Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


MIL NOITES DE PAIXÃO / Madeline Hunter
MIL NOITES DE PAIXÃO / Madeline Hunter

                                                                                                                                                  

 

 

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

 

Eles não têm absolutamente nada em comum.
Lady Reyna é uma mulher virtuosa e erudita, que preferia morrer a quebrar uma promessa ou voto.
Ian de Guilford é um sensual mercenário, um cavaleiro errante cujo temperamento fogoso lhe valeu a alcunha de Senhor das Mil Noites.
Ela não conhecia a sua fama quando, fazendo-se passar por cortesã, transpôs as linhas inimigas com um plano desesperado para salvar o seu povo. Agora que está frente a frente com o guerreiro a cujos encantos, diz-se, é impossível resistir, Reyna apercebe-se de que subestimou o seu inimigo. Ele está decidido a tudo para subjugar a sua virtude. A bem do seu povo, ela não pode ceder... e a sua audácia leva-a a fazer algo com que nunca sonhou: pôr em jogo o seu coração.

 


CAPÍTULO 1

FRONTEIRA ESCOCESA, 1357

– É importante que ele beba o vinho todo antes de tentar despir-vos.
A instrução era somente a última de uma litania de avisos que Reyna ouvira enquanto avançava às apalpadelas pelo túnel cavernoso.
Apertou a mão grossa da mulher maternal que a acompanhava.
– Farei tudo como planeado. Parecem um bando de rufias e este cerco deve ser entediante. Ele deve ficar satisfeito por poder distrair-se.
– À maior parte dos homens, só lhes interessa uma distração, minha filha. É esse o perigo, não é?
– Não vos preocupeis com isso.
A escuridão total do túnel aterrorizava Reyna, que por isso se apressava, com uma mão segura na de Alice e a outra na parede.
Sons ressoavam através da pedra que ela tocava. Sapadores escavavam o seu próprio túnel não muito longe deste. Ao longo dos meses, ela viera até esta saída secreta, de archote na mão, e pusera-se à escuta, a averiguar os progressos deles. A princípio não se preocupara, porque chegaria seguramente ajuda antes de eles completarem o seu trabalho. Não era um exército grande, o que cercava a casa-torre, e uma pequena hoste, tanto de Harclow como de Clivedale, conseguiria facilmente levantar o cerco. Mas não lhes chegara auxílio nenhum e agora seria uma questão de dias até os sapadores alcançarem a muralha exterior. Ainda mais preocupante era uma segunda escavação, que avançava no lado sul da fortaleza.
As mulheres depararam com um cotovelo apertado, à direita.
Um fiapo de luz infiltrava-se pela abertura estreita, escavada por trás de uma formação rochosa que a ocultava. Arbustos espessos providenciavam uma camuflagem adicional, e só alguém que examinasse cuidadosamente todo o terreno tinha alguma hipótese de a encontrar. Este exército não o fizera até então, e Reyna sorria com a ironia daquelas escavações todas quando a poterna se encontrava a escassos passos de distância.
– De manhã já sabereis se fui bem-sucedida, Alice. Ficai de vigia na torre e alertai Sir Thomas e Reginald. – Reyna pegou no cesto que Alice transportava e tentou aparentar coragem e calma. – Vou primeiro à minha mãe, e de lá para Edimburgo. Mando avisar-vos quando já estiver em segurança e podereis vir ter comigo.
Alice abraçou-a. – É corajoso o vosso plano, filha, mas imprudente. Se estivesse vivo, Sir Robert não teria concordado.
– Se Robert estivesse vivo, eu não teria de fazer nada disto.
A mulher mais velha assentiu com a cabeça em sinal de resignação. – Sendo assim, que o Senhor vos acompanhe.
Reyna atravessou a entrada e ficou em pé entre os arbustos.

Cinquenta metros mais à frente estavam os acampamentos que circundavam a torre. Não era um exército numeroso, mas era suficientemente grande para assegurar que ninguém saía nem provisões entravam. Não tinha havido tentativas de assalto, ninguém a escalar muralhas, nem máquinas de guerra a arremessar fogo e pedras. Tampouco houvera negociações. Apenas dois meses de um inabalável cerco.
Homens circulavam pelo acampamento, os seus movimentos indolentes com o calor do verão. Não envergavam muita roupa e o sol bronzeara os seus corpos. Um punhado havia adotado os kilts, mais frescos, dos escoceses. Mas estes homens não eram escoceses.
Ingleses, pensou ela com repulsa, e a simples ideia deu-lhe renovada determinação. Os ingleses haviam sido os monstros da sua infância e os inimigos da sua juventude. O seu rei escocês podia ter aceitado a derrota pelo rei Eduardo de Inglaterra há dez anos, mas não havia escocês algum, especialmente das fronteiras de Cúmbria e Northumberland, que se submetesse prontamente à autoridade que os ingleses reclamavam.
Ela sabia tudo sobre os soldados ingleses e sobre o que aconteceria se os sapadores deles conseguissem atravessar as muralhas. Há gerações que se repetiam descrições das atrocidades dos ingleses. Ela obrigou-se a imaginar pessoas que conhecia a serem esquartejadas e torturadas, granjeando força dessas imagens horríveis. Não estava na sua natureza fazer o que planeara fazer agora, mas não via outra alternativa. Esperava que Deus acorresse em seu auxílio, e que depois a perdoasse.
Saiu disparada do meio dos arbustos e caminhou na diagonal até aparentar ter vindo de um dos caminhos a norte.

Os homens examinaram-na, avaliando o significado do seu cabelo solto e do vestido de seda. Ela avançou a passos firmes, dirigindo-se ao acampamento ocidental e à tenda grande que se encontrava no seu centro. Quando a avistou, abrandou. Uma vez lá dentro, não haveria retorno.
Um assobio lascivo captou a sua atenção. Dois cavaleiros trocaram um sorrisinho irónico e começaram a caminhar em direção a ela, fazendo sons obscenos com a boca, zombando dela. Reyna sentiu um arrepio na pele e fez a correr os últimos metros até à tenda grande com galhardetes verdes e brancos.
Um escudeiro estava à entrada, a limpar armas. Ergueu os olhos, perplexo, quando ela avançou decidida na sua direção, passou a correr por ele, e se enfiou na tenda. Ela rezou para que o homem que procurava estivesse lá dentro e que os outros não a seguissem.
De qualquer forma, isso não queria dizer nada, pois ele podia simplesmente encolher os ombros e deixá-los levá-la.
A lona branca criava uma luz difusa, suave, e ela precisou de algum tempo para ajustar a visão. Passou os olhos pela pouca mobília da tenda; um catre, uma mesa e um baú. Uma armadura polida brilhava no chão a alguns passos dela. Não se ouvia um único som naquele espaço.
Foi então que uma sombra se moveu. Um homem ergueu-se do banco onde estivera sentado com as costas apoiadas no mastro central da tenda.
– O que fazeis aqui? – perguntou ele num tom ríspido.
Ela ficou parada a olhar.
Tinha visto este homem do cimo da casa-torre. Ele era mais alto do que a maioria, mas quando todos não passam de um pontinho ao longe isso não quer dizer grande coisa. Contudo, ela era mais baixa do que a maioria, e a diferença marcada entre a altura deles fez com que, de súbito, ela ficasse profundamente consciente da sua vulnerabilidade.
O que ela não vira da torre era o quão belo ele era. Pestanas espessas suavizavam e emolduravam olhos escuros, sérios, que, à luz da tenda, eram como duas manchas. Ossos pronunciados moldavam-lhe a face e o queixo. Uma boca larga, direita, de lábios algo carnudos, exigia a sua atenção. O cabelo escuro dava-lhe pelos ombros e estava preso na testa por uma faixa de tecido enrolado.
Envergava apenas umas calças largas à camponês, cortadas acima do joelho. As pernas eram bem torneadas, de músculos esguios e linhas definidas. A mesma elegância atlética que lhe moldava os ombros largos e lhe esculpia o peito. Com aquela roupagem primitiva, fazia-lhe lembrar os guerreiros antigos acerca dos quais lera nos livros de Robert. Ele era o inimigo, mas isso não a impediu de ficar sem fôlego.
Magnífico. Assombroso.
Pena ela ter de o matar.
Ele caminhou até ela. Avaliou sobranceiramente o seu vestido, cabelo e faces rosadas enquanto retirava a faixa da testa e passava uma mão forte pelo cabelo. Ela esperava que ele não conseguisse vê-la corar, pois a mulher que era hoje nunca se deixaria desconcertar pelo escrutínio de um homem, por muito belo que ele fosse.
A expressão dele aligeirou-se e ergueu uma sobrancelha inquiridora. Havia compreendido a única parte que precisava de saber.
Sorriu.

Santo Deus, que sorriso. Lábios juntos, direitos, que mal se erguiam nos cantos da boca. Absolutamente encantador, subtilmente sugestivo, vagamente escarninho. Covinhas sedutoras surgiram de um lado e do outro da boca. Aquele rosto belo e aqueles olhos insondáveis de distantes e pensativos a sensuais e afáveis.
Mas ela viu outra coisa enquanto ele a observava. Viu-a na postura descontraída do seu corpo e no brilho do seu olhar e no próprio sorriso. Presunção. Arrogância. Orgulho. Inabalável autoconfiança. Viu o quanto ele tinha consciência do efeito que o seu rosto e o seu corpo tinham sobre ela. Sobre todas as mulheres.
Ela já havia encontrado homens assim antes. A casa de seu pai tinha-os aos montes. Talvez ela não se importasse tanto de o matar, afinal.
– O que fazeis aqui? – repetiu ele.
Ela recompôs-se. – Fui chamada pela povoação de Bewton.
Enviaram alguém a Glasgow para me contratar. As pessoas de lá queriam ter a certeza de que a sua oferta vos agradaria, Sir Morvan.
– Oferta? Estais a dizer que a cidade comprou uma meretriz…
– Sou Melissa, cortesã – disse ela num tom pouco pacífico. –
Asseguro-lhe que não sou meretriz nenhuma. É por essa razão que aqui estou. A cidade não confiava um dever destes às suas alcoviteiras.
– E qual é o propósito desta oferta?
– Esperam que, se esta vos comprouver, poupeis a povoação e refreeis o vosso exército.
– E viestes para me persuadir? – Ele deu uma volta ao seu redor, examinando-a como a um animal para venda. Ela quase contava que ele abrisse a boca num bocejo, anunciando que ela não serviria de todo. – O cavaleiro que desse uma tal ordem aos seus homens teria de se encontrar deveras satisfeito. De que serve conquistar sem proveitos a haver?
– A povoação pagará tributo. Haverá espólio o bastante. São as pilhagens e as violações bárbaras que pretendem evitar.
Ele estendeu um braço e acariciou-lhe o cabelo, pegando em parte dele, deixando que o seu olhar e os seus dedos percorressem o seu considerável comprimento. – Dissestes que vos chamáveis?
– Melissa. Podeis não ter ouvido falar de mim, mas fui treinada pela famosa Dionisia.
– Não me pareceis uma cortesã, Melissa. Sempre presumi que eram mulheres voluptuosas. Vós sois fracota e escanzelada de mais para tal. Um cabelo adorável, porém. Uma cor invulgar. Muito ténue, como tecido de luar. – Ele ainda segurava a ponta da comprida madeixa de cabelo, que pendia entre os dois como uma tira de seda.
– O que vós chamais de fracote e escanzelado, grandes senhores consideram mimoso e delicado, Sir Morvan. Além do mais, os dotes de uma cortesã tornam esses pormenores insignificantes. Contudo, é evidente que sois grosseiro nas vossas preferências. Vou regressar e dizer aos anciãos da aldeia que eles se enganaram.
– Não. Foi uma estratégia brilhante. Tem apenas um senão, e não é o vosso tamanho. – Ele ainda tinha os dedos no cabelo dela.
– Eu não sou Sir Morvan.
– Mas esta é a tenda maior e está no centro do acampamento.
Disseram-me que este exército pertence a Morvan Fitzwaryn.
– É um facto, mas aqui sou eu quem manda. Morvan está ocupado noutras bandas. O exército principal está em Harclow.
Não admira que não tivesse chegado ajuda. Todos na torre haviam presumido que Morvan Fitzwaryn montara cerco primeiro a este feudo, que era periférico, para ter uma posição avançada antes de tentar conquistar Harclow, mais impressionante, mas o homem atacara ambas as fortalezas de uma vez só. E Clivedale também?
Qual seria o tamanho deste exército?
Ela refez rapidamente os seus planos. Se aqui era este o homem que estava no comando, à partida o plano era tão bom para ele como para o seu amo.
– Se não sois Morvan Fitzwaryn, quem sois, então?
– Ian de Guilford.
– E sois mesmo quem comanda aqui?
– Sim. O destino desta torre e da povoação vizinha estão nas minhas mãos. Se eles vos mandaram para negociar, tendes o nome errado, mas o homem certo. A oferta deles destinava-se a mim.
A franqueza com que ele a olhou deixou-a em absoluto desassossego. O olhar dele continha as consequências do fracasso nas quais ela evitara cuidadosamente pensar.
A sua coragem desapareceu num piscar de olhos. – É
lamentável, então, que eu não seja do vosso agrado. Vou retirar-me imediatamente.
– Insisto que fiqueis. Se assim não for não tereis o vosso pagamento, e percorrestes uma longa distância. Foi indelicado da minha parte criticar tal oferta. Além disso, se fostes treinada pela famosa Dionisia, duvido que haja lugar a desilusões.
Ele aproximou-se ainda mais, impondo o seu tamanho e masculinidade. Ela começou a arranjar desculpas para se ir embora. – Estes homens parecem mercenários. Será que vos obedecem? Sem dúvida que o seu pagamento serão os despojos.
– São mercenários, mas são os meus mercenários, e obedecer-me-ão. Morvan Fitzwaryn paga em prata, não com a promessa de pilhagem. Provavelmente esperam que haja alguma, mas não faz parte do acordo.
– E se vos acontecer alguma coisa?
– Não tinha percebido que as pessoas do povoado me tinham enviado uma advogada juntamente com a cortesã. Os vossos favores requerem primeiro um contrato em que se cubram todas as eventualidades?
As palavras e o olhar dele lembraram-lhe quem ela pretendia ser e a razão pela qual se encontrava ali. Pensou no perigo que corriam os inocentes da casa-torre se a fortaleza sucumbisse, e na morte horrível que a aguardava se tal não acontecesse. O seu plano era a única forma de solucionar ambos os problemas.
– Vamos despir-nos, Melissa, para que possais mostrar-me essa grande arte que é a vossa. – Olhou, tranquilo, para a enxerga. –
Não se adequa muito a uma cortesã. Preferis que estenda algumas peles no chão? Assim há mais espaço. – Com passos largos, foi até ao outro lado da tenda e espalhou algumas peles grandes pelo chão. – Sim, assim é melhor.
Começou a desapertar o nó das calças. – De quatro da primeira vez, parece-me.
Ela testemunhou horrorizada este desenrolar demasiado rápido dos acontecimentos. – Sir Ian, não estais a compreender. Tal como vos disse, não sou meretriz. Sou cortesã. Fazemos as coisas de forma diferente.
– A sério? E eu determinado a fazê-lo de todas as maneiras que houver. Estou desejoso de aprender algo de novo.

Sim, matá-lo não seria de todo difícil. – Não foi isso que eu quis dizer. As cortesãs não se limitam a copular como animais. Nós criamos todo um ambiente, toda uma experiência. Há bastante preparação e relaxamento antes.
As mãos dele largaram as calças. – Tereis de me ensinar, senhora. Não passo de um simples cavaleiro. Estou habituado a meretrizes que se sujeitam à vontade de um homem. Estou a ver que convosco, cortesãs, se passa tudo ao contrário.
– Tereis tudo aquilo que desejais, e mais ainda. Mas fui treinada em várias artes além dessa. Música, conversação… Certamente que, depois de viver pouco melhor do que um animal nestas tendas, vos agradará um serão cortês. Deixai que vos mostre. – Com passos firmes, foi até às peles, pegou em algumas bolsas que estavam por perto e compôs com elas um encosto numa das beiras.
– E agora, descansai. Pronto. Não é melhor assim?
Ele deitou-se em cima das peles, com a cabeça e os ombros reclinados nas bolsas. Ela ajoelhou-se ao seu lado e levantou o pano que cobria o cesto. Preparou as empadas de carne e a taça e, em seguida, serviu o bom vinho de Bordéus. Ofereceu-lhe a taça.
Ele bebeu com calma e deteve os olhos nela. – Não bebeis?
– Não. Fico menos capaz. Não queremos que tal aconteça, pois não?
Ele provou uma empada e ergueu as sobrancelhas em sinal de aprovação. – Se suplantais as rameiras do acampamento, ainda estamos para ver, mas a vossa comida suplanta decididamente a cozinha daqui.
Um sorriso tonto iluminou-lhe o rosto e, antes de se recompor, Reyna quase se lançou numa explicação das plantas aromáticas que utilizara. – Desejais que toque flauta enquanto comeis?

– Sem sombra de dúvida. Trata-se de uma experiência rara para um pobre cavaleiro como eu. Não quero perder nada. – Apoiou-se num cotovelo. Ela tentou não olhar para a taça que se movia em direção aos lábios dele. Mais. Uma boa golada.
Ela começou a tocar uma melodia lenta no instrumento.
Enquanto tocava, pensava nos minutos seguintes e naquilo que teria de fazer. Rezou para ter coragem para levar a cabo a sua missão.
Tal faria com que o cerco fosse levantado pelo menos por alguns dias, até Morvan Fitzwaryn descobrir o que tinha acontecido e enviar mais homens para lá. Entretanto, os outros poderiam ir para norte, até Clivedale.
Pelo canto do olho, viu Ian pousar a taça de vinho. Estava vazia.
Ela suspirou de alívio e tocou uma nota em falso. Falhou outra quando dois dedos tocaram no seu braço e lhe subiram, vagarosos, até ao ombro.
Movimento atrás dela. Mãos que lhe afastavam o cabelo para cima de um ombro. Um rosto que passava ao de leve pelo seu pescoço e uma respiração cálida na sua pele. Um beijo no seu ombro e dentes que lhe roçavam a orelha.
Ela olhava fixamente para a lona branca, perplexa por as atenções deste estranho estarem a perturbá-la e a deixá-la sem fôlego. A melodia perdeu-se num desastre de sobressaltos.
Ela baixou a flauta e dirigiu-lhe um olhar cético. O rosto dele estava a centímetros do dela, e só lhe via os olhos abrasadores e a boca sensual. Não parava de olhar para a taça vazia. Adormece.
Infelizmente, Sir Ian não parecia nem um pouco sonolento.
– Foi encantador – disse ele suavemente, volvendo a beijar-lhe o pescoço. – As pequenas pausas conferiram à melodia um toque comovente. – Voltou-se, alinhando o tronco com o dela. – Vós sois encantadora – sussurrou, aproximando a cabeça dela da sua.
Ele deu-lhe um beijo quase lânguido. Mais um beijo amoroso do que um arroubo, que lentamente se tornava mais profundo, despertando algo dentro dela que ela não controlava, algo que se fizera expectante após longa abstinência. Uma expectativa deliciosa acordou e percorreu-lhe todo o corpo de uma forma escandalosa.
Reyna devia afastá-lo, mas Melissa, a cortesã, certamente não o faria, e como tal aguentou, com a consciência dolorosa de que o seu sofrimento não era, nem de perto nem de longe, tanto como deveria ser. Tentou travar a sua reacção escandalosa e a sua mente desnorteada começou a entoar repetidamente uma ordem silenciosa, que ele dormisse, raios, que dormisse.
Ele afastou-se dela. A expressão do seu rosto era indescritível.
Calor. Desejo. A promessa do prazer revelado. Estava apoiado num braço e o seu tronco nu quase tocava no ombro dela. Aquela chama proibida dentro dela regozijou contra a sua vontade. Ela não conseguia tirar os olhos daquele rosto incrível. Não conseguia mexer-se.
– Não vos sintais constrangida – disse ele. – Decerto é permitido que desfruteis uma vez ou outra. – Ele baixou o olhar e passou os dedos pela orla do vestido dela, no alto dos seios.
Curvou-se e beijou a pele exposta pelo decote generoso. Ela sentiu o corpo inteiro ser percorrido pelo mais estranho dos arrepios.
Observou, hipnotizada, aquela mão libertar o seu ombro do tecido.
É importante que ele beba o vinho todo antes de tentar despir-vos.
Recompôs-se. Inclinou-se para trás e soltou um risinho forçado.
Tentou comportar-se como a cortesã experimentada determinada a conduzir o jogo de uma certa maneira. – Já acabastes o vosso vinho – disse, fazendo menção de pegar na garrafa de vidro e na taça. – Deixai que vos sirva mais um pouco. – Carradas dele.
Ele lançou-lhe um olhar que dizia que seria à maneira dela, mas não durante muito mais tempo. Regressou para o almofadão e deitou-se. Ela virou-se a tempo de ver a taça nos lábios dele.
Tentou impor controlo ao sangue desassossegado das suas veias. – Agora falamos – disse ela com firmeza. – Acabai o vosso vinho e dizei-me como viestes aqui parar.
– Sou eu que falo? Sois vós a treinada na arte da conversação.
– Sou treinada para ouvir. Os homens gostam de falar deles próprios, e nós ouvimos.
– Eu não tenho prazer em falar de mim. Falai vós.
– Eu? Sobre o quê?
– Podeis falar sobre mim. Podeis dizer-me como sou belo e admirar o meu rosto e o meu corpo. As mulheres fazem sempre isso.
– Fazem-no, deveras? – Que conveniente ele vir recordar-lhe a sua presunção precisamente quando precisava de ajuda para não gostar dele. Se este garanhão enfatuado esperava vê-la a suspirar pela beleza dele, ele que pensasse outra vez… Ela suspirou, de facto, mas pela inutilidade do rancor que sentia. O vinho devia fazer efeito muito em breve. Deus sabia que ele tinha bebido que chegasse.
Com um esgar, virou-se para ele. Os olhos dele aparentavam estar fechados.
Ele pegou na mão dela e pousou-a no peito dele, o que fez com que ela se aproximasse um pouco, e ela reparou que as pálpebras dele estavam um tudo-nada abertas e que ele a observava. Não, ela talvez não se importasse minimamente de o matar depois desta humilhação.
Ela pôs um sorriso no rosto e começou a traçar com os dedos as linhas dos ombros e dos músculos do peito dele. Dava voltas à cabeça à procura de frases apropriadas. – Sem dúvida que sois um homem muito bem-parecido. Olhos muito belos e um sorriso encantador. E o vosso corpo é forte e atlético. – Santo Deus, as cortesãs e meretrizes mereciam decididamente cada centavo.
Adormece, seu idiota presunçoso. – Não é entroncado e peludo como alguns guerreiros.
– Do que gostais mais? – A voz dele parecia sonolenta e arrastada.
– Hã… bem, estas concavidades ao longo da vossa clavícula são muito atrativas.
A mão dele ergueu-se, lânguida, e envolveu-se no cabelo dela.
Puxou-a delicadamente, encaminhado-lhe a cabeça para baixo.
– Então beijai-as, senhora. E depois, tudo o resto. Não está o maior talento de uma cortesã na sua boca?
Ela apercebeu-se de que o seu rosto estava a centímetros do dele e daqueles olhos ardentes que a olhavam por entre as pálpebras semicerradas. Os seios dela pairavam mesmo acima dele, roçando-o ao de leve, e sentia um formigueiro no seu corpo ridículo, traiçoeiro. Contrariada, dobrou o pescoço e encostou os lábios à concavidade acima da clavícula dele.
Pele. Calor. Aquele cheiro masculino inebriante. Uma mão doce, mas dominadora na sua cabeça encaminhava-a mais para baixo, para o peito.
Adormece, maldito sejas. Ela beijou-lhe o peito e tentou não prestar atenção à espantosa e assustadora intimidade que tal ação evocava. Ele era o inimigo, um estranho, e ela odiava-o, mas algo dentro dela ignorava isto.
Ele conduziu-a mais para baixo, para o tronco, e barriga…
De repente, a mão que tinha na cabeça ficou mole. Ela susteve a respiração e aguardou pela imobilidade absoluta que indicava que ele dormia.
Cuidadosa, esgueirou-se para longe do corpo dele. O braço dele caiu, lasso, ao lado do corpo.
Puxou para si o cesto e despejou o resto das empadas. Afastou o pano mal cosido que compunha um fundo falso e cravou os olhos no punhal de aço escondido por baixo dele.
Por Alice e as outras mulheres. Sim, até por Margery. Por Reginald, e até mesmo por Thomas.
Pegou no punhal. Olhou com pena para o belo homem ali deitado como uma vítima sacrificial sob o efeito de drogas.
Pareceu-lhe indefeso, assim de repente, a dormir como uma criança e, subitamente, ela imaginou-o como tal, fresco e inocente. Sentiu um aperto no coração, que se revoltava contra o rumo que ela havia traçado para si própria.
Ergueu o punhal, agarrando-o com ambas as mãos, a ponta letal apontada ao coração dele. Os braços dela tremiam, o corpo dela tremia, a própria lâmina oscilava no ar.
Ela tentou novamente encontrar coragem no medo que sentia pelos amigos. Quando isto não resultou, virou-se para o medo que sentia por si própria. Os olhares de suspeita e as acusações. A carta do bispo. Os livros e plantas e poções.
Deixara de ver o punhal, mas este surgiu, de repente, à sua frente, muito real, muito afiado. Ela olhou para os nós dos dedos cerrados à volta do cabo, depois para a ponta, e depois para o peito sólido. Por fim, olhou de relance para o belo rosto.

Ele devolveu-lhe o olhar. Olhos negros reluziam perigosos por baixo de copiosas pestanas.
Sentiu-se tomada de pânico. Sabendo que agora seria matar ou ser morta, ergueu-se nos joelhos e fez o punhal seguir o seu curso.
Uns braços fortes ergueram-se de rompante e uns dedos de ferro agarraram-lhe os pulsos. Ele atirou-a para o lado e ela caiu.
Na luta que se seguiu, a lâmina tocou-lhe e um fio vermelho escorreu pelo braço dele.
Ela deu por si deitada de costas e imobilizada. O rosto que via à sua frente estava endurecido pela fúria. – Achastes mesmo que eu seria um Holofernes para a vossa Judite? – rosnou ele. – Era esse o plano, não era? Como nos evangelhos bíblicos. Matais o general e o exército sem líder dispersa em confusão.
– Apócrifos – corrigiu ela absurdamente, com uma voz que parecia vir de muito longe. – Não é da Bíblia convencional. É dos evangelhos apócrifos.
– Que me importa se Deus deu a história a Moisés em pessoa, sua cabra. – Ele agarrou-lhe no cabelo e pôs-se em pé, obrigando-a a colocar-se de joelhos. Arrastou-a até ao mastro central e atou-a com os braços esticados acima da cabeça.
Foi até às peles. Ela tinha a certeza de que ele ia buscar o punhal para lhe cortar o pescoço. O seu coração batia-lhe no peito com uma pulsação de chumbo.
Ele regressou com a garrafa de vidro e encostou-a aos lábios dela.
– Bebei – ordenou.

CAPÍTULO 2


Ela gemeu e mexeu-se. Ian olhou-a do banco onde estava sentado a comer uma das empadas. Ela estava deitada na enxerga, de braços e pernas afastados e amarrados aos cantos.
Ele tinha ponderado tirar-lhe a roupa mas acabara por decidir que poderia ser de mais. Ele queria-a assustada e vulnerável, não paralisada de terror.
A luta deles rasgara-lhe o vestido, quase expondo um pequeno e mimoso seio. A saia subira-lhe pelas pernas bem torneadas. Ela tinha um corpo muito bonito, mesmo que algo magro de mais.
Pequeno e curvilíneo e compacto e bem-feito como o de Elizabeth era, só que mais jovem.
Quando a vira pela primeira vez, em pé à luz ténue, formidável e determinada, com aquele cabelo claro e liso a dar-lhe pelas ancas, pensara por um instante que ela era Elizabeth. Mas o rosto, ainda que bastante belo, nada tinha da perfeição precisa de Elizabeth, e era mais caloroso e expressivo. E o cabelo não era branco como o de Elizabeth, mas de um louro-claro raiado de madeixas prateadas, e a sua pele possuía um agradável brilho rosado. Elizabeth fora branca como a neve. Esta mulher parecia o primeiro sol da madrugada.
Vinte e tais, foi o seu palpite. Adorável e corajosa.

Pena ter de a destruir.
O seu escudeiro, John, transpôs a entrada da tenda, trazendo consigo um prato de guisado. O jovem tinha tomado o seu tempo para servir a ceia, trazendo uma coisa de cada vez, o que lhe proporcionava uma desculpa para olhar cobiçosamente para a mulher. Os seus olhos voluptuosos examinaram as pernas desnudadas.
Era melhor clarificar as coisas agora. – Mantém as calças bem apertadas, rapaz. Ela não é para ti.
John corou e pousou o guisado. Ian recebeu a pasta sensaborona com uma careta. Felizmente, tinha enchido a barriga com as deliciosas empadas de carne de Melissa. Pegando na última, atirou-a ao escudeiro quando ele saiu. – Uma consolação.
O prazer que se tira de toda a mulher é muito parecido. O mesmo não se pode dizer da comida.
Ela voltou a mexer-se. As suas pálpebras ergueram-se suavemente. Ficou alerta à medida que compreendia a posição em que estava. Deu puxões às cordas que a amarravam, e o movimento fê-la gemer novamente.
– Então, que tal? – perguntou ele. – Nunca ouvi falar de uma poção para dormir que depois não nos desfizesse a cabeça.
O olhar encoberto dela deslizou para o sítio onde ele estava sentado. Por um momento, antes de se recompor, mostrou uma centelha de pânico.
Ótimo.
– Sorte a vossa que não era veneno – acrescentou ele.
– Eu não tinha uma receita de veneno.
Ele resistiu à vontade de rir. Quanta vivacidade. – Que pena.
Ela conseguiu encolher um pouco os ombros. – Já que é óbvio que nunca bebestes uma gota, não teria feito diferença nenhuma. –
Ela voltou a passar os olhos pelo seu corpo vulnerável. – O que ides fazer?
Tentou parecer corajosa e imperturbável. Ele sentiu alguma pena dela. – Tenho estado a pensar nisso durante estas últimas horas.
Estava a postos para vos enforcar quando vós acordastes.
– Enforcar-me!
– Sim. Por assassínio.
– Mas eu não…
– Tentastes.
– Não foi bem assim. Perdi a coragem.
– Tenho um corte no braço que diz que sim.
– Só porque me atacastes. Se tivésseis ficado a dormir como era devido…
– Agora estaria morto. Não vos ponhais agora com lamechices a fazer-vos de inocente, Melissa. O vosso plano tinha arrojo e coragem, e eu respeito isso. Mas falhastes, o que faz com que a vossa vida me pertença e eu possa dispor dela. Pensei num enforcamento, mas o meu escudeiro convenceu-me que seria um desperdício. Portanto, engendrei um plano para a vossa redenção.
Ele aproximou-se e sentou-se no catre, ao lado dela. – Como fizestes notar, este cerco tem sido longo e abrasador. Encontram-se aqui muitos homens entediados, e as meretrizes do acampamento…
bem, elas não são a mesma coisa do que ter uma cortesã.
Ela arregalou os olhos. – Estais a dizer que ides dar-me ao vosso exército? Que esperais que eu…
– Não ao exército inteiro. Só aos cavaleiros.
– É asqueroso.
– O enforcamento também.

A expressão dela endureceu de fúria. Ele esperara lágrimas. Ela tinha sangue na guelra. Tinha de admitir isso.
– Não acredito que o vosso amo, Sir Morvan, aprovasse o que planeais. Ele tem reputação de ser um homem honrado.
– Ele não se importará nem um pouco. Em breve, terei colocado esta torre nas mãos dele e metade do seu exército poderá juntar-se a ele em Harclow. E só isso terá importância. Além disso, salvei-lhe a vida uma vez, portanto está em dívida para comigo.
Ela cerrou os dentes com um controlo vacilante, os seus olhos faiscaram, e depois baixou as pálpebras. – Prefiro ser enforcada.
Estão ali pelo menos vinte cavaleiros. De qualquer maneira, é provável que me matem.
– Não se estiverem satisfeitos. De certa forma, estareis a cumprir a vossa missão. Amanhã de manhã rebentaremos com um dos túneis. Até ao meio-dia, eu espero que a torre sucumba ou se renda. Os vossos favores serão recompensa para os meus cavaleiros, e talvez mitiguem a irritação que sentirão por não poderem pilhar aquilo que conquistaram.
O olhar dela fixou-se nele. – Explodireis o túnel de madrugada?
– Conto com isso. Estamos a escavar dois. O que fica a sul já chegou à muralha.
O olhar dele vagueou até à pele orvalhada do rosto, dos ombros dela e do peito exposto. Ela já não era nenhuma rapariga, mas ele também nunca se interessara muito por raparigas. A ânsia de lamber a sua palidez resplandecente, e a noção de que ela não conseguiria impedi-lo de o fazer, enrijeceram-lhe o corpo. Melissa, a cortesã, estivera certa numa coisa. Ele estava cansado da vida do acampamento e desejava de facto as ilusões do amor cortesão.
Estivera muito tentado a jogar o jogo dela até ao fim, mas depois poderia ter perdido o alento para a usar da forma que agora pensava fazer.
Não conseguiu conter-se. Esticou o braço e acariciou-lhe a face.
Delicada. Cálida. Inclinou-se e roçou os seus lábios nela. – Para uma cortesã, é um castigo leve. Do meu ponto de vista, só há um problema. – Ele baixou a cabeça para ela num sorriso. – Vós, Melissa, não sois cortesã nenhuma.
– Sou, pois.
– Certamente não sois. Já conheci virgens que beijam com mais perícia do que vós. Quem sois vós? Sois da aldeia?
Ela assentiu com a cabeça.
– Então uma jovem matrona decide ser heroína em prol do seu povo. Muito corajoso e notável. O vosso marido sabe que embarcastes neste plano descabido?
– Sou viúva.
– Ah! Ainda assim, o vosso homem não vos ensinou grande coisa, pois não? E é esse o problema. O meu escudeiro espalhou a notícia de que tenho aqui uma cortesã. Alguns destes cavaleiros poderiam pensar que estais a insultá-los, ou a guardar o que tendes de melhor para outros. Podem virar-se contra vós. Eu podia explicar o erro, mas então eles podem pensar que eu estou a mentir e que é para mim que vos preservais.
Ele virou-se e percorreu com os olhos o seu corpo seminu. Ela lançou-lhe um olhar fulminante e apreensivo.
– Bom, se o objetivo é preservar-vos a vida, não há nada a fazer senão tomar-vos primeiro – disse ele. – Ensinar-vos-ei e talvez sejais capaz de os enganar.
– Não há necessidade. Arriscarei.
– Não me parece. – Passou a mão pelo corpo dela. Ela contraiu-se com aquele toque. Não era imune, mas ele já o sabia desde que a beijara. Ela tinha necessidades que não conseguia controlar, e desconcertava-a que ele lograsse alcançá-las. Se ela era o tipo de mulher que ele pensava que ela era, esta era a coisa mais assustadora que ele lhe podia fazer. Mais assustadora ainda do que os vinte cavaleiros com os quais ele a ameaçava.
Um tremor atravessou-a e passou para ele, e ele esforçou-se para o travar. A tentação de ficar com ela e esperar que o verão terminasse, com ela naquela enxerga e naquelas peles, quase venceu.
Ele afastou-se. – Agora tenho de me retirar. O trabalho no túnel requer a minha presença. Acabaremos muito antes da madrugada, contudo. Uma vez que sou eu quem manda, permito-me uma celebração precoce. – Levantou-se e ficou a olhar para ela. – Que pena dividir-vos com os outros, Melissa, mas eles sabem que vós estais aqui e seria desavisado não o fazer. Além disso, seja como for, sois minha antes e depois.
– Depois! Certamente tereis de me deixar ir embora depois.
– Chegará a hora. Quando já não tiver uso a fazer de vós.
Quando ele se virava para sair, o corpo dela deixou-se afundar num movimento de desalento, como se este último pormenor a tivesse finalmente prostrado.
*
Ian esperava com John e cinco homens perto do sopé da pequena colina sobre a qual se erguia a casa-torre. Os acampamentos estavam silenciosos e todos os seus ocupantes cuidadosamente posicionados perto da porta de armas. Acima dele, o castelo de Black Lyne erguia-se qual mastro de pedra impenetrável rodeado por uma franja de espessas ameias.
As fogueiras do acampamento estavam baixas e não davam muita luz. A sua cativa não devia ficar surpreendida por o espaço estar silencioso e vazio. Presumiria que todos estavam a trabalhar no túnel naquela noite.
Havia sido fácil fazê-la morder o isco usando de subtilezas. De certa forma, a mulher inteligente era a mais simples de enganar. A não ser, claro, que ela nos enganasse primeiro. Acontecera-lhe uma vez na vida, com resultados catastróficos, e ele jurara que jamais voltaria a acontecer.
– Tendes a certeza? – sussurrou Gregory, o arqueiro. Ele era o homem de Morvan, limitado e enfadonho, destacado para passar o verão com a companhia de Ian para ver como tudo se desenrolava.
– Tenho a certeza – assegurou Ian. – Ela sabia demasiado. Tinha contado os cavaleiros. Não sabia que Morvan está em Harclow, nem que há um mês que tínhamos acertado contas com a povoação. Além do mais, é uma senhora e não uma cortesã, nem viúva de um mercador, e só pode ter vindo de um lugar.
E se ela saiu, conseguia voltar a entrar.
Ele não sentia impaciência nenhuma. Mesmo depois de ela reparar que a corda que lhe prendia uma das mãos não estava completamente segura, ainda precisaria de algum tempo para se libertar.
A única questão era se ela escolheria a opção sensata, tentando escapar completamente, ou se se colocaria em risco ao regressar para avisar os outros. Ele contava que a senhora que se fizera passar por cortesã com o intuito de o matar escolhesse a última opção, a imprudente.

– Se estiverdes certo, será rápido e limpo. Morvan ficará agradado – disse Gregory.
Ian contava com isso. Contava aumentar ainda mais a dívida que Morvan Fitzwaryn tinha para consigo. Apesar de certas tensões antigas entre eles, Ian respeitava Morvan e estava disposto a lutar esta guerra segundo os termos peculiares deste, sabendo que Morvan o recompensaria generosamente. Pagamento avultado, no mínimo, mas Ian almejava mais. Uma vez recuperada Harclow, uma vez resgatadas as terras ancestrais arrancadas das suas mãos enquanto rapaz, Morvan regressaria às propriedades da Bretanha e à sua família, que se encontrava lá. Assim, Harclow necessitaria de um senescal para a gerir e proteger.
Ian planeava ser esse homem. Não era o mesmo que tratar das suas próprias terras, claro. Mas era de longe melhor do que a vida de flibusteiro, de ratazana de acampamento, que o destino lhe reservara durante os últimos quatro anos.
Uma sombra moveu-se perto de um dos acampamentos. A luz das fogueiras captou os reflexos prateados do cabelo de Melissa enquanto ela corria, célere, de tenda em tenda. Deteve-se na que ficava mais perto do caminho que conduzia à estrada a norte.
Anda, pequenina. Incitou Ian silenciosamente. Não percas a coragem agora. Mostra de que és feita.
Ela deu mais alguns passos rápidos, afastando-se da colina, e ele praguejou entredentes. Mas ela deteve-se abruptamente, ficou parada por um segundo, e depois, resoluta, deu meia-volta e encaminhou-se para a torre.
Ian lançou-se no seu encalço.

CAPÍTULO 3


Reyna abriu caminho através dos arbustos e encontrou a entrada da poterna. Ficou de olhos fixos na fenda escura.
Alice não estava ali para a ajudar desta vez.
Cento e quarenta metros de sepulcro subterrâneo aguardavam-na. Quinhentos passos de escuridão absoluta e pedra asfixiante.
O velho pânico de infância tentou apoderar-se dela, e ela combateu-o desesperadamente.
Regressar nunca estivera nos seus planos. A esta hora, contava ter já roubado um cavalo e encontrar-se na estrada noroeste. De manhã, deveria estar nos braços de sua mãe, a planear a viagem para Edimburgo.
A entrada chamava-a como uma boca aberta à espera de a engolir.
Era só escuridão. Não havia nada a temer.
Chamando a si cada pedacinho de coragem, deu um passo em frente.
O seu coração não tardou a retumbar com uma batida lenta e horrível. Correr faria tudo passar mais depressa, mas ela não conseguia incitar as pernas a mais do que um avanço trôpego e hesitante. Tateando a parede, combateu as velhas memórias que a incitavam à histeria.

Terror. Frio. Solidão desoladora. Garras invisíveis que se aproximavam para a agarrar.
Mas, depois, graças a Deus, outra memória. Uma luz acolhedora e um rosto bondoso e uma mão que se oferecia a ela através da escuridão. Anda comigo, criança. Ficarás em segurança e nunca mais sentirás um medo assim. Ela focou-se na imagem daquela mão, e na atenção e segurança e amor que lhe oferecia.
Caminhou um bocadinho mais rápido, imersa nela.
De repente, as mãos espectrais agarraram nela. Ela gritou e o som ressoou nas paredes de pedra, encerrando-a no seu eco.
Desatou aos socos e pontapés até uns braços fortes a prenderam contra um corpo alto e uma respiração cálida se espalhar pelo seu rosto. Atordoada, emergiu do pesadelo e deu por si rodeada pela força e pelo cheiro de Ian de Guilford.
– Calma, quieta. – Sossegou-a como se sossega um cavalo.
Num momento de desorientação, ela quase se deixou cair contra ele, grata e aliviada. Depois as memórias desvaneceram-se completamente e ela compreendeu o significado da sua presença.
Voltou a debater-se.
– Não me façais ter de vos magoar, Melissa. – disse ele, arrastando-a de volta à entrada. Segurando nela, enfiou a cabeça na abertura e assobiou.
– Seu canalha. Seu filho duma égua – sibilou ela. – Como sabíeis?
– A povoação chegou a acordo comigo há muito tempo. E vós passais por mulher de um artesão tão bem quanto passais por cortesã. – Os braços dele ainda a envolviam por trás. – Não vos sintais mal nem vos culpeis. É melhor assim para os que estão lá dentro.

Ela duvidava seriamente disso. Invadiu-a uma culpa horrível. Em vez de os salvar, tinha apressado o seu sofrimento. Desejou ter ali o punhal. Desta vez não haveria hesitação.
Um punhado de sombras impedia que a luz débil atravessasse a entrada. – Raios me partam. Tínheis razão – disse uma voz mais velha.
Ian encostou-a à parede de pedra, mantendo uma mão firme nos seus ombros. – Acabou. Não façais nenhuma estupidez – avisou.
Ela lançou um olhar furioso à sombra indefinida da sua cabeça.
Raios partam o homem. Raios o partam. Cuidadosamente, deliberadamente, esticou-se até não poder mais, inclinou a cabeça para trás, e cuspiu.
Os outros devem ter ouvido, pois abateu-se sobre o pequeno grupo uma imobilidade silenciosa. Ian agarrou-lhe a cara com força.
– Tende juízo, Melissa, ou tratar-vos-ei como a rameira que fingistes ser.
Afastou-se. – Montai-lhe guarda com a vossa espada, John.
Não a deixeis sair daqui até eu voltar para a buscar.
– Estais a dizer que eu tenho de ficar aqui? – queixou-se uma voz jovem de escudeiro.
– Fazei o que vos digo. E, John, lembrai-vos do que vos disse há pouco. Ela é minha. Não andaríeis no meu cavalo sem a minha autorização, por isso também não vos ponhais com liberdades com ela.
John praguejou e desembainhou a espada. Os outros homens começaram a avançar às apalpadelas pela escuridão.
Reyna estava encostada à parede de pedra, de frente para John, o escudeiro. À medida que os minutos passavam e ela não se rebelava, uma sensação vaga de relaxamento apoderou-se dele.
Por fim, a ponta da lâmina caiu do peito dela e ele mudou de posição e também se encostou à pedra.
Ela esforçava-se por ouvir sons da torre, mas a noite continuava silenciosa. Imaginou Ian e os outros a deslizarem do túnel para a passagem na muralha norte, a esgueirarem-se pelas sombras até à porta de armas, e a abaterem os guardas um por um.
– O vosso amo parece ser um grande guerreiro.
– Lá isso é – concordou John, orgulhoso. – Poucos conseguem estar à altura da sua espada, e ele é campeão de muitas justas e torneios. – Lançou-se numa descrição de uma justa em particular, na Bretanha, e Reyna alimentava o seu discurso com perguntas, incitando-o a sentir-se à vontade com ela.
Ainda não se ouvia som algum da torre. – Ele deve ser muito famoso em Inglaterra.
John deu uma risada. – É, com toda a certeza, mas não da maneira que pensais. O grosso dos seus combates teve lugar em França, com esta companhia livre que ele trouxe para aqui quando Sir Morvan os tomou ao serviço. Ele fez-se líder deles há muitos anos.
Reyna sabia alguma coisa sobre companhias livres, os bandos de soldados independentes e cavaleiros sem terra que se ofereciam a barões e reis em troca de soldo. Quando não tinham compromissos profissionais continuavam as suas conquistas de forma independente, montando cercos que levantariam se fosse pago um resgate. Haviam-se tornado um problema sério em França, assediando povoações e quintas. Se Morvan Fitzwaryn contratara desordeiros deste calibre para este cerco, isto não abonava nada pelo futuro da sua gente.
– Ele lutou em Poitiers no ano passado com o Príncipe Negro –
acrescentou John, defensivo, como se pressentisse a desaprovação dela. – Salvou a vida a Sir Morvan lá. Morvan tem uma velha contenda com a família Beaumanoir da Bretanha, e foram atrás dele no campo. Ian nem sequer sabia quem ajudava, apenas viu os cavaleiros a tentar derrubar Morvan e entrou na luta por desporto.
– Tal heroísmo torná-lo-ia decerto famoso.
– Não, não é isso. Não em Inglaterra. Aqui penso que ele é mais conhecido pelo jeito que tem com as mulheres.
– Sir Ian é um homem atraente, não posso negá-lo.
– Isso é dizer que o mar é uma poça de água. O meu amo tem de enxotar as mulheres com a espada. Sejam grandes senhoras ou criadas de cozinha, atiram-se todas a ele. – Ele soltou um suspiro de admiração e depois inclinou-se, conspirador, na direção dela. –
Quando cá regressámos, disseram-me que, em Windsor, a corte lhe tinha atribuído um nome especial, como um título.
– Um nome especial? Um título honorífico?
– Sim. – Ela quase conseguia ouvir o sorriso afetado do jovem.
– Em Windsor e Londres é conhecido como O Senhor das Mil Noites.
Reyna desatou às gargalhadas e John, desrespeitosamente, acompanhou-a. Isto era muito bom. Havia homens que recebiam designações baseadas nos seus feitos audazes. O Herói disto e daquilo. Ian de Guilford fora imortalizado pelo número de vezes que havia fornicado.
Enquanto conversava com John, Reyna não parou de tatear o chão com o pé. Quando o riso desvaneceu, ela encontrou o que procurara. – Isto foi um erro – disse ela.

– Não, minha senhora. Sir Ian também acha isto divertido.
– Não me referia a isso. Eu estive enfiada naquela tenda durante muito tempo, e a rir… o que quero dizer é que preciso de…
– Precisais de?… Ah!
– Talvez pudésseis aguardar um pouco à entrada – sugeriu ela. –
Assim, certamente que eu não conseguiria sair.
Ele ponderou, depois avançou alguns passos e posicionou-se, de costas voltadas, à entrada.
Reyna aninhou-se e deparou com o pequeno pedregulho que o seu pé tinha tocado. Erguendo-o com ambas as mãos, avançou cuidadosamente na direção de um John incauto. Erguendo-a por cima da cabeça, deixou-a cair. O jovem estatelou-se redondo no chão.
Enchendo a mente de temor pela sua gente, para afastar os terrores da infância, avançou apressada pelo túnel de pedra.
Sentia-se dominada por emoções contraditórias. Determinação letal. Resignação apática. Preocupação dilacerante.
E, permeando-as a todas, sem cessar, os tentáculos do terror que se esticavam na escuridão implacável para a enredar.
A quinze metros do fim, a mão dela encontrou a abertura que procurava. Outro túnel desviava-se a partir daqui, a um ângulo estranho do túnel principal, quase invisível mesmo com um archote.
Este continuava por baixo do pátio até à própria torre.
Ela entrou, abaixada, correndo mais veloz, pois de certeza que, a esta altura, Ian já teria chegado à porta de armas. Alcançou finalmente as escadas e, detendo-se apenas um segundo para recuperar o fôlego, deu início à longa subida pelas paredes da torre.
Degraus de pedra, um monte deles, erguiam-se na escuridão.

Mal conseguia respirar quando, por fim, conseguiu chegar lá acima.
Exausta e com as pernas bambas, empurrou a parede de pedra. A parte de baixo cedeu e ela caiu no quarto principal.
Ficou deitada no chão, debatendo-se para respirar, deleitando-se com a luz que a banhava. Num primeiro momento, assumiu que o aposento estava vazio, de tão absoluto que era o silêncio.
Depois, uns braços fortes agarraram nela e ergueram-na. Ela olhou para o rosto bondoso e preocupado de Sir Reginald.
– A porta de armas – disse, arquejante. – Eles estão cá dentro e vão abri-la para os outros entrarem.
– O quê? – disse uma voz estrondosa atrás dela.
Ela virou-se e deparou com Sir Thomas Armstrong e cinco outros cavaleiros. Ela viera aterrar no meio de um conselho. – Eles transpuseram a muralha e estão cá dentro. – Ignorou o olhar desconfiado que Thomas lançou ao seu vestido rasgado e ao cabelo solto. – Um pequeno grupo entrou pelo túnel. Tomarão a porta de armas e levantarão a grade. Deveis apressar-vos.
– E como é que eles encontraram o túnel? – rosnou Thomas.
– Não há tempo para isto. Fazei o vosso inquérito amanhã.
Thomas aproximou-se dela a passos largos e plantou o seu rosto de barba escura mesmo à frente dela. – Como se o vosso último crime não tivesse sido suficientemente mau, agora entregastes a torre? Procuráveis a vossa própria segurança vendendo-nos a todos? Bem disse a Robert e a Maccus que nunca poderiam confiar numa Graham.
– Enquanto permaneceis aqui a acusar-me, esta torre cairá. Ide à porta de armas. Se tiver caído, rebentai com as escadas que dão para a torre.
Ao mesmo tempo que ela gritava, a porta do quarto principal abriu-se de rompante e um guarda entrou a correr. – O portão está aberto – informou. – Alguns já estão lá em baixo no salão.
Thomas olhou em redor, para os outros cavaleiros, com olhos de pânico, enlouquecidos. Nenhum deles tinha a armadura posta, e dois deles nem sequer tinham consigo as espadas.
Reyna duvidava que estes homens vivessem muito mais tempo se se entregassem a tal combate. – Usem o túnel da poterna – incitou.
– Salvem-se e vão buscar ajuda a Clivedale.
Thomas e os outros cavaleiros acotovelaram-se em direção à parte da parede que se abrira sobre as suas pesadas dobradiças interiores. Enquanto eles desapareciam pela escada abaixo, Thomas virou para ela o rosto vermelho. – Não penseis que esta traição mudará alguma coisa. Respondereis por isto, e por Robert.
Reginald deixou-se ficar para trás. Desembainhou a espada, atravessou o quarto para fechar a porta, e colocou-se à frente desta.
Querido Reginald. Doce, simples, honrado Reginald. Ela tocou-lhe no braço. – Deveis ir também.
– Jurei a Sir Robert que vos protegeria, e é o que farei. – O seu rosto vincado, sob um cabelo louro e liso, mostrava uma determinação absoluta.
Ela ouvia a atividade estridente em baixo, no salão. Gritos e barulho ecoavam do pátio também. O exército inteiro de Ian tinha entrado. Graças a ela, esta torre caíra na mão de Ian como uma maçã demasiado madura.
– Ide, Reginald, enquanto ainda conseguis. Ordeno-vos. Não podeis proteger-me se estiverdes morto. Ide com os outros buscar ajuda.
Ele hesitou. – Vinde connosco.

Ela abanou a cabeça. – A primeira coisa que Thomas fará quando me tiver em Clivedale será julgar-me. Sabeis o que pensa a este respeito, e eu não vencerei a causa. Sou uma Graham, e é difícil ignorar velhas contendas. Ninguém acreditará em mim.
– Eu levar-vos-ei para outro sítio qualquer.
– Não temos cavalos. Não, Reginald. Por estranho que pareça, estou mais segura aqui com o inimigo do que com a gente do meu marido. Durante algum tempo, pelo menos.
Sons mais próximos agora. Não havia tempo a perder. – Ide –
ordenou ela.
Com passadas vigorosas, ele encaminhou-se para a parede aberta. – Ficarei por perto e procurarei cavalos. Ficai atenta ao meu sinal, senhora. Eu tirar-vos-ei daqui tal como Robert teria desejado.
Ela viu-o desaparecer e depois colocou o seu peso contra as pedras, empurrando-as para o sítio onde estavam. Foi a correr para a lareira, onde se encontrava a espada de Robert.
Desembainhando-a, encostou-a à parede ao lado da porta. Em seguida, correu disparada para as prateleiras ao lado da escrivaninha e pegou no maior dos volumes encadernados. Pesado e sólido, exibia uma capa em prata.
Colocando-se ao lado da porta, esperou. Em breve, alguém viria investigar esta divisão. Ela sabia quem provavelmente seria.
Não demorou muito. Passos soaram no corredor e estacaram do outro lado. A porta abriu-se lentamente e o brilho das velas reflectiu no metal. Ela susteve a respiração, com a porta aberta a obscurecer a sua presença. Quando conseguiu vê-lo por inteiro, de costas para ela, avançou, ergueu o tomo e baixou-o sobre ele.
A um homem mais baixo, ela podia ter provocado danos graves, mas a pancada apenas fez Sir Ian cambalear, perder o equilíbrio por um momento. Bastou esse instante para Reyna agarrar na espada de Robert, colocar-se frente a ele, e encostar-lhe a lâmina ao pescoço.
Ele ainda tinha a arma na mão e olhou-a, primeiro com surpresa, depois fúria.
– Largai-a ou corto-vos o pescoço – disse ela. – Desta vez não duvideis da minha determinação, filho do Diabo, pois deixastes bem claro que não tenho nada a perder.
Murmurando uma praga, ele deixou a espada cair ao chão.
– Agora fechai a porta e trancai-a.
Ele fez como ela lhe disse, sem que ela afastasse a lâmina de perto dele. – Para o chão, agora, de barriga para cima.
Cerrando os dentes, ele esticou-se aos pés dela. Em pé ao lado dele, Reyna pousou a ponta da espada no seu pescoço.
Ele fulminou-a com o olhar. – Quem sois vós?
– Reyna, mulher de Robert de Kelso.
A surpresa sobrepôs-se brevemente à raiva. – Esperava alguém mais velho. Ouvi dizer que Sir Robert morreu não muito antes de cá chegarmos. Mandais neste sítio?
– Não. Maccus Armstrong, o nosso suserano, enviou o sobrinho, Thomas, para tomar conta das terras depois de Robert morrer.
– E onde estão Sir Thomas e os outros cavaleiros?
– Foram embora.
– Sem dúvida que saíram da mesma forma que vós entrastes. Se John tiver sido ferido, as coisas ficarão feias para o vosso lado.
– Neste momento, estão feias para o vosso.
Ficaram alguns instantes em silêncio, a espada de Reyna no pescoço dele, os seus olhos profundos como poços erguidos na sua direção. – Se me matardes, não haverá forma de controlar estes homens – disse ele.
– E se eu não vos matar?
– Dizei os vossos termos. Não tenho outra escolha senão ouvir.
– Os rendeiros devem ser deixados em paz. Os vossos homens não deverão agredi-los nem roubá-los.
– Não lhes fizemos mal algum nestes últimos meses. Não vamos começar agora.
– Não haverá violações nem torturas nem execuções.
Ele esboçou um sorriso desmaiado. – Assim será.
– As crianças serão bem alimentadas, e não serão maltratadas.
– Sim, e além disso, prometo que não assaremos bebés no espeto. Há vários anos que perdi o gosto por tais coisas.
O tom gozão enfureceu-a. Ela encostou a ponta da espada à pele dele, fazendo escorrer um pouco de sangue. Ele ficou muito quieto.
– Há mais uma coisa. Dar-me-eis um cavalo e uma escolta para eu ir para onde quiser.
O olhar dele subiu pela espada, e depois pelo corpo dela acima, até encontrar os olhos dela. – Isso eu não posso fazer.
– Claro que podeis. A vossa vitória, e a forma como se deu, faz com que agora eu não possa permanecer aqui.
A expressão dele suavizou-se um pouco. – Compreendo a vossa posição, mas não posso deixar-vos partir. Quando vim para cá, Morvan deu-me poucas ordens, deixou tudo ao meu critério.
Mas uma dessas ordens foi muito clara. Se, de alguma forma, eu tomasse esta torre, deveria zelar pela segurança de Lady Reyna.
Visto que sois ela, não posso deixar-vos partir.

– A minha segurança? Sir Morvan deu uma ordem que me dizia respeito? Porquê?
– Acredito que tenha sido a pedido do vosso pai.
– A pedido de Duncan Graham? O que é que Sir Morvan tem a ver com Duncan e os Graham?
– Tem uma aliança com eles para garantir uma posição neutra da parte deles neste conflito. A vossa segurança foi condição desse acordo.
– Eu ficarei perfeitamente segura se partir. Mais segura, na verdade. Tendes de o permitir.
– Não. Tirando isso, aceito os vossos termos. Tratarei o povo daqui como se fosse meu desde que me obedeçam, e os homens mostrarão comedimento. Há mais alguma coisa?
A mente confusa de Reyna não conseguia pensar em mais nada.
– Então afastai a vossa arma e colocai-a no chão. A torre foi tomada e as terras há muito que estão sob nossa alçada. Fizestes o vosso melhor pelo vosso povo, e negociastes bem. É altura de vos renderdes.
Ela deu um passo atrás e fez o que lhe disseram. Ele ergueu-se, fez os poucos passos que o separavam dela, e ficou ali, com a sua fúria contida a extravasar de forma perigosa.
– Agora, senhora, ouvi-me atentamente, pois só vos direi isto uma vez. Por duas vezes me apontastes uma arma. Da próxima vez, estai preparada para a usar. – Agarrou no braço dela e arrastou-a até à porta da divisão. – Vireis comigo ao salão ouvir-me dar as minhas ordens, para saberdes que cumpro a minha palavra.
Os habitantes do castelo enchiam o salão. Quando ela e Ian entraram, os seus olhos encontraram rapidamente Alice. A velha cozinheira rechonchuda encolheu os ombros, solidária.

Ian arrastou-a com ele para a frente da multidão, para cima do estrado onde estava a mesa principal. Ela analisou o mar de rostos.
Alguns compadeciam-se da sua posição difícil, mas a maioria revelava suspeita. Ela adivinhou que já sabiam da sua presença em campo inimigo, e todos tiravam conclusões segundo os seus próprios preconceitos.
Um gesto de Ian reuniu as atenções e fez-se silêncio. –
Reivindico estas terras em nome de Morvan Fitzwaryn – começou.
– Alguns de vós tendes idade para vos lembrardes do seu pai, a quem Maccus Armstrong tomou Harclow muitos anos atrás. Sir Morvan vem reivindicar o que lhe pertence por direito, e que o rei Eduardo lhe devolveu por decreto. Não se trata de serdes conquistados por um exército, mas sim do regresso do vosso verdadeiro amo. Obedecei e sereis bem tratados. Todo o homem que der a sua palavra de honra tem liberdade para circular nestas terras.
A tensão que se sentia no salão soçobrou, transformando-se numa onda de alívio. Ian arrastou Reyna para o exterior, para o topo das escadas da torre, e falou com o exército reunido lá em baixo. Ali, os mercenários ouviram que não haveria violações, pilhagens, nem matança.
– Estais satisfeita, senhora? – perguntou ele logo que terminou.
– Se eles obedecerem. Presumo que as vossas ordens se estendam a mim e que já não esperais que entretenha os vossos cavaleiros.
A luz do archote dançava no seu belo rosto, fazendo a sua beleza parecer misteriosa. Ele envergava uma túnica sem mangas, e a ligadura que tinha no braço onde ela o cortara sobressaía como um estandarte.

– Estendem-se a vós. Mas não procurarei criar aqui nenhum mosteiro. Não interfiro com a vontade entre adultos. Deveis dizer às mulheres para evitarem mal-entendidos.
– Então os vossos homens podem dormir com qualquer mulher que esteja disposta a isso. Isso estende-se a mim, também? Se eu tiver vontade posso levar para a minha cama um homem que me agrade?
Ele exibiu o seu sorriso desarmante, devastador. – Sim.
Esticou o braço e tocou ao de leve na bochecha dela e depois levantou-lhe o queixo. Era um gesto que revelava familiaridade, afeto até. Ela compreendeu naquele instante que ele não presumia simplesmente que ela o considerava atraente porque todas as mulheres o faziam, mas tinha-o como dado adquirido porque sentira as reações dela ao beijo e carícias dele.
Ela maldisse o pequeno arrepio que anulou os seus esforços para ficar indiferente ao toque dele. Era desconcertante que ele surtisse tal efeito. As reações dela, e o facto de ele saber, enchiam-na de raiva.
– Qualquer homem que me agrade?
Ele abanou a cabeça. – Só este.
Ela afastou-se do toque dele, e colocou um dedo nos lábios, pensativa. Muito lentamente, pôs-se a andar à volta dele, examinando-o, tal como ele lhe tinha feito a ela naquele dia. Quase não resistiu ao impulso de lhe apalpar os músculos e lhe espreitar por baixo do casco. Quando completou o circuito, viu o misto de diversão e aborrecimento nos olhos dele. Ela montara uma armadilha a este inglês presunçoso, e ele sabia-o.
– Bem, Sir Ian, se é vosso objetivo tornar-vos conhecido como o Senhor das Mil e Uma Noites, podeis ir procurar a outro lado. –

Sentindo a única satisfação que retirara deste dia pavoroso, empertigou-se, rodou nos calcanhares e saiu.
– Reyna – disse ele numa voz doce. – Penso que acabo de ouvir o som de uma luva a ser atirada.

CAPÍTULO 4


Na manhã seguinte, Ian enviou metade da companhia para Harclow com novas da captura da casa-torre. Depois, começou a distribuir os homens que ficaram pelos quartos e aquartelamentos e a decidir quem ficava lá fora, no acampamento.
Enquanto organizava o comando da torre, não parou de procurar o corpo esguio e o cabelo louro-prateado da viúva de Robert de Kelso.
Ela nunca apareceu. Se ele não tivesse a certeza de que ninguém se esgueirara por entre os guardas que ele havia colocado no término da poterna, teria suspeitado que ela escapara. Sucumbindo à curiosidade e à preocupação, entrou no quarto dela, ao lado do quarto principal. Pergaminhos apinhavam-se numa mesa no quarto espartano, mas a senhora permanecia invisível.
Ele compareceu à refeição do meio-dia cansado, com fome e num estado de alguma expectativa. O seu estômago lembrava-se do gosto das empadas de Reyna tanto como os seus lábios se lembravam do orvalho da sua pele. Estava desejoso de se banquetear com a comida deliciosa da cozinheira da torre e de trocar galhardetes com a vivaz e pequena Reyna.
Sentando-se na cadeira do castelão, à mesa principal, ficou aborrecido por o lugar ao seu lado ser rapidamente tomado não por Reyna, mas por Margery, mulher de Thomas Armstrong, uma das senhoras que tinham ficado para trás quando os cavaleiros fugiram.
Margery era uma mulher atraente, de feições vivas, de trinta e poucos anos. Trazia o cabelo ruivo dentro de uma coifa intrincada e tinha uma figura generosa que o seu guarda-cós justo realçava. O
seu sorriso era caloroso, e Ian, sentindo uma pouco usual falta de confiança relativamente às suas hipóteses de sucesso com Lady Reyna, retribuiu o sorriso.
Ele deixou o efeito assentar e voltou a atenção para a comida, que entrava. Fora amaldiçoado com um estômago perfeitamente desapropriado para um soldado. Comer a comida do cozinheiro da companhia fora a maior tortura da sua vida de acampamento dos últimos anos. Saber que aquelas empadas tinham vindo da torre quase teria sido incentivo suficiente para assaltar as muralhas caso a armadilha que montara a Lady Reyna tivesse falhado.
Enquanto o caldeirão se aproximava, ele observou desconfiado o seu conteúdo. As colheradas da mixórdia que aterraram no seu prato tinham um aspeto desconsoladamente familiar. Molhou algum pão e provou. O gosto insípido fê-lo ficar imediatamente sem apetite.
Andrew, o intendente da fortaleza, andava pelo salão e Ian chamou-o. – Quem preparou isto?
– O cozinheiro.
– O vosso cozinheiro ou o meu?
– O nosso, mas o vosso supervisionou. Não foi nada para a panela que ele não visse. Pode comer com completa confiança.
Andrew falou no tom de quem procurava tranquilizá-lo. O
homem andava pelos cinquenta e muitos, baixote e de constituição pequena, com cabelo e barba grisalhos impecavelmente arranjados.
Tinha uma postura áulica, contida, marcada por uma impassibilidade elegante.
– Porque não teria confiança na comida?
Lady Margery inclinou-se para ele. – Dadas as circunstâncias, não quereríeis comer uma coisa qualquer aqui, não é verdade? Eu decerto que não – afirmou ela.
– Que estais a insinuar, senhora?
– Bem, considerai que Robert foi envenenado, e que Alice, a cozinheira, foi sempre praticamente uma mãe para Reyna, e que veio com ela da casa dos Graham. Reyna ajuda Alice por vezes, e preparou pessoalmente a comida do marido durante os últimos dias dele… – Margery ergueu intencionalmente as sobrancelhas. –
Depois de virmos para aqui, o meu marido pediu sempre para haver um homem a vigiar a preparação da comida. Substância nenhuma entrou na comida servida neste salão sem ser verificada pelo vigia.
Ian ficou a olhar para o prato. Se era o seu próprio cozinheiro que agora fazia a supervisão, queria dizer que nenhuma erva, fruta, raiz ou qualquer outra coisa que conferisse sabor chegaria alguma vez ao interior da panela.
– Presumi que quereríeis dar continuidade a esta prática –
afirmou, impávido, o intendente. – Atendendo a que sois o inimigo.
Ian dispensou Andrew e decidiu dar mais atenção a Lady Margery. – O que quereis dizer, que Sir Robert foi envenenado?
– Um dia estava rijo como um pero e no outro a vomitar e em sofrimento. Três dias depois estava morto.
– Ele tinha mais de sessenta anos, ouvi dizer. Os velhos morrem.
– Sim, e a princípio a maioria estava inclinada a pensar dessa forma, exceto alguns de nós, que duvidámos desde o início. Afinal, Reyna cuidava dele, e muitas vezes cozinhava para ele à noite se ele chegava tarde dos domínios. É um interesse pitoresco dela. Não muito apropriado para uma senhora, mas também nem aqueles livros nem as cartas o são. Além disso, os criados dizem que ela lhe deu poções quando ele estava doente que pareciam pô-lo pior.
Mas o maior indício foi a carta do bispo.
Ian não conseguiu evitar sentir-se curioso. – E esta carta era o quê?
– Pouco depois de Maccus enviar para aqui o meu marido, chegou uma carta para Robert, do bispo de Glasgow.
Aparentemente, Robert escrevera-lhe pedindo conselho sobre um assunto da maior importância. A carta dizia respeito a esse assunto e dizia que o bispo investigaria a sua resolução, mas não podia visitá-lo pessoalmente antes do fim do verão.
– Que assunto era esse?
– A carta não dizia, mas é evidente, não é? Robert planeava libertar-se de Reyna e procurou conselho com o bispo sobre como proceder. Maccus enfeudara estas terras a Robert e aos seus descendentes, mas não há herdeiros. Eles estavam casados há doze anos e ela é estéril. Tal como disse, o tempo de Robert era limitado.
– E então pensa-se que a senhora, sabendo o que o marido planeara, o matou? – Colocou na sua voz mais sarcasmo do que verdadeiramente sentia. Havia maridos que tinham sido eliminados por menos. – Não é grande prova.
– Juntamente com a tentativa dela de escapar ao julgamento, ajudando-vos ontem à noite, parece-me ser prova suficiente.
Ian quase explicou que Lady Reyna não fora ter com ele para trair a gente dela mas para os salvar, e que entretanto tentara matá-
lo. No momento exato em que as palavras se formaram, ele rechaçou-as. Reyna não dissera nada sobre a noite anterior em defesa própria, e agora ele compreendia porquê. A tentativa que ela fizera de o assassinar só viria sustentar esta outra acusação contra ela.
Tê-lo-ia feito? Ele tinha um corte no braço que testemunhava que ela era capaz de tais coisas. Ela planeara fugir, sinal habitual de culpa, e tentara negociar a sua partida mesmo quando a torre caía.
E, contudo, embora tivesse aprendido a manter um ceticismo saudável no que respeitava à honestidade e constância das mulheres, não tinha sentido mal algum nesta. Muito pelo contrário.
Com a intimidade da coscuvilhice a uni-los, Lady Margery continuou a tagarelar no decorrer da refeição. Ian não prestou muita atenção às suas histórias sobre a velha querela entre os Armstrong e a família de Reyna, os Graham, a qual, na opinião de Margery, só reiterava a culpa de Reyna. Ele não se deu ao trabalho de mencionar que Sir Robert não era um Armstrong, pois a sua fidelidade a Maccus fazia com que praticamente o fosse.
Durante todo este tempo, ele não tirou os olhos das várias entradas para o salão, à procura de Reyna. Os cinco pisos da torre estavam ligados por dois conjuntos de escadas, para não mencionar as escadas secretas que ele tinha descoberto no interior das paredes. Isto dificultava a tarefa de localizar alguém que não queria ser encontrado.
Contemplou o salão que ocupava o segundo piso e fez uma avaliação aproximada das suas dimensões. Comparou-o de memória com o exterior do edifício. As paredes deviam ter uma espessura de quase cinco metros. Bem eram necessários para suportar o peso na base, mas, mais para cima, algumas das paredes teriam provavelmente sido convertidas em câmaras.
Lady Reyna podia viver aqui até idade avançada sem que ele voltasse a vê-la.
– Lady Reyna não tem comparecido às refeições – comentou ele com Margery, interrompendo-a quando ela começava a indagar sobre o seu passado. Ele perguntou-se o que teria dado às mulheres a noção de que os homens gostavam de falar de semelhantes coisas.
– Ela nunca o faz. Pelo menos não desde que eu e Thomas chegámos. Come na cozinha com Alice. Alguns outros também.
Ian afastou a cadeira da mesa. Ainda não visitara as cozinhas.
Esta parecia ser uma boa altura.
Enquanto descia as escadas de pedra, chegaram-lhe aos ouvidos sons de conversa e de riso. Assim como o aroma de muito boa comida.
A conversa cessou quando ele surgiu à soleira da porta. Duas mesas de tábuas, com vinte e cinco pessoas cada, ocupavam a parte central da divisão, e uma criada mexia um pote pendurado na grande lareira. Andrew Armstrong comia aqui, assim como algumas criadas e dois homens que ele identificou como moços de cavalariça. Uma mulher rechonchuda de mais idade, que ele adivinhou ser Alice, estava sentada entre dois rapazes de cerca de oito e dez anos. Viu outras crianças a espiá-lo por detrás das mães e pais. Não viu Reyna.
Na ponta de uma das mesas avistou o homem de Morvan, Gregory, e caminhou até lá com cinquenta olhos postos nele.
Gregory sorria envergonhado. – Estava a passar por aqui, e parecia um grupo alegre – explicou ele.

Ian olhou para o prato de Gregory. Uma fatia de pato de aspeto suculento e uma mistura colorida de raízes mergulhados em molho castanho. O cheiro fez-lhe vir água à boca. Obviamente, Alice cumpria o seu dever para com os comensais do salão e depois praticava a sua arte para este pequeno grupo.
Tirou um pedaço do pão de Gregory e mergulhou-o no molho.
Este quase chegara à sua boca, quando uma colher de madeira lhe passou à frente do rosto como uma catapulta. Acertou-lhe em cheio na mão e o pedaço de pão voou para o outro lado da cozinha e caiu no chão.
– Nem vos atrevais, seu filho duma égua inglês – advertiu uma voz conhecida.
Ele virou-se surpreendido para a criada que mexia o pote à lareira, só que não era uma criada mas sim Lady Reyna, que envergava um vestido simples, solto, e tinha um lenço atado à volta da cabeça.
Ela brandiu a colher à sua frente. – Nem uma dentada, seu diabo. Se ficardes doente, não quero ver ninguém a apontar para a Alice nem para mim. – Ocupou o lugar dela no banco. – Além disso, não há que chegue para vós, e por causa do vosso maldito cerco esta é a primeira carne que estas mulheres e crianças comem há mais de um mês.
Ian registou mentalmente que um destes dias deveria falar com a senhora acerca da mania que ela tinha de praguejar. – A torre estava assim tão mal provisionada? Deveria haver peixe e carne secos que chegassem para esse tempo.
Da outra ponta da mesa, Andrew Armstrong tossiu para chamar a atenção. – Sir Thomas ordenou que só os homens comessem dessas coisas. Poderiam ter de combater, e não havia forma de prever a duração do cerco. É costume, claro.
Sim, era costume, e Ian já o vira e provocara anteriormente, o que não impediu um sentimento de culpa pouco habitual.
– Quem cozinhou esta comida? – perguntou, pegando em mais pão, mergulhando-o no molho, e enfiando-o na boca antes que Reyna conseguisse atacar. Delicioso.
– Alice e eu própria – disse Reyna, de olhos cravados no pescoço dele, desafiando-o a engolir.
Estas, então, eram as pessoas do castelo que não a consideravam culpada do envenenamento. Muito deliberadamente, voltou a embeber o pão, enfiou-o na boca, e mastigou com calma.
– Todos vós deixareis de comer aqui. Juntar-vos-eis aos outros, no salão – ordenou. – Alice, cozinhai como bem entenderdes, com a ajuda que escolherdes. Ninguém ficará a vigiar. Gregory, organizai algumas caçadas para que tenhamos carne fresca com fartura. – Virou-se para Reyna – Vós, senhora, comparecereis a todas as refeições. Quando a comida for trazida, comereis primeiro.
O lenço, que lhe cobria quase completamente a testa e estava atado atrás do pescoço, escondia-lhe por completo o cabelo preso. Ele achou que não era por isso que ela deixava de ter um aspeto fresco e encantador. Interrogou-se se não teria passado por ela várias vezes hoje e simplesmente não a tinha reconhecido.
Os lábios sensuais de Reyna contraíram-se. – O que vos dá tanta certeza de que não me mato só para ter a oportunidade de me ver livre de vós e do vosso exército?
– Poderíeis, se se tratasse apenas de vós, mas não colocaríeis a vossa gente em risco, isso eu sei – disse Ian, retirando-se para as escadas. – Além disso, senhora, se soubésseis uma receita de veneno, já estaríeis morta.
Mais tarde, Andrew Armstrong aproximou-se enquanto Ian comandava o amuramento da poterna. Apesar do calor e do seu gibão de lã, o intendente permanecia fresco e aprumado. Quanto a Ian, suava como um cavalo de lavoura.
– Há um pequeno problema, senhor – disse Andrew, com suavidade.
– Que tipo de problema?
– É o poço. Parece ter secado. Hoje de manhã estava ótimo, mas alguns criados foram buscar água mesmo agora e… nada. –
Andrew virou as palmas das mãos para cima com um meio-sorriso.
Os dotes eufemísticos de Andrew arrancaram um suspiro de Ian.
O poço secar não era propriamente um pequeno problema. –
Mostrai-me.
Fez atrás de Andrew os quarenta passos até à única entrada da torre a partir do salão, e os quarenta degraus da descida até à cozinha. Malditas casas-torre fronteiriças. Num dia ficara a odiar os degraus infinitos.
Numa pequena cela à saída da cozinha, Andrew indicou o poço faltoso com um pequeno floreado. Ian puxou pelo balde e deixou-o cair, preso pela corda, até ouvir um baque em vez do som de água.
Voltou a puxá-lo, apesar de saber que estaria vazio. – Isto já aconteceu antes?
– Estou aqui há mais de vinte anos, desde que Maccus ocupou as terras. Uma vez, durante uma seca, só.
– Tem estado mais quente e seco do que o habitual, mas não é nenhuma seca.

– Bem, com a água nunca se sabe, pois não?
Ian começou a percorrer o compartimento em linhas metódicas.
– Robert de Kelso esteve nestas terras durante todos esses anos?
– Só depois do casamento com Lady Reyna. Foi um acordo para acabar com a guerra aberta entre as famílias Armstrong e Graham, iniciada oito anos antes. Maccus não tinha filhos nem sobrinhos solteiros para representarem os Armstrong e todas as pessoas daqui sabiam que o seu cavaleiro, Sir Robert, era um homem honrado. Até Duncan Graham o respeitava. Quando o enlace foi acordado, Sir Robert recebeu estas terras. Recebia-as através de Maccus, mas estava subentendido que seriam uma zona-tampão entre os Armstrong a norte e a sul e os Graham a este.
Uma área neutra, por assim dizer.
Ian passou os dedos pela juntas da parede de pedra. – A senhora devia ser muito nova na altura do casamento. Uma criança.
– Tinha doze anos. A Igreja autoriza, com essa idade.
Ian encontrou alguma argamassa solta, pegou no punhal e começou a explorar. – Presume-se que Sir Robert tenha aguardado antes de a levar para a cama.
– Não sei dizer.
Sabia sim. Ele era o tipo de intendente que sabia tudo. Ian puxou pelas pedras que tinha estado a investigar. Não se mexeram.
Reiniciou a sua marcha ordeira, para a frente e para trás. – Que tipo de homem era Sir Robert?
– Era um homem bom. Um cavaleiro corajoso, muito honrado, e algo estudioso.
– Achais que ela o matou?
Andrew ponderou antes de responder. – Quando apareceu aqui, ela era um rato assustado. Em sua casa, houvera pouco amor e muita discórdia. Robert proporcionou-lhe liberdade, asas, cuidados. Não, não penso que ela o tenha matado.
Ian dirigiu novamente a sua atenção para o poço. – Sabeis, decerto, que não está seco.
– A sério?
– O balde não bateu em lama, nem sequer terra seca. Veio para cima tão limpo como foi para baixo. Alguém tapou a água com alguma coisa. Uma porta ou uma tábua. Como achais que ela o fez?
– Ela? Não estou certo de vos compreender, Sir Ian.
– Lady Reyna. Vejo aqui a mão dela. Como é que ela foi até lá abaixo? Não encontro alçapões escondidos no chão nem nas paredes.
Andrew encolheu os ombros. Ian sabia que, a não ser pela tortura, não conseguiria pôr o homem a falar. – Bem, intendente, que sugeris?
Andrew pareceu ponderar o assunto. Ian não se deixava enganar nem um pouco. – Teremos de fazer o mesmo que o vosso exército fazia. Para o banho há o rio, e uma fonte aqui perto tem água boa para cozinhar. Esta última pode ser trazida todos os dias para dentro, e para lavar roupa mandam-se as mulheres ao rio quando for preciso. Com guarda, se preferirdes.
Ian estivera a matutar sobre o propósito desta sabotagem, mas a solução de Andrew avançara a explicação. Para abastecer a torre de água, para os banhos desta altura quente de verão, o portão teria de ser aberto com frequência. A torre tornar-se-ia significativamente mais vulnerável.
Ele fulminou com o olhar o poço que, subitamente, viera dificultar muito mais o seu trabalho neste sítio.

Devia ter deixado Reyna ficar com um cavalo e ir a galope até ao Inferno se quisesse.
Ao fim da tarde, o salão encheu-se para o jantar. Lady Margery voltou a sentar-se à direita de Ian, mas ele certificou-se de que o lugar à sua esquerda permanecia vazio, para Reyna. Além deste, o único lugar livre na mesa principal situava-se perto da ponta, entre seis dos seus cavaleiros.
Fora preparado veado com molho. Os habitantes do castelo sabiam que Alice e Reyna tinham cozinhado sem supervisão e limitavam-se a debicar pão com um ar de desalento. O aroma dos pratos preenchia o salão e ouviam-se estômagos a roncar. Por fim, os homens de Ian atacaram corajosamente as suas porções, e mais uns poucos atreveram-se a imitá-los.
Reyna fez uma aparição súbita nas escadas e todos os olhos se viraram para ela. Trazia vestido um bonito guarda-cós azul que lhe ficava mais largo do que o devido. Tinha o cabelo louro preso numa trança espessa que lhe descia pelas costas. Com uma expressão determinada, atravessou o salão a passos largos em direção à mesa principal. Colocou-se atrás de Ian, e ele esperou que ela se sentasse no lugar ao seu lado.
Em vez disso, ela esticou um braço por cima do ombro dele e arrebatou-lhe do prato um pedaço de carne.
Ergueu-o com dramatismo e examinou-o. Lançando um olhar de desafio pela assembleia, colocou a carne na boca, mastigou bem e engoliu tudo. Ergueu os olhos para o céu, como se à espera do julgamento divino. O silêncio tomou conta do salão enquanto todos olhavam e esperavam que a carne lhe chegasse ao estômago.

Ian sorriu com este espectáculo, e voltou-se para começar a comer.
Um gesto violento ao seu lado interrompeu-lhe o movimento.
Reyna estava aflita. O seu rosto ficou vermelho. Curvou-se, com o braço agarrado à barriga. Caiu ao chão.
Foi um pandemónio. Os homens gritavam e as mulheres berravam. Aqueles que tinham comido ficaram a olhar para os pratos, horrorizados. Alguns levantaram-se e introduziram os dedos na boca.
Ian arrastou a cadeira para o lado e ajoelhou-se ao lado de Reyna. Céus, tinha-a matado. Com todos os rumores acerca de um envenenador, devia ter considerado a hipótese de ser verdade, mas que fosse outra pessoa que não Reyna.
Sentiu um vazio e uma impotência incríveis enquanto via o veneno cumprir a sua tarefa. Reuniu-se uma multidão em redor deles, num fascínio mórbido e silencioso. Por fim, desesperado por tentar fazer alguma coisa para a salvar, aproximou-se para a virar e tentar forçar a carne a sair.
Quando as mãos dele agarraram o corpo, espalhou-se uma lassidão pelo rosto e membros de Reyna. Ian sentiu um aperto no peito ao contemplar aquela paz mortal. Sentiu uma necessidade avassaladora de abraçar o último calor da vida dela, e começou a fazê-lo.
As pestanas dela abriram-se. Aqueles lábios adoráveis mexeram-se. – Tirai as mãos de mim, inglês.
Um tenso momento de silêncio foi a resposta à sua miraculosa ressurreição, ao que se seguiu o estrondo de sonoras risadas pelo salão. Reyna desembaraçou-se das mãos dele e tentou levantar-se.
A fúria que o susto lhe provocara atravessou-o como trovões.

Pôs-se em pé, e a seguir ergueu-a. – Fazei algo parecido outra vez e eu…
– Vós o quê? – sibilou ela enquanto compunha o vestido e tentava soltar o braço. – Enganais-me para que traia a minha gente e volte a este lugar que só me reserva perigo? Mantendes-me aqui à espera do julgamento que chegará a qualquer momento? Forçais-me a cumprir um ritual a todas as refeições que só confirma as suspeitas de todos?
Ian olhou-a nos olhos e ela devolveu-lhe o olhar, corajosa e beligerante. – Sentai-vos – ordenou ele, volvendo a instalar-se na sua cadeira.
Reyna afastou-se e deixou-se cair no lugar que estava livre, no meio dos cavaleiros, o que o irritou ainda mais.
Ainda fora de si pela forma como Reyna o fizera passar por idiota, ainda perturbado pelo profundo desespero que sentiu quando pensou que ela estava a morrer, Ian desviou propositadamente o olhar da mulherzinha loura e dirigiu o seu sorriso mais encantador a Lady Margery.
Ele ocupou-se com Margery durante a refeição, mas parte da sua atenção manteve-se bem fixa na outra ponta da mesa. Ouviu a conversa ligeira enquanto Reyna gracejava com os cavaleiros.
Ouviu a lisonja floreada de Sir Lionel. Reparou nas insinuações de Sir George. Finalmente, alguém contou uma piada silenciosa e eles desataram a rir.
O olhar dele foi ter a Reyna. Sorria vivamente, e as maçãs do seu rosto subiam de modo encantador. Reparou que na realidade nunca a tinha visto sorrir antes. Transformava-lhe as feições, dando-lhe um aspeto muito jovem e doce.
Sir Lionel e Sir Matthew sorriam-lhe radiantes, fascinados.

Provavelmente, começariam a escrever-lhe poemas ainda antes da noite cair. Sir George, todavia, observava-a com uma expressão encoberta, predatória.
Ian pensou nos beijos simples dela. Uma viúva e não uma virgem, e, tanto quanto ele sabia, nem sequer virtuosa; mas o que George presumia, ela também não era.
Morvan dissera-lhe para zelar pela segurança dela. Bem, só havia uma forma de o fazer.

CAPÍTULO 5


Reyna observava reticente a reação dos homens ao seu redor.
Suscitara atenções semelhantes antes, de cavaleiros ou lordes que estavam de visita, mas a sua condição de mulher de Robert protegera-a de complicações indesejadas.
Ponderou como lidar com os avanços, se os houvesse. Talvez homens destes se tornassem perigosos se uma mulher não os rejeitasse da forma apropriada.
As vozes ao seu redor calaram-se abruptamente. Os homens olhavam para lá dela, através dela. Ela sobressaltou-se quando sentiu umas mãos a pousar, possessivas, nos seus ombros.
Volvendo a cabeça, deparou-se com olhos profundos sob pestanas abundantes.
– A vossa refeição está terminada? – inquiriu Ian.
– Sim.
– Então retiremo-nos, senhora.
A insinuação deixou-a sem fala. Os homens à sua volta desviaram-se para o lado. Ian segurou-lhe na mão e ajudou-a a sair do banco. Encaminhou-a para as escadas.
Ou ela o seguia ou armava um espetáculo que granjearia as atenções do salão inteiro e não alteraria minimamente as conclusões que Ian pretendera que os homens tirassem. Ainda assim, o seu desejo era espernear e deixar claro que repudiava o gesto dele.
Reyna olhou de relance para o seu semblante calmo. – Sois desprezível. É vossa intenção certificar-vos de que nada mais me resta neste lugar?
– É minha intenção zelar pela vossa segurança, como me foi ordenado. Na opinião dos homens que vos divertistes a encantar esta noite, sois, na melhor das hipóteses, uma mulher fácil, e na pior, uma meretriz. Podeis ter-vos como a viúva perseguida, e muitas destas pessoas podem ter-vos como uma assassina, mas os meus cavaleiros têm-vos apenas como a mulher que entrou na minha tenda e se ofereceu a mim.
– Não tanto assim, e foi por uma boa causa.
– Para um homem em guerra à procura de um pouco de calor e de prazer, pormenores desses pouco importam.
Tinham chegado às escadas. Ele incitou-a a subir, ainda com a mão pousada nas costas dela, acima da cintura. Ela continuou até eles estarem fora de vista e virou-se para ele. – Não precisais de avançar mais. Penso que já marcastes a vossa posição com os vossos cavaleiros. Agora eles têm a certeza de que sou uma mulher fácil.
– Sim, mas que sois a minha mulher, e nenhum deles vos tocará agora. – Apontou para cima. – Escoltar-vos-ei aos vossos aposentos. Quero inspecionar as paredes.
Ele seguiu-a silenciosamente, uma presença perturbadora atrás dela. Passaram a capela no terceiro piso, depois os aposentos dos cavaleiros e criados no quarto, e finalmente pelo corredor ladeado pela sala do amo e pelos pequenos quartos de Margery e das outras mulheres. Ela estugou o passo para colocar alguma distância entre eles. Queria correr e trancar a porta do seu quarto.

Reyna foi até à escrivaninha e começou a dobrar e enrolar pergaminhos com mãos trémulas. Apesar de saber que ele vinha, a chegada um pouco atrasada dele sobressaltou-a e ela afastou-se bruscamente da escrivaninha.
Ele entrou descontraído. O seu olhar rapidamente abarcou a cama estreita e as três velas altas para a noite, já acendidas pelos criados. Ela passou da escrivaninha para a parede que ficava ao lado da porta, encostando-se às pedras frias.
– Um quarto pequeno. O que Lady Margery ocupa é maior.
Fez-vos mudar quando Thomas e ela chegaram?
– Não. Estive sempre aqui. Escolhi este quarto. Tem três frestas e os outros só têm uma.
Ele olhou para a mesa a abarrotar de pergaminhos. – Melhor para a vossa leitura?
– Sim. E à noite, se as velas acabam ou se apagam, ainda há alguma luz.
– Temeis os demónios noturnos?
– De certa forma.
Ele começou a percorrer o quarto exíguo, examinando as paredes, por vezes tateando a argamassa das juntas entre as pedras.
– Que procurais?
– Câmaras, escavadas nas paredes. Tendes alguma?
– Se tivesse, o que esperaríeis lá encontrar? Cicuta?
Ele ignorou-a e prosseguiu a sua busca.
Perturbava-a tê-lo neste espaço. O seu tamanho e energia e movimentos ágeis enchiam o compartimento como uma suave invasão e colocavam-na de sobreaviso. Ela encostou-se mais às pedras, sentindo-lhes a superfície rugosa nas costas. Ele passou algum tempo sem falar, imerso na sua busca metódica, afastando os baús de roupa dela para inspecionar atrás deles.
– Éreis-lhe fiel? – perguntou ele, aninhado junto ao chão. Falou como se fosse a pergunta mais natural do mundo, e não uma interrogação invasiva.
Ela hesitou e ele olhou para ela, os seus olhos negros procurando os dela. – Sim – disse ela.
Sim, ela fora-lhe fiel. Com o seu coração e o seu corpo. Só houvera um mal-entendido, uma vez, não da parte de Robert, mas dela e, mais nefasto, do escudeiro que se apaixonara por ela.
Haviam crescido juntos e ela via-o como um irmão. Na sua ignorância, não reconhecera os sinais de que o afeto dele mudara.
Quando ela tinha dezassete anos e ele um ano mais, Robert mandara-o embora abruptamente. Ela ficara irritada e confusa com a explicação atenciosa de Robert até que, ao ir-se embora, aquele amigo querido a beijara de maneira nada fraterna.
A memória fê-la levar a mão aos lábios. Ela reparou que Ian estava agora em pé, a olhar para ela. – Sim – repetiu, com mais firmeza.
Ele caminhou calmamente até à mesa. Movia-se como um animal esguio, forte, coordenado. Um felino ou um cavalo jovem. Era um homem com confiança total na força e na beleza do seu corpo.
Tocou nos rolos. – Que pergaminhos são estes?
Ele era o conquistador, lembrou a si própria. Tinha o direito de indagar sobre qualquer coisa que escolhesse. – Cartas.
Correspondo-me com várias pessoas. Robert encorajava-me a escrever a homens de letras com perguntas que pudesse ter sobre as minhas leituras.
– Então o vosso marido era um estudioso e ensinou a sua jovem mulher a sê-lo também. Deve ter-vos servido de consolação.
Ela notou a pena e a crítica. Bondoso da parte do vosso marido
arranjar-vos
alguma
ocupação,
dadas
as
circunstâncias. Afinal, não tínheis crianças com que vos ocupardes, pois não?
– Robert ensinou-me a ler inglês e gaélico e latim e grego, e incentivava-me a usar os livros dele. Ele próprio era brilhante e cortês, forte e bondoso ao mesmo tempo. Como o rei Alfredo. –
Deixou que o tom crítico destas últimas palavras assentasse. Ao contrário de vós.
Ele ergueu o sobrolho ao ouvir a referência ao grande rei inglês da antiguidade. – Rei Alfredo, não fazeis por menos. O vosso marido era de facto um homem notável. A quem escreveis?
Ela desejou que ele se deixasse daquilo. – Escrevi a muitos homens, mas apenas alguns responderam. Podem não ter recebido as missivas, claro, mas suspeito que não se incomodem com as perguntas de uma mulher. Um filósofo, Thomas de Chartres, escreveu-me uma resposta muito gentil e informou-me de várias mulheres do Continente com interesses semelhantes. Durante os últimos anos, estas mulheres e eu temo-nos correspondido.
– Já ouvi falar de Thomas de Chartres. Na verdade, já me encontrei com ele. Não espalheis que vos correspondeis com ele.
No ano passado teve de responder por uma queixa de heresia. –
Antes de ela ter oportunidade de assimilar esta informação surpreendente, acrescentou: – Ainda o chorais? Ao vosso rei Alfredo?
Ele deixou-a atordoada com a impertinência da pergunta e com as reações confusas que esta suscitou dentro dela. Ainda o choraria? Certamente que no início o fez, de uma forma profunda, quase assustadora. Agora passara à aceitação e às memórias queridas, e a ressentimentos que provocavam culpa. Ressentimento por ele não a ter preparado melhor para os ódios antigos dos quais a presença dele a protegera. Ressentimento pela cruz que era proteger a memória dele. Ressentimento pelo próprio facto de ele ter morrido, deixando-a pavorosamente, vulneravelmente, só.
– Não, já não o choro da forma que dizeis.
– Havei-lo morto?
Finalmente, a pergunta que pairava entre eles desde que ele tomara este caminho. – Achais que o fiz? Quase todos pensam que sim.
– Não, não acho.
Ele não hesitara. Uma gratidão pungente esmagou-lhe o coração. – Porque não?
– Não se fica conhecido como Senhor das Mil Noites sem se aprender alguma coisa sobre mulheres.
– Pois, imagino que não. Bem, não o matei, mas penso que talvez alguém o tenha feito. A doença dele tinha todos os sinais disso. Mas o meu desmentido não fará diferença. Tinha oportunidade para o fazer, e o conhecimento, pensam eles, e sou uma Graham. Foi apenas este cerco que me salvou. Maccus Armstrong estava de passagem por Harclow, antes de vir para cá para o meu julgamento, quando a vossa companhia chegou. – Ela não teve de acrescentar o que teria acontecido se Maccus chegasse para a julgar e a condenasse.
Uma imagem recorrente nos seus sonhos, uma imagem dela própria lívida e inanimada, atravessou-lhe a mente. Tinha sido uma premonição esporádica a sua vida inteira, mas recentemente o pesadelo havia-se tornado mais nítido e mais frequente. Encostou a cabeça às pedras e rechaçou o pânico que sempre espreitava quando ela considerava aquela possibilidade.
Ian aproximou-se dela. – O facto de serdes uma Graham não voltará a jogar contra vós. Não será um Armstrong quem vos julgará. Morvan Fitzwaryn será senhor em breve, e se alguém exigir um acerto de contas, será ele. É um homem justo.
Talvez fosse a luz bruxuleante das velas, mas ela pensou ter detetado preocupação e compaixão naqueles olhos insondáveis.
Via tão pouco de uma e de outra naqueles dias. O seu espírito comoveu-se, ávido, com a ideia de que alguém acreditava nela.
Ele limitou-se a permanecer ali, em pé, a um palmo de distância, completamente confortável com o silêncio entre eles. A expressão do seu rosto não mudou, ele não se mexeu, mas de súbito, claramente, o ambiente entre eles alterou-se como se um ar diferente tivesse entrado no quarto. O seu olhar demorado desassossegava-a e a desconfiança que ela começara por sentir quando ele entrou regressou. A sua presença ali, as suas perguntas pessoais, a sua crença na inocência dela, haviam resultado numa estranha intimidade.
– Deixai-me partir – disse ela. – Tenho um amigo em Edimburgo que me ajudará. Ficarei em segurança.
Ele esticou o braço e acariciou-lhe a face e o queixo com o mesmo gesto afetuoso que usara duas noites antes. – Não posso.
A pele dela arrepiou-se onde ele lhe tocou. Havia uma quietude invulgar no quarto. Atrás dele, bruxuleavam velas que lhe obscureciam o rosto, mas, ainda assim, ela conseguia ver o maxilar firme, a boca direita, os olhos baixos, atentos. Ela conseguia ouvir-se respirar, conseguia sentir a aura do poder e da masculinidade dele, o seu cheiro suave e irresistível. Achou que o olhar dele a absorveria.
– Podeis. Se o meu pai exigiu a minha segurança, não passou de um gesto da parte dele. Ele não se importa comigo.
Ele abanou a cabeça lentamente. – Não se trata apenas disso.
O que era, então? Ela quase perguntou, mas não teve de o fazer.
A resposta pulsava entre os dois, assustando-a, rompendo finalmente a ignorância dela com a sua intensidade.
A mão dele pegou na sua longa trança e levantou-a até a segurar por inteiro. Retirou a fita que apertava a ponta e começou a desfiar as madeixas, alisando-as com os dedos. – Tendes andado a evitar-me, Reyna – disse ele, observando as próprias mãos. – A esconder-vos de mim.
Ela lançou um olhar àquela mão que subia cada vez mais, desfazendo a trança, tocando-lhe uma vez ou outra através do cabelo espesso. Um medo trémulo, debilitante, delicioso, espalhou-se dentro dela. – A esconder-me não – mentiu ela, tentando fundir-se com a parede de pedra. – Tenho evitado todos os homens.
Avisastes que as mulheres deviam evitar mal-entendidos.
– É um bocado tarde para isso comigo. – Fez deslizar os dedos por baixo do cabelo dela até estarem por trás das suas orelhas e amparou-lhe o rosto com as mãos. – E eu não entendi nada mal.
– Não é justo. – Ela tentou não olhar para o seu rosto maravilhoso, buscando em vão alguma protecção dos sentimentos incontroláveis e indescritíveis. Uma expectativa premente rodopiou dentro dela, destroçando as suas seguras certezas. Aquelas mãos ásperas eram tão quentes, tão agradáveis na sua pele. O contacto acalmava-a e aterrorizava-a. – O que aconteceu na vossa tenda não era minha intenção. Aproveitastes-vos de mim.
Ele sorriu. Santo Deus, que sorriso. – Muito pouco, considerando a vossa vulnerabilidade. Não consegui evitar. Tal como vós não conseguistes evitar gostar.
Ele aproximou-se mais. Não o façais, gritou ela. É cruel e desonroso da vossa parte. Mas os seus lábios trémulos não falavam. Parai-o, impedi-o, incitava desesperada a sua mente.
Pelo vosso bem e pelo vosso orgulho. Por Robert. Mas a proximidade dele e o seu toque suave despertaram aquele anseio irracional há tanto tempo negado, tão avassalador, e a única coisa que ela conseguia fazer era suster a respiração e observar o rosto que descia em direção a ela.
Lábios cálidos nos dela, suaves, apaziguadores, aliciantes. Beijos a roçar-lhe a face, a orelha. Aquele poder sensual a dominá-la perigosamente, braços a envolvê-la num enlace apertado.
A sua mente turvou-se numa confusão de terror e negação e desejo e alívio. Ficou rígida por um instante. Mas as mãos dele moveram-se nas costas dela, e o toque reconfortante derrotou-a. A mente perdeu a batalha contra os sentidos. O dever sucumbiu à necessidade.
Ela sabia que ele sabia, mas, de repente, já não se importava.
Ele ergueu a cabeça e desceu os olhos para ela, para depois a reivindicar com um beijo mais voraz. Ela perdeu todo o discernimento e deixou-se submergir no doloroso desejo.
O beijo dele tornou-se mais íntimo, numa exploração lenta da sua boca, e sensações arrepiantes espalharam-se pelos seus braços e pernas e corpo, encontrando um destino mais fundo dentro de si.
Os seus braços ergueram-se por vontade própria e envolveram-no, estreitando-a ainda mais contra ele. Os seios dela endureceram com a pressão do peito dele e ela arquejou de prazer ao sentir o contacto. Inclinou a cabeça para receber os beijos quentes e impacientes que lhe exploravam o pescoço. Estava perdida agora, completamente perdida.
Um prazer excitante e tenso atravessou-a, transformando-se rapidamente em algo insistente e lancinante. Ele freava o que quer que estivesse a impeli-lo, mas ela não conseguia fazer o mesmo.
Mais calmamente, ele percorreu-lhe o corpo com carícias, e ela suspirou com esta intimidade que tanto lhe proporcionava alívio como vinha piorar tudo. O seu toque firme subiu e envolveu-lhe um seio, e a sensação, mais maravilhosa do que as memórias dos seus sonhos, fê-la soltar um grito. Ele tragou o som com um beijo. O
braço dele apertou-a contra a sua mão sedutora e ele contornou e acariciou o mamilo dela, levando-a ao delírio.
Conduziu-a até à cama, quase a carregando. Sentou-se na ponta e puxou-a para o espaço entre as suas coxas.
Ela fitou aqueles olhos ardentes, o maxilar tenso e os lábios entreabertos. Ela não fazia ideia de que um homem podia ser tão belo e forte na sua paixão. Podia ficar para sempre a olhar para ele.
As mãos dele acariciaram-lhe o cabelo, seguindo o seu curso por seios, barriga e ancas. Os dedos dele depararam com o laço num dos lados do vestido dela, e desataram-no.
Ela não conseguia mexer-se. Mal conseguia suster-se em pé.
Sem o abraço dele, sentia-se vulnerável e diminuída e ávida de contacto. Fechou os olhos de alívio ao sentir o seu toque ténue quando ele lhe retirou o vestido e a combinação dos ombros e braços. A roupa caiu-lhe nas ancas.
Pelas pálpebras entreabertas, ela viu-o contemplar a sua nudez e afastar-lhe cabelo e contornar-lhe os seios com um toque suave.
Ele acariciou e massajou suavemente os mamilos intumescidos e suplicantes, e lançou-lhe um olhar escaldante, conhecedor. Ela retesou o corpo numa vaga tentativa de se controlar, e apertou as coxas para aliviar a força palpitante que sentia lá em baixo.
Ele havia-a enlouquecido antes ainda de a puxar mais para perto e de a provocar com a língua, primeiro um mamilo, depois o outro.
Ela enfiou as mãos no cabelo dele e foi de encontro àquela tortura aflitiva. As coxas dela contorciam-se escandalosamente, e ele abraçou-as e pousou a boca num dos seios. Ela apertou contra si a cabeça dele e entregou-se a uma felicidade desvairada e maravilhosa.
Ele puxou-a mais para si, deixando-se cair, querendo reclinar-se. – Vinde deitar-vos comigo, Reyna.
Ela baixou os olhos para o seu belo rosto e sentiu o sonho desabar. Foi invadida por uma tristeza estranha. Antes ele não tivesse falado. As palavras eram coisas racionais e incitavam ao pensamento racional. As dele trouxeram de volta a sua mente, a sua consciência, o seu castrador sentido de dever e virtude.
Ela empurrou-o ligeiramente, detendo-o. – Não posso. Não devo.
Ao compreender que ela falava a sério, que não iria mais longe, sobreveio irritação. Irritação e espanto. Ele sentou-a no seu joelho e tomou-lhe o rosto nas mãos. – Trata-se de um teste, senhora?
Para ver se eu falava verdade quando disse que aqui não haveria violações?
– Não – respondeu ela, sabendo que estava muito vulnerável e que ninguém chamaria àquilo violação.
Ele empurrou-a do seu colo para a cama. Ela quase caiu ao chão. Muito envergonhada, correu a cobrir-se com o vestido.
Ele levantou-se. – Sem dúvida que ensinastes uma lição a este filho duma égua inglês. – Avançou a passos largos para a porta. –

Não penseis em fazê-lo outra vez.
Reyna ficou sentada na cama, desamparada, depois de ele sair, tentando submeter a algum tipo de lógica o que acabava de acontecer. Sentia a sua mente demasiado revolta. Só sabia que se traíra a si própria de forma vergonhosa, e quase traíra Sir Robert também.
Queria culpar Sir Ian, mas sabia que não fazia sentido. O que lhe importava a ele que lealdades antigas e necessidades prementes se debatessem dentro dela? Ela duvidava que se tratasse de um homem que refletisse muito sobre consequências, ou pensasse duas vezes nas suas mulheres depois de as deixar. Era um arruaceiro que montara cerco ao seu castelo e, assim que ela se rendesse, colheria o seu tributo e seguiria em frente.
Sim, as ações dele haviam sido compreensíveis e previsíveis.
A verdadeira culpa pertencia-lhe a ela.
Dirigiu-se a uma das janelas e empoleirou-se no nicho profundo, sentando-se perto da fresta, deixando que o ar lhe batesse no rosto para mitigar a sua humilhação. O quarto dava para nascente e dali conseguia ver o último quilómetro do terreno pantanoso até à elevação abrupta do terreno baldio e o relevo dos montes Cheviot.
O seu olhar deteve-se no antigo castelo motte and bailey1 que durante séculos estivera de sentinela junto ao primeiro penhasco do baldio, perto da nascente do rio Black Lyne. Tratava-se de uma fortaleza antiga, utilizada antes da construção do castelo de Black Lyne. Não passava agora de um amontoado de pedras que desabava sobre fundações cavernosas.
Algo cintilou entre as ruínas, como uma estrela amarela brilhando no sopé da estrutura distante. Ela semicerrou os olhos e voltou a vê-lo.
O sinal de Reginald. Encontrara cavalos.
Quando regressou ao salão, à luz dos archotes, Ian sentia que quase recuperara o controlo. Forçando-se a não pensar na mulher que acabava de fazer pouco dele, rechaçando a fúria por ela ter encontrado forças para se negar a ele como poucas mulheres o haviam feito, esquadrinhou a grande sala até encontrar Gregory.
Dirigindo-se a ele em passos largos, chamou-o. – Amanhã de manhã, pegai em dez homens e ide a Harclow. Dizei a Morvan que Maccus Armstrong está no interior da fortaleza.
Gregory assobiou baixinho. – Foi astuto da parte deles, esconderem esse facto mesmo durante as negociações. Não admira que Maccus não tenha aparecido com nenhuma hoste do seu bastião em Clivedale.
– Sim. O senescal de Clivedale não se arriscaria a fazê-lo, mas Thomas Armstrong estará lá agora, e talvez o faça. Dizei a Morvan que reforçaremos o patrulhamento e ficaremos de vigia a norte, mas que também ele deve estar alerta.
Gregory deixou o salão para escolher os homens que levaria consigo. Ainda a deitar fumo pelos ouvidos por conta da mulher lá de cima, Ian atirou-se para a cadeira do castelão, à mesa principal.
Tê-lo-ia planeado? Atraí-lo deliberadamente para o jardim para poder fechar o portão no momento mais eficaz? Teria decidido travar esta guerra com as armas de uma mulher quando os punhais e as espadas não lhe serviram? Teria a sua suave rendição sido apenas mais um esquema da atriz que se fizera passar primeiro por uma rameira?

Não acreditava naquilo. Conhecera mulheres muito dotadas para o engano, mas só fora apanhado uma vez, quando era pouco mais que um rapaz. Aprendera bem a lição, e os seus instintos sobre estas coisas haviam-se aprimorado bem ao longo dos anos. Para o enganar, era necessária mais habilidade do que a que ela tinha.
Considerou as outras possibilidades e finalmente obrigou-se a encarar a mais óbvia. Ela afirmara ser fiel ao seu antigo marido.
Uma mulher virtuosa, sendo assim, e ele, para ser fiel ao seu código, devia deixá-la em paz.
Então, porque não tinha saído daquele quarto, como tinha planeado?
Ele ofereceu resistência à reflexão que a pergunta exigia. Tinha-a na cabeça, isso era certo, e queria-a, mais certo ainda. Queria-a mais do que há muito tempo quisera mulher alguma. Não desde Elizabeth, mas isto também era diferente. Quando chegara a Elizabeth, era um rapaz assustado e vingativo, e fizera-se um homem. Era esse homem que agora queria Reyna.
Percorreu a mesa com o olhar da posição dominante que a cadeira do castelão lhe conferia. Era o melhor que alguma vez conseguiria, mas a maior parte dos filhos mais novos nem isto tinha.
Esta noite, contudo, este pensamento servia-lhe de pouco consolo.
Ele era, afinal, apenas uma espada a soldo, e havia sido pouco mais do que um ladrão nos últimos anos. Pelo menos uma pessoa deste castelo conquistado vê-lo-ia sempre como tal, onde quer que ele se sentasse.
Que papel representara isto na recusa dela? Porque haveria ele de se importar com isso?
Ele não devia importar-se nem um pouco, mas, inexplicavelmente, constatava que não era assim.

No fundo do salão, uma criada esfregava as mesas, com o seu longo cabelo caindo solto de baixo do lenço. Ela lançou-lhe um olhar e continuou com o seu trabalho. Ele observou-a movimentar-se nos seus lavores, os seus seios e nádegas desenhados no tecido do vestido grosseiro.
Ela reparou que ele estava atento e aproximou-se. Ele reconheceu-a. Olhara-o várias vezes durante os dois últimos dias e lançara-lhe sorrisos tímidos e calorosos. Agora sorria menos timidamente. – Chamo-me Eva. Gostaria que lhe fosse buscar cerveja, meu senhor?
Meu senhor. Não era propriamente o mais correto, mas pouca diferença fazia para os criados, dadas as circunstâncias. Havia uma pessoa neste castelo que nunca o trataria assim, mesmo se fosse correto, mesmo com uma espada apontada. Filho de uma água desprezível, canalha sem honra, sim, mas nunca meu senhor.
Ian olhou para Eva, do outro lado da mesa, e sorriu.


1 Primeiros castelos fortificados, construídos sobre uma elevação (motte) natural ou artificial, onde era construída uma torre, geralmente de madeira, e uma paliçada (bailey) no sopé da colina. A elevação com a sua paliçada constituíam uma espécie de pequena ilha cercada por um fosso, escavado para a construção do monte. (N.
da T.)

CAPÍTULO 6


Durante o dia seguinte, Reyna tomou todos os cuidados para evitar Sir Ian. Se ela ouvisse os seus passos a subir uma escada, descia disparada pela outra.
Ao fim da tarde, uma agitação no corredor arrancou-a do quarto e deparou com Margery e as outras senhoras em conversa exaltada.
O olhar de Margery escrutinou o vestido simples que Reyna colocara a seguir ao jantar. – Ide pôr-vos apresentável – ordenou.
– Esperamos uma visita. O cavaleiro acaba de o anunciar. É um nobre francês, o conde de Senlis.
– Porque estaria um conde francês de visita aqui? Este castelo está na posse de um exército inglês, e os franceses são o inimigo.
– Sejam quais foram as razões dele, temos de o receber adequadamente. Instruí Alice que desse o seu melhor para a refeição da noite. Não queremos que este homem pense que está entre bárbaros. Ponde-vos decente ou escondei-vos na cozinha.
Ele chega em breve.
Reyna regressou ao quarto, enfiou o seu guarda-cós azul e desceu para o salão, onde as mulheres aguardavam a altura de cumprimentar a ilustre personagem francesa. Ian estava lá e não tinha feito nada para evitar ter o aspeto de um bárbaro.

Ele terminava uma polé que concebera para levar água até aos níveis superiores da torre. Uma viga grande irrompia do guarda-roupa do último piso, e cordas pendiam da roldana.
Os netos de Alice, Adam e Peter, andavam lá por perto a rondar. Ian reparou e chamou-os. Sorrindo de prazer, ajudaram-no a fazer um teste à polé. Enfiaram um balde cheio de água na eslinga que estava na ponta da corda, e Ian começou a içá-lo para cima.
Ele envergava uma túnica sem mangas e as calças curtas, e o tecido moldava-se ao seu corpo. Os músculos tensos dos seus braços desenhavam linhas poderosas quando ele puxava, uma mão após a outra. Reyna apercebeu-se de que era a primeira vez que o via em plena luz do dia. O sol realçava reflexos ruivos no seu cabelo castanho-escuro. Ao ar livre, os seus dois poços negros com as belas pestanas pareciam ainda mais profundos e mais irresistíveis.
Ele acabou o teste e recuou com uma expressão satisfeita. Ela aproximou-se e estudou o mecanismo. – Se colocardes uma manivela na roda, até as mulheres conseguem fazê-lo.
– Boa ideia. Claro que em tempo de guerra a polé torna o castelo vulnerável. Quem quer que comande nessa altura terá de a destruir. – Ele reparou finalmente na fila de mulheres aprumadas ao lado das escadas da torre. – O que se passa? Estamos à espera do Papa?
– Margery disse que há um visitante a caminho.
– Isto é tudo para David? Ele vai achar piada.
– David?
– David de Abyndon, irmão de Morvan por casamento.
– Margery percebeu mal. Ela pensa que se trata do conde de Senlis.

– David é o conde de Senlis. Mas antes de receber Senlis era mercador em Londres, e foi assim que o conheci. Em Inglaterra ainda o conhecem como mestre David, o negociante de sedas.
Nunca renunciou à sua cidadania, e mantém o lugar na companhia do comércio. Ele e Christiana, irmã de Morvan, passam algum do seu tempo em Londres.
– Uma história invulgar.
– Um homem invulgar. – Ele dirigiu a sua atenção para a grade, que se erguia, e o som de cavalos a aproximarem-se.
Seis cavaleiros entraram a trote no pátio. Reyna identificou imediatamente o conde. Era um homem muito atraente, de cabelo castanho-dourado. Ele apeou-se do cavalo e caminhou para a torre com um sorriso ténue nos lábios e escrutínio sagaz nos seus profundos olhos azuis.
Ian avançou e os dois homens cumprimentaram-se calorosamente. Trocaram apenas algumas palavras e David logo se virou para as mulheres. Margery estava mais à frente, na posição de proeminência, e o conde recebeu a sua mão estendida num gesto cortês de saudação. – Lady Reyna, presumo.
Margery atrapalhou-se.
– Não, esta é Lady Margery, mulher de Thomas Armstrong –
explicou Ian. – Aquela mulher ali é a viúva de Robert de Kelso. –
Indicou Reyna com um dedo.
Ela aproximou-se, sabendo que tinha um aspeto muito pobre, comparada com Margery e as outras. Não trazia joias e recusara colocar veludos pesados. Perguntou-se se este conde seria o tipo de homem que se sentiria insultado pela sua falta de esforço.
Uma mãos belas acolheram as suas graciosamente. Olhos azuis intensos ignoraram o seu vestido e olharam-lhe apenas para o rosto. Ela experimentou a sensação desconfortável de que outra mente acabava de invadir a sua e colhera instantaneamente tudo aquilo que precisava de saber.
Foi abalada pelo medo inexplicável de que a sua situação tivesse acabado de se tornar muito mais precária.
– O que são estas outras câmaras? – inquiriu David quando Ian o conduziu para a porta do quarto principal.
– Lady Margery tem uma, e as outras senhoras mudaram-se cá para cima pelo isolamento. A cela de freira de Lady Reyna fica ali ao fundo.
– Cela de freira? E eu a pensar que tínheis feito o vosso próprio harém. Protegido pelo sultão e com acesso a ele reservado.
David percorreu o quarto e a sua atenção recaiu rapidamente sobre as prateleiras com os seus livros. Deixou-se absorver, pegando-lhes cuidadosamente, observando encadernações e páginas gastas. – É uma biblioteca excelente, melhor do que a da maioria dos bispos. Aquino e Agostinho. Livros penitenciais, mas também parte do Roman de la Rose. Um Ovídio. – Abriu uma capa. – Vários deles vieram da mesma fonte. Têm uma divisa com as iniciais de um dono anterior. J. M.
Ian retirou um quarto de volume meio desfeito da prateleira. –
Ides achar isto interessante. Bernardo de Claraval, com uma nota explicativa em francês nas margens.
Ian observou David enquanto este examinava cuidadosamente os volumes, e ponderou o que sabia sobre este mercador feito conde. David fora um dos primeiros mercadores ingleses a viajar para sul e para oriente e a estabelecer uma rede de comércio. Essa rede fizera dele um homem rico antes dos vinte e cinco anos. Um homem enigmático, fácil de se conhecer superficialmente mas quase impossível de se conhecer bem.
– O que vos trás aqui? – indagou por fim Ian.
David desviou a sua atenção dos livros. – Estava em Carlisle à espera do navio de Londres, mas este atrasou-se e eu aborreci-me.
Fui até Harclow e Morvan pediu-me para vir até cá antes de regressar ao porto.
Morvan pedira-lhe para vir e ver como estavam as coisas com Ian de Guilford, foi o que quis dizer, sabia-o. Morvan tinha para com Ian a dívida da sua vida, e concordara resgatá-la com esta oportunidade de redenção. Mas utilizar uma companhia livre na sua guerra privada não deixava Fitzwaryn completamente à vontade.
– Como podeis ver, tudo está em ordem e as pessoas estão a ser bem tratadas. Esta torre teria caído mais cedo se Morvan me tivesse falado da poterna.
– Ele não sabia. Não estava aqui quando ele era pequeno, ou pelo menos o seu pai nunca lho havia mencionado. O mais certo é ter sido Sir Robert a construí-la. Morvan está muito satisfeito com os vossos sucessos.
– Como está o cerco em Harclow?
– A fome forçou-os finalmente a deixar sair as pessoas dispensáveis. Mulheres, crianças e alguns criados. Era o que Morvan aguardava. Agora atacará. As máquinas estão montadas e a postos. Logo que chegue o navio com os homens que o rei Eduardo prometeu, estará feito. – Fez uma pausa. – Será sangrento.
– Ele quer-me lá? Qualquer pessoa pode tomar conta desta torre agora.

– Quando a hora chegar, ele pode chamar-vos. Agora, contudo, quer-vos aqui, de olho nas estradas do feudo de Armstrong em Clivedale. Contamos que Thomas Armstrong tente uma intervenção de socorro. A propósito, a vossa notícia de que Maccus está dentro de Harclow explica muita coisa. Como soubestes?
– Lady Reyna descaiu-se.
– Soubemos pelos homens que enviastes que ela vos levou até ao túnel. Seduzistes-la para a convencerdes a fazê-lo?
– Foi isso que os homens disseram? Sim, mas não como eles dizem. – Ian descreveu os acontecimentos daquele dia.
– Foi perspicaz da vossa parte ter-vos apercebido assim do plano dela. Um homem mais fútil podia ter decidido que ela se apaixonara ao vê-lo da torre e que decidira usar um estratagema para concretizar o seu desejo.
– Não tive tanta sorte. Foi lá para me matar.
– Uma mulher corajosa. Adorável. À primeira vista, fez-me lembrar Elizabeth. Muito mais jovem, claro.
Ian sentiu-se incomodado com o comentário descontraído sobre a viúva com a qual passara dois anos da sua vida.
– Ela envia-vos a sua estima – acrescentou David. – Ficou magoada por não a visitardes quando passastes perto de Londres.
Pois, ela enviara-lhe a sua estima. Mas enviara a Morvan Fitzwaryn o seu amor. Uma das velhas tensões entre eles.
– Falai-me de Lady Reyna – incitou David.
– É audaz e voluntariosa e só traz sarilhos. Uma peste. Fez com que o poço secasse, tenho a certeza, e nunca me fala sem me insultar.
– Os vossos homens também nos trouxeram a história da morte de Sir Robert.

– Não acredito no que dizem a respeito dela.
– Ainda assim, contendas que não vos fazem falta.
– Com ou sem contenda, aqui estará em segurança, tal como Morvan ordenou.
– Os homens que vieram com Gregory dizem também que ela é vossa amante. – David usou o tom de voz de quem falava descontraidamente, mas, ainda assim, queria informação.
– Deixei que o pensassem para a proteger deles. Sei dos objetivos de Morvan aqui, David, mas estes homens há já algum tempo que vivem uma vida dura…
– Não estou aqui para criticar, Ian. Mas fico contente de saber que não vos tornastes íntimos, porque será melhor se a senhora partir.
Então era essa a razão da vinda de David. Levar Reyna. A constatação de que ela em breve desapareceria, que ele nem sequer às refeições teria a sua companhia, deixou-o apático, estranho.
– Como sabeis, Ian, Morvan garantiu a sua segurança ao pai dela. A neutralidade de Duncan Graham é importante. – David explicava como se sentisse que Ian precisasse de ser convencido. –
Morvan não pode estar a combater também os Graham enquanto trata dos Armstrong. Com as acusações contra Lady Reyna, a questão da sua segurança adquire novo significado. Se os Armstrong a raptarem daqui para a julgar, os Graham irão interferir.
Ian escutava a lógica implacável que retiraria Reyna do castelo de Black Lyne. – Para onde a levareis?
– Para o pai, Duncan Graham. As cores de Senlis estão autorizadas a atravessar a sua fronteira.
– Ela pode não querer regressar. Ela pediu para se ir embora, mas não para ir ter com o pai.
– Lá ficará em segurança. Chamai a senhora, Ian.
John, o escudeiro, aguardava do outro lado e Ian encarregou-o de chamar Reyna. Enquanto esperavam, Ian perguntou por Christiana e pelas crianças. O rosto habitualmente inescrutável de David iluminou-se quando falou da sua família e uma expressão doce inundou-lhe o olhar ao mencionar Christiana em particular. Ian vira aqueles olhos em homens jovens, ainda embevecidos, mas raramente num homem casado há anos. Desviou o olhar, pois as emoções que viu fizeram-no sentir-se algo vazio.
Reyna chegou, parecendo uma criada com o vestido simples que usava na cozinha. Pelo menos tinha tirado o lenço.
David convidou-a a sentar-se na cadeira, e depois empoleirou-se no banco que estava à escrivaninha. – Encontrei-me com o vosso pai antes de esta guerra começar – disse. – Ele estava preocupado com a vossa segurança, uma vez iniciados os combates.
– Acho isso peculiar… hã… Como devo tratar-vos, senhor?
Senhor. Os dentes de Ian rangeram.
– David serve perfeitamente.
– Não me sentirei confortável tratando-vos dessa forma.
– Então, se preferirdes, Sir David. Concedi finalmente a Morvan que me armasse cavaleiro há alguns anos. Visto que certa vez ameaçou matar-me com a sua espada, achei deliciosamente irónico este outro uso dela.
Ela deixou escapar uma gargalhada pujante. – Sinto-me mais confortável assim, Sir David. Seja como for, não vejo o meu pai desde que saí de sua casa, há doze anos. Nem tenho notícias dele.
Esse interesse repentino não faz muito sentido.

– Sois filha dele.
Fez-se silêncio. Ian observava Reyna. Ela comportava-se como uma mulher doce e bem-comportada. Submissa. Ainda não lhe saíra nenhum «filho duma égua» nem nenhum «canalha».
David pegou distraidamente num livro. Um olhar algo carregado franziu o sobrolho de Reyna. – Sede cuidadoso, Sir David – disse com brusquidão. – São muito raros.
– Sei do valor deles, senhora. É uma biblioteca grande para um lorde escocês menor. Alguns são muito antigos. Como é que o vosso marido ficou na posse deles?
– Ele tinha alguns quando regressou à Escócia. Ao longo dos anos comprou mais. Alguns deles são meus.
– Regressou à Escócia de onde?
– Ele viajou muito. Constantinopla e Grécia, acho eu. Depois pelo Continente. França. Foi há muito tempo. Aquando do seu regresso, conheceu Maccus Armstrong e entrou ao serviço dele, e desde então ficou aqui.
– Tenho pena de nunca o ter encontrado. Teríamos tido muito sobre que conversar. Dizeis que alguns deles são vossos?
– Poucos. Ficam aqui com os outros. Espero que, quando for autorizada a partir, me seja permitido levá-los.
– As leis da cavalaria ditam que uma nobre deve ser autorizada a levar consigo as suas roupas e joias. Não mencionam livros.
Pela primeira vez desde que ela entrara, Ian viu um lampejo da Reyna que ele conhecia. – Não tenho joias, Sir David. Estes livros são tudo o que possuo. Escolho-os em lugar de boas vestes e pérolas – declarou sem rodeios.
– Caberá a Morvan decidir o seu uso. Ajudaria se estivesse documentado que vos pertencem. Talvez os registos do vosso marido o mencionem. Encontrastes os papéis relativos à propriedade, Ian? Os livros-mestres e forais e tudo o resto?
– Os livros-mestres, mas mais nada. Presumo que Thomas tenha levado o resto quando fugiu. – Na verdade, ele encontrara outra coisa: a carta ambígua do bispo, que estava agora guardada entre os seus próprios pertences.
David perdeu abruptamente o interesse pelos livros. – O vosso pai fez da vossa segurança um assunto importante, Lady Reyna, quer aceiteis a validade disso ou não. Considerando as acusações que são feitas contra vós na morte do vosso marido, seria melhor tirar-vos daqui. Amanhã levar-vos-ei para junto da vossa família.
O comunicado dele despojou Reyna da sua compostura. Ela levantou-se como um raio. – Isso era o que vós queríeis.
– As acusações que vos são feitas prometem complicar as coisas de maneiras que podemos dispensar. Voltareis para o vosso pai.
– O meu pai não tem autoridade sobre mim. – Ergueu o queixo, obstinada. – Renunciou a ela quando me entregou a Robert. Não tem direitos com respeito a mim e eu não voltarei para lá.
– Voltaríeis para aqueles que têm autoridade sobre vós?
– E quem seriam? O meu marido não tinha família. O seu suserano, Maccus Armstrong, está sitiado em Harclow. Quer-me tanto que abrirá o portão de Harclow para me deixar entrar?
Ian observava, encantado, a discussão. É isso mesmo, rapariga.
– Há a opção de vos mandar para Clivedale – prosseguiu David.
– Se o fizerdes, Thomas Armstrong executar-me-á, violando todas as leis e a sua autoridade. Será que Morvan Fitzwaryn me enviaria para a morte, e uma morte injusta, ademais? – O tom de Reyna era de desafio, mas a ameaça surtiu algum efeito, pois o seu corpo tremeu como se atravessado por um calafrio.
David estudou-a. – Porque recusais voltar para o vosso pai? É o lugar que vos oferece mais segurança.
– Já estivestes na casa do meu pai, Sir David? Certamente reparastes no medo dos criados. Vistes a forma como as mulheres eram tratadas e usadas. Tem sido assim desde que ele afastou a minha mãe.
– Vi o que descreveis. Mas vós sois filha dele. Certamente…
– Não foi diferente comigo quando era criança e será pior agora.
Duncan Graham não tem amor por mim. Não regressarei àquele sítio.
O ar pulsava com a força da emoção que emanava das suas palavras.
– Contudo, Ian disse que vós pedistes para partir.
– Sim, mas não para me reunir a Duncan. Pretendo ir para Edimburgo. Tenho lá um amigo que me ajudará.
– Quem é este amigo?
– O nome dele é Edmund.
Edmund? – Edmund! – gritou Ian.
– É irmão de um dos cavaleiros do meu marido. É religioso –
acrescentou ela, com os olhos postos em David. – Hospitalário, da Ordem de S. João de Jerusalém. Está afeto ao priorado próximo de Edimburgo. Ele sabe de uma viúva que me albergará.
– O que quereis dizer é que ele sabe de um monge-cavaleiro que vos dará uma cama – rebateu Ian.
– Ele fez votos de celibato, raios vos partam – disparou Reyna.
– Céus! Sois assim tão ignorante? Os vossos livros serviram-vos de muito, mulher, se achais que a insígnia dos Hospitalários muda assim tanto um homem.
– É mesmo vosso, pôr em causa as intenções de um homem bom. Que sabeis vós do cuidado cavalheiresco de um homem por uma mulher em apuros? Vós aproveitais-vos de mulheres como eu.
É a vossa vida.
– O que sabeis sobre este honorável clérigo? – perguntou Ian.
– Correspondemo-nos extensivamente há cinco anos.
– Escreveis umas poucas cartas a um homem sobre filosofia e achais que o conheceis. Credo!
– Já me encontrei com ele, idiota. Ele veio visitar o irmão, Reginald, há cinco anos. Robert gostou muito dele, e ele voltou a visitar-nos no ano passado. Robert e ele tornaram-se bons amigos.
– E vós e ele tornastes-vos ainda melhores amigos.
– É mesmo vosso pensardes que uma amizade destas nunca poderia ser virtuosa. De que serve uma mulher, afinal, se não estiver deitada.
– Chega. – Interrompeu a voz calma de David, com firmeza.
Ian conteve a réplica grosseira que se formara em reação à última afirmação dela. Edmund, o hospitalário, por amor de Deus. –
É óbvio que ela não pode ir para Edimburgo, David – retomou ele.
– Se avaliou mal o homem, ver-se-á desamparada.
– Não sou assim tão má avaliadora de homens. Tirei-vos a pinta num piscar de olhos, seu inglês presunçoso, infame, hedonista, filho de…
– Chega, senhora – avisou David. – Agora deixai-nos. Não ireis para Edimburgo pois lá não podemos garantir a vossa segurança.
Quanto a voltardes para o vosso pai, de manhã já o terei decidido, mas deveis preparar-vos.
Reyna saiu da câmara com passos vigorosos e determinados que não auguravam nada de bom para os dias seguintes. Ian perguntou-se se não deveria colocar um homem de guarda à reserva de grão.
– Uma peste, decididamente – concordou David.
– Se eu não tivesse percebido o plano dela naquela noite, ela estaria à mercê do homem antes do fim da semana.
– Ele pode ser como ela diz.
Ian lançou a David um olhar de homem para homem carregado de ceticismo.
– Ela parece estar caída por vós – comentou David secamente.
– Sim, é óbvio que impressionei a senhora.
David voltou a sentar-se à escrivaninha. – A casa do pai dela é como ela descreveu. Com a preocupação que ele manifestou por ela, pensei, contudo… – De sobrolho carregado, folheava o volume aberto. – Pergunto-me porque a quererá de volta.
– Quererá? Dissestes que ele procurava apenas a segurança dela. Se ele a quer, porque não deixá-lo vir até cá buscá-la? Talvez se reconciliem ao encontrarem-se aqui.
– Pensarei nisso. Neste momento, ajudai-me a examinar estes livros. Muitas vezes coloco documentos importantes nos meus.
Coisas pessoais. Talvez ele também o fizesse.
– O que procuramos?
– Qualquer coisa. O testamento dele. A convenção nupcial. A carta de direitos. É estranho não os terdes encontrado. Por que razão os levaria Thomas Armstrong com ele?
Passaram as horas que antecediam o jantar a revirar os tomos.
Ian encontrou algumas cartas privadas sem importância e um poema curto de natureza religiosa.
Alguns dos volumes ocuparam Ian. Um era um pequeno livro de horas com adoráveis ilustrações que representavam os trabalhos dos meses do ano. Perto do fim, encontrou um pequeno pedaço de pergaminho com um desenho tosco. Apenas alguns círculos e um quadrado e algumas linhas curvas. Parecia que, entre outros interesses, Robert de Kelso se entretinha com astronomia.
Já no fim das buscas, David descobriu um grande pergaminho dentro de um volume dos Evangelhos.
– Ora cá temos alguma coisa.
– O que é? – inquiriu Ian.
– O testamento de Sir Robert de Kelso. No entanto, também é um motivo para a senhora assassinar o marido. – Passou-lhe o pergaminho para as mãos. – Ele deixou-lhe tudo. Não se limitou às arras. Foi tudo.

CAPÍTULO 7


Ian ficou a maior parte da noite acordado a pensar na morte de Robert. Não parou de pesar as provas contra Reyna.
A descoberta do testamento fizera oscilar a balança contra ela.
Ele suspeitava que ela sabia que o documento se encontrava no interior daquele livro, podendo até tê-lo colocado lá ela própria.
Não o destruiria, porque ainda poderia revelar-se valioso, mas não queria que o encontrassem. Era um esconderijo eficaz, pois ninguém além de Reyna e do marido liam aqueles tomos. Havia sido por isso que o facto de David lhe mexer nos livros a enervara, e não porque ele pudesse fazer algum estrago.
Portanto, ela sabia que Sir Robert lhe havia deixado o castelo de Black Lyne e todas as suas terras, fazendo dela uma viúva rica.
Mesmo se Maccus procurasse destituí-la, aquele testamento conferiria a Reyna uma arma poderosa em qualquer negociação.
Pelo menos, provavelmente seria poupada ao destino da maior parte das viúvas sem filhos, deixadas com uma pequena propriedade como arras e condenadas a uma existência sem pecúlio.
Pior, se Sir Robert procurara uma forma de a afastar e anular o casamento por ela ser estéril, ela tinha bons motivos para apressar a morte do homem e conseguir esta herança antes que lhe escapasse do alcance.
Por fim, se tudo isto já não fosse suficientemente mau, havia Edmund. Ela correspondia-se com este homem há mais de cinco anos. Filosofia e teologia e as grandes questões a respeito da condição humana, sem dúvida. Uma ova!
O dia despontou. Ele levantou-se e vestiu-se. Enquanto descia para o salão, deixou a sua mente percorrer por fim o caminho óbvio que evitara durante toda a noite.
Ela e Edmund tinham-se apaixonado aquando da visita dele.
Tinham continuado a amizade através das cartas e ele regressara no ano passado para a ver. Lentamente, subtilmente, Edmund começara a lamentar que eles estivessem para sempre separados.
Ela também o lamentava, mas adiara ponderar qualquer solução até Robert começar a movimentação para a afastar. De repente, o seu futuro estava em risco, e aquela vida sedutora com o outro homem tornou-se não só atingível mas também necessária. Robert morre, ela herda, Edmund chega, primeiro para a consolar e depois para ficar, e a seu tempo consegue ver-se livre dos seus votos.
Mas as suspeitas que se levantaram contra ela goraram-lhe os planos, e o testamento tornou-se subitamente uma prova incriminatória a ser escondida. Depois, com a chegada do exército de Morvan, Robert já não dispunha das terras para as legar, nem ela para as herdar. Ela ainda procurava ir ter com o seu amor, mas agora para escapar às consequências da sua ação.
Sim, com a descoberta do testamento e da relação dela com Edmund, as provas débeis contra Lady Reyna encontravam-se muito fortalecidas. Eram suficientemente claras, plausíveis e convincentes para a condenar à morte.
E o que poderia colocar-se no prato da balança a favor de Reyna? Tudo o que conseguia evocar em defesa dela era a sensação que ele próprio tinha de que ela não faria este tipo de coisas. Não era muito.
David estava sentado a uma mesa, com pão e cerveja à sua frente. Ian acomodou-se do outro lado. – Ela não vai convosco –
afirmou.
Desafiar David era o mesmo que desafiar Morvan. Ele arriscava o futuro que planeara por causa de uma mulher que bem podia ser uma assassina, que ele podia ter avaliado mal, e a quem não devia nada. Incomodava-o admitir que nem sequer tinha a certeza da razão por que falara.
David comia placidamente a sua comida. – Não, não irá.
Provavelmente teria de a atar à sela e mesmo assim ela escapar-se-ia e nós teríamos de ficar dias a bater os montes Cheviot à procura dela. Regresso a Harclow a caminho de Carlisle, informo Morvan, e sugiro que Duncan venha até cá buscá-la. Contudo, se ele vier, deveis deixá-la ir com ele.
– Deixá-la-ei ir, mas não a forçarei a isso.
– O que quer que a aguarde na casa de Duncan será melhor do que um laço corrediço ou a fogueira. Não conteis que Morvan ignore este crime.
– Ela não sabe nenhuma receita de veneno. Se soubesse, teria tentado usá-lo contra mim. Teria sido muito mais fácil do que um punhal.
– Se ela sabe de venenos, sabe que as suas propriedades são volúveis e instáveis. Um punhal é mais difícil de usar, mas também é mais fiável.
– Já haveis decidido a culpa dela.
– Apenas assinalo as provas incriminatórias. Na verdade, não penso que ela o tenha feito. É muito inteligente. Se quisesse matar Robert de Kelso, acredito que teria encontrado uma forma de o fazer que nunca levantasse suspeitas contra ela. Em todo o caso, mantende-a debaixo de olho. Ela tentará fugir. Por detrás daquela pose corajosa, ela está muito assustada, o que é conforme. – Ele esfregou as mãos e levantou-se. – Os homens e os cavalos aguardam. Espero alcançar Harclow antes do sol-pôr.
Ian acompanhou David ao pátio. Lady Reyna estava em pé no fundo da escada, de braços cruzados e pé a bater no chão, impaciente.
– Não irei – anunciou. – Além disso, tenho uma mensagem para vós levardes a Sir Morvan. Ouvi falar da queda de Harclow de quando ele era rapaz. Lembrai-o que Maccus Armstrong permitiu que a mãe e os filhos partissem e fossem para onde ela desejasse.
Exijo a mesma atitude cavalheiresca por parte dele.
– Transmitirei a vossa mensagem a Morvan, mas num tom mais brando. Ele tem pouca tolerância para com mulheres que têm a presunção de o repreender. Até a vossa situação estar decidida, ficareis aqui e obedecereis a Sir Ian.
Ian atravessou o pátio com David até aos cavalos.
– Dali só vêm sarilhos, Ian.
– Pois.
– Não a percais. Não quero ter de explicar a Duncan que não sabemos onde a filha dele está.
– Não acontecerá.
David alçou-se para o cavalo. Voltou a olhar para Lady Reyna.
Ela permanecia direita e determinada e nem um pouco intimidada.
Apertou o ombro de Ian. – Rezarei por vós.

No dia seguinte, surgiu um rendeiro ao portão, queixando-se de roubo. O camponês fizera uso de toda a sua coragem para se dirigir ao castelo, já que os ladrões haviam ameaçado matá-lo se o fizesse. Não tinham roubado muita coisa, pois estes agricultores não tinham grandes posses, mas tal só vinha tornar as perdas ainda mais graves.
Ian pediu ao homem que identificasse os culpados, e depois procurou no acampamento fora das muralhas. Quando os itens roubados foram encontrados, o destino dos ladrões ficou selado.
Ian mandou que os ladrões fossem levados para uma árvore grande, próxima do rio. Podia tê-los enforcado dentro das muralhas, mas tomava estas medidas como líder da companhia e não como senhor da torre. Exigiu que quarenta dos seus homens assistissem, nos quais incluiu aqueles de que esperava mais problemas. Deixou claro que o castigo não se devia ao roubo, porque seria hipócrita, mas por terem desobedecido a uma ordem sua.
Quando terminou, um dos seus cavaleiros mais jovens aproximou-se e desembainhou a espada. Era o mais direto dos desafios, um repto descarado à sua substituição. Como dois animais, lutariam pela supremacia sobre a manada. Ian não conquistara a sua autoridade desta forma, fora eleito pelos outros cavaleiros três anos antes, quando o último capitão morrera.
Os outros homens formaram um círculo, e Ian virou-se para aquele que o desafiara. Precisou de muito pouco tempo para o derrotar.
As duas experiências deixaram-no a sentir-se azedo e sombrio durante o resto do dia, um estado de espírito que não deixava espaço para provocações. E assim, quando Lady Reyna não apareceu para a refeição da noite, ele saiu de rompante do salão à procura dela.
Encontrou-a no seu quarto, deitada na cama com um cobertor até ao pescoço. Os pergaminhos e papéis em cima da escrivaninha estavam cuidadosamente empilhados, e ele perguntou-se se as cartas de Edmund estariam entre eles. Esta ideia também não fez maravilhas pelo seu estado de espírito.
– Não olheis para mim dessa forma – disse ela. – Estou doente.
– Estais pois. Não é mais do que outra rebelião para me importunar. Vinde imediatamente para o salão.
– Tendes-vos em grande conta para pensar que passo fome com o objetivo de vos vexar. Asseguro-vos que não estou bem.
– As mulheres como vós não ficam doentes. Sois demasiado obstinada.
– É a coisa mais estúpida que alguma vez ouvi. Fico doente com frequência. Como estou agora.
Ele pôs-lhe a mão na fronte. De facto, parecia estar um bocado quente. – O que tendes?
– Não é nada grave. Passará dentro de alguns dias.
A preocupação endureceu ainda mais a sua voz. – Senhora, pergunto mais uma vez. Que doença é esta?
Ela respirou com esforço. – É uma doença de mulheres, se quereis saber. Dores de regras. Se uma mulher não tiver filhos, podem ser piores.
Ele sentiu-se imediatamente pouco à vontade e constrangido. –
Precisais de uma criada para vos ajudar?
– Não. Simplesmente aguento. Mandai alguém dizer a Alice que não irei até lá durante algum tempo.

– Pedirei que ela venha cá. Não conheceis nenhuma poção ou algo parecido para tratar de coisas dessas?
Ela revirou os olhos. – Se soubesse, achais que ficaria a sofrer?
A sério, Sir Ian, isto é extremamente embaraçoso.
– Durante quanto tempo estareis doente?
– Pelo menos dois dias – retorquiu ela. – Talvez chegue aos quatro. Agora, saí daqui, inglês bárbaro, e permiti-me alguma delicadeza a este respeito.
– Assim está melhor – disse ele, fazendo menção de sair. – Se não me tivésseis insultado, teria de mandar buscar um médico a Carlisle.
Duas manhãs depois, Ian estava sentado no pátio, no bebedouro dos cavalos, com um enorme fole de couro no colo, no fundo do qual abria pequenos buracos com o punhal.
– Assim, Sir Ian? – gritou uma voz jovem.
Ele olhou para o muro onde os netos de Alice, Adam e Peter, tinham construído uma cerca ripada da altura dos ombros de um homem. Os seus homens podiam ter feito o trabalho num terço do tempo e com melhores resultados, mas aqueles dois eram bons rapazes e tinham começado a segui-lo para todo o lado, por isso deixara-os participar no seu projeto.
– Sim. Do tamanho de um homem chega bem – aprovou. A cerca envolvia as escadas que conduziam às ameias, e ele já prendera uma viga e um gancho por cima dela.
– Vamos ver o que sai daqui. – Subiu as escadas e pendurou o fole no gancho. Adam passou-lhe um balde de água e Ian verteu-o no saco de couro. Fios de água brotaram imediatamente dos buracos.
– Vai ser como estar à chuva – disse Adam. – Não me importava de me lavar se pudesse ser à chuva.
– Hoje de tarde podes ser o primeiro, então. Vou utilizar-te para perceber quanta água é necessária para um homem.
– Eu diria muita. Um banho precisa de muitos baldes.
– Isto vai gastar menos. Talvez só meio balde, se te lavares rápido.
– Já tivestes um destes antes?
– Não, pensei nisto agora. – A necessidade fizera-o engendrar aquilo. Não queria mandar muitos homens de cada vez ao rio para se lavarem, já que esperavam problemas por parte de Clivedale.
Utilizar banheiras estava fora de questão, já que se veriam obrigados a carregar água do rio sem parar para atenderem a toda a gente. Os homens já começavam a cheirar mal, e ele esperava ter encontrado uma solução. Se resultasse, construiria mais alguns.
Saltou de lá de cima e verificou se os toros, toscamente falquejados, estavam bem seguros ao chão. Enquanto empurrava e testava, ouviu os sons das lavadeiras a partir para o rio. Desejou que houvesse algum tipo de mecanismo que resolvesse esse problema também. A sabotagem de Reyna criara toda uma série de inconvenientes.
Pensar na senhora voltou a fazê-lo meditar na morte de Robert de Kelso. A questão do veneno dera-lhe muito que pensar ultimamente. Se ela de facto soubesse alguma receita, onde teria arranjado os ingredientes, e onde os guardava? E onde tinha ela as suas ervas?
Dirigiu aos rapazes alguns elogios e instruções, e contornou a torre em direção ao pátio sul. Lá, existia um jardim rodeado por um muro baixo, e ele passou pelos canteiros de flores bem cuidados em direção ao caramanchão de macieiras. Por vezes, ia até lá para pensar, era uma solidão que o retemperava.
Infelizmente, neste momento não iria ter solidão. Lady Margery estava sentada debaixo de uma das árvores a bordar com afinco.
Ela chamou por ele com um sorriso de agrado.
Ele não achava Margery pouco atraente ou indesejável. Ela era exatamente o tipo de mulher disponível de quem ele se aproximaria nestas circunstâncias. Mas por qualquer razão a sua disponibilidade tão manifesta saturava-o e irritava-o. Não ajudava, claro, que ela tivesse um marido que sem dúvida alguma o desafiaria se soubesse que Ian tinha levado a sua mulher para a cama, e ele ficaria certamente a sabê-lo, provavelmente pela própria Margery. Ian não temia Thomas Armstrong, apenas evitava matar homens por mulheres de quem não gostava assim tanto.
A Edmund, o hospitalário, por outro lado, desfá-lo-ia alegremente em pedaços.
Só a quero porque não a posso ter. Como um rapaz imberbe.
Sentou-se ao lado de Margery e disse alguns elogios e admirou o seu bordado e fez todas as coisas que se esperava que um cavaleiro cortês fizesse. Ela enrubesceu como uma virgem e não parava de virar o rosto para o dele enquanto falava. Ele sabia que ela esperava que a beijasse. Em vez disso, levantou-se e ofereceu-lhe a mão. – Talvez pudésseis mostrar-me o jardim. Nunca o vi todo.
Margery lançou-lhe um olhar que sugeria que aquele banco e aquela árvore eram todo o jardim de que precisavam, mas colocou o bordado de lado e acompanhou-o.
Caminharam descontraídos por entre algumas rosas e outras flores que ele reconheceu, e alguns canteiros de legumes. Margery aproximava-se a cada passo e ele continuava em frente, inabalável.
Por fim, contra o muro do fundo, num retalho de luz atrás da última árvore, ele encontrou o que procurava.
– O que é este canteiro?
– São as ervas de Reyna. Coisinhas feias, não são? Ouvi dizer que ela apanhou algumas nos montes, mas Robert às vezes trazia-lhe sementes e plantas. Ervas e livros. Que tipo de prendas são estas para uma senhora?
Prendas que lhe agradariam mais do que sedas. O rei Alfredo conhecia bem a sua jovem mulher. – Sabeis o que cresce aqui?
– Não sei de tais coisas. Só Reyna sabe.
– Como pensais vós que ela aprendeu?
– Provavelmente naquele herbário que tem. Robert ofereceu-lho.
– Estais a falar de um livro sobre ervas e as suas propriedades?
– Sim. Até tem figurinhas. Está lá em cima com os outros, no quarto principal.
Não, não estava. Nem ele nem David haviam examinado um herbário nesse dia. Nem havia livros no quarto de Reyna. Alguém o teria levado? Este herbário incluiria plantas com propriedades venenosas? Ele teria de encontrar resposta para aquelas perguntas.
Estava na altura de ter uma conversa franca com Reyna.
Reconduziu Lady Margery ao banco de pedra e despediu-se dela, educada mas enfaticamente.
Enquanto galgava os degraus intermináveis, mais uma vez os maldisse por serem tão incómodos. Que pena não poder pendurar uma polé para transportar as pessoas lá para cima, como a água.
Pensando bem, a ideia não era assim tão despropositada, e ele passou o tempo até ao quinto andar a reflectir nisso. As imagens mentais ainda o ocupavam quando arranhou a porta do quarto de Reyna.
Não se ouviu resposta. Um mau presságio aguilhoou-o. Ela podia estar a dormir, claro. Bateu com o punho e a porta abriu-se com a força da pancada.
Ele olhou em redor e depois deu meia-volta e correu pelas escadas abaixo, piso atrás de piso, até chegar à entrada da cozinha, onde Alice cortava carne.
– Onde está ela?
– Ela?
– Lady Reyna. Não está no quarto.
– Não está? Bom, na noite passada disse que estava a sentir-se melhor, por isso deve andar por aí.
– Não está por aqui, no entanto.
– Ela não passa o tempo dela todo aqui, Sir Ian. Tem outros interesses. Fostes ao quarto principal? Às vezes está lá a ler. E o jardim, pois, ela gosta do jardim. Ou talvez esteja com as outras senhoras, a bordar e assim.
Furioso Ian voltou a subir para tentar os outros quartos, irrompendo por porta atrás de porta. O mau pressentimento não diminuíra nem um bocado, e quando regressou à entrada do salão havia-se transformado numa certeza furiosa.
A pestinha sumira. Sabia-o, tanto como sentia uma raiva colérica turvar-lhe o discernimento.
O seu olhar deteve-se no portão. Pela sua mente passou a imagem de um bando de mulheres atrás de uma carroça de roupa para lavar, atravessando as muralhas.
Raios. Ela saíra mesmo à frente do seu nariz, e ele nem sequer estivera atento porque pensara que ela estava de cama. Dores de regras uma ova.
Gritou a um cavalariço que lhe selasse um cavalo, e depois foi incomodar o homem por não trabalhar rápido que chegasse.
Fervendo com ameaças silenciosas das coisas que lhe faria quando lhe pusesse as mãos em cima, incitou o cavalo ao galope logo que passou o portão.
Devia ter deixado David levá-la embora. Não, devia ter insistido que ele a levasse. Ela era um demónio saído do Inferno, a dar cabo da paz dele, tentando deliberadamente enlouquecê-lo.
Pior, havia-se tornado uma presença invisível que ele não conseguia tirar da cabeça. Ele passava os dias na expectativa ridícula da sua presença e as noites em sonhos torturantes da sua rendição. E
agora, depois de ele ter tido a estupidez de a defender, ter garantido a David que ela estaria segura em Black Lyne, ela fugira de uma maneira que o faria passar por parvo. Como poderia Morvan confiar nele para tomar conta de uma propriedade inteira como senescal, se nem de uma mulher frágil conseguia tomar conta?
Deparou com três guardas esticados na relva a cem metros da margem do rio. Risos e vozes femininas vogavam na brisa. –
Devíeis estar de guarda a estas mulheres – rosnou ele, sofreando o cavalo. – Como podeis vigiá-las estando tão longe?
Eles lançaram olhares cautelosos e confusos uns aos outros. –
Se estivéssemos mais perto, podíamos vê-las – explicou um. –
Ordenastes-nos que não observássemos. Podemos ouvir se houver algum problema.
Ela sabia-o. Soubera da rotina perguntando às mulheres que costumavam lá ir. – Como vos certificais de que ninguém foge?
Outro homem ergueu os braços e indicou com a mão o terreno pantanoso em redor. – Fugir para onde? Vemos quilómetros em redor e quase não há arbustos onde se esconderem daqui até às quintas. Além disso, nós contamo-las à partida e à chegada.
– Quantas, hoje?
– Doze.
Ian cavalgou até à beira da água. As mulheres repararam nele e começaram a guinchar. Ele viu uma mistura de seios e ancas e coxas. Contou rapidamente os rostos chocados, envergonhados ou convidativos. Onze.
Perscrutou o terreno circundante. Se ela fosse na direção das quintas, seria fácil de avistar.
Suponhamos que contava com ajuda. Suponhamos que alguém esperava por ela com um cavalo. Onde? O seu olhar perscrutou a paisagem deserta, parando na velha fortificação mais acima no rio.
Era o único lugar à vista, e a vegetação ao longo do rio ocultá-la-ia.
Procurando à beira-rio, avançou a trote na sua direção.

CAPÍTULO 8


Reyna mudou de posição o saco de tecido que trazia pelo ombro e caminhou rapidamente por entre os arbustos e as árvores.
Vira Ian a dirigir-se a cavalo para o rio e depreendera da velocidade a que vinha que ele descobrira a sua fuga.
Maldito homem. Só devia ter suspeitado dali a um dia ou dois.
Alice prometera continuar a levar comida ao quarto dela para prolongar o logro. Ela já devia estar bem longe quando ele reparasse na sua ausência.
Além disso, o plano dela resultara muito bem. Tinha sido fácil escapar entre as outras mulheres. As roupas pobres não as surpreenderam, pois muitas vezes se vestia assim, e a sua vontade de ajudar com a roupa não levantara suspeitas, pois ela ajudava na cozinha. Uma vez no rio, fora simples esgueirar-se enquanto as outras mulheres se despiam.
Havia percorrido um bom pedaço rio acima antes de reparar em Ian, mas agora avançava mais devagar porque tinha de o fazer escondida pela vegetação. Pondo a cabeça de fora só um bocadinho, olhou para trás e viu que ele seguia na sua direção.
O som de cascos de cavalo tornou-se audível. Ela olhou para o rio. Era agora ou nunca. Não voltaria a ter outra oportunidade.
Foi até à borda da água. Enfiou rapidamente os sapatos no saco de cânhamo e escondeu-o por baixo de uma árvore caída. Tirou o lenço e estendeu-o no chão. Depois tirou o vestido, dobrou-o e fez com ele e o lenço uma pequena trouxa. Apenas de combinação, entrou na água fria. Atravessaria o rio, e mais tarde podia voltar para buscar as coisas do saco de cânhamo.
A alguns metros da margem o rio ficou muito mais profundo. Ela segurou a trouxa com os dentes para que ambos os braços ficassem libertos. Não era um rio largo, tão perto da nascente, e ela começou a atravessá-lo a nado.
– Maldição, mulher! Ides afogar-vos.
Estava a meio do rio quando a voz furiosa ribombou. Virou-se e deparou com o olhar fulminante de Ian. O cavalo dele estava na margem, com água até meio das patas.
Ela tirou a trouxa da boca e ficou ali um bocadinho, a dar aos pés. Ian esticou-se, olhando em ambas as direções.
– A única ponte fica lá em baixo, depois do castelo – gritou ela.
– Voltai para aqui agora.
– Seria uma estupidez, e vós sabei-lo.
– Eu mato-vos.
– Nesse caso, deixai que me afogue. Sem sangue para a vossa alma.
Ian apeou-se do cavalo e avançou até a água lhe dar pelas ancas. Não avançou mais.
Reyna abriu um sorriso largo. – Não sabeis nadar, pois não?
Achei que não. A maior parte dos ingleses não sabe. Devíeis ter lido os romanos antigos sobre a arte da guerra, Sir Ian. Todos os soldados sabiam nadar.
A pose e a expressão dele eram a imagem da fúria. Reyna riu-se e os olhos dele fizeram-se mais sombrios. Agarrando nas rédeas do cavalo, saltou para a sela e começou a cavalgar junto à margem, sobre as poças pouco profundas, torcendo-se para não tirar os olhos dela.
Ela voltou a agarrar a trouxa com os dentes e a nadar. Ele precisaria de pelo menos meia hora para galopar até à ponte e subir pelo outro lado. Muito mais se seguisse pela margem do rio. Nessa altura, ela já teria chegado às ruínas, ou encontrado um sítio para se esconder pelo caminho.
Uma corrente forte apanhou-a. A custo, debateu-se para lhe escapar. Arfava com o esforço e a trouxa escorregou-lhe dos dentes. A corrente levou-a.
Ela reparou, para seu horror, que Ian encontrara um ponto onde a água era menos profunda. Ele já estava a meio do rio, incitando a montada a atravessar a corrente da altura do peito de um homem.
O vestido e o lenço dela flutuavam exatamente na sua direção. Ele tirou uma seta de uma aljava que tinha presa à sela, inclinou-se e apanhou-os.
Olharam-se de frente através da extensão de água. Ela voltou-se para a margem este, mas nadou para trás. Ian caiu no logro.
Esporou o cavalo para seguir em frente, pela margem acima, e desapareceu na vegetação espessa.
Desesperada, Reyna avançou vigorosamente para a margem de onde saíra. Enquanto se arrastava para fora da água, ouviu alto e bom som as pragas que testemunhavam que Ian havia descoberto o seu esquema.
Ofegante devido ao esforço, procurou um lugar para se esconder. De repente, os arbustos e juncos pareceram-lhe muito raquíticos. Já a ficar desesperada, apoiou-se numa árvore. Olhou para cima.

Não era muito frondosa, mas parecia ser suficientemente forte.
Alguns dos seus ramos eram baixos, e talvez as folhas ajudassem a escondê-la. Murmurando obscenidades contra Ian de Guilford pelos trabalhos a que ele a obrigava, conseguiu subir para o ramo mais baixo. Trepou até os ramos esguios lhe parecerem demasiado fracos para suportar o seu peso. Sentada com uma perna de cada lado onde o ramo se unia ao tronco, tentou pôr-se confortável.
As suas nádegas pareciam estar a queixar-se por haver apenas uma combinação molhada entre elas e a casca áspera. Olhou por si abaixo: estava quase nua. A combinação só lhe chegava a meio da coxa. Puxou pelo tecido molhado para o afastar do corpo. Se Deus realmente existisse, nunca deixaria que Ian de Guilford a encontrasse nestes preparos. Dado que ela estava bastante certa de que Deus existia, o pensamento renovou-lhe a confiança.
Os sons do animal indicavam que Ian já prendera o cavalo.
Ouviu, perto do rio, pés a chapinhar de um lado para o outro, ele a procurar o sítio onde ela saíra da água. Ele caminhou até ao espaço abaixo dela. Ela susteve a respiração e não mexeu um cabelo.
Ele procurou lá por perto. Quando se afastou pelo meio da vegetação, ela permitiu-se uma pequena expiração. Ele acabaria por concluir que ela voltara a atravessar o rio a nado enquanto ele procurava. Reyna encostou-se ao tronco e tentou ignorar o desconforto.
Um movimento nos arbustos pô-la alerta. Ian regressou. Olhava para todo o lado. Encostou-se à árvore dela enquanto contemplava.
O que se passava com o homem? Quando retomasse as buscas, ela já podia estar a meio caminho de Edimburgo. Sentindo-se agora muito desconfortável, e culpando-o por isso, fitou-o furiosa.

De repente, ele levou a mão à cabeça. Esfregou o cabelo e olhou para a mão. Ela engoliu um grito quando se deu conta de que uma gota de água da sua combinação molhada havia aterrado em cima dele. Outra escorregava-lhe, preguiçosa, pela perna. Ela contorceu o pé para tentar apanhá-la.
Não funcionou. Ela praticamente ouviu o pingo cair na cabeça dele.
Ian afastou-se da árvore e olhou para cima, para ela.
Quando viu a expressão dele, ficou muito contente por estar fora do seu alcance.
– Descei daí, senhora. – Falou no tom cuidadoso de uma pessoa que se debate para não se converter num louco furioso.
– Não acho que seja boa ideia. Vós pareceis muito aborrecido.
– Aborrecido é pouco. Para baixo. Agora.
– Penso que seria melhor se vos acalmasses primeiro.
– Estou bastante calmo. Ficarei ainda mais calmo quando vos puser as mãos em cima.
– Vós estais muito perturbado. Aguardaremos um pouco. De outra forma, podereis fazer algo de que vos arrependereis.
– Não me arrependerei nem um pouco do que fizer, Reyna. O
rei Alfredo fez-vos as vontades e estragou-vos com mimos, e vós pensais que não tendes de obedecer a ninguém. Vou administrar ao vosso traseiro o castigo que o vosso marido vos devia ter dado há anos. Depois disso estarei mais calmo do que em qualquer dos últimos dias. Ponde-vos aqui em baixo rapidamente, e pode ficar menos mau para o vosso lado.
De repente, o seu poiso desconfortável não lhe pareceu assim tão mau. – Não tendes o direito nem a autoridade para me tratardes desta forma.

– Minha senhora, esqueceis a vossa situação. Sois prisioneira de guerra. Eu sou o homem que comanda o exército que vos capturou.
Tenho todos os direitos e toda a autoridade para fazer convosco aquilo que desejar. Agora, pela última vez, descei dessa árvore.
Ela lançou-lhe um olhar raivoso. A sua situação era ridícula, mas as ameaças dele eram intoleráveis. – Muito bem. Virai-vos de costas. Não quero que fiqueis a ver e a espreitar pela minha combinação.
Com uma expressão de irritação profunda, ele virou-se. Ela esperou um bocadinho para depois dizer: – Não consigo.
Ele virou-se e semicerrou perigosamente os olhos. – O que quereis dizer com isso?
– Estou presa, não consigo descer.
– Decerto que conseguis, sua bruxinha. Se subistes, também conseguis descer.
– Não sejais estúpido. Nem sempre é assim e vós sabei-lo. Até os animais ficam presos. Na verdade, nem consigo sair de cima deste ramo.
– O diabo que não conseguis. Já perdi tempo que chegasse, sua cabra mirrada. Descei dessa maldita árvore ou sou eu que subo a buscar-vos.
– Valha-nos Deus. Prisioneira de guerra ou não, sou uma senhora bem-nascida. A vossa linguagem…
– A minha linguagem?
– Vedes? Não estais de todo calmo. E não deveis subir para me ajudar, ainda que seja uma oferta galante. Olhai para a árvore. Não é muito forte. Mal suportou o meu peso.
Ele analisou os ramos, constatando relutantemente que ela estava certa. – Acho que deveis ir procurar ajuda – sugeriu ela. – Eu era capaz de conseguir se tivesse uma corda para me segurar.
– Insultais-me, Reyna. Não é preciso ser filósofo para perceber o que estais a tramar. Quando sair daqui, será convosco pendurada na minha sela, mulher.
– Se ides ser teimoso e pouco razoável, temos um problema sério, Sir Ian. Vamos ficar aqui até morrermos de fome? É uma solução muito inteligente.
Ele fulminou-a com o olhar. Ela quase acreditava que a fúria dele lhe daria asas para conseguir voar e ir buscá-la. Marchou até uma árvore próxima e baixou-se para se sentar à sombra dela. Esticou-se e pôs-se confortável.
Planeava aguardar até que ela se cansasse. Bom, ela tinha um incentivo muito forte para o derrotar nesse jogo. Ficaram assim, em silêncio, durante um bom bocado, Reyna encavalitada no ramo alto enquanto a combinação secava, Ian sentado lá em baixo e a fitá-la com má cara.
– Quem ia ajudar-vos? – inquiriu ele por fim. Parecia um tudo-nada menos furioso. – Viestes ao encontro de alguém. Quem?
Edmund?
– Edmund está em Edimburgo. Não planeei encontrar-me com ninguém.
– É mentira. A última de uma carrada delas. Sois bem versada na arte do engano. Terei de me lembrar disso, no futuro.
Ela começou a refutar, mas deteve-se. Por um lado, não fazia sentido discutir. Por outro, era mentira e, em certo sentido, ela era bem versada na arte do engano.
– Tendes um aspeto bastante simpático, aí em cima. Uma espécie de ninfa dos bosques. Mas deve ser desconfortável, visto que estais praticamente nua…

Era escusado ele ter reparado nesse ponto. – Sim, não é agradável. É cruel da vossa parte não irdes buscar ajuda, ou uma corda.
Ele não respondeu. Simplesmente encostou a cabeça à árvore e fechou os olhos.
Quanto a Reyna, dormir uma sesta estava fora de questão, por isso ficou condenada a suportar os longos minutos de espera mudando de posição para ter algum alívio.
Cada momento parecia uma hora. O sol avançara um bom bocado quando ele voltou a olhar lá para cima, para ela. A expressão dele parecia mais calma, normal até. – Estais preparada para descer, agora?
– Se conseguisse, tê-lo-ia feito há muito. Enquanto dormíeis, se quisesse fugir. A sério que não consigo sair daqui.
Ele levantou-se e deu uma volta, a estudar a difícil situação dela.
– Talvez faleis verdade. O ramo mais próximo está a alguma distância, e rodar em cima desse pode ser traiçoeiro.
– É o que tenho andado a tentar dizer-vos.
– Pareceis bem presa. Penso que não ides a lado nenhum. Vou voltar para arranjar ajuda e uma corda.
– Foi o que eu sugeri há mais de uma hora.
– Não vos mexais muito. Esse ramo está a vergar-se de uma forma perigosa, por causa do vosso peso.
– A vossa preocupação deixa-me emocionada.
– Voltarei em breve. Não caiais.
Ela acompanhou os sons da sua partida através dos arbustos, e depois os movimentos do cavalo que se afastava a trote. Forçou-se a contar até cem antes de erguer uma perna adormecida e a fazer passar por cima do seu poleiro. O simples movimento sabia-lhe maravilhosamente. Pôs-se cuidadosamente de barriga para baixo e baixou-se, com os pés a balançar para encontrar o ramo seguinte.
Quando lhe tocou, soltou uma pequena gargalhada de triunfo e desceu rapidamente da árvore.
Tirando um pequeno animal que se mexia no mato distante, foi recebida pelo silêncio. Célere, regressou à beira-rio, ao sítio onde escondera o saco de cânhamo. Ajoelhou-se ao lado da árvore caída e tateou o chão.
Nada. Introduziu mais o braço e depois curvou-se para olhar lá para baixo.
– Procurais isto?
Por um momento de desespero, estacou, para logo erguer o tronco. Ian estava a vinte passos de distância com o saco dela numa mão e a trouxa ensopada do vestido e do lenço na outra. Ele deixou o saco cair ao chão e atirou-lhe o embrulho molhado.
Descontraído, encostou-se a uma árvore e cruzou os braços.
Não parecera perturbado com a sua quase nudez quando ela estava sentada na árvore, mas agora o olhar dele percorria descaradamente o seu corpo, e a pele dela arrepiou-se em mil sítios.
– Dissestes que vos íeis embora – murmurou ela, acusadora.
Ergueu-se de um salto para apanhar o lenço amarrado e debateu-se nervosamente com o nó. A água convertera-o num pedaço de pedra.
Ele não respondeu. Limitou-se a ficar ali especado a observá-la daquele modo silencioso e perigoso. Não havia muita raiva na expressão dele, mas ela decidiu que preferia fúria ao que agora via.
Os dedos dela puxavam desesperadamente o lenço para chegar ao vestido e ela pestanejou com força para afastar o medo expectante que de repente começou a pulsar dentro dela.
– Sois de facto muito bela – disse ele, como se acabasse de descobrir algo que decifrava um enigma.
Ela respirou fundo e continuou cautelosamente com os olhos postos no nó. O seu coração batia um pouco mais forte. – Para alguém tão fracote e escanzelado, sou aceitável.
– Não tão escanzelada, agora que comestes durante alguns dias.
Mimosa e delicada, como os grandes senhores preferem. – Ela olhou para ele de relance e viu como lhe sorria tenuemente ao atirar-lhe as suas próprias palavras, como ela lhe fizera a ele.
O ar entre eles tornava-se muito pesado e, apesar da sua postura descontraída e distante, algo predatório emanava dele.
Aquele olhar insondável e ameaçador não se descolava dela.
Ela voltou a dar atenção ao nó, procurando alguma distração nos esforços que fazia. O silêncio pulsava com a consciência que ele tinha dela. Ela sentiu que ele sabia que estava a assustá-la.
Horrorizava-a que o medo possuísse uma nota de excitação que vibrava num estremecimento silencioso.
– Quero-vos – afirmou ele, nomeando calmamente o poder assustador que a alcançava, invisível.
– Devo ficar lisonjeada? Devo desmaiar de felicidade por ter caído nas boas graças do belo salteador? As vossas atenções têm sido concedidas tão aleatoriamente que, a meu ver, estão muito desvalorizadas, seu diabo.
– Considerando a vossa situação, senhora, seria pouco avisado provocar-me agora.
A ameaça deixou-a atordoada. Ganhou profunda consciência do quão isolados estavam, da distância que os separava de Black Lyne e do antigo castelo, de tudo e de todos. E entre eles, um ritmo silencioso, lento e primitivo.
– Estais perfeita, aqui, as vossas pernas entre as flores e a erva –
disse ele. – Muito mais apropriado do que rodeada de livros e pergaminhos. Apesar de todos os vossos estudos e de toda a vossa lógica, isto fica-vos bem. Podem ter arrumado a vossa mente em canteiros alinhados, mas o vosso espírito permanece tão selvagem como esta vegetação.
– Estais enganado – retorquiu ela, sentindo tremores horríveis, maravilhosos, a clamar silenciosamente por todo o seu corpo. A sua pele estava invulgarmente alerta ao sol, à brisa, ao olhar dele.
Inusitado e incrível, ele conseguir fazer-lhe isto, a vinte passos de distância. Assustador que a sua simples presença provocasse tamanho tumulto, deixando-a indefesa.
– Não penso que esteja. Afinal, eu provei a vossa paixão. – Ele inclinou um pouco a cabeça, examinando-a. Foi um movimento pequeno, mas acelerou o ritmo.
– Tirai a combinação, Reyna.
Ela ficou sem respiração. Parada. Hipnotizada. Agarrou-se ao pequeno embrulho como se fosse tudo o que existisse entre ela e a sua perdição.
Uma renda de fios de luz atravessava as árvores, fazendo sobressair os reflexos negros do cabelo de Ian. O seu rosto tinha uma expressão austera e os seus olhos espreitavam de baixo daquelas pestanas compridas. Ele era tão belo. Isto não era justo.
– Despi a combinação, Reyna – repetiu ele. – Soltai o cabelo e vinde aqui dar-me um beijo.
A sua ordem provocou-lhe um turbilhão de sensações prementes, revoltas, no ventre. Quase obedeceu. – Não façais isto
– disse ela.

– É inevitável. Sabei-lo.
– Não é. Nem sequer me quereis de verdade. Estais apenas aborrecido por eu vos rejeitar. Regressamos ao castelo, encontrareis outra pessoa e tudo se comporá. – Ela continuou a arremessar-lhe mais palavras. Palavras maravilhosas, racionais.
Ele sorriu daquela forma devastadora, o que suavizava a sua expressão, mas não a intensidade da sua atenção. – Não é assim tão simples. Não sei porque vos quero tanto. É raro. Como também o é o comedimento que tenho mostrado para convosco.
Acreditava que ainda estáveis apegada ao vosso marido, mas agora que soube de Edmund… – Ele afastou-se da árvore e deu um passo em direção a ela.
– Não menti a respeito de Edmund. Não vos atrevais a usar isso como desculpa.
Ele continuou a avançar para ela. Esguio. Forte. Confiante.
Nada existia agora além dele e dela e aquele magnetismo implacável entre os dois. – Olhando para vós e sentindo o que existe entre nós, não preciso de desculpa nenhuma. Vós precisais?
Então depois dizei-vos que me odiais e que não o queríeis, apesar de nem uma coisa nem outra serem verdadeiras.
Maldito. Não tinha consciência. Nenhuma vergonha, nenhuma piedade. Ela virou-lhe as costas e à sua beleza, mas, sobretudo, àquele conhecimento tão acertado e tão horrível que ele tinha dela, e à velha e traiçoeira ânsia com que ele jogava agora.
Foi um gesto vão. Ao mesmo tempo que a sua mente o rejeitava, o seu espírito aguardava, ansiava, saboreava o poder masculino que se aproximava. O seu corpo fervilhava como fizera nos seus sonhos, e com o toque dele. Aquela ânsia pulsava já no mais profundo de si.

Correi, gritou-lhe a mente. Para ele não sois nada. Mas a voz foi tragada por aquela batida ritmada, submersa pelo cheiro da erva e das flores e do rio, subjugada por aquela força escondida, enterrada dentro dela, que não queria mais nada a não ser a sua própria libertação.
Ian olhou para ela, de costas viradas para si, a tentar fingir que não reparava no laço inevitável que se firmava mais e mais entre os dois. O medo dela, carregado de erotismo, só lhe aguçava o desejo. Ele deixou que o laço se fizesse mais apertado à medida que se aproximava, deleitando-se com essa inevitabilidade.
Imaginou-a a despir a combinação, revelando o corpo que ele já começara a conhecer. Chegaram-lhe, velozes, memórias daquela noite no quarto dela. A sua paixão trémula e assustada… a sua rendição absoluta… seios redondos e firmes sob o seu toque e a sua boca… a cintura dela, tão fina que as suas mãos quase se encontravam quando a segurava, descendo em curva até à roupa que lhe caía pelas ancas.
Irrompeu dentro dele um desejo violento. Alguns passos adiante, no meio das flores selvagens, Reyna sobressaltou-se como se a fome dele, atravessando o ar de um salto, a tivesse atingido.
Ela atirou-se rapidamente ao nó da trouxa. Ele caminhou para ela, puxando do punhal, e ela tremia visivelmente com a sua proximidade. Ele deteve-se atrás dela, esticou o braço e cortou o nó, as mãos dele cobrindo as dela por um momento, o contacto breve uma provocação aos seus sentidos. Os braços que a rodeavam dominavam a sua estrutura pequena, e ele sentiu o ténue odor da excitação feminina.

O lenço abriu-se e o vestido caiu. – Está molhado – disse ele, olhando para a sua nuca adorável.
– Terá de servir – murmurou ela, agarrando nele e abanando-o.
– Não ides vesti-lo, Reyna. E ides despir a combinação.
Ela apertou o vestido contra o corpo. Ele tocou-lhe no cabelo, os seus dedos procurando suavemente os ganchos que o prendiam.
O corpo dela tremeu inteiro e um rubor subiu-lhe ao pescoço. As tranças belas, luminosas, caíram-lhe pelas costas. Ele deu um passo em frente, passou as mãos pelos braços dela, e encostou a boca àquela cascata sedosa.
– Quero-vos – voltou a dizer.
– Tomais sempre daquilo que desejais?
– Normalmente. Acaba por acontecer. Não sou muito versado em renúncia. – Inclinou-se para lhe dar um beijo no ombro, acariciando ainda os seus braços. Pequenos veios de calor cresciam ao toque dele. Ele não conseguia ver-lhe o rosto, mas sabia que ela fechara os olhos, para lhe resistir. Inútil, claro, mas ele admirava a força que a tornava digna de persistência.
– Pensais que eu e Edmund nos tornámos amantes e que por isso sou de moral fácil e estou à disposição para ser usada –
declarou ela.
– Não. Não me saís da cabeça e eu não posso lutar contra isso indefinidamente.
– Por isso procurais ver-vos livre desse inconveniente.
Ele fez-lhe cócegas no pescoço com o nariz, cingindo-lhe a cintura com as mãos. Tão pequena e frágil. Mas um ânimo que nunca se vergaria. Fosse como fosse, ele submetê-lo-ia à sua vontade, pelo menos neste aspecto. – Quero dar-vos prazer. É o que povoa os meus sonhos. – Beijou-lhe a orelha. – É o vosso desejo, Reyna. Se não for, podeis fugir. Mas ainda não o fizestes, e não me parece que o façais. Alguma coisa me diz que sentis o mesmo que eu e que sabeis que isto será bom entre nós.
Os braços dele abarcaram-na. Ouviu a sua inspiração profunda.
O vestido molhado caiu, largado. Ele percebeu a sua prudência expectante, pressentiu a sua surpresa incrédula, quase sentiu o cheiro daquele medo sensual a misturar-se com o odor subtil que emanava das suas coxas. Tudo isto provocou nele reações primitivas, dominadoras.
Ele acariciou-a, chamando-a mais para si, até as ancas dela se unirem às dele. Ela agarrou os braços dele como se fosse arrancá-
los do seu corpo, mas não o fez. Durante um segundo tenso, pairou na indecisão. Ele quase conseguia ouvir o bater do aço, o pensamento racional debatendo-se com a necessidade sensual.
Então, respirando fundo, ligeiramente trémula, ela entregou-se ao seu abraço, rendendo-se.
Ele rejubilou de triunfo. Acariciou-lhe as curvas esguias, deleitando-se com a sensação daquele corpo frágil, os seus sentidos imunes a tudo exceto aos seus suspiros lentos e sonoros e ao seu odor limpo e fresco, e ao sabor orvalhado da pele que tocava com os lábios e os dentes, procurando os pontos do seu pescoço que lhe cortavam a respiração. Por isso, mal ouviu as palavras sussurradas nas suas expirações suaves.
– Se eu fizer isto, deixais-me partir?
As mãos dele pararam. Ergueu a cabeça. O seu peito revolveu-se de compaixão, pelo medo mortal que a fazia ofertar tal troca. –
Não, mas só em parte por causa do meu dever para com Morvan.
– Depois, quando vos fartardes de mim?
– Não partis, nem agora nem depois.

Ela virou a cabeça para conseguir vê-lo. – Eles vão matar-me.
– Não, não o farão. Não deixarei que o façam.
– Sois apenas um.
– Não deixarei que o façam. Mesmo que me rejeiteis agora ou depois, assim é. Não tendes que vos dar a mim em troca dessa proteção.
Uma sombra de esperança surgiu-lhe nos olhos. Depois fechou-os e encostou uma face ao corpo dele. Ele puxou-a mais para si e ela não resistiu, antes inclinou a cabeça em aceitação do seu beijo.
Ele envolveu-lhe os seios com as mãos e brincou com eles até ela se arquear contra o seu toque, e as nádegas dela se encostarem ao seu corpo. Ele baixou-se, e a ela com ele, ficando ela ajoelhada entre as suas coxas, encostada a ele, agarrando-lhe as pernas acima dos joelhos.
Ele tocou-lhe até ela começar a gemer e a acariciar-lhe as coxas.
O movimento desnorteado daquelas mãos pequenas, e as nádegas batendo-lhe ritmadas no colo ensandeciam-no. Afastou-se um pouco dela e afastou-lhe o cabelo. – Tirai a combinação.
Ela hesitou, olhando para ele por um momento. Em seguida, erguendo-se lentamente sobre os joelhos, puxou para cima o tecido fino. O olhar e as mãos dele acompanharam o movimento, que revelou umas coxas leitosas, nádegas redondas e costas esguias.
Os seus músculos delicados alongaram-se, elegantes, ao despir a combinação, deixando-a cair ao lado deles.
Ele delineou com as mãos a curva maravilhosa que descia da sua cintura até às ancas, beijando-lhe o fundo das costas e subindo até ao pescoço. A cabeça dela descaiu para trás com os seus suspiros.
Quando ele se pôs de joelhos e abraçou a sua nudez cálida, ela encostou-se a ele num movimento sinuoso e maleável.

Ele deitou-a nas flores e na relva e pôs-se em cima dela. Estava ajoelhado, alto, de olhos postos nos seus lábios entreabertos e nos olhos turvos de paixão.
No seu coração, parecia-lhe que nunca tinha visto uma mulher tão bela. Curvou-se e beijou as suas coxas esguias e o monte de Vénus louro, as suas ancas curvilíneas e a barriga lisa, o volume redondo, perfeito, dos seus seios, sorrindo com os sons e os tremores que cada contacto provocava nela. Inclinando-se sobre os braços esticados, suspenso por cima dela, procurou a sua boca e beijou-a profundamente, mordendo, explorando, saboreando o gosto e o calor da intimidade, sentindo todo o seu ser vir ao seu encontro. Hesitante, ela tocou a língua dele com a sua. Ele suspeitou que ela nunca o havia feito e encorajou-a, recuando, afastando os lábios até que ela se atreveu a beijá-lo e a sua língua delicada, inocente, vibrou dentro dele.
Ele começou a beijar-lhe o pescoço e ela gemia quando ele tocava os pontos sensíveis que havia descoberto. Apoiando o seu peso num só braço, passou-lhe a outra mão pelo ombro e pelo peito até aos seios. Quanto mais suave o toque, mais ela gritava.
Humedeceu com a língua os mamilos túrgidos e ficou um bom bocado a provocá-la com os lábios e os dentes, para depois se tornar mais veemente. Por baixo dele, o corpo dela estava descontrolado, as ancas balançavam daquele modo suplicante que as mulheres têm, mas ele não deixaria que o privassem deste jogo lento.
Erguendo-se nos joelhos, desapertou o cinto e tirou a camisa.
Ela ergueu os olhos para ele, selvagens, a respiração em suspiros profundos e curtos, o cabelo raiado de prata estendido ao seu redor. Ele inclinou-se até sentir os seios dela no seu peito e a perna dela entre as suas, e fechou os olhos para conhecer apenas a perfeição da receção dela. Ele percorreu o seu corpo com uma carícia e o gemido suave de prazer que ela soltou derrotou-o.
Uma tempestade de desejo e sensação invadiu-lhe o corpo.
Equilibrando-se num antebraço, beijou-a uma e outra vez, devorando-lhe a boca e o pescoço e os seios, tomando todo o seu corpo com uma mão, deleitando-se com as suas respostas vibrantes, saboreando a submissão dela e o controlo absoluto que detinha. O aroma da erva, das flores e do suor preenchiam-lhe a mente, inebriando-o.
Introduziu a mão entre as coxas dela e afagou-a. Ela arquejou, sobressaltada com o prazer, e fincou os dedos nos ombros dele.
Ele observou a sua expressão de assombro. Acariciou-a repetidamente, descobrindo os pontos que a faziam gritar, e ela aceitou, com os olhos fechados de êxtase. Aquele abandono perplexo levou o corpo dele ao limite.
Ele afastou-lhe as coxas com a mão e posicionou-se sobre ela.
– Oh, meu Deus – gritou ela, erguendo os olhos para ele, repentinamente alerta e aterrorizada. – Oh, meu Deus. Não. Não.
O corpo dela agitava-se descontrolado debaixo dele e ela afastava frenética os ombros e o peso dele. – Não, não posso – gritou, contorcendo-se e empurrando. Uma vez e outra se negou, gritando.
O rosto dela mostrava um pânico desesperado.
Raiva foi a resposta inicial dele, mas a força da reação dela deixou-o atónito. A preocupação abriu uma brecha no seu desejo cego. Afastou-se dela e envolveu-a com os braços. – Não vos tomarei. Não o farei – sossegou-a uma e outra vez.
O corpo dela acalmou-se por fim. Ficou ali deitada com aquela expressão triste que ele lhe vira no rosto quando o afastou no quarto dela. Não posso. Dissera a mesma coisa naquela altura.
Não posso. Não devo.
Ela virou a cara para o lado, arrasada. – Lamento – sussurrou. –
Não era minha intenção fazer-vos isto.
– Viverei. Acho eu.
A réplica fê-la rir-se, com embaraço e dor. – Deveis pensar que sou louca ou verdadeiramente uma cabra mirrada. Não foi intencional, nem na última vez nem nesta.
– Eu sei.
Ela olhou para o seu corpo, apercebendo-se subitamente da sua nudez, e corou. Virou a cabeça para procurar a combinação e pegou nela.
– Não – disse ele. – Ainda não. Ficai aqui comigo só mais um pouco.
Ela ergueu uma sobrancelha. – Se pensais seduzir-me até derrubar a minha determinação, não é possível.
– Como aprendi às minhas custas. – Ele levou um dedo à testa dela e desceu pelo nariz até aos lábios. Lentamente, continuou o seu percurso. Os mamilos rosados de Reyna endureceram com a aproximação daquela mão. – Penso em dar-vos prazer. Não entrarei em vós de maneira nenhuma, juro.
Ela começou a abanar a cabeça numa recusa desconfiada, mas ele afastou as objeções dela com beijos. Apostaria o saque de um ano em como ela não sabia ao que ele se referia.
Ela estava completamente à mercê do toque dele. A sua paixão voltou a avolumar-se com uma rapidez impressionante, reacendendo o seu próprio desejo. Ele abriu-lhe as pernas para poder acariciá-la livremente. Enterrando o rosto no ombro dele, ela aceitou o prazer.

Enfiou a perna dele por entre as dela e pressionou a virilha contra as suas ancas bamboleantes, vendo o rosto meio escondido de Reyna contrair-se à medida que as sensações se tornavam insuportáveis para ambos. Logo ela gritava baixinho, agarrando-se frenética a ele, erguendo as ancas a exigir mais. O final dela foi belo e violento. Ele beijou-a, engolindo o seu grito, e deixou que o seu tremor o transportasse com ela.
Ela ficou deitada nos braços dele, arquejante e esgotada. Ele não teve de olhar para o seu rosto para perceber a sua surpresa.
Sentiu um prazer adolescente por lhe ter proporcionado aquilo antes de qualquer outro homem.
– Há muitas formas de dar e receber prazer sem união, Reyna.
Deitai-vos comigo à noite. Eu mostro-vos.
Aquele olhar triste regressou e ela abanou lentamente a cabeça.
– Convosco sou fraca, Ian. Acabaria por… Não, não posso.
Ele não tentou persuadi-la. Haveria tempo suficiente para isso. E
ela tinha razão. Ele acabaria por lhe dar o prazer que derrubava a sua determinação ou o seu medo. Não era conhecido como o Senhor das Mil Noites sem razão.
Ele inclinou-se para lhe beijar os lábios doces.
Foi detido por movimentos rápidos nos arbustos. Próximos.
Trapalhões. Um novo odor, vivo e humano, vogava na brisa.
Uma sensação de perigo apoderou-se dele. Tapou rapidamente o corpo dela com o seu e esticou o braço à procura do punhal entre as ervas. E então, num instante malfadado, sentiu uma pancada na cabeça e foi tragado pela escuridão.

CAPÍTULO 9


– Não! Não o mateis! O seu grito atingiu Reginald quando a lâmina encetava o seu golpe descendente. Ele deteve-se, a espada pairando no ar.
Num frenesim, Reyna vestiu a combinação e o vestido. – Os homens que estão no castelo são dele. Se o matardes, eles virão à procura de vingança e podem entregar-se a violência lá dentro e na povoação antes de o fazerem.
Reginald fitou a sua vítima com fúria. O sangue escorria do cabelo de Ian e brilhava no ramo de árvore descartado que jazia a seu lado. – Ele tomou-vos?
– Não. Eu resisti-lhe. Seguramente que me ouvistes.
– Sim, ouvi os vossos gritos. Foi assim que vos encontrei.
Avistei-vos no rio, das ruínas, e vim até cá.
Ela dobrou-se e colocou a mão no pescoço de Ian. O horror que sentia recuou quando sentiu a pulsação dele. – Devemos partir imediatamente. Ele saiu há bastante tempo e virão outros à sua procura.
Os nós dos dedos de Reginald faziam-se brancos pela força com que agarrava a espada. – Malditos cabrões ingleses. Pensam que as mulheres escocesas nasceram para proveito deles.
– Encontrastes cavalos? – perguntou ela, tentando ocupá-lo.

– Sim. Estão aqui perto. – Ele olhou para o céu. – Hoje aguardamos nas ruínas e amanhã vamos para norte.
– Não, temos de partir agora. Não demorará muito até eles se lembrarem do velho castelo. Podemos estar nas terras do meu pai daqui a pouco. Eles não atravessarão a fronteira.
– Cheira-me a chuva, senhora. Estaremos em segurança nas ruínas e conseguimos ver se alguém se aproximar. Não passarei a noite nas terras dos Graham, perdido por aqueles caminhos na escuridão. Se partirmos ao nascer do dia, ao anoitecer estaremos em segurança. Tendes de atender ao que vos digo. Sei o que faço.
Reyna deitou um olhar preocupado a Ian. Ele não se mexera, não se lhe ouvira um som. Rezou para que alguém o procurasse sem demora.
Os cavalos estavam meio quilómetro rio acima, escondidos na vegetação. Reginald ajudou-a a subir para o dela e alçou-se para cima do seu.
Ela reparou na sua testa franzida e nos seus lábios finos. Tinha cabelo louro e liso até ao queixo e umas maçãs do rosto largas e chatas, que definiam o seu rosto vincado. Nos seus olhos azuis havia uma centelha de perigo. Tinha o aspeto de um homem determinado a cumprir uma missão, e preparado para lutar com demónios saídos do Inferno se algum interferisse.
Foram até às ruínas, e Reyna viu com alívio que Reginald montara acampamento atrás de algumas pedras e não nas fundações cavernosas da torre. Para um homem que fugira de Black Lyne há tão poucos dias, conseguira acomodar-se muito bem. Havia cobertores e um tacho e uma bolsa com água num dos lados da fogueira apagada. Sabe-se lá como, conseguira arranjar um arco.

Ela nunca se importara com a natureza taciturna de Reginald, pois ele sempre fora apenas uma sombra silenciosa na presença de Robert. Agora que estava a sós com ele, achava-a um bocado perturbadora. Constatou que, embora Reginald fizesse parte da sua vida há já doze anos, na verdade não o conhecia. Certamente não tão bem como ficara a conhecer Edmund, o irmão, ao cabo de um mês.
– É meu plano ir para norte, para Edimburgo – explicou ela.
Ele acenou com a cabeça. – Edmund disse-me. Disse que o propusera há muito tempo, no caso de Robert morrer e vós quererdes sair daqui.
– Ele disse que eu podia ficar com uma viúva que ensina raparigas. Enviei uma carta a Edmund antes do cerco e disse-lhe que iria se conseguisse. Apela-me a ideia. Robert ensinou-me e eu agora ensinarei outros. Comporta uma certa virtude.
– Não é uma vida apropriada. Duas mulheres a viverem sozinhas na cidade? Sem homens para vos proteger? Robert não aprovaria.
– Robert está morto, Reginald.
– Sim, ele está morto, mas eu não.
A chuva com que Reginald contava veio em grande quantidade, por isso procuraram abrigo nas ruínas, na entrada para as fundações. Reyna aninhou-se entre alguns cobertores e adormeceu com a chuva fria a pingar-lhe a toda a volta.
Quando acordou, o sol poente tornara abafado o ar húmido.
Reginald partira, e o arco também não estava lá.
Pensou na vida que a aguardava. Sempre a cativara muito e depois, com as acusações, tornara-se um sonho. Agora que estava a caminho de lá, contudo, o seu entusiasmo abandonara-a. Em vez disso, um peso melancólico alojara-se no seu coração.

Concluiu que se devia ao facto de estar a abandonar a sua casa.
Ainda assim, algo mais tingia essa tristeza. Algo inexplicável e pungente.
Perguntou-se pela centésima vez se alguém teria encontrado Ian.
Era melhor não pensar nele, decidiu. Que maravilhoso seria não se recordar do que havia acontecido poucas horas antes. Ela nem sequer oferecera muita resistência, não fugira, não lhe dissera que parasse depois de ele lhe ter tocado. Não só sucumbira à sua sedução experiente, como o mais certo era tê-lo feito mais prontamente do que a maior parte das mulheres.
Essa ideia humilhava-a. E, porém, aquelas sensações exuberantes haviam sido gloriosas, toldando raciocínio e dever, conduzindo-a sem impedimento àquele êxtase especial. Afastada do mundo, e, em essência, mais nele do que em qualquer outra altura. Imune ao que a rodeava, mas absorta nos seus ritmos naturais. Próxima do homem que estava nos seus braços como nunca estivera próxima de ninguém.
Surpreendia-a que tivesse recuperado a compostura no último momento, mas essa memória só acrescia à sua humilhação. Ela devia estar grata pela compreensão que ele mostrou quanto a isso.
A maioria dos homens limitar-se-ia a forçá-la, se ela lhes fizesse semelhante coisa.
Um homem estranho, Ian de Guilford. Orgulhoso e arrogante e presunçoso, era certo, e sem dúvida um oportunista. Mas gentil à maneira dele. E muito astuto. Gostara de medir forças com ele nestes últimos dias. Admitia com espanto que sentiria saudades dele, e que parte da sua tristeza advinha de o perder.
Precisava de o tirar da cabeça. Enfiou a mão dentro do seu saco à procura do único volume que trouxera, um pequeno livro de horas.
Foi o primeiro que alguma vez teve. Robert dera-lho como prenda de casamento porque tinha ilustrações adoráveis. Quando ele estivera doente e moribundo, ela lera-lho, cada excerto, embora ele soubesse as palavras de cor. Ficara na mesa ao lado da cama entre as poções e os pergaminhos e as penas, uma lembrança do amor e das promessas dos dois.
Sorriu perante as iluminuras pormenorizadas de camponeses e gente da cidade que mostravam os trabalhos dos meses. Nunca se cansava de as olhar. Quando voltou a página para o mês de agosto, caiu-lhe aos pés uma pequena tira de pergaminho.
Apanhou-a, curiosa, receando que alguma página se tivesse rasgado. Mas o pedaço não pertencia ao livro. Não tinha palavras, apenas um quadrado e círculos e linhas curvas. Devia pertencer a Thomas. Ele não lia muito, mas teria gostado de olhar para as imagens enquanto vivera no quarto principal. Voltou a colocá-lo no livro e continuou a ler.
Reginald regressou ao cair da noite, com dois coelhos. Acendeu um lume baixo no círculo de pedras e começou a esfolá-los. Ali o fogo estaria escondido e Reyna adivinhou que ele usara tochas para lhe fazer sinais nas últimas noites. Uma vez cozinhada a carne, comeram em silêncio.
A claridade desaparecia quando Reginald falou, abruptamente. –
Antes de Edimburgo, ficaremos em Hawick durante alguns dias.
– É perto de mais, Reginald. Ponhamo-nos rapidamente a caminho de Edimburgo.
– Não. Será Hawick. Tenho pensado no que Robert me disse, no seu pedido para vos proteger. Estou convencido de que ele queria que nos casássemos.

Reyna ficou muito quieta. Rezou para que tivesse percebido mal.
– É a única forma de vos proteger – continuou ele. – De outro modo, com que autoridade o farei?
– A vossa condição de cavaleiro dá-vos essa autoridade. O meu falecido marido concedeu-vos essa autoridade. Se não for o suficiente, dou-vo-la eu.
Ele abanou a cabeça. – Senão não será apropriado viajarmos juntos, e Robert não quereria que vivesses sozinha, sem proteção.
Casaremos e iremos para Edimburgo e eu encontrarei lá ocupação.
Edmund saberá de lordes que precisem de uma espada.
– Vou para Edimburgo motivada apenas pela sugestão de Edmund de ir para lá ensinar e viver com aquela viúva. Não desejo ir para lá para me tornar na mulher de um cavaleiro em serviço.
– Fica a boa distância daqui e não está sob a alçada do bispo de Glasgow. Continua a ser o melhor sítio aonde ir.
Ele não estava a compreender nada. – Reginald, estou certa de que interpretastes mal as intenções de Robert. Se ele quisesse que nos casássemos, ter-mo-ia dito, e não o fez.
Reginald olhou para ela de uma maneira estranha. – Estou convencido de que era mesmo a intenção dele. Não tendes parentes que vos protejam a não ser os Graham, e não ides querer regressar para lá. Este juramento cria um dever que não delegarei a nenhum outro. Se não vos casardes, os homens andarão atrás de vós como aquele cabrão inglês há pouco, e eu terei de os matar.
Não, senhora, se estamos unidos para toda a vida, então que o estejamos de facto.
– Não deixarei que vos sacrifiqueis dessa forma.
– Casar-me convosco convir-me-á. – Ele ergueu os olhos para ela com uma expressão muito diferente. Reyna olhou-os e viu o que lá estava.
Oh, Céus. C’os diabos.
– Robert mal arrefeceu. Forçar um casamento, e para mais com uma viúva recentemente enlutada…
– Pelo que pude ver esta tarde, o vosso luto já está bem feito, senhora.
Aqui estava. Ele vira ou ouvira o suficiente para reconsiderar a opinião que tinha dela.
A mulher e viúva do castelão tornara-se disponível de repente.
Não era uma rameira, porém, se ele considerava casar-se.
Provavelmente racionalizara o comportamento dela à maneira da Igreja. Uma mulher, de natureza vil como todas as mulheres, obviamente se perderia se não tivesse um homem a tomar conta dela com rédea curta.
A decisão dele tratava disso tudo. Ele cumpriria o seu juramento de a proteger, salvá-la da perdição inerente à sua feminilidade, e ficaria com a mulher do amo, que também desejara. Sem dúvida, muito claro para a mente dele. Dado que o primeiro casamento dela revelara que ela era estéril, ele provavelmente sentia-se um perfeito cavalheiro.
– Eu recusar-me-ei e o padre não nos casará.
– Eu explicarei a situação e ele fá-lo-á. Se necessário for, pagar-lhe-ei.
Ela pôs-se em pé, lançando-lhe um olhar furioso. – Isto é intolerável, Reginald. Sempre pensei que fosseis um homem honrado e decente, tal como Robert pensava, mas vejo que ambos nos equivocámos.
– E eu sempre pensei que vós fosseis uma mulher honrada e virtuosa, tal como Robert pensava, mas talvez também nós os dois nos tenhamos equivocado. Uma mulher decente ficaria satisfeita por ter um marido que a protegesse. Talvez hoje não fosse a primeira vez com o inglês. Talvez Thomas tivesse razão e vós lhe tenhais entregado a torre depois de ele vos tomar. – Fez uma pausa. –
Talvez até vos tenhais cansado do vosso velho senhor e tenhais procurado ver-vos livre dele.
Ela soltou um suspiro de desalento. Implícito, pairava no ar um ultimato. Se ela amara Robert e não o tivesse matado, se ela fosse virtuosa, casar-se-ia com Reginald. Se recusasse, era uma meretriz e provavelmente matara o marido.
Um medo doentio apoderou-se dela, advertindo-a do perigo.
Pois se fosse meretriz e assassina, se se proclamasse como tal ao recusar a proteção de Reginald pelo casamento, estava convencida de que ele a levaria não para Edimburgo, mas diretamente para Clivedale.
Bem, diabos o levassem. Havia uma terceira hipótese. Deixava muito a desejar e era apenas uma solução temporária, mas era melhor do que isto.
– Eu liberto-vos do vosso juramento. – Agarrou no saco e saiu da beira da fogueira. – Nunca pensei ver o dia em que estar prisioneira de um exército inglês fosse a opção mais segura para mim.
Ele alcançou-a num instante, travando-lhe o braço com mão de ferro. – Não ides voltar para lá, para ele.
– Não vou voltar para ninguém, seu sandeu. – Tentou libertar-se dele com um safanão. – Vou para casa.
Com um puxão, ele fê-la regressar à fogueira. – Amanhã iremos para Hawick. De manhã, vereis que tenho razão.
– Amanhã atravessamos as terras do meu pai. Eu gritarei até que algum Graham nos encontre e as coisas ficarão feias para vós.
– Então atentarei a que não emitais nenhum som, senhora.
Os olhos dela esgazearam-se de terror quando compreendeu para onde ele a arrastava. – Não, Reginald. Não façais isto.
Ele baixou-se para recolher uma corda. Forçou-a a entrar no torreão arruinado. Ela agarrou-se a uma pedra e fincou os pés no chão, mas ele conseguiu vencê-la e levou-a em braços.
– Aqui não, Reginald – suplicou ela, quando a caverna escura das abóbadas das fundações se fechou à volta deles. – Amarrai-me lá fora.
– Se a mordaça se soltar, ireis gritar – replicou ele, deixando-a cair ao chão e atando-lhe rapidamente as mãos. – Faço isto para vosso bem, senhora. Reconhecê-lo-eis muito em breve. – Puxou a corda mais para baixo, colocando-a à volta dos tornozelos de Reyna. – Tudo ficará bem. Eu tomarei conta de vós.
A escuridão impunha já o seu terror. Derrotando-a. Fazendo dela uma criança. – Então ficai aqui comigo – soluçou ela.
– Devo ficar de vigia lá fora – rematou ele, afastando-se.
Meu Deus. Meu Deus. Reyna fechou os olhos, fingindo que dormia para tentar ignorar a escuridão silenciosa. Mas esta tomava-a como sempre fazia, o vazio ganhando dedos que a espicaçavam, o silêncio começando a ecoar em gargalhadas cruéis.
Desesperada, contorceu-se até conseguir ver o sítio por onde haviam entrado. Por entre as sentinelas de pedra que compunham a ombreira, vislumbrava-se uma luz ténue vinda da fogueira que esmorecia. Puxou para si o seu saco e vasculhou-o até encontrar o livro. Estreitando-o contra o peito qual talismã de racionalidade, aninhou-se contra os joelhos e fixou-se naquela pequena radiância cor de laranja.

Continuou a olhar durante largo tempo, aguardando o momento pavoroso em que as brasas escureceriam.
Frio. Um frio de rachar. Solidão desoladora. Sons à esquerda e à direita, e por baixo dela na própria pedra. Sons débeis. Passos, e mais passos apressados.
Acompanhou a extinção de cada faúlha. Por fim, não via mais do que uma escuridão eterna. O sentimento de terror infiltrou-se nela devagar, insidiosamente.
Apertou o livro nas mãos e começou a recitar cada oração que aprendera, cada passagem que alguma vez lera.
Ian afastou com uma palmada a mão de Margery da sua cabeça e começou a enfiar as botas. Margery aproximou-se dele com um pouco mais de bálsamo e uma série de murmúrios irritantes.
– Ide dar uma volta – reclamou ele. Ela afastou-se fazendo beicinho. Depois encarou-o de novo com um olhar que dizia que ele era um louco que não conseguia tomar conta dele próprio se pensava sair a cavalo no estado em que estava.
Era tudo tão previsível que Ian quase perdeu as estribeiras.
Voltou-se para Gregory. – Está tudo pronto?
– Sim. Vinte homens para verem as quintas. Mais dez para a cidade. Sai uma patrulha de madrugada para procurar pistas nos pauis. – O seu tom cético deixava transparecer que duvidava que encontrassem alguma coisa. Ian também duvidava.
– Devíeis comer alguma coisa – atreveu-se Margery. – Vou trazer…
– Saí daqui agora, mulher – ordenou Ian perigosamente. Ela saiu, abanando a cabeça. Ela comportava-se como a esposa dos seus piores pesadelos.
– Quem achais vós que foi? Quantos eram? – perguntou Gregory.
– Nada vi – respondeu Ian. Nada tinha visto porque estava em cima de uma mulher nua, c’um raio.
– Poderia ser Thomas Armstrong, a aproveitar a oportunidade para lhe deitar as mãos em cima. Ou até os Graham. Não estáveis assim tão longe das propriedades deles. Dos dois, o mais provável é terem sido os Graham, visto que não vos mataram.
Não, não o tinham matado, ainda que tivesse ficado inconsciente durante muito tempo, até a chuva o ter feito voltar a si. Ter-se-ia ela oposto à morte dele? Parte dele queria pensar que sim. A parte fraca.
– Nem Armstrong nem Graham, a meu ver. O mais provável é ter sido alguém que ela conhecia e em quem confiasse. Não me parece que ela tencionasse caminhar até Edimburgo sozinha. –
Prendeu a espada. – Penso que se dirigia para o antigo castelo.
Vou até lá ver se encontro vestígios deles.
– Quantos homens quereis?
– Nenhum.
– Sir Ian, sei que estais irritado, tendo em conta que a senhora vos escapou das mãos. Certamente que quereis acertar contas.
Mas quem sabe o que vos aguarda? Eu próprio e mais seis estamos prontos para sair.
– Nenhum.
– É insensatez, meu senhor, e vós sabei-lo.
Era insensatez. E teimosia, e orgulho. Ele perdera-a e queria reavê-la sozinho. Mas, acima de tudo, não queria ter ninguém por perto quando matasse aqueles homens e tratasse em seguida daquela vadia intrujona que o manipulara como se ele fosse um escudeiro mancebo.
Só uma vez na vida se enganara tanto a respeito de uma mulher.
Enquanto regressava ao castelo, com a cabeça a latejar de dor, finalmente percebera com quem estava a lidar. Ela jogara com o interesse dele com o objetivo de conseguir um aliado e protetor, encorajando-o a rebater a prova clara da sua culpa na morte de Robert.
Hoje tivera um desempenho de mestre. Céus, tinha mesmo feito dele um perfeito idiota. Fazendo render o tempo, pendurada naquela árvore, tentando escapar, prolongando a sedução. E
sempre à espera que os seus salvadores a encontrassem. Ela não gritara as suas recusas no início, mas aguardara até ao final, altura em que ele estaria mais vulnerável a um ataque. Desde o início que fingia inocência e ignorância e virtude para o ludibriar.
Não posso. O diabo que não podia.
– Ides querer-me convosco, parece-me – disse Gregory com seriedade. – Morvan insiste que ela não deve ser maltratada.
– Então vinde, que raio. E trazei os outros. Tendes razão, não há como saber o que nos espera.
Sem archotes, cavalgaram rapidamente rio acima até à sombra negra das ruínas. A um quarto de quilómetro do velho castelo, Ian indicou que parassem. Gregory colocou-se ao lado dele.
– Bem posicionado – observou Ian. – Se alguém lá estiver, tem visibilidade em todas as direções, e pode vigiar o rio também.
– Achais que eles seriam incautos ao ponto de ficarem tão perto?
– Porque não? Seria preciso um exército inteiro para cercar aquela colina. Subimos por um lado e eles esgueiram-se pelo outro, e quando findarem as buscas, já eles se foram há muito, já atravessaram o baldio e estão nos montes. – Apeou-se do cavalo.
– Dai-me tempo para a contornar e subir pelo lado sul. Depois avançai com algum barulho e fingi procurar nos arbustos à beira do rio. Se lá estiverem, talvez isso os distraia enquanto eu dou uma vista de olhos. Se houver muitos, eu regresso. Se assim não for, ficai atentos ao meu sinal.
Ian começou a correr para sul. A cabeça latejava-lhe, das passadas irregulares, mas um pulsar diferente no seu sangue fazia-o seguir em frente. Dirigiu-se à colina, desceu a vala que havia albergado a antiga paliçada e subiu pelo outro lado. Avançando mais lentamente, continuou em direção à forma indistinta e escalavrada da torre circular. Quando se aproximou das pedras, parou.
Nenhum som veio ao seu encontro exceto o resfolegar pouco pronunciado dos cavalos. Aguardou no escuro até ouvir Gregory gritar ordens aos outros homens, dizendo-lhes que procurassem ao longo do rio.
Ian semicerrou os olhos na noite. Estava um homem de pé a olhar para o outro lado, a espreitar por entre umas pedras. As nuvens deslocaram-se, e o luar mostrou um reflexo ténue do seu cabelo louro e da espada de aço que ele segurava na mão. Não parecia estar mais ninguém por perto.
Ian deu a volta pela parte de trás da estrutura, deparando com dois cavalos. Não podia correr o risco de Reyna lhe fugir a cavalo pela noite dentro. Desapertou as rédeas e deu-lhes uma palmada vigorosa nos flancos com uma mão, enquanto desembainhava a espada com a outra.
O movimento de cascos e o som do aço na bainha fizeram com o homem se virasse de rompante. Ian avançou, colocando-se frente a ele, com a fogueira extinta entre os dois. – Parece-me que tendes algo que é meu.
– Não tenho nada vosso, porco inglês.
– Tudo quanto estava no castelo de Black Lyne quando o tomei é meu, incluindo a senhora. Onde está ela?
– Já vai longe, com os outros. Fiquei aqui para lhes cobrir a fuga.
– Mentis. Havia dois cavalos.
Ian não conseguia ver o rosto do homem na noite. Mal lhe distinguia a figura. Lá em baixo, Gregory e os outros continuavam com as buscas. Chamou-os.
A sua boca mal se fechara quando a forma negra investiu. Ian, por sua vez, empunhou a sua espada e o som agressivo de aço contra aço reverberou na noite.
O homem bateu-se com o desespero de um cruzado a combater por Jerusalém. A escuridão acrescentava perigo à disputa. Ian valia-se de puro instinto e da subtileza dos sentidos, escutando o ar sibilante que lhe indicava o caminho da arma, sentindo mais do que vendo os movimentos do outro.
Percebeu quando o homem se voltou de forma vulnerável, e baixou a sua espada inclinada, tocando, invisível, na coxa e na perna. Um grito gutural acompanhou os sons de um corpo e da arma a caírem ao chão.
Não fora um golpe letal, pois queria o homem vivo. Agarrou-lhe no cabelo e endireitou-lhe a cabeça. Gregory e os outros subiam a colina a cavalo. – Onde está ela?
O homem não falou, inclinando apenas a cabeça para trás, expondo o pescoço ao golpe de misericórdia. Rosnando de irritação, Ian atirou-o ao chão.
– A senhora? – perguntou Gregory, saltando do cavalo.
– Está aqui. Provavelmente escondida nas ruínas. – Teve visões de passar a noite a jogar jogos de crianças, atrás de Reyna que escapava entre as rochas, sempre fora de alcance. – Posicionai os homens em sítios ao redor da colina, Gregory. Dizei-lhes para não deixar passar nada, nem um rato que seja.
Com a cabeça a latejar e a mente rogando pragas, Ian avançou a passos largos para o edifício decrépito.
A única coisa que lhe permitia conservar a sanidade era o bater do próprio coração.
Reyna concentrou-se na pulsação rápida, pesada. Parecia tão real, quase tangível, e recordava-lhe que não caíra numa eternidade negra, mas que estava viva e que o tempo decorria da forma normal. Ainda assim, uma parte dela, cada vez maior, há muito que se abandonara ao terror.
Aquelas mãos invisíveis estenderam-se de novo para ela, agora sem a atormentar, mas escorregando-lhe pelo braço e pela anca. O
riso era diferente – mais grave, perigoso, tirando um prazer cruel do medo dela. Juntou mais os joelhos e afugentou os demónios com o seu pensamento. Só que desta feita eles não se iam embora.
O pânico começou a avolumar-se, a espalhar-se, determinado a derrotá-la. Ela combatera-o durante tanto tempo que o seu espírito estava exausto, e sucumbir afigurava-se-lhe tentador. Robert, gritou silenciosamente.
Passos no escuro. Não passos apressados, indistintos, mas os passos de homem. Aguardou, respirando profundamente.

Semicerrou os olhos para a escuridão, procurando a luz e a mão da salvação, ainda que a sua alma soubesse que não poderia estar ali.
Mais perto agora, caminhando devagar. Tropeçando nela. Gritos de terror, vindos sabe-se lá de onde, ecoavam nas pedras, e o seu espírito cansado sucumbia.
– Céus! – Uma voz audível. Uma voz real. Irritada, mas isso pouco lhe importava. Umas mãos firmes a agarrar-lhe os ombros, a abaná-la.
Novamente a voz, ainda irritada, mas mais suave. – Não vos farei mal. Não vos assusteis. Vinde comigo, vamos sair deste sítio.
A sua própria voz, separada do seu corpo. – Não posso.
– Senhora, não quero voltar a ouvir-vos dizer isso nem mais uma vez.
Uma pontinha de discernimento despontou na sua mente turva. –
A corda.
– Bolas. Não vos mexais. – Alguns movimentos vigorosos, e estava solta. – Parece que o vosso plano não se concluiu como havíeis planeado, Reyna.
À sua volta, o espaço escuro adquiria lentamente uma forma normal. O odor e a presença acima dela eram prova incontestável de uma nova realidade. Todo o seu corpo estremeceu de alívio.
Ian ajudou-a a colocar-se em pé. Ela agarrava no livrinho, ainda apertado contra o seu peito. O braço forte estava à volta dos seus ombros. – Vinde comigo, Reyna. Ficareis em segurança.
Ele conduziu-a para fora da escuridão. Aguardava-os apenas o mais ténue dos luares, mas era alguma coisa. Ian gritou e apareceram homens a correr.
– Apanhámos um dos cavalos – disse Gregory.
– Ponde o homem em cima dele. Eu levo a senhora – ordenou Ian. Ele ainda estava irritado, mas, com a gratidão que sentia por não ter de atravessar a noite sozinha a cavalo, Reyna não se importava.
– Quem é ele? – perguntou Ian enquanto a ajudava a subir para o cavalo dele.
– Sir Reginald.
Ele alçou-se para trás dela. Os braços dele envolveram-na quando pegaram nas rédeas. – O cavaleiro do vosso marido? O
irmão de Edmund? Diabos. Ainda assim, faz mais sentido do que o hospitalário. – Ian começou a conduzir a pequena hoste de regresso a Black Lyne. – Porque vos amarrou ele? Não confiou que a amante cumprisse o que acordara com ele antes do assassínio do marido? Devo congratulá-lo por ter sido mais avisado do que eu.
As palavras dele não chegaram a assentar. Ela sentia-se como se o seu espírito tivesse sido exaurido de toda a emoção e todo o cuidado. Pendia dentro dela como um pano molhado insensível a toda a comoção, mesmo à raiva de Ian.
Fez aconchegada contra ele todo o caminho de regresso ao castelo, sentindo somente alívio por ele ter chegado, a ter encontrado, a ter salvado do terror. Vinde comigo rapariga.
Ficareis segura e nunca mais vos sentireis assim assustada.

 



CONTINUA