegava muito longe, e durante muito tempo, um vampiro se convertia na categoria de renegado, igual a esses ferozes monstros que grunhiam frente a Lucan nesses momentos.
Ansioso por convertê-los em cinzas, Lucan juntou com um golpe seco as duas folhas e cheirou a faísca de fogo que se criou quando os dois aços se encontraram.
O ser humano ainda se encontrava ali, atordoado pelo medo, dirigindo primeiro a cabeça para os renegados, que avançavam para ele, e agora para Lucan, que lhes esperava com atitude inquebrável. Esse momento de dúvida ia custar lhe a vida, mas Lucan apartou esse pensamento com frieza. O ser humano não era assunto dele. Quão único importava era eliminar a esses chupadores aditivos de sangue e ao resto dos doentes de sua raça.
Um dos renegados se passou uma mão suja por cima dos lábios babantes.
—Te aparte, idiota. Deixa que nos alimentemos.

—Esta noite não —grunhiu Lucan.
— Não em minha cidade.


—Sua cidade? —O resto deles se burlou e o renegado que ia em cabeça cuspiu no chão, Aos pés de Lucan.
— Esta cidade nos pertenece . Dentro de muito pouco, possuiremo-la por completo.
—Exato —acrescentou outro dos quatro.
— Assim parece que é você quem entrou em um território alheio.
Finalmente, o ser humano recuperou certa inteligência e começou a retirar-se, mas não chegou muito longe. Com uma velocidade incrível, um dos renegados alargou uma mão e agarrou ao homem pela garganta. Ele levantou do chão e lhe segurou no ar: as botas altas do homem ficaram a dois centímetros do chão. O ser humano grunhiu e suplicou, lutando com ferocidade enquanto o renegado lhe apertava o pescoço com mais força, lhe estrangulando lentamente com a mão nua. Lucan o observou, imperturbável, inclusive quando o vampiro deixou cair sua retorcida presa e lhe fez um buraco no pescoço com os dentes.
Pela extremidade do olho, Lucan viu que Dante se aproximava sigilosamente aos renegados por detrás. Com as presas estendidas, o guerreiro se lambeu os lábios, ansioso por entrar na tarefa. Não ia sentir se defraudado. Lucan atacou primeiro, e logo a rua explodiu com um estrondo de metal e de ossos quebrados.
Enquanto Dante lutava como um demônio saído do inferno —com as diabólicas folhas extensíveis cintilando a cada movimento, soltando gritos de guerra que rasgavam a noite—, Lucan manteve um frio controle e uma precisão letal. Um a um, os quatro renegados sucumbiram sob os golpes de castigo dos guerreiros. O beijo das folhas de titânio se expandia como um veneno a toda velocidade pelo corrompido sistema sangüíneo dos renegados, acelerando sua morte e provocando as rápidas mudanças nos estados de decomposição característicos da morte dos renegados.
Quando tiveram terminado com seus inimigos, quando seus corpos se reduziram de carne a osso e de osso a cinza fumegante, Lucan e Dante foram ver os restos do outro açougue da rua.
O ser humano estava imovel e sangrava profundamente por uma ferida que tinha na garganta.

Dante se agachou ao lado do homem e cheirou seu destroçado corpo.

—Está morto. Ou o vai estar dentro de um minuto.
O aroma do sangue derramado encheu as fossas nasais de Lucan com a força de um murro no ventre. Suas presas, estendidas já por causa da ira, agora pulsavam pelo desejo de alimentar-se. Baixou a vista e observou com desgosto ao humano moribundo. Apesar de que tomar o sangue era necessário para ele, Lucan desprezava a idéia de aceitar os refugos dos renegados, tivessem a forma que tivessem. Preferia conseguir o seu sustento dos serviçais anfitriões que ele mesmo elegia ali onde podia, apesar de que esses escassos bocados somente conseguiam despertar uma fome mais profunda.
Antes ou depois, todo vampiro tinha que matar.
Lucan não tentava negar sua natureza, mas nas ocasiões em que matava, o fazia seguindo sua própria eleição, seguindo sua próprias regras. Quando procurava uma presa, elegia principalmente criminosos, traficantes de droga, assassinos e outra gente de má vida. Era judicioso e eficiente e nunca matava pelo prazer de fazê-lo. Todos os da raça seguiam um código de honra similar; isso era o que lhes distinguia de seus irmãos os renegados, que se tinha separado deles ao rebelar-se a essa lei.
Sentiu que lhe esticava o ventre: o aroma do sangue voltou a fazer-se presente em suas fossas nasais. A saliva lhe começou a gotejar da boca ressecada.
Quando se tinha alimentado pela última vez?
Não podia recordá-lo: fazia bastante tempo. Vários dias, pelo menos, e não o suficiente para que lhe durasse. Tinha pensado acalmar parte da fome —tão carnal como de sangue— com a Gabrielle Maxwell a outra noite, mas essa idéia tinha tomado um giro repentino. Agora tremia por causa da necessidade de alimento, e essa necessidade era muito forte para pensar em algo exceto em cobrir as necessidades básicas de seu corpo.

—Lucan. — Dante apertou os dedos no pescoço do homem, procurando o pulso. As presas do vampiro estavam estendidos, afiados depois da batalha e por causa da reação fisiológica ante o forte aroma desse líquido escarlate que emanava do homem.
— Se esperarmos muito mais, o sangue terá morrido também.
E não lhes serviria de nada, posto que somente o sangue fresco que emanava das veias dos seres humanos podia saciar a fome de um vampiro. Dante esperou, inclusive apesar de que era óbvio que quão único desejava era baixar a cabeça e tomar sua parte desse homem, que tinha sido muito idiota para escapar quando tinha tido a oportunidade de fazê-lo.
Mas Dante esperaria, inclusive embora tivesse que deixar esbanjar esse sangue, dado que era um protocolo não escrito que as gerações mais jovens de vampiros não se alimentavam na presença dos mais velhos, especialmente se esse vampiro mais velho pertencia a categoria de «primeira geração» da raça e estava faminto.
A diferencia de Dante, o pai de Lucan era um dos Antigos, um dos oito guerreiros extraterrestres que tinham chegado de um planeta escuro e distante e se estrelaram milhares de anos atrás contra a superfície inóspita e implacável do planeta Terra. Para sobreviver, alimentaram-se do sangue dos seres humanos e tinham dizimado populações inteiras por causa de sua fome e de sua bestialidade. Em alguns estranhos casos, esses conquistadores estrangeiros se haviam emparelhado com êxito com fêmeas humanas, as primeiras companheiras de raça, que tinham gerado uma nova geração da raça dos vampiros.
Esses selvagens antepassados de outro mundo tinham desaparecido por completo, mas sua origem ainda continuava vivendo, como Lucan e uns quantos mais disseminados pelo mundo. Representavam o estádo mais próximo a realeza na sociedade dos vampiros: eram respeitados e não pouco temidos. A grande maioria dos da raça eram jovens, nascidos de uma segunda, terceira e, alguns, de uma décima geração.
A fome era mais urgente nos de «primeira geração». Também o era a propensão a ceder ante a sede de sangue e a converter-se em um renegado. A raça tinha aprendido a viver com esse perigo. A maioria deles tinha aprendido a dirigi-lo: tomavam sangue somente quando o necessitavam e nas mínimas quantidades necessárias para a sustentação. Tinham que fazê-lo assim, porque uma vez apanhados pela sede de sangue, não havia maneira de voltar atrás.

Os olhos afiados de Lucan caíram sobre a retorcida figura humana que ainda respirava ligeiramente, tombada no pavimento do chão. Ouviu um grunhido animal que provinha de sua própria garganta. Quando Lucan se aproximou com compridos passados em direção ao aroma do sangue vivo vertido no chão, Dante fez uma ligeira saudação com a cabeça e se apartou para permitir a seu superior que se alimentasse.


Capítulo cinco
Ele nem sequer se preocupou de chamá-la e lhe deixar uma mensagem a outra noite.
Típico.
Provavelmente tinha um encontro muito importante com seu mando à distancia e seu programa de poderes paranormais. Ou possivelmente, quando se houve marchado de seu apartamento a outra tarde, tinha conhecido a alguém mais e tinha recebido uma oferta mais interessante que devolver o telefone celular a Gabrielle no Beacon Hill.
Diabos, inclusive era possível que estivesse casado, ou que tivesse alguma relação com alguém. Não o tinha perguntado, e se o houvesse preguntado, isso não tivesse garantido que lhe houvesse dito a verdade. Lucan Throne, certamente, não era distinto a nenhum homem. Exceto pelo fato de que era... diferente.
Pareceu-lhe que era muito diferente a qualquer a quem houvesse conhecido até esse momento. Um homem muito reservado, quase fechado, que dava uma sensação extranhamente perigosa. Ela não podia imaginar sentado em uma poltrona diante do televisor, igual que tampouco lhe podia imaginar junto em uma relação séria de namoro, por não falar de uma esposa e uma família. O qual voltava a recordar a idéia de que seguramente ele teria recebido uma oferta mais interessante e tinha decidido desprezar a ela. E essa idéia lhe doía muito mais do que deveria.
«te esqueça dele», repreendeu-se Gabrielle quase sem fôlego enquanto aproximava o Cooper Mini negro à uma lateral da tranqüila rua local e desligava o motor. A bolsa com sua câmara e seu equipamento fotográfico se encontrava no assento do co-piloto. Agarrou-a, e tomou tambem uma pequena lanterna do porta-luvas, guardou as chaves na jaqueta e saiu do carro.

Fechou a porta sem fazer ruído e jogou uma rápida olhada ao seu redor. Não havia nem uma alma a vista, o qual não era surpreendente dado que eram quase as seis da manhã e que o edifício, no qual estava a ponto de entrar de forma ilegal e de fotografar, fazia vinte anos que estava fechado. Andou seguindo o caminho de pavimento gretado e girou a direita, cruzou uma sarjeta e subiu até um terreno cheio de carvalhos que formavam como uma densa cortina ao redor do velho hospital psiquiátrico.
O amanhecer começava a elevar-se pelo horizonte. A luz era fantasmagórica e etérea, como uma neblina úmida rosada e azulada que amortalhava essa estrutura gótica com um brilho de outro mundo. Apesar de estar pintado em tons claros, esse lugar tinha um ar ameaçador.
O contraste era o que a tinha atraído até essa localização essa manhã. Tomar as imagens ao anoitecer tivesse sido a eleição mais natural para concentrar-se na qualidade ameaçadora dessa estrutura abandonada. Mas era a justaposição da cálida luz do amanhecer com o tema frio e sinistro o que atraía a Gabrielle enquanto se detinha para tirar a câmara da bolsa que tinha pendurada do ombro. Tirou umas seis fotos e logo voltou a pôr a tampa a lente para continuar a caminhada em direção ao fantasmagórico edifício.
Uma alta cerca de arame apareceu diante dela, impedindo que os exploradores curiosos como ela entrassem na propriedade. Mas Gabrielle sabia que tinha um ponto débil escondido. Tinha-o descoberto a primeira vez que tinha vindo ao lugar para tirar umas fotos de exterior. Se apressou seguindo a linha da cerca até que chegou ao extremo sudoeste da mesma, onde se agachou até o chão. Ali, alguém tinha talhado discretamente o arame e tinha formado uma abertura o bastante grande para que um adolescente curioso pudesse abrir-se passo, ou para que uma fotógrafa decidida, e que tinha tendência a interpretar os sinais de «Não passar» e «Só pessoal autorizado» como sugestões amistosas em lugar de leis inquebráveis, penetrasse por ela.
Gabrielle abriu a parte de arame talhado, lançou o equipamento para o outro lado e se arrastou como uma aranha, sobre o ventre, Através da baixa abertura. Quando ficou em pé, ao outro lado da cerca, sentiu que as pernas lhe tremiam por causa de uma repentina apreensão. Deveria estar acostumada a este tipo de operações encobertas, de explorações em solitário: muito freqüentemente, sua arte dependia de sua coragem para encontrar lugares desolados, que alguns qualificariam de perigosos. Esse arrepiante psiquiátrico podia, certamente, qualificar-se como perigoso,
pensou enquanto deixava vagar o olhar por um grafite pintado com aerosol ao lado da porta de entrada que dizia más vibrações.
—Já pode dizê-lo —sussurrou em voz muito baixa. Enquanto se sacudia as agulhas de pinheiro e a terra da roupa, com gesto automático levou uma mão até o bolso dianteiro de seu jeans em busca do celular. Não estava ali, é obvio, já que ainda estava em poder do detetive Thorne. Outra razão para sentir-se aborrecida com ele por havê-la feito esperar a outra noite.
Possivelmente não deveria ser tão dura com o menino, pensou, repentinamente desejosa de concentrar-se em algo distinto ao mau pressentimento que a atendia agora que se encontrava dentro do terreno do psiquiátrico. Possivelmente Thorne não se apresentou porque algo lhe tinha acontecido no trabalho.
E se tinha sido ferido em cumprimento do dever e não acudiu tal e como tinha prometido porque se encontrava de alguma forma encapacitado de chamar ? Possivelmente não tinha chamado para desculpar-se nem para explicar sua ausência porque não podia fazê-lo fisicamente.
Exato. E possivelmente ela tinha comprovado seu próprio cérebro com as bra-gás do mesmo segundo em que tinha posto os olhos nesse homem.
Burlando-se de si mesmo, Gabrielle recolheu suas coisas e caminhou em direção a imponente arquitetura do edifício principal. Uma pálida pedra calcária se elevava para o céu em uma levantada torre central, remota em uns picos e agulhas dignos da melhor catedral gótica. Ao seu redor havia um extenso recinto de paredes de tijolo vermelho, cujo teto estava composto por telhas ordenadas em um desenho como de asas de morcego, comunicado entre eles por passarelas e arcos que formavam um claustro coberto.
Mas por impressionante que fosse essa estrutura, não havia forma de tirar-se de cima a sensação de uma ameaça latente, como se mil pecados e mil segredos se apertassem detrás dessas descascadas paredes e janelas com parte de cristais quebrados. Gabrielle caminhou até o ponto onde a luz era melhor e tomou umas quantas fotos. Não havia nenhuma maneira de entrar por aí: a porta principal estava fechada com ferrolho e com travessas de madeira. Se queria entrar para realizar algumas fotos do interior —e, definitivamente, sim queria—, tinha que dar a volta até a parte traseira e provar sorte com alguma janela que estivesse a pé de rua ou com alguma porta do porão.
Baixou deslizando-se por um aterro em pendente para a parte posterior do edifício e encontrou o que estava procurando: umas portinhas de madeira ocultavam três janelas que era muito provável que se abrissem a uma zona de serviço ou a um armazém. Os ferrolhos estavam oxidados, mas não estavam fechados e se abriram com facilidade quando se serve de ajuda de uma pedra que encontrou ali ao lado. Atirou da coberta de madera das janelas, levantou o pesado painel de cristal e o escorou, aberto, com os ferrolhos.
Fez uma varredura geral iluminando-se com a lanterna para assegurar-se de que o lugar estava vazio e de que não ia desabar sobre sua cabeça imediatamente, e penetrou através da abertura. Ao saltar do marco da janela, o solado de suas botas pisaram em cristais quebrados e pó e lixo acumulados durante anos. Esse porão de blocos de concreto tinha uns três metros e meio de comprimento e desaparecia na escura zona que ficava sem iluminar. Gabrielle dirigiu o magro feixe de luz de sua lanterna para as sombras do outro extremo do espaço. Percorreu com ele a parede e o deteve sobre uma velha porta de serviço em cuja superfície se podia ler o seguinte pôster: acesso restringido.
—O que te aposta? —sussurrou enquanto se aproximava da porta. Efetivamente, não estava fechada com chave.
Abriu-a e projetou a luz para o outro lado da porta, onde se abria um comprido corredor parecido a um túnel. Uns suportes de fluorescente quebrados penduravam do teto; alguns dos painéis que os haviam coberto tinham caido sobre o chão de qualidade industrial, onde jaziam quebrados e cobertos de pó. Gabrielle entrou nesse espaço escuro, insegura do que estava procurando e com certo temor do que poderia encontrar nas desertas tripas desse psiquiátrico.
Passou por diante de uma porta aberta do corredor e a luz do flash iluminóu uma cadeira de dentista de vinil vermelho, um pouco gasta, que se encontrava colocada no centro da habitação, como se esperasse ao próximo paciente. Gabrielle tirou a câmara de sua capa e tomou um par de rápidas fotos. Logo continuou para diante e passou ante uma série de habitações de revisão e de tratamento. Devia encontrar-se na ala médica do edifício.

Encontrou uma escada e subiu dois lances até que chegou, para sua complacencia, a torre central onde umas grandes janelas deixavam entrar a luz da manhã em generosas quantidades.
Através da lente da câmara olhou por cima de amplos terrenos e pátios flanqueados por elegantes edifícios de tijolo e de pedra calcária. Realizou umas quantas fotos do lugar, apreciando tanto sua arquitetura como o quente jogo que a luz do sol fazia contra tantas sombras fantasmagóricas. Resultava estranho olhar para fora do confinamento de um edifício que antigamente tinha albergado a tantas almas perturbadas. Nesse inquietante silêncio, Gabrielle quase podia ouvir as vozes dos pacientes, de gente que, simplesmente, não tinha a possibilidade de marchar-se caminhando dali como ela faria então.
Gente como sua mãe biológica, uma mulher a quem Gabrielle não tinha conhecido nunca e da qual não sabia nada mais que o que tinha ouvido de menina nas conversações apagadas que os trabalhadores sociais e as famílias de acolhida mantiveram e que ao final, uma por uma, devolveram ao sistema como se fosse um animal doméstico que houvesse demonstrado ser mais problemático do que se podia suportar. Tinha perdido a conta do número de lugares aonde a tinham enviado a viver, mas as queixa contra ela quando a devolviam sempre eram as mesmas: inquieta e introvertida, fechada e desconfiada, socialmente disfuncional com tendência a atitudes autodestrutivas. Tinha ouvido os mesmos qualificativos dirigidos para sua mãe, aos quais acrescentavam as categorias de paranóica e delirante.
Quando os Maxwell apareceram em sua vida, Gabrielle tinha passado dezenove dias em uma casa de acolhida sob a supervisão de um psicólogo designado pelo Estado. Não tinha nenhuma expectativa e ainda menos esperanças de que fora capaz de conseguir que outra situação de acolhida funcionasse. Francamente, já não lhe importava. Mas seus tutores tinham sido pacientes e bondosos. Acreditando que possivelmente a ajudasse a dirigir a confusão emocional, tinham-na ajudado a conseguir um punhado de documentos judiciais que tinham que ver com sua mãe.
Essa mulher tinha sido uma adolescente anônima, acreditava-se que era uma sem teto, que não tinha identificação, não lhe conhecia família nem conhecidos exceto pela menina recém-nascida que tinha abandonado, chorando e angustiada, em um contêiner de lixo da cidade em uma noite de agosto. A mãe de Gabrielle tinha sido maltratada, e sangrava por umas profundas feridas no pescoço que ela mesma se piorou rasgando-a, vítima da histeria e do pânico.

Em lugar de persegui-la pelo crime de haver abandonado seu bebê, o tribunal a tinha considerado incapacitada e a tinham enviado a umas instalações que certamente não eram muito diferentes a esta em que se encontrava ela agora. Quando ainda não levava nem um mês no centro institucional, pendurou-se com um lençol deixando detrás dela inumeráveis pergunta que nunca teriam resposta.
Gabrielle tentou tirar-se de cima o peso dessas velhas feridas, mas enquanto estava ali em pé e olhava através dos brumosos cristais das janelas, todo seu passado apareceu em primeiro plano em sua mente. Não queria pensar em sua mãe, nem na desgraçada circunstância de seu nascimento, nem nos escuros e solitários anos que lhe seguiram. Precisava concentrar-se em seu trabalho. Isso era o que lhe tinha permitido continuar para diante, depois de tudo. Era o único constante em sua vida, e as vezes tinha sido quão único de verdade tinha neste mundo.
E era suficiente.
Durante a maior parte do tempo, era suficiente.
«Toma umas quantas fotos e te largue daqui», disse a si mesmo, como brigando-se.
Levantou a câmara e tomou um par de fotos mais através do delicado trabalho de metal que se entrelaçava entre as duas janelas de cristal.
Pensou em partir pelo mesmo caminho por onde tinha entrado, mas se perguntou se possivelmente poderia encontrar outra saída em algum ponto do piso de abaixo do edifício central. Voltar a baixar ao escuro porão não lhe resultava especialmente atrativo.
Estava inquietando a si mesmo pensando em coisas sobre a loucura de sua mãe, e quanto mais momento se entretivera nesse velho psiquiátrico, mais lhe foram pôr os cabelos de ponta. Abriu a porta da escada e se sentiu um pouco melhor ao ver a tênue luz que se filtrava para dentro pelas janelas em algumas das habitações e nos corredores adjacentes.

Era óbvio que o artista do grafite de más vibrações tinha chegado até ali também. Em cada uma das quatro janelas havia uns extranhos símbolos realizados com pintura negra. Provavelmente eram os marcos de alguma turma, ou as assinaturas estilizadas dos meninos que tinham estado ali antes que ela. Em uma esquina havia uma lata de aerosol atirada, ao lado de umas bitucas de cigarros, de umas garrafas de cerveja quebrada e outros restos.
Gabrielle tomou a câmara e procurou um ângulo adequado para a fotografia que tinha em mente. A luz não era muito boa, mas com um lente diferente possivelmente resultasse interessante. Rebuscou na bolsa à procura das lentes e nesse momento ficou gelada ao ouvir um zumbido distante que procedia de algum ponto por debaixo de seus pés. Era muito frouxo, mas soava como o de um elevador, o qual era impossível. Gabrielle voltou a introduzir o equipamento na bolsa sem deixar de prestar atenção aos vagos sons que sentia ao seu redor. Todos os nervos de seu corpo se haviam esticado com uma gelada sensação de apreensão.
Não se encontrava sozinha ali dentro.
Agora que o pensava, notou que uns olhos a olhavam desde algum ponto próximo. Essa inquietante tira de consciência lhe pôs os cabelos de ponta na nuca e nos braços. Devagar, girou a cabeça e olhou para trás. Foi então quando o viu: uma pequena câmara de vídeo de circuito fechado montada em uma sombria esquina elevada do corredor, e que vigiava a porta da escada que ela tinha atravessado fazia somente uns minutos.
Possivelmente não estivesse em funcionamento e fosse somente algo que tinha ficado ali dos dias em que o psiquiátrico estava ainda em funcionamento. Essa teria sido uma idéia consoladora se a câmara não tivesse um aspecto tão cuidado e compacto, tão de tecnologia de vanguarda em segurança. Para comprová-lo, Gabrielle se aproximou dela e se colocou quase diretamente diante da câmara. Sem fazer nenhum ruído, a base da câmara girou e colocou a lente no ângulo adequado até que ficou enfocado no rosto de Gabrielle.

«Merda — disse, olhando esse olhos negro que não piscava.
—Pega.»
Das profundidades do edifício vazio, ouviu um rangido metálico e o estrondo de uma porta pesada. Era evidente que esse psiquiátrico abandonado não estava tão abandonado depois de tudo. Pelo menos tinham sistema de segurança, e a polícia de Boston poderia aprender algo dessa lição sobre o rápido tempo de reação dessa gente.
Soaram uns passos a um ritmo compassado: alguém que se encontrava vigiando tinha começado a dirigir-se para ela. Gabrielle se dirigiu para a escada e saiu disparada escada abaixo enquanto a bolsa a golpeava no quadril. À medida que baixava, a luz diminuía. Tomou a lanterna com a mão, mas não queria utilizá-la por medo de que funcionasse como um aviso de onde estava e o segurança pudesse segui-la. Chegou ao final da escada, empurrou a porta de metal e se precipitou para a escuridão do corredor do piso inferior.
Ouviu que a porta monitorada da escada se abria com um rangido e que seu perseguidor se precipitava para baixo, detrás dela, correndo com rapidez e ganhando terreno rapidamente.
Finalmente, chegou a porta de serviço do final do corredor. Lançou-se contra o aço frio e correu pelo escuro porão até a pequena janela que se encontrava aberta em uma das laterais. A corrente de ar frio lhe deu força: apoiou as mãos no marco da janela e se elevou. Deixou-se cair ao outro lado da janela, aterrissando fora na terra cheia de pedras.
Agora não podia ouvir seu perseguidor. Possivelmente lhe tinha avoado nos escuros de labirínticos corredores. Deus, isso esperava.
Gabrielle ficou em pé ao momento e correu em direção a abertura da cerca de arame. Encontrou-a rapidamente. colocou-se engatinhando e se introduziu pela fenda no arame com o coração desbocado e a adrenalina lhe correndo pelas veias.

Tinha muito pânico: em sua precipitação por escapar, arranhou-se um lado do rosto com um arame afiado da cerca. O corte lhe queimava na bochecha e sentiu o rastro quente de sangue que lhe baixava ao lado da orelha. Mas não fez caso da abrasadora ardência nem do golpe que se deu com a bolsa da equipamento fotográfica enquanto se inclinava sobre seu ventre para sair, através da cerca, para a liberdade.
Quando a teve atravessado, Gabrielle ficou em pé e correu enlouquecida pelo largo e escarpado terreno dos subúrbios. Somente se permitiu jogar uma rápida olhada para trás: o suficiente para ver que o enorme guarda de segurança ainda estava ali. Teria saído por algum lugar do piso principal e agora corria detrás dela como uma besta recém saída do inferno. Gabrielle tragou saliva de puro pânico ao lhe ver. O tipo parecia um tanque, facilmente pesava cento e dez quilogramas de puro músculo, e tinha uma cabeça grande e quadrada com o cabelo talhado ao estilo militar. Esse tipo enorme correu até a alta cerca e se deteve ao chegar a ela: golpeou-a com os punhos enquanto Gabrielle entrava correndo pela densa cortina de árvores que separava a propriedade da estrada.
O carro se encontrava a um lado do tranqüilo asfalto, justo onde o tinha deixado. Com mãos trementes, Gabrielle se esforçou por abrir a porta. sentia-se petrificada de pensar que esse tipo carregado de esteroides pudesse apanhá-la. Seu medo parecia irracional, mas isso não impedia que a adrenalina lhe corresse por todo o corpo. Afundou-se no acento de pele do Mini, pôs a chave no contato e ligou o motor. Com o coração acelerado, pôs em marcha o pequeno carro, apertou a fundo o pedal de aceleração e se precipitou para a estrada, escapando com um chiado de pneumáticos sobre o asfalto e o conseguinte aroma de queimado dos mesmos.


Capítulo seis
A metade da semana, em plena temporada turística, os parques e avenidas de Boston estavam coalhados de humanidade. Os trens traziam as pessoas a toda velocidade dos subúrbios, a seus lugares de trabalho ou aos museus, ou aos inumeráveis pontos históricos que se encontravam por toda a cidade. Olheiros carregados com câmeras subiam aos ônibus que lhes levavam de excursão ou se colocavam em fila para subir as Ferris sobrecarregados que lhes levariam mais à frente do cabo.
Não muito longe da agitação do dia, oculto a uns nove metros sob uma mansão dos subúrbios da cidade, Lucan Thorne se inclinou sobre um monitor de tela plaina, no edifício dos guerreiros da raça, e pronunciou uma maldição. Os registros de identificação dos vampiros apareciam em tela a velocidade vertiginosa enquanto o programa de computador realizava uma busca na enorme base de dados internacional procurando coincidências com as fotos que Gabrielle Maxwell tinha tomado.
—Ainda nada? —perguntou, olhando de soslaio e com expressão impaciente a Gideon, o operador informático.
—Nada até o momento. Mas ainda se está realizando a busca. A Base de dados de Identificação Internacional tem uns quantos milhões de registros para comprovar. —Os agudos olhos azuis do Gideon cintilaram por cima da arreios dos elegantes óculos de sol— Lhes jogarei o laço a esses burros, não se preocupe.
—Não me preocupo nunca —repôs Lucan, e o disse de verdade. Gideon tinha um coeficiente intelectual que rompia todas as estatísticas e ao que se acrescentava uma tenacidade enorme. Esse vampiro era tanto um caçador incansavel como um gênio e Lucan se alegrava de lhe ter ao seu lado.
_Se você não for capaz de tirá-los a luz, Gideon, ninguém pode fazê-lo.
O gurú informático da raça, com sua coroa de cabelo curto e encrespado, dirigiu-lhe um sorriso fanfarrão e confiado.
—É por isso que levo os verdes grandes.

—Sim, um pouco parecido —disse Lucan enquanto se separava da tela, onde os dados não deixavam de aparecer sem parar.
Nenhum dos guerreiros da raça que se comprometeram a proteger a estirpe frente ao açoite dos renegados o fazia por nenhuma compensação. Nunca a tinham tido, desde que se organizaram pela primeira vez nessa aliança durante o que para os humanos foi a idade medieval. Cada um dos guerreiros tinha seus próprios motivos para ter eleito esse perigoso modo de vida, e alguns deles eram, tinha-se que admitir, mais nobres que outros. Como Gideon, que tinha trabalhado nesse campo de forma independente até que seus dois irmãos, que eram pouco mais que uns meninos, foram assassinados pelos renegados aos subúrbios do Refúgio Escuro de Londres. Então Gideon procurou a Lucan. Disso fazia três séculos, umas décadas mais ou menos. Incluso então a habilidade do Gideon com a espada somente encontrava rival na afiada estocada de sua mente. Tinha matado a muitos renegados em seus tempos, mas mais tarde, a devoção e a promessa íntima que fez a sua companheira de raça, Savannah, tinham-lhe feito abandonar o combate e empunhar a arma da tecnologia ao serviço da raça.
Cada um dos seis guerreiros que lutavam ao lado de Lucan tinha seu talento pessoal. Também tinham seus demônios pessoais, mas nenhum deles era do tipo muito sensível que permitiria que um louco lhes colocasse uma lanterna pelo traseiro. Algumas costumes estavam melhor se deixavam na escuridão e, provavelmente, o único que estava mais convencido disso que o próprio Lucan era um guerreiro da raça conhecido como Dante.
Lucan saudou o jovem vampiro quando este entrou no laboratório técnico de uma das numerosas habitações do edifício. Dante, ataviado com sua habitual vestimenta negra, levava umas calças de ciclista e uma camiseta ajustada que mostrava tanto as tatuagens a tinta como suas intrincadas marcas de pertençer a raça. Seus avultados bíceps mostravam uns sinais afiligranados que a olhos de qualquer humano pareciam símbolos e desenhos geométricos realizados em profundas tonalidades terra. Mas os olhos de um vampiro distinguiam esses símbolos claramente: eram dermoglifos, umas marcas naturais herdadas dos antepasados da raça, cuja pele sem cabelo se havia recoberto de uma pigmentação cambiante e de camuflagem.

Normalmente, esses glifos eram motivo de orgulho para a raça e eram seus únicos sinais de linhagem e de fila social. Os membros da primera geração, como Lucan, luziam essas marca em maior número e seus tons eram mais saturados. Os dermoglifos de Lucan lhe cobriam o torso, por diante e por detrás, descendiam até suas coxas e se extendíam pela parte superior dos braços, além de subir pela nuca e lhe cobrir o crânio. Como tatuagens viventes, os glifos trocavam de tom segundo o estado emocional de um vampiro.
Os glifos de Dante, nesse momento, tinham um tom bronze, avermelhado, que indicava que se alimentou recentemente e que se sentia saciado. Sem dúvida, depois de que ele e Lucan se separaram ao cabo de ter dado caça aos renegados a noite anterior, Dante tinha ido em busca da cama e da amadurecida e suculenta veia da nádega de uma fêmea anfitriã.
—Que tal vai? —perguntou enquanto se deixava cair em cima de uma cadeira e colocava um pé embainhado em uma bota em cima do escritório, diante dele.
—Acreditei que já teria caçado e classificado a esses bastardos, Gid.
O acento de Dante tinha restos da musicalidade de seus ancestrais Italianos ate do século XVIII, mas essa noite, o educado tom de voz de Dante delatava um timbre afiado que indicava que o vampiro se sentia inquieto e ansioso por entrar em ação. Para sublinhar esse fato, tirou uma de suas típicas facas de folha curvada da cilha que levava no quadril e começou a jogar com o gentil aço.
Chamava a essas folhas curvadas Malebranche ou prolongações diabólicas, em referência Aos demônios que habitam um dos nove níveis do inferno, embora as vezes Dante adotava esse nome como pseudónimo para si mesmo quando se encontrava entre os humanos. Essa era quase toda a poesia que esse vampiro tinha em sua alma. Em todo o resto era impenitente, frio e escuramente ameaçador.
Lucan admirava isso dele, e tinha que admitir que observar a Dante durante o combate, com essas folhas inclementes, era algo belo, o bastante formoso para deixar em ridículo a qualquer artista.

—Bom trabalho o da noite passada —disse Lucan, consciente de que uma adulação emitida por ele era algo estranho, inclusive embora estivesse merecendo.
— Me salvou o pescoço aí.
Não falava da confrontação que tinham tido com os renegados, mas sim do que tinha acontecido depois disso. Lucan tinha passado demasiado tempo sem alimentar-se e a fome era quase tão perigosa para os seus como o vício que açoitava aos renegados. O olhar de Dante denotava que compreendia o que lhe estava dizendo, mas deixou acontecer o tema com sua habitual e fria elegância.
—Merda —repôs, com uma sonora e profunda gargalhada.
—.Depois de todas as vezes que você me há coberto as costas? Esquece-o, cara. Só te devolvia um favor.
Nesse momento, as portas de cristal da entrada do laboratório se abriram com um zumbido surdo e dois mais dos irmãos de Lucan entraram. Eram um bom par. Nikolai, alto e atlético, de cabelo loiro como a areia, uns rasgos angulares e impactantes e uns olhos penetrantes e azuis como o gelo, que só eram um tom mais frios que o céu de sua Siberia natal. O mais jovem do grupo e com diferença, Niko, havia-se feito homem durante o que os humanos chamavam a Guerra Fria. Do berço tinha sido imparavel e agora se converteu em um buscador de sensações de alta voltagem e se encontrava em primeira fila da raça no que tinha que ver com armas, aparelhos, e tudo o que ficava no meio.
Conlan, pelo contrário, falava com suavidade e era sério: era um perito em tática. Ao lado da excessiva fanfarronice do Niko, resultava elegante como um gato grande. Seu corpo era como um muro de músculos, e o cabelo loiro, de cor areia, brilhava por debaixo do triangulo de seda negra com que se envolvia a cabeça. Esse vampiro pertencia a uma das últimas gerações da raça, era um jovem segundo o critério de Lucan, e sua mãe era uma humana filha de um capitão escocês. O guerreiro se movia com um porte quase de realeza.
Inclusive sua amada companheira de raça, Danika, dirigia-se a esse habitante das terras altas afetuosamente lhe chamando, com freqüência, «meu senhor» e essa fêmea não era precisamente servil.

—Rio está de caminho —anunciou Nikolai com um amplo sorriso que lhe formava duas covinhas nas bochechas. Olhou a Lucan e assentiu com a cabeça.
— Eva me há dito que te diga que poderemos dispor de seu homem somente quando ela tenha terminado com ele.
—Se é que fica algo —disse Dê, arrastando as palavras enquanto levantava uma mão para saudar outros com um suave roce das palmas prévio a um choque de nódulos.
Lucan saudou Niko e a Conlan da mesma maneira, mas se sentiu algo molesto pelo atraso de Rio. Não invejava a nenhum dos vampiros pela companheira de raça que tinham eleito, mas, pessoalmente, Lucan não encontrava nenhum sentido atar-se as demandas e responsabilidades de um vínculo de sangue com uma fêmea. Esperava-se que, em geral, a população da raça aceitasse a uma mulher para aparear-se e dar nascimento a seguinte geração, mas para a classe dos guerreros —para esses escassos machos que, de forma voluntária, haviam abandonado o santuário dos Refúgios Escuros para levar uma vida de luta processo de vincular-se por sangue era, para Lucan, uma frescura no melhor dos casos.
E no pior, era um convite ao desastre quando um guerreiro sentia a tentação de antepor os sentimentos para sua companheira por cima de seu dever para a raça.
—Onde está Tegan? —perguntou, ao dirigir seus pensamentos de forma natural para o último deles que faltava no edifício.
—Ainda não retornou —respondeu Conlan.
—Chamou de onde se encontra?
Conlan e Niko intercambiaram um olhar, e Conlan negou rapidamente com a cabeça:
—Nenhuma palavra.

—Esta é a vez que esteve mais tempo desaparecido em ação — assinalou Dê sem dirigir-se a ninguém em especial enquanto passava o dedo polegar pelo fio da folha curvada de sua faca.
—Quanto faz? Três, quatro dias?
Quatro dias, quase cinco.
Quem deles levava a conta?
Resposta: todos eles a levavam, mas ninguém pronunciou em voz alta a preocupação que se estendeu ultimamente em suas filas. Tal como estava o tema, Lucan tinha que esforçar-se para controlar a raiva que despertava nele cada vez que pensava no membro mais introvertido dos membros de seu quadro.
Tegan sempre preferia caçar em solitário, mas seu caráter afastado começava a resultar uma carga para outros. Era como um curinga, adquiria um valor diferente em função de cada ação e, ultimamente, cada vez mais. E Lucan, tinha que ser franco, encontrava difícil confiar nesse menino, embora a desconfiança não fosse nada novo no que concernia a Tegan. Havia uma má relação entre ambos, sem dúvida, mas essa era uma história antiga.
Tinha que ser assim. A guerra em que ambos se comprometeram desde fazia tanto tempo era mais importante que qualquer aversão que pudesse sentir um para o outro.
Apesar disso, o vampiro levava a cabo uma vigilância estreita. Lucan conhecia as debilidades de Tegan melhor que nenhum de outros e não duvidaria em responder se esse macho punha embora fosse o dedo gordo do pé no outro extremo da linha.
Por fim, as portas do laboratório se abriram e Rio entrou na hábitação enquanto se colocava as abas de sua elegante camisa branca de desenho dentro da calça negra feita a medida. Faltavam alguns botões na camisa de seda, mas Rio levava a má compostura depois do sexo com a mesma elegância desenvolvida com que se movia em todas as demais circunstâncias. Sob a densa franja de cabelo escuro que lhe pendurava por cima das sobrancelhas, os olhos de cor topázio do espanhol parecia que dançavam. Quando sorria, brilhavam-lhe as pontas das presas que, nesses momentos, ainda não se haviam retratados depois de que a paixão por sua dama os tivesse desdobrado.

—Espero que me tenham guardado alguns renegados, meus amigos. — esfregou-se as mãos:—Me sinto bem e tenho vontades de festa.
— Sente-se disse Lucan— e tenta não manchar de sangue os computadores do Gideon.
Gideon se levou os largos dedos da mão até a marca vermelha que Eva tinha feito na garganta, evidentemente ao lhe morder com seus dentes romos de humana para lhe chupar a veia. Apesar de que era uma companheira de raça, continuava sendo geneticamente Homo sapiens. Embora fazia muitos anos que ela e outras como ela mantinham vínculos de sangue com seus companheiros, nenhuma delas teria presas nem adquiriría as demais características dos machos vampiro. Era uma prática ampliamente aceita que um vampiro alimentasse a sua companheira através de uma ferida que ele mesmo se infligia no pulso ou no antebraço, mas as paixões eram selvagens nas filas dos guerreiros da raça. E também o eram com as mulheres que escolhiam. O sexo e o sangue era uma combinação muito potente: Às vezes, muito potente.
Com um sorriso impenitente, Rio se moveu na cadeira giratória com gesto alegre e desenvolvido e se recostou no respaldo para colocar os pés nus em cima do console . Ele e os outros guerreiros começaram a recordar os fatos da noite anterior e riram sem deixar de mostrar-se superiores uns com os outros enquanto discutiam as técnicas de sua profissão.
Caçar a seus inimigos era motivo de prazer para alguns membros da raça, mas a motivação íntima de Lucan era o ódio, puro e simples. Não tentava ocultá-lo. Desprezava tudo aquilo que os renegados representavam e tinha jurado, fazia muito tempo, que os aniquilaria ou que morreria no intento. Havia dias nos que não lhe importava qual das duas coisas pudesse acontecer.
—Aí está —disse Gideon por fim ao ver que os registros que apareciam em tela se detinham.
— Parece que encontramos um filão.

—O que obtiveste?
Lucan e outros dirigiram a atenção para a tela plaina extra grande que se encontrava em cima da mesa dos microprocessadores do laboratório. Os rostos dos quatro renegados a quem Lucan matou apareceram ao lado dos das fotos do celular de Gabrielle: eram os mesmos indivíduos.
—Os registros da Base de dados de Identificação Internacional os têm qualificados como desaparecidos. Dois desapareceram do Refúgio Escuro de Connecticut o mês passado, e outro do Fall River, e este último é daqui. Todos são da geração atual, e o mais jovem nem sequer tem trinta anos.
—Merda —exclamou Rio antes de assobiar com suavidade.
— Meninos estúpidos.
Lucan não disse nada, não sentia nada, pela perda dessas vidas jovens ao converter-se em renegados. Não eram os primeiros, e seguro que não seriam os últimos. Viver nos Refúgios Escuros podia resultar bastante aborrecido para um macho imaturo que tivesse alguma coisa que demostrar. O atrativo do sangue e da conquista se encontrava profunda-mente enraizado inclusive entre as últimas gerações, que eram as que se encontravam mais distantes de seus selvagens antepassados. Se um vampiro ia em busca de problemas, especialmente em uma cidade do tamanho da de Boston, normalmente os encontrava em abundância.
Gideon introduziu uma rápida série de ordens através do teclado do computador e abriu mais fotos procedentes da base de dados.
—Aqui estão os últimos dois registros. Este primeiro indivíduo é um renegado conhecido, um agressor reincidente em Boston, apesar de que parece que se manteve um tanto à margem durante os últimos três meses. Quer dizer, tem-no feito até que Lucan o reduziu a cinzas no beco este fim de semana.
—E o que sabemos deste? —perguntou Lucan, olhando a última imagem que ficava, a do único renegado que tinha conseguido escapar depois do ataque fora da discoteca. Sua foto no registro era uma imagem tomada de um fotograma de um vídeo que, presumivelmente, fez-se durante uma espécie de sessão de interrogatório conforme se deduzia pelas ataduras e os eletrodos que levava em cima.

—Quanto tempo tem esta imagem?
—Uns seis meses —respondeu Gideon, abrindo a data da imagem— Sai de uma das operações na Costa Oeste.
—Los Angeles?
—Seattle. Mas segundo o relatório, em Los Angeles tem uma ordem de arresto também.
—Ordens de arresto —disse Dê em tom zombador.
— Uma fodida perda de tempo.
Lucan não podia não estar de acordo com ele. Para quase toda a nação de vampiros nos Estados Unidos e no estrangeiro, o cumprimento da lei e a detenção dos indivíduos que se converteram em renegados se governavam por umas regras e procedimentos específicos. Redigiam-se ordens de arresto, realizavam-se as detenções, realizavam-se os enterrogatorios e se transmitiam as condenações. Tudo era muito civilizado e estranhamente resultava efetivo.
Enquanto que a raça e a população dos Refúgios Escuros estavam organizados, motivados e envoltos por capas de burocracia, seus inimigos eram imprevisíveis e impetuosos. E, a não ser que a intuição de Lucan fora errônea, os renegados, depois de séculos de anarquia e de caos geral, estavam começando a organizar-se.
Se é que não levavam já meses nesse processo.
Lucan observou a imagem que tinha aparecido em tela. Na imagen de vídeo, o renegado a quem tinham capturado se encontrava preso em uma prancha de metal colocada em vertical, nu e com a cabeça barbeada por completo, provavelmente para que as descargas elétricas que lhe enviavam lhe chegassem com maior facilidade enquanto lhe interrogavam. Lucan não sentia nenhuma compaixão pela tortura que o renegado tinha suportado. Freqüentemente era necessário realizar interrogatórios desse tipo, e igual que acontece com um ser humano enganchado a heroína, um vampiro que sofria de sede de sangue podia suportar dez vezes mais e sem fraquejar a dor que outro de seus irmãos de raça podia agüentar.

Esse renegado era grande, com umas sobrancelhas densas e uns rasgos fortes e primitivos. Nessa imagem lhe via rir com ironia. Os largos dentes brilhavam e tinha uma expressão selvagem nos olhos da cor do ámbar e de pupilas alargadas e verticais. Encontrava-se envolto por cabos da cabeça enorme até o musculoso peito e os braços firmes como martelos.
—Dando por entendido que ser feio não é um crime, por que motivo lhe pilharam em Seattle?
—Vamos ver o que temos. —Gideon voltou a colocar-se ante os computadores e abriu um registro em outra das telas.
—Lhe hão arrestado por tráfico: armas, explosivos, substâncias químicas. Vá, este tipo é um encanto. Colocou-se em uma merda verdadeiramente feia.
—Alguma idéia sobre de quem eram as armas que levava?
—Aqui não diz nada. Não conseguiram grande coisa com ele, é evidente. O registro informa que escapou justo depois de que tomassem estas imagens. Matou a dois dos guardas durante a fuga.
E agora havia tornado a escapar, pensou Lucan, desalentado e desejando ferventemente ter decapitado ao filho de puta quando o tinha diante. Não suportava o fracasso com facilidade, e muito menos quando se tratava do seu próprio.
Lucan olhou a Niko.
—Cruzaste-te alguma vez com este tipo?
—Não —repôs o russo—, mas consultarei com meus contatos, a ver o que posso averiguar.

—Ponha nisso.
Nikolai assentiu com a cabeça com gesto rápido e se dirigiu para a saida do laboratório técnico enquanto já marcava o número de telefone de alguém no celular.
—Estas fotos são uma merda —disse Conlan, olhando por cima do ombro do Gideon em direção as fotos que Gabrielle tinha tomado durante o assassinato, fora da discoteca. O guerreiro pronunciou uma maldição.
— Já é bastante mau que os humanos tenham presenciado alguns dos assassinatos dos renegados durante os últimos anos, mas agora se dedicam a deter-se e a tomar fotos?
Dante deixou cair os pés ao chão com um ruído surdo, ficou em pé e começou a caminhar pela habitação, como se começasse a sentir-se cada vez mais inquieto pela falta de atividade nessa reunião.
—Todo mundo acredita que são uns fodidos paparazzi.
—O tipo que fez essas fotos deveu cagar-se de medo ao encontrar-se com noventa quilogramas de guerreiro salivando por ele —acrescentou Rio. E, olhou a Lucan—. Lhe apagou primeiro a memória, ou simplesmente o eliminou ali mesmo?
—O humano que presenciou o ataque essa noite era uma mulher. —Lucan olhou fixamente os rostos de seus irmãos sem mostrar o que sentia em relação a informação que estava a ponto de lhes dar.
— Resulta que é uma companheira de raça.
—Mãe de Deus —exclamou Rio, passando a mão pelo cabelo—. Uma companheira de raça. Está seguro?
—Leva o sinal. Vi-a com meus próprios olhos.
—O que fez com ela? Transou, não...?

—Não —repôs com secura Lucan, inquieto pelo que o espanhol havia insinuado com o tom de voz.
—Não fiz nenhum mal a essa mulher. Existe uma linha que nunca vou cruzar.
Tampouco tinha reclamado a Gabrielle para si, embora tinha estado muito perto de fazê-lo essa noite no apartamento dela. Lucan apertou a mandíbula: uma onda de escuro desejo lhe invadiu ao pensar em quão tentadora Gabrielle estava, enroscada e dormida na cama. No malditamente doce que era seu sabor em sua língua...
—O que vais fazer com ela, Lucan? —Esta vez, a expressão de preocupação proveio de onde se encontrava Gideon.
— Não podemos deixar que os renegados a encontrem. Seguro que ela chamou a atenção deles quando realizou essas fotos.
—E se os renegados se dão conta de que é uma companheira de raça... —acrescentou Dê, interrompendo-se A metade da frase. Outros assentiram com a cabeça.
—Ela estará mais segura aqui —disse Gideon—, sob o amparo da raça. Melhor ainda: deveria ser oficialmente admitida em um dos Refúgios Escuros.
—Conheço o protocolo —repôs Lucan, pronunciando cada palavra com lentidão. Sentia muita raiva ao pensar em que Gabrielle pudesse acabar nas mãos dos renegados, ou nas de outro membro da raça se fazia o que era devido e a mandava a um dos Refúgios Escuros da nação. Nenhuma das duas opções lhe parecia aceitável nesse momento a causa do sentimento possessivo que lhe bulia nas veias, irreprimivel embora não desejado.
Olhou a seus irmãos guerreiros com frieza.
—Essa mulher é responsabilidade minha a partir de agora mesmo. Decidirei qual é a melhor atuação neste tema.
Nenhum dos guerreiros lhe contradisse. Lucan não esperava que o fizessem. Em qualidade de membro de primeira geração, ele era mais antigo; em qualidade de guerreiro fundador dos de sua classe na raça, era quem mais coisas tinha demonstrado, com sangue e também com o aço. Sua palavra era lei, e todos os que se encontravam nessa habitação o respeitavam.

Dante ficou em pé, brincou com a Malebranche entre seus compridos e hábeis dedos e a embainhou com um ágil gesto.
—Faltam quatro horas para que caia o sol. Vou. —Olhou de soslaio a Rio e a Conlan.
— Alguém tem vontades de treinar antes de que as coisas fiquem interessantes?
Os dois machos se levantaram rapidamente, animados pela idéia, e detrás dirigir uma respeitosa saudação a Lucan, os três grandes guerreiros sairam do laboratório técnico e percorreram o corredor em direção a zona de treinamento do edifício.
—Tem algo mais sobre esse renegado de Seattle? —perguntou- Lucan a Gideon enquanto as portas de cristal se fechavam, quando ambos ficaram sozinhos no laboratório.
— Agora mesmo estou realizando uma comparação cruzada de todas as bases de registros. Só demorará um minuto em dar algum resultado. — Teclou umas ordens no computador.
— Bingo. Tenho uma coincidência procedente de uma informação GPS da Costa Oeste. Parece informação reunida anteriormente ao arresto. Joga uma olhada.
A tela do monitor se encheu com uma série de imagens noturnas por satélite de uma embarcação de pesca comercial aos subúrbios de Puget Sound. A imagem se centrava em um Sedan comprido e negro que se encontrava detrás de um maltratado edifício situado ao final do dique. Apoiado contra a porta posterior se encontrava o renegado que tinha conseguido escapar de Lucan fazia uns dias. Gideon passou rapidamente uma série de imagens que lhe mostravam conversando longamente, ou isso parecia, com alguém que se encontrava oculto detrás dos cristais negros dos guichês. À medida que as imagens avançavam, viram que a porta traseira do carro se abria e o renegado entrava no carro.
—Detenha —disse Lucan, fixando o olhar na mão do passageiro oculto.
— Pode deter todo este fotograma? Aumenta a zona da porta aberta do carro.

—Vou tentar .
A imagem aumentou de tamanho, mas Lucan quase não necessitava um aumento da imagem para confirmar o que via. Quase não se distinguia, mas aí estava. Na parte de pele exposta entre a grande mão do passageiro e o punho francês da camisa de manga larga se viam uns impressionantes dermoglifos que lhe delatavam como um membro de primeira geração.
Gideon também os tinha visto nesse momento.
—Maldição, olhe isso —disse, cravando a vista no monitor—. Nosso imbécil de Seattle desfrutava de uma companhia interessante.
—Possivelmente ainda o está fazendo —repôs Lucan.
Não havia nada pior que um renegado que tivesse sangue de primeira geração nas veias. Os membros de primeira geração caíam vitima da sede de sangue com maior rapidez que as últimas geração da raça, e eram uns temíveis inimigos. Se algum deles tinha intenção de liderar aos renegados e lhes conduzir a um levantamento, isso significaria o princípio de uma guerra infernal. Lucan já havia lutado em uma batalha assim uma vez, fazia muito tempo. Não desejava voltar a fazê-lo.
—Imprime tudo o que conseguiste, incluídos as ampliações de eroglifos.
—Já estão.
—Qualquer outra coisa que encontre sobre esses dois indivíduos, passa-me diretamente. Encarregarei-me disto pessoalmente.
Gideon assentiu com a cabeça, mas o olhar que lhe dirigiu por cima da arreios dos óculos expressava dúvida.

—Não pode pretender te encarregar de tudo isto você sozinho, já sabe.
Lucan lhe cravou um olhar escuro.
—Quem o diz?
Sem dúvida, o vampiro tinha em sua cabeça de gênio todo um discurso aberto da probabilidade e da lei da estatística, mas Lucan não se sentia de humor para lhe escutar. A noite se aproximava, e com ela se aproximava outra oportunidade de caçar a seus inimigos. Precisava empregar as horas que ficavam para esclarecer a cabeça, preparar as armas e decidir onde era melhor atacar. O depredador que havia nele se sentia impaciente e faminto, mas não por causa da batalha contra os Renegados.
Em lugar disso, Lucan se deu conta de que seus pensamentos se desviavam para um tranqüilo apartamento do Beacon Hill, para uma visita que nunca deveria ter realizado. Ao igual que o aroma de jasmim, o recordava da suavidade e a calidez da pele de Gabrielle, enredava-se com seus sentidos. Ficou tenso e seu sexo ficou em ereção somente pensando nela.
Foder.
Essa era a razão pela qual não a tinha posto sob o amparo da raça, aqui, no edifício. A certa distancia, ela era uma distração. Mas se encontrava em uma habitação próxima, seria um maldito desastre.
—Está bem? —perguntou-lhe Gideon, dando-a volta com a cadeira e ficando de cara a Lucan.
— É uma fúria muito grande a que tem em topo, amigo.
Lucan se arrancou da cabeça esses escuros pensamentos e se deu conta de que as presas lhe tinham alargado e que a visão lhe havia agudizado com o fechamento das pupilas. Mas não era a fúria o que lhe transformava. Era a luxúria, e tinha que saciá-la, antes ou depois. Com essa idéia lhe pulsando nas têmporas, Lucan tomou o telefone celular de Gabrielle, que se encontrava em cima de uma das mesas, e saiu do laboratório.

 

 

CONTINUA

Capítulo quatro

Gabrielle podia contar com uma só mão os sonhos erótico que tinha tido durante toda sua vida, mas nunca tinha experiente nada tão quente —por não dizer real— como a fantasia de orgia sexual que tinha desfrutado da noite anterior, cortesia de um Lucan Thorne virtual. Seu fôlego tinha sido a brisa noturna que penetrava pela janela aberta de seu dormitório do piso de acima. Seu cabelo era a escuridão de obsidiana que enchia as clarabóias, sobre sua cama. Seus olhos chapeados, o brilho pálido da lua. Suas mãos eram as ligaduras de seda de sua colcha, que enredavam seus pulsos e tornozelos, abriam seu corpo debaixo do dele e a sujeitavam com força.
Sua boca era puro fogo que lhe queimava cada centímetro da pele e a consumia como uma chama invisível. «Jasmim», tinha-a chamado ele, e o suave som dessa palavra vibrava contra a umidade de sua pele, o quente fôlego dele formava redemoinhos os suaves cachos de pêlo de sua entre perna.
Ela se tinha retorcido e tinha gemido dominada pela habilidade da língua dele, que a tinha submetido a uma tortura que ela desejava que fosse infinito. Mas tinha terminado, e muito logo. Gabrielle se tinha despertado em sua cama, só na escuridão, pronunciando quase sem fôlego o nome de Lucan, com o corpo esgotado e inerte, dolorido pelo desejo.
Ainda lhe doía o desejo e o que mais lhe preocupava era o fato de que o misterioso detetive Thorne lhe tivesse dado plantão.
Não era que seu oferecimento de passar por seu apartamento essa noite fosse nada que se parecesse com um encontro, mas ela tinha estado esperando voltar a lhe ver. Tinha interesse em saber mais a respeito dele dado que se havia mostrado tão inclinado a decifrá-la com um simples olhar. Além de conseguir algumas respostas mais sobre o que tinha presenciado essa noite fora da discoteca, Gabrielle tinha desejado conversar de algo mais com Lucan, possivelmente tomar um pouco de vinho e algo para jantar. O fato de que se depilou as pernas duas vezes e de que se pôs uma roupa interior negra e atrativa sob a camisa de seda de manga larga e dos escuros jeans era puramente acidental.

Gabrielle lhe tinha esperado até bem passadas as nove e então abandonou a idéia e chamou Jamie para ver se ele queria jantar com ela no centro da cidade.
Agora, sentado diante dela, ao outro lado da mesa, nessa sala cheia de janelas do bistro Ciao Bela, Jamie deixou na mesa a taça de pinot noire e olhou o prato de frutos do mar que ela quase não havia tocado.
—Estiveste enjoando a mesma parte da comida pelo prato durante os últimos dez minutos, carinho. Você não gosta?
—Sim, é genial. A comida sempre é incrível aqui.
—Então, é a companhia o que te desagrada?
Ela levantou o olhar para ele e negou com a cabeça.
—Absolutamente. Você é meu melhor amigo, já sabe.
—Certo —assentiu ele.
— Mas não me posso comparar com seu sonho erótico.
Gabrielle se ruborizou ao dar-se conta de que um dos clientes que se encontrava na mesa do lado olhava para eles.
—Às vezes é horrível, sabe? —disse a Jamie em um sussurro.
— Não deveria haver lhe contado isso.
—OH, carinho. Não se sinta incômoda. Se me tivessem dado uma moeda cada vez que me despertei excitado, chiando o nome de algum cara sexy...
—Eu não chiei seu nome. —Não, tinha-o pronunciado com o folego entrecortado e em um gemido, tão enquanto estava na cama como enquanto estava na ducha ao cabo de pouco tempo, ainda incapaz de tirar do corpo a sensação de Lucan Thorne.
— Era como se ele estivesse ali, Jamie. Justo ali, em minha cama, tão real que eu podia lhe tocar.
Jamie suspirou.
—Algumas garotas têm toda a sorte do mundo. A próxima vez que te encontre com seu amante em sonhos, seja generosa e me manda isso quando tenha terminado.
Gabrielle sorriu, sabendo que seu amigo não andava escasso no apartado romântico. Durante os últimos quatro anos tinha tido uma feliz relação monógama com o David, um vendedor de antiguidades que se encontrava nesses momentos fora da cidade por motivos de trabalho.
—Quer saber o que é o mais estranho disso tudo , Jamie? Aos levantar, esta manhã, a porta de entrada não estava fechada com chave.
— E?
—E você me conhece, nunca a deixo aberta.
As cuidadas e depiladas sobrancelhas do Jamie se juntaram, franzindo o cenho.
—O que quer dizer, que cre que esse cara forçou a porta de sua casa enquanto dormia?
—Parece uma loucura, sei. Um detetive da polícia que vem a minha casa a meia-noite para me seduzir. Devo estar perdendo a cabeça.
Disse-o com tom despreocupado, mas não era a primeira vez que se questionava em silêncio sua própria prudência. Não era a primeira vez nem muito menos. Com gesto ausente, brincou um momento com a manga da blusa enquanto Jamie a observava. Ele se sentia preocupado nesse momento, o qual somente aumentava a inquietação que Gabrielle sentia sobre o tema de sua possível instabilidade mental.

—Olhe, carinho. Passaste muita tensão do fim de semana. Isso pode provocar coisas estranhas na cabeça. Estiveste preocupada e confundida. Possivelmente se esqueceu de fechar a porta.
—E o sonho?
—Somente isso... Um sonho. Somente se trata de sua mente curvada que tenta tranqüilizar-se, relaxar-se.
Gabrielle baixou a cabeça em um gesto automático de afirmação.
—Exato. Estou segura de que só é isso.
Se pudesse aceitar que a explicação de tudo era tão simples como seu amigo fazia que parecesse... Mas uma sensação na boca do estômago rechaçava a idéia de que ela tivesse esquecido de fechar a porta. Ela nunca faria uma coisa assim, simplesmente, por estressada e confundida que estivesse.
—Né. —Jamie alargou o braço por cima da mesa para tomar a mão.
— Vais estar bem, Gab. Já sabe que pode me chamar a qualquer hora, verdade? Estarei contigo, sempre o estarei.
—Obrigado.
Lhe soltou a mão, tomou o garfo e fez um gesto em direção a seu fruto do mar.
—Bom, vais comer um pouco mais ou posso começar a limpar seu prato agora?
Gabrielle trocou seu prato meio cheio pelo dele, completamente vaziu.
—Tudo para ti.

Enquanto Jamie se concentrava na comida fria, Gabrielle apoiou o queixo em uma mão e tomou um comprido gole de sua taça de vinho. Enquanto bebia, brincou com os dedos em cima das ligeiras marcas que descobriu no pescoço essa mesma manhã depois de tomar banho. A porta aberta não era o mais estranho que se encontrou essa manhã: as duas marca idênticas que se viu debaixo da orelha se levaram o prêmio, sem dúvida nenhuma.
Essas pequenas perfurações não tinham sido o bastante profundas para lhe transpassar a pele, mas aí estavam. Havia duas, a uma distância equitativa, no ponto onde o pulso lhe pulsava com mais força quando o apalpava com os dedos. Ao princípio se disse que possivelmente havia se arranado a si mesmo enquanto dormia, possivelmente a causa do sonho estranho que tinha tido.
Mas, entretanto, essas marcas não pareciam arranhões. Pareciam... outra coisa.
Como se alguém, ou algo, tivesse estado a ponto de lhe morder a carótida.
Uma loucura.
Isso era, e tinha que deixar de pensar dessa maneira antes de fazer-se mais mal a si mesmo. Viu-se obrigada a centrar-se e a deixar de recrear-se em fantasias delirantes sobre visitantes a meia-noite e monstros de filme de terror que não era possível que existissem na vida real. Se não tomava cuidado, acabaria como sua mãe biológica.
—OH, Meu deus, me dê uma bofetada agora mesmo porque sou um completo e profundo imbecil —exclamou Jamie de repente, interrompendo seus pensamentos.
— Continuo esquecendo-me de lhe dizer isso ontem recebi uma chamada na galeria sobre suas fotografias. Um peixe gordo do centro da cidade está interessado em uma amostra privada.
—Sério? De quem se trata?
Ele se encolheu de ombros.

—Não sei, carinho. A verdade é que não falei com o possível comprador, mas a partir da atitude estirada do ajudante do tipo, diria que seja quem é seu admirador, ele ou ela— nada na abundância do dinheiro. Tenho uma entrevista em um dos edifícios do distrito financeiro amanhã de noite. Falo-te de um escritório em uma cobertura, querida.
—OH, Meu deus —exclamou ela com incredulidade.
—Acredita. Super bom, amiga. Muito em breve será muito para um pequeno vendedor de arte como eu —brincou ele, compartilhando a excitação com ela.
Era difícil não sentir-se intrigada, especialmente depois de tudo o que lhe tinha passado durante os últimos dias. Gabrielle tinha conseguido uns fiéis e respeitáveis admiradores e ganhou uns quantos bons elogios por seu novo trabalho, mas uma amostra privada para um comprador desconhecido era o máximo.
—Que peças te pediu que levasse?
Jamie levantou a taça de vinho e brindou com a dela com um gesto burlesco de saudação.
—Todas, senhorita Importante. Cada uma das peças da coleção.
No telhado do um velho edifício de tijolos do ocupado distrito dos teatros da cidade, a lua se refletia na risada letal de um vampiro embelezado de negro. Agachado em sua posição perto da beirada, o guerreiro da raça girou a escura cabeça e levantou uma mão para fazer um sinal.
«Quatro renegados. Uma presa humana se dirige diretamente para eles.»
Lucan lhe dirigiu um gesto afirmativo com a cabeça a Dante e se afastou da saída de emergência do quinto piso, que tinha sido sua posição de vigilância durante a última meia hora. Baixou até a rua de abaixo com um ágil movimento, aterrissando em silêncio, como um gato. Levava uma dupla folha de combate nas costas que lhe sobressaía pelos ombros como os ossos das asas de um demônio. Lucan desencapou a arma de titânio quase sem emitir nenhum som e penetrou nas sombras da estreita rua lateral para esperar os acontecimentos dessa noite.

Eram ao redor das onze, várias mais tarde que a hora em que deveria ter passado pelo apartamento de Gabrielle Maxwell para lhe devolver o telefone celular, tal e como lhe disse que o faria. O aparelho ainda estava em posse de Gideon, no laboratório técnico, que estava processando as imagens para as contrastar com a Base de dados de Identificação Internacional da Raça.
Quanto a Lucan, não tinha nenhuma intenção de devolver o telefone celular a Gabrielle, nem em pessoa nem de nenhuma outra maneira. As imagens do ataque dos renegados não tinham que estar em mãos de nenhum ser humano, e depois da decepção que se levou no dormitório dela, quanto mais longe estivesse dessa mulher, melhor.
«Uma maldita companheira de raça.»
Deveria havê-lo sabido. Agora que o pensava, ela tinha certas características que deveriam lhe haver dado a pista disso desde o começo. Como sua habilidade de ver através do véu do controle mental vampírico que enchia essa noite a sala de baile da discoteca. Ela tinha visto os renegados —ávidos de sangue no beco, e nas imagens indecifráveis do telefone celular— quando outros seres humanos não os havia podido ver. Logo, em seu apartamento, tinha demonstrado que tinha resistência ante a sugestão mental de Lucan para dirigir seus pensamentos, e ele suspeitava que se tinha sucumbido, tinha-o feito mais por causa de um desejo consciente do prazer que ele supunha para ela que por nenhuma outra coisa.
Não era nenhum secredo que as fêmeas humanas com o código genético único de companheiras de raça possuíam uma inteligência aguda e uma saúde perfeita. Muitas delas tinham uns assombrosos talento paranormal que aumentariam quando a companheira de raça se unisse por sangue com um macho vampiro.
Quanto a Gabrielle Maxwell, parecia possuir o dom de ter uma vista especial que lhe permitia ver o que o resto de seres humanos não podia ver, mas até onde chegava essa capacidade de visão era algo que ele não podia adivinhar. Lucan queria sabê-lo. Seu instinto de guerreiro exigia chegar ao fundo do assunto sem nenhuma demora.

Mas envolver-se com essa mulher, da forma que fosse, era o último que ele necessitava.
Então, por que não podia tirar-se de cima seu doce aroma, a suavidade de sua pele... sua provocadora sensualidade? Odiava o fato de que essa mulher tivesse despertado nele tal fragilidade, e seu estado de ânimo atual dificilmente melhorava pelo fato de que todo seu corpo doía pela necessidade de alimentar-se.
O único ponto claro essa noite era o constante ritmo dos saltos das botas dos renegados no pavimento, em algum lugar perto da entrada da rua lateral, que se dirigiam para ele.
O ser humano girou a esquina: encontrava-se a vários passos a frente deles, e era um homem. Jovem, saudável, vestia uma calça negra e alvo e uma túnica branca manchada que cheirava a cozinha de restaurante e a um suor repentino de ansiedade. O cozinheiro olhou por cima do ombro e viu que os quatro vampiros foram ganhando terreno. Um palavrão pronunciado em tom nervoso e atravessou a escuridão.
O humano voltou a girar a cabeça e caminhou mais depressa, com os punhos apertados e ambos grudado no corpo e os olhos muito abertos e cravados na estreita greta do asfalto que havia sob seus pés.
—Não faz falta que corra, homenzinho —lhe provocou um dos Renegados em um tom rouco como o som da areia fina contra o chão.
Outro deles emitiu um chiado agudo e se colocou a cabeça de seus três companheiros.
—Sim, não te escape agora. Tampouco é que vás chegar muito longe.

As risadas dos renegados ressonaram nos edifícios que flanqueavam a estreita rua.
—Merda —sussurrou o ser humano quase sem respiração. Não se voltou somente continuou para frente a passo rápido, a ponto quase de lançar-se a uma frenética, mas inútil, carreira.
À medida que o aterrorizado ser humano lhe aproximava, Lucan saiu da escuridão dando um passo e ficou em pé com as pernas abertas com os braços abertos a ambos os lados de seu corpo, bloqueou a rua com seu corpo ameaçador e suas espadas as gema. Dirigiu um frio sorriso aos renegados com as presas ameaçadoras, antecipando a luta que se morava.
—Boa tarde, senhoritas.
—OH, Jesus! —exclamou o ser humano. Deteve-se de forma brusca e olhou a Lucan o rosto com expressão de horror. Os joelhos cederam e caiu no chão,
— Merda!
—Te levante. —Lucan lhe dirigiu um breve olhar enquanto o jovem se esforçava por ficar em pé.
— Vai daqui.
Esfregou uma das afiadas folhas contra a outra diante dele e encheu a rua em sombras com o áspero som metálico do aço endurecido e letal. Detrás dos quatro renegados, Dante caiu ao asfalto e se agachou antes de levantar seu metro noventa e oito de altura. Não levava nenhuma espada, mas ao redor da cintura levava um cinturão de pele no qual levava sujeitas uma série de armas de mão letais, entre elas um par de folhas curvadas e afiadas como folhas de barbear que se convertiam em uma extensão infernal de suas mãos, incrivelmente rápidas. Malebranche ou prolongações diabólicas as chamava, e efetivamente eram umas garras do diabo. Dante as teve colocadas nas mãos em um momento: era um vampiro que sempre estava a ponto para entrar em um combate corpo a corpo.
—OH, Meu deus —gritou o ser humano com voz trêmula ao dar-se conta do perigo que lhe rodeava. Olhou a Lucan com a boca aberta e, com mãos trementes, rebuscou entre suas roupas tirou uma carteira do bolso traseiro da calça e a atirou ao chão.
— Toma-a, cara! Pode ficar mas não me mate, suplico-lhe isso!

Lucan manteve os olhos fixos nos quatro renegados, que nesses momentos estavam tomando posições e preparavam as armas.
—Te largue daqui. Agora.
—É nosso —vaiou um dos renegados. Uns olhos amarelos se cravaram fixamente em Lucan com puro ódio, as pupilas se reduziram a duas famintas ranhuras verticais. De suas largas presas lhe gotejava a saliva, outra prova do grande vício do vampiro pelo sangue.
Ao igual que os seres humanos podiam acabar dependendo de um poderoso narcótico, a sede de sangue também era destrutivo para a raça. A fronteira entre a necessidade de satisfazer a fome e a constante overdose de sangue se cruzava com facilidade. Alguns vampiros entravam nesse abismo de forma voluntária, enquanto que outros sucumbiam a essa enfermidade por inexperiência ou por falta de disciplina pessoal. Se chegava muito longe, e durante muito tempo, um vampiro se convertia na categoria de renegado, igual a esses ferozes monstros que grunhiam frente a Lucan nesses momentos.
Ansioso por convertê-los em cinzas, Lucan juntou com um golpe seco as duas folhas e cheirou a faísca de fogo que se criou quando os dois aços se encontraram.
O ser humano ainda se encontrava ali, atordoado pelo medo, dirigindo primeiro a cabeça para os renegados, que avançavam para ele, e agora para Lucan, que lhes esperava com atitude inquebrável. Esse momento de dúvida ia custar lhe a vida, mas Lucan apartou esse pensamento com frieza. O ser humano não era assunto dele. Quão único importava era eliminar a esses chupadores aditivos de sangue e ao resto dos doentes de sua raça.
Um dos renegados se passou uma mão suja por cima dos lábios babantes.
—Te aparte, idiota. Deixa que nos alimentemos.

—Esta noite não —grunhiu Lucan.
— Não em minha cidade.


—Sua cidade? —O resto deles se burlou e o renegado que ia em cabeça cuspiu no chão, Aos pés de Lucan.
— Esta cidade nos pertenece . Dentro de muito pouco, possuiremo-la por completo.
—Exato —acrescentou outro dos quatro.
— Assim parece que é você quem entrou em um território alheio.
Finalmente, o ser humano recuperou certa inteligência e começou a retirar-se, mas não chegou muito longe. Com uma velocidade incrível, um dos renegados alargou uma mão e agarrou ao homem pela garganta. Ele levantou do chão e lhe segurou no ar: as botas altas do homem ficaram a dois centímetros do chão. O ser humano grunhiu e suplicou, lutando com ferocidade enquanto o renegado lhe apertava o pescoço com mais força, lhe estrangulando lentamente com a mão nua. Lucan o observou, imperturbável, inclusive quando o vampiro deixou cair sua retorcida presa e lhe fez um buraco no pescoço com os dentes.
Pela extremidade do olho, Lucan viu que Dante se aproximava sigilosamente aos renegados por detrás. Com as presas estendidas, o guerreiro se lambeu os lábios, ansioso por entrar na tarefa. Não ia sentir se defraudado. Lucan atacou primeiro, e logo a rua explodiu com um estrondo de metal e de ossos quebrados.
Enquanto Dante lutava como um demônio saído do inferno —com as diabólicas folhas extensíveis cintilando a cada movimento, soltando gritos de guerra que rasgavam a noite—, Lucan manteve um frio controle e uma precisão letal. Um a um, os quatro renegados sucumbiram sob os golpes de castigo dos guerreiros. O beijo das folhas de titânio se expandia como um veneno a toda velocidade pelo corrompido sistema sangüíneo dos renegados, acelerando sua morte e provocando as rápidas mudanças nos estados de decomposição característicos da morte dos renegados.
Quando tiveram terminado com seus inimigos, quando seus corpos se reduziram de carne a osso e de osso a cinza fumegante, Lucan e Dante foram ver os restos do outro açougue da rua.
O ser humano estava imovel e sangrava profundamente por uma ferida que tinha na garganta.

Dante se agachou ao lado do homem e cheirou seu destroçado corpo.

—Está morto. Ou o vai estar dentro de um minuto.
O aroma do sangue derramado encheu as fossas nasais de Lucan com a força de um murro no ventre. Suas presas, estendidas já por causa da ira, agora pulsavam pelo desejo de alimentar-se. Baixou a vista e observou com desgosto ao humano moribundo. Apesar de que tomar o sangue era necessário para ele, Lucan desprezava a idéia de aceitar os refugos dos renegados, tivessem a forma que tivessem. Preferia conseguir o seu sustento dos serviçais anfitriões que ele mesmo elegia ali onde podia, apesar de que esses escassos bocados somente conseguiam despertar uma fome mais profunda.
Antes ou depois, todo vampiro tinha que matar.
Lucan não tentava negar sua natureza, mas nas ocasiões em que matava, o fazia seguindo sua própria eleição, seguindo sua próprias regras. Quando procurava uma presa, elegia principalmente criminosos, traficantes de droga, assassinos e outra gente de má vida. Era judicioso e eficiente e nunca matava pelo prazer de fazê-lo. Todos os da raça seguiam um código de honra similar; isso era o que lhes distinguia de seus irmãos os renegados, que se tinha separado deles ao rebelar-se a essa lei.
Sentiu que lhe esticava o ventre: o aroma do sangue voltou a fazer-se presente em suas fossas nasais. A saliva lhe começou a gotejar da boca ressecada.
Quando se tinha alimentado pela última vez?
Não podia recordá-lo: fazia bastante tempo. Vários dias, pelo menos, e não o suficiente para que lhe durasse. Tinha pensado acalmar parte da fome —tão carnal como de sangue— com a Gabrielle Maxwell a outra noite, mas essa idéia tinha tomado um giro repentino. Agora tremia por causa da necessidade de alimento, e essa necessidade era muito forte para pensar em algo exceto em cobrir as necessidades básicas de seu corpo.

—Lucan. — Dante apertou os dedos no pescoço do homem, procurando o pulso. As presas do vampiro estavam estendidos, afiados depois da batalha e por causa da reação fisiológica ante o forte aroma desse líquido escarlate que emanava do homem.
— Se esperarmos muito mais, o sangue terá morrido também.
E não lhes serviria de nada, posto que somente o sangue fresco que emanava das veias dos seres humanos podia saciar a fome de um vampiro. Dante esperou, inclusive apesar de que era óbvio que quão único desejava era baixar a cabeça e tomar sua parte desse homem, que tinha sido muito idiota para escapar quando tinha tido a oportunidade de fazê-lo.
Mas Dante esperaria, inclusive embora tivesse que deixar esbanjar esse sangue, dado que era um protocolo não escrito que as gerações mais jovens de vampiros não se alimentavam na presença dos mais velhos, especialmente se esse vampiro mais velho pertencia a categoria de «primeira geração» da raça e estava faminto.
A diferencia de Dante, o pai de Lucan era um dos Antigos, um dos oito guerreiros extraterrestres que tinham chegado de um planeta escuro e distante e se estrelaram milhares de anos atrás contra a superfície inóspita e implacável do planeta Terra. Para sobreviver, alimentaram-se do sangue dos seres humanos e tinham dizimado populações inteiras por causa de sua fome e de sua bestialidade. Em alguns estranhos casos, esses conquistadores estrangeiros se haviam emparelhado com êxito com fêmeas humanas, as primeiras companheiras de raça, que tinham gerado uma nova geração da raça dos vampiros.
Esses selvagens antepassados de outro mundo tinham desaparecido por completo, mas sua origem ainda continuava vivendo, como Lucan e uns quantos mais disseminados pelo mundo. Representavam o estádo mais próximo a realeza na sociedade dos vampiros: eram respeitados e não pouco temidos. A grande maioria dos da raça eram jovens, nascidos de uma segunda, terceira e, alguns, de uma décima geração.
A fome era mais urgente nos de «primeira geração». Também o era a propensão a ceder ante a sede de sangue e a converter-se em um renegado. A raça tinha aprendido a viver com esse perigo. A maioria deles tinha aprendido a dirigi-lo: tomavam sangue somente quando o necessitavam e nas mínimas quantidades necessárias para a sustentação. Tinham que fazê-lo assim, porque uma vez apanhados pela sede de sangue, não havia maneira de voltar atrás.

Os olhos afiados de Lucan caíram sobre a retorcida figura humana que ainda respirava ligeiramente, tombada no pavimento do chão. Ouviu um grunhido animal que provinha de sua própria garganta. Quando Lucan se aproximou com compridos passados em direção ao aroma do sangue vivo vertido no chão, Dante fez uma ligeira saudação com a cabeça e se apartou para permitir a seu superior que se alimentasse.


Capítulo cinco
Ele nem sequer se preocupou de chamá-la e lhe deixar uma mensagem a outra noite.
Típico.
Provavelmente tinha um encontro muito importante com seu mando à distancia e seu programa de poderes paranormais. Ou possivelmente, quando se houve marchado de seu apartamento a outra tarde, tinha conhecido a alguém mais e tinha recebido uma oferta mais interessante que devolver o telefone celular a Gabrielle no Beacon Hill.
Diabos, inclusive era possível que estivesse casado, ou que tivesse alguma relação com alguém. Não o tinha perguntado, e se o houvesse preguntado, isso não tivesse garantido que lhe houvesse dito a verdade. Lucan Throne, certamente, não era distinto a nenhum homem. Exceto pelo fato de que era... diferente.
Pareceu-lhe que era muito diferente a qualquer a quem houvesse conhecido até esse momento. Um homem muito reservado, quase fechado, que dava uma sensação extranhamente perigosa. Ela não podia imaginar sentado em uma poltrona diante do televisor, igual que tampouco lhe podia imaginar junto em uma relação séria de namoro, por não falar de uma esposa e uma família. O qual voltava a recordar a idéia de que seguramente ele teria recebido uma oferta mais interessante e tinha decidido desprezar a ela. E essa idéia lhe doía muito mais do que deveria.
«te esqueça dele», repreendeu-se Gabrielle quase sem fôlego enquanto aproximava o Cooper Mini negro à uma lateral da tranqüila rua local e desligava o motor. A bolsa com sua câmara e seu equipamento fotográfico se encontrava no assento do co-piloto. Agarrou-a, e tomou tambem uma pequena lanterna do porta-luvas, guardou as chaves na jaqueta e saiu do carro.

Fechou a porta sem fazer ruído e jogou uma rápida olhada ao seu redor. Não havia nem uma alma a vista, o qual não era surpreendente dado que eram quase as seis da manhã e que o edifício, no qual estava a ponto de entrar de forma ilegal e de fotografar, fazia vinte anos que estava fechado. Andou seguindo o caminho de pavimento gretado e girou a direita, cruzou uma sarjeta e subiu até um terreno cheio de carvalhos que formavam como uma densa cortina ao redor do velho hospital psiquiátrico.
O amanhecer começava a elevar-se pelo horizonte. A luz era fantasmagórica e etérea, como uma neblina úmida rosada e azulada que amortalhava essa estrutura gótica com um brilho de outro mundo. Apesar de estar pintado em tons claros, esse lugar tinha um ar ameaçador.
O contraste era o que a tinha atraído até essa localização essa manhã. Tomar as imagens ao anoitecer tivesse sido a eleição mais natural para concentrar-se na qualidade ameaçadora dessa estrutura abandonada. Mas era a justaposição da cálida luz do amanhecer com o tema frio e sinistro o que atraía a Gabrielle enquanto se detinha para tirar a câmara da bolsa que tinha pendurada do ombro. Tirou umas seis fotos e logo voltou a pôr a tampa a lente para continuar a caminhada em direção ao fantasmagórico edifício.
Uma alta cerca de arame apareceu diante dela, impedindo que os exploradores curiosos como ela entrassem na propriedade. Mas Gabrielle sabia que tinha um ponto débil escondido. Tinha-o descoberto a primeira vez que tinha vindo ao lugar para tirar umas fotos de exterior. Se apressou seguindo a linha da cerca até que chegou ao extremo sudoeste da mesma, onde se agachou até o chão. Ali, alguém tinha talhado discretamente o arame e tinha formado uma abertura o bastante grande para que um adolescente curioso pudesse abrir-se passo, ou para que uma fotógrafa decidida, e que tinha tendência a interpretar os sinais de «Não passar» e «Só pessoal autorizado» como sugestões amistosas em lugar de leis inquebráveis, penetrasse por ela.
Gabrielle abriu a parte de arame talhado, lançou o equipamento para o outro lado e se arrastou como uma aranha, sobre o ventre, Através da baixa abertura. Quando ficou em pé, ao outro lado da cerca, sentiu que as pernas lhe tremiam por causa de uma repentina apreensão. Deveria estar acostumada a este tipo de operações encobertas, de explorações em solitário: muito freqüentemente, sua arte dependia de sua coragem para encontrar lugares desolados, que alguns qualificariam de perigosos. Esse arrepiante psiquiátrico podia, certamente, qualificar-se como perigoso,
pensou enquanto deixava vagar o olhar por um grafite pintado com aerosol ao lado da porta de entrada que dizia más vibrações.
—Já pode dizê-lo —sussurrou em voz muito baixa. Enquanto se sacudia as agulhas de pinheiro e a terra da roupa, com gesto automático levou uma mão até o bolso dianteiro de seu jeans em busca do celular. Não estava ali, é obvio, já que ainda estava em poder do detetive Thorne. Outra razão para sentir-se aborrecida com ele por havê-la feito esperar a outra noite.
Possivelmente não deveria ser tão dura com o menino, pensou, repentinamente desejosa de concentrar-se em algo distinto ao mau pressentimento que a atendia agora que se encontrava dentro do terreno do psiquiátrico. Possivelmente Thorne não se apresentou porque algo lhe tinha acontecido no trabalho.
E se tinha sido ferido em cumprimento do dever e não acudiu tal e como tinha prometido porque se encontrava de alguma forma encapacitado de chamar ? Possivelmente não tinha chamado para desculpar-se nem para explicar sua ausência porque não podia fazê-lo fisicamente.
Exato. E possivelmente ela tinha comprovado seu próprio cérebro com as bra-gás do mesmo segundo em que tinha posto os olhos nesse homem.
Burlando-se de si mesmo, Gabrielle recolheu suas coisas e caminhou em direção a imponente arquitetura do edifício principal. Uma pálida pedra calcária se elevava para o céu em uma levantada torre central, remota em uns picos e agulhas dignos da melhor catedral gótica. Ao seu redor havia um extenso recinto de paredes de tijolo vermelho, cujo teto estava composto por telhas ordenadas em um desenho como de asas de morcego, comunicado entre eles por passarelas e arcos que formavam um claustro coberto.
Mas por impressionante que fosse essa estrutura, não havia forma de tirar-se de cima a sensação de uma ameaça latente, como se mil pecados e mil segredos se apertassem detrás dessas descascadas paredes e janelas com parte de cristais quebrados. Gabrielle caminhou até o ponto onde a luz era melhor e tomou umas quantas fotos. Não havia nenhuma maneira de entrar por aí: a porta principal estava fechada com ferrolho e com travessas de madeira. Se queria entrar para realizar algumas fotos do interior —e, definitivamente, sim queria—, tinha que dar a volta até a parte traseira e provar sorte com alguma janela que estivesse a pé de rua ou com alguma porta do porão.
Baixou deslizando-se por um aterro em pendente para a parte posterior do edifício e encontrou o que estava procurando: umas portinhas de madeira ocultavam três janelas que era muito provável que se abrissem a uma zona de serviço ou a um armazém. Os ferrolhos estavam oxidados, mas não estavam fechados e se abriram com facilidade quando se serve de ajuda de uma pedra que encontrou ali ao lado. Atirou da coberta de madera das janelas, levantou o pesado painel de cristal e o escorou, aberto, com os ferrolhos.
Fez uma varredura geral iluminando-se com a lanterna para assegurar-se de que o lugar estava vazio e de que não ia desabar sobre sua cabeça imediatamente, e penetrou através da abertura. Ao saltar do marco da janela, o solado de suas botas pisaram em cristais quebrados e pó e lixo acumulados durante anos. Esse porão de blocos de concreto tinha uns três metros e meio de comprimento e desaparecia na escura zona que ficava sem iluminar. Gabrielle dirigiu o magro feixe de luz de sua lanterna para as sombras do outro extremo do espaço. Percorreu com ele a parede e o deteve sobre uma velha porta de serviço em cuja superfície se podia ler o seguinte pôster: acesso restringido.
—O que te aposta? —sussurrou enquanto se aproximava da porta. Efetivamente, não estava fechada com chave.
Abriu-a e projetou a luz para o outro lado da porta, onde se abria um comprido corredor parecido a um túnel. Uns suportes de fluorescente quebrados penduravam do teto; alguns dos painéis que os haviam coberto tinham caido sobre o chão de qualidade industrial, onde jaziam quebrados e cobertos de pó. Gabrielle entrou nesse espaço escuro, insegura do que estava procurando e com certo temor do que poderia encontrar nas desertas tripas desse psiquiátrico.
Passou por diante de uma porta aberta do corredor e a luz do flash iluminóu uma cadeira de dentista de vinil vermelho, um pouco gasta, que se encontrava colocada no centro da habitação, como se esperasse ao próximo paciente. Gabrielle tirou a câmara de sua capa e tomou um par de rápidas fotos. Logo continuou para diante e passou ante uma série de habitações de revisão e de tratamento. Devia encontrar-se na ala médica do edifício.

Encontrou uma escada e subiu dois lances até que chegou, para sua complacencia, a torre central onde umas grandes janelas deixavam entrar a luz da manhã em generosas quantidades.
Através da lente da câmara olhou por cima de amplos terrenos e pátios flanqueados por elegantes edifícios de tijolo e de pedra calcária. Realizou umas quantas fotos do lugar, apreciando tanto sua arquitetura como o quente jogo que a luz do sol fazia contra tantas sombras fantasmagóricas. Resultava estranho olhar para fora do confinamento de um edifício que antigamente tinha albergado a tantas almas perturbadas. Nesse inquietante silêncio, Gabrielle quase podia ouvir as vozes dos pacientes, de gente que, simplesmente, não tinha a possibilidade de marchar-se caminhando dali como ela faria então.
Gente como sua mãe biológica, uma mulher a quem Gabrielle não tinha conhecido nunca e da qual não sabia nada mais que o que tinha ouvido de menina nas conversações apagadas que os trabalhadores sociais e as famílias de acolhida mantiveram e que ao final, uma por uma, devolveram ao sistema como se fosse um animal doméstico que houvesse demonstrado ser mais problemático do que se podia suportar. Tinha perdido a conta do número de lugares aonde a tinham enviado a viver, mas as queixa contra ela quando a devolviam sempre eram as mesmas: inquieta e introvertida, fechada e desconfiada, socialmente disfuncional com tendência a atitudes autodestrutivas. Tinha ouvido os mesmos qualificativos dirigidos para sua mãe, aos quais acrescentavam as categorias de paranóica e delirante.
Quando os Maxwell apareceram em sua vida, Gabrielle tinha passado dezenove dias em uma casa de acolhida sob a supervisão de um psicólogo designado pelo Estado. Não tinha nenhuma expectativa e ainda menos esperanças de que fora capaz de conseguir que outra situação de acolhida funcionasse. Francamente, já não lhe importava. Mas seus tutores tinham sido pacientes e bondosos. Acreditando que possivelmente a ajudasse a dirigir a confusão emocional, tinham-na ajudado a conseguir um punhado de documentos judiciais que tinham que ver com sua mãe.
Essa mulher tinha sido uma adolescente anônima, acreditava-se que era uma sem teto, que não tinha identificação, não lhe conhecia família nem conhecidos exceto pela menina recém-nascida que tinha abandonado, chorando e angustiada, em um contêiner de lixo da cidade em uma noite de agosto. A mãe de Gabrielle tinha sido maltratada, e sangrava por umas profundas feridas no pescoço que ela mesma se piorou rasgando-a, vítima da histeria e do pânico.

Em lugar de persegui-la pelo crime de haver abandonado seu bebê, o tribunal a tinha considerado incapacitada e a tinham enviado a umas instalações que certamente não eram muito diferentes a esta em que se encontrava ela agora. Quando ainda não levava nem um mês no centro institucional, pendurou-se com um lençol deixando detrás dela inumeráveis pergunta que nunca teriam resposta.
Gabrielle tentou tirar-se de cima o peso dessas velhas feridas, mas enquanto estava ali em pé e olhava através dos brumosos cristais das janelas, todo seu passado apareceu em primeiro plano em sua mente. Não queria pensar em sua mãe, nem na desgraçada circunstância de seu nascimento, nem nos escuros e solitários anos que lhe seguiram. Precisava concentrar-se em seu trabalho. Isso era o que lhe tinha permitido continuar para diante, depois de tudo. Era o único constante em sua vida, e as vezes tinha sido quão único de verdade tinha neste mundo.
E era suficiente.
Durante a maior parte do tempo, era suficiente.
«Toma umas quantas fotos e te largue daqui», disse a si mesmo, como brigando-se.
Levantou a câmara e tomou um par de fotos mais através do delicado trabalho de metal que se entrelaçava entre as duas janelas de cristal.
Pensou em partir pelo mesmo caminho por onde tinha entrado, mas se perguntou se possivelmente poderia encontrar outra saída em algum ponto do piso de abaixo do edifício central. Voltar a baixar ao escuro porão não lhe resultava especialmente atrativo.
Estava inquietando a si mesmo pensando em coisas sobre a loucura de sua mãe, e quanto mais momento se entretivera nesse velho psiquiátrico, mais lhe foram pôr os cabelos de ponta. Abriu a porta da escada e se sentiu um pouco melhor ao ver a tênue luz que se filtrava para dentro pelas janelas em algumas das habitações e nos corredores adjacentes.

Era óbvio que o artista do grafite de más vibrações tinha chegado até ali também. Em cada uma das quatro janelas havia uns extranhos símbolos realizados com pintura negra. Provavelmente eram os marcos de alguma turma, ou as assinaturas estilizadas dos meninos que tinham estado ali antes que ela. Em uma esquina havia uma lata de aerosol atirada, ao lado de umas bitucas de cigarros, de umas garrafas de cerveja quebrada e outros restos.
Gabrielle tomou a câmara e procurou um ângulo adequado para a fotografia que tinha em mente. A luz não era muito boa, mas com um lente diferente possivelmente resultasse interessante. Rebuscou na bolsa à procura das lentes e nesse momento ficou gelada ao ouvir um zumbido distante que procedia de algum ponto por debaixo de seus pés. Era muito frouxo, mas soava como o de um elevador, o qual era impossível. Gabrielle voltou a introduzir o equipamento na bolsa sem deixar de prestar atenção aos vagos sons que sentia ao seu redor. Todos os nervos de seu corpo se haviam esticado com uma gelada sensação de apreensão.
Não se encontrava sozinha ali dentro.
Agora que o pensava, notou que uns olhos a olhavam desde algum ponto próximo. Essa inquietante tira de consciência lhe pôs os cabelos de ponta na nuca e nos braços. Devagar, girou a cabeça e olhou para trás. Foi então quando o viu: uma pequena câmara de vídeo de circuito fechado montada em uma sombria esquina elevada do corredor, e que vigiava a porta da escada que ela tinha atravessado fazia somente uns minutos.
Possivelmente não estivesse em funcionamento e fosse somente algo que tinha ficado ali dos dias em que o psiquiátrico estava ainda em funcionamento. Essa teria sido uma idéia consoladora se a câmara não tivesse um aspecto tão cuidado e compacto, tão de tecnologia de vanguarda em segurança. Para comprová-lo, Gabrielle se aproximou dela e se colocou quase diretamente diante da câmara. Sem fazer nenhum ruído, a base da câmara girou e colocou a lente no ângulo adequado até que ficou enfocado no rosto de Gabrielle.

«Merda — disse, olhando esse olhos negro que não piscava.
—Pega.»
Das profundidades do edifício vazio, ouviu um rangido metálico e o estrondo de uma porta pesada. Era evidente que esse psiquiátrico abandonado não estava tão abandonado depois de tudo. Pelo menos tinham sistema de segurança, e a polícia de Boston poderia aprender algo dessa lição sobre o rápido tempo de reação dessa gente.
Soaram uns passos a um ritmo compassado: alguém que se encontrava vigiando tinha começado a dirigir-se para ela. Gabrielle se dirigiu para a escada e saiu disparada escada abaixo enquanto a bolsa a golpeava no quadril. À medida que baixava, a luz diminuía. Tomou a lanterna com a mão, mas não queria utilizá-la por medo de que funcionasse como um aviso de onde estava e o segurança pudesse segui-la. Chegou ao final da escada, empurrou a porta de metal e se precipitou para a escuridão do corredor do piso inferior.
Ouviu que a porta monitorada da escada se abria com um rangido e que seu perseguidor se precipitava para baixo, detrás dela, correndo com rapidez e ganhando terreno rapidamente.
Finalmente, chegou a porta de serviço do final do corredor. Lançou-se contra o aço frio e correu pelo escuro porão até a pequena janela que se encontrava aberta em uma das laterais. A corrente de ar frio lhe deu força: apoiou as mãos no marco da janela e se elevou. Deixou-se cair ao outro lado da janela, aterrissando fora na terra cheia de pedras.
Agora não podia ouvir seu perseguidor. Possivelmente lhe tinha avoado nos escuros de labirínticos corredores. Deus, isso esperava.
Gabrielle ficou em pé ao momento e correu em direção a abertura da cerca de arame. Encontrou-a rapidamente. colocou-se engatinhando e se introduziu pela fenda no arame com o coração desbocado e a adrenalina lhe correndo pelas veias.

Tinha muito pânico: em sua precipitação por escapar, arranhou-se um lado do rosto com um arame afiado da cerca. O corte lhe queimava na bochecha e sentiu o rastro quente de sangue que lhe baixava ao lado da orelha. Mas não fez caso da abrasadora ardência nem do golpe que se deu com a bolsa da equipamento fotográfica enquanto se inclinava sobre seu ventre para sair, através da cerca, para a liberdade.
Quando a teve atravessado, Gabrielle ficou em pé e correu enlouquecida pelo largo e escarpado terreno dos subúrbios. Somente se permitiu jogar uma rápida olhada para trás: o suficiente para ver que o enorme guarda de segurança ainda estava ali. Teria saído por algum lugar do piso principal e agora corria detrás dela como uma besta recém saída do inferno. Gabrielle tragou saliva de puro pânico ao lhe ver. O tipo parecia um tanque, facilmente pesava cento e dez quilogramas de puro músculo, e tinha uma cabeça grande e quadrada com o cabelo talhado ao estilo militar. Esse tipo enorme correu até a alta cerca e se deteve ao chegar a ela: golpeou-a com os punhos enquanto Gabrielle entrava correndo pela densa cortina de árvores que separava a propriedade da estrada.
O carro se encontrava a um lado do tranqüilo asfalto, justo onde o tinha deixado. Com mãos trementes, Gabrielle se esforçou por abrir a porta. sentia-se petrificada de pensar que esse tipo carregado de esteroides pudesse apanhá-la. Seu medo parecia irracional, mas isso não impedia que a adrenalina lhe corresse por todo o corpo. Afundou-se no acento de pele do Mini, pôs a chave no contato e ligou o motor. Com o coração acelerado, pôs em marcha o pequeno carro, apertou a fundo o pedal de aceleração e se precipitou para a estrada, escapando com um chiado de pneumáticos sobre o asfalto e o conseguinte aroma de queimado dos mesmos.


Capítulo seis
A metade da semana, em plena temporada turística, os parques e avenidas de Boston estavam coalhados de humanidade. Os trens traziam as pessoas a toda velocidade dos subúrbios, a seus lugares de trabalho ou aos museus, ou aos inumeráveis pontos históricos que se encontravam por toda a cidade. Olheiros carregados com câmeras subiam aos ônibus que lhes levavam de excursão ou se colocavam em fila para subir as Ferris sobrecarregados que lhes levariam mais à frente do cabo.
Não muito longe da agitação do dia, oculto a uns nove metros sob uma mansão dos subúrbios da cidade, Lucan Thorne se inclinou sobre um monitor de tela plaina, no edifício dos guerreiros da raça, e pronunciou uma maldição. Os registros de identificação dos vampiros apareciam em tela a velocidade vertiginosa enquanto o programa de computador realizava uma busca na enorme base de dados internacional procurando coincidências com as fotos que Gabrielle Maxwell tinha tomado.
—Ainda nada? —perguntou, olhando de soslaio e com expressão impaciente a Gideon, o operador informático.
—Nada até o momento. Mas ainda se está realizando a busca. A Base de dados de Identificação Internacional tem uns quantos milhões de registros para comprovar. —Os agudos olhos azuis do Gideon cintilaram por cima da arreios dos elegantes óculos de sol— Lhes jogarei o laço a esses burros, não se preocupe.
—Não me preocupo nunca —repôs Lucan, e o disse de verdade. Gideon tinha um coeficiente intelectual que rompia todas as estatísticas e ao que se acrescentava uma tenacidade enorme. Esse vampiro era tanto um caçador incansavel como um gênio e Lucan se alegrava de lhe ter ao seu lado.
_Se você não for capaz de tirá-los a luz, Gideon, ninguém pode fazê-lo.
O gurú informático da raça, com sua coroa de cabelo curto e encrespado, dirigiu-lhe um sorriso fanfarrão e confiado.
—É por isso que levo os verdes grandes.

—Sim, um pouco parecido —disse Lucan enquanto se separava da tela, onde os dados não deixavam de aparecer sem parar.
Nenhum dos guerreiros da raça que se comprometeram a proteger a estirpe frente ao açoite dos renegados o fazia por nenhuma compensação. Nunca a tinham tido, desde que se organizaram pela primeira vez nessa aliança durante o que para os humanos foi a idade medieval. Cada um dos guerreiros tinha seus próprios motivos para ter eleito esse perigoso modo de vida, e alguns deles eram, tinha-se que admitir, mais nobres que outros. Como Gideon, que tinha trabalhado nesse campo de forma independente até que seus dois irmãos, que eram pouco mais que uns meninos, foram assassinados pelos renegados aos subúrbios do Refúgio Escuro de Londres. Então Gideon procurou a Lucan. Disso fazia três séculos, umas décadas mais ou menos. Incluso então a habilidade do Gideon com a espada somente encontrava rival na afiada estocada de sua mente. Tinha matado a muitos renegados em seus tempos, mas mais tarde, a devoção e a promessa íntima que fez a sua companheira de raça, Savannah, tinham-lhe feito abandonar o combate e empunhar a arma da tecnologia ao serviço da raça.
Cada um dos seis guerreiros que lutavam ao lado de Lucan tinha seu talento pessoal. Também tinham seus demônios pessoais, mas nenhum deles era do tipo muito sensível que permitiria que um louco lhes colocasse uma lanterna pelo traseiro. Algumas costumes estavam melhor se deixavam na escuridão e, provavelmente, o único que estava mais convencido disso que o próprio Lucan era um guerreiro da raça conhecido como Dante.
Lucan saudou o jovem vampiro quando este entrou no laboratório técnico de uma das numerosas habitações do edifício. Dante, ataviado com sua habitual vestimenta negra, levava umas calças de ciclista e uma camiseta ajustada que mostrava tanto as tatuagens a tinta como suas intrincadas marcas de pertençer a raça. Seus avultados bíceps mostravam uns sinais afiligranados que a olhos de qualquer humano pareciam símbolos e desenhos geométricos realizados em profundas tonalidades terra. Mas os olhos de um vampiro distinguiam esses símbolos claramente: eram dermoglifos, umas marcas naturais herdadas dos antepasados da raça, cuja pele sem cabelo se havia recoberto de uma pigmentação cambiante e de camuflagem.

Normalmente, esses glifos eram motivo de orgulho para a raça e eram seus únicos sinais de linhagem e de fila social. Os membros da primera geração, como Lucan, luziam essas marca em maior número e seus tons eram mais saturados. Os dermoglifos de Lucan lhe cobriam o torso, por diante e por detrás, descendiam até suas coxas e se extendíam pela parte superior dos braços, além de subir pela nuca e lhe cobrir o crânio. Como tatuagens viventes, os glifos trocavam de tom segundo o estado emocional de um vampiro.
Os glifos de Dante, nesse momento, tinham um tom bronze, avermelhado, que indicava que se alimentou recentemente e que se sentia saciado. Sem dúvida, depois de que ele e Lucan se separaram ao cabo de ter dado caça aos renegados a noite anterior, Dante tinha ido em busca da cama e da amadurecida e suculenta veia da nádega de uma fêmea anfitriã.
—Que tal vai? —perguntou enquanto se deixava cair em cima de uma cadeira e colocava um pé embainhado em uma bota em cima do escritório, diante dele.
—Acreditei que já teria caçado e classificado a esses bastardos, Gid.
O acento de Dante tinha restos da musicalidade de seus ancestrais Italianos ate do século XVIII, mas essa noite, o educado tom de voz de Dante delatava um timbre afiado que indicava que o vampiro se sentia inquieto e ansioso por entrar em ação. Para sublinhar esse fato, tirou uma de suas típicas facas de folha curvada da cilha que levava no quadril e começou a jogar com o gentil aço.
Chamava a essas folhas curvadas Malebranche ou prolongações diabólicas, em referência Aos demônios que habitam um dos nove níveis do inferno, embora as vezes Dante adotava esse nome como pseudónimo para si mesmo quando se encontrava entre os humanos. Essa era quase toda a poesia que esse vampiro tinha em sua alma. Em todo o resto era impenitente, frio e escuramente ameaçador.
Lucan admirava isso dele, e tinha que admitir que observar a Dante durante o combate, com essas folhas inclementes, era algo belo, o bastante formoso para deixar em ridículo a qualquer artista.

—Bom trabalho o da noite passada —disse Lucan, consciente de que uma adulação emitida por ele era algo estranho, inclusive embora estivesse merecendo.
— Me salvou o pescoço aí.
Não falava da confrontação que tinham tido com os renegados, mas sim do que tinha acontecido depois disso. Lucan tinha passado demasiado tempo sem alimentar-se e a fome era quase tão perigosa para os seus como o vício que açoitava aos renegados. O olhar de Dante denotava que compreendia o que lhe estava dizendo, mas deixou acontecer o tema com sua habitual e fria elegância.
—Merda —repôs, com uma sonora e profunda gargalhada.
—.Depois de todas as vezes que você me há coberto as costas? Esquece-o, cara. Só te devolvia um favor.
Nesse momento, as portas de cristal da entrada do laboratório se abriram com um zumbido surdo e dois mais dos irmãos de Lucan entraram. Eram um bom par. Nikolai, alto e atlético, de cabelo loiro como a areia, uns rasgos angulares e impactantes e uns olhos penetrantes e azuis como o gelo, que só eram um tom mais frios que o céu de sua Siberia natal. O mais jovem do grupo e com diferença, Niko, havia-se feito homem durante o que os humanos chamavam a Guerra Fria. Do berço tinha sido imparavel e agora se converteu em um buscador de sensações de alta voltagem e se encontrava em primeira fila da raça no que tinha que ver com armas, aparelhos, e tudo o que ficava no meio.
Conlan, pelo contrário, falava com suavidade e era sério: era um perito em tática. Ao lado da excessiva fanfarronice do Niko, resultava elegante como um gato grande. Seu corpo era como um muro de músculos, e o cabelo loiro, de cor areia, brilhava por debaixo do triangulo de seda negra com que se envolvia a cabeça. Esse vampiro pertencia a uma das últimas gerações da raça, era um jovem segundo o critério de Lucan, e sua mãe era uma humana filha de um capitão escocês. O guerreiro se movia com um porte quase de realeza.
Inclusive sua amada companheira de raça, Danika, dirigia-se a esse habitante das terras altas afetuosamente lhe chamando, com freqüência, «meu senhor» e essa fêmea não era precisamente servil.

—Rio está de caminho —anunciou Nikolai com um amplo sorriso que lhe formava duas covinhas nas bochechas. Olhou a Lucan e assentiu com a cabeça.
— Eva me há dito que te diga que poderemos dispor de seu homem somente quando ela tenha terminado com ele.
—Se é que fica algo —disse Dê, arrastando as palavras enquanto levantava uma mão para saudar outros com um suave roce das palmas prévio a um choque de nódulos.
Lucan saudou Niko e a Conlan da mesma maneira, mas se sentiu algo molesto pelo atraso de Rio. Não invejava a nenhum dos vampiros pela companheira de raça que tinham eleito, mas, pessoalmente, Lucan não encontrava nenhum sentido atar-se as demandas e responsabilidades de um vínculo de sangue com uma fêmea. Esperava-se que, em geral, a população da raça aceitasse a uma mulher para aparear-se e dar nascimento a seguinte geração, mas para a classe dos guerreros —para esses escassos machos que, de forma voluntária, haviam abandonado o santuário dos Refúgios Escuros para levar uma vida de luta processo de vincular-se por sangue era, para Lucan, uma frescura no melhor dos casos.
E no pior, era um convite ao desastre quando um guerreiro sentia a tentação de antepor os sentimentos para sua companheira por cima de seu dever para a raça.
—Onde está Tegan? —perguntou, ao dirigir seus pensamentos de forma natural para o último deles que faltava no edifício.
—Ainda não retornou —respondeu Conlan.
—Chamou de onde se encontra?
Conlan e Niko intercambiaram um olhar, e Conlan negou rapidamente com a cabeça:
—Nenhuma palavra.

—Esta é a vez que esteve mais tempo desaparecido em ação — assinalou Dê sem dirigir-se a ninguém em especial enquanto passava o dedo polegar pelo fio da folha curvada de sua faca.
—Quanto faz? Três, quatro dias?
Quatro dias, quase cinco.
Quem deles levava a conta?
Resposta: todos eles a levavam, mas ninguém pronunciou em voz alta a preocupação que se estendeu ultimamente em suas filas. Tal como estava o tema, Lucan tinha que esforçar-se para controlar a raiva que despertava nele cada vez que pensava no membro mais introvertido dos membros de seu quadro.
Tegan sempre preferia caçar em solitário, mas seu caráter afastado começava a resultar uma carga para outros. Era como um curinga, adquiria um valor diferente em função de cada ação e, ultimamente, cada vez mais. E Lucan, tinha que ser franco, encontrava difícil confiar nesse menino, embora a desconfiança não fosse nada novo no que concernia a Tegan. Havia uma má relação entre ambos, sem dúvida, mas essa era uma história antiga.
Tinha que ser assim. A guerra em que ambos se comprometeram desde fazia tanto tempo era mais importante que qualquer aversão que pudesse sentir um para o outro.
Apesar disso, o vampiro levava a cabo uma vigilância estreita. Lucan conhecia as debilidades de Tegan melhor que nenhum de outros e não duvidaria em responder se esse macho punha embora fosse o dedo gordo do pé no outro extremo da linha.
Por fim, as portas do laboratório se abriram e Rio entrou na hábitação enquanto se colocava as abas de sua elegante camisa branca de desenho dentro da calça negra feita a medida. Faltavam alguns botões na camisa de seda, mas Rio levava a má compostura depois do sexo com a mesma elegância desenvolvida com que se movia em todas as demais circunstâncias. Sob a densa franja de cabelo escuro que lhe pendurava por cima das sobrancelhas, os olhos de cor topázio do espanhol parecia que dançavam. Quando sorria, brilhavam-lhe as pontas das presas que, nesses momentos, ainda não se haviam retratados depois de que a paixão por sua dama os tivesse desdobrado.

—Espero que me tenham guardado alguns renegados, meus amigos. — esfregou-se as mãos:—Me sinto bem e tenho vontades de festa.
— Sente-se disse Lucan— e tenta não manchar de sangue os computadores do Gideon.
Gideon se levou os largos dedos da mão até a marca vermelha que Eva tinha feito na garganta, evidentemente ao lhe morder com seus dentes romos de humana para lhe chupar a veia. Apesar de que era uma companheira de raça, continuava sendo geneticamente Homo sapiens. Embora fazia muitos anos que ela e outras como ela mantinham vínculos de sangue com seus companheiros, nenhuma delas teria presas nem adquiriría as demais características dos machos vampiro. Era uma prática ampliamente aceita que um vampiro alimentasse a sua companheira através de uma ferida que ele mesmo se infligia no pulso ou no antebraço, mas as paixões eram selvagens nas filas dos guerreiros da raça. E também o eram com as mulheres que escolhiam. O sexo e o sangue era uma combinação muito potente: Às vezes, muito potente.
Com um sorriso impenitente, Rio se moveu na cadeira giratória com gesto alegre e desenvolvido e se recostou no respaldo para colocar os pés nus em cima do console . Ele e os outros guerreiros começaram a recordar os fatos da noite anterior e riram sem deixar de mostrar-se superiores uns com os outros enquanto discutiam as técnicas de sua profissão.
Caçar a seus inimigos era motivo de prazer para alguns membros da raça, mas a motivação íntima de Lucan era o ódio, puro e simples. Não tentava ocultá-lo. Desprezava tudo aquilo que os renegados representavam e tinha jurado, fazia muito tempo, que os aniquilaria ou que morreria no intento. Havia dias nos que não lhe importava qual das duas coisas pudesse acontecer.
—Aí está —disse Gideon por fim ao ver que os registros que apareciam em tela se detinham.
— Parece que encontramos um filão.

—O que obtiveste?
Lucan e outros dirigiram a atenção para a tela plaina extra grande que se encontrava em cima da mesa dos microprocessadores do laboratório. Os rostos dos quatro renegados a quem Lucan matou apareceram ao lado dos das fotos do celular de Gabrielle: eram os mesmos indivíduos.
—Os registros da Base de dados de Identificação Internacional os têm qualificados como desaparecidos. Dois desapareceram do Refúgio Escuro de Connecticut o mês passado, e outro do Fall River, e este último é daqui. Todos são da geração atual, e o mais jovem nem sequer tem trinta anos.
—Merda —exclamou Rio antes de assobiar com suavidade.
— Meninos estúpidos.
Lucan não disse nada, não sentia nada, pela perda dessas vidas jovens ao converter-se em renegados. Não eram os primeiros, e seguro que não seriam os últimos. Viver nos Refúgios Escuros podia resultar bastante aborrecido para um macho imaturo que tivesse alguma coisa que demostrar. O atrativo do sangue e da conquista se encontrava profunda-mente enraizado inclusive entre as últimas gerações, que eram as que se encontravam mais distantes de seus selvagens antepassados. Se um vampiro ia em busca de problemas, especialmente em uma cidade do tamanho da de Boston, normalmente os encontrava em abundância.
Gideon introduziu uma rápida série de ordens através do teclado do computador e abriu mais fotos procedentes da base de dados.
—Aqui estão os últimos dois registros. Este primeiro indivíduo é um renegado conhecido, um agressor reincidente em Boston, apesar de que parece que se manteve um tanto à margem durante os últimos três meses. Quer dizer, tem-no feito até que Lucan o reduziu a cinzas no beco este fim de semana.
—E o que sabemos deste? —perguntou Lucan, olhando a última imagem que ficava, a do único renegado que tinha conseguido escapar depois do ataque fora da discoteca. Sua foto no registro era uma imagem tomada de um fotograma de um vídeo que, presumivelmente, fez-se durante uma espécie de sessão de interrogatório conforme se deduzia pelas ataduras e os eletrodos que levava em cima.

—Quanto tempo tem esta imagem?
—Uns seis meses —respondeu Gideon, abrindo a data da imagem— Sai de uma das operações na Costa Oeste.
—Los Angeles?
—Seattle. Mas segundo o relatório, em Los Angeles tem uma ordem de arresto também.
—Ordens de arresto —disse Dê em tom zombador.
— Uma fodida perda de tempo.
Lucan não podia não estar de acordo com ele. Para quase toda a nação de vampiros nos Estados Unidos e no estrangeiro, o cumprimento da lei e a detenção dos indivíduos que se converteram em renegados se governavam por umas regras e procedimentos específicos. Redigiam-se ordens de arresto, realizavam-se as detenções, realizavam-se os enterrogatorios e se transmitiam as condenações. Tudo era muito civilizado e estranhamente resultava efetivo.
Enquanto que a raça e a população dos Refúgios Escuros estavam organizados, motivados e envoltos por capas de burocracia, seus inimigos eram imprevisíveis e impetuosos. E, a não ser que a intuição de Lucan fora errônea, os renegados, depois de séculos de anarquia e de caos geral, estavam começando a organizar-se.
Se é que não levavam já meses nesse processo.
Lucan observou a imagem que tinha aparecido em tela. Na imagen de vídeo, o renegado a quem tinham capturado se encontrava preso em uma prancha de metal colocada em vertical, nu e com a cabeça barbeada por completo, provavelmente para que as descargas elétricas que lhe enviavam lhe chegassem com maior facilidade enquanto lhe interrogavam. Lucan não sentia nenhuma compaixão pela tortura que o renegado tinha suportado. Freqüentemente era necessário realizar interrogatórios desse tipo, e igual que acontece com um ser humano enganchado a heroína, um vampiro que sofria de sede de sangue podia suportar dez vezes mais e sem fraquejar a dor que outro de seus irmãos de raça podia agüentar.

Esse renegado era grande, com umas sobrancelhas densas e uns rasgos fortes e primitivos. Nessa imagem lhe via rir com ironia. Os largos dentes brilhavam e tinha uma expressão selvagem nos olhos da cor do ámbar e de pupilas alargadas e verticais. Encontrava-se envolto por cabos da cabeça enorme até o musculoso peito e os braços firmes como martelos.
—Dando por entendido que ser feio não é um crime, por que motivo lhe pilharam em Seattle?
—Vamos ver o que temos. —Gideon voltou a colocar-se ante os computadores e abriu um registro em outra das telas.
—Lhe hão arrestado por tráfico: armas, explosivos, substâncias químicas. Vá, este tipo é um encanto. Colocou-se em uma merda verdadeiramente feia.
—Alguma idéia sobre de quem eram as armas que levava?
—Aqui não diz nada. Não conseguiram grande coisa com ele, é evidente. O registro informa que escapou justo depois de que tomassem estas imagens. Matou a dois dos guardas durante a fuga.
E agora havia tornado a escapar, pensou Lucan, desalentado e desejando ferventemente ter decapitado ao filho de puta quando o tinha diante. Não suportava o fracasso com facilidade, e muito menos quando se tratava do seu próprio.
Lucan olhou a Niko.
—Cruzaste-te alguma vez com este tipo?
—Não —repôs o russo—, mas consultarei com meus contatos, a ver o que posso averiguar.

—Ponha nisso.
Nikolai assentiu com a cabeça com gesto rápido e se dirigiu para a saida do laboratório técnico enquanto já marcava o número de telefone de alguém no celular.
—Estas fotos são uma merda —disse Conlan, olhando por cima do ombro do Gideon em direção as fotos que Gabrielle tinha tomado durante o assassinato, fora da discoteca. O guerreiro pronunciou uma maldição.
— Já é bastante mau que os humanos tenham presenciado alguns dos assassinatos dos renegados durante os últimos anos, mas agora se dedicam a deter-se e a tomar fotos?
Dante deixou cair os pés ao chão com um ruído surdo, ficou em pé e começou a caminhar pela habitação, como se começasse a sentir-se cada vez mais inquieto pela falta de atividade nessa reunião.
—Todo mundo acredita que são uns fodidos paparazzi.
—O tipo que fez essas fotos deveu cagar-se de medo ao encontrar-se com noventa quilogramas de guerreiro salivando por ele —acrescentou Rio. E, olhou a Lucan—. Lhe apagou primeiro a memória, ou simplesmente o eliminou ali mesmo?
—O humano que presenciou o ataque essa noite era uma mulher. —Lucan olhou fixamente os rostos de seus irmãos sem mostrar o que sentia em relação a informação que estava a ponto de lhes dar.
— Resulta que é uma companheira de raça.
—Mãe de Deus —exclamou Rio, passando a mão pelo cabelo—. Uma companheira de raça. Está seguro?
—Leva o sinal. Vi-a com meus próprios olhos.
—O que fez com ela? Transou, não...?

—Não —repôs com secura Lucan, inquieto pelo que o espanhol havia insinuado com o tom de voz.
—Não fiz nenhum mal a essa mulher. Existe uma linha que nunca vou cruzar.
Tampouco tinha reclamado a Gabrielle para si, embora tinha estado muito perto de fazê-lo essa noite no apartamento dela. Lucan apertou a mandíbula: uma onda de escuro desejo lhe invadiu ao pensar em quão tentadora Gabrielle estava, enroscada e dormida na cama. No malditamente doce que era seu sabor em sua língua...
—O que vais fazer com ela, Lucan? —Esta vez, a expressão de preocupação proveio de onde se encontrava Gideon.
— Não podemos deixar que os renegados a encontrem. Seguro que ela chamou a atenção deles quando realizou essas fotos.
—E se os renegados se dão conta de que é uma companheira de raça... —acrescentou Dê, interrompendo-se A metade da frase. Outros assentiram com a cabeça.
—Ela estará mais segura aqui —disse Gideon—, sob o amparo da raça. Melhor ainda: deveria ser oficialmente admitida em um dos Refúgios Escuros.
—Conheço o protocolo —repôs Lucan, pronunciando cada palavra com lentidão. Sentia muita raiva ao pensar em que Gabrielle pudesse acabar nas mãos dos renegados, ou nas de outro membro da raça se fazia o que era devido e a mandava a um dos Refúgios Escuros da nação. Nenhuma das duas opções lhe parecia aceitável nesse momento a causa do sentimento possessivo que lhe bulia nas veias, irreprimivel embora não desejado.
Olhou a seus irmãos guerreiros com frieza.
—Essa mulher é responsabilidade minha a partir de agora mesmo. Decidirei qual é a melhor atuação neste tema.
Nenhum dos guerreiros lhe contradisse. Lucan não esperava que o fizessem. Em qualidade de membro de primeira geração, ele era mais antigo; em qualidade de guerreiro fundador dos de sua classe na raça, era quem mais coisas tinha demonstrado, com sangue e também com o aço. Sua palavra era lei, e todos os que se encontravam nessa habitação o respeitavam.

Dante ficou em pé, brincou com a Malebranche entre seus compridos e hábeis dedos e a embainhou com um ágil gesto.
—Faltam quatro horas para que caia o sol. Vou. —Olhou de soslaio a Rio e a Conlan.
— Alguém tem vontades de treinar antes de que as coisas fiquem interessantes?
Os dois machos se levantaram rapidamente, animados pela idéia, e detrás dirigir uma respeitosa saudação a Lucan, os três grandes guerreiros sairam do laboratório técnico e percorreram o corredor em direção a zona de treinamento do edifício.
—Tem algo mais sobre esse renegado de Seattle? —perguntou- Lucan a Gideon enquanto as portas de cristal se fechavam, quando ambos ficaram sozinhos no laboratório.
— Agora mesmo estou realizando uma comparação cruzada de todas as bases de registros. Só demorará um minuto em dar algum resultado. — Teclou umas ordens no computador.
— Bingo. Tenho uma coincidência procedente de uma informação GPS da Costa Oeste. Parece informação reunida anteriormente ao arresto. Joga uma olhada.
A tela do monitor se encheu com uma série de imagens noturnas por satélite de uma embarcação de pesca comercial aos subúrbios de Puget Sound. A imagem se centrava em um Sedan comprido e negro que se encontrava detrás de um maltratado edifício situado ao final do dique. Apoiado contra a porta posterior se encontrava o renegado que tinha conseguido escapar de Lucan fazia uns dias. Gideon passou rapidamente uma série de imagens que lhe mostravam conversando longamente, ou isso parecia, com alguém que se encontrava oculto detrás dos cristais negros dos guichês. À medida que as imagens avançavam, viram que a porta traseira do carro se abria e o renegado entrava no carro.
—Detenha —disse Lucan, fixando o olhar na mão do passageiro oculto.
— Pode deter todo este fotograma? Aumenta a zona da porta aberta do carro.

—Vou tentar .
A imagem aumentou de tamanho, mas Lucan quase não necessitava um aumento da imagem para confirmar o que via. Quase não se distinguia, mas aí estava. Na parte de pele exposta entre a grande mão do passageiro e o punho francês da camisa de manga larga se viam uns impressionantes dermoglifos que lhe delatavam como um membro de primeira geração.
Gideon também os tinha visto nesse momento.
—Maldição, olhe isso —disse, cravando a vista no monitor—. Nosso imbécil de Seattle desfrutava de uma companhia interessante.
—Possivelmente ainda o está fazendo —repôs Lucan.
Não havia nada pior que um renegado que tivesse sangue de primeira geração nas veias. Os membros de primeira geração caíam vitima da sede de sangue com maior rapidez que as últimas geração da raça, e eram uns temíveis inimigos. Se algum deles tinha intenção de liderar aos renegados e lhes conduzir a um levantamento, isso significaria o princípio de uma guerra infernal. Lucan já havia lutado em uma batalha assim uma vez, fazia muito tempo. Não desejava voltar a fazê-lo.
—Imprime tudo o que conseguiste, incluídos as ampliações de eroglifos.
—Já estão.
—Qualquer outra coisa que encontre sobre esses dois indivíduos, passa-me diretamente. Encarregarei-me disto pessoalmente.
Gideon assentiu com a cabeça, mas o olhar que lhe dirigiu por cima da arreios dos óculos expressava dúvida.

—Não pode pretender te encarregar de tudo isto você sozinho, já sabe.
Lucan lhe cravou um olhar escuro.
—Quem o diz?
Sem dúvida, o vampiro tinha em sua cabeça de gênio todo um discurso aberto da probabilidade e da lei da estatística, mas Lucan não se sentia de humor para lhe escutar. A noite se aproximava, e com ela se aproximava outra oportunidade de caçar a seus inimigos. Precisava empregar as horas que ficavam para esclarecer a cabeça, preparar as armas e decidir onde era melhor atacar. O depredador que havia nele se sentia impaciente e faminto, mas não por causa da batalha contra os Renegados.
Em lugar disso, Lucan se deu conta de que seus pensamentos se desviavam para um tranqüilo apartamento do Beacon Hill, para uma visita que nunca deveria ter realizado. Ao igual que o aroma de jasmim, o recordava da suavidade e a calidez da pele de Gabrielle, enredava-se com seus sentidos. Ficou tenso e seu sexo ficou em ereção somente pensando nela.
Foder.
Essa era a razão pela qual não a tinha posto sob o amparo da raça, aqui, no edifício. A certa distancia, ela era uma distração. Mas se encontrava em uma habitação próxima, seria um maldito desastre.
—Está bem? —perguntou-lhe Gideon, dando-a volta com a cadeira e ficando de cara a Lucan.
— É uma fúria muito grande a que tem em topo, amigo.
Lucan se arrancou da cabeça esses escuros pensamentos e se deu conta de que as presas lhe tinham alargado e que a visão lhe havia agudizado com o fechamento das pupilas. Mas não era a fúria o que lhe transformava. Era a luxúria, e tinha que saciá-la, antes ou depois. Com essa idéia lhe pulsando nas têmporas, Lucan tomou o telefone celular de Gabrielle, que se encontrava em cima de uma das mesas, e saiu do laboratório.

      

 

                                    CONTINUA